PÉ NO PALCO · Apropriamos-nos do sistema de Jogos ... construção do processo e não como algo...
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PÉ NO PALCO
PROJETO INTERDISCIPLINAR DO ENSINO FUNDAMENTAL II DO COLÉGIO
NACIONAL – UBERLÂNDIA
Getúlio Góis de Araújo
getulio_araujo @nacionalnet.com.br
Colégio Nacional – Ensino Fundamental II
Relato de Experiência
O teatro, enquanto arte efêmera, só se concretiza no ato da representação, no qual
todo um instrumental estudado, selecionado e organizado é testado, no contato com o público
e pela presença física do ator no espaço/tempo real e ficcional que constitui o espetáculo.
Cada experiência teatral espetacular pressupõe uma linguagem. São propostas com temas e
preocupações estilísticas que são fruídas por um público.
Acreditamos que é no modo como se dá a introdução à linguagem teatral que se
estrutura no aprendiz o pensamento autônomo e criativo sobre a arte. Como professor de
Artes licenciado em Teatro, relato a experiência de introduzir experimentações do fazer teatral
no ensino fundamental II do Colégio Nacional de Uberlândia. Por meio de um projeto
interdisciplinar (Artes, Geografia e História), intitulado Pé no Palco, os alunos, depois de
passarem por oficinas de improvisação teatral, escrevem e representam um roteiro, texto curto
ou esquete se apropriando de algum conteúdo das disciplinas de Geografia e História como
tema para sua construção dramática.
É de se observar os diversos níveis de envolvimento dos alunos-atores das
produções apresentadas. Em alguns trabalhos notamos a presença forte de uma incorporação
técnica que no caso nos referimos ao estilo de linguagem trabalhada que é o melodrama. Já
em outros, onde a linguagem teatral ainda não se apresenta com tanto acabamento, notamos
um significativo crescimento no que diz respeito à compreensão de trabalho de grupo, valores
éticos e responsabilidades.
O trabalho tem como objetivo pedagógico a experimentação da linguagem teatral.
Neste relato poderemos avaliar em qual medida o objetivo foi cumprido e quais serão as ações
para que o projeto possa cumprir sua função: proporcionar uma experiência artística aos
alunos de forma a estimular um pensamento de pesquisa global.
O processo articulou as seguintes experiências básicas: jogos de improvisação
teatral, jogos de improvisação melodramática e construção de roteiro dramatúrgico.
Apropriamos-nos do sistema de Jogos Teatrais proporcionando assim grande
contribuição para a iniciação cênica, já que todo aquele que se propõe fazer teatro espera
experiências práticas. Utilizamos no projeto a metodologia construída por Viola Spolin,
americana que, na década de quarenta, criou um sistema de atuação de maneira a estruturar
em segmentos técnicas teatrais complexas. Spolin defendia que qualquer indivíduo é capaz de
improvisar no teatro desde que tenha vontade de experenciar – termo que designa a vivência
de uma experimentação, sua apreensão em todos os níveis, intelectual, físico e intuitivo. Seu
sistema consiste basicamente em: foco, instruções, revezamento palco-platéia e avaliação,
sendo estes elementos vivenciados na minha formação como educador/artista/pesquisador e
reelaborados com outras possibilidades no cotidiano da prática teatral.
Por improvisação abraçamos o conceito apresentado por Sandra Chacra, em seu
livro Natureza e Sentido da Improvisação teatral, orientando assim a abordagem que
escolhemos para este trabalho.
Afirma Chacra que a forma teatral é fruto de uma parcela de espontaneidade e
criatividade que podemos chamar de improvisação. A improvisação desaparece ao final do
processo, quando se opta por retirar todas as ações inesperadas para transformá-las em
marcações e medidas dadas pelas intenções do encenador. A improvisação, neste caso, é
utilizada apenas como mote inicial para a criação.
Contudo, mesmo se optando pelo desaparecimento da forma inacabada da
improvisação, esta ainda se faz presente na obra teatral já que pela sua natureza espetacular,
manifesta-se com a presença física do ator e público em tempo/espaço real. Uma
apresentação, por mais fiel a todos os seus aspectos técnicos, sempre será diferente da outra.
Assim é possível afirmar que “a improvisação é elemento implícito do ato teatral: sempre há
um mínimo de algo novo em cada espetáculo.”. 1
Ao elaborarmos o processo de criação com os alunos/atores, abordamos a questão
da natureza momentânea da interpretação onde a improvisação foi usada como pretexto para a
criação um roteiro que de acordo com a escolha do grupo, poderia ser apenas um roteiro de
ações para improvisação, ou um texto dramatúrgico a ser utilizado em cena.
A improvisação pode ser vista como algo inerente ao fenômeno teatral, dando-se
em “relações graduais” que vão do mínimo ao máximo, não cabendo, portanto, falar-se em
improvisação ou formalização em termos absolutos.”2. Ou seja, a improvisação está presente
tanto no espetáculo formalizado, termo que Chacra utiliza para nomear o teatro tradicional
1 Chacra, 1983, p. 16
2 Chacra, Op. cit., p.111.
quanto nos espetáculos que utilizam a improvisação como processo gerador de criação, para
estabelecer uma comunicação mais direta e empática com o público.
É de se pensar que a figura do ator quase se confunde com o ato de improvisar,
visto que é pelo ator que esta se dá. Neste sentido afirma Chacra:
O ator está sempre improvisando. Não há como escapar de
uma arte cuja essência é a qualidade momentânea, a
efemeridade, o hic et nunc do teatro. Um ator nunca se
repete, mesmo que deseje, pois é impossível uma
reprodução idêntica do desempenho, dada a própria
natureza da arte dramática.3
Para que o ator possa improvisar, independente se está mais próximo ou não de
uma estrutura fixa, é necessário que esteja aberto à espontaneidade e ao jogo, à flexibilidade e
à comunicação direta com todos os elementos que o circundam. Para que essa espontaneidade
aconteça, muitos são os processos de treinamento do ator para que seus canais de percepção e
ação estejam ativos e disponíveis.
Buscamos, mesmo que superficialmente, demonstrar e fazê-los experimentar, um
estilo da linguagem teatral que estávamos experimentando enquanto ator: o melodrama. Por
meio de jogos específicos do estilo, fomentamos outras possibilidades expressivas que
levariam mais tempo a serem construídas. Aí a necessidade da técnica como auxiliar na
construção do processo e não como algo fechado em si mesmo.
Buscamos construir desde o princípio, uma relação entre o teatro e as mídias
acessíveis aos alunos, como televisão e cinema. A telenovela, rica na estrutura melodramática,
serviu de estímulo para a construção do próprio conceito de melodrama que basicamente
consiste na luta de duas forças, o Bem e o Mal, onde os vilões são grandes tiranos e os
mocinhos virtuosos são os injustiçados que lutam para vencer ao final.
Juntamente com essa discussão, os alunos acompanharam o trabalho do professor
enquanto ator no espetáculo A maldição do Vale Negro. Realizamos assim, uma trabalho de
recepção e complementação pedagógica daquilo que vínhamos realizando em sala com
imagens e apresentações de cenas com os atores do espetáculo. Assim, percebemos o quando
3Chacra. Op. cit., p. 70
a apreciação de uma obra teatral contribuiu para que os alunos pudessem compreender melhor
o estilo estudado.
Alunos improvisando uma cena de morte. A dor e a despedida
teatralizadas por meio de jogos melodramáticos.
Outra referência melodramática utilizada foi a reportagem de jornal, na expectativa
de já aproximarmos os alunos a temas mais ligados a realidade social, geográfica e histórica.
Nesta perspectiva, a improvisação pode ser vista como ferramenta de pesquisa e de ensino da
linguagem teatral, mas que no contexto escolar necessita de ferramentas técnicas específicas
para instrumentalizar os alunos/atores.
Alunos improvisando história a partir de reportagem de jornal e objetos.
Quando pensamos na utilização da improvisação como linguagem, ponderamos
em não somente utilizá-la formalizando-a, ou seja, não só empregando-a como preparação de
atores iniciantes e para criação de cenas acabadas e sim como estrutura onde seja possível ao
ator representar com seu instrumental adquirido previamente, no momento de seu contato
com a platéia, uma comunicação também mais distanciada da idéia de repetição e mais
próxima da idéia de jogo.
Quando nos referimos ao momento de estrutura, relegamos a idéia de
improvisação ao acaso, elegendo momentos dentro de um roteiro pré-estabelecido, onde os
atores possam improvisar a partir de uma idéia ou proposta, utilizando seus recursos
adquiridos numa preparação, sem, contudo abrir mão de momentos previamente
formalizados.
O jogo de improvisação, contudo, como ponto de partida de um processo, pode
ser utilizado no sentido que lhe deu Desgranges:
Os jogos de improvisação teatral, ou jogos
improvisacionais, constituem-se em exercícios teatrais em
que um ou mais jogadores-atores executam uma cena de
maneira improvisada, ou seja, sem ensaio. A cena pode
ser improvisada a partir de breve combinação estabelecida
pelos jogadores-atores, ou mesmo sem combinação
prévia, partindo-se de uma proposta dada pelo
coordenador do processo. Os demais integrantes do grupo
se colocam, geralmente, como jogadores-espectadores da
cena apresentada. O exercício continua até que todos os
integrantes do grupo apresentem as suas cenas.
Normalmente, depois da apresentação das cenas, o grupo
conversa e analisa a experiência. 4
No processo das oficinas, foram utilizados vários tipos de jogos de improvisação a
partir de alguns estímulos. Destacamos nesse processo a utilização do sistema de Jogos
Teatrais criado por Viola Spolin. Valendo-nos, contudo não necessariamente de seus jogos5,
4 Desgranges, 2006, p. 87. 5 Utilizamos jogos de Augusto Boal e outros de adaptação nossa, selecionados a partir da idéia de desenvolver nos participantes o senso de improvisação e presença cênica.
mas da aplicação da estrutura do seu sistema que a nosso ver constitui uma verdadeira
filosofia do ensino do teatro e que por sua clareza pode ser utilizada em jogos outros que não
os apontados pela autora. Esse sistema é fundamentado principalmente na relação
palco/platéia, já que o objetivo é o aprendizado da linguagem teatral, ou seja, a comunicação
com o público e não mero jogo lúdico, apesar do prazer intrínseco no ato de improvisar em
um jogo teatral.
O sistema de Viola consiste na proposição (regras do jogo, divisão do grupo em
times, preparação do espaço e do equipamento), prática (os participantes solucionam os
problemas de jogo a seu modo) e avaliação (discussão dos resultados, socialização das
experiências pessoais). Tais proposições não são fechadas e exigem a participação ativa do
aluno na elaboração do exercício.
Viola promove por meio dos jogos teatrais o aprendizado da linguagem teatral já
que estes lidam com elementos da estrutura da própria linguagem, contudo de forma orgânica,
não utilizando termos técnicos que só inibiriam os jogadores. Assim os jogos possuem
“múltiplas variações de sua estrutura dramática – ONDE(lugar e/ou ambiente), QUEM
(personagem e/ou relacionamento) e O QUE (ATIVIDADE)”6 que funcionam como
problemas a serem resolvidos.
Como se pode perceber, a espontaneidade é base da improvisação e acompanha o
ator não só no que diz respeito à atuação, mas também aos ensaios de criação, proporcionando
um clima de flexibilidade, de surpresa e de adequação. “O ator vive uma dualidade: ao mesmo
tempo que deve ser espontâneo, deve ser controlado.”7
Nossa opção por trabalhar com a criação de um esquema para improvisação é
justificada pela afirmação de Chacra:
A utilização de algum tipo de esquema como ponto de
partida para a realização cênica, em substituição à obra
dramatúrgica de cunho literário, sem dúvida abre caminho
para o florescimento da escritura de uma peça atuada, isto
é, improvisada. Quando a responsabilidade maior de tal
tarefa fica circunscrita à esfera atoral, quando não, por
6 Ibidem, p. 67. 7 Chacra. Op. cit., p. 70.
artistas com um talento excepcional de improvisação, que
se inspiram nos pretextos do momento.8
Entretanto não concordamos no emprego da palavra “talento” na afirmação de
Chacra e a colocação de que a criação da improvisação, quando a cargo do ator, fica
circunscrita à inspiração de “pretextos do momento”. A experiência criativa é complexa e
bastante desafiadora para aqueles que nela se iniciam. A improvisação é ferramenta também
de ensino da linguagem teatral, como já foi dito e a mesma experiência de aprendizado se
funde com a vivência artística, eliminando o conceito de talento, a medida que se aprofunda
no seu próprio fazer.9.
Na apresentação final dos trabalhos, muitos dos alunos não atingiram uma
qualidade cênica que demonstrassem um crescimento estético, contudo são inegáveis outros
fatores de aprendizado, como trabalho em grupo, socialização, desinibição, articulação de
discurso, produção textual, entre outros. Posteriormente, os alunos registraram por escrito a
avaliação do projeto, onde puderam colocar suas insatisfações, observações e elogios,
ajudando assim a dar continuidade no projeto, que se mostra pronto para ser incorporado a
outras disciplinas.
Alunos no dia da apresentação do projeto.
8 Ibidem, p. 63. 9 É o que Viola denomina experienciar. “Experienciar é penetrar no ambiente, é envolver-se total e organicamente com ele. Isto significa envolvimento em todos os níveis: intelectual, físico e intuitivo. Dos três, o intuitivo, que é o mais vital para a situação de aprendizagem, é negligenciado.” (Spolin, 1979, p. 3.).
BIBLIOGRAFIA
CHACRA, Sandra. Natureza e Sentido da Improvisação teatral. São Paulo: Perspectiva,
1983.
DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Editora
Hucitec: Edições Mandacaru, 2006.
FERREIRA, Sueli (org.). Ensino das artes: construindo caminhos. Campinas: Papirus,2001.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Texto e Jogo. São Paulo: Perspectiva, 1999.
_________. Jogos Teatrais São Paulo: Perspectiva, 1984.
MARTINS, Marcos Bulhões. Encenação em jogo: experimento de aprendizagem e criação do
teatro. São Paulo: Hucitec, 2004.
NACHMANOVITCH, Stephen. Ser criativo. São Paulo: Summus Editorial, 1993.
SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
_______. O jogo teatral no livro do diretor. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999.