Pedro e o Capitão
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7/30/2019 Pedro e o Capito
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PEDRO E O CAPITO
MARIO BENEDETTI
1979
Traduo de Andressa Molinari, Eveline Teles, Gabriel Dauer, Isabel Bastos, Luza
Helena Virglio, Marina Andrade, Tiago Mocellin, Vitria Eula
Reviso de Tamara Traldi e Wellington Bauer
Oir Grupo de Pesquisa e Extenso em Cooperao Regional
Universidade Federal de Santa Catarina
Maio 2013
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PARTE 1
Cenrio livre: uma cadeira, uma mesa, uma cadeira de balano. Sobre a mesa h
um telefone. Em uma das paredes h uma pia com sabo, copo, toalha etc. A janela alta e com grades. Entretanto, no deve dar a impresso de uma cela, mas sim de
uma sala de interrogatrio.
PEDRO entra amarrado e com capuz, empurrado por seus supostos guardas e
soldados, os quais no so vistos. Torna-se evidente as agresses sofridas
provenientes de uma primeira seo leve de leses fsicas. PEDRO fica em p
imvel onde o deixaram, esperando por algo, talvez mais castigos. Passaram-se
alguns minutos e com isso entra o CAPITO impecvel: uniformizado, com a cabeadescoberta, bem penteado, com ar de suficincia. Aproxima-se de PEDRO e o toma
pelo brao sem violncia. Perante o contato, PEDRO, intuitivamente, faz um
movimento de defesa.
Capito
No tenhas medo. s para te mostrar onde est a cadeira.
O guia at a cadeira e o faz sentar. Pedro continua rgido e desconfiado. O Capito
vai mesa, revisa alguns papeis e logo se senta.
Capito
Parece que te bateram de leve. No falaste, claro.
PEDRO mantm o silncio.
Capito
Isso sempre acontece na primeira sesso. Inclusive, bom que no fale logo na
entrada. Eu tambm no falaria de primeira. Depois de tudo, no to difcil
aguentar umas pancadas e isso ajuda que se sinta bem. Verdade que te sentiste
bem por no haver falado?
Silncio de PEDRO.
Capito
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Logo a coisa muda, porque os castigos vo sendo cada vez mais duros. No final
todos falam. Para ser franco, o nico silncio que eu aceito o da primeira sesso.
Depois masoquismo. A conta que tens que fazer se vais falar quando te
quebrarem os dentes ou quando te arrancarem as unhas ou quando vomitares
sangue ou quando... Ah, o que vem a seguir? Bem, voc conhece o repertrio, j
que constantemente vocs o publicam aos mnimos detalhes. Todos falam garoto.
Mas uns acabam mais inteiros do que outros. Refiro-me ao fsico, logicamente. Tudo
depende em que etapa decide abrir a boca. Voc j se decidiu?
Silncio de PEDRO.
Capito
Olhe Pedro... Ou preferes que te chames de Romulo, como s conhecido no seu
grupo? No, eu vou te chamar de Pedro, porque aqui a hora da verdade e meu
estilo , acima de tudo, a franqueza. Olhe Pedro, eu entendo tua situao. No
fcil para ti. Levava uma vida relativamente normal. Digo normal considerando o que
so esses tempos. Uma mulher linda e jovem. Um garoto saudvel. Teus velhos
continuam animados. Um bom emprego no banco. A casinha que tu ergueste com o
prprio esforo. (mudando o tom). A propsito, por que ser que a gente da classe
mdia, como eu e voc, temos to enraizado o ideal da casa prpria? Por acaso
vocs pensaram nisso quando se propuseram a criar uma sociedade sem
propriedade privada? Pelo menos nesse ponto, o da casa prpria, nada vai apoia-
los. (retomando o tom). Ou seja, voc tinha uma vida simples, mas completa. E, do
nada, uns tipos bateram na tua porta de madrugada e te arrancaram dessa plenitude
e ainda por cima te do uma tremenda surra. Como no vou me colocar em sua
situao? Seria desumano se no entendesse. E no sou desumano, te asseguro.
Agora, te esclareo que, aqui mesmo, h outros que so quase desumanos.
Contudo, tu ainda no os conheceste, mas talvez os conheas. No me refiro aos
que antes o capturaram. No, tem outros que so tremendos. Confesso-te que no
poderia fazer esse trabalho sujo. Para ser honesto tem que ter nascido honesto. Faz
parte da guerra. Tambm vs tendes, imagino trabalhos limpos e trabalhos sujos.
assim ou no? Eu sou frouxo, talvez eu realmente o seja, mas prefiro o trabalho
limpo. Como este: sentar-me aqui e conversar contigo, e no recorrer briga, nemao submarino, nem ao planto, se no existe razo. Minha especialidade no o
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choque eltrico, mas sim o argumento. O choque pode ser manejado de qualquer
maneira, mas para manejar o argumento tem que ter outro nvel. Concordas? Por
isso tambm eu ganho um pouco mais que os homens eltricos. (Da um golpe para
frente, como que surpreendido pela sua habilidade verbal.). Os homens eltricos!
Como tu achas que so? Como nunca me ocorreu de cham-los assim? Esta noite
no cassino contarei ao Coronel: ele tem senso de humor, ir gostar. (se cala um
momento. Olha para PEDRO, que continua imvel e calado). Se estiver cansado da
posio, podes cruzar a perna. (PEDRO no se move.) Parece que optaste por uma
resistncia passiva. O fraco Gandhi sabia muito sobre isso. Mas uma coisa eram
hindus contra ingleses e outra, muito diferente, so vs contra ns. A resistncia
passiva hoje em dia no resulta, nem resolve nada. como te disse antiquado.Desde que os Yankees viu que eu digo Yankees, igual a vs?- impuseram seu
estilo to eficaz de represso, que a resistncia passiva se foi ao caralho. Agora o
negcio a morte. Por isso acredito que, mesmo nessa primeira etapa, no te
convm ser teimoso. Percebes que nem sequer me contestas quando te pergunto
alguma coisa. Isso no est bem. Porque, como havia observado, no estou aqui
para te maltratar, seno simplesmente para falar contigo. Vamos ver, porque esse
silncio? Ser um silncio depreciativo? Consideramos que sim. Aqui, nesta guerra,todos ns nos desprezamos um pouco. Vs e ns, ns e vs. De qualquer forma
somos inimigos. Por outro lado, tambm nos apreciamos. Ns no podemos deixar
de apreciar- vos pela paixo com que se entregam a causa, como arriscam tudo por
ela: desde o conforto at a famlia, desde o trabalho at a vida. No entendemos
muito o sentido desse sacrifcio, mas te asseguro que o apreciamos. Em
compensao tenho a impresso de que um pouco da violncia que fazemos a ns
mesmos quando temos que castig-los, s vezes at arruin-los, a vs que apesarde tudo so nossos compatriotas, e acima de tudo compatriotas jovens. Parece-te
pouco sacrifcio? Tambm somos seres humanos e gostaramos estar em casa,
tranquilos, relaxados e descansados, lendo um bom livro policial e assistindo
televiso. Porm, temos que permanecer aqui, cumprindo horas extras, para fazer
essa gente sofrer, ou, no meu caso, para falar com essa mesma gente entre
sofrimento e sofrimento. Meu tempo um intermdio, viu? (mudando o tom.).
Gostas de msica, de pera? J sei que no vais me responder... Por enquanto
(retomando o tom.). Mas o que queria lhe dizer que suspeito que vs aprecieis,
no sei se consciente ou inconscientemente, a paixo que ns, de nossa parte,
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depositamos em nosso trabalho. assim? (Pela primeira vez, o tom da pergunta
comea a ser ameaador. PEDRO no responde nem se move.). Deixa-me ver... A
vs no tenho que explicar as regras do jogo. Tu as conheces bem e at sei que
recebeis aulas para enfrentar situaes como essas que vives agora. Ou no sabes
que entre ns h interrogadores maus, quase brutais, esses que so capazes de
arruinar o detento, e h tambm os bons, que recebem o preso quando ele vem
cansado do castigo brutal e vo pouco a pouco o amolecendo? Sabes verdade?
Ento te deste conta de que eu sou o bom. Desse modo tu tens que aproveitar.
Sou o nico que pode te aliviar a surra, rapidez nos plantes, suspenso de choques
eltricos, melhora nas comidas, um ou outro cigarro... Pelo menos sabes que,
enquanto ests aqui, comigo, no tens que manter todos os msculos e nervostensos, nem fazer clculos sobre quando e donde vir o prximo golpe. Sou algo
como o teu descanso, teu alvio. No sabes? Ento acredito que seja mais
adequado que voc encerre o seu silncio absurdo. Conversando a gente se se
entende, dizia meu velho, que era rematador, ou seja, que tinha suas boas razes
para confiar no uso da palavra. Digo-te isto para que tenhas uma composio do
lugar e no ultrapasse teus direitos, si no queres que eu ultrapasse meus deveres.
Posso respeitar o direito que tens de calar-se em minha frente, que no tenho ainteno de tocar-te. Mas no quero que saibas que no estou disposto de fazer
papel de estpido cedendo e cedendo meu desfecho, e vs a, calado como um
poste. Tambm no espere o impossvel da parte do bom. Sobretudo quando o
bom conhece alguns detalhes da tua trajetria. Pedro, alis, Rmulo. Mas, - e para
que no te tortures alm do que vo te torturar-, te direi que no tem nenhuma
necessidade de falar de Toms, nem de Cassandra, nem de Alfonso. A historia
deles j temos completa. No nos falta nenhum ponto, nenhuma vrgula, nem sequerum parnteses. Para que vamos quebrar o seu pescoo pedindo dados que j temos
e verificamos? Seria sadismo, e ns no somos sdicos, seno pragmticos. Em
troca, sabemos pouco de Gabriel, de Rosario, de Magdalena e de Fermn. Em
alguns desses casos, nem sequer sabemos o nome real e o domiclio. Vejas que
margem ampla tu tens para nos ajudar. Agora, porm, para completar as quatro
abas, e, como sabemos, com certeza que voc , nesse sentido, o homem-chave,
estamos dispostos no eu, pessoalmente, digo ns como instituio a
quebrarmos no somente seu pescoo, mas seno os ovos, os pulmes, o fgado e
at a aurola de santo que alguma vez quiseste usar, mas te parece grande. Como
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vs, coloco as cartas sobre a mesa. No poders me acusar de mentiroso nem de
ambguo. Est a situao. E como, de alguma maneira, me s simptico, te digo
claramente para que saibas que s respeitado. Ou seja, que eu tenho simpatia por ti,
mas no lstima nem piedade. E por suposto h aqui, nesta unidade militar- que
nunca saber qual -, gente que, por principio e sem necessidade de saber nada de
vs, no tem simpatia por ti, e so capazes de levar-te at o ltimo minuto. E no s
a vs. Eles, os da linha dura, preferem s vezes trazer a esposa do acusado, e,
como te direi, perfura-la em sua presena, e at tem aqueles que so partidrios
da tcnica brasileira de fazer os filhos sofrerem diante dos pais, sobretudo de sua
me. Tu imaginas que eu no me associo a esses extremos, me parecem
simplesmente desumanos, mas vamos ser objetivos, temos que admitir que taisextremos constituam uma realidade, uma possibilidade, e no me sentiria bem se
no tivesse te avisado e um dia te encontraria com algum orangotango, como esses
que antes te deram uma surra de introduo, violaram frente a vs a essa linda
garota que s tua mulherzinha. Chama-se Aurora, no? Asseguro que nesse caso te
tirariam o capuz. So orangotangos, mas refinados. Quanto tempo tem de casado?
verdade que no ltimo dia vinte e dois de outubro celebraste teus oito anos de
matrimnio? A Aurora gostou da correntinha de ouro que tu compraste na RuaSarand? E o que me conta se chegam a trazer o Andresito e comeam a tortura-lo
na tua presena? Este ltimo, como te dizia, ainda no foi aprovado como recurso,
mas os assessores o tem estudado, e, claro, sempre haver algum que ter que ser
o primeiro. Nunca estarei de acordo com esses procedimentos, porque confio
plenamente no poder de persuaso que tem um ser humano frente a outro ser
humano. Mas, acho que os homens eltricos usam os choques porque no tem
confiana em seu poder de persuaso. E, alm disso, consideram o preso umobjeto, uma coisa na qual vo pressionar por procedimentos mecnicos, a fim de
que ele libere todas as suas substncias. Eu, ao contrrio, nunca perco de vista que
o detento um ser humano como eu. Equivocado, mas ser humano! Tu, por
exemplo, assim como ests, calado e imvel, poderia ser simplesmente uma coisa.
Talvez o que ests tentando coisificar em minha frente, mas por mais quieto e
mudo que permaneas, eu sei que no s um objeto, eu sei que s um ser humano,
e, sobretudo um ser humano com pontos sensveis. Pontos sensveis que, claro, as
coisas no possuem. (Pausa). J pensaste nos ovos, claro! Quando algum fala de
pontos sensveis, de praxe: as mulheres pensam nos seios, e os homens nos
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ovos. Um fato que muito importante no esquecer. J dizia o pobre Mitrione, que
sabia de tudo: dor preciso, no lugar certo, na medida certa e, com efeito,. claro
que, segundo o ponto de vista de tuas respeitveis convices, bravo expor a si
mesmo a mera possibilidade de falar, de entregar dados, referncias. No
simptico que algum o acuse de traidor. Mas aqui h um elemento que por acaso
vs ignoreis. Um tratamento que disponibilizamos apenas a gente que nos caem
bem, como vs, rapaz. Damos-te a possiblidade de que nos ajudes sem ficar de mal
com teus companheiros. Que voc acha? Melhor impossvel. Parecer-te- vaidade
da minha parte, mas para ns nada impossvel. Queres que eu te explique? O
plano tem quatro partes. Primeira: tu falas, quanto antes melhor, assim no temos
necessidade de ameaar-te: dizes-nos tudo, tudinho, sobre Gabriel, Rosario,Magdalena e Fermn. Veja que poderamos dar-te uma lista com vinte nomes,
entretanto, bons como somos, inclumos somente quatro. Quatro, te ds conta? Uma
barganha. Segundo. Terminamos alguns procedimentos, com as informaes que
espontaneamente, entende? Espontaneamente, nos proporcionaria. claro que
esses procedimentos nos servem, entre outras coisas, para comprovar se est
efetivamente colaborando, ou ao contrrio, est nos enganando. No te aconselho a
segunda opo. Se, ao contrrio, confirmarmos a primeira, no te soltaremos emseguida. Isso para o teu bem, para que teus companheiros no suspeitem.
Deixamos passar um tempo e depois te soltamos. Lindo, no? Terceiro: Inventamos
um documento em cdigo ou uma lista de telefones ou qualquer outra coisa que
entraramos em acordo, e fazemos que o ataque foi devido ao descobrimento fortuito
dessa lista ou o que seja, e sobre toda a nossa capacidade dedutiva, assim
terminamos bem. Como vs estais divididos, cada parte acreditar que a lista vem
de outro informante. Quatro: Soltamos-te por finalmente, e vs quando te juntar aosoutros, digas que negaste tudo com tanta firmeza que nos convencera de tua
inocncia. O que tu acha? (PEDRO continua imvel). Advirto-te que no podes
esperar uma soluo melhor que a que te propus. Tem em conta que nunca foi
empregado at agora, de modo que as suspeitas sobre vs no tero fundamento.
Mas tenho a impresso de que sairs favorecido quanto a prestigio e autoridade. E
alm do mais te livrar de toda essa imundcie. s muito jovem para destruir-te, para
arruinar-te. Poderias voltar com Aurora e com a criana. No te d gua na boca?
Aurora te receberia como heri, e, claro, no inicio teria algum remorso, mas com
uma mulher como a tua, os remorsos se esvaem na cama. Isso sim, tu tens que me
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responder. At agora suportei que no dissera nada. Mas, poucos detentos tem o
privilgio de receber uma proposta to generosa. Por que tem me cado to bem?
De maneira que ter que me responder. Para que vs e eu saibamos a que nos
atemos. Concretizemos, pois; frente a essa proposta, ests disposto a falar, ests
disposto a dar-nos alguma informao que te pedimos? (se faz um grande silencio.
PEDRO continua imvel. O CAPITO sobe o tom). Ests disposto a falar? (O capuz
de PEDRO se move negativamente).
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PARTE 2
O mesmo cenrio.
Passados uns minutos, Pedro amarrado e com capuz novamente colocado em
cena, como na cena anterior, mas com mais violncia. Agora est mais deteriorado.
evidente que o castigo sofrido tenha sido severo. Pedro busca a cadeira com as
mos. Por fim a encontra e senta com dificuldade. De vez em quando sai de sua
boca um gemido quase inaudvel. Entra o Capito: aparncia e roupa igual cena
anterior. Observa cuidadosamente Pedro, fazendo um inventrio de suas novas
contuses e feridas.
Capito (Em p, com as pernas abertas e os braos cruzados).
Viu? J comeou a aumentar. No poders dizer que no te avisei. Veja que bestas
que so estes subordinados! E tens que deix-los fazer. Ao contrrio, provvel que
nos revidem. (Pausa). No acreditas? No estou brincando. Mas a verdade que h
mais de um oficial que amedrontam. (Pausa). Ento? Dei-te tempo para pensar.
Pensou? (Silncio e imobilidade de Pedro.) Eu te digo uma coisa. No creio que
vamos seguir todo um semestre nesta situao, digamos estagnada. Por um lado,
no acredito que seu corpo aguentar por muito tempo. No o que se diz de um
atleta. No me refiro a mais perguntas, claro, mas sim aos choques eltricos.
(Mudando de tom.) A propsito, minha piada fez muita graa ao coronel. No
apenas riu, mas tambm me disse: Capito, temos que cuidar para que no haja
nenhum apago. A piada no boa, mas o que eu ia fazer. (Retomando a
conversa.) O que estava dizendo? Ah, sim, que estvamos estagnados. Por mim,
quero sair desta estagnao. Imagino que voc tambm. Por isso decidi colocar um
elemento novo na situao. (Pausa.) No tem curiosidade? O que ser? Uma
testemunha? Algum que te delatou? (Nova pausa, para criar expectativa.) No,
nada disso. O novo elemento ser seus olhos. Quero que vejas e que eu posso ver
como voc v. (Aborda Pedro e de uma vez retira o capuz. Pedro est ferido e
marcas de golpes na face. Abre e fecha vrias vezes os olhos). Bom, bom.
(Sorrisos.) Muito bem. melhor nos vermos cara a cara, no? Nunca gostei de falarcom um saco de pano. H alguns colegas que no querem te ver preso. E alguns
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tem razo. O castigo gera rancor, e nunca sabemos o que pode nos trazer no futuro.
Quem te disse que algum dia est situao se inverta e que voc me interrogue. Se
isso vier a acontecer, te prometo que vou colaborar mais que voc. Mas no vai
ocorrer, no se iluda. Temos tomado todas as precaues para que no ocorra. Por
outro lado, no me preocupo que conhea meu rosto. O mximo que podemos
culpar o que eu estava perguntando e perguntando, mas penso que no gera
rancor, creio. Ou gerado? (Pausa.) Ah sim, sem capuz, mais difcil falar,
verdade?
Pedro
Sim.
Capito
Caramba! Primeira slaba. Toda uma concesso. Parabns!
Pedro (Tem certa dificuldade ao falar, por causa do inchao da boca).
Quero esclarecer que o fato de voc no participar diretamente na minha tortura,
no garante que eu te odeie, nem sequer que te odeie menos.
Capito (Se surpreende um pouco, mas reage).
Est bem. Eu gosto de jogo limpo.
Pedro:
No, voc no gosta. Mas no importa. Quero dizer tambm, que com o capuz no
abri a boca porque tenho um mnimo de dignidade e que no estou disposto a
renunciar, e o capuz algo indigno.
Capito (Depois de um silncio)
Isso de dio, por que disse isso?
Pedro
Por que eu disse?
Capito
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Sim, pude compreender o que sente. Em troca, no pude compreender que me
disse isso assim, descaradamente. Aqui eu estou por cima, e voc est por baixo.
Esqueceu?
Pedro
No, no me esqueci.
Capito
Eu mostro dio, gero dio.
Pedro
Claro.
Capito
Vou avisar que no vou entrar nesse jogo. Sou cristo, mas no costumo dar a outra
face.
Pedro
Por suposto. O fato que eu coloquei fui eu, e olha o que eu tenho. As bochechas e
as costas e as pernas e as unhas.
Capito
E amanh os ovos.
Pedro
Se voc diz.
Capito
Digo-te, mando e os outros cumprem. O que voc acha? (Gesto de Pedro. O capito
solta uma risadinha.) De toda maneira, te aconselho que no me provoque, sou de
pouca pacincia, sabe?
Pedro
Eu sei. Talvez eu saiba mais de voc do que voc de mim.
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Capito (Irnico)
No me digas!
Pedro
Sim eu digo. Em sua nsia de sugar tudo o que eu sei e o que eu no sei, voc no
percebeu que mostra quem voc .
Capito
E como eu sou?
Pedro:
Bah...
Capito
Parece que eu te perguntei como eu sou.
Pedro
Sim, eu sei. Mas absurdo. Coloca-me em preso, faz com que me arrebentem e
ainda por cima quer que eu sirva de analista. Isso no!
Capito
Depois de tudo, eu imagino como eu sou.
Pedro
Ento eu estou de acordo com esse autodiagnstico.
Capito
E se eu me imagino nobre e digno?
Pedro
Sabe o que ? Voc no pode se passar por um eltrico. (Pausa muito breve.) No
se pode imaginar nobre e digno.
Capito (Gritando)
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Cala-te!
Pedro
Como? No queria que eu falasse? E agora que decido falar...
Capito (Mais baixo, mas concentrado).
Cala-te, estpido.
Pedro
Est bem.
Capito (Depois de um tempo, mais calmo, como se reconsiderasse)
Depois de tudo, no me considero nobre ou digno. Mas a quem importa minha
nobreza e minha dignidade? Em? A quem?
Pedro
Deveria lhe importar. O que me ...
Capito
Isto tambm est nas instrues? Estabelecer uma distncia saudvel com o
interrogador?
Pedro
voc quem estabelece a distncia. Como pode haver comunicao, aproximao,
dilogo, entre um torturado e seu torturador?
Capito (Com certo alarme)
Eu nem sequer te toquei.
Pedro
Sim, j sei; o bom. Mas h aqui bons e maus? Voc no ser como o
mastodonte que me faz o submarino, como a besta que me aplica o choque eltrico?
A mesma engrenagem, a mesma mquina? Por acaso voc mesmo pode crer que
haja diferena?
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Capito
Ests passando de insolente.
Pedro
Ento volto a me calar.
Capito (Depois de um silncio)
E no queres me perguntar nada?
Pedro
Eu perguntar?
Capito
Sim, voc perguntar.
Pedro
Do que se trata? Uma nova tcnica ps Mitrione?
Capito
Na melhor das hipteses
Pedro (Reconsiderando)
Bem, vou te perguntar: tem famlia?
Capito (Surpreendido)
Por que te importa?
Pedro
No me importa nada. A quem deve importar, se tiver uma, a voc.
Capito
Ests me ameaando?
Pedro
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Isso se chama deformao profissional! Vocs, quando se recordam da famlia de
algum sempre para ameaar.
Capito
E ento para que queres saber?
Pedro
Porque se tens pais, mulher e filhos terrvel para ti quando voltas para casa.
Capito (Gritando)
O que dissestes?
Pedro
Explico-me. Deve ser terrvel para voc, depois de interrogar um recm-torturado,
dar um beijo na sua mulher ou em seu filho, se tem algum.
O capito se levanta e d um soco na boca de Pedro.
Pedro (Move os lbios e fala com mais dificuldade que antes).
Menos mal que voc o bom.
Capito
Tudo tem seu limite.
Pedro
Vai se arruinar Capito. No esquea que o bom no pode nem deve executargolpes em um homem amarrado. (Pausa) De todas as maneiras te comunico que
no podes competir com teus colegas da noite. Eles fazem muito melhor. E lgico.
O que eles fazem eletricamente, voc faz com sangue. Assim no se pode competir.
Capito
Disse que basta.
Pedro
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No brigaro quando se derem conta de que perdestes a calma? Violou as regras
Capito.
Capito (Falando entre dentes).
Olhe pirralho, cale-se.
Pedro
No gostou da parte da famlia, no ? Primeiro: quer dizer que tem uma. Segundo:
que no to insensvel.
Capito (Mais calmo)
Vais falar ento?
Pedro
Estou falando, no estou?
Capito
Sabes a que me refiro.
Pedro
Capito, no tire concluses precipitadas.
Capito (Desorientado)
Mas por qu? Por qu? (Gesto de Pedro.) No te ds conta, cretino, de que esto te
usando? No te ds conta de que outros pem as ideias e tu pes a cara?
Pedro
Essa frase tima. De onde a tiraste? (Pausa.) Inclusive s vezes pode estar certa.
Capito
E ento?
Pedro
Ento, nada. O essencial no o defeito individual...
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Capito (Concluindo a frase)
... E sim a vontade do coletivo. Pargrafo sete, inciso A, da declarao interna que
vocs analisaram em agosto.
Pedro
E se conhecem a declarao de agosto, para que toda esta farsa?
Capito
Uma coisa a declarao, e outra voc.
Pedro
Ou seja, que temos um delator.
Capito
Por que no? O que esperavas?
Pedro
E como que no lhes disse tudo sobre Gabriel, Rosrio, Madalena e Fermn?
Capito
Porque no sabe.
Pedro
Ah.
Capito
Por outro lado, sabia sim de ti e por isso castes. Alm disso, nos disseram que voc
sabia sobre os outros quatro.
Pedro
Ah.
Capito (Depois de um longo silncio)
Diga-me algo, sabes o que te espera?
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Pedro
Posso imaginar.
Capito
Talvez seja muito pior do que imaginas. Diariamente fazemos progressos.
Pedro
O que imagino sempre pior.
Capito
Mas o que s? Um suicida?
Pedro
Nada disso. Eu gosto de viver.
Capito
Viver aprisionado?
Pedro
No, simplesmente viver.
Capito
Ofereo-te que vivas, simplesmente.
Pedro
No, simplesmente no. Voc me oferece que eu viva como um morto. E antes
disso, prefiro morrer como um vivo.
Capito
Bah, frases.
Pedro
Eu a disse de propsito. Pensei que gostaria. Vocs, quando fazem um discurso,
falam sempre enfaticamente.
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Capito
Antes me perguntastes da famlia. Sim, tenho uma mulher e um casal de filhos. O
menino tem sete anos; a menina, cinco. certo que s vezes, quando chego dotrabalho, difcil enfrent-los. Aqui no torturo, mas ouo muitos gritos, gemidos
devastadores, bramidos de desespero. s vezes chego com os nervos destroados.
Minhas mos tremem. No sirvo muito para este trabalho, mas estou aprisionado. E
ento encontro apenas uma justificativa para o que fao: conseguir que o preso fale.
Conseguir que nos d a informao da qual precisamos. claro que sempre prefiro
que fale sem que ningum o toque. Mas assim no d, no vem nada. Nas vezes
que conseguimos algo, sempre com a mquina. lgico que se sofre vendo
outros sofrerem. Dissestes que no era insensvel, e certo. Ento, veja, a nica
maneira de me redimir ante as crianas estar consciente de que estou
conseguindo o objetivo que me atriburam: obter informao. Mesmo que tenhamos
que destruir vocs. vida ou morte. Ou destrumos vocs ou nos destroem. Vida
ou morte. Voc colocou o dedo na ferida quando mencionou minha famlia. Mas
tambm me fizeste recordar que de qualquer maneira, tenho que te fazer falar.
Porque s assim me sentirei bem ante minha mulher e filhos. S me sentirei bem se
cumprir minha funo, se alcanar meu objetivo. Porque do contrrio, serei
efetivamente um cruel, um sdico, desumano, porque terei ordenado que te torturem
para nada, e isso uma porcaria que no suporto.
Pedro (Olha para ele com certa curiosidade, com um interesse quase cientfico,
como quem examina uma espcie extinguida)
Algo mais?
Capito
Sim, uma pergunta. a mesma de antes, mas aspiro que agora entendas melhor,
confio que te ds conta de toda a vida que ponho atrs dela. Falars?
Pedro (Ainda estupefato ante a indagao do Capito, mas sem perder nada de sua
fora).
No, Capito.
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PARTE 3
O mesmo cenrio.
O CAPITO est na cadeira, mexendo-a inquietamente pra trs e para frente. Ele
perdeu a compostura das cenas anteriores. Est desgrenhado, desabotoou a camisa
e afrouxou a gravata. Inclina-se sobre a mesa e pega o telefone.
CAPITO
Traga-o! (Desliga o telefone)
Novamente volta a balanar-se na sua cadeira. s vezes parece respirar com
dificuldade. Decorrem vrios minutos. Rudos so ouvidos nas proximidades.
PEDRO jogado no ambiente. Est usando o capuz. As roupas esto rasgadas e
bastante manchadas de sangue. Ele est deitado no cho, imvel. O CAPITO
chega perto. Sem tirar-lhe o capuz, v seus mltiplos ferimentos e contuses. Pega
um dos braos de PEDRO. Ouve um gemido rouco. Em seguida o solta. Parece
desorientado e longe daquele corpo.
CAPITO
Pedro!
O corpo no responde, mas tenta movimentar-se. O CAPITO se aproxima
novamente, e desta vez o segura com fora e o leva at a cadeira. Mas o corpo de
PEDRO se inclina para o lado. O CAPITO volta a acomod-lo na cadeira. Quando
verifica que, finalmente, tem estabilidade, retorna para a sua cadeira e a balana
novamente. Sob o capuz emitido algum barulho, mas a princpio no h como
distinguir se est rindo ou chorando. O corpo treme. O CAPITO suspende o
balano de sua cadeira, e espera tenso. Mas o barulho confuso, ambguo. Em
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seguida, ele se levanta, se dirige at PEDRO e em um movimento rpido, tira-lhe o
capuz. Tem o rosto completamente deformado e inchado, mas ri.
CAPITO
Do que ests rindo, estpido?
PEDRO (como se o CAPITO no tivesse falado com ele)
E em plena sesso de choque eltrico, veio o apago, esse mesmo apago que seumaldito coronel previu. E pobres, os mastodontes no sabiam o que fazer, porque
sem corrente eltrica no so nada. E l estava aquela garota com o fio na vagina,
e quando veio o apago, no sei como puderam lhe dar um chute. E a besta riscou
um fsforo, mas o choque eltrico no funciona com fsforos. (A partir deste
momento e durante quase toda a cena, PEDRO dar a impresso de algum que
delira, ou talvez, de algum que simula estar delirando. importante que se
mantenha esta ambiguidade). Continua na banheira, claro, com sua gua de merdae sua bosta boiando, mas difcil fazer acontecer s escuras. A banheira no
eltrica, claro, mas s vezes utiliza corrente eltrica. E no confortvel fazer isso
no meio de um apago. No escuro, no h como saber quando o tipo no vai
aguentar mais. O doutor precisa de boa iluminao para diagnosticar a proximidade
de uma parada cardaca. Assim, tiveram que suspender a sesso.
CAPITO
Pedro.
PEDRO
Chamo-me Rmulo.
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CAPITO
No, teu nome Pedro.
PEDRO
Rmulo, pseudnimo Pedro.
CAPITO
No me confunda. Pedro, pseudnimo Rmulo.
PEDRO
Nada.
CAPITO
Qu?
PEDRO
Nada, no tenho nome nem pseudnimo. Nada.
CAPITO
Pedro.
PEDRO
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Pedro Nada. Nada meu sobrenome materno. O senhor no sabia capito? Ento
estou te revelando neste exato momento. O senhor no vai chamar o taqugrafo?
uma declarao importante. Ou o senhor est utilizando o gravador? Pedro Nada. E
o meu sobrenome paterno Mais. Ou seja, completinho: Pedro Nada Mais. (ri com
dificuldade).
CAPITO (espera que PEDRO termine de rir)
O que h contigo?
PEDRO
Nada de importante. Estou morto. Adeus. A esta altura, a morte no me importa.
CAPITO
Ests vivo. E podes estar mais vivo ainda.
PEDRO
O senhor est errado, capito. Estou morto. Estamos em meu velrio.
CAPITO
No seja to delirante. Comigo, este teatro no funciona.
PEDRO
No teatro, capito. Estou morto. No sabes a tranquilidade que me veio quando
soube que estava morto. Por isso agora no me importa que me apliquem choques,
ou me mergulhem na merda, ou me deixem plantado esperando, ou que me
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explodam os ovos. No me importa porque estou morto e isso d uma grande
serenidade, e at uma grande alegria. Voc no v como estou contente?
CAPITO
s o primeiro morto que fala como um papagaio.
PEDRO
Muito bem capito, excelente: voc se deu conta da contradio. Ests treinandopara a dialtica, no mesmo? Eu estou morto e eu falo como um papagaio. Bravo,
capito! Quem diria que chegarias a to brilhante concluso? Bravssimo! Peo que
conste na gravao minha vontade de aplaudir; no aplaudo, claro, porque estou
amarrado. (Pausa). Eu lhe devo uma explicao. Quero dizer que estou
tecnicamente morto, mas ainda funciono como corpo, isto , eu mijo, fao merda.
No diria que arroto, porque como estou morrendo de fome, no tenho nada para
arrotar. Pois bem, digo que estou tecnicamente morto porque no vo tirar de mimnenhum nmero de telefone, nem sequer o nmero da minha camisa, e, em
consequncia, vo continuar me batendo e espancando mais e mais. E este corpo
frgil aguenta apenas um pouco mais, muito pouco mais. Como o senhor bem
observou capito, no sou um atleta. E como vo continuar me batendo, bom, por
isso estou morto, tecnicamente morto. Entendeu capito? O senhor no sabe a
tranquilidade me veio quando me dei conta. Tudo mudou. Por exemplo: tinha dio do
senhor, e em vez disso, uma vez que estou morto, agora tenho lstima. Sinto que
pela primeira vez tenho uma vantagem considervel, diria quase imensurvel.
CAPITO
No fique to seguro. Como sabes at onde aguentars? Isso somente se sabe
quando chega o momento. Aguentaste at agora. Mas j te disse antes que no
chegamos ao mximo. Todos os dias descobrimos algo novo.
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PEDRO
Reconheo que essa era a preocupao que tinha quando estava vivo: at onde eu
poderia aguentar. Porque quando se est vivo, quer seguir vivendo e isso sempreuma tentao perigosa. Em troca, a tentao se acaba quando se sabe que est
morto.
CAPITO
E a dor?
PEDRO
T certo, e a dor? Como importante a dor quando se est vivo. Mas que pouco
significa a dor quando se est morto.
CAPITO
Voc no est morto, caralho! (Pausa.) Mas talvez estejas louco.
PEDRO
Fao-te uma concesso, capito: louco, porm, morto.
CAPITO
Ou te passas por vivo.
PEDRO
Outra observao sagaz, capito! Porque ningum pode se passar por morto.
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CAPITO (impaciente)
Pedro!
PEDRO
Pedro Nada Mais.
CAPITO
Estou cagando para o teu nome completo!
PEDRO
Comunico que o senhor cagou em um cadver, capito, e que isto, em qualquer
parte do mundo e sob qualquer regime, desrespeitoso.
CAPITO (tentando levar o dilogo para um nvel de mais normalidade)
Voc tem que falar Pedro. Vou ser franco contigo: comecei a me simpatizar por ti.
No quero que te machuquem mais.
PEDRO
J me machucaram demais, capito. O seu lapso de bondade chegou tarde. Sinto
muito. J no tenho mais fgado, e provvel que no tenha mais ovos. Pelo sim e
pelo no, no conferi.
CAPITO
No quero que eles te destruam.
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PEDRO
Porque o senhor fala na terceira pessoa do plural?
CAPITO
No quero que a gente te destrua.
PEDRO
Assim est melhor. No gostas das runas? Digamos, Pompeia, Herculano, Machu
Pichu, Pedro Nada Mais, etc.
CAPITO
Cala a boca!
PEDRO
Os que se calam so os vivos. Se lembra capito, como me calavas quando eu
estava vivo? Mas os mortos podem falam. Com a pouca lngua, a garganta
apertada, os quatro dentes, os lbios ensanguentados, com este pouco que vocs
nos deixam, os mortos podem falar. (Pausa.) Da tua famlia, por exemplo.
CAPITO
Outra vez? Por que no falamos da tua?
PEDRO
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Ou da minha, por que no?
CAPITO
Da tua mulher.
PEDRO
Da minha viva, na verdade, Aurora...
CAPITO (cortando PEDRO)
Pseudnima Beatriz.
PEDRO fica em silncio. A cabea cai sobre o peito
CAPITO (sorrindo)
Como? No estavas morto? Parece que ainda tens reflexos.
PEDRO segue imvel, sempre com a cabea cada para frente.
CAPITO
Aurora, pseudnimo Beatriz. No havia te dito que todos os dias colocamos as
cartas sobre a mesa?
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PEDRO vai de pouco a pouco levantando a cabea, mas agora seu olhar est
perdido em algum ponto distante. Comea a falar em tom muito baixo, quase como
um sussurro, e em seguida, vai lentamente subindo a voz.
PEDRO
Quando eu era pequeno, sonhava com o mar. Agora que tenho doze anos, prefiro
v-lo. Nicols disse que no mar. Nicols...
CAPITO (delimitando)
Pseudnimo Esteban...
PEDRO
Disse que rio. Mas nos rios se v sempre a outra margem e aqui no. E ademais
no so salgados. E este salgado. Assim eu o chamo mar. Chamo-no mar. E
quando o chamo, afundo os ps na areia, e a areia se mete entre meus dedos. Faz-
me cosquinhas.
CAPITO (como contagiado por PEDRO, ele tambm se transforma. Um e outro vo
falando alternadamente, sem dialogar. Na realidade, so dois monologos cruzados)
Eu tinha que dar-lhe uma rosa. No sei por que, mas tinha. Ela vinha com sua me esua prima. Ela vinha e eu a via, mas eu tinha que dar a ela uma rosa. E uma tarde
roubei do jardim da embaixada, e o policial me correu e disse saco de merda, mas
eu corri mais e me veio asma. Mas quando cheguei ao parque, quando cheguei
fonte, j havia passado a asma, mesmo que ainda me saltasse o corao, e ento
me aproximei e dei a ela a rosa e ela primeiro me olhou surpreendida, logo piscou e
em seguida arremessou a rosa na gua da fonte.
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PEDRO
Eu queria ser vagabundo e aos treze fugi de casa. E caminhei toda a manh e me
sentia eufrico, livre, feliz. E como tinha no bolso um troco que era da me, ao meio-dia comprei dois sanduches de presunto e queijo, e uma cerveja. E tarde, devido
ao sol to forte, acabei dormindo na praa e s acordei com a sirene dos bombeiros.
Mas eles passaram distncia e eu caminhei e caminhei, com cachorros me
seguindo e sem cachorros, e ento comearam a me doer os joelhos e se
acenderam os faris da rua, e quando estava a ponto de chorar a me me viu da
calada da frente e gritou filhinho e a terminou minha carreira de vagabundo.
CAPITO
Andrs me seguia a todas as partes porque me odiava, e eu percebia esse dio to
intensamente que no podia menos que odi-lo tambm. E um dia no pude mais e
dei a volta, e o enfrentei, e ento ele tambm deu a volta e saiu disparado. E ento
eu comecei a segu-lo e nos odivamos intensamente, mas ele nunca deu a volta
nem me enfrentou.
PEDRO
Vinha todas as tardes biblioteca e se sentava a estudar matemtica. Eu estudava
histria, mas na realidade no estudava nada porque eu ficava olhando ela de canto
de olho e tratando de investigar se ela tambm me olhava de canto de olho, mas
nunca coincidamos nas investigaes, assim que passamos todo um semestreolhando se nos olhvamos. At que uma tarde Aurora...
CAPITO
Pseudnima Beatriz...
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Ainda que o CAPITO o tenha dito mecanicamente, como se assim se rompesse
um encanto.
PEDRO
Est bem, o senhor sabe tudo, capito, mas isso no vai impedir que eu esteja
morto. E tambm sei algo mais. Por exemplo, que vocs sabem que ela no sabe,
mas imaginam que eu sei.
CAPITO
Igual podemos trazer-la.
PEDRO
Mais uma razo para estar morto. Quanto antes melhor. Os mortos no so
chantageveis.
CAPITO (depois de uma pausa grande)
Por que ser que me cais bem apesar das besteiras que dizes?
PEDRO
Ser que tu gostas das besteiras?
CAPITO
No, no isso. O que passa que o senhor... (Se interrompe, surpreendido, d
uns passos no cmodo.) Senhor? E agora por que, assim de repente, deixei de te
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chamar de tu? (Pela primeira vez PEDRO sorri.) No, no ria. Senti logo que devia
trat-lo de senhor. Nunca me havia passado isso.
PEDRO (sempre sorrindo)
No te preocupes. Em compensao, eu vou te tratar por tu.
CAPITO (concorda com a cabea)
Est bem. Parece-me justo.
PEDRO (Entusiasmado)
Partimos?
CAPITO
Claro.
PEDRO
Comece.
CAPITO
No, comece o senhor.
PEDRO
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E eu j te disse que estou morto? Ah, sim, te disse quando ainda no te tratavas por
tu. Bem, mas antes de bater as botas, quero desentranhar algo que para mim um
mistrio.
CAPITO
Ah. E eu que tenho a ver?
PEDRO
Tens que ver, como no. Quero desentranhar o mistrio de como um homem pode
se no um louco, se no um monstro, converter-se em torturador. (Pausa)
Perceba que estou morto, ou seja, que no vou contar a ningum. s para mim.
CAPITO (falando lentamente)
Eu no sou isso.
PEDRO
Ah no?
CAPITO
J expliquei.
PEDRO
Mas pra mim pouco importa a tua explicao. Tu sabes o que s. (Pausa.) Me conta
como aconteceu isso. Trauma infantil? Convico profunda? Alienao passageira?
Preparao em Fort Gulick?
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CAPITO (encolhendo os ombros)
Bom, sou anticomunista.
PEDRO
Sim, eu imagino. Mas no serve como explicao. No mundo h milhes de
anticomunistas que no so torturadores. O Papa, por exemplo.
CAPITO
Nem todos se realizam. (Ri como se o dito fosse piada).
PEDRO
De acordo, nem todos se realizam. Mas tu, por que te realizastes?
CAPITO
uma histria longa e lenta. Nenhum trauma infantil. Nem todo o mal acontece na
vida devido a traumas de infncia. Mais uma pequena mudana depois de outra
pequena mudana. Nenhuma convico profunda. Mais uma pequena tentao
depois de outra pequena tentao. Econmicas ou ideologicas, pouco importa. E
tudo de pouco em pouco. certo que o ltimo impulso me deu em Fort Gulick. Alime ensinaram, com breves e suportveis torturinhas que sofri em carne prpria,
onde residem os pontos sensiveis do corpo humano. Mas antes me ensinaram a
torturar cachorros e gatos. Antes, antes, sempre tem um antes. algo paulatino.
No creia que de repente, como por mgica, algum se converte de bom moo em
monstro insensvel. Eu no sou um monstro insensvel, no o sou ainda, mas, em
troca, j no me recordo de quando era bom moo. (Pausa.) E por que lhe conto
todas essas coisas? Por que fao do senhor meu confidente?
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PEDRO
Sempre tarde quando a sorte ruim.
CAPITO
As primeiras torturas so horrveis, quase sempre vomitava. Mas na madrugada que
voc deixa de vomitar, a sim est perdido. Porque quatro ou cinco madrugadas
depois comea a desfrutar. O senhor no vai acreditar...
PEDRO
Eu acredito em tudo, no te preocupes.
CAPITO
No, o senhor no vai acreditar, mas uma noite em que estvamos torturando umagarota, no muito linda, torturando-a, se d conta?
PEDRO
Claro que me dou conta. E ela gritava enlouquecida e se agitava e se agitava... (Se
detem).
PEDRO
E o que houve?
CAPITO
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No vai me acreditar, mas logo me dei conta que eu tive uma ereo. Nada menos
que uma ereo, nessas circunstncias. No lhe parece horrvel?
PEDRO
Sim, me parece.
CAPITO
E o pior foi que no dia seguinte, ao me deitar com minha mulher, no podia... Ecomecei a ficar nervoso... E no conseguia...
PEDRO
Mas no fim conseguistes, verdade?
CAPITO
Sim, como sabe?
PEDRO
Sempre se consegue.
CAPITO
Mas eu s consegui quando coloquei toda minha fora evocativa na garota da
vspera, que no era to linda. No espantoso? S consegui funcionar com minha
mulher quando me lembrei da garota que se retorcia porque a torturvamos. Como
se chama isso? Deve ter uma denominao cientfica.
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PEDRO
O nome o de menos.
CAPITO
por isso que no posso voltar atrs, por isso que no posso ceder. por isso
que tenho que fazer que fale. J andei muito trecho por esse caminho. Compreende
agora? Compreende por que vai ter que falar?
PEDRO
Compreendo que tu queres que eu compreenda.
CAPITO
Por isso tive que trat-lo de senhor. Porque se seguia tratando por tu, no ia poder.
PEDRO
Queres que te diga uma coisa? De nenhuma maneira vais poder, capito. Nem me
tratando de senhor, nem de tu, nem de vs, nem de sua senhoria. Vs? Essa a
vantagem que tem o no. Sempre no e nada mais que no. Ouvistes bem,
capito? No! Ouviu capito? No! Ouviu-me, capito? No!
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PARTE 4
O mesmo cenrio.
Sobre o cho est Pedro, ou pelo menos o corpo de Pedro, imvel, com capuz. Em
um instante comea a ouvir gemidos muito fracos. Entra o Capito, sem palet e
sem gravata, suado e despenteado.
Capito
Ah, te trouxeram antes do tempo (toca o corpo com um p) Pedro. (O corpo no d
sinal de vida). Vamos, Pedro, temos que trabalhar. (Vai at o lavabo, molha a toalha,
espreme um pouco, se aproxima do corpo estendido, se inclina sobre ele, tira ocapuz, e fica evidentemente impressionado ante o estado calamitoso do rosto de
Pedro. Se sobrepe, sem demora, e comea a limpar-lhe as feridas da cara com a
toalha um pouco mida. Lentamente, Pedro comea a se mover). Pedro.
Pedro
Ah? (Abre um olho, mas parece no reconhecer o Capito).
Capito
O que acontece? Se sente melhor?
Pedro
Ah?
Capito
Pedro. Reconhece-me?
Pedro (balbuciando)
Infelizmente sim.
O Capito ajuda Pedro a sentar-se na cadeira, mas o preso no consegue se
sustentar. Dessa vez o haviam destrudo. O Capito tira seu cinto e com ele prende
Pedro ao encosto da cadeira. Aos poucos Pedro vai se reanimando, masvisivelmente est acabado. De todos os modos, sempre haver uma contradio
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entre a relativa vitalidade que mostra em seu rosto e o aspecto exausto de seu
fsico.
Pedro
, Capito?
Capito
Claro. Como te deram dessa vez! Arrebentaram-te, Pedro, que barbaridade!
Pedro
Menos mal se j estivesse morto.
Capito
No te parece que chegou o momento de amolecer? J se portou como um heri.
Quem vai ser to desumano para reprov-lo que fale agora?
Pedro (no responde, depois de um silencio).
Capito, Capito.
Capito
Que?
Pedro
O senhor nunca fala sozinho?
Capito
Pode ser. Algumas vezes.
Pedro
Eu sim falo sozinho.
Capito
E porque isso?
Pedro
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Falo sozinho porque faz trs meses que estou incomunicvel.
Capito
Como? Voc conversa comigo.
Pedro
Isso no conversar.
Capito
E o que ?
Pedro
Merda, isso . (pausa) Converso sozinho porque tenho medo de esquecer-me de
como se fala.
Capito
Mas fala comigo.
Pedro.
No me refiro a falar com o inimigo. Refiro-me a falar com um companheiro, com um
irmo.
Capito.
Ah.
Pedro
Capito, capito.
Capito
Que acontece agora?
Pedro
No se sente as vezes que flutua no ar?
Capito
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Francamente, no.
Pedro
Claro, no est morto.
Capito
E voc tambm no, mesmo que esteja fazendo mritos notveis para est-lo.
Pedro
Pois eu s vezes flutuo. E lindo flutuar. Ento, vou at a costa.
Capito
No vai a lugar nenhum. Nem a costa nem a parte alguma. Est enterrado aqui.
Pedro.
isso. isso. Enterrado, claro, por que estou morto. Mas quando flutuo, vou
costa. claro que no vou todos os dias. Tem vezes que no tenho vontade de ir.
Ontem tive vontade, e fui. Faz anos, quando ia costa, no flutuando, mas simcaminhando, sempre via casais de namorados, mas agora j no esto l. Agora
esto lutando contra vocs. Agora esto presos, escondidos, ou no exlio (larga
pausa). Como se chama sua esposa, Capito?
Capito. (entre os dentes)
Do que te importa?
Pedro
V? Dei-te a oportunidade de dizer espontaneamente. Mas eu sei que se chama
Ins.
Capito (surpreendido)
De onde voc tirou isso?
Pedro
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J lhe disse que eu sei mais de voc que voc de mim. Ins. Mas no se preocupe.
Tambm sei que no tem apelidos. Salvo que a chama Beba. Mas no um nome
clandestino. Que sorte, verdade? Hoje em dia no bom ter um nome clandestino.
Capito
Aonde quer chegar?
Pedro
Na minha morte, capito, na minha morte.
Capito
O que ganha em no falar? Que o arrebentem?
Pedro
Ou que me deixem de arrebentar.
Capito
No se engane. No vo deixar.
Pedro.
Se me matam, me deixam. E eu morro.
Capito
Mas ruim morrer assim.
Pedro.
Nem tanto, se um ajuda, se um colabora.
Capito (Esperanoso).
Est disposto a colaborar?
Pedro (pronunciando lentamente).
Estou disposto a ajudar a me matar. (Pausa)
Tambm estou disposto a ajudar que Ins te queira.
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Capito
No se preocupe com isso. Ela me quer.
Pedro
Sim, at hoje. Porque no sabe exatamente em que consiste seu trabalho.
Capito
Talvez o imagine.
Pedro
No, no o imagina. Se o imaginasse, j havia te deixado. Ela no m.
Capito.
No m.
Pedro
E tambm quero ajudar-lhe que teus filhos (o casalsinho) no te odeiem.
Capito
Meus filhos no me odeiam.
Pedro
Ainda no, claro. Mas j te odiaram. Por acaso no vo escola?
Capito
Somente o menino.
Pedro
Mas a menina ir mais a frente. E seus coleguinhas informaro a um e a outro sobre
quem so. Na primeira desavena que se arme, j o sabero. lgico. E a partir
dessa revelao, comearam a odi-lo. E nunca o perdoaro. Nunca os recuperar.
Nunca saber se... (No pode seguir falando. Desmaia).
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No comeo o Capito no se aproxima. O olha sem encara-lo. Logo vai at o lavabo,
enche um vaso com gua, fica de frente a Pedro e lhe joga gua na cara. Aos
poucos Pedro recupera os sentidos.
Capito
No fantasie. No morreu ainda. Seguimos frente a frente.
Pedro (recuperando-se)
Ah, sim, falando de Ins e do casalsinho.
Capito
Basta disso!
Pedro
Capito, porque no me mata?
Capito
Voc est louco! E quer me enlouquecer!
Pedro
Por que no me mata capito? Ser em defesa prpria, te prometo. Alm disso,
queria fugir. A lei da fuga lembra-se? Coragem, capito, tens a oportunidade de
fazer a boa ao do dia.
Capito
Que eloquente est hoje.
Pedro
Cansei-me de tanto silncio. Alm do mais, o interlocutor ideal.
Capito
Eu?
Pedro
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Sim, por que tens peso na conscincia. muito estimulante saber que o inimigo tem
peso na conscincia. Por que tudo isso que disse, de no ter nascido carrasco, tudo
isso no conta nada. Trabalhou de mau h muito tempo, em um passado no to
distante. Conhecemos-te capito. Ou seja, devem fazer os capuzes mais grossos.
Sempre h algum que v algum. E eu, por exemplo, no conheo s o nome de
sua mulher. Tambm sei o seu. E at o seu apelido (pseudnimo).
Capito
Est louco! Eu no tenho apelido (pseudnimo)!
Pedro
Tem sim. S que o seu apelido no um nome, e sim um cargo. Teu apelido um
cargo de capito. E voc coronel. coronel, capito. Das duas uma: ou nos
tratamos de Rmulo e Capito, ou nos tratamos de Coronel e Pedro. O que acha
capito? Ou coronel?
Capito (que retruca o golpe)
Sabe de uma coisa? O senhor mais cruel que eu.
Pedro
Por qu? Por que te aplico o mesmo tratamento? No para tanto. Alm disso, tens,
todavia, o poder, a arma eltrica, a piscina com merda, a planta. Eu no tenho nada.
Exceto minha recusa.
Capito
E te parece pouco?
Pedro
No, no me pouco. Mas com minha recusa...
Capito
Fantica...
Pedro
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7/30/2019 Pedro e o Capito
46/49
Sim, com minha negao fantica, desapareo, deixo-te o campo livre. Melhor dito,
o cemitrio livre.
O Capito est como vencido. Tambm Pedro est terrivelmente cansado.Finalmente, o Capito levanta o olhar. Fala desfiguradamente.
Capito
No, Pedro, o senhor no cruel. Peo-te desculpas. E j que no cruel, vai
compreender. Disse que quer que eu salve o amor de minha mulher e de meus
filhos.
Sem responder ao que o Capito disse, Pedro comea a falar, e o faz semgrande conscincia do que h em sua volta.
Pedro
Nunca falara sozinho, Capito? Agora estou aqui, contigo. Mas tambm vou falar
sozinho. Passo a passo aprender como se fala em tais condies. Anote Capito.
Isto um ensaio de como se fala sozinho. (Pausa). Veja Aurora...
Capito
Alis, Beatriz...
Pedro (como se no escutara o Capito)
Veja Aurora, estou perdido. E sei que voc, esteja onde estiver tambm est
perdida. Mas eu estou morto e voc, ao contrrio, est viva. Aguento tudo, tudo,
menos uma coisa: no ter a sua mo. o que mais sinto saudade: tua mo suave,
grande, teus dedos finos e sensveis. Creio que a nica coisa que me prende
vida. Se antes de partir me dessem um s favor, pediria isso: ter tua mo durante
trs, cinco, oito minutos. Estamos bem, Aurora...
Capito (com a garganta apertada)
Alis, Beatriz...
Pedro
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Voc e eu. Voc e eu sabemos o que significa confiar um no outro. Por isso queria
tua mo: porque seria a nica forma de te dizer que confio em voc, seria a nica
forma de saber que confias em mim. E tambm demorar um pouco pensando em
confianas passadas. Lembra-te daquela noite de maro, faz quatro anos, na praia
perto de teus velhos? Lembra que ficamos duas horas, deitados na areia, sem falar,
olhando a Via Lctea, como quem olha um teto? Recordo que comecei a mover
minha mo sobre a areia perto de voc, sem te olhar, e percebi que sua mo vinha
at mim. E na metade do caminho elas se encontraram. Observe que este a
lembrana que mais me lembro. Tambm teu corpo, tua pele, tambm tua boca.
Como no lembrar isso? Mas aquela noite na praia a imagem que me lembro
mais. Aurora...
Capito (soluando)
Alis, Beatriz...
Pedro
O Andr disse-o h pouco tempo. No o ferira brutalmente com a notcia. Isso marca
qualquer infncia. Explique devagar e desde o princpio. Somente quando estejasegura de que entendeste um captulo, somente ento comece a contar o outro.
Paulatinamente, sem ferir-lo, faa-o compreender que isto no foi um estalo
emocional, nem um palpite, nem uma bronca repentina, e sim uma deciso madura,
um processo. Explica-o bem, com as palavras ternas e exatas que constituem teu
melhor estilo. Diga-o que no tem por que aceitar tudo, mas que tem a obrigao de
compreender. Sei que o deixar agora sem pai como uma agresso que cometo
contra ele, ou por menos assim pode chegar a sentir-se, no sei se hoje, mas caso
algum dia ou em alguma insnia. Confio em teu notvel poder de persuaso para
que o convena de que com minha morte no o agrido, sem que, ao meu modo,
trato de salv-lo. Podia salvar minha vida se contasse, e no contei, mas se
contasse ento sim que ia a destruir-lo. Hoje melhor ainda portou-se contente de
que papai voltara para casa, porm nove ou dez anos depois estaria dando com a
cabea contra a parede. Diga-o, quando possa entend-lo, que eu quero,
enormemente, e que minha nica mensagem que no me traia. Vai diz-lo? Mas,
isso sim, ensaie vrias vezes, assim no chorar quando diz-lo. Sem chorar, pede
fora ao que diz. Est de acordo, verdade? Alguma vez que voc e eu nos falamos
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estas coisas, quando a vitria parecia verossmil e perto. Eu no a verei e uma
lstima. Mas voc e Andr se a virem j uma sorte. Agora me d a mo. Tchau,
Aurora...
Capito (chorando, histrico).
Alis, Beatriz!
Faz-se um grande silncio. Pedro, depois de esforar-se, ficou esgotado. Talvez
tenha perdido novamente os sentidos. Seu corpo se inclinou at ficar encostado;
No cai, somente porque o cinto o prende a cadeira.
O Capito, em sua parte, tambm est desarrumado, mas sua deteriorao tem,evidentemente, outro smbolo e isso deve ser notado. Tem a cabea entre as mos
e por um momento ouvem-se seus gemidos.
Logo, pouco a pouco vai se recompondo, e ainda que Pedro esteja aparentemente
inconsciente, comea a falar com ele.
Capito
Pedro, voc est morto e eu tambm. De mortes distintas, claro. A minha uma
morte de armadilha, de emboscada. Ca numa emboscada e j no possvel voltar.
Estou encurralado. Se eu te dissesse que no posso abandonar isso, voc me diria
que natural porque seria abandonar o conforto, dos bens materiais e etc. E no
assim. Tudo isso o deixaria sem remorsos. Se no o deixo porque tenho medo.
Podem fazer comigo o mesmo que te fazem. E voc certamente me diria: Bem, j
se v, pode aguentar-se. Voc sim pode aguentar, porque tem no que crer, tem no
que se erguer. Eu no. Mas dentro da minha impossibilidade de resgatar-me, resta-me uma soluo intermediria. J sei que Ins e os garotos podem um dia chegar a
odiar-me, se conhecerem com luxo de detalhes do que disse e do que fiz. Porm se
tudo isso que te fao, ainda por cima, sem conseguir nada, como tem sido em teu
caso at agora, no tenho justificativa plausvel. Se voc morre sem dizer um s
dado, para mim a derrota total. Se em troca disser algo, haver tambm algo que
me justifique. Ento minha crueldade no ser gratuita, mesmo que cumpra seu
objetivo. tudo que peo, que te suplico. J no h quatro nomes e sobrenomes,seno um somente. E pode escolher: Gabriel, Rosrio, Madalena ou Fermn. S um
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o que menos signifique para voc; aquele que voc tenha menos afeto, tambm o
que seja menos importante. No sei se me entende: aqui no estou pedindo-lhe uma
informao para salvar o regime, sim um dado para me salvar, ou melhor, para
salvar um pouco de mim. Estou pedindo-te a medocre justificativa da eficcia, para
no ficar perante Ins e os garotos como um sdico intil, e sim como um rastreador
eficaz, como um profissional competente. Do contrrio, perco tudo. (O Capito d
alguns passos at Pedro e cai de joelhos diante dele.) Pedro, temos pouco tempo,
muito pouco tempo. A voc e a mim. Mas voc se vai e eu fico. Pedro, isto um
splica de um homem abatido. Voc no desumano. Voc um homem sensvel.
Voc capaz de gostar das pessoas, de sofrer pelas pessoas, de morrer pelas
pessoas. Pedro, te suplico, diga um nome e um sobrenome, nada mais que umnome e um sobrenome. A isto se reduziu toda a minha existncia. O mesmo
acontecer com seu triunfo.
Pedro se move um pouco. Tenta endireitar-se, mas no pode. Faz mais um esforo
e finalmente se ergue. O Capito apela para um recurso desesperado.
Capito
Se eu pedir a Rmulo. Se eu suplicar para Rmulo. Ajoelho-me diante de Rmulo!
Rmulo vai me dizer um nome e um sobrenome? Vai me dizer apenas isso?
Pedro (com muita aflio)
No... Capito.
Capito
Ento se eu pedir para Pedro, se eu suplicar para Pedro. Ajoelho-me diante dePedro! Apelo no ao nome clandestino, e sim ao homem. De joelhos suplico ao
verdadeiro Pedro.
Pedro (abre bem os olhos, quase agonizante)
No! Coronel!