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O problema da anlise comparativa nos
estudos das adaptaes
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Isadora Meneses Rodrigues; Instituto de Cultura e Arte, Universidade Federal do Cear, CE; E-mail:
Resumo
Este artigo se prope a discutir a metodologia de anlise comparativa nos estudos das adaptaes a partir de tericos que vo refletir a posio das imagens na sociedade contempornea por meio da relao entre o dizvel e o visvel, como Vilm Flusser, W.J.T. Mitchell e Jacques Rancire. Com base nos tericos citados, iremos defender a ideia de que no faz mais sentido falar em especificidade dos meios artsticos e tentaremos apontar caminhos alternativos para o estudo da relao entre palavra e imagem, utilizando os estudos da visualidade e da cultura visual.
Palavras-chave: Palavra, Imagem, Especificidade.
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Palavra e imagem, o caos das materialidades
Ut pictura poesis. Como a pintura a poesia. Essa expresso
usada por Horcio, poeta e filsofo da Roma Antiga, em Arte e
Potica interpretada como o princpio norteador da
aproximao entre pintura e poesia e, mais amplamente, entre
palavra e imagem. Com o tempo, essa citao de Horcio
passou a guiar grande parte dos estudos comparativos e de
correspondncia entre as artes. O terico norte-americano
W.J.T. Mitchell, em Iconology (1986), retoma o princpio do Ut
pictura poesis para refletir sobre a expanso da relao entre
palavra e imagem nas cincias humanas, uma relao que,
segundo o autor, vai alm do debate sobre a aproximao e
distanciamento entre as linguagens artsticas.
Dentre as inmeras possibilidades de interao entre palavra e
imagem no mundo contemporneo, nos debruaremos sobre a
prtica da adaptao cinematogrfica. Mais do que uma queda
de braos em que uma arte faz a outra decair, como era
Blucher Arts ProceedingsSetembro de 2015, Nmero 1, Volume 1
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comum ao pensamento dos primeiros tericos que estudaram a
prtica, adotamos aqui o ponto de vista de que o dizvel e o
visvel esto entrelaados em todas as instncias da cultura.
Consideramos que os estudos de adaptao hoje, apesar do
enorme avano, ainda tm, muitas vezes, nos estudos literrios
a sua nica fonte de procedimentos metodolgicos, o que
consideramos ser um problema, tendo em vista que uma
adaptao cinematogrfica lida tambm com imagem em
movimento.
Para uma abordagem das adaptaes para alm da teoria
literria e da semiologia, buscamos, nesse primeiro momento,
fazer uma critica anlise comparativa a partir de alguns
pensadores da cultura visual e dos estudos de visualidade que
consideram que a experincia visual contempornea no pode
ser inteiramente explicada pelos modelos de anlise textual.
Essa a crtica que Mitchell faz aos estudos estruturalistas que
pretendem discorrer sobre as questes visuais na sociedade a
partir de teorias que tentam igualar a imagem ao signo
lingustico. Esses estudos, como veremos, tm como principal
mtodo de anlise a comparao entre a linguagem flmica e a
literria. Para Mitchell (1986), essa luta entre signos imagticos
e lingusticos faz parte da cultura ocidental e o amplo debate
em torno do tema no causado apenas por um interesse
terico, mas tambm por uma disputa ideolgica.
Assim como Mitchell, o filsofo Vilm Flusser, em seu ensaio
Filosofia da Caixa Preta (2011), defende que a relao texto-
imagem fundamental para a compreenso da histria do
ocidente e que essa relao que d sentido ao mundo. O
autor divide a histria da humanidade em trs estgios, nos
quais ou a palavra ou a imagem preponderam como meio de
comunicao privilegiado, sendo eles: prhistria, histria e
pshistria.
A pr-histria foi a poca do domnio das imagens tradicionais,
elas eram as principais representantes de um modo de
significao, eram a mediao entre o homem e o mundo.
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Nesse perodo, o tempo projetado pelo olhar sobre a imagem
estabelece relaes reversveis, o tempo da magia em que o
vaguear do olhar circular: tende a voltar para contemplar
elementos j vistos (Flusser, 2011: 22).
Quando as imagens param de funcionar como mapas do
mundo, elas se tornam biombos que escondem a realidade e o
homem passa a viver em sua funo. Surge ento uma nova
forma de representao, a escrita, dando origem ao perodo da
Histria, a poca do pensamento conceitual, em que h a
traduo linearmente progressiva de imagens em textos.
Quando os textos atingem um maior nvel de abstrao para
melhor explicar a realidade, eles se afastam do concreto e
podem tapar as imagens que pretendem representar algo para
o homem (Flusser, 2011: 26). O homem perde, ento, a
capacidade de decifrar textos, vivendo em sua funo,
implicando, assim, no naufrgio do tempo da Histria.
A ps- histria marcada pelo domnio das imagens tcnicas,
em que h um processo circular que retraduz textos em
imagens. So as imagens do mundo moderno, produzidas por
aparelhos e determinadas por textos cientficos aplicados.
Aproximamos aqui essa classificao com as posies de
Mitchell, na medida em que Flusser define os perodos
histricos procurando relacionar as imagens e os textos no no
sentido de aproximar as linguagens ou de separ-las, como no
principio do Ut pictura poesis, mas de entender que as duas
linguagens caminham juntas para a produo de significados,
pois os textos no significam o mundo diretamente, mas
atravs de imagens rasgadas (Flusser, 2011: 25) e as
imagens tcnicas so produtos dos textos, sendo justamente
esse o fator que as diferenciam histrica e ontologicamente das
imagens tradicionais.
Mitchell, pensando tambm a cultura a partir das instncias do
dizvel e do visvel, trouxe para os estudos de visualidade o
termo virada pictrica (pictorial turn). Partindo da ideia do
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terico Richard Rorty que em 1967 dividiu a histria da
filosofia em viradas e que considera que a ltima delas seria a
virada lingustica Mitchell coloca em questo o modo como a
sociedade moderna tem se orientado em torno do paradigma
da visualidade, em que a imagem se torna objeto de devoo
acadmica das cincias sociais e humanas.
Em um artigo posterior ao livro Picture Theory (1994), o
chamado Showing seeing: a critique of visual culture (2002),
publicado no Journal of Visual Culture, Mitchell pontua que a
sua ideia de virada pictrica no quer dizer que a era moderna
nica ou sem precedentes na sua obsesso com a
representao visual. A virada pictrica um tropo, uma figura
de linguagem que tem sido repetida muitas vezes na histria da
humanidade, desde a antiguidade. justamente por no
entender essas viradas como acontecimentos sucessivos e
lineares que Mitchell se diferencia da ideia da virada lingustica
de Rorty.
Jacques Rancire outro filsofo que no partilha da ideia de
uma histria dividida em perodos sucessivos e lineares,
defendendo, por exemplo, a ideia de retorno e de presena
simultnea de regimes de arte. Pensando a arte de forma
anacrnica, em A Partilha do sensvel (2009), o autor afirma
ser possvel distinguir trs grandes regimes de identificao
nas artes de tradio ocidental: tico, representativo e
esttico.O primeiro seria o regime tico das imagens. A
formulao desse paradigma tem origem em Plato e
estabelece uma distribuio de imagens em relao ao ethos
da comunidade. Nesse modelo, as imagens so arranjadas de
acordo com sua origem, seus fins e efeitos que produzem. O
regime tico separa os simulacros artsticos da verdadeira
arte. O regime representativo surgiu da crtica de Aristteles a
Plato e estabeleceu uma srie de axiomas que liberou as
artes da moral, da religio e dos critrios sociais do regime
tico. Mais do que representar a realidade, os trabalhos no
regime representativo obedecem a uma srie de preceitos que
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definem as formas prprias da arte, organizando as maneiras
de fazer, ver e julgar. No regime esttico, terceiro regime, a
identificao da arte no se d mais pelos modos de fazer, mas
pela distino de um modo de ser sensvel prprio aos
produtos de arte (Rancire, 2009: 32).
Em O destino das imagens (2012a), Rancire declara que a
anlise comparativa que privilegia o purismo das linguagens
artsticas comum teorizao modernista do regime esttico
das artes, aquela que pensa a ruptura com o regime
representativo em termos de autonomia da arte e da separao
entre as artes (Rancire, 2012a: 50). A classificao de
materiais prprios a determinado meio, para o autor, no faz
mais sentido, uma vez que o prprio estatuto da imagem
mudou e a arte passou a ser compreendida como um
constante deslocamento entre as instncias do dizvel e do
visvel, em que j no so mais as formas que se analogizam,
so as materialidades que se misturam diretamente (2012a
:52). justamente essa justaposio catica das
materialidades e das significaes que do art