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COLECÇÃO GENTE INDEPENDENTE 11 Hermann Hesse (Calw, Alemanha, 1877 — Montagnola, Suíça, 1962), escritor de origem alemã, foi galardoado com o Prémio Nobel de Literatura e o Prémio Goethe, ambos em 1946. Filho de missionários protestantes, cedo se apercebeu de que uma educação pietista não se enquadrava na sua visão do mundo. Em 1923, após um período de relações turbulentas com a Alemanha no seguimento da sua apologia a valores pacifistas por altura da I Guerra Mundial, e em desacordo com o nacionalismo exacerbado que se vivia no país, adquiriu nacionalidade suíça. Influenciado por Platão, Espinoza, Schopenhauer, Nietzsche e Carl Jung, recebeu igualmente forte influência de filosofias orientais, particularmente da Índia e da China. As suas obras podem ser consideradas como autobiografias espirituais, retratando a procura individual pelo autoconhecimento, a autenticidade e a espiritualidade. Entre algumas das suas principais obras contam- -se Demian (1919), Siddhartha (1922), O Lobo das Estepes (1927), Viagem ao País da Manhã (1932) e O Jogo das Contas de Vidro (1943).

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COLECÇÃO GENTE INDEPENDENTE

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Hermann Hesse (Calw, Alemanha, 1877 — Montagnola, Suíça, 1962), escritor de origem alemã, foi galardoado com o Prémio Nobel de Literatura e o Prémio Goethe, ambos em 1946. Filho de missionários protestantes, cedo se apercebeu de que uma educação pietista não se enquadrava na sua visão do mundo. Em 1923, após um período de relações turbulentas com a Alemanha no seguimento da sua apologia a valores pacifistas por altura da I Guerra Mundial, e em desacordo com o nacionalismo exacerbado que se vivia no país, adquiriu nacionalidade suíça. Influenciado por Platão, Espinoza, Schopenhauer, Nietzsche e Carl Jung, recebeu igualmente forte influência de filosofias orientais, particularmente da Índia e da China. As suas obras podem ser consideradas como autobiografias espirituais, retratando a procura individual pelo autoconhecimento, a autenticidade e a espiritualidade. Entre algumas das suas principais obras contam--se Demian (1919), Siddhartha (1922), O Lobo das Estepes (1927), Viagem ao País da Manhã (1932) e O Jogo das Contas de Vidro (1943).

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HERMANN HESSEVIaGEm aO País Da maNhÃ

Tradução

MÓNICA DIAS

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Título original: Die MorgenlandfahrtSuhrkamp Verlag Berlin, 1932.All rights reserved by and controlled through Suhrkamp Verlag Berlin.

© Cavalo de Ferro Editores, 2011para a publicação em território português

Revisão: Leonor BragançaPaginação: Finepaper

1.ª edição, Maio de 2011ISBN: 978-989-623-156-9

Quando não encontrar algum livro Cavalo de Ferro nas livrarias,sugerimos que visite o nosso site: www.cavalodeferro.com

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Dedicado aos amigos Hans C. Bodmer e sua esposa, a senhora dona Elsy

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NOTa Da TRaDUTORa

Será possível contar uma aventura inaudita? Será possível narrar uma experiência inexplicável? Será possível encon-trar palavras para o indizível?

É justamente com estas questões que H. H. joga ao longo da sua tentativa de descrever um percurso iniciático e sim-bólico de descoberta do destino humano na união com o Todo universal e intemporal. A dificuldade de transmitir esta aventura singular da Viagem ao País da Manhã projecta- -se para a linguagem do texto. O estilo arcaico e a estru-tura composta dão à narrativa o tom de uma antiga lenda. O narrador oscila entre sempre novas tentativas de exprimir o indizível, optando por um vocabulário por vezes incomum, e fazendo transbordar todas as frases de infinitas e ininter-ruptas ideias e imagens coerentes ou confusas, simples ou complexas, poéticas ou intransigentes. Envolve-se, assim, o leitor num ambiente místico de ocultação e revelação onde realidade e ficção se fundem numa «linguagem secreta». Hesse explicita a sua opção por linguagem e temas difíceis, quase herméticos, numa carta de 1933: «Quanto mais super-ficial e tumultuosa a vida espiritual europeia se torna, tanto mais pertinente será a necessidade de os poucos poetas se retirarem numa espécie de linguagem secreta…»

Hermann Hesse coloca Viagem ao País da Manhã ao lado de obras como Demian, Siddhartha e O Lobo das Estepes, observando-as como «biografias da alma» em que a escrita se revela como única possibilidade de salvação do abismo

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existencial. Contudo, não é só por esse motivo que o breve texto espelha toda a poética do autor. Já o título parece, pois, sugerir e anunciar um motivo fundamental da escrita de Hesse. O título original, Die Morgenlandfahrt, alude a «uma viagem», uma travessia de um espaço, um percurso de aprendizagem (Fahrt), partindo-se rumo a um horizonte que não é de natureza geográfica, mas que é simultanea-mente o País da Manhã (Morgen) — da Juventude da Alma, da Inocência da Aurora de um novo Tempo — e do Amanhã (Morgen) — no Futuro, onde o Império do Espírito se cum-pre. Este caminhar rumo ao País da Manhã reflecte, assim, a eterna saudade do espírito humano que deseja alcançar e fundir-se com o Império originário da Luz, a Terra-Mãe da alma.

Se é possível escrever esta aventura, será também possível traduzi-la? Será possível dar-lhe outras palavras, transmiti-la mais uma vez?

O seguinte texto é — como todas as traduções — uma possibilidade entre muitas, uma leitura entre muitas, que se fundamenta justamente nessa tentativa de fazer transitar a imagética e todo o universo criado por Hesse para a língua portuguesa.

Mónica Dias

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CaPíTULO I

Como me foi destinado assistir a algo de grandioso, como tive a sorte de pertencer à Ordem e de poder ser um dos participantes daquela viagem singular — cujo milagre bri-lhou, então, subitamente, como um meteoro, e que depois, por mistério, tão rapidamente caiu em esquecimento, ou mesmo em má fama —, decidi ousar tentar uma breve des-crição dessa inaudita viagem: Uma viagem como não vol- tara a ser ousada por Homens desde os dias de João Sem Medo e de Orlando Furioso até ao nosso estranho tempo; o triste, desesperado e contudo tão fecundo tempo depois da Grande Guerra. Creio não me iludir em relação às difi-culdades que a minha tentativa coloca; são muito grandes e não apenas de natureza subjectiva, se bem que estas já fos-sem bastante consideráveis. Pois hoje, não só já não possuo qualquer objecto, lembrança, documento ou diário que me recorde o tempo da viagem, como nos difíceis anos de des-ventura, doença e de profundo tormento que desde então decorreram também perdi uma grande parte das recor-dações. Em consequência de infortúnios e sempre novos desalentos, tanto a minha própria memória como a minha confiança nela, outrora tão fiel, se tornaram vergonhosa-mente fracas. Mas, não tomando em consideração estas afli-ções puramente pessoais, também tenho, em parte, as mãos atadas pelo meu antigo Voto à Ordem; porque esse Voto me permite, com efeito, a comunicação das minhas experi-ências pessoais, proibindo, no entanto, qualquer revelação

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sobre o próprio segredo da Ordem. E mesmo que a Ordem já há muito tempo não pareça ter nenhuma existência visí-vel e eu não tenha voltado a ver nenhum dos seus mem-bros, nenhuma tentação e nenhuma ameaça do mundo me poderia levar a quebrar o Voto. Pelo contrário: se hoje ou amanhã fosse levado perante um tribunal de guerra e posto perante a opção de me deixar matar ou de revelar o segredo da Ordem, oh, com que ardente alegria selaria o meu Voto através da morte!

Anote-se aqui de passagem: desde o diário de viagem do conde Keyserling foram publicados por várias vezes livros cujos autores causaram, em parte inconscientemente, em parte, porém, intencionalmente, a impressão de que seriam aliados da Ordem e de que teriam participado na Viagem ao País da Manhã. Até os aventurosos relatos de viagem de Ossendowski caíram sob essa honrada suspeita. Todavia, nenhum deles tinha alguma coisa que ver com a Ordem e com a nossa Viagem ao País da Manhã ou, na melhor das hipóteses, não mais do que os pregadores de pequenas sei-tas pietistas têm que ver com Jesus Cristo, com os Apóstolos e com o Espírito Santo, a cuja graça especial e associação recorrem. Mesmo que o conde Keyserling tenha realmente circum-navegado o mundo e mesmo que Ossendowski tenha atravessado os países por ele descritos, as suas viagens não foram milagres e não descobriram novos territórios, ao passo que certas etapas da nossa Viagem ao País da Manhã, ao prescindir de todos os banais meios auxiliares das modernas viagens em massa, de comboios, navios a vapor, telégrafo, automóvel, avião, etc., penetraram realmente no Heróico e no Mágico. Na época que se seguiu à Guerra Mundial, era, pois, propício um estado extraordinário de irrealidade, de disposição para o sobrenatural, nomeada-mente no pensamento dos povos derrotados, mesmo que

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só em muito poucos momentos se tenham realmente que-brado fronteiras e avançado para o Império de uma futura psicocracia. A nossa travessia do Mar Lunar até Famagusta, outrora sob a orientação de Alberto Magno, ou, por exem-plo, a descoberta da Ilha das Borboletas, doze graus atrás de Zipangu, ou a sublime festa da Ordem junto do túmulo de Rüdiger, constituíram vivências e feitos permitidos ape-nas essa vez a pessoas do nosso tempo e da nossa origem.

Logo aqui creio encontrar um dos maiores obstáculos ao meu relato. O plano, no qual os nossos feitos aconteciam, e a esfera de vivência da alma à qual pertencem seriam relati-vamente fáceis de tornar acessíveis ao leitor se fosse possível levá-lo ao interior do segredo da Ordem. Assim, porém, tudo lhe parecerá provavelmente inacreditável e inconcebível. Mas o desafio do paradoxo deve ser sempre de novo tentado e o que é impossível em si realizado novamente. Eu vou por Siddhartha, o nosso amigo sábio do Oriente, que disse uma vez:

— As palavras não convêm ao sentido secreto; tudo fica sempre logo um pouco alterado, um pouco falsificado, um pouco néscio. Sim, e também isso está bem, também com isso concordo; pois, o que para um Homem é o seu tesouro e a sua sabedoria, soa para o outro sempre como uma tolice.

De igual modo, já há séculos os membros e historiadores da nossa Ordem reconheceram esta dificuldade, enfrentando- -a com valentia, e um deles, um dos maiores, pronunciou-se assim, em versos imortais:

Quem longe viajar vai muitas coisas avistar,Muito distantes daquilo que considerava verdade.Quando depois, nos prados da sua terra, o contar,Então, como mentiroso é, amiúde, tratado.Porque o povo obstinado não quer confiar,

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Quando não vê e não sente nitidamente o narrado.A inexperiência, diz-mo a imaginação,Pouco crédito dará à minha canção.

Esta «inexperiência»1 conseguiu, pois, fazer não só com que a nossa viagem, que outrora levou milhares até ao êxtase, esteja hoje publicamente esquecida, mas também com que a sua memória esteja coberta por um verdadeiro tabu. Porém, como se sabe, a História é pródiga em exem-plos semelhantes a este. Toda a história universal não me parece ser mais do que um livro ilustrado que reflecte o mais intenso e cego anseio dos Homens: o anseio do esque- cimento. Pois não extingue cada geração, através da proi-bição, do abafamento, do escárnio, sempre precisamente aquilo que parecia mais importante à geração anterior? Não acabámos mesmo agora de assistir a que uma mons-truosa guerra, horrível e longa, fosse esquecida, negada, recalcada e feita desaparecer como por magia durante anos, por povos inteiros? E não observamos que esses povos procuram, agora que descansaram um pouco, recordar-se através de excitantes romances de guerra do que há alguns anos eles próprios causaram e sofreram? Do mesmo modo, também para os feitos e sofrimentos da nossa Ordem, que agora estão esquecidos ou são para o mundo motivo de troça, virá o dia da redescoberta, e os meus apontamentos hão-de contribuir um pouco para isso.

Entre as particularidades da Viagem ao País da Manhã também constava o facto de a Ordem perseguir com esta caminhada fins bem determinados e muito elevados (estes pertencem à esfera do segredo, não sendo, portanto,

1 Com a expressão «Unerfahrenheit», que contém em si «fahren» (o caminhar), Hesse alude simultaneamente a «ser inexperiente» e a «não ter ainda caminhado». (N. da T.)

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comunicáveis), podendo, no entanto, cada um dos parti- cipantes ter o seu próprio objectivo-destino, sim, devendo mesmo tê-lo, porque não se levava ninguém que não fosse motivado por objectivos pessoais. E, cada um de nós, pare-cendo seguir ideais e fins comuns e lutar sob uma mesma bandeira, levava individualmente no seu coração, como força mais íntima e último consolo, o seu próprio sonho louco da infância. No que diz respeito ao meu objectivo e destino de viagem, sobre o qual tinha sido interrogado pela Cátedra Suprema antes da minha admissão, era de natureza simples, ao passo que outros irmãos se tinham proposto objectivos que eu podia, como é natural, respeitar bastante, mas não enten-der plenamente. Um, por exemplo, procurava tesouros e não tinha outra coisa em mente senão a conquista de um tesouro sublime a que chamava «Tao». Já outro tinha mesmo metido na cabeça capturar uma certa serpente, à qual ele conferia poderes mágicos e que chamava Kundalini. Em contrapartida, o meu objectivo de viagem e vida, que já nos anos tardios da adolescência se me apresentara em sonhos, era o seguinte: ver a bela princesa Fatme e, porventura, conquistar o seu amor.

Nessa altura, quando tive a sorte de poder aderir à Ordem, nomeadamente logo depois do fim da Grande Guerra, o nosso país estava cheio de salvadores, de profetas e ban-dos de discípulos, de pressentimentos do fim do mundo ou de esperanças no começo de um Terceiro Império. Abalado pela guerra, desesperado pela miséria e pela fome, pro-fundamente decepcionado pela aparente inutilidade de todos os sacrifícios de sangue e de bens, o nosso povo estava receptivo a certas quimeras, mas igualmente a verdadeiras elevações da alma. Havia comunidades de dança bacante e grupos de luta anabaptistas. Havia de tudo o que parecesse apontar para o Além e para o milagre. Também estava muito

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espalhada nessa altura uma inclinação para o indiano, o antigo pérsico e outros mistérios e cultos orientais. E tudo isso levou a que também a nossa antiquíssima Ordem pare-cesse à maioria uma das muitas excrescências em voga que floresciam apressadamente, e que com elas cairia, quer no esquecimento quer em desdém e má fama após alguns anos. Contudo, isso não afecta aqueles de entre os seus discípulos que lhe permaneceram fiéis. Como recordo bem a hora em que, depois do fim do meu ano probatório, me apresentei à Suprema Cátedra, fui iniciado no projecto da Viagem ao País da Manhã e — pondo-me à disposição desse projecto de corpo e alma — fui questionado amavelmente sobre o que pretendia com este percurso ao Reino dos Contos de Fadas! Corando visivelmente, mas franco e sem hesitação, assumi, perante os Superiores que se tinham reunido, o desejo ardente de poder ver com os meus próprios olhos a princesa Fatme. E, ao traduzir os gestos dos velados, o Orador colocou a sua mão sobre a minha fronte, benzeu-me e pronunciou a fórmula que consolidava a minha admissão como irmão da Ordem.

— Anima pia —, assim se me dirigiu e me exortou à fideli-dade na fé, à coragem e valentia no perigo, ao amor fraterno. Tendo sido bem preparado durante o ano probatório, pres-tei juramento, reneguei o mundo e a sua falsa fé, e foi-me colocado no dedo o anel da Ordem, com as palavras de um dos mais belos capítulos da nossa História da Ordem:

Em água e fogo, em terra e ar,Os espíritos lhe são submissos;Os mais bravos monstros assustam e cativam seu olhar,E, tremendo, tem de aproximar-se dele até o anti-

cristo…e assim sucessivamente.

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Felizmente, coube-me a sorte de assistir, logo na admissão, a uma das iluminações que nos tinham sido sugeridas ao longo do nosso noviciado. Pois mal me tinha juntado a um dos grupos de dez membros que caminhavam por todo o país para se juntarem ao séquito, seguindo as indicações dos Superiores, logo um dos segredos do nosso séquito se tornou, então, completamente claro para mim. Intuí: tinha-me jun-tado, certamente, a uma peregrinação ao País da Manhã; ao que tudo indicava, uma única e determinada peregrinação. Contudo, na realidade, no sentido mais elevado e autêntico, este séquito ao País da Manhã não era apenas o meu e não era apenas o actual. O séquito de crentes e de devotos fluía, pois, para o Oriente, para a terra primordial da Luz, inces-sante e eternamente. Estava para sempre e através de todos os séculos a caminho, ao encontro da Luz e do Milagre, e cada um de nós, irmãos, cada um dos nossos grupos, sim, todo o nosso exército e a sua grande campanha era apenas uma onda na eterna corrente das almas, no eterno anseio de retorno dos espíritos à terra originária, rumo à Manhã, rumo à Terra-Mãe. A descoberta avassalou-me como um raio enquanto no meu coração despertava uma frase que apren-dera durante o meu ano de noviciado e que sempre me agra-dara maravilhosamente, sem que a tivesse, porém, realmente compreendido. Eram as palavas do poeta Novalis:

— Para onde caminhamos, afinal? Sempre para casa.Entretanto, o nosso grupo tinha iniciado a caminhada,

encontrando em breve outros grupos, e cada vez mais o senti-mento da união e do destino comum nos enchia de satisfação, tornando-nos felizes. Respeitando fielmente as prescrições, vivíamos como peregrinos e não utilizávamos nenhum dos equipamentos originários de um mundo seduzido pelo dinheiro, pelo número e pelo tempo, e que tiram sentido à vida. Antes de mais, era o caso de máquinas como os

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comboios, relógios e semelhantes. Outro dos nossos princí-pios, unanimemente seguido, ordenava-nos que fôssemos ao encontro de todos os lugares e memórias que estavam ligados à antiquíssima história da nossa Ordem e à sua fé, e que os venerássemos. Todos os locais e monumentos piedosos, igre-jas e honoráveis jazigos, que se encontravam em qualquer sítio, junto do nosso caminho, eram visitados e celebrados, as capelas e os altares adornados com flores, as ruínas reveren-ciadas com canções ou silenciosa contemplação, os mortos recordados com música e orações. Nesses momentos éramos, não raramente, incomodados pelos infiéis que de nós troça-vam. Mas também sucedia com frequência sermos benzidos e convidados por padres; ou juntarem-se a nós entusiastica-mente crianças que aprendiam as nossas canções e que só nos deixavam partir com lágrimas; ou um homem velho mos-trar-nos antigos monumentos esquecidos ou contar-nos uma lenda da sua região; e ainda jovens acompanharem-nos ao longo de uma parte do caminho, desejando ser admitidos na Ordem. A esses eram dados conselhos e comunicados os primeiros rituais e exercícios do noviciado. Aconteciam os primeiros milagres, quer diante dos nossos olhos quer através de relatos e de lendas que nos chegavam subitamente. Um dia, era eu ainda bem novato, todos começaram a falar de repente sobre a presença do gigante Agramant na tenda dos nossos Dirigentes, procurando convencê-los a tomar o cami-nho de África, para lá libertar alguns irmãos da Ordem apri-sionados pelos Mouros. Outra vez, foi visto o anão bondoso, o que traz o pez, o Consolador, e suspeitou-se que a nossa caminhada se iria dirigir para o Blautopf2. Porém, a primeira aparição milagrosa que vi com os meus olhos foi esta: na alta- -circunscrição de Spaichendorf tínhamos repousado e meditado

2 Nome de uma bacia de fonte situada em Baden-Württemberg. (N. da T.)

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junto de uma capela quase em ruínas. Na única parede intacta da capela estava pintado um gigantesco São Cristóvão, e sentado aos seus ombros estava, pequeno e quase apagado pelo tempo, o Menino Jesus. Os Dirigentes, como por vezes faziam, não seguiram simplesmente o caminho pelo qual deveria continuar o nosso percurso, mas desafiaram-nos a todos a dar a nossa opinião, pois a capela situava-se junto a um triplo cruzamento e tínhamos de optar. Só poucos de nós exprimiram um desejo ou deram um conselho; um, porém, apontava para a esquerda e incitava-nos insistentemente a optar por esse caminho. Calámo-nos, então, e esperámos pela deci-são dos Dirigentes. Nesse instante, o São Cristóvão levantou, na parede, o seu braço com o longo bordão rude e apontou para lá, para a esquerda, para onde o nosso irmão tendia. Todos o observámos em silêncio e em silêncio os Dirigentes se voltaram para a esquerda, tomando esse caminho. E assim seguimos com a mais profunda alegria.

Ainda não tínhamos caminhado muito pela Suábia quando se fez sentir um poder, no qual não tínhamos pensado, e cuja influência viemos a sentir durante bas-tante tempo, sem, no entanto, saber se esse poder teria um significado benévolo ou hostil. Nesse país era o poder dos guardas da coroa que desde antigos tempos guarda-vam a memória e o património dos Hohenstaufer. Não sei se os nossos Dirigentes sabiam mais e se tinham ordens. Só sei que, por várias vezes, nos chegaram de lá incitações ou avisos, tal como sucedeu naquela colina no caminho para Bopfingen, onde nos fez frente um homem armado e encanecido, abanando a velha cabeça com os olhos fechados, logo desaparecendo sem deixar rasto. Os nos-sos Dirigentes aceitaram o aviso; invertemos nesse mesmo instante a marcha e não chegámos a ver Bopfingen. Em contrapartida, nas proximidades de Urach deu-se o caso

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de um emissário dos guardas da coroa aparecer, como se do nada, no meio da tenda dos Dirigentes, querendo — com promessas e ameaças — mandá-los pôr o nosso séquito ao serviço dos Staufer e preparar, nomeadamente, a conquista da Sicília. Quando os Dirigentes se recusaram decididamente a servi-los, diz-se que o emissário lançou uma terrível maldição contra a Ordem e a nossa campa-nha. Mas só relato aqui o que apenas entre nós se mur-murava sobre isso; os próprios Dirigentes nada disseram sobre o assunto. Em todo o caso, parece ter sido a nossa relação instável com os guardas da coroa que nessa altura deu à nossa Ordem, durante algum tempo, a fama ime-recida de ser uma Ordem secreta com o objectivo de res-taurar a monarquia.

Uma vez também tive de assistir ao arrependimento de um dos meus companheiros: espezinhou o seu Voto e recaiu na descrença. Era um indivíduo jovem, de quem eu gostava bastante. O motivo pessoal que o levava a caminhar con-nosco para o País da Manhã era o seu desejo de ver a urna do profeta Maomé, do qual ele tinha ouvido dizer que flutuava livremente no ar, através de forças mágicas. Numa das cida-dezinhas da Suábia ou da região entre Baden-Württemberg, Alsácia e Suíça3 onde nos detivemos alguns dias — porque uma oposição entre Saturno e Lua levantava obstáculos à continuação da nossa caminhada —, o tal infeliz, que já há algum tempo parecia triste e preocupado, encontrou um dos seus antigos professores com quem mantivera relações de amizade desde os seus tempos de escola. E este profes-sor conseguiu fazer com que o jovem voltasse a ver a nossa causa, mais uma vez, sob a mesma luz que a vêem os incré-dulos. Depois de uma visita a esse professor, a pobre criatura

3 No original «allemannisch». (N. da T.)

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voltou terrivelmente exaltada ao nosso acampamento, barafustou em frente da tenda dos Dirigentes, e quando o Orador saiu vociferou-lhe com raiva: disse que estava farto de fazer parte desse séquito de loucos que jamais nos leva-ria ao Oriente e que estava farto de interromper a viagem durante dias por causa de tolas considerações astrológicas, da ociosidade, dos desfiles infantis, das festas das flores, da ostentação com magia e do confuso misturar de vida e poe-sia. Estava mais do que farto de tudo isso. Disse que atiraria o seu anel aos pés dos Dirigentes e que se despediria para regressar à sua terra de comboio — que já tinha dado boas provas da sua competência — e para voltar ao seu traba-lho útil. Foi um espectáculo feio e lamentável. Apertava-se--nos o coração de vergonha e simultaneamente de pena do transviado. O Orador escutou-o amavelmente e, sorrindo, baixou-se para apanhar o anel que tinha sido deitado fora e disse com uma voz cuja calma alegre só poderia envergo-nhar o exaltado:

— Despediste-te de nós e vais então voltar ao comboio, ao bom senso e ao trabalho útil do dia-a-dia. Despediste-te da Ordem; despediste-te do séquito que se dirige para este; da magia; das festas das flores; da poesia. És livre, estás libe-rado do teu Voto.

— Também do voto de silêncio? — perguntou o rene-gado impetuosamente.

— Também do voto de silêncio —, respondeu o Orador. — Recorda-te: juraste manter silêncio sobre o segredo da Ordem perante os incrédulos. Uma vez que, como vemos, esqueceste o segredo, não poderás transmiti-lo a ninguém.

— Eu, ter-me esquecido? Não me esqueci de nada! —, gritou o jovem, ficando, porém, inseguro. Quando o Orador lhe virou as costas e se retirou para a tenda fugiu logo rapidamente.

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Tivemos pena dele. Porém, esses dias eram tão pródigos em acontecimentos e experiências que, curiosamente, o esqueci em pouco tempo. Todavia, algum tempo depois, quando já certamente nenhum de nós pensava nele, ouvimos os habi-tantes de várias aldeias e cidades, pelas quais passávamos, fala-rem desse mesmo moço. Contavam que tinha lá estado um jovem (e descreviam-no com exactidão e mencionavam o seu nome) que nos procurava em todo o lado. Primeiro disse que nos pertencia e que, na caminhada, tinha ficado para trás, perdendo-se. No entanto, tinha depois começado a chorar e contado que se tinha tornado infiel e fugido, mas que agora via que já não conseguia viver fora da Ordem, que queria e tinha de nos encontrar, para se lançar aos pés dos Dirigentes e implorar o seu perdão. Aqui e ali e sempre de novo nos contavam esta história. Por onde quer que passássemos já lá tinha estado a pobre criatura. Perguntámos ao Orador o que este pensava sobre o assunto e o que iria acontecer.

— Não creio que nos encontre —, disse o Orador de modo sucinto.

E não nos encontrou, não o voltámos a ver.Uma vez, quando um dos Dirigentes me tomou de parte

numa conversa confidencial, reuni coragem e perguntei- -lhe qual seria o destino desse irmão renegado. Ele estava, pois, arrependido e encontrava-se à nossa procura, afirmei. Devia-se ajudá-lo a remediar os seus erros; decerto que se tornaria futu-ramente o mais fiel irmão da Ordem. O Dirigente observou:

— Será uma alegria para nós se ele encontrar o caminho de regresso. Nós não lhe podemos facilitar essa demanda. Ele próprio dificultou a possibilidade de reencontrar a fé — receio que não nos veja, nem reconheça, mesmo quando passarmos junto dele. Ficou cego. O arrependimento por si só de nada serve. Não se pode comprar o perdão com o arrependimento, não se pode comprá-lo de modo algum. Já

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muitos passaram pelo mesmo, grandes e famosos homens sofreram o mesmo infortúnio deste moço. Houve um momento, na sua juventude, em que a luz os iluminou. Houve um momento em que começaram a ver e seguiram a estrela. Porém, veio o entendimento racional e o escárnio do mundo, veio o desânimo, vieram supostos insucessos, veio o cansaço e a decepção e, assim, voltaram a perder-se, ficaram novamente cegos. Alguns procuraram-nos incessan-temente ao longo de toda a sua vida, mas já não nos con-seguiram encontrar, postulando, depois, pelo mundo fora que a nossa Ordem seria apenas uma lenda bonita, através da qual ninguém se deveria deixar desencaminhar. Outros tornaram-se inimigos impetuosos e difamaram e prejudica-ram a Ordem de todos os modos que lhes foram possíveis.

Eram sempre dias maravilhosamente festivos quando encontrávamos no nosso séquito outras partes do exército da Ordem e formávamos um acampamento de centenas, ou até de milhares de adeptos. O séquito não avançava com uma ordem fixa, fazendo com que todos os participantes caminhassem na mesma direcção, em filas de colunas mais ou menos independentes. Tratava-se muito mais de vários grupos que estavam simultaneamente a caminho, cada um seguindo o seu Guia-Dirigente e as suas estrelas, cada um (sempre) pronto a dissolver-se numa unidade maior e a pertencer durante algum tempo a ela, mas não menos pronto a prosseguir de novo separadamente. Alguns tam-bém percorriam sozinhos o seu caminho. Também eu cami-nhei, por vezes, sozinho, quando qualquer sinal ou voz me atraía para caminhos só meus. Lembro-me de um pequeno grupo muito especial com o qual caminhámos e acampá-mos alguns dias. Este grupo tinha assumido a tarefa de liber-tar das mãos dos Mouros os irmãos da Ordem e a Princesa Isabella, aprisionados em África. Dizia-se que possuíam o

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Chifre de João Sem Medo, e entre eles encontravam-se o poeta Lauscher de quem eu era amigo, o pintor Klingsor e o pintor Paul Klee. Não falavam de outra coisa senão de África e da Princesa aprisionada. A sua Bíblia era o livro dos feitos de Dom Quixote e tencionavam tomar o caminho por Espanha em sua honra.

Era sempre bom encontrar um grupo de amigos como este, assistir às suas celebrações e orações, convidá-los a juntarem-se a nós, escutar os seus feitos e planos, benzê-los à despedida e saber que percorriam o seu caminho como nós percorríamos o nosso. Cada um deles tinha o seu sonho, o seu desejo, o seu jogo secreto no coração e, contudo, todos caminhavam juntos na grande corrente e pertenciam uns aos outros, partilhando no coração a mesma reverência e a mesma fé, e tendo feito o mesmo Voto!

Encontrei Jup, o mago, que pretendia colher a felicidade da sua vida em Caxemira. Encontrei Collofino, que fazia fei-tiços com fumo, citando o seu passo preferido do Venturoso Simplício Simplicíssimo4. Encontrei Louis, o Cruel, cujo sonho era plantar na Terra Santa um olival e ter escravos. Seguia abraçado a Anselmo, que andava à procura da íris azul da sua infância. Encontrei e amei Ninon, conhecida como «a estrangeira»5. Seus olhos observavam sombria-mente por baixo dos cabelos pretos; tinha ciúmes de Fatme, a princesa dos meus sonhos. E no entanto — sem que o soubesse —, ela mesma era, provavelmente, Fatme. Tal como nós, caminharam, outrora, peregrinos, imperadores e cruzados para libertar o túmulo de Cristo ou para estudar magia árabe. Cavaleiros espanhóis peregrinaram por este caminho, assim como eruditos alemães, monges irlandeses e poetas franceses.

4 Romance de H. J. C. Grimmelshausen (1669).(N. da T.)5 Alusão a Ninon Ausländer, terceira mulher de Hesse. (N. da T.)

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A mim, que, no fundo, só tinha como profissão tocar vio-lino e ler contos de fadas, cabia ocupar-me da música no nosso grupo, e observei, então, como uma época grandiosa eleva qualquer indivíduo insignificante e aumenta as suas forças. Não só tocava o violino e dirigia os nossos coros, mas juntava igualmente velhas cantigas e corais, escrevia mote-tes e madrigais de seis e oito vozes e ensaiava-os. Mas não é isso que quero contar.

Afeiçoei-me a muitos dos meus companheiros e superio-res. Mas poucos deles marcaram as minhas recordações tão intensamente como Leo, em quem naquela altura, aparen-temente, ninguém reparava. Leo era um dos nossos servos (naturalmente voluntários como nós); ajudava a carregar as bagagens e cabia-lhe muitas vezes servir pessoalmente o Orador. Este homem singelo tinha algo tão obsequioso, tão discretamente cativante, que o amávamos todos. Fazia alegremente o seu trabalho, quase sempre cantando ou assobiando, só era visto quando se precisava dele — era um servo ideal. Além disso, todos os animais se afeiçoavam a ele. Levávamos quase sempre um cão connosco, que nos seguia por causa de Leo. Sabia domesticar pássaros e atrair borbo-letas. O que o levava ao País da Manhã era o seu desejo de aprender a linguagem dos pássaros pelo princípio da chave de Salomão. Ao lado de certas figuras da nossa Ordem que, sem questionar o seu valor e a sua fidelidade, tinham, porém, algo de exagerado, algo de estranho, solene ou fan-tástico, este servo Leo parecia simples — tão saudável com o seu rosto de faces vermelhas — e amavelmente modesto.

O que me dificulta particularmente o relato da narrativa é a grande diversidade de cada uma das imagens da minha memória. Já disse, pois, que marchávamos, ora em pequeno grupo ora formando um pelotão ou mesmo um exército. Por vezes, contudo, também ficava para trás, em qualquer

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região, com um único companheiro, ou completamente sozinho, sem tendas, sem Dirigentes, sem Oradores. Além disso, torna-se difícil contar esta experiência porque nós não caminhávamos apenas através de espaços, mas igual-mente através de épocas. Caminhávamos para o País da Manhã, mas também para a Idade Média ou para a Idade Áurea. Percorríamos de passagem a Itália ou a Suíça, mas, de vez em quando, também passávamos a noite no século x e morávamos com patriarcas e fadas. Nos períodos em que ficava sozinho, reencontrava frequentemente sítios e pessoas do meu passado. Passeava com a minha noiva de outrora nas margens da floresta do Alto Reno, embebeda-va-me com amigos de juventude em Tübingen, em Basileia ou Florença, ou era um rapazinho e partia com os colegas do meu tempo de escola para apanhar borboletas ou espiar lontras. Ou então estava na companhia das personagens preferidas dos meus livros: Almansor e Parsifal, Witiko ou Goldmund cavalgavam ao meu lado, ou Sancho Pança, ou éramos hóspedes dos Barmáquidas. Quando regres-sava ao nosso grupo, em qualquer vale, quando escutava as canções da Ordem e acampava em frente da tenda dos Dirigentes, compreendia imediatamente que o meu cami-nho para a infância ou a minha cavalgada com Sancho pertenciam necessariamente a esta viagem. Porque o nosso objectivo e destino não era apenas o País da Manhã, ou, melhor, o nosso País da Manhã não era meramente um país e algo geográfico, mas a Terra-Mãe e a Juventude da Alma. Era o ubíquo e o nenhures, a unificação de todos os tempos. Todavia, só me apercebia disto de vez em quando, durante um instante, e era justamente essa a grande felicidade que eu saboreava nessa altura. Porque mais tarde, no momento em que esta felicidade voltou a desaparecer do meu mundo, compreendi nitidamente estas conexões interligadas sem,

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no entanto, sentir qualquer consolo ou daí tirar o menor proveito.

Quando algo delicioso e irrecuperável se desvanece, temos certamente a sensação de ter acordado de um sonho. No meu caso, essa sensação é extraordinariamente verda-deira. Porque a minha felicidade se formava realmente do mesmo segredo que a felicidade dos sonhos, porque con-sistia na liberdade de viver todo o possível e imaginável em simultâneo, de confundir ludicamente exterior e interior, de deslocar tempo e espaço como bastidores. Tal como nós, irmãos da Ordem, viajávamos através do mundo sem carro ou navio, tal como conquistávamos o mundo abalado pela guerra e o transformávamos em paraíso através da nossa fé, assim criávamos o passado, o futuro e o imaginário no momento presente.

E incessantemente na Suábia, no Lago de Constança, na Suíça e em toda a parte, vinham ter connosco pessoas que nos entendiam ou que, pelo menos, nos agradeciam de certo modo, pelo facto de existirmos e de haver a Ordem e a Viagem ao País da Manhã. Entre os eléctricos e as casas ban-cárias de Zurique, encontrámos a Arca de Noé, guardada por vários cães velhos que tinham todos o mesmo nome e que eram corajosamente conduzidos através dos bancos de areia de uma época austera por Hans C., o descendente dos filhos de Noé, o amigo das artes. E em Winterthur, fomos convidados para o templo chinês, situado um andar abaixo do gabinete mágico de Stoecklin, onde os pauzinhos de incenso ardiam sob a Maia de bronze e o rei negro tocava flauta docemente ao som tremente do gongo do templo. E no sopé da montanha do sol deparámos com Suon Mali, uma colónia do rei de Sião onde nós, hóspedes gratos, pres-távamos entre os Budas de pedra e de bronze os nossos sacrifícios de libação e de fumo.

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Uma das experiências mais belas foi a festa da Ordem em Bremgarten, onde o círculo mágico nos envolveu inten-samente. Recebidos pelos senhores do palácio Max e Tilli, ouvimos Othmar tocar Mozart no piano de cauda no salão alto, encontrámos o parque habitado por papagaios e outros animais que falavam, ouvimos a fada Armida cantar junto do repuxo, e a cabeça negra do astrólogo Longus acenava, com caracóis flutuantes, ao lado da amável face de Heinrich von Ofterdingen. No jardim gritavam os pavões e Louis con-versava com o gato das botas em espanhol, enquanto Hans Resom — abalado por aquilo que viu no jogo de máscaras da vida — fazia a solene promessa de peregrinar ao túmulo de Carlos Magno. Foi uma das épocas de triunfo da nossa caminhada: tínhamos trazido connosco a onda mágica que tudo lavava e purificava. Os indígenas prestavam, de joe-lhos, homenagem à beleza, o senhor do castelo recitava um poema que versava os nossos feitos nocturnos, os animais da floresta escutavam, apertando-se à volta dos muros do palácio, e no rio os peixes moviam-se cintilantemente em cardumes festivos e eram servidos com bolos e vinho.

São justamente estas experiências mais belas que, no fundo, só são possíveis de contar a quem sentiu em si o seu espírito; na minha descrição soam pobres e provavelmente tolas, mas todos que tenham presenciado e celebrado os dias de Bremgarten confirmarão cada pormenor, acrescentando- -o a outros cem ainda mais belos.

Ficará para sempre na minha memória a imagem das caudas dos pavões brilhando nas árvores altas ao luar, e das sereias resplandecendo numa doçura prateada ao emer-girem das águas, à beira-mar sombreada entre os rochedos. E de como, solitariamente, sob o castanheiro junto da fonte, o magro Dom Quixote estava de primeira sentinela da noite, enquanto os últimos foguetes do fogo-de-artifício caíam tão

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suavemente na noite de luar e o meu colega Pablo, coroado de rosas, tocava a charamela para as raparigas.

Ah, qual de nós teria imaginado que o círculo mágico se iria quebrar em tão pouco tempo. Que quase todos nós — e também eu, também eu! — nos iríamos tornar a perder nos ermos monótonos da realidade rotineira e rotulada, curvando- -se, como funcionários públicos e empregados de balcão depois de uma patuscada ou de um passeio de domingo, nova e insipidamente no dia-a-dia do trabalho!

Nesses dias não passava pela cabeça de nenhum de nós que isso pudesse vir a acontecer. Na torre do palácio de Bremgarten os lilases perfumavam o meu quarto. Por entre as árvores ouvia o rio marulhar e na noite profunda saía pela janela, ébrio de felicidade e saudade, passando às escondidas pelo cavaleiro vigilante e pelos bêbados adormecidos até chegar lá abaixo à beira-mar, até à marulhada, até às brancas sereias resplan-decentes. E estas levavam-me consigo para as profundezas do mundo cristalino de frescura lunar da sua terra originária, onde irremível e sonhadoramente brincavam com as coroas e cadeias de ouro das suas câmaras de tesouros. Tive a sen-sação de que se passaram meses na profundidade cintilante e, quando emergi e nadei profundamente enregelado até à beira-mar, a charamela de Pablo ainda lá chegava dos jardins distantes e a Lua ainda ia bem alta na noite. Vi Leo brincar com dois cães de água brancos; o seu rosto de menino brilhava de alegria. Encontrei Longus sentado no mato com um livro de pergaminho no colo, onde escrevia caracteres gregos e hebraicos: das letras das palavras voavam dragões e erguiam-se serpentes coloridas. Ele não me via, desenhava absortamente a sua escrita colorida de serpentes. Durante muito tempo olhei por cima dos ombros curvados para o livro, vi as serpentes e os dragões brotarem de entre as linhas, roçando-se e perdendo-se sem rumor na mata nocturna.

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— Longus — disse-lhe em voz baixa —, caro amigo! Ele não me ouvia. O meu mundo era-lhe distante, estava

absorto. E à margem disso, sob as árvores lunares, cami-nhava Anselmo com um lírio de espada na mão: sorrindo e com ar perdido fitava o cálice lilás da flor.

Nos dias de Bremgarten houve algo que eu já tinha obser-vado várias vezes ao longo da nossa caminhada, sem no entanto ter reflectido seriamente sobre isso e que, de modo estranho e um pouco doloroso, despertou novamente a minha atenção. Havia muitos artistas entre nós, muitos pinto-res, músicos, poetas. Estava lá o fogoso Klingsor e o irrequieto Hugo Wolf, o lacónico Lauscher e o brilhante Brentano. Mas por muito vivos e amáveis que fossem estes artistas, ou alguns deles, as figuras por eles imaginadas eram, sem excepção, muito mais vivas, belas, alegres e certamente mais autênticas e reais que os próprios poetas e criadores. Pablo estava sen-tado com a sua flauta em encantadora inocência e alegria de vida. Todavia, o poeta que o criou, meio translúcido pela luz da lua, arrastava-se quimericamente à beira-mar, procu-rando solidão. Hoffmann andava vacilante e bastante embria-gado entre os convidados, para cá e para lá, falando muito. Pequeno, semelhante a um duende, era, como todos eles, uma silhueta só semi-real, só semiexistente, quase inconsis-tente e não completamente verdadeiro. Entretanto, o escritu-rário Lindhorst fazia, por brincadeira, de dragão, fungando fogo com todos os fôlegos e exalando força tal como um automóvel. Perguntei ao servo Leo por que motivo os artistas pareciam, por vezes, só seres meio-humanos enquanto as suas imagens tinham um aspecto tão incontestavelmente vivo. Leo olhou para mim, admirado com a minha pergunta. Depois largou o cão de água que levava ao colo e disse:

— Com as mães também é assim. Depois de terem dado à luz os filhos, dando-lhe o seu leite, a sua beleza e força,

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tornam-se então pouco vistosas e já ninguém pergunta por elas.

— Isso é muito triste —, observei, sem pensar propria-mente nisso.

— Eu penso que não é mais triste do que todas as outras coisas — disse Leo —; talvez seja triste, e também é belo. A lei assim o quer.

— A lei? — perguntei cheio de curiosidade. — Que lei é essa, Leo?

— É a lei de servir. Aquele que quiser viver durante muito tempo tem de servir. Todavia, aquele que quiser dominar poderosamente, não vive muito tempo.

— Porque é que tantos anseiam, então, por poder e domínio?

— Porque não o sabem. Há poucos que nasceram para dominar; estes permanecem alegres e saudáveis. Os outros, porém, os que só se fizeram Senhores através da sua ambi-ção desmedida, acabam todos no nada.

— Em que nada, Leo?— Por exemplo, em sanatórios.Percebi pouco dessa conversa, mas mesmo assim, as pala-

vras ficaram na minha memória, e no coração fiquei com uma sensação de que este Leo sabia muita coisa, que sabia provavelmente mais do que nós, que éramos aparentemente os seus Senhores.

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CaPíTULO II

Cada um dos participantes desta viagem inesquecível reflectiu certamente sobre o possível motivo que deter-minou o nosso fiel Leo a deixar-nos, de súbito, no meio da perigosa garganta de Morbio Inferiore. Só muito mais tarde é que comecei a suspeitar e a compreender de algum modo as conexões profundas e o verdadeiro desenrolar deste acontecimento. Revelou-se também que esta aventura, aparentemente de pouca importância mas na realidade profundamente incisiva — o desapareci-mento de Leo —, não fora de modo algum um acaso mas sim um elo na cadeia de prosseguimentos, através da qual o nosso inimigo mortal pretendia destruir o nosso empre-endimento. Nessa fresca manhã de Outono, quando se deu pela falta do nosso servo Leo e todas as tentativas de encontrar o seu paradeiro fracassaram, não fui certa-mente o único que sentiu, pela primeira vez, uma espécie de pressentimento de infortúnio e de iminente fatalidade no coração.

Afinal, de momento a situação era a seguinte: depois de termos atravessado de lance audaz metade da Europa e uma parte da Idade Média, acampávamos num vale de rochas profundo e alcantilado, numa garganta de mon-tanha agreste junto à fronteira italiana, e procurávamos o servo Leo que tinha misteriosamente desaparecido. E quanto mais o procurávamos e quanto mais a nossa esperança de encontrá-lo de novo se desvanecia ao longo

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do dia, tanto mais cada um de nós se sentia invadido pela angustiosa sensação de que não se tratava apenas do possível malogro, da fuga ou do rapto de um estimado e amável homem da nossa criadagem por inimigos, mas do início de uma luta, do primeiro sinal de uma tempes-tade que iria cair sobre nós. Todo o dia, até ao anoite-cer, indagámos por Leo, rebuscámos toda a garganta; e enquanto esse esforço nos afadigava e crescia em nós um sentimento de insucesso e de vãos esforços, era estranho e lúgubre observar como o servo perdido parecia ganhar de hora a hora cada vez mais importância, agravando-se gradualmente a nossa perda. Não era apenas o facto de ter-se perdido o rapaz bonito, agradável e obsequioso que enchia de pena cada um de nós peregrinos, e sem dúvida também toda a criadagem. Mas quanto mais certa se nos tornava a sua perda, tanto mais ele parecia indispensável: sem Leo, sem o seu bonito rosto, sem a sua boa disposição e o seu canto, sem o seu entusiasmo pela nossa grande aventura, este empreendimento parecia perder misterio-samente o seu valor. Pelo menos, era o que eu sentia. A despeito de todos os esforços e de algumas pequenas decepções, nunca tinha sentido, durante os meses de via-gem até então, um momento de fraqueza interior, de séria dúvida; nenhum comandante supremo coroado de êxito, nenhum pássaro no bando de andorinhas para o Egipto poderia estar mais seguro da rectidão dos seus actos e dos seus anseios do que eu nessa viagem. Agora, porém, nesse local fatídico, sentia pela primeira vez algo como tristeza e dúvida no coração. Enquanto isso, ouvia ao longo de todo o dia azul-dourado de Outubro incessantemente o chamar e os sinais dos nossos guardas. Esperava conti-nuamente, com cada vez mais ansiedade, o regresso de um mensageiro ou a chegada de uma notícia, para ser