Pedro de Niemeyer Cesarino - Oniska

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social ONISKA A poética da morte e do mundo entre os Marubo da Amazônia ocidental Pedro de Niemeyer Cesarino Tese de Doutorado Rio de Janeiro 2008

Transcript of Pedro de Niemeyer Cesarino - Oniska

  • Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Museu Nacional

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    ONISKA

    A potica da morte e do mundo

    entre os Marubo da Amaznia ocidental

    Pedro de Niemeyer Cesarino

    Tese de Doutorado

    Rio de Janeiro 2008

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    La vraie vie est absente.

    Nous ne sommes pas au monde.

    (Arthur Rimbaud, Une Saison en Enfer)

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    ONISKA

    A potica da morte e do mundo

    entre os Marubo da Amaznia ocidental

    Pedro de Niemeyer Cesarino

    Tese submetida ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Antropologia

    Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como

    parte dos requisitos necessrios obteno do grau de doutor.

    Aprovada por

    Prof. Dr. Eduardo Batalha Viveiros de Castro Orientador PPGAS/MN/Universidade Federal do Rio de Janeiro Profa. Dra. Bruna Franchetto Co-Orientadora PPGAS/MN/Universidade Federal do Rio de Janeiro Profa. Dra. Aparecida Vilaa PPGAS/MN/Universidade Federal do Rio de Janeiro Profa. Dra Manuela Carneiro da Cunha Departamento de Antropologia/ Universidade de Chicago Prof. Dr. Srgio Medeiros DLLV/ Universidade Federal de Santa Catarina Profa. Dra. Tania Stolze Lima PPGA/Universidade Federal Fluminense

    Rio de Janeiro 2008

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    FICHA CATALOGRFICA Cesarino, Pedro de Niemeyer Oniska: A potica da morte e do mundo entre os Marubo da Amaznia ocidental/ Pedro de Niemeyer Cesarino, Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2008. 469 pp., xii pp. Tese de doutorado Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGAS Museu Nacional. 1. Antropologia Social. 2. Etnologia Indgena. 3. Potica e Traduo. 4. Tese. I. Ttulo

    Rio de Janeiro

    2008

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    RESUMO Esta tese um trabalho de estudo e traduo de exemplares das artes verbais marubo

    (falantes de lngua pano da Amaznia ocidental). A potica marubo se desenvolve em

    torno do emprego especial do paralelismo, do uso de metforas rituais e de um sistema

    de classificao, cujo sentido extrapola os domnios das artes verbais e se articula em

    um amplo sistema de pensamento. O estudo de tal sistema parte de uma etnografia da

    noo de pessoa, das concepes de doena e morte, do xamanismo e da mitologia. Tal

    investigao etnogrfica permite constatar que a reiterao veiculada pelo paralelismo,

    bem como a variao desencadeada pelo sistema de classificao, constituem

    propriamente uma maneira de pensar o mundo e a alteridade. O pensamento subjacente

    potica ritual marubo , portanto, um pensamento sobre a multiplicidade, definidora

    da cosmologia (concebida em diversos estratos celestes e subterrneos) e da pessoa

    (dividida entre o suporte corporal e diversas almas ou duplos). A condio mltipla da

    pessoa determina o regime de enunciao de tal potica xamanstica, cuja compreenso

    essencial para o trabalho de traduo de seus cantos. A traduo acaba aqui por se

    tornar, no apenas uma tarefa de recriao de cantos na escrita, mas tambm um

    problema geral de reflexo etnogrfica. A potica xamanstica marubo desenvolve um

    pensamento e uma atuao sobre o estado geral de desolao, desagregao e doena

    que caracteriza esta poca, cujo sentido perseguido ao longo desta tese.

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    ABSTRACT This thesis is a study and a translation of pieces of Marubo verbal arts (a Panoan-

    speaking people of Western Amazonia). Marubo poetics is grounded in a special use of

    parallelism and ritual metaphors and in a system of classification whose meaning goes

    beyond the domains of verbal arts. The study of marubo poetics departs from an

    ethnography of the conceptions of person, death and diseases, shamanism and

    mythology. The ethnographical investigation proves that both parallel reiteration and

    the variation generated by the classificatory system create a way of conceiving the

    world and difference. Underlying Marubo ritual poetics is, therefore, a system of

    thought about multiplicity, which determines cosmology (conceived as a superposition

    of celestial and underworld layers) and the concept of person (the body and the different

    souls or doubles). The multiple condition of the person establishes the status of

    enunciation of this shamanistic poetics, whose comprehension is essential for the work

    of translating its songs. Therefore, translation is this context is not only a task of

    creative transposition of songs in writing form, but also an ethnographic problem.

    Marubo shamanistic poetics develops a line of thought and of action on the general state

    of desolation, desegregation and illness of the present time, whose meaning is

    investigated throughout this thesis.

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    A Lauro Brasil Panpapa, in memoriam

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    NDICE

    9 Agradecimentos 10 Introduo PARTE I - A Pessoa Mltipla (xamanismo, replicao e parentesco) 24 1. Limites e conexes 53 2. Pessoa, pessoas 94 3. Diplomatas e tradutores (os dois xamanismos)

    PARTE II - A Tarefa do Tradutor (xamanismo e mitologia) 120 4. Rdios e araras (a iniciao dos pajs) 140 5. As palavras dos outros (os cantos iniki e o problema da traduo) 197 6. Cosmos e espritos PARTE III - A Potica da Duplicao (duplicao, classificao e os cantos de cura) 224 7. Yoch e a duplicao 249 8. A potica da duplicao 275 9. A batalha da cura (os cantos shki) PARTE IV - A Era-Morte (escatologia e alteridade: o estilhaamento da pessoa) 302 10. Adoecer, enfeitiar 332 11. Caminhos Possveis (as imagens da escatologia) 357 12. Vei Vai: O Caminho-Morte 395 13. Mitologia da Morte (os cantos saiti e a multiplicidade) 432 Consideraes Finais 445 Bibliografia 465 Anexos

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    Agradecimentos

    Esta tese no existiria sem a generosidade e o saber de Eduardo Viveiros de Castro,

    Bruna Franchetto, Manuela Carneiro da Cunha, Elena Welper, Maria Elisa Ladeira,

    Gilberto Azanha, Ana Maria de Niemeyer, Antonio Carlos Cesarino, Sergio Cohn,

    Lauro Brasil Panpapa, Manuel Sebastio Kanpa, Antonio Brasil Tekpapa, Armando

    Cherpapa Txano, Robson Doles Venpa, Jos Paiva Vanpa, Matheus Txano Marubo,

    Paulino Joaquim Mempa, Benedito Keninawa, Nazar Rosewa e Aldeney Mrio da

    Silva Vpa.

    Agradeo especialmente tambm aos funcionrios do PPGAS e a Aparecida Vilaa,

    Carlos Fausto, Marcio Goldman, Lygia Sigaud, Marlia Fac Soares, Luiz Antnio

    Costa, Anne-Marie Colpron, Marcela Coelho de Souza, Pierre Dlage, Jean-Pierre

    Chaumeil e Bonnie Chaumeil, David Fleck, Pilar Valenzuela, Delvair Montagner, Beto

    Ricardo e Fany, Renato Sztutman, Guilherme Werlang, Ana Luiza Martins Costa,

    Idinilda Obando, Beatriz Matos, Hilton Nascimento (Kiko), Conrado Brixen, Maya Da-

    Rin, Fernando e Mariana Niemeyer, Elisabeth e Luiz Flvio Niemeyer, Josefa Bispo dos

    Santos, Luiz Antonio Bulco, Dr. Guido Levy, Gabriela Cesarino e Tim Kerner, Renato

    Rezende, Luiza Leite, Tatiana Podlubny, Daniel Bueno Guimares, Paula Cesarino

    Costa, Cibele Forjaz e aos amigos e amigas que ajudaram a esfriar a cabea nas horas

    difceis, evo!

    Agradeo a Funai e ao CIVAJA pelo apoio a este trabalho. Agradeo especialmente ao

    Centro de Trabalho Indigenista (C.T.I.), CNPq e FAPERJ (PRONEX/ NuTI), Wenner-

    Gren Foundation e C.N.R.S. (Legs Lelong/ EREA) pelos financiamentos e apoios

    concedidos a essa pesquisa.

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    INTRODUO

    Esta uma investigao sobre o pensamento potico marubo e sua relao com a

    pessoa, o mundo, a morte e o xamanismo. A idia de potico vai ser aqui reconfigurada

    pela etnografia, uma vez que se trata de perguntar pelos termos a partir dos quais o

    pensamento marubo constri uma potica, e em qual tempo e circunstncia o faz, ao

    invs de consider-la como uma noo pressuposta. A potica ritual marubo aqui

    compreendida como um pensamento sobre a diferena, a replicao e a variao. As

    reiteraes, os paralelismos e o sistema de classificao a partir dos quais se estruturam

    cantos e narrativas extrapolam o domnio verbal e repercutem em outras expresses

    estticas (msica, desenho, coreografia), bem como na cosmologia, na pessoa e na

    mitologia. A opo pelo estudo de tal potica certamente um recorte arbitrrio, como

    so alis todos, e no pretende circunscrever um domnio pretensamente substantivo tal

    como a economia ou a poltica: trata-se apenas de uma maneira ou um ngulo

    estratgico pelo qual o pensamento marubo pode ser investigado. Para este, uma certa

    apreenso potica algo central. Tal apreenso pode ser compreendida como uma

    maneira de lidar com e refletir sobre a proliferao indefinida de pessoas, duplos e

    espritos que constituem a tessitura de seu cosmos.

    O problema central desta tese, portanto, um problema de traduo. O

    antroplogo apreende tal potica no exerccio da traduo de cantos. Traduo um

    problema conceitual, alm de uma operao que atravessa e conjuga formas, conceitos e

    matrias de duas lnguas; o pensamento marubo, por sua vez, elabora para si mesmo

    uma apreenso potica e uma reflexo tradutiva. Estes nveis estaro interligados ao

    longo da tese: uma investigao calcada nos detalhes da lngua acaba por gerar uma

    reflexo sobre as condies gerais do problema da traduo, que deve por sua vez se

    debruar sobre os critrios internos do pensamento tradutivo e potico do xamanismo

    marubo. O pensamento xamanstico marubo evidentemente uma inveno minha,

    ainda que etnograficamente fundamentada. No pretende, portanto, oferecer uma

    descrio objetiva (mas sim reflexiva) sobre o que os xams realmente pensam, muito

    menos sobre a maneira como se manifesta entre os Marubo alguma teoria explicativa

    com pretenses universais.

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    Todo esforo de compreenso de uma outra cultura dizia Roy Wagner, deve

    ao menos comear com um ato de inveno (...), tal como aquele pintor chins apcrifo

    que, perseguido por seus credores, pintou um ganso na parede, montou nele e saiu

    voando. (1981: 9). No h objetividade absoluta em matria de traduo, mas

    investigao pelo limite. A reflexo etnogrfica que ser desenvolvida aqui no

    portanto uma explicao, mas um exerccio de pensamento. Para tanto, necessrio

    realizar um trabalho de crtica terminolgica: o leitor vai perceber que um certo

    desconforto ou suspeio diante de termos analticos usuais (tais como alma, corpo,

    esprito, mito, sociedade, sagrado, imaterial, entre outros) atravessa o presente

    estudo, que pretende colocar a etnografia em uma espcie de estado de suspenso, algo

    afim epoch dos cticos. As sugestes ou alternativas que acabo oferecendo ao

    traduzir os termos e noes do pensamento marubo bem como seus cantos que aqui

    esto quase transformados em poemas so portanto provisrias. Partindo da

    conceitualidade marubo, trata-se, enfim, de utilizar a linguagem que nos pertence para

    criar um contraste interno a ela mesma, como dizia Marilyn Strathern (1988: 16).

    Este trabalho pretende retirar as tradues de cantos e narrativas do lugar

    perifrico a que so destinados nas teses de etnologia, seja pelo espao normalmente

    reservado a elas (apndices, exemplificaes, resumos), seja pelo baixo grau de

    elaborao em seu tratamento e de conhecimento das lnguas nativas. Se os Marubo

    cantam e vertiginosamente porque cantos so importantes, porque uma estetizao

    generalizada da vida e do pensamento, centrado nas idias do belo/bom (roaka), um

    trao essencial e distintivo desta e de tantas outras sociedades amerndias, e no um

    fenmeno lateral a ser preterido em funo de outros supostamente mais complexos (cf.,

    Overing 1996: 263)1. Potica tambm informao; os dilemas de terminologia

    conceitual encontrados nos textos de etnologia esto tambm presentes nas solues

    adotadas (ou no) ao se traduzir um canto. Ao articular cantos e narrativas deste modo

    preciso e no de outro; ao perseguir ao limite a perfeio e a adequao de uma dada

    composio em detrimento do mal-feito ou mal-executado (ichnaka), ao reconhecer

    determinado canto como belo/bom ou mesmo exemplar (ko), o que est em jogo? A

    1Veja por exemplo essa passagem de Miller sobre os Mamaind (Nambikwara): Segundo Pereira, aps a morte, a alma segue, conduzida pela alma de um parente morto h mais tempo, para a cabeceira de cima do rio Juruena. L ela bebe a gua da lagoa e entregue a Dawazunusu, que lhe d um nome, um novo corpo e uma nova viso para que ela possa ver a beleza das coisas. Assim, a alma ganha uma alegria sem fim. da alegria e da beleza das coisas que a alma se alimenta na cabeceira de cima e no precisa nem de gua, nem de comida. (2007: 93)

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    partir do estudo da noo de pessoa entre os Marubo, de sua insero e reflexo sobre o

    cosmos, do xamanismo como um trabalho de mediao e transporte, da mitologia como

    um processo reflexivo sobre o tempo e as transformaes, como compreender a

    condio do enunciador e da palavra ritual?

    Uma indagao lanada por Viveiros de Castro sobre o estatuto da palavra

    xamanstica norteia os propsitos desta tese: a figura do xam amerndio

    essencialmente semelhante do mestre da verdade da Grcia pr-poltica, como

    intimam os trabalhos clssicos de Detienne e Vernant2? Tratar-se-ia, l como c, da

    mesma enunciao monolgica, do mesmo logos (ou muthos) monrquico que afirma a

    mesma velha participao primitiva, o mesmo embutimento indicial, mgico, da

    linguagem no Ser? (Viveiros de Castro et alii 2003). O caso marubo, exemplar de

    outras tantas situaes amerndias, mostra que no. Aqui, trata-se de abord-lo em uma

    dimenso extra-filosfica, isto , de no consider-lo como mais uma negatividade

    frente ao pensamento greco-ocidental: A questo do sentido inteiramente diverso que

    assume a enunciao mtica quando samos do mundo pr-filosfico dos Mestres da

    Verdade e seu regime monrquico de enunciao, mundo clssico do helenista, do

    historiador da filosofia, para entrar no mundo extra-filosfico das sociedades contra o

    Estado, mundo do pensamento selvagem, da alteridade antropolgica radical bem,

    essa questo ainda no recebeu um desenvolvimento altura. (Viveiros de Castro

    2007: 111-112). O estudo do xamanismo marubo particularmente estratgico para o

    desenvolvimento de tal questo, no apenas porque todo e qualquer sistema xamanstico

    oferece por si s desafios ao pensamento, mas porque o caso marubo especialmente

    calcado no discurso e na elaborao ritual da linguagem3. O caso Marubo mostra que a

    palavra xamanstica no se preocupa em seqestrar o tempo atravs da autoridade de um

    rei-sacerdote e de seu acesso exclusivo memria e ao desvelamento, mas em produzir

    o prprio tempo e encadear tempos sobrepostos no fluxo dos surgimentos e das

    transformaes. No se trata de influenciar magicamente o mundo, mas de variar o

    2Cornford (1952) vai numa direo similar. 3No por acaso que a ateno aos regimes xamansticos de enunciao conduziu Viveiros de Castro a um trao essencial das cosmologias amerndias, a saber, o perspectivismo. As intuies iniciais para a formulao de tal teoria etnogrfica partiram da anlise dos cantos de guerra e xamansticos Arawet (cf., Viveiros de Castro 1986, 1996; 1996b; 2002: 462). O perspectivmo amerndio, tal como elaborado por Viveiros de Castro (1996, 1998, 2002) e Lima (1996), tambm uma base para o pensamento marubo, como veremos ao longo desta tese.

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    mundo e o sujeito que canta. Menos os dilemas da verticalidade e da disjuno, mais os

    da horizontalidade, da transformao e da traduo4.

    Se esta tese tm por objetivo trazer para o centro de ateno o estudo de cantos e

    narrativas geralmente tratado de modo lateral pela etnologia, ela pretende tambm

    oferecer ao leitor interessado em literatura e traduo um contato mais aprofundado com

    poticas amerndias. O estudo de tais poticas sofre, no apenas de pouca ateno pelo

    americanismo, mas tambm da escassez de referenciais tericos autnomos para se

    desenvolver, uma vez que exige recursos provenientes de outras reas (as teorias da

    traduo, a crtica literria, as teorias da metfora, a retrica e a filosofia) raramente

    mobilizados pela etnologia. Por outro lado e o ponto particularmente verdadeiro para

    o Brasil os estudos literrios praticamente ignoram as complexidades inerentes ao

    estudo de poticas e estticas amerndias, bem como o dilogo com a novssima

    produo etnolgica, e acabam por se reduzir a alguns poucos e obsoletos pressupostos

    romntico-modernistas quando pretendem tratar do assunto (Risrio 1993 faz um bom

    estudo sobre os motivos de tal negligncia sistemtica). Se o foco conceitual e o mtodo

    desta tese so antropolgicos, os dilemas tericos levantados e o tratamento das

    tradues acabam por constituir um campo multidisciplinar, para o qual a relao com a

    literatura de essencial importncia. Como um todo, o trabalho pretende encaminhar as

    condies para uma reflexo crtica ou literria possvel sobre uma potica amaznica, e

    estas condies so necessariamente antropolgicas e originrias de uma

    problematizao conceitual da etnografia. A idia, entretanto, fazer com que o texto

    final seja de interesse para a cultura literria, e no apenas para o crculo especializado

    da etnologia, uma vez que h lacunas a serem preenchidas. Na concluso da tese, tento

    indicar alguns parmetros possveis para tal reflexo.

    Ao ser construda no papel e na experincia de campo, esta tese se deparou aos

    poucos com seu eixo conceitual central: o pensamento potico marubo desenvolve um

    complexo sistema de classificao que visa lidar com os problemas da diferena, da

    replicao e da variao. Tal sistema pretende dar conta da variao posicional

    desencadeada pela personificao generalizada, isto , pela replicao indefinida do

    humano para alm dos humanos viventes, isto , os Marubo. O sistema potico inteiro,

    seja na agncia xamanstica, seja no registro mtico e em suas interpenetraes,

    4Ver Viveiros de Castro (2002).

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    apresenta uma reflexo sobre a variao dos pontos de vista, seus riscos e dilemas. Na

    morfologia social marubo, nomes provenientes de antigos grupos tribais transformaram-

    se em modos de classificar unidades matrilineares5, tais como Povo-Azulo

    (Shanenawavo), Povo-Sol (Varinawavo), Povo-Jaguar (Inonawavo), Povo-Jap

    (Rovonawavo), Povo-Arara (Shawnawavo), e assim por diante. Ora, os nomes que

    antecedem nawavo (povo), acabam por constituir um sistema prprio; o processo de

    classificao ultrapassa o socius, ou transforma talvez o socius no idioma privilegiado

    para pensar a variao indefinida de pessoas e sociedades que constituem o cosmos: no

    estrato celeste Morada do Cu-Nvoa (Ko Na Shavaya), por exemplo, vive o Povo-

    Nvoa (Ko Na Nawavo) e todos os seus elementos-nvoa (antas-nvoa, adornos-

    nvoa, ayahuasca-nvoa, e assim por diante). como se nenhum nome pudesse existir

    sozinho, sem que esteja acompanhado do devido classificador capaz de indicar o quadro

    de referncia a que est vinculado6. O estudo das complexidades geradas a partir deste

    esquema bsico atravessa todos os captulos desta tese, j que o fenmeno da

    classificao se envolve na constituio da pessoa e do parentesco, nas duas

    modalidades de xamanismo (o xamanismo de cura e o de transporte), na cosmologia,

    nas especulaes sobre o destino pstumo, na configurao geral do discurso e do

    pensamento em questo.

    Este estudo realiza-se entretanto em um tempo e um lugar: o pensamento

    propriamente uma reflexo ativa sobre tempo e lugar; no poderia ser considerado em

    abstrato e no foi investigado por mim em condies puras. Donde os temas narrativos

    da morte e da pessoa. Ambos os temas, alm de essenciais na constituio da etnologia

    americanista nas ltimas dcadas, so tambm o ponto essencial de preocupao dos

    Marubo e de seu xamanismo: pensa-se e atua-se intensamente sobre o atual estado

    desolador e sombrio deste mundo; reflete-se sobre esta era-morte (vei shav) em que

    todos vivemos. O regime discursivo e potico do xamanismo marubo, veremos, est

    particularmente voltado para isso. Sua reflexo no apenas um fruto das

    transformaes histricas recentes, mas est em continuidade com o pano de fundo

    desenvolvido pela mitologia, atualizada e alterada pela atividade do xamanismo.

    5O texto de Melatti (1977) sobre a estrutura social Marubo continua sendo a referncia. 6A relao deste sistema de classificao com a lgica categorizante da nominao pano, como diz Erikson (1996: 165), certamente forte e merece ser estudada mais a fundo.

  • 15

    * * *

    Marubo uma inveno, uma denominao atribuda a um conjunto de

    remanescentes de diversos povos falantes de lnguas Pano. No pode ser compreendido

    como uma totalidade. Num determinado momento da passagem dos sculos XIX e

    XX, tais remanescentes se reuniram na regio das cabeceiras dos rios Itu e Curu

    (extremo da Amaznia ocidental brasileira, atualmente situado dentro da Terra Indgena

    Vale do Javari, Amazonas), pressionados pela explorao violenta do caucho e por

    diversos conflitos internos. Os remanescentes ali reunidos eram denominados atravs do

    esquema comum Pano, constitudo pela anteposio de um termo especfico ao termo

    povo: Shane-nawavo, Povo (nawa) Azulo (shane), Chai-Nawavo, Povo-Pssaro,

    Iskonawavo, Povo-Jap, Inonawavo, Povo-Jaguar, Satanawavo, Povo-Lontra, entre

    outros. Dotados, dizem os atuais Marubo, de lnguas e culturas distintas, tais fragmentos

    de sociedades, que at ento estabeleciam intensas relaes belicosas, teriam se

    constitudo em torno de um sistema de aliana e parentesco e passado a adotar a lngua

    de apenas um dos grupos que os constitua e que est agora extinto: os Chainawavo, ou

    Povo-Pssaro. As denominaes de tais grupos tribais acabaram por constituir os

    segmentos de uma mesma sociedade (cf., Melatti 1977) que, segundo outro especialista

    (cf., Ruedas 2001, 2002, 2004), teria sido praticamente criada ou inventada na primeira

    metade do sculo XX atravs da atividade de um importante xam-chefe, Joo Tuxua,

    o aglutinador, junto com seus parentes mais velhos, dos grupos dispersos. Se verdade

    que os povos falantes de lnguas da famlia Pano possuem uma relativa homogeneidade

    cultural e lingstica, bem como uma continuidade territorial, a despeito de sua

    marcantes diferenas internas (cf., Erikson 1998), verdade tambm que os Marubo so

    estratgicos para o estudo de tais sociedades, justamente na medida em que a

    multiplicidade faz-se constitutiva de seu pensamento xamanstico. A adoo

    (involuntria) de uma s lngua, a lngua dos Chainawavo, no levou ao

    desaparecimento de tal multiplicidade no sistema que se formava. Ela se torna

    justamente a marca de um sistema de parentesco e de uma organizao social

    estruturada em torno da variao entre distintos povos ou naes. A multiplicidade

    constitui propriamente um sistema de relao (algo similar foi notado por Calavia

    (2006) para os Yaminawa: menos uma etnia, mais uma relao7) estendido

    7Erikson (1996: 45 e segs) atesta tambm esse ponto, assim como Townsley (1988).

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    configurao da pessoa, classificao da fauna e da flora e ao cosmos. O caso similar

    quele pensado por Deshayes e Keifenheim para os Huni Kuin (Kaxinaw), cujo

    parentesco se integra a um sistema relacional mais vasto (1991: 120, 123).

    Os Marubo situam-se naquele conjunto que Erikson (1998: 242) chamou de

    Pano medianos, entre os quais figuram os Katukina, Poyanawa, Kapanawa, Yawanawa

    e Remo. De fato, a lngua marubo guarda muitas semelhanas com o kapanawa e o

    katukina (mas tambm com o kaxinaw e o shipibo-conibo) e muitas diferenas com o

    matss e matis, povos que, entretanto, so territorialmente bastante prximos dos

    Marubo. Seu xamanismo possui muitas semelhanas com o dos Shipibo-Conibo e dos

    Kaxinaw, ainda que o emprego exclusivo do cip da ayahuasca (Banisteriopsis caapi),

    sem o uso combinado com a folha chacrona (Psychotria viridis), acabe por tornar este

    xamanismo um tanto quanto singular8. Se o sistema xamanstico e as artes verbais

    marubo so comparveis aos dos Shipibo-Conibo, seu ethos geral entretanto diverso,

    uma vez que os Marubo se formam a partir de remanescentes de povos dos interflvios,

    e no da beira de grandes rios, como o Ucayali dos Shipibo. Para isso, basta observar

    que a tecnologia de confeco de canoas no muito desenvolvida, muito embora

    digam se tratar de uma tcnica j conhecida por seus antigos. Sua mitologia se orienta

    toda em funo de uma grande viagem (em deslocamento por terra) no eixo

    jusante/montante, partindo das guas de um grande rio (noa), identificado regio de

    Manaus, at as cabeceiras. Os relatos referentes ao Inca so residuais e perifricos; a

    base da alimentao a caa, e no a pesca. Intrigantemente, os Marubo possuem

    diversas caractersticas em comum com os Matis e os Mayoruna, cujas lnguas so

    porm as mais distintas do marubo dentro do conjunto Pano: habitam ainda nos dias de

    hoje em grandes malocas (shovo), possuam outrora tatuagens faciais com padres

    similares (cf., Erikson 1996: 59), utilizavam-se de zarabatanas nas caadas (hoje em

    desuso), ocupam h tempos um territrio prximo. Ainda assim, os Marubo so

    8O xamanismo Marubo, ver-se-, no corresponde ao xamanismo de ayahuasca descrito com perspiccia por Gow (1994), para uma regio territorialmente prxima ocupada pelos Marubo. O caso deste povo corresponderia aos sistemas xamansticos preexistentes s reconfiguraes populacionais e culturais originrias das primeiras cidades amaznicas e das misses crists. por isso que o sistema marubo pode manter a incorporao de espritos (veremos, entretanto, que possesso no o termo adequado para descrever o processo em questo). Mantm tambm uma complexa cosmologia baseada em eixos verticais (celestes e subterrneos) e horizontais, imune s re-tradues da cosmologia crist que, entretanto, vai aparecer por ali na poca da borracha e, posteriormente, com o estabelecimento da Misso Novas Tribos no alto Itu. Na realidade, o xamanismo dual marubo tambm um hibridismo, no das situaes ayahuasqueiras desenvolvidas nas cidades e posteriormente introduzidas na floresta, mas de remanescentes dos tais sistemas preexistentes referidos pelo autor. como se, ao reunir as populaes Pano dispersas, Joo Tuxua tivesse sistematizado um xamanismo hbrido pano e arcaico.

  • 17

    marcados pela influncia quechua de um modo que os Matis no o so: o contato com

    os caucheiros peruanos Txamikoro ocorrido a partir do final do sculo XIX trouxe o

    hbito de consumo da caiuma fermentada de mandioca (atsa waka), do uso de flautas e

    tambores e, sobretudo, da realizao peridica de uma festa de traos andinos dedicada

    ao estrangeiro, a festa do estrangeiro (nawa saiki). Parecem estar, pois, a meio

    caminho entre dois modos extremos das sociedades Pano: aquele isolacionista, das

    sociedades dos interflvios e da caa, tipificado pelos Matis, e o outro, multicultural e

    tradutivo, tipificado pelos Shipibo-Conibo.

    Com relao ao povos do Acre (especificamente do alto Juru), os Marubo se

    distinguem justamente por terem conservado o uso de malocas (e toda a relao

    simblica que elas implicam), talvez por ocuparem um territrio mais afastado do

    epicentro de explorao da borracha no Vale do Juru, o que permitia uma certa

    proteo com relao s reconfiguraes radicais sofridas por povos como os Kaxinaw,

    Yaminawa e Yawanawa (cf., Melatti 1985b; Almeida & Carneiro da Cunha 2002;

    Calavia 2006). Com relao a estes povos pano e outros tantos, os Marubo mantiveram

    tambm um duplo xamanismo, comparvel ao dos Shipibo-Conibo em sua diviso entre

    os onnya e os merya, e distinto do xamanismo de metades dos Kaxinaw. O duplo

    xamanismo marubo, que vigora at hoje, pode ser uma das razes para a conservao de

    sua complexidade, uma vez que no se reduziu s atividades de cura (tal como entre os

    Sharanawa e os Katukina) e pde manter as tarefas de traduo e transporte

    caractersticas de sistemas complexos tais como os dos povos do alto Rio Negro (Hugh-

    Jones 1994) ou os Bororo (Crocker 1985).

    Esta breve apresentao da sociedade marubo e seus contrastes no tm como

    objetivo balizar o estudo de seu pensamento potico, como se este fosse decorrente das

    particularidades de sua morfologia social, dos movimentos demogrficos ou de razes

    etnohistricas, muito embora ele certamente se inspire em tudo isso e muito mais. A

    esttica xamanstica marubo sua peculiar capacidade de expandir o pensamento da

    classificao e da variao em direo a uma apreenso generalizada da diferena e da

    multiplicidade certamente tm a ver com as redes de circulao dos conhecimentos

    xamnicos que caracterizam a Amaznia ocidental (cf., Chaumeil 1991). Ainda assim,

    pretendo investigar as concepes internas ou as imagens essenciais a partir das quais

    este pensamento se constitui, e sem os quais toda tarefa de traduo de cantos e

    narrativas se torna incompleta.

  • 18

    * * *

    Esta tese no pretende estabelecer verses definitivas dos cantos marubo pois,

    naturalmente, nenhuma traduo definitiva. As tradues que compem esta tese so

    portanto experimentais, a meio caminho entre a transcriao literria e a traduo literal.

    A inventividade potica precisa aqui estar atrelada exposio etnogrfica; a

    transcrio em marubo e as glosas intralineares, essenciais para os presentes propsitos,

    impedem uma transcriao potica radical em portugus. Ainda assim, o leitor

    perceber que minhas verses so bastante poetizadas, uma vez que encaminham as

    possibilidades de perturbao que um texto amerndio realiza no campo do portugus,

    tendo em vista sua cadncia encantatria (Guimares 2002), sua visualidade e

    metaforicidade, sua intensidade paralelstica (Cesarino 2006a), sua sonoridade circular e

    reiterativa (Werlang 2001), sua extrema condensao e preciso imagticas. A idia

    fazer com que essas qualidades possam ser percebidas nos textos traduzidos, e

    percebidas como informao, uma vez que so traos centrais das poticas amerndias.

    Na segunda parte da tese, desenvolvo consideraes mais aprofundadas sobre o

    processo de traduo. Vale porm apresentar algumas consideraes gerais. Nas

    tradues dos cantos, procuro sempre manter a conciso dos versos no original, muito

    embora a mtrica que os caracteriza (entre quatro e cinco slabas mtricas por verso)

    no esteja vertida em minhas solues para o portugus. Elimino tambm as

    vocalizaes que muito frequentemente seguem-se s linhas e que so, evidentemente,

    traos essenciais dos cantos originais. Isso porque no encontrei uma boa soluo para

    recri-las nas tradues, ao menos no presente estgio das verses que apresento,

    sujeitas a novas interpretaes. Procuro colocar o menor nmero possvel de palavras

    em cada verso, suprimo ao mximo artigos, pronomes e preposies, a fim de preservar

    o efeito de conteno que possuem as frmulas poticas marubo e, de um modo geral, o

    carter aglutinante das lnguas da famlia Pano (cf., Loos 1999). Procuro tambm

    sempre manter os verbos na posio final de cada linha, a fim de tentar recompor o

    efeito rtmico da lngua cantada, cuja ordem padro de constituintes SOV (sujeito,

    objeto, verbo). Tomo liberdade de utilizar a pontuao apenas na medida em que ela se

    faz fundamental para eliminar ambigidades no interior das linhas ou para sinalizar

    interrogaes e exclamaes, a fim de no sobrecarregar as tradues. Com a exceo

  • 19

    da traduo do Canto do Caminho-Morte (parte IV), no ofereo aqui solues muito

    criativas de disposio visual das tradues na pgina escrita e sigo por ora um padro

    fixo (a quebra de versos corresponde s unidades rtmicas do original).

    Nas tradues de conversas e depoimentos, procuro manter a diviso das linhas

    segundo os critrios para quebras de sentenas visveis no marubo, tais como no

    emprego de reportativos (iki, -ki, disse que), de conectivos (-vaiki, e ento..., -man,

    portanto, -veise e tambm), entre outras diversas configuraes gramaticais dispostas

    de modo paralelstico e reiterativo. De fato, a disposio da gramtica, da respirao e

    do silncio no discurso narrativo acaba por conferir a este uma qualidade potica e

    dramtica, frequentemente eclipsada quando tal discurso reduzido a verses em prosa

    corrida escrita, como bem mostraram Hymes (1992) e Tedlock (1983) em seus estudos

    clssicos. Do ponto de vista da disposio espacial dos versos nas pginas e da

    indicao das quebras entre cenas e estrofes, minhas solues provisrias no seguem

    todos os detalhes tcnicos oferecidos por estes autores, uma vez que o espao reduzido

    e o material, enorme. Dispor efetivamente o jogo de ritmos e imagens do original nas

    tradues escritas aumentaria esta tese talvez em uma centena de pgina, exigindo

    tambm um trabalho minucioso de transposio que escapa s minhas presentes

    possibilidades.

    Nos cantos, nos depoimentos e na etnografia, tomo a liberdade de criar

    neologismos para traduzir algumas palavras e noes do marubo que no possuem

    equivalente em portugus. O recurso usado pontualmente e no pretende resolver o

    problema de termos analticos mais carregados tais como corpo, alma, duplo,

    esprito, etc. Termos como estes, embora no sejam descartados, estaro sempre sob

    suspeita e viro acompanhados de aspas simples; as aspas duplas, por sua vez,

    referem-se a citaes diretas de outrem. Uma observao de Viveiros de Castro sobre a

    consanginidade, a afinidade e o problema do parentesco no pensamento amerndio

    pode ser transportada para os dilemas de traduo envolvidos nesta tese: A deciso de

    dar o mesmo nome a dois conceitos ou multiplicidades diferentes no se justifica, ento,

    por causa de suas semelhanas, e apesar de suas diferenas, mas o contrrio: a

    homonmia visa ressaltar as diferenas, a despeito das semelhanas. A inteno,

    justamente, fazer parentesco querer dizer outra coisa. (2002: 407) .

    As tradues aqui apresentadas so frutos de um trabalho coletivo com jovens

    professores e velhos cantadores marubo, realizado ao longo dos cerca de quatorze meses

  • 20

    de pesquisa de campo que desenvolvi nas aldeias do alto rio Itu (principalmente nas

    aldeias Paran e Alegria), na Terra Indgena Vale do Javari, entre 2004 e 2007. A

    pesquisa que origina esta tese se situa na confluncia das atividades de etnografia e de

    assessoria ao programa de educao do Centro de Trabalho Indigenista (C.T.I.), atravs

    do qual adquiri o compromisso de produzir alguns exemplares de livros com tradues

    de cantos e narrativas para as escolas das comunidades marubo. O trabalho nas escolas

    oferecia uma porta de entrada privilegiada para o frequentemente interdito

    conhecimento tradicional, fornecendo inmeras e gratificantes oportunidades de

    documentao e interlocuo com professores e cantadores mais velhos que, talvez, no

    poderiam ter sido to constantes, generosas e sistemticas para uma pessoa que se

    apresentasse apenas como pesquisador. a partir disso que muitos dos sentidos velados

    da linguagem ritual puderam ser deslindados, uma vez contornada a desconfiana e

    desconforto iniciais dos velhos cantadores.

    Trabalhei intensamente em revises e interpretaes nas aldeias e em

    aproximadamente dois meses de trabalho final nas cidades de Cruzeiro do Sul e

    Tabatinga, aos quais se somaram as tarefas cotidianas de etnografia, ou seja, a

    participao efetiva no cotidiano e nos rituais do povo anfitrio. De um modo geral, os

    jovens professores com os quais trabalhei no tm acesso aos sentidos velados da lngua

    ritual e sempre necessrio trabalhar lado a lado com (ao menos) um velho cantador.

    Tal mtodo incontornvel, pois os cantos Marubo so altamente metafricos e os

    conflitos de gerao que atualmente comprometem o fluxo de transmisso dos

    conhecimentos tradicionais impem srias limitaes de interpretao aos jovens e

    homens bilnges. Se a base deste trabalho coletiva, o resultado final das tradues

    evidentemente de minha responsabilidade, no tocante anlise lingstica e s decises

    de interpretao, estilo e composio das verses em portugus. Para as informaes e

    descries lingsticas aqui utilizadas, parti dos trabalhos de Raquel Costa (1992, 1998,

    2000) e de Kennel Jr (1978) que, em nveis de complexidade distintos, apresentam

    pesquisas iniciais razoveis sobre a lngua marubo. Completei as lacunas com dados de

    minha prpria pesquisa de campo e com um estudo comparativo sobre outras lnguas da

    famlia Pano, para o qual os trabalhos de Valenzuela (2003, 2000) para o shipibo-

    conibo, Fleck (2003) para o matss, Camargo (diversos) para o kaxinaw e Dlage

    (2006) para o sharanawa foram as referncias principais, entre diversas outras

    provenientes, em sua maioria, da produo dos lingistas missionrios vinculados ao

    S.I.L. (Summer Institute of Linguistics). A ortografia utilizada nesta tese a

  • 21

    estabelecida pelos missionrios entre os Marubo, utilizada tambm pelos professores na

    escrita de sua lngua. Os quadros e legendas encontram-se nos anexos. As identificaes

    provisrias de espcies da fauna e da flora foram feitas a partir de pranchas de manuais

    diversos e esto, portanto, sujeitas a reviso9. Cabe ainda observar que so minhas as

    tradues de todas as citaes de textos alheios que estejam referidos em lngua

    estrangeira na bibliografia.

    Os Marubo j foram estudados por Montagner e Melatti na dcada de 1970 e,

    posteriormente, por Werlang (2001) e Ruedas (2001)10. Voltado para uma direo

    pouco explorada por tais autores, este estudo oferece tambm uma reviso etnogrfica

    do xamanismo e da cosmologia marubo realizada, sobretudo, por Delvair Montagner.

    Muitas das informaes apresentadas por mim confirmam os dados anteriormente

    coletados pela autora e pelos outros pesquisadores. Esta tese se beneficia porm do

    avano significativo que a pesquisa etnogrfica e lingstica sobre os Pano sofreu nos

    ltimos anos, ao qual vale adicionar tambm a extensa produo da etnologia

    americanista recente. As tradues aqui apresentadas no vo acompanhadas de um

    estudo sobre suas implicaes musicais (para o qual no tenho competncia tcnica), o

    que representa evidentemente uma perda. Meu objetivo no entretanto oferecer uma

    descrio exaustiva de todos os aspectos dos cantos saiti, iniki e shki, mas de elaborar

    um exerccio etnogrfico que articule o pensamento potico a um estudo detalhado do

    xamanismo marubo, das noes de pessoa, doena e escatologia. O leitor deve consultar

    o trabalho de Werlang para uma anlise musicolgica dos cantos saiti, complementar

    aos dados apresentados aqui.

    Assumo aqui o risco de trabalhar com uma quantidade ampla de materiais, ao

    invs de me concentrar apenas em um exemplar de um canto ou depoimento narrativo,

    de forma a poder assim monitorar com mais cuidado as possibilidades de traduo e os

    perigos envolvidos no transporte entre as duas lnguas e referenciais conceituais. Tal

    opo, certamente mais segura, levaria porm a um recorte em demasia restrito do

    enorme campo em que avanam o xamanismo, a mitologia e a cosmologia. A fim de

    perseguir o movimento de fundo estabelecido pelo pensamento potico e sua articulao

    com a etnografia, decidi lanar mo da anlise de materiais variados e de um exame

    9Para mamferos, utilizei Emmons (1990); para aves, Frisch (1981); para palmeiras, Lorenzi (2004). 10Elena Welper est atualmente conduzindo tambm uma pesquisa de doutorado sobre a etnohistria e a morfologia social Marubo.

  • 22

    geral de trs das modalidades das artes verbais marubo (os cantos-mito saiti, os cantos

    de cura shki, os cantos xamansticos iniki, mais os depoimentos narrativos). As

    tradues esto, entretanto, selecionadas de acordo com suas afinidades temticas, como

    o leitor perceber. As quatro partes em que se divide a tese se referem, em linhas gerais,

    (I) noo de pessoa, (II) anlise do xamanismo, dos rituais de iniciao, dos cantos

    dos espritos e da cosmologia, (III) ao problema da duplicao e dos cantos de cura e,

    por fim, (IV) morte, doena e escatologia. O primeiro captulo pode parecer

    demasiado denso para uma abertura de trabalhos, mas assim o porque precisamos

    definir de antemo alguns problemas de traduo e terminologia, que se distribuem

    depois ao longo da tese. A diviso dos temas pelas quatro partes no rgida: h

    recorrncias, retomadas e sobreposies. O leitor perceber que os cantos e narrativas

    apresentados podem ser relidos luz dos temas desenvolvidos em captulos distintos

    daqueles em que se encontram, a fim de que se enriqueam pelas idias desenvolvidas

    ao longo da tese.

  • 23

    I

    A PESSOA MLTIPLA

    xamanismo, replicao e parentesco

  • 24

    1.

    A PESSOA MLTIPLA

    Interior, exterior

    O cosmos marubo pode ser descrito como uma mirade infinitista personificada:

    decidiu se constituir de pessoas; tomou-as como matria ou tessitura de sua composio,

    por assim dizer. Pessoas implicam socialidades, deslocamentos, trajetos e posies.

    Cosmos j se torna ento um termo impreciso, pois a questo aqui no a univocidade

    ou totalidade, mas a multiplicidade e multiposicionalidade. No vamos porm jog-lo

    fora: basta lembrar que o cosmos de que trataremos aqui uma configurao posicional,

    uma srie infinita de replicaes personificadas, e no uma redoma perfeita surgida ab

    ovo. H ao menos quatro variantes destas pessoas que o habitam e sobre as quais

    falaremos nas prximas pginas. Variantes ou, como diz Viveiros de Castro (com.

    pessoal), pontos de estabilizao de uma variao contnua da propriedade intensiva

    pessoa ou personitude. Estas poderiam ser distinguidas da seguinte maneira:

    pessoas humanas (os Marubo, que chamarei ocasionalmente de viventes nas pginas a

    seguir), hiper-humanas (os espritos yove), infra-humanas (os espectros yoch) e extra-

    humanas (as pessoas-animais).

    Vamos nos dedicar longamente ao comentrio desta variao, que aqui est

    esquematizada apenas por motivos heursticos e possui diversas limitaes: as pessoas

    extra-humanas (os animais, as plantas), por exemplo, muitas vezes so consideradas

    como espritos yove ou como espectros yochi . Uma pessoa pode ser compreendida como

    um ente ou uma singularidade, mas no como um indivduo: um bicho, assim como

    um humano ou uma rvore, a rigor uma configurao ou composio especfica de

    elementos que o determinam e diferenciam. Animal e humano so entidades

    multifacetadas e devem ser entendidas com cuidado tambm. O que chamamos de

    animal11 compreendido pelo pensamento marubo como uma configurao composta,

    11Os Marubo assim classificam o que compreendemos como animal: yoni peiya (bichos de pena), man yoni (bichos de terra), key yoni (bichos do alto ou das rvores, smios e quatipurus), yaparas (peixes), ronoras (serpentes) e yoni potochtaras (bichos pequenos, isto , insetos, aneldeos, aracndeos e outros). Uma pesquisa sistemtica neste domnio est para ser elaborada. No sei dizer, por exemplo, onde ficam as arraias, os poraqus, as ariranhas, os caramujos e as borboletas, entre diversos outros componentes da fauna. Embora compreenda outros bichos alm dos grandes mamferos terrestres, o termo yoni no possui o mesmo sentido genrico que animal tm em portugus e outras lnguas ocidentais, pois no compreensvel atravs da oposio entre natureza e cultura, humanidade e animalidade. O termo pode ser aplicado para um contraste genrico com os humanos viventes apenas

  • 25

    por um lado, de seu bicho (aw yoni), sua carcaa (aw shak) ou seu corpo (aw

    kaya) e sua carne (aw nami) e, por outro, de sua gente/pessoa (aw yora), isto , o

    seu duplo (aw vak), que o dono (ivo) de seu bicho/carcaa/corpo. O emprego do

    possessivo (aw) portanto essencial: um corpo sempre de um determinado duplo.12

    Com os pssaros (e tambm com alguns animais) ocorre uma disjuno espacial: seus

    duplos/pessoas (cha vak) no esto dentro de suas carcaas (cha shak), mas fora,

    vivendo em suas malocas (a vak shov shokorivi) que, de nosso ponto de vista, se

    apresentam como rvores. De l, ficam a vigiar seus corpos/bichos por intermdio de

    um longo canio de inalar rap, o rewe, um potente instrumento de mediao.

    porque est assim enfocando o lado carcaa da singularidade a que se refere (o bicho/carcaa arara, por exemplo, mas no o seu duplo/pessoa). Por isso, a observao de Viveiros de Castro tambm vlida para o caso Marubo: as evidncias etnogrficas disponveis sugerem que as cosmologias amerndias no utilizam um conceito genrico de animal (no-humano) que funcione como complemento lgico de um conceito de humano (2007: 325). Donde a consequncia fundamental, que o autor explora tambm em outros trabalhos (2002, por exemplo): a natureza no um domnio definido pela animalidade em contraste com a cultura como provncia da humanidade (2007: 326). Descola (1998: 25) atesta o mesmo ponto. Natureza, alis, tambm no possui um termo (e um conceito) equivalente em marubo: kaniaras, as coisas crescidas ou nascidas, seria o termo aproximado, que mais lembra a physis do pensamento grego arcaico do que a noo moderna de natureza. No me ocorreu perguntar aos Marubo se a poderiam estar includos tambm os espritos. Para estudos mais aprofundados sobre sistemas de classificao da fauna e da flora em sociedades prximas aos Marubo, o leitor pode se reportar a Almeida & Carneiro da Cunha (2002), Valenzuela (2000) e Fleck (2000, 2002). 12O xamanismo warao tambm vincula o duplo de determinados animais a seus corpos atravs do emprego sistemtico dos possessivos (cf., Briggs 1994). No caso marubo, tal emprego est relacionado noo de dono ou mestre de animais, vegetais e outros entes comum aos xamanismos pano e outros tantos amerndios (ver por exemplo Gallois 1996 para os jar waypi; ver o trabalho recente de Miller (2007) sobre os Mamaind): ivo, o termo para dono ou mestre em marubo, equivalente a ibo em shipibo-konibo (ver por exemplo Leclerc 2003 ou Garca & Urquizo 2002), ifo em sharanawa (Siskind 1973, Dlage 2006), ibo em kaxinaw (Capistrano de Abreu 1911, Lagrou 1998), ibgo em matis (cf., Erikson 1996: 180 e segs), entre outros exemplos possveis. Nas cosmologias pano e especificamente na marubo, a noo de dono (ivo) inclui a noo pan-amerndia dos donos ou mestres dos animais e se expande em uma lgica recursiva. Os donos dos pssaros, por exemplo, replicam a mesma configurao que caracteriza os donos de maloca (shov ivo) Marubo: ambos so chefes de suas casas, nas quais habitam com suas famlias e seus costumes, e assim ao infinito para grande parte das singularidades existentes. Luiz Costa descreveu recentemente a noo de corpo/dono para os Kanamari atravs da recursividade, observando tambm o papel fundamental do emprego do possessivo: A palavra warah precisa ser prefixada por um sujeito, de modo que algum ou algo sempre ser chefe/corpo/dono de/para algo, de algum ou de algum povo (2007: 8). A relao suposta por corpo/dono/chefe acaba ento por se reproduzir em nveis distintos, tais como a relao entre o leito principal de um rio e seus tributrios ou ainda, mais fundamentalmente, da seguinte maneira: O corpo/dono/chefe estabiliza aquilo que potencialmente fluido, expressado em seu prefixo; coloca-se como o um com relao quilo que (potencialmente) mltiplo. Nas pessoas viventes, o corpo (-warah) feito por um longo processo de estabilizao da inconstante matria-alma da qual a maior parte dos seres vivos deriva. Xams se tornam o chefe/corpo/dono de seus espritos familiares, chamados dyohko, que, sem eles, perambulam na floresta. Mulheres so corpo/chefe/dono de seus xerimbabos e, em alguns casos, de suas crianas. Aldeias, um grupo de pessoas, configuram-se como unidade e grupo de parentesco atravs de um chefe, que estabiliza aqueles que (...), de outra maneira, no seriam capazes de viver juntos. (ibidem) O corpo da pessoa marubo no exatamente o dono de seus duplos/alma (os duplos/alma que para si mesmos so donos dissso que vem como uma maloca, isto , o nosso corpo), muito embora estabilize a disperso possvel dos aspectos que compem a pessoa, tal como na doena ou na morte.

  • 26

    Ao indicar um pssaro e dizer, como comum, que ele um Shanenawavo,

    isto um membro do Povo Azulo, ou simplesmente que yora (gente), um xam

    marubo no est se referindo a este animal visvel diante de nossos olhos, mas sua

    coletividade personificada que vive em outra parte. Os conflitos derivados da relao

    entre pessoas viventes (kayakavi, assim como um corpo13, a expresso utilizada

    para se referir s pessoas humanas ou viventes) e animais derivam disso. Ao agredir um

    determinado bicho, a pessoa no se d conta de sua gente, que vive em outra parte e, de

    l, vigia atentamente seu bicho. Prontas a se vingar (kopa) dos viventes pelas ofensas

    causadas s suas carcaas, as gentes/duplos dos diversos animais acabam por causar

    doenas.14

    Os espritos yove, por sua vez, no tm a mesma composio que os bichos e os

    viventes. Surgidos (antes e a todo instante) de um princpio transformacional que se

    espalha por diversos suportes, a seiva/nctar nko, mas tambm de folhas e flores cadas

    no cho, da saliva (kemo) derramada por um paj, de restos de rap (rome poto), de

    ayahuasca e de outras substncias, os infinitos e diversos espritos no possuem

    propriamente um envlucro para que se esvaziem por dentro ou para que se projetem

    para fora. Parecem ser algo como um puro duplo (a vakse), como me explicaram. E

    a pessoa vivente? No vamos enfoc-la agora como se passssemos ao prximo

    elemento de uma tipologia e nem, alis, vamos esgotar agora nestas primeiras pginas a

    composio e compreenso de bichos, humanos, espritos e outras singularidades,

    uma vez que o assunto se encontra intrinsecamente relacionado a diversos outros

    tpicos que sero expostos detalhadamente mais adiante.

    H muitas e complexas aproximaes entre bichos, gentes e espritos, ainda que

    os termos gerais que os nomeiam (yove, yoni, yora) no sejam sempre permutveis

    entre si. No se diz de um marubo/vivente que um bicho (yoni), a no ser talvez de

    modo pejorativo, muito embora, em certos contextos, possa se dizer que um esprito

    yove (o que poderia ser dito tambm, alis, de um animal). Pajs (ou xams) so

    chamados de yove vake, filho de esprito, ou de yove romeya, paj-esprito, quando

    so mais poderosos. Ademais, os trs elementos em considerao partilham de um 13kaya = corpo; kavi = assim como. 14Em sua tese de doutorado, Montagner Melatti diz que o esprito do animal encontra-se dentro deste, da mesma maneira como nos seres humanos (1985: 133), numa direo distinta do que me disseram sobre os pssaros. A autora nota ainda que no h distino entre diversas almas (do lado esquerdo e do lado direito) para os animais, ainda que tenha observado que um dos espritos do animal [seja] dado por seus genitores (idem: 134) imagino que se refira aos seus genitores animais. Montagner observa ainda que os espritos dos animais domsticos vo encontrar seus donos no destino pstumo, localizado na Morada do Cu-Descamar (cf., ibidem).

  • 27

    mesmo predicado: so todos gente (yora). As pessoas ou gentes (yora) da poca do

    surgimento (wena yoraras), os antigos cujos feitos so relatados nos cantos-mito saiti,

    possuam afinidades mais prximas com os espritos (ou hiper-pessoas) yove: tinham o

    ouvido suficientemente aguado para escutar a fala da terra, da gua e do cu;

    mantinham condutas socio-alimentcias que permitiam tal estado e, sobretudo, no

    pareciam estar submetidos replicao espacial que caracteriza os viventes atuais,

    como veremos. Deslocavam-se enquanto tais (yorase nirvi) pelo cosmos; no saam de

    seus corpos/carcaa para tal.

    A despeito dos diversos aspectos/duplos que compem a pessoa marubo, cabe

    antes ressaltar uma de suas caractersticas mais marcantes: seu corpo, ainda que possa

    ser chamado pela mesma expresso que a aplicada aos animais, sua carcaa (aw

    shak, mas no seu bicho, aw yoni), conjuga ou antes replica o espao externo na

    dimenso interna. Ao menos assim para os viventes que, ao longo dos anos,

    estabelecem maior contato com o mundo xamnico (na falta de uma expresso

    melhor...), isto , com a complexa teia tradutiva composta pelos diversos espritos,

    duplos e mortos.

    nok shak yove-kea a-ro shovo 1pGEN oco/ventre esprito-CMPL 3DEM-TP maloca Nosso oco espiritizado uma maloca. 15

    Esta uma opo para traduzir o que me disseram certa vez sobre o caso de

    algum que participava com afinco das pajelanas, alimentando-se de ayahuasca e rap,

    dialogando frequentemente com as gentes outras (os duplos dos mortos e os espritos

    yovevo). A maloca externa dos viventes vai ento ser replicada (e fielmente) para

    dentro.

    Nok shak, nosso oco, uma expresso to complexa quando a sua correlata, nok chin (nosso peito ou nosso pensamento): precedida do pronome de primeira

    pessoa do plural no genitivo (nok), o termo shak designa o dentro/oco fsico e a

    regio do ventre (posto o termo para a barriga do lado de fora, veyo) frequentemente

    atacada por dores (shak iska) e doenas. Ainda assim, shak estende-se alm do corpo

    humano para designar, de um modo geral, o interior. Txaitivo shakni, por exemplo, a

    15O neologismo espiritizar quer se diferenciar de espiritualizar: como veremos, trata-se aqui de um processo de transformao ou de alterao da pessoa, e no de uma elevao (do material em direo ao espiritual, como costumam conceber as msticas ocidentais e as tores ontolgicas dos neo-xamanismos urbanos).

  • 28

    metfora ritual ou especial para designar o terreiro interno da maloca (kaya naki, shovo)

    e poderia ser traduzida literalmente como dentro do grande gavio; pachekiti shak

    outra expresso da linguagem ritual para ouvido, ptxo kini na lngua ordinria, isto ,

    buraco/oco da orelha, e assim por diante.

    O sentido amplo do termo encontra paralelo em outras lnguas pano, tal como no

    caso do kaxinaw e do sharanawa. Kaxinaw: A sucury o engoliu, da sucury bucho da

    banda de dentro (...) / caxinau do bucho da banda de dentro sahiu, caxinau amolleceu,

    de vagar gritando est (dunw xa, dun xki mran, (...) huni ku xki mrn ka

    kaw...) (Capistrano de Abreu 1941: 348, linhas 4000 e 4001). Em sua anlise dos cantos

    de ayahuasca rabi dos Sharanawa, Dlage faz uma observao precisa: O cantor

    descreve-se a si mesmo no processo de ingerir a ayahuasca. Trata-se ento, em um

    primeiro momento, de uma descrio bastante ordinria: o cip ayahuasca, as folhas da

    chacrona assim como suas flores (das quais so uma metonmia) so incorporadas ao

    cantador. Estas descries so sempre introduzidas por uma frmula do tipo uhuun shaqui

    bura-, no interior de meu ventre. O termo shaqui significa de fato um pouco mais e um

    pouco menos que ventre. Poderamos traduzi-lo por aquilo que h no interior do

    ventre, sem que se refira a um rgo em particular. Fala-se da mesma maneira de shaqui

    (por extenso?) para se referir ao buraco de uma rvore. Trata-se ento exatamente de um

    interior que se ope ao exterior da pele e dos desenhos corporais. (Dlage 2006: 265)

    Os versos do canto sharanawa analisado por Dlage trazem uma estrutura similar

    encontrada no exemplo kaxinaw citado acima: uhuun shaqui burari, no interior de meu

    ventre (idem: 266), comparvel ao dun xki mran (dentro da barriga da sucuri).

    verdade que, nestes dois casos, dentro o que traduz bura (sharanawa) e

    mra (kaxinawa), termo presente tambm em marubo (mera), mas com outro sentido

    (aparecer, encontrar, surgir). De toda forma, como aponta com preciso Dlage, shak

    extrapola a referncia fisiolgica para expressar algo como uma complexa dimenso

    interna. No por acaso que, durante o ritual de consumo da ayahuasca, os mestres (da

    ayahuasca) so ditos estarem dentro do cantador: no interior de meu ventre/ com seus

    mestres/ eles preencheram meu ventre (ua shaki badushon/ da ifofoyamu/ ua shaqui

    badushon) (idem: 268). Se parece possvel considerar tal expresso como uma frmula

    potica pan-pano; se possvel tambm considerar a noo de shak como tal dimenso

    interna de especial rendimento para o xamanismo, a recursividade que a noo de shak

    (oco) adquire no caso marubo uma particularidade sua. No caso sharanawa, no ocorre a

    mesma replicao do espao externo no espao interno (como entre os Marubo), muito

    embora o ventre/oco (shaqui) seja o ambiente onde, por ocasio do ritual de ingesto de

  • 29

    ayahuasca, a referncia mtica (a morada dos mestres da ayahuasca) pode coincidir com

    a pessoa do cantador: (...) a morada dos mestres (mana, nai) torna-se o ventre do

    cantador (shaqui). A cosmografia, condicionando a ontologia das entidades observveis,

    encontra-se assimilada ao interior do corpo do cantador. no interior do corpo do

    cantador que se situam os mestres. (idem: 271). justamente isso, observa na sequncia

    Dlage, que configura o estatuto de enunciao dos cantos rabi: para os Sharanawa

    como para os Marubo, mas com suas devidas idiossincrasias, o enunciador um outro. O

    xamanismo marubo, embora seja um xamanismo de ayahuasca, se diferencia de outros

    casos pano tais como o sharanawa, kaxinaw, shipibo-conibo e yaminawa pois seu

    problema no , a rigor, o da transformao, da sobreposio da pessoa do xam ao

    esprito da sucuri/ayahuasca, e sim da multiplicao fractal da pessoa na mirade

    personificada. O oco/maloca , justamente, o ponto de confluncia disso, como

    veremos. Uma investigao aprofundada de outros exemplos pano (e amerndios, alis)

    certamente traria mais dados sobre a noo de interior/ventre,

    Nok chin, nosso peitopensar ou, na primeira pessoa, chin-nam (1sGEN peitopensar-LOC, em meu peitopensar), designa por sua vez uma dimenso localizada

    no peito que no porm o prprio peito (shotxi) ou o corao (oti) fsicos, mas algo

    como um espaopensamento, dentro de meu peitopensar. Pensar , a rigor, uma

    traduo insatisfatria para o amplo espectro da noo de chin, traduzvel tambm

    como vida ou princpio vital e estranha maneira ocidental de conceber a relao

    entre mente e mundo. A noo envolve uma referncia espacial, na qual reside a

    coletividade de duplos habitantes da pessoa marubo, responsveis, em larga medida,

    pela performance intelectual da pessoa que os abriga. Por vezes, chin princpio vital

    ser indicado pela pulsao das artrias nos antebraos; noutras, desenhado nestes

    mesmos locais como uma pessoa, portando suas lanas e cocares de pena. Ora, os

    duplos tm para si o corpo como uma maloca, assim como, para ns, so casas ou

    malocas estes lugares nos quais costumamos habitar. H estgios de expanso ou

    desvelamento deste interior replicado ou, parece-me, de familiarizao da pessoa com a

    sua maloca e habitantes internos.

    Kaxinaw: pensar, lembrar-se (Capistrano de Abreu 1911: 618); pensar,

    xinan neikiki (xinan ne-), desmaiar, desorientar-se por ser muito velho ou estar

    inconsciente, perder o conhecimento, isin tenei xinan nemisbuki, mavakatsida, quando

    um doente est muito mal, perde o conhecimento e morre, xinan tseikiki (xinan tese-),

  • 30

    morrer (lit. no pensar mais, ma xinan teseaki, nun imiski juni mavakenan, j no

    pensa mais, dizemos quando uma pessoa morre (Montag 1981: 405-406). Kapanawa:

    shinan, pensamento (Loos 2003: 326). Amahuaca: pensar; vir visitar (Hyde 1980:77-

    78). Mayoruna/matses: n 1. alma de um xam. 2. habilidade de caa, pontaria, fora e

    valor que pode ser passado de um homem para o outro soprando tabaco ou aplicando

    veneno de sapo no brao ou no peito (Fleck 2005: 104). Sharanawa: shina: verbo modal

    que caracteriza a apreenso cognitiva do cantador nos cantos rabi ahuun rabi shinahuui/

    shina ohui idiquin, eu vim pensar os cantos rabi/ eu pensei as suas palavras (Dlage

    2006: 223). A anlise mais detalhada sobre o termo , novamente, a de Dlage para o

    sharanawa, que oferece os seguintes sentidos: lembrar-se, imaginar, perder ou

    esquecer (shina-funo); lembrar-se exatamente ou visualizar (shina-pai); shina-butsa,

    uma espcie de melancolia relacionada a lembranas agradveis de uma poca que no

    voltar mais, ichapa shina- pensar com tristeza numa pessoa ausente (idem: 224). A

    observao conclusiva do autor pertinente: Em todos os casos, esta raiz verbal evoca a

    apreenso de uma realidade cujo status ontolgico sensivelmente distinto daquele da

    percepo ordinria. Sem pretender esquematizar demais a sua significao, parece-nos

    que este verbo particularmente bom para descrever o tipo especfico de apreenso

    exigido pela categoria de yoshi a apreenso de uma imagem relativamente paradoxal

    que no suscetvel de ser partilhada de maneira direta pela ostenso. (ibidem). O autor

    observa ainda em outra passagem que xam em sharanawa se diz tambm shinaya, com

    o shina (idem: 224 n), ou ainda que consome-se o corao das sucuris, porque ele a

    sede do shina da anaconda, isto , de suas capacidades cognitivas (idem 320-321). Os

    sentidos de shina, xinan, chin so razoavelmente constantes no conjunto pano e valem

    tambm para o marubo, cujos pajs-rezadores tambm podem ser chamados de chinya,

    de maneira semelhante ao caso sharanawa.

    No caso marubo, os sentidos so diversos: um substantivo referente ao

    princpio vital (chin, passvel de ser transmitido e transportado e, nesse sentido, talvez

    prximo do sho matis (cf., Erikson 1996: 200 e segs)), provavelmente homnimo de um

    dos duplos ou aspectos internos da pessoa (chin nat); um componente dos termos que

    se referem a inspirao (chinvia) e expirao (chinvipa); um verbo que caracteriza um

    processo de cognio e de visualizao (o que traduzimos como pensar, chin, e suas

    derivaes tais como esquecer, chin venoa, preocupar-se, chin tsaka, lamentar-se,

    chin ronaka, entre outros) e outro que designa deslocamento espacial (manari chinini,

    indo a montante, por exemplo). Pensamento certo, mas um pensamento referente

    distncia ou ausncia, como bem observa Dlage para o sharanawa, e um pensamento

    visual ou uma imaginao, cuja sede, alis, o peito e no o crebro este mesmo peito

    que abriga duplos (homnimos?), chin, responsveis pela inteligncia de uma pessoa

  • 31

    (isto , pelo seu pensamento, chin...) e passveis de se destacarem do corpo/casa,

    causando a morte da pessoa. Os pajs, yora chinya, gente pensadora, so os

    especialistas neste pensamento visual dos deslocamentos e distncias, caracterstico da

    fala pensada ou chin vana que constitui os cantos de cura. Deslocam-se

    intencionalmente atravs do cosmos, alis, via suas almas ou duplos chin nat, que

    vivem dentro da maloca/corpo.

    A recursividade espacial que caracteriza a noo de chin torna-se visvel no

    trecho abaixo, onde o jovem professor Robson Venpa, de quem falaremos bastante

    nesta tese, relata seu processo de transformao em paj romeya (um dos dois tipos de

    xams ou pajs entre os Marubo):

    De incio narrando algo que teria acontecido a seu vak (alma/duplo), o jovem

    romeya Venpa disse que, certa feita, chegou numa maloca vazia. Havia macaxeira cozida

    dentro dos paneiros, pendurados nas traves das sees familiares, e pessoa alguma. Ele

    escutou cantos saiki vindos de longe. Do fundo do roado, viu gente chegando. Eram os

    yove, que de pronto disseram: o que voc est fazendo aqui?. No sei, eu cheguei

    aqui, ele respondeu. No, voc vai morrer, no venha para c!. No, eu estou bem,

    no vou morrer, voc no est vendo?, disse Venpa. Voc vai morrer. Ns no

    estamos te enganando no, venha ver!, falaram os espritos. Levaram-no ao hospital em

    Tabatinga. Venpa viu lcool nas prateleiras. Viu a si mesmo deitado em uma maca,

    moribundo. Ento entendeu. Vocs no estavam mesmo me enganando. , em dois

    dias voc vai morrer, os yove disseram. Ele viu a enfermeira Solange e uma mulher

    branca chorando, perto de seu corpo deitado na maca.

    Foi a que ele conheceu Isko Osho [Jap Branco, seu duplo auxiliar], que veio

    chegando junto com Kana Ina (Rabo de Arara) e os espritos do gavio coco16 (shpei

    vakras). Trouxeram um fruto do tamanho de uma laranja e o quebraram em sua cabea.

    O fruto entrou nele (naki erekoa). Ele no sabia, no entendia. Ficou com a carne dura

    como pilastra de maloca, com o sangue novo. Mvia e Solange, as enfermeiras, estavam

    l [Venpa diz apenas isso, mas provavelmente estavam no hospital, o evento

    acontecendo em duas referncias simultneas]. Os yove enfiaram dardos mgicos rome

    em seu plexo solar (takaperiti) e em suas costas (petsi). As enfermeiras brigaram porque

    ele estava com soro na veia (soro txiria) [Venpa passa da narrativa do evento dentro da

    maloca dos espritos para a narrativa do que ocorria no hospital, como se o processo fosse

    o mesmo, mas em planos distintos]. As enfermeiras davam cachaa para ele em colheres;

    16Daptrius americanus

  • 32

    parecia a substncia nko. Alguns nawa romeya (curandeiros/pajs peruanos) que

    haviam trazido a cachaa. 17

    A maloca em que Venpa encontrou os yove, explicou-me, era dentro de meu

    peitopensar, que at ento eu no tinha/conhecia18. Alguns Marubo me diziam que

    apenas os romeya tm malocas dentro de seu peito/oco/ventre (chin, shak), muito

    embora a informao seja frequentemente desmentida em outros relatos e contextos,

    quando fica claro que pessoas comuns tambm possuem (ou podem possuir) a mesma

    composio espacial interna. De toda forma, o relato acima indica um dos processos

    atravs dos quais o jovem Venpa se transformava em romeya: como se virar paj

    implicasse, entre outras coisas, em adquirir ou tornar-se consciente desta dobra interna,

    transformar-se pela replicao19. O episdio das enfermeiras, esclarece Venpa, deu-se

    entretanto fora, no hospital, onde ele jazia enfermo. O que revela um paradoxo: fora de

    onde, j que a descoberta toda ocorre dentro, isto , nesta regio a partir da qual Venpa

    podia ver o que se passava alhures com ele prprio?

    Uma maloca interna traz para dentro, no apenas uma dimenso espacial, mas

    todas as dinmicas sociais que a constituem. E quem so as pessoas que habitam20 esse

    espao? Quais relaes entretm? Seria necessrio que o leitor j tivesse em mente os

    esquemas cosmolgicos e escatolgicos aos quais a noo de pessoa se encontra

    atrelada, mas necessrio comear a escrever a partir de algum ponto arbitrrio, ou

    antes estratgico, j que gente/pessoa o idioma que inspira o sistema marubo, suas

    imagens-chave, as metforas-raiz21 pelas quais se constitui.

    17Langdon (1992: 57) oferece um relato de iniciao xamanstica entre os Siona similar a este, no que concerne viso pelo nefito de si mesmo morto, um recorrente tema xamanstico, alis (ver Eliade 1998). 18 chin-nam, ati ea yama 1sGEN chin-LOC TEMP 1sABS NEG 19Algo similar ocorre entre os Mamaind e a possibilidade de visualizao de seus adornos-alma internos (cf., Miller 2007: 185). 20Tambm os Kaxinaw dizem que seus corpos so habitados (hiwe-a-ki) por espritos (Keifenheim 2002: 100). 21O termo utilizado por Marilyn Strathern em seu contraste entre o regime melansio do dom e o ocidental da mercadoria. o que escreve a autora: Assim, meu interesse neste debate sustenta-se no uso que quero de toda forma fazer do conceito de dom. uma de minhas fices a ser empregada em sua definio relacional vis--vis sua contrapartida, a mercadoria. O par de termos oferecem um eixo para considerar uma gama de contrastes entre as sociedades melansias e as sociedades do mundo ocidental, das quais os constructos analticos das cincias sociais inicialmente derivam. O eixo pode ser considerado como uma diferena entre metforas-raiz: se, numa economia de mercadoria, coisas e pessoas assumem a forma social de coisas, ento, numa economia do dom, elas assumem a forma de pessoas. (1988: 134). O ponto fundamental e em muito inspira esta tese, guardadas as devidas diferenas entre os contextos melansios e amerndios (cf., Descola 2001).

  • 33

    A diversidade dos duplos

    Vamos ento partir de uma distino geral entre componentes/duplos de destino

    terrestre e de destino diferenciado: de um lado, os duplos-morte (vei vak ou yama

    vak), duplo solitrio (mo vak), duplos da urina e das fezes (is yoch e poi yoch),

    sombra-morte ou sombra dos corpos (vei vakchi) e duplo do lado esquerdo (mechmiri

    vak), todos de destino terrestre; de outro, os duplos do olho (ver yoch), o duplo do

    lado direito (mekiri vak) e o duplo do peitopensar (chin nat), todos estes com destino

    ps-morte diferenciado. O velho paj rezador (kchtxo) Paulino Mempa me explicou

    (e a seu modo, pois h maneiras diversas de se considerar a questo) a composio da

    pessoa nos seguintes termos, que esquematizei assim:

    1. chin nat: ncleo do peitopensar

    Tm por destino a Morada do Cu-Morte, onde vai viver com seus parentes dentro da

    maloca-morte. Este o nosso duplo.

    2. mechmiri vak: duplo do lado esquerdo

    Tm por destino ficar numa parte qualquer da Morada da Terra-Morte (esta terra).

    3. mekiri vak, duplo do lado direito

    Tende a ir pelo Caminho-Morte, at o Cu-Morte

    4. ver yoch, duplo do olho Vai embora da Morada da Terra-Morte, vai para o Cu-Morte, onde esto as nuvens.

    H apenas um duplo do olho, e costuma ir para o Povo do Cu-Morte.

    5. yama vak, duplo-morte

    Vai ficar sentado em uma bananeira, em sua sombra.

    6. mo vak, duplo solitrio/rfo

    Vai ficar em um monte de terra qualquer e virar cupim.

    7. vei vak, duplo-morte (sinnimo de yama vak)

    a sombra, vai ficar dentro da maloca (externa) onde vivia a pessoa, causando

    insnia e doena aos parentes. insensata e assustadora.

    Mempa dizia: nok vak, nok yora, nosso duplo, nosso corpo . Outra

    sentena paradoxal, uma vez que o termo yora designa tanto corpo (humano, animal,

    mas tambm o tronco de uma rvore, por exemplo) quanto gente, sendo semanticamente

    prximo a noke, o pronome de primeira pessoa inclusiva plural, ns, por contraste a

    nawa, estrangeiro. O que traduzimos por duplo, vak, equiparado ao que

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    traduzimos por corpo, yora, termo que designa tambm a inclusividade, gente, ns,

    yora. Creio que no se trata de uma simples homonmia, mas de uma noo complexa,

    traduzvel talvez por corpogente ou algo assim. A questo est sujeita a revises.

    Todavia, certo que, assim como as carcaas (shak), os duplos (vak) possuem

    tambm corporeidade, justamente por serem gente e terem para si mesmos ossos e

    carne, mesmo que, em certos casos, sejam mais leves e sabidos do que o continente que

    os abriga. Todo corpo/gente tm dentro de si duplos que so eles prprios

    gentes/corpos... Poderamos ir ao infinito, mas a recursividade se detm quando o vetor

    est apontado para dentro: o ncleo do peitopensar (chin nat) no tm ele tambm um

    corpo/maloca com duplos dentro de si. Benfazejo e sabido, o chin nat como um

    esprito yove, ntegro, sem um interior que o [i]limite, como no caso dos viventes.

    Integridade ou inteireza parece mesmo ser uma caracterstica dos espritos yove e dos

    aspectos da pessoa que deles se aproximam. Como veremos, a unidade em questo para

    o sistema marubo dois: o par yora/nawa (gente/estrangeiro, falaremos sobre isso na

    parte IV) homlogo ao par yora/vak no que compete s suas lgicas recursivas e

    reflexivas. Um duplo (vak) entende-se a si mesmo como um corpo/gente (ari tanro

    yorarvi, 3-RFL 3ERG entender-TOP gente-ENF); ns (noke) somos gente/pessoas

    (yora), muito embora divididas em diversos povos (nawavo) estrangeiros (nawa, yora

    wetsa), consequentemente, para o ponto de vista de pessoas outras que no ns mesmos.

    A dupla yora/vak complexifica ou dispe de outra maneira as idias do invisvel e do

    incorpreo, e no pode ser reduzida aos nossos sentidos imediatos de termos como

    alma (ou mesmo esprito, mas necessrio escrever de alguma maneira) isto ,

    aquelas entidades que so por definio incorpreas e invisveis. O que distingue a

    dupla yora/vak no uma oposio entre duas dimenses irredutveis (este mundo

    verdadeiro das coisas l fora, o mundo real, e a dimenso imaginria e fugaz do

    invisvel): no uma distino opositiva (s tenho A se no tiver B), mas uma distino

    complementar.

    Noes recorrentes nas culturas amerndias tais como o vak marubo, os

    karon/garon j, a e o tao we dos Arawet, entre outras tantas, parecem orbitar em um

    campo semntico distinto daquele que caracteriza as noes de alma de nossa herana

    clssica, muito embora a etnografia se utilize frequentemente da mesma palavra. Aqui, a

    idia menos a de descartar palavras como alma ou esprito e mais de aproxim-las ao

    sentido adquirido na conceitualidade marubo, para a qual, de toda maneira, a noo de

  • 35

    duplo me parece mais produtiva (ou tradutiva), tendo em vista as oposies

    tradicionalmente vinculadas ao par alma/corpo (acidente e essncia, contingncia e

    necessidade, material e imaterial, etc). Pretendo com isso evitar interpretaes engessadas

    como a de Townlsey (1993: 455), para quem a pessoa Yaminawa tm trs componentes,

    um fsico (o corpo ou carne, yora) e outros dois no-fsicos (o diawaka e o

    wroyoshi, sombra e alma). O caso marubo tambm no poderia ser traduzido pelas

    consideraes deste mesmo autor, quando diz que o wroyoshi dos Yaminawa uma

    entidade talvez muito prxima de uma idia europia de alma. a essncia vital de uma

    pessoa, a coisa que anima e d vida. Sem o wroyoshi, explicou-me o mesmo

    Yaminawa, esse corpo apenas carne (ibidem). Oposies incontornveis do tipo

    material/imaterial e fsico/no-fsico, como veremos, no se adequam ao carter recursivo

    da pessoa e da cosmologia marubo.

    Em uma reviso recente da literatura etnolgica sobre os J, Coelho de Souza

    (2002) notou por exemplo que os kar/karon/garon, as almas, no so encaradas como

    uma questo de doutrina, mas como algo aberto inspeo emprica, j que denotam

    no uma substncia, mas um modo de ao (:536). O karon estaria presente ali onde se

    manifesta (:534) escreve a autora, ecoando as consideraes de Surralls sobre um grupo

    Jvaro da Amaznia peruana. Para os Candoshi, vani no um atributo, como por

    exemplo possuir um nariz, mas uma condio que se define em termos relacionais,

    precisamente a partir da possibilidade de se estabelecer comunicao (2003: 46). No

    substantivo, mas adjetivo que se refere a uma animao intensa (ibidem), vani

    compartilha com os termos j acima mencionados ainda outra caracterstica: a de ser

    dado, j que presente antes mesmo do nascimento, e por isso oposto aos corpos,

    construdos ou humanizados por modos diversos tais como a alimentao, o convvio, a

    ornamentao (idem: 43; Coelho de Souza 2002; Viveiros de Castro 2002b)1. Dadas,

    decerto, mas nem por isso fixadas ao interior, mesmo que vinculadas individualidade da

    pessoa: duplo, sombra, imagem, essas conotaes implicariam que a alma no tanto o

    que est dentro quanto o que se projeta fora (Coelho de Souza 2002: 540). Para os

    Wari, a alma s existe quando o corpo est de alguma maneira ausente: nos sonhos, em

    doenas srias (...) e na morte (Vilaa 2002: 361). Ora, mas essa alma (jam) no

    exatamente um elemento etreo e fugaz e possui uma caracterstica paradoxal: A alma

    dos xams, as nicas pessoas que possuem uma alma onipresente, simplesmente um

    corpo animal (ibidem), tornando assim possvel a interao social do xam com as

    pessoas-animais, que tambm se definem como gente (wari) a partir de seus pontos de

    vista (cf., Vilaa 1999: 245). Outro paradoxo perspectivo notvel entre os Mamaind:

    Para os Mamaind, do ponto de vista dos outros, a alma (yauptidu, esprito) um corpo

    enfeitado, ou o prprio enfeite corporal (wasaindu). (Miller 2007: 175-176).

  • 36

    Carneiro da Cunha (1978: 10-11) e Viveiros de Castro (1986: 498) propuseram uma

    aproximao entre estes aspectos da pessoa amerndia e a noo de duplo utilizada por J-

    P. Vernant em seu estudo sobre os kolossoi gregos (Vernant 1973: 267). Viveiros de

    Castro escrevia que o tao we um corpo, mais que tm um corpo: puro em-si, corpo

    reduzido afinal condio de objeto sem sujeito. um corpo vazio, o envoltrio de uma

    sombra. O tao we gerado a partir da do vivente, sua sombra. A sombra tica do corpo,

    , designada como tao we r, o que ser tao we. (...) sombra materializada, ele o

    inverso radical do vivente, onde o corpo que projeta uma sombra que lhe servil; o tao

    we uma sombra livre, projetada por um cadver imvel (1986: 498). A passagem

    apresenta bem o problema da corporalidade dos aspectos da pessoa que caracteriza o caso

    marubo e que pretendo enfocar aqui. Lima sobre os Juruna: Enquanto as peles so o

    invlucro da pessoa, a alma um de seus rgos internos, podendo ser ejetada como um

    duplo. Se viva (e sensata ou astuta, sbia), a pessoa contm outra similar dentro de si, a

    alma que um outro, o outro que se tornar ao morrer. (2005: 337) Para o caso marubo,

    traduzo por duplo os dois aspectos da pessoa que Viveiros de Castro e Lima decidem

    traduzir por alma e duplo: ainda que os vak internos pessoa tambm possam ser

    ejetados para fora da pessoa ou retirados por algum (passariam s a ento a ser

    duplos, se segussemos Lima risca), o sociocosmos e a pessoa marubo so de tal

    maneira auto-similares ou recursivos, que o emprego dos dois termos poderia tornar

    confusa a exposio de sua etnografia. Crio neologismos para identificar cada um dos

    aspectos componentes da pessoa, em seus distintos estados (pr ou ps-morte), mas

    traduzo pelo mesmo termo (duplo) a noo de fundo que os engloba. A idia facilitar a

    compreenso da dinmica replicante que caracteriza o pensamento marubo e sua

    vertiginosa potica xamanstica, alm de evitar possveis projees semnticas

    equivocadas.

    Interpretar a oposio entre duplos e corpos nas cosmologias amerndias por meio

    de cises tais como as de Townsley conduz a uma espcie de platonismo (cf., Viveiros de

    Castro 2000, republicado em 2002: 444. Uma crtica a tal ponto est tambm em Lagrou

    2002: 50): um suposto domnio verdadeiro e invisvel, dos duplos, se ope a um outro

    ilusrio e visvel, dos corpos, ao modo da interpretao do xamanismo yekuana por

    Guss (1990). curioso que, a despeito disso, o autor encontre ali uma reproduo de

    estruturas nos nveis macro (cosmos) e micro (pessoa) homloga quela comentada

    por S.Hugh-Jones (2002) para a casa dos Barasana (noroeste amaznico) e, em outros

    termos, noo de corpo/dono/chefe recentemente estudada por Costa (2007) em sua

    tese sobre os Kanamari (Vale do Javari). Parece que as cosmologias amerndias tm

    mesmo uma queda, no sentido literal, pelas auto-similaridades escalares, das quais o

    caso marubo mais um exemplo, entre outros tantos (ver por exemplo o intrigante artigo

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    de Rodgers (2002) sobre o xamanismo Ikpeng). A fractalidade coloca problemas distintos

    dos derivados a partir de polaridades tais como parte/todo, em muito incompatveis com o

    pensamento amerndio. A raiz do problema e sua formulao mais abrangente est em

    Viveiros de Castro (2000, republicado em 2002), onde o autor prope um modelo

    recursivo como alternativa hieraquizao dumontiana para a anlise do parentesco

    amerndio.22

    No tocante pessoa, Lima exps bem o ponto, a partir do trabalho de Wagner,

    referncia tambm para Viveiros de Castro: A pessoa fractal no um todo, no um

    princpio de totalizao, mas o que seccionamos e tratamos como ponto de referncia em

    um certo campo relacional. Tampouco uma parte, pois no pode ser destacada de um

    todo. Ela s se evidencia por sua relao com outras e, o principal, suas relaes externas

    so suas prprias relaes internas, as mesmas que a constituem por dentro. (2005: 121-

    122 grifo meu). O ponto inviabiliza a manuteno de relaes duais estanques tais como

    corpo/alma, material/imaterial, invisvel/visvel, pelas quais costumam ser explicadas as

    teorias amerndias da pessoa. Proponho aqui uma interpretao similar para o caso

    marubo. Se uma teoria explcita ou implcita (Taylor 1999: 209-210) da pessoa

    elaborada pelos xams marubo; se pessoa um centro de irradiao ou de inspirao para

    todo o pensamento marubo e talvez constitua uma teoria autctone, esta parece poder

    ser interpretada pela idia de fractalidade (mas no explicada assim, pois aqui no

    estamos, tal como no estava Wagner, preocupados em generalizar ou particularizar a

    relao entre o geral e o particular (1991: 163)). Guardadas as devidas diferenas entre o

    caso marubo e o contexto melansio, a seguinte passagem de Wagner bastante til:

    Uma pessoa fractal no jamais uma unidade colocada em relao a um agregado, ou

    um agregado colocado em relao a uma unidade, mas sempre uma entidade com a

    relao integralmente implicada (ibidem). A pessoa marubo no uma totalidade que

    engloba seus duplos internos como partes, mas uma entidade que reproduz o exterior no

    interior23, isto , que replica as dinmicas do parentesco para distintas posies.

    Traduzindo cantos com trs pajs em um hotel de Cruzeiro do Sul, fechados em

    um quarto cercado de quatro paredes de alvenaria, sentados diante de um computador,

    Lauro Panpapa me explicou: quem pensa no o hotel, mas ns que estamos dentro

    dele. Um corpo um corpo apenas para ns: na posio de quem o habita, trata-se de

    22Luciani colocou bem o ponto recentemente: Tudo isso , basicamente, uma expresso do carter contextual das categorias ns/outros a que nos referimos antes,e uma outra expresso da fractalidade: a pessoa-como-grupo uma verso em escala ampliada da pessoa-como-indivduo e uma verso duas vezes ampliada da pessoa-como-parte. (...) a personitude fractal implica que relaes entre pessoas, em qualquer escala, so rplicas umas das outras, isto , so auto-similares. (2001: 102). 23Extrnseco no incio, o tubo se torna intrnseco, dizia Lvi-Strauss na Oleira Ciumenta (1986: 203).

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    uma maloca, entre outras tantas que estes habitantes internos vem para si, parte das

    que vemos ns, aqui, nesta carcaa. Como uma tartatuga, completava Venpa no

    mesmo quarto de hotel: a pessoa (yora) est dentro para me fazer falar. Quando saem de

    casa, o fazem assim como ns, em carne e osso:

    nami kayavaki kesk-se, kayakavi ka-rvi, nitxi-rivi carne vivente SML-EXT vivente ir-ENF em.p-ENF Tm carne igual de vivente, ficam de p como viventes, a-ri tan-ro aya nami 3DEM-RFL 3DEM.GEN entender-TP ter carne em seu entender eles tm mesmo carne.

    Na fala de Venpa, o uso do sufixo reflexivo ri o detalhe essencial. O chin

    nat (duplo do peitopensar), em prejuzo ou no da pessoa, pode ento se mudar,

    assim como os marimbondos mudam-se de suas casas, ou como Felipe mudou de

    maloca, exemplificam. Nisso se constituem, alis, as operaes xamnicas de

    transporte: a ingesto de determinadas substncias psicoativas24 deve fazer com que a

    pessoa se espiritize (an yove-a FIN esprito-VBLZ), isto , possa partir, sem

    prejuzos pessoa-suporte. As pessoas da poca do surgimento, entretanto, mudavam-se

    enquanto tais, ao passo que, hoje, quem se muda so os duplos, enquanto o corpo fica

    deitado na rede vazio. Yora shak, carcaa de corpo, corpo vazio. O termo shak

    tambm utilizado para designar qualquer contedo vazio de seu continente: tapo shak,

    uma casa vazia, abandonada, a shakarvi, est mesmo vazio, sem utilidade. Mas a

    questo pode ser recursiva: os duplos no se mudam justamente enquanto tais e, dentro,

    no so eles o mesmo que fora, tudo dependendo apenas da posio que ocupam? A

    ingesto de substncias psicoativas e outras visam alterar o chin da pessoa, tornando-o

    apto para os transportes sociocsmicos (onricos ou no, importa pouco), entre outras

    aptides de que trataremos mais adiante.

    Retomemos a lista dos duplos de que tratvamos acima, que vai se

    complexificando com novas informaes. Os yora yochi , duplos terrestres desprendidos

    dos mortos, tambm habitam a maloca/pessoa: eles esto vivendo dentro de nossa

    maloca, mas ns no sabemos25 pois, como dizia Tnia Lima sobre os Juruna o

    24 Tratam-se, sobretudo, da ayahuasca (oni, Banisteriopsis caapi), do rap de tabaco (rome), do mata-pasto (kapi, Senna alata), do lrio ou trombeta (waka shpa, Brugmansia sp), das seivas adocicadas de diversas rvores (nko), e do vegetal tachi (no identificado), entre outros. 25 Noke shov-se ni-s-me ki noke tana-ma 1p maloca-EXT viver-EXT-conj 1p endender-NEG

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    sujeito e seu duplo se ignoram (Lima 1996: 36; ver tambm algo similar em Viveiros

    de Castro 1986 sobre o tao we arawet). Surgidos das fezes e da urina, so duplos

    (vak) tolos e mudos. Nossas sombras (yor yoch) transformar-se-o em distintas

    espcies de batrquios (ach, tokore), e