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______________________________________Pedagogia Essentia, Sobral, vol. 13, n° 2, p. 115-138, dez. 2011/maio 2012 O REENCONTRO COM A INFÂNCIA E A IMPORTÂNCIA DAS MEMÓRIAS PARA A RESSIGNIFICAÇÃO DA EXISTÊNCIA E DAS PRÁTICAS DOCENTES NA EDUCAÇÃO INFANTIL Francisco Ullissis Paixão e Vasconcelos 1 Resumo - Este trabalho trata da análise dos memoriais de infância construí- dos na disciplina de História Social da Criança, ministrada na turma de pri- meira licenciatura do Parfor, na Universidade Estadual Vale do Acaraú, uma vez que estes foram construídos com o objetivo de proporcionar aos alunos um reencontro com a infância e a ressignificação das suas presenças diante das crianças e das ações docentes desenvolvidas pelos mesmos. Para tanto, fundamentamos nossas ideias nos pensamentos de Aguiar (2007), Ariès (1981), Bock (2007), Brandão (2005), Fleury (2004), Freire (1996), (1998) e (2005), Gonçalves (2007), Tunes (2005) e Vygotsky (1998). O estudo nos permitiu uma aproximação das memórias dos alunos e de como estas favore- cem a possibilidade de se fazerem crianças com as crianças ao ressaborearem as delícias de suas infâncias, mesmo em meio a dissabores também reexperi- mentados através das lembranças. Palavras-chave: Infância. Memórias. Ressignificação. Ação docente. 1 INTRODUÇÃO A perspectiva aqui abordada parte da ideia de que toda prática educativa carrega em si marcas das várias influências sofridas pelo contexto histórico de diferentes épocas, o que não lhe permite, de maneira alguma, estar separada da forma como o professor, por e- xemplo, vê e significa o mundo. Se o homem é um ser histórico, suas 1 Pedagogo, psicopedagogo, mestre em Educação, doutorando em Educação. Pro- fessor do curso de Pedagogia da Universidade Estadual Vale do Acaraú Ce. E- mail: [email protected].

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O REENCONTRO COM A INFÂNCIA E A IMPORTÂNCIA DAS MEMÓRIAS PARA A

RESSIGNIFICAÇÃO DA EXISTÊNCIA E DAS PRÁTICAS DOCENTES NA EDUCAÇÃO

INFANTIL

Francisco Ullissis Paixão e Vasconcelos1

Resumo - Este trabalho trata da análise dos memoriais de infância construí-dos na disciplina de História Social da Criança, ministrada na turma de pri-meira licenciatura do Parfor, na Universidade Estadual Vale do Acaraú, uma vez que estes foram construídos com o objetivo de proporcionar aos alunos um reencontro com a infância e a ressignificação das suas presenças diante das crianças e das ações docentes desenvolvidas pelos mesmos. Para tanto, fundamentamos nossas ideias nos pensamentos de Aguiar (2007), Ariès (1981), Bock (2007), Brandão (2005), Fleury (2004), Freire (1996), (1998) e (2005), Gonçalves (2007), Tunes (2005) e Vygotsky (1998). O estudo nos permitiu uma aproximação das memórias dos alunos e de como estas favore-cem a possibilidade de se fazerem crianças com as crianças ao ressaborearem as delícias de suas infâncias, mesmo em meio a dissabores também reexperi-mentados através das lembranças. Palavras-chave: Infância. Memórias. Ressignificação. Ação docente.

1 INTRODUÇÃO

A perspectiva aqui abordada parte da ideia de que toda prática educativa carrega em si marcas das várias influências sofridas pelo contexto histórico de diferentes épocas, o que não lhe permite, de maneira alguma, estar separada da forma como o professor, por e-xemplo, vê e significa o mundo. Se o homem é um ser histórico, suas

1 Pedagogo, psicopedagogo, mestre em Educação, doutorando em Educação. Pro-

fessor do curso de Pedagogia da Universidade Estadual Vale do Acaraú – Ce. E-mail: [email protected].

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relações, sejam elas quais forem, terão de ser compreendidas necessa-riamente, considerando os eventos históricos vividos pelos sujeitos. O que somos sofre influência da cultura e da sociedade, e essa influência, muitas vezes, advem de épocas bem antigas.

Ainda que na contemporaneidade outras visões de mundo sur-jam, elas não conseguem, de uma hora para outra, apagar tudo aquilo que fora disseminado por paradigmas anteriores. O conceito de infân-cia criado pela modernidade (ARIÈS, 1981), por exemplo, nunca con-seguiu superar totalmente a ideia de que as crianças precisam ser, o mais rápido possível, adultos (por serem não falantes, e portanto inca-pazes de pensar, sendo “pessoas de verdade”). Também no interior da escola, observando sobretudo as relações estabelecidas pelos professo-res com seus alunos, percebemos como essa ideia acerca das crianças ainda está presente, à medida que o professor (adulto) se coloca como aquele que é responsável por retirar o aluno (criança) do seu mundo de escuridão e ignorância.

Como forma de proporcionar uma nova visão sobre a prática docente na educação infantil, o curso de Pedagogia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) traz em sua matriz um componente curricular de nome História Social da Criança; nela se busca refletir sobre a infância enquanto categoria histórica, e que estudá-la só faz sentido se gerar um saber transformador da prática docente perante a criança. Para tanto, no decurso da mesma, passamos a desenvolver momentos para discutirmos como as práticas existentes nos vários espaços em que as crianças se apresentam estão carregadas, muitas vezes, de ideias sobre a infância que remontam a uma época bem dis-tante da que vivemos, influenciando diretamente a ação docente, por exemplo, em suas posturas e escolhas metodológicas, culminando num memorial da infância, trazido por nós nas análises deste trabalho.

À medida que buscamos conhecer a história da infância duran-te as aulas, buscamos também desenvolver momentos de reflexão e reencontro com a infância na tentativa de superarmos velhas concep-ções ainda presentes no senso comum e reproduzidas no fazer docen-te. Alguns autores contribuíram significativamente para o desenvolvi-mento das ideias aqui apresentadas; entre eles se encontram Aguiar

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(2007), Ariès (1981), Bock (2007), Brandão (2005), Fleury (2004), Frei-re (1996), (1998) e (2005), Gonçalves (2007), Tunes (2005) e Vygotsky (1998). As memórias se demonstraram um excelente meio de recons-trução e ressignificação, por mostrar “a identidade como categoria dinâmica, construída, múltipla e passível de ser atualizada e, ainda, a maneira como ela acompanha a construção de um sentido para trajetó-ria de vida narrada como uma história” (BRANDÃO, 2005, p. 4). Elas se mostram como

instrumento fundamental na recomposição do i-maginário, que realimenta a cultura, porque atra-vés dela os conteúdos vividos e retrabalhados pela subjetividade (inconscientes/latentes) são trazidos ao presente, e nele incorporados. A memória de todas as lembranças retidas (de forma mais ou menos clara, com registros conscientes e inconsci-entes) pode ser invocada e aparecer prontamente ou nos tomar como uma força avassaladora, mui-tas vezes sem ser chamada, para reconstruir uma imagem, uma história e um personagem feitos de restos, num eterno trabalho de bricolage. (BRANDÃO, 2005, p. 14)

Através do resgate das memórias foi possível que os alunos ao menos cogitassem a possibilidade de se fazerem crianças com as crian-ças ao ressaborearem as delícias de suas infâncias, mesmo em meio a dissabores também reexperimentados através das lembranças. 2 SUBJETIVIDADE E HISTORICIDADE DOCENTE NA CONSTRUÇÃO DO AMBIENTE ESCOLAR

A escola, sob uma visão sociológica, constitui-se mais um gru-po social em que os sujeitos se inserem para, assim, ampliar suas rela-ções, aprender a conviver... No entanto, este grupo social (a escola)

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está imerso num ambiente sociocultural que reflete diretamente em sua ação.

Todo grupo é assinalado pela interação, por características co-muns, por conflitos... Nada mais natural que no grupo, uma vez que é constituído por uma diversidade de pessoas e ainda que estes partici-pem de uma mesma sociedade e estejam inseridos numa mesma cultu-ra, haja em seu interior compreensões diferentes de mundo e seus participantes deem sentidos variados àquilo que lhes venha a aconte-cer, sendo, portanto, únicos, com vontades, anseios, sonhos e realida-des diferentes. É nessa dinâmica da variedade que a aprendizagem se processa. Tanto é que hoje as perspectivas teóricas em educação não mais a entendem como um processo de atuação do professor sobre o aluno, como se este fosse um ser passivo, um depósito para o conhe-cimento que transborda daquele que ensina − o professor.

Nesse processo, professor e aluno estabelecem relações sociais, e é na sala de aula que estas relações podem se solidificar e caminhar para a promoção de condições ideais para a aprendizagem. A impor-tância destas considerações se dá a partir do momento em que se compreende que a escola não é um lugar de neutralidade, que a ação docente também não é neutra, tampouco a do aluno. Estas relações produzem efeitos, marcas que se traduzem em comportamentos futu-ros e diferentes modos de relação com a escola e com o outro. Estas formas de agir e interagir são marcadas pelo contexto histórico, mas nem sempre refletimos sobre o porquê de nossos atos.

Desde que o homem começou a fazer registros da história de sua experiência e a perceber as veredas da existência, vem-se constru-indo um longo processo que acabaria por construir um sentido histó-rico à sua vivência humana.2 Hoje, mais que uma história, fala-se de uma historicidade3, uma vez que a história por si só não determina a

2 Ressaltamos que a expressão “sentido histórico” só passou a ser aceita na moder-

nidade. 3 Por historicidade entendemos a história em processo contínuo de ações e vivên-

cias, onde os aspectos subjetivos se relacionam com esse processo de diferentes formas de pessoa para pessoa, não havendo condição de determinismo histórico.

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realidade humana e que cada homem vivencia de diferentes maneiras os mesmos eventos históricos.

Ao tentarmos abordar o homem pelo viés de sua historicida-de4, é fundamental recorrermos a conceitos que, amplamente, pensam acerca do homem como “ser e vir a ser”. Uma dessas perspectivas é a indicada por Marx no materialismo histórico, que traz ideias da abor-dagem do real e do concreto nas relações entre os indivíduos e destes com o meio em que vivem. (GUARESCHI, 1986)

Segundo Gonçalves (2007, p.39), se partirmos do pensamento do materialismo histórico, “as ideias e conhecimentos produzidos pelo homem em determinado momento histórico refletem a realidade desse momento histórico”; dessa forma não há como compreender a constituição do homem sem a conjuntura à sua volta. Esses conceitos foram tomados por Vygotsky (GONÇALVES, 2007, p. 126) ao tentar investigar sobre o psiquismo humano e sua subjetividade, ressaltando a importância da dialética no processo de formação do sujeito. Segun-do Vygotsky (1998), é nessa constituição que o sujeito surge, através de mecanismos simbólicos cujo principal é a linguagem. É através da linguagem que o sujeito se constitui, interiorizando o meio social, transformando-se e transformando o meio em que vive, em profunda dialética, constituindo-se constantemente. Desta forma,

a conquista da linguagem representa um marco no desenvolvimento do homem: a capacidade especificamente humana para a linguagem habi-lita as crianças a providenciarem instrumentos auxiliares na solução de tarefas difíceis, a supe-rarem a ação impulsiva, a planejarem a solução para um problema antes de sua execução e a controlarem seu próprio comportamento. (REGO, 2002, p, 63)

4 Referimo-nos à construção e às escolhas que o indivíduo vai fazendo ao longo de

sua história pessoal, bem como aquilo que o sujeito faz com suas experiências co-tidianas, o significado que dá a elas, e que acabam construindo sua história indivi-dual.

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Ao trazer o materialismo-histórico para as questões da cons-trução do psiquismo humano, Vygotsky ressaltou a importância da historicidade como característica de todas as coisas (GONÇALVES, 2007), de forma que esta se dá numa profunda dialética com o meio onde o sujeito, embora sofra influências do seu entorno, mantém sua autonomia diante do que se apresenta (FURTADO, 2007). Partindo dessas ideias é que entendemos ser possível compreender que as esco-lhas, bem como o ato de planejar, superar impulsos, solucionar tarefas é uma característica inerente ao ser do homem. É importante ressaltar a ação do contexto externo sobre construção da subjetividade e das escolhas na vivência cotidiana dos homens, uma vez que estes se constituem como seres integrantes do mundo, transformadores deste, ao mesmo tempo em que são transformados por ele. Desta forma é possível dizer que a “subjetividade é histórica, constrói-se ao longo da vida do sujeito, e por isso não pode refletir o imediato” (AGUIAR, 2007)

Em uma perspectiva sócio-histórica, “o fenômeno psicológico, como qualquer fenômeno, não tem força motriz própria. É na relação com o mundo material e social que se desenvolvem as possibilidades humanas.”(BOCK, 2007, p. 24) E essa possibilidades impulsiona ine-vitavelmente a escolher ou deixar que escolham por si. É desta forma que se entende que, na história de cada pessoa a influência das experi-ências é a base daquilo que se é, num processo constante (historicida-de), e não se pode dissociar o eu de hoje daquilo que fora vivido antes e das escolhas que se fez no passado, as quais possibilitaram estar on-de se está hoje.

Não importando a área de atuação, esta reflexão não pode pas-sar despercebida, e mais pertinentemente aos professores. Aquilo que se é é fruto da dialética entre o eu e o mundo, o eu e o outro, o eu e o sentido que esse eu dá às coisas vividas (FREIRE, 2005, p. 192). Par-tindo desta ideia, e no momento em que se considera a sala de aula como o lugar para as relações, onde o processo educativo acontece, deve-se entender que este processo está vinculado com o favoreci-mento da socialização entre os agentes envolvidos (professor-aluno, aluno-aluno), além de favorecer o desenvolvimento da aprendizagem.

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Ela se constitui como um lugar de integração de histórias de vida com experiências e vivências variadas, atualizadas constantemente em sua subjetividade, o que não quer dizer que professores e alunos percebam o impacto que um tem sobre o outro.

Ao considerar a figura do professor como alguém experiente, vivido e por isso dotado de maturidade, atribui-se a este a responsabi-lidade da intencionalidade no processo educativo, uma vez que não se pode esperar isso do educando, pois ainda não desenvolveu condições para perceber-se como agente da história, principalmente em tenra idade. Ainda assim, por vezes, o professor poderá não estar plenamen-te consciente de que com suas atitudes ele afeta o aluno. É tão prová-vel que a intencionalidade é atribuída ao docente que o processo de planejamento por parte deste visa o desenvolvimento de ações cujos objetivos realizam-se no aluno.

É fato que os modos de ensinar e o significado que se dá a es-tes num processo de intencionalidade são frutos dos vários contextos históricos e das ideologias vigentes, que condicionam o processo de ensino de forma que este produza homens ideais para determinada sociedade. Mas o que não pode perder-se nesta discussão é o fato de que a prática docente, a relação do professor como seu aluno enquan-to agente intencionador da aprendizagem, um “adulto”5, está direta-mente ligada à influência que as diversas concepções de infância, que contagiaram diferentes períodos históricos, embora superadas por outras, nunca deixaram de contagiar o pensamento popular que ainda hoje condiciona o pensar e as visões de mundo.

A grande importância dessa reflexão gira em torno de que é da figura do professor que se espera um maior equilíbrio e maiores con-dições de gerir as relações, uma vez que este, como fora mencionado, é o que detêm a intencionalidade necessária ao ato de aprender, pelo menos até o pleno desenvolvimento da autonomia dos alunos. Não se pode esperar, portanto, que as crianças sejam conscientes deste pro-

5 Aqui a palavra adulto assume um caráter do senso comum como aquele dotado de

plena capacidade, amplo conhecimento e maturidade psíquica e emocional, embora atingir determinada idade cronológica não garanta estas qualidades.

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cesso ou tenham as mesmas condições de equilíbrio esperadas de um adulto, o que não quer dizer que estes tenham esses requisitos.

Dentro desse contexto, compreende-se que, além de um ambi-ente escolar físico, há também um ambiente escolar de caráter subjeti-vo construído nas relações, principalmente com a ação de seus princi-pais agentes (professor e aluno) a partir das experiências dos envolvi-dos, que muda constantemente, que nunca se repete e que certamente transformam os sujeitos de uma forma ou de outra. A este respeito, Tunes (2005) afirma que

a despeito de desempenharem funções inerentes a papéis que lhes são reservados, e tidos como espe-rados, na instituição escolar estão em processo contínuo de criação intersubjetiva de significados que, por sua vez, podem gerar novas possibilida-des de relação. Nesse processo, integram-se histó-rias de vida com inúmeras experiências e vivên-cias, tornando-se presentes e se atualizando senti-dos subjetivos. ( p. 690)

Desta forma, a ação humana assume um caráter inevitavel-

mente político. A ação do professor assume um caráter inevitavel-mente político, pautado nas suas experiências e nos significados atri-buídos a elas. Tanto é que Freire (1996), refletindo sobre seu papel de educador, vai dizer que

como subjetividade curiosa, inteligente, interfe-ridora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrên-cias. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar mas para mudar. (1996, p. 83-84)

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E em outro momento vai destacar que se somos educadores, inevitavelmente somos políticos, e que enquanto educadores o nosso sonho não deve ser pedagógico, mas político. (FREIRE, 1998, p. 46). Esse caráter político da ação pedagógica também passa pela história de cada docente e nem sempre é um ato consciente. É a concepção pe-dagógica que orientará a ação docente que se manifesta em sala de aula e que é percebida pelos alunos. Daí a importância de o professor re-fletir sobre seu fazer pedagógico que, como fora mencionado, não é neutro já que, nas suas relações e em seu fazer docente, o professor externaliza os conceito adquiridos a priori, seus valores de referência e sua postura ética.

No momento em que se relaciona, o professor está manifes-tando todos estes conceitos, de forma consciente ou não. O fato é que na convivência em sala de aula, professores e alunos são influenci-ados com os efeitos das relações marcadas pelas várias histórias de vida, situação momentânea e pelos sentimentos mais diversos, positi-vos ou negativos. Como fala Eizirik (1984),

as interações humanas são acontecimentos psicológicos representados dentro de cada pessoa, de forma ativa, num processo de ação e reação, onde os sentimentos de-sempenham papel fundamental. Quando nos relacionamos com objetos, as relações ocorrem de um lado só, mas com outras pessoas, são interdependentes. (p.8)

E essa condicionalidade entre relações humanas, história de vida e o aspecto emocional-afetivo é bastante relevante para que se repensem as diversas situações ocorridas no espaço escolar, uma vez que o físico e o emocional não podem ser dissociados, ao menos na linha em que se enquadra a presente pesquisa.

Diante dos inúmeros caminhos possíveis de ser seguidos rumo ao ato de aprender, os professores precisam fazer e fazem escolhas. Isso é inevitável à medida que as possibilidades se apresentam diante

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deles, não lhes permitindo se manterem na inércia. E esses caminhos possíveis, essas escolhas, as decisões tomadas e as relações construídas passam diretamente pelas experiências vividas, pela subjetividade, pela construção histórica dos sujeitos. Daí a importância de o professor repensar sua prática buscando uma ruptura de paradigmas, uma cons-cientização do seu papel de intencionador no processo de ensino-aprendizagem, ressignificando sua prática e sua existência.

3 O ADULTO QUE SOU TAMBÉM PODE SER UMA

CRIANÇA: A REDESCOBERTA DO MUNDO INFANTIL COMO CAMINHO PARA UM MELHOR RELACIONAMENTO ENTRE PROFESSORES E ALUNOS

Se o homem é um ser histórico e construtor de sua história a

partir de elementos advindos da sociedade, as relações, sejam elas quais forem, só podem ser compreendidas se considerarmos os even-tos históricos vividos pelos sujeitos. O que somos hoje é fruto de uma construção história que se perpetua de geração a geração. Ainda que visões diferentes surjam, elas não conseguem, de uma hora para outra, apagar tudo aquilo que fora plantado por paradigmas anteriores, de forma que as primeiras podem durar séculos para serem totalmente superadas, se é que isso é mesmo possível. O que se percebe é que, uma vez caído no senso comum, as ideias disseminadas por um para-digma tornam-se quase eternas à medida que se misturam com a cultu-ra e a identidade de um povo.

Assim também se procedeu com a construção do que viria a ser infância. Influenciada pelos diversos paradigmas ao longo do tem-po, esta nem sempre foi encarada da mesma forma. Tanto é que ainda hoje encaramos as crianças por diferentes ângulos, a partir das nossas próprias experiências, concepções e paradigmas. Isso proporciona aos adultos diversas posturas e formas de agir. No interior da escola, mais particularmente no que se refere ao professor, não é diferente.

Ao longo da história da humanidade, a fase adulta sempre foi uma espécie de ideal a ser alcançado. Ela se caracteriza, ainda hoje,

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pela plenitude das capacidades motoras, pelo auge da força física, pela amplitude de raciocínio e compreensão. Nem a infância, nem a velhice apresentam as mesmas potencialidades que um jovem adulto, ou um adulto.

Tomando como base no estudo de Ariès (1981) de que o “sen-timento da infância”6 teria surgido apenas na modernidade, apesar de Kuhlmann Jr. (1998) tecer algumas críticas considerando-o um tanto linear e generalizante, busca-se refletir sobre as possibilidades de visão que os adultos, e consequentemente os professores, podem ter sobre a criança.

Ariès (1981) vai apontar em seus estudos que o conceito de in-fância tem sido construído historicamente e que por muito tempo esta fase não fora vista como uma fase em si, onde suas necessidades e características não eram consideradas, mas como um período a ser superado. Tanto é que a criança era vista como um pequeno adulto e assim, vestida como adulto, frequentando as festas dos adultos, con-versando as mesmas coisas que os adultos e, por consequência, tendo que pensar e agir como adulto. Partindo de relatos e textos dos séculos XII ao XVIII, Ariès (1981) vai tentar falar sobre as primeiras ideias de infância, surgidas nesta época, afirmando que

a primeira idade é a infância que planta os den-tes, e essa idade começa quando nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que nasce é chamado de enfant (criança), que quer dizer não falante, pois nessa idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente suas pala-vras... (ARIÈS, 1981, p. 36).

E é essa concepção que vai sustentar a visão sobre as crianças

como sendo criaturas sem raciocínio, uma vez que eram desprovidas

6 Ao se falar sobre sentimento de infância estamos tratando de um conceito a este

respeito em que os olhares se voltam para as crianças e buscam ver nelas algo além de estarem vivendo uma fase a ser superada. Remonta a ideias de carinho para com as crianças, perceber suas expressões faciais e seus pequenos gestos e encantar-se com isso, mas, sobretudo, a consciência da particularidade infantil.

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de fala e dos comportamentos esperados pelos adultos. Enquanto os adultos pensam, agem e interferem no mundo, as crianças só podem fazer isso parcialmente. Isso as enquadrava num perfil irracional. Des-ta forma, a infância seria o oposto da vida adulta que, como foi men-cionado, é o período das plenas capacidades. Assim, a passagem da infância para a vida adulta deveria ocorrer com certa urgência, uma vez que ela era uma fase de idiotice a ser superada o mais rápido possível, e os adultos teriam como dever salvar as crianças da condição de cri-ança, isto é: idiotas. Tanto é que Airès (1981) vai nos dizer que “a pas-sagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade [...]” (p. 10).

Partindo destas ideias não é difícil conjecturar que, se as crian-ças eram vistas como idiotas, o ser criança e o fazer das crianças tam-bém o eram. Daí a ideia de que ocupar-se com “coisas de crianças” é uma perda de tempo, e que as práticas adultas é que são constituídas como ideal a ser atingido. Não se desconsidera aqui a inevitabilidade, a não ser por uma fatalidade no tocante à vida, que uma criança se torne adulta, e por isso reconhece-se a necessidade de que esta se prepare para ingressar nessa nova fase, e que os adultos devem desempenhar um papel relevante sobre este aspecto. Como “agentes” da sociedade, os professores constituem-se os personagens incumbidos diretamente desta missão.

A grande questão é, até que ponto, nas relações de aula, os professores atuam como facilitadores do processo de aquisição de habilidades que favoreçam uma melhor relação como o mundo, ao ponto de proporcionarem às crianças um desenvolvimento satisfató-rio, ou são influenciados por antigas concepções de infância, uma vez que estas ainda não desapareceram da mente e do ideário popular? É importante considerar que segundo Lauro de Oliveira Lima (apud TE-LES, 1997, p.36), “grande parte do tempo escolar é gasto em ‘discipli-na’ (por em ordem)”, o que agrava ainda mais a possibilidade de que a criança seja submetida a relações de domínio emocional, podando suas vontades infantis.

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É possível, ainda hoje, observarmos adultos, inclusive profes-sores, ao tentarem fazer com que as crianças, não importando a idade, deixem seu comportamento infantil, usarem argumentos tais como: você já é um rapaz, ou, você já é uma mocinha! A própria palavra in-fantil, ao menos na realidade da Língua Portuguesa, adquire uma con-juntura pejorativa e é usada por adultos quando desejam menosprezar o comportamento de alguém: deixa de ser infantil, ou, deixa de ser criança!

São estas evidências que nos permitem perceber que, apesar de novas concepções de infância terem influenciado fortemente a cultura brasileira, e talvez até de forma mais ampla a ocidental, as antigas idei-as acerca do que vem a ser infância ainda continuam ditando compor-tamento e marcando a história das relações entre professores e alunos. Segundo Fleury (2004),

as representações que temos da criança vão também nos levar a fazer e a agir de forma tan-to mais alienada, acrítica e mecânica quanto mais for estereotipado este “corpus” de ideias preestabelecidas formadas em nós sobre o ser criança. Em outras palavras, considerando que as representações que temos de nossas crianças são fenômenos mediadores do nosso pensar, falar e agir, incluindo o nosso fazer pedagógi-co, impõe-se conhecer estas representações pa-ra que se possam encontrar elementos que contribuam verdadeiramente para um melhor aperfeiçoamento docente. (2004, p.133)

Não se pretende dizer aqui que todos os professores adotem,

ainda que despercebidamente, esta postura diante das crianças. Apenas busca-se argumentar que também a ação docente e a relação profes-sor-aluno estão fundadas numa perspectiva histórica e de construção de paradigmas pessoais, e que um deles é a ideia que se tem sobre o ser criança.

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Trabalhar com crianças exige um mínimo de conhecimento do universo infantil e talvez muita vivência deste universo. Uma vez que o professor adota a postura citada nos parágrafos anteriores, esta vi-vência do universo infantil será significativamente comprometida e este terá muitas dificuldades em manter vínculos de afeto com aqueles que o rodeiam (as crianças). Se a infância não for vista como um mo-mento a ser vivido necessariamente, com todas as suas possibilidade e limitações, mas encarada como uma etapa a ser superada, então encon-traremos professores com grandes dificuldades de se “inclinarem” às crianças para compreendê-las, significando sua “missão” em fazê-las superar a fase em que se encontram, sempre querendo que estejam elas a compreendê-lo; afinal é o pensar adulto que importa.

Tal professor pouco vai dar importância para comportamentos frequentes em crianças, tais como brincar, movimentar-se, sorrir, so-nhar... Sua prática estará pautada em repassar o maior número de in-formações possíveis para que rapidamente as crianças adquiram um pensamento de adulto, até mesmo porque, segundo Erikson (1971), em épocas de sociedades puritanas, o que não está tão distante de nos-sos tempos, “a diversão pura e simples sempre significava pecado” (p.193). Talvez encontremos aqui a razão pela qual os adultos impe-dem tanto as crianças de brincarem e excluam com tanto empenho este ato de sua própria existência, uma vez que ele mesmo não se sente bem em apenas se divertir, já que em vez de perder tempo brincado deveria estar produzindo algo7.

Inevitavelmente a história individual acaba influenciando na individualidade do outro desde a mais tenra idade. E sob este enfoque encontramos um forte motivo de análise da realidade escolar pautados na perspectiva de Freire (apud BARRETO, 1998), quando considera que a principal característica de um educador deveria ser gostar da vida. A ideia de desenvolvimento enquanto etapas de superação, em que a mais evoluída ocupa o lugar da anterior, é bastante questionada nos dias atuais. Desta forma, parece que o melhor caminho para as

7 Ideia difundida a partir dos ideais capitalistas e da ética protestante, que sustentam

a necessidade de não se perder tempo porque ou este (tempo) é dinheiro ou por-que mente ociosa é oficina do diabo.

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relações de aula, principalmente quando os discentes são crianças pe-quenas, é que os professores se reinventem em busca da criança que deve existir dentro de cada um, de cada adulto que, enquanto ser completo, não o é porque virou adulto, mas sempre o foi, mesmo en-quanto criança.

Na redescoberta da infância é que os adultos – os professores – poderão melhor desempenhar seu papel ao relacionarem-se com crianças, externando, inclusive para estas, seus prazeres e desprazeres, afetos, sentimentos, para assim serem mais livres. 4 EM BUSCA DAS MEMÓRIAS: O REENCONTRO COM A INFÂNCIA E A RESSIGNIFICAÇÃO DO FAZER DOCENTE

Durante a disciplina de História Social da Criança, buscamos compreender o processo de surgimento da infância enquanto categoria social, avaliando as várias concepções de infância construídas ao longo do tempo. Em meio aos objetivos da disciplina sempre esteve claro o fato de que o estudo da infância enquanto categoria histórica só faz sentido se este saber transformar a prática diante da criança.

A perspectiva teórica desenvolvida ao longo da disciplina bus-cou sempre fazer referência a práticas existentes nos vários espaços em que as crianças se fazem presentes, práticas estas carregadas, por muitas vezes, de ideias sobre a infância que remontam a uma época bem distante da que vivemos hoje, e que inferem de forma vivencial na ação docente, em suas posturas e escolhas metodológicas. A partir disso, à medida que buscávamos conhecer a história da infância, bus-cávamos também desenvolver momentos que viabilizassem a reflexão e o reencontro com a possibilidade de ser criança com as crianças, superando velhas concepções presentes no senso comum, ressignifi-cando assim a prática docente;

Essa caminhada teve como clímax aquilo que chamamos de reencontro com a infância, através da busca e do registro das memó-rias infantis. Através desse processo, segundo Brandão (2005), procu-ramos clarear aquilo que ocorre em nosso interior, buscando encontrar

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um sentido para o “ser-estar no mundo” através do nosso “saber-fazer”. A princípio os alunos acharam impossível. Suas infâncias esta-vam tão distantes, já as haviam vivido há tanto tempo que nem lem-bravam mais. “Mas foi só começar a escrever para que tudo viesse à tona, como se estivesse acontecendo hoje mesmo” (AVELINO)8.

Durante a leitura das memórias pudemos constatar a emoção dos alunos ao reviverem episódios “bons e ruins”, e como nos diz pereira,

onde pude falar das minhas brincadeiras, família, amigos, vizinhos, escola, a conquista da leitura e como um educador pode construir ou destruir al-guém para sempre com suas atitudes e falta de amor pela profissão. [...] o quanto é importante a gente brincar, para quando crescermos termos coisas boas para lembrar. (PEREIRA).

Identificamos saudades, nostalgia, dificuldades escolares e fa-miliares, peripécias, inconsequências, alegria, festa, medo, dúvida... Comuns não só na infância, mas partilhado por todo vivente, não im-portando a idade. As lembranças trazem, sim, os sentimentos vividos. É como se as emoções do passado fossem reproduzidas no presente através das memórias, proporcionando, como nos disse Vieira, “ver a infância com os olhos e clareza do adulto que sou”. Foram inúmeras as vezes que nos surpreendemos com as riquezas de detalhes dos rela-tos, e mais surpreendente foi perceber que é possível encontramos pessoas crentes de que a infância não precisa ser superada, ainda que nós desenvolvamos em capacidades, como podemos perceber no rela-to abaixo:

A cada instante vivencio momentos parecidos com os que vivi na infância, como a primeira pa-

8 Usamos os sobrenomes para nos referirmos aos alunos e garantir-lhes o anonima-

to.

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lavra que consegui ler, e o meu primeiro emprego. Tudo que sou hoje é o reflexo da infância que passei porque de alguma forma a minha infância contribuiu para o que eu sou hoje. (DUARTE)

Isso nos faz lembra o pensamento de Izquierdo (1999), ao afirmar que somos quem somos porque somos capazes de nos lem-brar. Para ele é exatamente a memória que estabelece nossa individua-lidade e identidade. Se a memória infere diretamente no que somos, as memórias acerca da forma de ensinar e de se viver na escola também influenciam na maneira de viver a docência.

Em um dos memoriais encontramos: “Sou o reflexo de um en-sino tradicional, pois não podia expressar o que pensava e muito me-nos o que sentia” (ARAGÃO). A tomada de consciência da forma de ensino a que se esteve submetido é o primeiro passo para a não repro-dução deste mesmo modelo. Mas o resgate das memórias também nos traz exemplos a serem imitados, como o relatado por Costa, ao lem-brar-se de sua professora: “Carinhosa, ela era daquelas professoras que a gente reza pra chegar a hora da aula; foi com ela que fiz minhas sé-ries inicias.” Também Vieira relata suas lembranças a respeito de uma professora, dizendo:

Quando estava estudando no jardim gostei tanto de minha professora e de estudar no jardim, tinha uns seis anos, e quando foi para mudar de série não quis ir para outra série e continuei a estudar o mesmo ano e com a mesma professora, e minhas colegas foram para outra série e eu repeti porque eu quis.

As pessoas e as situações vividas com elas acabam sendo refe-

rencia para nossas ações. Boas e ruins, a experiências participam dire-tamente da nossa forma de encarar o mundo e agir. Mas essas experi-ências, ao serem revividas através das memórias, são ressignificadas e podem tomar novas dimensões. Brandão (2005) vai nos dizer que

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o passado, ou a tradição, elaborado e apresentado pela memória, é naturalmente incorporado à construção de sentido, na medida em que nos in-teressamos pela trajetória de vida e trabalho, com suas marcas individuais mescladas às histórico-culturais, vividas num tempo e espaço determina-dos, mas confrontada com o presente (da qual já faria parte como recomposição) e sempre em processo de ressignificação. (p. 9)

E é o engajamento neste tempo e espaço determinados que influenciam as formas como nos vemos hoje, possibilitando-nos maior facilidade ou não para mudanças. Um dos memoriais trouxe-nos uma informação que demonstra a consciência dos alunos enquanto seres históricos:

Pude concluir que o que sou hoje é parte daquilo que fui no passado e formam essas vivências que transformaram meu jeito de ser, de viver, de agir e de pensar. A partir daí, sinto-me na responsabili-dade de tentar transmitir para meus sucessores (minha filha) os valores aprendidos com aqueles que fizeram parte da minha história, como meus pais, meus avós, e até minha irmã mais velha. Compromisso não menos importante eu tenho com as crianças que hoje fazem parte do meu tra-balho [...]. Com isso, posso concluir que a história de nossa vida é um processo constante e deve ser construídos a cada dia através das experiências, vivências, amores, decepções e aprendizados. (CRUZ)

À medida que trazemos à tona as memórias, inevitavelmente buscamos novos significados para ela, e mesmo que pareça que ocorre uma mera reprodução do que aprendemos com os mais velhos, ainda que haja esta possibilidade, sempre haverá a necessidade de encontrar

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respostas e lugares novos para os sentimentos revividos. Sobre isso, Brandão (2005) vai nos dizer que:

A busca do sentido pode ser vista também no (re) conhecimento da trajetória em processo (porque articula passado – presente – futuro), pois o indi-víduo nela busca o que já foi, ainda sendo, e o que não sabe o que será. Como um movimento pulsá-

til de contração para dentro (busca refletida) e

descompressão para fora (ação refletida). (p. 14)

As memórias permitiram aos alunos se reencontrar também com os seus sonhos, senti-los de novo, renovar as esperanças:

Passei por várias situações difíceis na minha in-fância, mas as lembranças felizes são as que mar-caram até hoje. Fui feliz de ouvir o canto dos pás-saros, o ronco das águas, por correr no campo, viver os sonhos de que poderia mudar o mun-do, subir nas árvores cantando, caía, subia nova-mente e sorria, chorava e sempre fui feliz. (FER-REIRA, grifo nosso).

Foi comum encontrarmos os alunos dizendo coisas como “es-tas lembranças irão ficar para sempre, é um tempo que não volta, mas que nunca serão esquecidas” (BASTO), mas também pudemos consta-tar que a frase “é certo que muito de minha história ainda está para ser contada” (AVELINO), ainda que não tenha sido expressa desta forma por todos, hora ou outra também se fez presente nas entrelinhas dos relatos, desencadeando um processo de compromisso com o que viria a ser a partir de então na relação com as crianças com quem trabalha-vam ao ponto de registrarem:

Concluindo meu memorial, tenho a dizer que foi uma experiência muito agradável e de grande im-portância para a minha vida e que relembrar os fa-

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tos da infância, foi para mim maravilhoso e muito proveitoso. Hoje, tenho vinte e nove anos, sou ca-sada à onze anos, tenho dois filhos maravilhosos e procuro, na medida do possível, fazer a infância de meus filhos tão boa como a minha foi. (VIEI-RA)

Embora a criança mencionada no relato tenha sido seus filhos, o que nos importa perceber é a mudança na forma de conceber a in-fância que acabara por atingir todas as crianças que entrarem em con-tato com o adulto. Vieira tivera uma infância sofrida, seus pais não tinham condições de lhe dar bonecas para brincar, por muitas vezes registrou sofrimentos e angustias, mas suas lembranças lhe dizem que, apesar de tudo, ela fora feliz.

A memória poderia ser um “antídoto” contra o que Balandier chama de desencantamento da exis-tência. Nos momentos de crise, quando tudo pa-rece perdido, sem sentido e incerto, recorremos à memória e, através dela, ao imaginário da cultura para (re)compormos os horizontes. Ela teria tam-bém uma função libertadora e criadora, pois, co-mo diz Bergson, graças a ela a consciência retém cada vez melhor o passado para organizá-lo com o presente em uma decisão mais rica e mais nova. (BRANDÃO, 2005, p. 15, 16).

A trajetória de vida não pode ser considerada apenas como algo passado porque de várias formas ela retorna ao presente, seja influenciando nossas escolhas, seja pautando nossas relações com o mundo, mantendo ou modificando a realidade que modifica as pró-prias experiências passadas, que não são fixas e podem ser ressignifi-cadas. O que se percebe é que, ao retornarmos às memórias, reinven-tamos nossa própria história porque este retorno possibilita uma nova leitura dos fatos vividos, como foi percebido nos relatos dos alunos, pessoas como tantas outras que, ao serem confrontadas com o vivido, situam-se no presente identificando-se em meio a tantos, construindo

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respostas para o hoje e projetando-se para o futuro através do repen-sar das experiências passadas e presentes que logo viram passadas, fazendo do futuro, enquanto possibilidade, algo que pode ser constru-ído a partir da ressignificação do presente. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora a experiência dos memoriais tenha sido realizada co-mo atividade da disciplina de História Social da Criança, sua execução, como já era imaginado, vai além de uma mera ação avaliativa; ela serve para repensar a própria existência e, confrontando com as diversas visões de infância, poder analisar que influências interferem na ação docente e que outras formas de se relacionar com o seu entorno, so-bretudo com as crianças, podem ser assumidas a partir de então. A análise das memórias dos alunos nos permitiu perceber a importância de se discutir o fato de que as posturas profissionais não são neutras e são construídas a partir de paradigmas aprendidos e as-sumidos como verdadeiros, sobretudo no que se refere à visão de in-fância e a forma como esta visão determina a maneiro como o adulto (professor) se vê e se permite existir na presença da criança (aluno). Através do resgate das memórias foi possível que os alunos ao menos cogitassem a possibilidade de se fazerem crianças com as crianças ao ressaborearem, nas memórias, as delícias de suas infâncias, mesmo em meio a dissabores também reexperimentados. Ser criança com as crianças se constitui um pressuposto fun-damental para aqueles que desejam ser professores e ajudar as crianças a se desenvolverem como pessoas. É no reencontro com a infância que o professor, enquanto adulto, pode melhor compreender o pen-samento, os sentimentos e a maneira como a criança percebe o mundo que a cerca, podendo assim redimensionar sua ação docente de forma coerente e significativa, respeitando o ritmo do aluno e contribuindo para que este se desenvolva cognitivamente e socialmente, agora com o auxilio do “professor criança” que não mais o encara como alguém incompleto, ou que precisa ser adulto o mais rápido possível para que seja considerado em suas vontades e saberes.

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THE REUNION WITH CHILDHOOD MEMORIES AND

THE IMPORTANCE OF THE EXISTENCE AND THE REDEFINITION OF TEACHING PRACTICES IN EARLY

CHILDHOOD EDUCATION

ABSTRACT The perspective here approached comes from the idea that all educational practice carries itself brands of several influences suffered by the historical context of different eras. What we are, suffer influences of culture and society and these influences, many times, come from very ancient eras. This project deals of analyses in the childhood memorials built in the subject of social history of the child, that was taught in the closs of the first degree PARFOR in state University Valley of Acaraú since these were built in order to provide students with a reunion with the childhood and the resignification of their presence faced with the children and teachers actions developed by the some. For this we base our ideas in the thoughts of Aguiar (2007), Ariès (1981), Bock (2007), Brandão (2005), Fleury (2004), Freire (1996), (1998) and (2005), Gonçalves (2007) , Tunis (2005) and Vygotsky (1998). The study allowed us an aproximation of the memories of students and the how these they favor to the possibility of making children with children to re-savor the delights of their childhood, even in the midst of troubles also re-experienced through the memories. Keywords: Childhood. Memories. Reframing. Action Teaching.

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