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PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar
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7/23/2019 PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar
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.,
M i c h e l P e c h e u x,
o D I S C U R S O
Dados Intemactonats de Catalogacno na Pubucucao (eIr)
(Camara 8rasilcira do Livre, sr, Brasil)
CDO-410
E S TR U T U R A
O U A C O N T E C IM E N T O
Pecheux, Michel. P}]S-I')I'C
o discurso : csmuuru au acontccimento i Michel Pccheux;
traducao: Eni P. Orlandi - 5 ~ Ediyall, Campinas, ST'
Pontes Editorcs. 20m!.
Bibliografia.
ISBN 978- 85-7113-04]-2
1. /\n,iJisc do discursn 2. r .ingiiislica 3. Scrnanrica
I. Titulo
Tradw; i i o : En i Pucc ine l l i O r l and i')()-J fBI
Indi c lO ' panl l'ahilugo s i s t emat i co:
I.Analise do discurso: Lingublica 410
~. An~ilisc estrutural Lingtilsrica 41 ()
Analise semantica : Lmgllistica 410
4. Discurso: Analise : Linguistica 410 P o n t e s2008
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Marx a prop6sito da interpretacao de sua obra; e ainda
identificar-se ao gesto de Marx, no que ele tinba de mais
autoprotetor.
(
Vamos parar de proteger Marx e de nos proteger
nele. Vamos parar de supor que" as coisas-a-saber" que
concemem 0 real s6cio-hist6rico formam urn sistema
estrutural, analogo a coerencia conceptual-experimental
galileana 23. E procuremos medir 0 que este fantasma
sistemico implica, 0 tipo de ligac;ao face aos "especia-
listas" de todas as especies e instituic;5es e aparelhos
de Estado que os empregam, nao para se colocar a si
mesmo fora do jogo ou fora do Estado(!), mas para
tentar pensar os problemas fora da negacao marxista
da interpretacao: isto e , encarando 0 f at o d e qu e a
hist6ria e uma disciplina de interpretacao e nao uma
fisica de tipo novo.
4342
It
Ill. LER, DESCREVER, INTERPRET AR
l l IK- ' " ' : " e n ~ ~ " " ~ L';:;,- r'
~ )-~ c-) I 4;.__ ' : '1 l < - ~
~;j:. -; ·~.·r .,.....-'
.; -t, Interrogar-se sobre a existencia de urn real proprioas disciplinas de interpretacao exige que 0 nao-logica-
'-;nente-estavel nao seja considerado a pr ior i como urn
defeito, urn simples furo no real.
E supor que - entendendo-se 0 "real" em varies
sentidos - possa existir urn outro tipo de real diferente
dos que acabam de ser evocados, e tambem urn outro
tipo de saber, que nao se reduz it ordem das "coisas-
a-saber" ou a urn tecido de tais coisas. Logo: urn real
r constitutivamente estranho a univocidade logica, e urn
; ' I saber que nao Be transmite, na D se aprende, na o se en-I .
, sina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos., .
o movimento intelectual que recebeu 0 nome de
"estruturalismo" (tal como se desenvolveu particular-
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mente na Franca dos anos 60, em torno da lingiiistica,
da antropologia, da filosofia, da politica e da psicana-
lise) pode ser considerado, desse ponto de vista, como
uma ~ent"tiya anti-positivista visando a levar em conta
este tipo de real, sobre 0
qual 0
pensamento vern dar,no entrecruzamento da linguagem e da hist6ria. -
Novas praticas de leitura (sintomaticas, arqueologi-
cas, etc ... ) aplicadas aos monumentos textuais, e de
inieio aos Grandes Textos (cf. Ler 0 Capital), surgiram
desse movimento: 0 prindpio dessas leituras consiste,
como se sabe, em muftiplicar as relacoes entre 0 que edito aqui (em tal lugar), e dito assim e nao de outre
jeito, com 0que e dito em outro lugar e de outro modo,
a fim de se colocar em posicao de "entender" a pre-
senca de nao-ditos no interior do que e dito, .
Colocando que "todo fato jli e uma interpretacao"
(referencia antipositivista a Nietzsche), as abordagens
estruturalistas tomavam 0partido de descrever os arran-
jos textuais discursivos na sua intrincacao material e,
paradoxalmente, colocavam assim em suspenso a produ-
< ;8 0 de interpretacoes (de representac;iies de conteiidos,
Vorstellungen) em proveito de uma pura descricao
(Darstellung) desses arranjos. As abordagens estrutura-
listas manifestavam assim sua recusa de se constituir
em "ciencia regia" da estrutura do real. No entanto,
veremos daqui a pouco como elas puderam ceder por
s ua v ez a es te fantasma e acabar por aparentar urnanova IIciencia regia" ...
Mas e preciso antes sublinhar que em nome de
Marx, de Freud, e de Saussure, uma base teorica nova,
44
politicamente muito heterogenea, tomava forma e de-
sembocava em uma construcao critics que abalava as
evidencias literarias da autenticidade do II vivido", assim
como as certezas "cientificas" do funcionalismo positi-
vista. Lembro como, no inlcio de Ler 0
Capital, AI.thusser marca 0 encontro desses tres campos:
"Foi a partir de Freud que comecamos a suspeitar
do que escutar, logo do que falar (e calar) quer dizer:
que este "quer dizer" do falar e do escutar descobre,
sob a inocencia da fala e da escuta, a profundeza deter-
. minada de urn fundo duplo, 0 "quer dizer" do discurso
: 1 ' do inconseiente - este fundo duplo do qual a lingiiis-
I I tic. moderna, nos mecanismos da linguagem, pensa os
lefeitos e condicoes formals" (p. 14-15).
o efeito subversivo da trilogia Marx-Freud-Saus-sure foi urn desafio intelectual engajando a promessa
de uma revolucao cultural, que coloca em causa as evi-
dencias da ordem humana como estritamente blo-social.
Restituir algo do trabalho especffico da letra, do
simbolo, do vestigio, era comecar a abrir uma falha no
bloco compacto das pedagogias, das tecnologias (indus-
triais e bio-medicas), dos humanismos moralizantes ou
religiosos: era colocar em questao essa articulacao dual
do biologico com 0 social (excluindo 0 simb6lico e 0
significante). Era urn ataque dando urn golpe no narci-sismo (individual e coletivo) da consciencia human. (cf.
Spinoza e seu tempo), urn ataque contra a eterna nego-
cia~iio de "si" (como mestre/escravo de seus gestos,
palavras e pensamentos) em sua rela~iio com 0 outro-si.
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I, I,."
.'.",.,! .:.. itJi-,: p _ , _ , : ' ~ , ( , ~ : . " , , : .
• . ,! -~.\
Seja 0 enunciado empirico PI (por exemplo: "0
rosto do socialismo existente est" desfigurado ")
Em uma palavra: a revolucao cultural estruturalista
nao deixou de fazer pesar uma suspeita absolutamente
explicita sobre 0 registro do psicologico (e sobre as psi-
cologias do 1/ ego", da "consclencia", do "comporta-
mente" ou do "sujeito episternico "). Esta suspeita nso
e, pois, engendrada pelo odio a humanidade que fre-
qiientemente se emprestou ao estruturalismo; eIa traduz
o reconhecimento de urn fato estrutural proprio a ordemhumana: 0da castracao simbolica.
. . . . . ,
PI niio significa de fato outra coisa que. _.
46
o paradoxo desse inicio dos anos 80, e que 0
deslizamento do estruturalismo politico frances, seu des-
moronamento enquanto • ciencia regia" (que no entanto
continua a produzir efeitos notadamente no espaco la-
tino-americano) coincide com urn crescimento da recep-
~ao dos trabalhos de Lacan, Barthes, Derrida e Fou-
cault no dominio anglo-saxao, tanto na Inglaterra quanto
na Alemanha, assim como nos EUA. Assim, por urn
estranho efeito de oscilacao, no 'memento preciso em
que a America descobre 0 estruturalismo, a intelectua-
lidade francesa IIvita a pagina", desenvolvendo urn res-
. . . e 0 mesmo em termos te6ricos que dizer
que ...
dito de outro modo ...
.- "" .Mas ao mesmo tempo, esse movimento anti-nar-
cisico (cujos efeitos politicos e culturais nao estao, vi-
sivelmente, esgotados) balancava em uma nova forma
de narcisismo teorico, Digarnos: em urn narcisismo da
estrutura.
. : . \ ' •quer dizer ...
!
I
o enunciado teorico P2 (por exemplo "a ideo-
logia burguesa domina a teoria marxista").
E antes de tudo esta posicao de desvio te6rico,
seus ares de discurso sem sujeito, simulando os proces-
sos matematicos, que conferiu as abordagens estruturais
esta aparencia de nova II
ciencia regia", negando comode habito sua pr6pria ..E.'s~~~()_~e interpretacao,
Esse narcisismo te6rico se marea, na incllnacao es-
truturalista, pela reinscricao de suas "leituras" no espaco
unificado de urna I6gica conceptual. A suspensao da
interpretacao (associada aos gestos descritivos da lei-tura das montagens textuais) oscila assim em uma espe-
cie de sobre-interpretacao estrutural da montagem como
efeito de conjunto: esta sobre-interpretacao faz valer 0
"te6rico" como uma especie de meta1ingua, organizada
ao modo de urna rede de paradigmas. A sobre-interpre-
ta~iio estruturalista funciona a partir de entao como
urn dispositivo de traducao, transpondo "enunciados em-
piricos vulgares" em "enunclados estruturais concep-
tuais"; esse funcionamento das analises estruturais (e
em particular do que poderiamos chamar 0materialismo
estrutural ou 0 estruturalismo politico) permanece assim
secretamente regido pelo modele geral da equivalencia
interpretativa. Para esquematizar:
.~
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,.
sentimento macico face a teorias, suspeitas de terem
pretendido falar em nome das massas, produzindo urna
longa serie de gestos simb6licos ineficazes e performa-
tivos politicos infelizes.
C i > Esse ressentimento e urn efeito de massa, vindo
"de baixo": uma especie de contra-golpe ideol6gico que
Iorca a refletir, e que nao poderia ser confundido com
o covarde alivio de numerosos intelectuais franceses
que reagem descobrindo, afinal, que a "Teoria" os ha-
via "intirnidado"!
A grande Iorca dessa revisao critica, e colocar im-
piedosamente em causa as alturas te6ricas no nfvel das
quais 0 estruturalismo politico tinha pretendido cons-
truir sua relacao com 0 Estado (eventualmente sua iden-
tificacao ao Estado - e especialrnente com 0 Partido-Estado da revolucao), Este cheque em retorno, obriga
os olhares a se voltarem para 0 que se passa realmente
"em baixo", nos espacos infraestatais que constituem 0
ordinaria das massas, especialmente em periodo de crise.
Em historia, em sociologia e mesmo nos estudos
literarios, aparece cada vez mais explicitamente a preo-
cupacao de se colocar em posicao de entender esse
discurso, a maior parte das vezes silencioso, da urgencia
as voltas com os mecanismos da sobrevivencia; trata-se,
para alem da leitura dos Grandes Textos (da Ciencia,do Direito, do Estado), de se por na escuta das circula-
90eS cotidianas, tomadas no ordinario do sentido (cf.,
por exemplo, De Certeau, A Invenfiio do Cotidiano,
1980).
48
Simultaneamente, 0 risco que comporta esse mes-
mo movimento e bastante evidente: e 0 que consiste
em seguir a linha de maior inclinacao ideologica e se
conceber esse registro do ordinario do sentido como urn
fato de natureza psico-biologica, inscrito em uma dis-cursividade logicamente estabilizada. Logo, 0 risco de
urn retorno fantastico para os positivismos e filosofias
da consciencia,
Uma reuniao como esta poderia ser a ocasiao para
desmanchar alguns desses riscos, situando os modos e
os pontos de encontro maiores. De meu lado, (mas
exprimo af urn ponto de vista que nao me e pessoaI:
e uma posicao de trabalho que se desenvolve na Franca
atualmente 24) eu sublinharia 0 extreme interesse de
uma aproximacao, te6rica e de procedimentos, entreas praticas da "analise da Hnguagem ordinaria" (na
perspectiva anti-positivista que se pode tirar da obra
de Wittgenstein) e as praticas de "leitura" de arranjos
discursivo-textuais (oriundas de abordagens estruturais),
Encarada seriamente (isto t o , de outro modo que
apenas uma simples "troca cultural") essa aproximacao
engaja concretamente maneiras de trabalhar sobre as
materialidades discursivas, implicadas em rituais ideo-
16gicos, nos discursos filos6ficos, em enunciados poli-
ticos, nas formas culturais e esteticas, atraves de suas
relacoes com 0 cotidiano, com 0 ordinario do sentido.Esse projeto s6 pode tomar consistencia se ele perma-
necer prudentemente distanciado de qualquer ciencia
regia presente ou futura (que se trate de positivismos
ou de ontologias marxistas).
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Esta maneira de trabalhar impoe urn certo mimero
de exigencias que e preciso explicitar em detaibe, e
que nao posso evocar aqui senao rapidamente, para
acabar:
I. A primeira exigencia consiste em dar 0primado
aos gestos de descricao das materialidades discursivas.
Uma descricao, nesta perspectiva, nao " uma apreensao
fenomenologica ou hermeneutica na qual descrever se
torna indiscernfvel de interpretar: esse concepcao da
descricao supoe ao contrario 0 reconhecimento de urn
real especffico sobre 0 qual ela se instala: 0 real da
Iingua (cf. J. Milner, especialmente em L'Amour de la
Langue). Eu disse bern: a lingua. Isto e , nem linguagem,
nem fala, nem discurso, nem texto, nem interacao con-
versacional, mas aquilo que e colocado pelos lingi.iistas
como a condicao de exlstencia (de principio), sob a for-
ma da existencia do simbolico, no sentido de J akobson
e de Lacan.
Certas tendencias recentes da lingiiistica sao bas-
tante encorajadoras desse ponto de vista. Aparecem
tentativas, alem do distribucionalismo harrisiano e do
gerativismo chomskiano para recolocar em causa 0 pri-
mado da proposicao 16gica e os limites impostos It ana-
lise como analise da sentenca (frase). A pesquisa lin-
gi.iistica comecaria assim a se descolar da obsessao da
ambigiiidade (entendida como 16gica do "ou ... ou")para abordar 0 proprio da lingua atraves do papel do
equivoco, da elipse, da falta, etc. .. Esse jogo de di-
Ierencas, alteracoes, contradicoes nao pode ser conce-
50
bido como 0 amolecimento de urn ruicleo duro 16gico:
a equivocidade, a "heterogeneidade constitutive" (A
expressao e de J . Authier) da lingua corresponde a esses
"artigos de Ie" enunciados por J. Milner em "A Roman
Iakobson ou Ie Bonheur par la Symetrie" (in Ordre et
Raisons de Langue. Seuil, Paris, 1982, p. 336):
" nada da poesia e estranho it lingua
nenhuma lingua pode ser pensada completa-
mente, se af nao se integra a possibilidade de sua
poesia" .
Isto obriga a pesquisa lingiiistica • se construir
procedimentos (modos de interrogacao de dados e for-
mas de raciodnio) capazes de abordar explicitamente
o fato linguistico do equivoco como fato estrutural im-
plicado pela ordem do simbolico. Isto e, a necessidadede trabalhar no ponto em que cessa a consistencia da
representacao logica inscrita no espaco dos "mundos
normais". E tambem 0 argumento que desenvolvemos,
F. Gadet e eu, no texto La Langue Introuvable (Mas-
pero, Paris, 1981).
o objeto da linguistica (0propria da lingua) apa-
rece assim atravessado por urna divisao discursiva entre
dois espacos: 0 da manipulacao de significacoes estabi-
lizadas, normatizadas por uma higiene pedagdgica do
pensamento, e 0 de tran5forma~5es--do--s(mtido,--esca-
pando·"tq~alquer norma estabelecida a priori, de urn
trabalho do sentido sobre 0 sentido, tornados no relan-
car indefinido das interpretacoes,
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. . . . " .
Esta i't'OP[I ..iru entre us dois e spac os c t anto mai s
dift\:=il de determinar TlH rnc di da e m que e xi st e t oda
uma ~'11~ illTe't'!pi~a~-_Je__pi 'Q_~e~,i~9.~_-_41~c~!'-§lYQ}(deri-
cando do -j~~rtdico,do administrative e das convencoes
da vida cotidiana) que oscilarn em torno dela. hi ncsta
rcgiao discursiva intermediaria, as propriedades 16gicas
dos objeros deixam de funcionar: as objetos tern c nao
[em esra ou aquela propriedade , os acontecimcntos terne nao tern lugar. segundo as construcoes discursivas
nas quais se encontram inscritos os enunciados que sus-
tenram esses objetos e acontccimcntos 2;'.
Estc ceratcr oscilante e paradoxal do registro do
ordinaria do scntido parece tel' escapado completamente
a intuicao do movirnento estruturalista: este nfvel fai
objeto de urna avers1io teorica, que 0 fechou totalmente
no inferno da ideologia dorninante e do empirismo pra-
rico, considerados como ponto-cego, lugar de pura re-
producao do senti do ,G .
De passagem, os estruturalistas acreditavam assim
na i de ia de que 0 processo de transforrnacao interior
aos espacos do simb6lico e do ideol6gico t o urn processo
EXCEPCIONAL: 0 momenta heroico solitario do teo-
rico e do poetico (Marx/Mallarme), como trabalho ex-
traordinario do significante.
Esta concepcao aristocratica, se atribuindo de facto
o monopolio do segundo espaco (0 das discursividades
nao-estabilizadas logicamente) permanecia presa, mesmo
atraves de sua inversao Ifproletaria ", a velha certeza
elitista que pretende que as classes dominadas nito in-
ventam jarnais nada, porque elas estao muita absorvidas
pelas logicas do cotidiano: no limite, as prolctarios, as
massas. 0 povo ... teriarn tal necessidade vital de uni-
versos logicamente estabilizados que os jogos de ordem
simb6lica njio as concerniriam! Neste ponto precise. a
posicao te6rico poetica do movimento estruturalista einsuportavel 27. Par nao ter discernido em que 0 humor
e 0 trace poetico nao sao 0 "domingo do pcnsamento",
mas pertencem aos meios fundamentais de que dispoe
a inteligencia politica e te6rica, cia tinha cedido, ante-
cipadamente, diante do argumento populist a de urgen-
cia, ja que ela partilhava com ele implicitamentc 0
pressuposto essencial: os proletarios nao tern (0 tempo
de se pagar urn luxe de) urn inconsciente:
2 . A co ns eq uen ci a d o q ue p rece de ~ qu e t od a
descric ao - que r se trat e da descric ao de obj et os ou
de acontecimentos ou de urn arranjo discursive-textual
nao muda nada, a partir do momenta em que nos pren-
demos firmemente 80 fato de que "nfio ha: metalingua-
gem II - esta intrinsecarnente exposta ao equivoco da
lingua: todo enunciado e intrinsecamente suscetlvel de '\
tomar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar diS-!
cursivamente de seu sentido para derivar para um outro
(a nao ser que a proibicao da interpretacao propria ao
logicamente estavel se exerca sobre ele explicitamente).
Todo enunciado, toda sequencia de enunciados e , pais, (
linguisticamente descritivel como uma serie (lexico-sin- \
taticamente dcterrninada) de pontes de deriva possiveis,
oferecendo lugar a interpretacao, E nesse espaco que
pretende trabalhar a analise de discurso. ~ I
" I I II
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discurso relatado ... ) 0 discurso-outro como espaco vir-
tual de leitura desse enunciado ou dessa sequencia.E e neste ponte que se encontra a questao das dis-
ciplinas de interpretacao: e porque ha 0 outro nas socie·
dades e na historia, correspondente a esse Dutro proprio
ao linguajeiro discursivo, que ai pode haver ligacao,
identificacao ou transferencia, isto e, existencia de uma
relacao abrindo a possibilidade de interpretar. E e POT'
que ha essa ligacao que as filiacoes hist6ricas podem-se
organizer em memories, e as relacoes socials em redes
de significantes.
Esse discurso-outro, enquanto presenca virtual na
materialidade descritivel da sequencia, marca, do inte-
rior desta materialidade, a insistencia do outre como
lei do espaco social e da mem6ria hist6rica, logo como
o proprio princfpio do real s6cio-hist6rico. E e nisto
que se justifica 0 termo de disciplina de interpretacao,
empregado aqui a proposito das disciplinas que traba-
Iham neste registro. " ,« ~ ~ (,~.. ; ..,' .• "F '\ ~ . " " v. ,:i.t", . c -, -"'r',. ..
';' ,. - " "! .-
o ponto crucial e que, nos espacos transferenciais
da identiflcacao, constituindo uma pluralidade contra-
dltoria de filiac;6es hist6ricas (atraves das palavras, das
imagens, das narrativas, dos discursos, dos textos,etc ... ), as Ifcoisas-a-saber" coexistem assim com obje-
los a prop6sito dos quais ninguem pode estar seguro
de "saber do que se fala", porque esses objetos estao
inscritos em uma filia9ao e nao sao 0produto de urna
aprendizagem: isto acontece tanto nos segredos da es-
fera familiar "privada" quanto no nfvel "publico" das
instituic;6es e dos aparelhos de Estado. .9 fantasma da
ciencia regia e justamente 0que vern, em todos os
IiIveis, negar esse equivoco,- dando itiIU~~!l!E!:_e
s£_pede saber da...<jU<>~ala,. j~to ii, se me compreen-
~. b~~_gando Q..alQ .de intl:r!ttll!a~iio.1\Q..l1fl)prio
~e~!1l_q1J.e. .ele~,!!e.I:I:.
De onde 0 fato que IIas coisas-a-saber" que ques-
tionarnos mats acima nfio sao jamais visiveis em desvio,
como transccndentais historicos all epistemes no sentido
de Foucault. mas sempre tomadas em redes de memoria
) dando lugar a filiacoes identificadoras e nao a aprcn-
dizagens por interacao: a rransferencia nao e uma "in-
I teracao", e as Iiliacoes hist6ricas nas quais se inscre-
\~'em as individuos nao sao "rnaquinas de aprender". .~ Desse ponto de vista, 0 problema principal e de- 'r
terminal' nas praticas de analise de discurso o lugar e
o momento da interpretacao, em relacao aos da descri- <:
faa: dizcr que nao se trata de duas lases sucessivas, rmas de uma alternancia all de urn batimento, DaD im-
plica que a descricao e a interpretacao sejam conde- ,;J
nadas a se entremisturar no indiscemivel. -, ,(
Por Dutro lado, dizer que toda descricao abre sobre
a interprctacao nao c necessariamente supor que ela
abre sobre "nao importa 0
que II:
a descricao de urnenunciado au de uma sequencia coloca necessariamente
em jogo (atraves da deteccao de lugares vazios, de clip-
ses, de ncgacoes c interrogac;6es, rmiltiplas formas de
3. Elte ponto desemboca sobre a questao final da
dlscurslvldade como estrutura ou como acontecimento.
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A partir do que precede, diremos que 0 gesto que
consiste em inscrever tal discurso dado em tal serie, a
incorpora-lo a urn "corpus", corre sempre 0 risco de
absorver ° acontecimento desse discurso na estrutura da
serie na medida em que esta tende a funcionar como
transcendental historico, grade de leitura ou mem6ria
antecipadora do discurso em questiio. A noc;iio de "for-mayao discursiva" emprestada a Foucault pela analise
de discurso derivou muitas vezes para a ideia de uma
maquina discursiva de assujeitamento dotada de uma
estrutura semi6tica interna e por isso mesmo voltada
a repeticao: no limite, esta concepcao estrutural da
discursividade desembocaria em urn apagamento do
acontecimento, atraves de sua absorcao em uma sobre-
interpretacao antecipadora.
Nao se trata de pretender aqui que todo discurso
seria como urn aer6lito miraculoso, independente das
redes de mem6ria e dos trajetos sociais nos quais ele
irrompe, mas de sublinhar que, s6 por sua existencia,
todo discurso marca a possibilidade de uma desestru-
turacao-reestruturaeac dessas redes e trajetos: todo dis-
curso e 0 Indice potencial de urna agitac;iio nas filia-
goes s6cio-hist6ricas de identificacao, na medida em
que ele constitui ao mesmo tempo urn efeito dessas
filiacoes e urn trabalho (mais ou menos consciente, de-
liberado, construido ou niio, mas de todo modo atra-
vessado pelas determinaeoes inconscientes) de desloca-
mento no seu espaco: nao ha identificayiio plenamente
bern sucedida, isto e , ligagao s6cio-hist6rica que nao
seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma
"infelicidade" no sentido performativo do termo -
56
isto e~ no caso, por urn "erro de pessoa", isto e, sobre
o Dutro, objeto da identificacao.
E mesmo talvez uma das raz5es que fazem que
exista algo como sociedades e hist6ria, e nao apenas
uma justaposigiio ca6tica (ou uma integracao supra-or.
ganica perfeita) de animals humanos em interacao ...
A pOSiy80de trabalho que aqui evoco em refersn-
cia a analise de discurso niio supoe de forma alguma
a possibilidade de algum cruculo dos deslocamentos de
filia~iio e das condicoes de felicidade au de infelicidade
evenemenciais. Ela sup5e somente que, atraves das des-
cricoes regulares de montagens discursivas, se possa
detectar os momentos de interpretay6es enquanto atos
que surgem como tomadas de posi~iio, reconbecidas
como tais, isto e , como efeltos de identificacao assumi-dos e nao negados,
Face as interpret.<;:5es sem margens nBS quais 0
interprete se coloca como urn ponto absoluto, sem outro
nem real, trata-se af, para mim, de uma questao de
etica e politica: uma questao de responsabilidade.
57