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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA REA DE FILOSOFIA DA MENTE, EPISTEMOLOGIA E LGICA
DUAS DIFERENTES PERSPECTIVAS PARA O ESTUDO DA
CONSCINCIA NA FILOSOFIA CONTEMPORNEA DA
MENTE
Gustavo Vargas de Paulo
MARLIA
2012
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
REA DE FILOSOFIA DA MENTE, EPISTEMOLOGIA E LGICA
DUAS DIFERENTES PERSPECTIVAS PARA O ESTUDO DA
CONSCINCIA NA FILOSOFIA CONTEMPORNEA DA
MENTE
Gustavo Vargas de Paulo
MARLIA 2012
Dissertao apresentada ao programa de Ps-graduao em Filosofia da Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia. Orientadora: Prof. Dr. Mariana Claudia Broens
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Paulo, Gustavo Vargas de.
P331d Duas perspectivas para o estudo da conscincia na
filosofia / Gustavo Vargas de Paulo. - Marlia, 2012
122 f. ; 30 cm.
Dissertao (mestrado) Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Cincias 2011
Bibliografia: f. 119-122 Orientador: Mariana Claudia Broens
1.John R. , 1932- 2. Dennett, Daniel Clement. 3. Filosofia da mente. 4. Conscincia. 4. Subjetividade. I. Autor. II. Ttulo. CDD 128.2
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DUAS DIFERENTES PERSPECTIVAS PARA O ESTUDO DA
CONSCINCIA NA FILOSOFIA CONTEMPORNEA DA
MENTE
Gustavo Vargas de Paulo
BANCA EXAMINADORA:
Presidente Prof. Dr. Mariana Claudia Broens
__________________________________________
1. Examinador Prof.Dr. Joo de Fernandes Teixeira
__________________________________________
2. Examinador Prof. Dr. Alfredo Pereira Junior
__________________________________________
Dissertao apresentada ao programa de Ps-graduao em Filosofia da Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.
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Agradecimentos
Dedico este trabalho minha famlia sem cujo apoio no teria condies de realiz-lo.
Agradeo aos meus tios Ricardo e Hustana pelo apoio e considerao gratuitos.
Agradeo ao Prof. Florncio de Souza Paz por ter ainda na graduao despertado meu
interesse pela rea de estudos em que este trabalho se situa.
Agradeo Prof. Maria Eunice Gonzalez pela grande receptividade, pela ateno e pelo
afinco na conduo das pesquisas em que tive a oportunidade de participar.
Agradeo minha orientadora Prof. Mariana Claudia Broens pela grande receptividade, pela
ateno, pela pacincia e pelo cuidado e compromisso na conduo de nossas pesquisas.
Agradeo aos Profs. Joo de Fernandes Teixeira e Alfredo Pereira Junior pelas participaes
nas bancas examinadoras deste trabalho e pelas valiosas contribuies.
Agradeo FAPESP pelo apoio financeiro disponibilizado para a realizao desta pesquisa.
Agradeo enfim a todos os professores, amigos e colegas cujas conversas fizeram da filosofia
um exerccio prazeroso e instigante ajudando a compor trechos de idias ou mesmo fazendo o
meu caminho menos penoso e difcil.
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Quando as portas se fecham, a mente se abre
Quando as velhas idias cedem, as novas renascem
Quando as velas se apagam, as luzes se acendem
Quando a voz da natureza no se cala, as pessoas a entendem
Vivo em minha prpria casa
Jamais imitei algo de algum
E sempre ri de todo mestre
Que nunca riu de si tambm
Nietzsche
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RESUMO O objetivo desta dissertao propor um estudo comparativo envolvendo duas diferentes perspectivas tericas para o estudo da conscincia situadas no contexto da Filosofia Contempornea da Mente e das Cincias Cognitivas. Analisaremos criticamente seus pressupostos, suas divergncias e o alcance de suas propostas considerando os filsofos da mente John R. Searle e Daniel C. Dennett como paradigmas representantes de cada uma das duas perspectivas. A filosofia da mente de John Searle caracteriza-se por levar em considerao os aspectos subjetivos dos estados conscientes em uma perspectiva que nunca permite dispensar ou desconsiderar os dados de primeira pessoa no estudo da conscincia. Estes dados geralmente dizem respeito s experincias conscientes e s peculiares impresses e sensaes internas tais como os qualia. Por outro lado, Daniel Dennett adota a perspectiva de terceira pessoa no estudo da conscincia, buscando critrios cientficos para o desenvolvimento deste estudo sustentado por dados publicamente observveis e intersubjetivamente definveis. Estes dados levam em conta as evidncias comportamentais, informacionais ou neurofisiolgicas que remetem a aspectos mentais, tentando assim estabelecer uma relao explicativa destes com o que se entende por conscincia. No atual campo de pesquisas da Filosofia da Mente junto s Cincias Cognitivas no h consenso sobre o mtodo mais adequado para o estudo da conscincia sendo, ao contrrio disso, composto por vrias divergncias. Por este motivo, consideramos relevante uma confrontao entre as principais perspectivas utilizadas no estudo do assunto. Buscaremos realizar esta tarefa analisando as contribuies das teorias estudadas para a elucidao da relao subjetividade/objetividade dos estados conscientes. Palavras-chave: Filosofia da Mente; John Searle; Daniel Dennett; Conscincia; Subjetividade.
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ABSTRACT
This research is a comparative study of two different theoretical perspectives on the study of the consciousness, in the context of the contemporary philosophy of mind and the cognitive sciences. We analyze their presuppositions, their differences, and the reach of the two proposals, considering the philosophers of mind John R. Searle and Daniel C. Dennett as paradigmatic representatives of each of the two perspectives. The philosophy of mind of John Searle is characterized by the taking into consideration of the subjective aspects of conscious states, in a perspective that never allows the discarding or ignoring of first person data. These data generally have to do with conscious experiences and with specific impressions and internal sensations such as qualia. Daniel Dennett, on the other hand, adopts the third person perspective in the study of the consciousness, seeking scientific criteria that are supported by publicly observable and intersubjectively definable data. These data take into account behavioral, informational, or neurophysiological evidence that refers to mental aspects, thus attempting to establish an explanatory relation between these aspects and what is understood as consciousness. In the current field of research in philosophy of the mind, as well as in the Cognitive Sciences, there is no consensus on the most adequate method for the study of the conscience, and in fact various tendencies exist within the field. For this reason, we consider it relevant to compare the two main perspectives in the study of the subject. We attempt to carry out this task by analyzing the contributions of the theories under consideration, in order to elucidate the subjectivity/objectivity relationship in conscious states. Keywords: Philosophy of Mind; John Searle; Daniel Dennett; Consciousness; Subjectivity.
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SUMRIO
Introduo......................................................................................................... 11
1. John Searle e a conscincia como um fenmeno biolgico
Apresentao........................................................................................................................... 19
1.1 Teses centrais sobre a natureza da conscincia segundo John Searle............................... 20
1.2 Francis Crick: o binding problem e a hiptese dos 40 Hertz............................................ 25
1.3 Gerald Edelman: grupos de neurnios e o mapeamento de reentrada.............................. 30
1.4 A noo searleana de causao no estudo da conscincia................................................ 36
1.5 Searle e o dualismo de propriedades................................................................................ 42
2. O novo modelo para o estudo da conscincia segundo Daniel C. Dennett
Apresentao.......................................................................................................................... 46
2.1 Daniel Dennett e a Postura Intencional........................................................................... 48
2.2 O teatro cartesiano.......................................................................................................... 51
2.3 O Modelo dos esboos mltiplos..................................................................................... 53
2.4 A mente como um pandemnio segundo Daniel Dennett............................................... 57
2.5 A Conscincia e os memes.............................................................................................. 62
2.6 A Mquina Joycena: uma mquina virtual implantada evolutivamente no crebro....... 64
2.7 Representaes mentais e a conscincia.......................................................................... 69
2.8 O Uso da informao segundo Dennett........................................................................... 75
3. As controvrsias entre John Searle e Daniel Dennett a respeito do estudo da conscincia Apresentao......................................................................................................................... 81
3.1 Os pressupostos da filosofia de Searle............................................................................ 82
3.2 O argumento do quarto chins e a crtica ao Funcionalismo.......................................... 85
3.3 A crtica dennettiana ao quarto chins............................................................................ 89
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3.4 A crtica de Searle a Dennett e ao materialismo contemporneo................................ 94
3.5 Dennett versus Searle, Nagel, Jackson e Chalmers sobre a conscincia........................ 99
3.6 A Conscincia segundo Dennett aps Consciousness Explained................................... 106
4. Consideraes Finais................................................................................. 114
5. Referncias Bibliogrficas............................................................ 119
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NDICE DE FIGURAS E DIAGRAMAS
Figuras
Figura 1: A causao searleana............................................................................................... 39
Figura 2: Color Phi phenomenon............................................................................................ 55
Figura 3: Ilustrao do modelo funcionalista exposto em Consciousness Explained............ 67
Figura 4: A pardia do quarto chins por David Chalmers.................................................... 87
Diagramas
Diagrama 1: Diferentes conceitos de conscincia na Filosofia da Mente e nas Cincias
Cognitivas................................................................................................................................ 12
Diagrama 2: Classificao de diferentes posies na Filosofia da Mente
contempornea....................................................................................................................... 116
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INTRODUO
...neste mundo novo e desconhecido no tinham os seus antigos guias, estes instintos reguladores, inconscientemente falveis; viam-se reduzidos a pensar, a deduzir, a calcular, a combinar causas e efeitos. Infelizes! Viam-se reduzidos sua conscincia, ao seu rgo mais fraco e mais coxo! Creio que nunca houve na terra desgraa to grande, mal-estar to horrvel! (Friedrich Nietzsche, A Genealogia da Moral)
O objetivo central desta dissertao efetuar uma anlise comparativa de duas diferentes
perspectivas tericas para o estudo da conscincia situadas no contexto da Filosofia
Contempornea da Mente e das Cincias Cognitivas. No decorrer dos estudos que
possibilitaram esta investigao, identificou-se uma variedade de programas de pesquisa
dentro do que podemos chamar Cincia Cognitiva, em referncia nova cincia da mente que
vem surgindo desde os anos 50 do sculo passado, composta por vrias disciplinas: Filosofia,
Inteligncia Artificial, Neurocincia, Antropologia, Psicologia e a Lingustica (GARDNER,
2003). Essa variedade de programas de pesquisa marcada por divergncias quanto aos
mtodos de estudo da mente e, no cerne destas divergncias, encontra-se o problema central
da conscincia. Vamos tratar das diferentes propostas para o estudo da conscincia, dando
ateno especial s perspectivas adotadas pelos filsofos da mente contemporneos John
Rogers Searle e Daniel Clement Dennett. Ser feito um recorte em relao totalidade das
obras dos dois apresentando os resultados e as propostas que mais interessam para a anlise
das duas linhas de pesquisa divergentes para a explicao da natureza da conscincia.
Uma definio de conscincia tem sido pouco arriscada pelas vrias disciplinas que a
estudam como tema central ou como tema relativo a outros aspectos cognitivos. A
conscincia em nosso trabalho ser vista como uma propriedade da mente diferencivel tanto
da auto-conscincia, da sencincia, da sapincia, da conscincia moral ou da capacidade de
dirigir a ateno a algum aspecto do ambiente, embora a diferena seja muitas vezes apenas
terminolgica e possa convergir em suas capacidades com estas outras propriedades das
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mentes. No daremos neste incio de trabalho uma definio de conscincia, mas mostraremos
como o tema visto dentro das Cincias Cognitivas em geral e posteriormente ser visto que
no h sequer consenso sobre a definio de conscincia entre John Searle e Daniel Dennett.
A seguir esboado um diagrama sobre os vrios tipos de conscincia que as disciplinas das
Cincias Cognitivas geralmente atribuem s mentes seguido de uma breve descrio de cada
um:
CONSCINCIA
(Conscincia Fenomnica) (Conceitos Cognitivos de Conscincia)
(Percepo Fenomnica) (Conscincia do EU) (Conscincia Monitora) (Conscincia de Acesso)
(Introspeco) (Acompanhamento de um Estado Mental
com um Pensamento de Ordem Mais Alta)
Diagrama 1: Diferentes conceitos de conscincia na Filosofia da Mente e nas Cincias Cognitivas
(PESSOA JR., 2012; GONALVES, 2012)
A conscincia fenomnica remete experincia subjetiva dos estados conscientes, em que
as qualidades fenomenolgicas das experincias nos aparecem de imediato, sendo diferentes
para cada tipo de vivncia especfica. Assim, a experincia de beber vinho diferente da
experincia de beber cerveja, assim como ambas so qualitativamente diferentes da
experincia de refletir sobre um problema filosfico ou da sensao que nos provoca uma
volta em uma montanha russa. importante lembrar que a conscincia fenomnica inclui no
s a percepo fenomnica do mundo exterior relativa s qualidades que os objetos externos
nos provocam, mas tambm os aspectos qualitativos intrnsecos s percepes internas como
percepes corporais como a fome e o frio, sensaes provocadas por estados mentais como o
medo ou a esperana ou a prpria experincia do pensamento, como a experincia de resolver
um raciocnio matemtico. Estes aspectos qualitativos das experincias conscientes so
chamados qualia (plural do latim quale) pela tradio filosfica e veremos ao longo desta
dissertao como podem ser problemticos para o estudo da subjetividade da conscincia.
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Entre os conceitos cognitivos de conscincia, est a conscincia do eu, que envolve a
formao de um conceito de si mesmo com um ego ou self provido de unidade corporal e
psquica. Com esse tipo de conscincia, podemos pensar sobre ns mesmos como seres
providos de identidade distinta do ambiente que nos cerca, isto , somos ns mesmos auto-
conscientes ou conscientes do nosso eu.
A conscincia denominada monitora na Figura 1 inclui a introspeco e a referncia de
um estado mental de ordem mais alta a outro de ordem menos alta. Na linguagem comum, a
introspeco o ato pelo qual o sujeito observa os contedos de seus prprios estados
mentais, tomando conscincia deles. Nas Cincias Cognitivas isso tem sido interpretado como
uma espcie de escaneamento interno em que o sujeito visita contedos da memria. Iremos
no decorrer de nossa exposio apontar alguns problemas com a noo usual da capacidade de
introspeco das mentes. Em segundo lugar, a conscincia monitora inclui tambm referncia
de um estado mental de ordem mais alta (ou superior) a outro de ordem menos alta. Estes
estados mentais de ordem mais alta (primeira ordem, segunda ordem etc.) foram denominados
pelo filsofo David Rosenthal (2004) pensamentos. Iremos mais frente discutir o uso de
Dennett da teoria de Rosenthal e mostrar como a auto-referncia de estados mentais de
diferentes ordens pode ajudar a esclarecer a noo de conscincia.
Por ltimo, a conscincia de acesso expressa pelo fato de que as representaes mentais
esto disponveis para o uso comportamental ou verbal no controle global, mas no
necessariamente para a conscincia fenomnica, ressaltando a diferena desta ltima da
conscincia de acesso. Ned Block1 define que a conscincia de acesso necessariamente
reportvel verbalmente, o que no acontece com os aspectos fenomnicos. Dessa maneira, um
motorista pode estar dirigindo na estrada, fazendo as curvas e mudando as marchas
automaticamente. De repente acorda e percebe que no estava consciente do que fazia2.
Os conceitos cognitivos de conscincia se prestam mais ao estudo da conscincia atravs
da perspectiva de terceira pessoa em busca de uma teoria cientfica sobre o tema. Adotar a
perspectiva de terceira pessoa significa exigir um estudo objetivo da mente em geral e da
conscincia em particular nos moldes das cincias modernas e contemporneas, j que, no
1 GONALVES, Jorge. http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8360.pdf. Data de acesso: 20/02/2012. 2 Armstrong, A Materialist Theory of Mind, 1968, p. 93. Apud PESSOA Jr, Osvaldo. http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/TCFC3-11-Lexico-2.pdf. Data de acesso: 20/02/2012.
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por acaso, esta a perspectiva usada por estas cincias. Os dados considerados por esta
perspectiva sero ento objetivos e mostraremos logo frente o que entendemos por este tipo
de objetividade, exemplificando com tais tipos de dados. O uso desta perspectiva no estudo
da conscincia traz o peculiar problema de se estudar a conscincia objetivamente, ou seja, o
problema de se estudar a subjetividade objetivamente sem que ela perca suas prprias
caractersticas subjetivas.
A conscincia fenomenal, ao contrrio dos conceitos cognitivos de conscincia expostos
acima, encontra srias dificuldades para uma abordagem cientfica. O seu tipo de explanao
e a relao das experincias conscientes subjetivas com os correlatos neurais e o
funcionamento do crebro em seu processamento de informaes suscitou o surgimento de
vrias correntes e posies tericas na filosofia da mente contempornea e nas Cincias
Cognitivas. Alm disso, a elucidao das experincias subjetivas ocupou filsofos da corrente
fenomenolgica tais como Husserl3, Merleau-Ponty4 e Sartre5 sem sucesso na explicao
cientfica dos aspectos de primeira pessoa da conscincia.
Este tipo de explicao consiste no que David Chalmers denomina o problema difcil
(hard problem) da conscincia, em referncia dificuldade de explanao dos dados trazidos
pela perspectiva de primeira pessoa no estudo deste assunto (CHALMERS, 2004, p. 2).
Adotar a perspectiva de primeira pessoa significa estudar a mente como um fenmeno
subjetivo no mundo, exigindo explicao no s dos fenmenos observveis como dados
neuronais ou comportamentais, mas, alm deles, das experincias conscientes e das
impresses e sensaes subjetivas relativas a estas. Autores que adotam esta perspectiva
geralmente consideram os estudos cientficos da mente atravs da perspectiva de terceira
pessoa como incompletos e transviados do objetivo principal, que seria o estudo da
conscincia e dos seus aspectos subjetivos (SEARLE, 1997, p. 19-42).
3 Edmund Husserl (1859-1938) - filsofo, matemtico e lgico o fundador da Fenomenologia como mtodo de investigao filosfica e estabeleceu os principais conceitos e mtodos que seriam amplamente usados pelos filsofos desta tradio. Idealizou um recomeo para a filosofia como uma investigao subjetiva e rigorosa que se iniciaria com os estudos dos fenmenos como aparentam a mente para encontrar as verdades da razo. 4 Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) foi o mais importante fenomenlogo francs. Suas obras, A Estrutura do comportamento (1942) e Fenomenologia da percepo (1945), foram os mais originais desenvolvimentos e aplicaes posteriores da Fenomenologia produzidos na Frana. 5 Jean-Paul Sartre (1905-1980) segue estritamente o pensamento de Husserl na anlise da conscincia em seus primeiros trabalhos, A Imaginao (1936) e O Imaginrio: Psicologia fenomenolgica da imaginao (1940), nos quais faz a distino entre a conscincia perceptual e a conscincia imaginativa aplicando o conceito de intencionalidade de Husserl.
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A conscincia um tema caro ao estudo dos aspectos mentais atravs da perspectiva de
primeira pessoa, sendo a intencionalidade mental e a relao dos estados mentais com o
crebro temas correlatos que mantm ntima conexo com o estudo dos estados conscientes.
Searle (1995) reivindica que nem todos os estados mentais intencionais so conscientes e que
nem todos os estados mentais conscientes so intencionais, mas que h uma ligao entre tais
estados que no acidental, devendo, portanto, ser esclarecida.
Em relao ao problema da relao entre mente e crebro, Searle (SEARLE, 1995, p. 221-
224) afirma que para que um estado seja classificado como mental, ele deve ser pelo menos
potencialmente acessvel conscincia. Isso significa que um estado cerebral pode
permanecer inconsciente em um determinado momento vindo a emergir conscincia em
outro, e que este princpio da conexo entre estados cerebrais inconscientes e estados mentais
conscientes nos fornece um critrio sobre o que mental. Os estados cerebrais que no so
potencialmente conscientes no podem ser classificados como mentais, mesmo que auxiliem a
produo de estados mentais, como, por exemplo, o processo bioqumico de mielinizao dos
axnios o faz, mas nem por isso se caracteriza como mental.
John Searle conduz suas pesquisas sem dispensar os aspectos subjetivos do mundo.
Embora no se auto-proclame defensor do estudo da perspectiva de primeira pessoa nem
dispense o estudo cientfico da conscincia, mostraremos aqui como Searle sustenta os
aspectos de primeira pessoa da conscincia evitando seu desaparecimento sob a corrente
objetivista das teorias contemporneas. Para o filsofo, parte da realidade subjetiva e negar
isto seria negar seu prprio objeto de estudo. A reduo destes aspectos a outros quaisquer
tambm no aceita e, por isso, eles devem ser explicados como o que so e com suas
caractersticas prprias. Para isso, ele postula trs caractersticas indispensveis: os estados
mentais conscientes so internos, qualitativos e subjetivos. Estas caractersticas, junto com
toda a viso de Searle sobre a conscincia sero expostas no decorrer de nossa dissertao,
assim como as propostas de Daniel Dennett, a seguir brevemente resumidas.
Dennett, em contraste com Searle, um defensor do uso da perspectiva de terceira pessoa
no estudo da mente e da conscincia como uma propriedade mental, sendo que o autor no
considera que a conscincia deva ser estudada separadamente dos estados mentais
inconscientes e dos demais processamentos de informao que ocorrem no crebro. Para
Dennett, a perspectiva de terceira pessoa usada em seu estudo da conscincia a mesma que
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as cincias exigem e que os cientistas adotam em suas pesquisas, o que o leva a conceber os
fenmenos mentais de forma objetiva, ou seja, de maneira que possam ser publicamente
observveis e intersubjetivamente definveis, desprovidos de aspectos misteriosos ou
indescritveis. Entre estes aspectos esto os qualia, os quais o filsofo acaba por descartar, e
que so to fundamentais para Searle no estudo da conscincia.
Em rejeio aos qualia, Dennett oferece uma intrincada teoria da mente e da
conscincia, cujas partes se articulam de forma a abranger vrios aspectos dos tradicionais
problemas da Filosofia da Mente. Em relao conscincia em particular, esta pode ser vista
como uma mquina Joycena (explicaremos o porqu desta denominao na seo 2.6 do
segundo captulo) serial instalada evolutivamente na arquitetura paralela do crebro, de
maneira que seu funcionamento seja identificado mesmo que essa instalao no seja feita
com a alterao dos componentes do substrato fsico, analogamente a um novo software
instalado no mesmo hardware, sendo denominada por isso uma mquina virtual. Essa
mquina virtual Joyceana constri narrativas mais ou menos contnuas a partir dos esboos
feitos constantemente em mltiplos lugares da arquitetura paralela do crebro e, por isto, a
mente ser mais bem vista, segundo Dennett, como um pandemnio do que como uma
burocracia em que a sequncia de estados mentais/cerebrais estaria hierarquicamente
organizada (elucidaremos o sentido de pandemnio na seo 2.4 do segundo captulo). As
narrativas que tomamos como conscientes seriam feitas a partir dos esboos mltiplos, o que
implica uma diviso pouco ntida entre estados mentais conscientes e estados mentais
inconscientes, sendo que os primeiros s surgiriam aps uma intrincada guerra entre os
numerosos e variados demnios constituidores de nossas mentes. Iremos tratar de forma mais
extensa das teorias de Searle e Dennett sobre a conscincia nos prximos dois captulos que
lhes sero dedicados, nos limitando aqui a essa breve apresentao.
Contudo, a adoo de uma perspectiva para o estudo da conscincia implicaria
necessariamente em exclusividade desta e rejeio da outra? Dentro dos estudos
contemporneos sobre a mente h autores que sugerem a possibilidade de correlao dos
dados trazidos pela perspectiva de terceira pessoa com os dados analisados sob a perspectiva
de primeira pessoa. o que faz David Chalmers (2004) ao avaliar os obstculos e
dificuldades para o alcance de uma cincia adequada da conscincia, em que se sistematizaria
a conexo dos dados levantados pelas perspectivas de primeira e terceira pessoas. Para
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esclarecer o que entendemos por estes dados vamos utilizar a descrio feita por Chalmers
(2004).
Dados que surgem quando adotamos a perspectiva de primeira pessoa e analisamos as
experincias conscientes e os aspectos subjetivos do mundo esto relacionados com
(CHALMERS, 2004, p. 2):
Experincias visuais (p. ex., a experincia da cor e da profundidade)
Outras experincias perceptuais (p. ex., experincias auditivas e tteis)
Experincias corporais (p. ex., dor e fome)
Imaginrio mental (p. ex., recordar imagens visuais)
Experincias emocionais (p. ex., felicidade e raiva)
A ocorrncia de pensamentos (p. ex., a experincia de refletir e decidir)
Por outro lado, dados considerados a partir da perspectiva de terceira pessoa so
normalmente evidncias comportamentais, disposicionais, informacionais e neurofisiolgicas
que remetem a aspectos mentais. Estes dados dizem respeito a (CHALMERS, 2004, p. 1-2):
Discriminaes perceptuais de estmulos externos.
Integrao de informaes atravs das modalidades sensoriais.
Aes automticas e voluntrias.
Acesso a informaes externamente representadas.
Reportabilidade verbal de estados internos.
Diferenas entre o sono e a viglia
Nas pesquisas atuais no h um consenso sobre como conciliar as perspectivas de primeira
e terceira pessoas ou mesmo sobre como correlacionar seus respectivos dados. A adoo de
cada uma dessas perspectivas para o estudo da conscincia acarreta consequncias nos
mtodos utilizados para seu estudo, nos pressupostos assumidos e mesmo na concepo sobre
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o que significa elucidar os problemas que dizem respeito aos aspectos das experincias
conscientes.
As diferentes perspectivas adotadas por Searle e Dennett acabam por levar ambos a
esperarem resultados diferentes das pesquisas sobre a conscincia. Suas divergncias tambm
acarretam diferentes possibilidades tericas quanto aos rumos para uma cincia dos aspectos
relevantes dos estados conscientes. Um exame dos pressupostos e do pano de fundo terico
que guiam estas perspectivas de fundamental relevncia para o estabelecimento da
compatibilidade ou incompatibilidade das duas e para a avaliao do significado dos
resultados apresentados por cada filsofo.
Nossa pesquisa sobre as perspectivas de primeira e terceira pessoas no estudo da
conscincia realizada atravs do recurso bibliografia especializada da Filosofia da Mente e
das Cincias Cognitivas, especialmente as obras de Searle e Dennett e outros autores que
tambm se debruaram sobre o tema. Este estudo pretende-se temtico, de forma que as
contribuies dos diversos autores consultados e que dizem respeito a aspectos das
experincias conscientes abordados por Dennett e Searle sejam levadas em conta para uma
anlise aprofundada das duas perspectivas no atual estado das pesquisas sobre a mente
conforme os objetivos propostos.
Os resultados conseguidos at aqui ressaltam a falta de acordo sobre um mtodo para
estudo da conscincia e mostram a crescente necessidade de dilogo entre as mais diversas
reas para obter um maior poder de explanao sobre o assunto. A contraposio das teses de
Daniel Dennett e John Searle fundamental para a necessria anlise da discusso levantada
pelas diferentes perspectivas no estudo filosfico-interdisciplinar sobre a natureza da
conscincia.
Esta contraposio ser feita neste trabalho atravs da apresentao das vises sobre a
conscincia de John Searle e Daniel Dennett, respectivamente, nos dois primeiros captulos.
No terceiro captulo ser feita uma relao entre as duas diferentes vises defendidas pelos
dois filsofos ressaltando os argumentos formulados por cada um visando uma anlise da
discusso sobre a perspectiva mais adequada para o estudo da conscincia. Por ltimo,
exporemos nas consideraes finais um parecer sobre a anlise das teses mais ou menos
sustentveis das teorias de Dennett e Searle junto a sugestes gerais para o estudo da
conscincia no desenvolvimento das pesquisas sobre o tema.
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CAPTULO I
John Searle e a conscincia como um fenmeno biolgico
A conscincia a ltima fase da evoluo do sistema orgnico, por consequncia tambm aquilo que h de menos acabado e de menos forte neste sistema. (Friedrich Nietzsche, A Gaia Cincia)
Apresentao
Iremos neste captulo analisar as propostas do filsofo americano John Searle para o
estudo da conscincia, juntamente com seu parecer sobre duas diferentes teorias
neurocientficas que dizem respeito ao tema, a saber, as teorias de Francis Crick e Gerald
Edelman. Estas duas teorias sobre a conscincia foram consideradas por Searle no livro O
Mistrio da Conscincia (1998), em que analisou criticamente obras fundamentais destes
autores. Essas duas teorias representam, segundo Searle, linhas de pesquisa sobre a
conscincia relevantes no ramo das Cincias Cognitivas, sendo Francis Crick e Gerald
Edelman neurocientistas que buscam a soluo para o problema da conscincia na interao
neuronal feitas nos mecanismos cerebrais, embora proponham duas teorias diversas com
caractersticas peculiares ao ponto de vista de cada um.
Analisaremos essas duas teorias porque para Searle, assim como para Daniel Dennett,
a investigao sobre a natureza da conscincia no apenas um problema filosfico, e
importante ressaltar que, para ambos, a natureza da conscincia s ser realmente esclarecida
quando se chegar a uma teoria cientfica ao menos to boa quanto o modelo da estrutura
atmica de Bohr, a fsica de Newton ou a evoluo por seleo natural de Darwin. Dessa
maneira, consideramos importante analisar o parecer de Searle sobre estas teorias que
almejam tornar a conscincia um tema cientfico. Alm deste motivo relacionado
abordagem interdisciplinar de Searle, iremos ressaltar aqui que os pressupostos de sua
filosofia se encaixam em uma linha de pesquisa sobre a conscincia baseada na neurocincia.
Desse modo, as teses que Searle defende s poderiam ser realmente confirmadas em uma
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futura cincia do crebro que as demonstrasse ou considerasse relevantes. Diferentemente de
outros filsofos ou cientistas cognitivos que apiam uma ou outra tese funcionalista ou
computacionalista baseada na Inteligncia Artificial (IA), Searle no apia nenhuma teoria
especfica sobre o funcionamento do mecanismo neuronal. Tentaremos mostrar aqui que sua
proposta de considerar a conscincia uma caracterstica interna ao crebro, sem deixar de lado
aspectos subjetivos, juntamente com sua peculiar noo de causalidade, conduzem a uma
filosofia que necessita ser amparada pelo ponto de vista neurocientfico.
Searle professor da Universidade de Berkeley e se dedica h dcadas aos problemas
filosficos relacionados natureza e propriedades da mente, depois de trabalhar com a teoria
dos atos de fala inicialmente esboada por John Langshaw Austin. Em suas pesquisas sobre
os atos de fala, Searle concluiu que as capacidades relevantes da linguagem derivam das
capacidades da mente, sendo que a forma de se referir ao mundo pela linguagem derivada
da forma de se referir ao mundo pela mente e, dessa maneira, seria necessrio entender as
capacidades mais bsicas da mente para o entendimento das capacidades lingusticas.
Sem deixar de lado os problemas que lhe chamaram a ateno desde o incio, Searle
ampliou seus temas e dialogou com filsofos, neurocientistas e cientistas cognitivos,
apresentando suas principais propostas e criticando fortemente teorias opostas.
A partir de agora iremos expor resumidamente as principais propostas e caractersticas
consideradas essenciais por Searle para o estudo da conscincia. Em seguida, nas duas sees
posteriores, nos dedicaremos s teorias de Francis Crick e Gerald Edelman, respectivamente,
ficando as sees finais para a exposio da causalidade cerebral segundo o ponto de vista
searleano junto a alguns comentrios crticos sobre sua filosofia.
1.1 Teses centrais sobre a natureza da conscincia segundo John Searle
Segundo Searle, o aspecto primrio e essencial das mentes a conscincia, ou seja, ela
a noo mental central (SEARLE, 1997, p. 125), e, por isso, devemos entender as
experincias conscientes para entender a mente. primeira vista, convm evitar
ambiguidades e confuses quanto definio de conscincia.
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Para Searle no h problemas com uma definio descritiva e simples da conscincia,
trata-se de um estado que se inicia aps acordarmos de um sono sem sonhos (pois os sonhos
tambm so conscientes) e termina quando morremos, entramos em coma ou dormimos
novamente. A conscincia ento como um interruptor liga/desliga e quando ligado nos
estados de viglia dirige nossa ateno realidade e a ns mesmos atravs do que chamamos
experincias conscientes. Um sistema pode estar consciente ou no, mas a partir do momento
em que est consciente existem graus de conscincia. (SEARLE, 1997, p. 124) As
experincias conscientes so ento experincias de ocorrncias reais no mundo, mas no
necessariamente de si mesmas. Isso quer dizer que conscincia no implica autoconscincia.
Quando chutamos uma pedra somos conscientes do chute na pedra, mas no necessariamente
somos conscientes de sermos conscientes do chute na pedra. Ns, seres humanos, podemos
refletir sobre as nossas prprias experincias conscientes, e assim somos conscientes de
sermos conscientes, praticando, por assim dizer, a autoconscincia.
Seguindo com o estudo da conscincia, Searle indica trs caractersticas que no
devem ser desconsideradas e tira da concluses e pressupostos para seu pensamento: os
estados conscientes so internos, qualitativos e subjetivos. So internos no sentido de que
acontecem dentro de um crebro, necessariamente dentro de um organismo vivo, no podem
andar por a isentos de um corpo e de um crebro. Em outro sentido, a conscincia interna
porque os estados conscientes acontecem em uma determinada sequencia de estados
conscientes. No h um estado consciente que exista por si s sem relao com outras
experincias conscientes. Os estados conscientes so resultados de uma vida consciente, e so
internos a um encadeamento de eventos relacionados conscincia. Portanto,
ontologicamente, um estado consciente s existe por uma vida consciente.
Searle ressalta ainda que os estados conscientes so qualitativos porque so sentidos
de um determinado modo, h uma qualidade para cada experincia consciente, que so por
vezes chamadas qualia. Para cada caracterstica de um estado consciente existe um modo de
experiment-lo. Quando somos conscientes de ouvir uma msica, experimentamos esse
estado de ouvir msica de maneira diferente de quando bebemos vinho. Essa caracterstica diz
respeito ao sujeito que vive uma experincia consciente com uma qualidade prpria.
A subjetividade dos estados conscientes decorre de que tais estados so
experimentados sempre por um sujeito humano ou animal. A conscincia ento dependente
de um sujeito para existir. Com isso conclumos, com Searle, que a conscincia tem uma
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ontologia de primeira pessoa. Objetos inanimados no precisam de um sujeito para existirem,
existem sem a conivncia de seres vivos. Essa , grosso modo, a chamada ontologia de
terceira pessoa (cujas principais caractersticas apresentaremos posteriormente). A ontologia
de primeira pessoa diz respeito existncia de algo, que no pode existir independentemente
de um sujeito, j a ontologia de terceira pessoa diz respeito a objetos que no dependem de
um sujeito para existirem.
Uma questo que costumeiramente se coloca no estudo da conscincia como se pode
identific-la em relao aos vrios graus da escala evolutiva representados por animais dos
mais variados graus de complexidade. Searle dar uma original resposta a esta questo que,
embora considere aspectos do comportamento, no dispensa as experincias subjetivas do
prprio observador. Primeiramente, outros animais, assim como os humanos, podem ser
conscientes, podemos atribuir conscincia a um cachorro ou a um babuno, mas no
autoconscincia no sentido anteriormente explicado. Isso parece estranho, pois sabemos que
ns prprios somos conscientes, mas como atribuir conscincia a outras mentes? Ou melhor,
como descobrir outras mentes em outros seres, e, portanto, atribuir-lhes conscincia? Por
certo, no atual estado da pesquisa em neurobiologia no podemos abrir um crebro e notar
ocorrncias envolvendo neurnios e sinapses que correspondam a estados conscientes. Nem
h uma clara ocorrncia comportamental em que somente por ela poderamos identificar uma
mente consciente.
Searle pondera que pela observao da estrutura fisiolgica dos animais aliada ao
comportamento que notamos mentes e atribumos conscincia. Nossos prprios estados
conscientes tm relao com alguns rgos de nosso corpo cujas capacidades fazem com que
eles apreendam dados vindos do mundo exterior. Alguns exemplos: quando temos uma
experincia visual com nossos olhos, somos conscientes de ver algo; quando gritam nos
nossos ouvidos, somos conscientes de ouvir aquele grito; quando nos relacionamos com o
mundo atravs de nosso corpo, somos conscientes de rgos que exercem determinada
funo, e assim temos conscincia da nossa estrutura fisiolgica. Sabemos como estes rgos
causam a conscincia do mundo e temos comportamentos caractersticos de estados
conscientes, porque somos os prprios sujeitos destes estados conscientes. atravs da
identificao desta mesma estrutura fisiolgica e de comportamentos correspondentes a
estados conscientes em outros seres que lhes atribumos uma mente e uma conscincia. De
acordo com John Searle, podemos ver o que so as orelhas de um cachorro, a sua pele e os
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seus olhos, e que quando algum grita em seu ouvido obtm um comportamento apropriado
como resposta a um grito no ouvido, e quando algum belisca sua pele obtm um
comportamento apropriado a um belisco na pele. importante esclarecer que no
necessrio ter uma teoria completa da fisiologia ou da anatomia dos cachorros, o que se faz
relacionar por analogia funes de rgos que causam as prprias experincias conscientes
com a estrutura fisiolgica de outros seres. Atribuo uma funo a um rgo e a esta funo
uma capacidade. A outros animais, por exemplo, uma pulga, no poderamos atribuir essas
funes nem essas capacidades por motivo da ausncia da estrutura fisiolgica e dos
comportamentos correspondentes que ns associamos presena de experincias conscientes.
Alm disso tudo, cabe esclarecer a relao entre os estados mentais conscientes e os
estados mentais inconscientes tal como concebida por Searle:
...a noo de um estado mental inconsciente implica acessibilidade conscincia. No temos nenhuma noo do inconsciente, a no ser como aquilo que potencialmente consciente.6 (SEARLE, 1997, p. 125)
Um estado mental inconsciente entendido como um estado mental que pode vir a ter
acesso conscincia, porque so estados mentais em que no estou pensando em determinado
momento ou que reprimi. Por isso, cabe distinguir entre os estados mentais inconscientes e os
eventos neurobiolgicos no-conscientes, sendo estes ltimos fenmenos puramente fsicos e
cerebrais, mas que so de algum modo responsveis pela produo de fenmenos mentais.
Estes eventos neurobiolgicos no-conscientes no podem ser vistos como estados mentais
genunos porque no tm em princpio a capacidade de surgirem conscincia.
Depois de apontar todas estas caractersticas e distines sobre a conscincia, a
questo da possibilidade do estudo cientfico dos aspectos de primeira pessoa dos estados
conscientes se coloca dentro das pesquisas contemporneas sobre a mente. Para mostrar que
uma cincia objetiva da conscincia envolvendo a subjetividade possvel, Searle formula um
argumento separando a ontologia da conscincia o modo de existncia da epistemologia
o modo de conhecer. O argumento consiste no seguinte:
6 The notion of an unconscious mental state implies accessibility to consciousness. We have no notion of the unconscious except as that which is potentially conscious. (SEARLE, 1994, p. 157)
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Todos os aspectos do mundo que tm ontologia de primeira pessoa so subjetivos,
dependem de um sujeito para existir, e todos os aspectos do mundo que tm ontologia de
terceira pessoa no dependem de um sujeito para existir, so objetivos.
J os aspectos de epistemologia da primeira pessoa so conhecidos apenas em relao
a um sujeito singular, e sua realidade ou verdade depende dele; os aspectos de epistemologia
da terceira pessoa so conhecidos independentemente das caractersticas de qualquer sujeito, e
esta a epistemologia exigida pela cincia.
Distinguindo que as ontologias dizem respeito ao modo de existir e as epistemologias
ao modo de conhecer, Searle conclui que no porque os aspectos mentais tm ontologia de
primeira pessoa que no podem ser conhecidos pela epistemologia de terceira pessoa exigida
pela cincia. Algo que existe subjetivamente pode ser conhecido objetivamente, existir
subjetivamente (ontologia de primeira pessoa) diferente de ser conhecido subjetivamente
(epistemologia da primeira pessoa), e, por isso, a cincia pode conhecer, em princpio, os
aspectos mentais subjetivos.
Por sua posio filosfica em que sempre ressalta os aspectos de primeira pessoa no
estudo da mente, contrariando a tendncia objetivista de muitos cientistas cognitivos e
filsofos contemporneos, Searle muitas vezes perguntado (SEARLE, 1998, p. 136) sobre o
que so as propriedades intrnsecas mgicas que ele postula para o entendimento da
conscincia. Em resposta, o filsofo diz que no h nada de mgico, por exemplo, na
experincia subjetiva de levar um belisco no brao e convida o leitor a dar um belisco em si
mesmo para se lembrar do que tratam as teorias sobre a conscincia (SEARLE, 1998, p. 117-
118). claro que h uma sequencia de descargas neuronais que se iniciam na pele e passam
pelo crtex, mas importante lembrar que tudo isso gera uma impresso subjetiva, diz Searle.
Uma vez feita esta breve apresentao de algumas teses centrais da abordagem
searleana ressaltando aspectos de primeira pessoa no estudo da conscincia, passamos, a
seguir, a analisar a teoria da conscincia proposta por Francis Crick.
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1.2 Francis Crick: o binding problem e a hiptese dos 40 Hertz
John Searle em seu livro O mistrio da Conscincia (1998) critica a proposta de
Francis Crick para o entendimento da conscincia com base em funes neurobiolgicas,
ressaltando aspectos importantes da teoria de Crick, mas sem deixar de apontar alguns
problemas que decorrem dela.
Crick aborda a conscincia como um problema cientfico legtimo (CRICK & KOCH,
1990 apud MIGUENS, 2002, p. 252), apresentando uma hiptese para o correlato
neurofisiolgico da conscincia: a conscincia corresponde a disparos em torno de 40 Hertz
nas transmisses de impulsos eltricos feitos pelos neurnios do crebro. Para ele, estes
disparos sincronizados so de fundamental importncia para a formao de um todo coerente
em relao aos diversos tipos de informao ligados e manipulados pelas diversas partes do
crebro e seu estudo auxiliar a compreender a natureza da conscincia.
Crick escolhe a percepo visual, j bastante estudada do ponto de vista
neurobiolgico, para demonstrar sua hiptese para o entendimento da conscincia e a ligao
desse tema com o problema da unificao da percepo visual em um todo coerente,
conhecido como binding problem, o problema da unidade da percepo. Tal problema resulta
da seguinte questo: se os diferentes aspectos dos objetos vistos, como cor, forma textura,
dentre outros, so tratados por diferentes partes do crtex visual, como ns temos
experincias visuais unificadas dos objetos percebidos? Como um processamento paralelo e
distribudo de informao no crebro pode gerar uma experincia consciente unificada? Se
diferentes neurnios esto trabalhando em diferentes partes do crebro, como eles so
temporariamente ativados como uma unidade para o surgimento da conscincia? Crick
responde a esta questo sugerindo que o disparo sincronizado dos neurnios em uma
determinada frequncia seria o correlato neuronal para a conscincia. Como o tlamo, alm
do crtex, tambm parece ter um importante papel para o surgimento da conscincia
(MIGUENS, 2002, p. 253), sugere-se que a conscincia surgiria atravs do disparo
sincronizado na frequncia de 40 HZ dos neurnios dos circuitos que ligam o tlamo ao
crtex. Essa hiptese ficou conhecida como hiptese dos 40 Hertz e foi um marco na
investigao neurobiolgica da conscincia.
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Conforme os objetivos da nossa pesquisa, vamos a partir daqui dispensar detalhes
sobre a transmisso de sinapses de neurnio a neurnio e o detalhado funcionamento do
mecanismo cerebral que envolve a transmisso de descargas eltricas, limitando-nos a
apresentar os aspectos centrais da crtica de Searle ao livro de Francis Crick The Astonishing
Hypothesis: The Scientific Search for the Soul (1994), que inclui a j mencionada hiptese
dos 40 Hertz.
Crick proporciona em seu livro uma srie de explanaes neurobiolgicas cuja
finalidade principal o entendimento da conscincia. O livro apresenta a proposta de que toda
nossa vida mental formada atravs do funcionamento do sistema nervoso, como mostra a
seguinte citao:
A Hiptese Espantosa a de que voc, as suas alegrias e as suas tristezas, as suas memrias e as suas ambies, o seu sentido de identidade pessoal e livre arbtrio, no sejam de facto mais do que o comportamento de um vasto conjunto de clulas nervosas e das suas molculas associadas.7 (CRICK, 1998, p. 19)
Como notado por Searle, essa viso dos fenmenos mentais no muito surpreendente quando
apresentada por um neurocientista, consistindo mesmo em uma ortodoxia neurobiolgica. Apresentada
assim, essa viso uma espcie de lugar comum para quem possui algum conhecimento cientfico,
mas a verdadeira singularidade da proposta de Crick que nossa vida mental possa ser explicada pelo
funcionamento dos neurnios, no se limitando a uma afirmao genrica de que nossa vida mental
tem realizao fsica no crebro. Essa singularidade reforada pelo contraste com outros tericos que
trabalham neste campo, como Gerald Edelman. Edelman considera que os neurnios so muito
pequenos para serem o elemento funcional essencial gerador dos fenmenos mentais, preferindo
abordar o tema atravs de grupos de neurnios, as chamadas redes neurais.
Como j apontamos, ao explicar a conscincia atravs de mecanismos neurofisiolgicos, Crick
toma como ponto de partida o sistema visual, por este ser j bastante estudado no ramo da
neurobiologia. Mas apesar de ter mecanismos conhecidos, o funcionamento do sistema visual
demasiadamente complexo e envolve processos neurofisiolgicos que ainda no compreendemos para
a realizao de fenmenos mentais que consideramos bastante simples.
No decorrer do livro, Crick (1994) expe informaes teis sobre o funcionamento do crebro
de acordo com as mais desenvolvidas pesquisas neurocientficas efetuadas at ento e apresenta uma
7 You, your joys and your sorrows, your memories and your ambitions, your sense of personal identity and free will, are in fact no more than the behavior of a vast assembly of nerve cells and their associated molecules. (CRICK, 1994, p. 3)
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interessante hiptese sobre o correlato neural da conscincia, mas quanto ao contedo filosfico que
Crick comete confuses e falcias, de acordo com Searle.
Francis Crick geralmente hostil com filsofos, o que na opinio de Searle resulta em erros
filosficos. Essa hostilidade, a nosso ver injustificada, pois alm de resultar nas vrias confuses
filosficas apontadas por Searle, parece paradoxal em relao proposta do neurocientista de
transformar um tema eminentemente filosfico, como a conscincia e toda a problemtica envolvendo
os qualia, em um tema cientfico, pois ele poderia simplesmente circunscrever sua pesquisa aos
processos neuronais sem prestigiar o vocabulrio mentalista adotado pela Filosofia. Essa hostilidade
parece ainda mais estranha quanto proposta presente no subttulo de seu livro: A Busca Cientfica
da Alma na traduo em portugus (1998) (no original The Scientific Search For The Soul).
Searle aponta trs erros filosficos principais cometidos, segundo ele, por Crick.
Vamos exp-los e mostrar sua particular relao com a proposta do filsofo para o estudo da
mente, que contm um tipo especfico de concepo da causalidade que teria consequncias
para a viso da relao crebro-mente e para as pesquisas neurocientficas, se levada a srio.
O primeiro erro diz respeito ao problema dos qualia. Searle acusa Crick de confundir
o problema dos qualia com problema do relato dos qualia. O problema real no saber se
podemos relatar ou descrever as experincias conscientes qualitativas que sentimos. O
problema real saber como os circuitos cerebrais produzem estas experincias. No basta
afirmar a ligao dessas experincias com a materialidade do crebro, preciso esclarecer
como os processos neuronais causam nossa vida mental.
Outro aspecto fundamental da viso dos qualia de Searle que os qualia so o
problema da conscincia, ou seja, no h como separar os qualia da conscincia porque, em
ltima instncia, ela consiste em qualia. Essa viso peculiar e diverge bastante da posio
de outros filsofos, como Daniel Dennett, que preferem rever os qualia dando preferncia a
tipos de processamento de informaes cerebral. Esse tipo de viso classificaria Searle como
um qualfilo8 (MIGUENS, 2002, p. 262), porque ele considera que os qualia no podem ser
eliminados e so o aspecto fundamental da conscincia.
Em segundo lugar, h uma confuso entre dois tipos de reducionismo que induz Crick
a defender a eliminao da conscincia enquanto utiliza uma linguagem que no
reducionista. Isso acontece porque o reducionismo eliminativista difere do reducionismo
8 Qualfilos seriam aqueles que consideram os qualia imprescindveis em uma teoria das experincias conscientes. Qualfobos so aqueles que rejeitam essa viso e assumem a possibilidade de uma teoria da conscincia sem os qualia.
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causal. Na reduo eliminativista, um fenmeno reduzido a outro e sua existncia
dispensada, na reduo causal um fenmeno explicado nos termos de outro, mas
considerado como existente, sendo que a descrio de um ou de outro depende do nvel de
explicao almejado. Nas palavras de Searle:
Em um sentido, a reduo eliminatria. Ns nos livramos do fenmeno reduzido mostrando que ele realmente uma outra coisa. O pr-do-sol um bom exemplo. O sol no se pe realmente atrs do monte Tamalpais. Na realidade, o aparente pr-do-sol uma iluso totalmente explicada pela rotao da Terra em seu eixo em relao ao Sol. Mas, em outro sentido de reduo, explicamos um fenmeno, mas no nos livramos dele. Assim, a solidez de um objeto totalmente explicada pelo comportamento das molculas, mas isto no indica que o objeto em questo no seja realmente slido ou que no h qualquer distino entre, digamos, solidez e liquidez.9 (SEARLE, 1998, p. 56)
Searle acusa Crick de pregar um reducionismo eliminativista enquanto pratica um
emergentismo causal. Crick oferece o que, na viso de Searle, uma explicao causal, isto ,
ainda possvel falar de estados mentais e qualia e no apenas de estados cerebrais. Para
Searle, o prprio fio condutor da exposio de Crick emergentista e no eliminativista,
sendo que as defesas de seu eliminativismo no se sustentam perante um nexo
predominantemente causal da explicao. como se a falta de clareza filosfica do
neurocientista o conduzisse a uma viso no compatvel com os resultados de sua pesquisa.
Searle argumenta nesse sentido afirmando que a ontologia dos estados conscientes no
redutvel s propriedades dos estados cerebrais, isto , as descargas neuronais no so o que
os estados conscientes so, e mesmo se houvesse uma cincia perfeita do crebro, ainda
haveria estes dois elementos distintos. Isto parece revelar um dualismo de propriedades por
parte de Searle, mas j foi negada pelo filsofo a defesa de tal posio (2002). No final deste
captulo comentaremos a relao de Searle com o dualismo de propriedades na crtica a Crick
e ao eliminativismo em geral.
Em terceiro lugar, a confuso entre reducionismo eliminativista e reducionismo causal
apontada acima conduz Crick, segundo observa Searle, a uma confuso na estrutura lgica de
9 In one sense, reduction is eliminative. We get rid of the reduced phenomenon by showing that it is really something else. Sunsets are a good example. The sun does not really set over Mount Tamalpais; rather, the appearance of the setting sun is an illusion entirely explained by the rotation of the earth on its axis relative to the sun. But in another sense of reduction we explain a phenomenon but do not get rid of it. Thus the solidity of an object is entirely explained by the behavior of molecules, but this does not show that no object is really solid or that there is no distinction between, say, solidity and liquidity. (SEARLE, 1997, p. 29)
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sua explicao. Como o autor no admite que est procurando uma explicao causal para a
conscincia, sua proposta no se encaixa com sua exposio. Quando relata sua busca por
correlatos neurais da conscincia, estes termos no podem estar de acordo com sua proposta
eliminativista, pois uma correlao uma relao entre duas coisas diferentes. No caso da
conscincia, deveria haver somente as descargas neuronais, no caso da reduo eliminatria
da conscincia a estas, e no experincias conscientes correlatas a descargas neuronais.
Outro aspecto interessante da viso se Searle sobre reduo que somente estabelecer
correlaes no explica nada. Mesmo se houvesse uma teoria que correlacionasse de forma
satisfatria as descargas neuronais aos estados conscientes, isto no seria o bastante para se
entender a conscincia. Para isso seria necessria uma teoria causal que fornecesse uma
explicao. No exemplo de Searle:
Pense na viso de um relmpago e no som de um trovo. A viso e o som esto perfeitamente correlacionados, mas sem uma teoria causal voc no tem uma explicao.10 (SEARLE, 1998, p. 58)
Essa insatisfao com uma simples correlao na explicao da conscincia diferencia
Searle de outros filsofos como David Chalmers e Thomas Nagel quanto adoo de um
dualismo de propriedades, pois para Searle h uma relao causal entre estados mentais e
crebro e no uma relao de aspecto dual entre as propriedades do mesmo ente.
Alm destes trs erros contidos na exposio, Searle ainda discorda da afirmao de
Crick de que a percepo visual uma descrio simblica dos objetos e tece elogios sua
forma de expor e ao seu contedo. Para Searle, no h motivos para se afirmar que o que
percebemos no mundo uma interpretao simblica dos objetos. O que percebemos o
objeto real, sendo que Crick levado por maus argumentos filosficos do sculo XVII
afirmao de que no podemos conhecer os objetos diretamente, apenas por mediao dos
processos cerebrais. O que acontece que ftons refletidos dos objetos atacam as clulas
fotorreceptoras da retina e isso aciona uma srie de processos neuronais (a retina sendo parte
do crebro), resultando em uma percepo do objeto real presente na realidade o qual
originariamente refletiu os ftons (SEARLE, 1998, p. 59). Essa crtica decorre da posio
realista de Searle, a qual considera que a realidade uma s e que temos acesso a ela, sendo
10 Think of the sight of lightning and the sound of thunder. The sight and sound are perfectly correlated, but without a causal theory, you do not have an explanation. (SEARLE, 1997, p. 32)
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que podemos conhec-la em princpio, bastando para isso termos as capacidades e
ferramentas explanatrias necessrias.
Searle elogia a clareza da exposio de Crick e ressalta que suas objees se referem
ao contedo filosfico, sendo possvel aprender sobre o funcionamento do crebro mesmo
com pressuposies equivocadas em relao a este contedo. O reconhecimento da
contribuio do neurocientista feito relatando a hiptese dos 40 Hertz e as dificuldades do
problema da unificao da conscincia, a qual contm o binding problem. Este
reconhecimento de Searle parte em grande parcela de sua posio naturalista, o que o coloca
bastante prximo dos avanos das cincias do crebro, esperando algum insight esclarecedor
que possa ajud-lo a entender o problema da conscincia. Apesar disso, Searle enaltece Crick
por reconhecer o quo pouco sabemos sobre o tema no atual estgio da neurocincia.
1.3 Gerald Edelman: grupos de neurnios e o mapeamento de reentrada
Seguindo com a anlise de teorias da conscincia, John Searle critica a proposta da teoria
elaborada pelo neurocientista Gerald Edelman e exposta nos livros The Remembered
Present (1989) e Biologia da Conscincia (1995). A teoria da conscincia de Edelman
utiliza inicialmente uma teoria da categorizao perceptiva at chegar aos graus mais elevados
de conscincia. Assim como Francis Crick, Edelman utiliza a percepo visual como
introduo sua teoria da conscincia. Por este motivo, vamos expor brevemente os conceitos
centrais da sua teoria da categorizao perceptiva, avanando em seguida para as implicaes
para o entendimento da conscincia. As trs principais ideias de Edelman em sua teoria da
categorizao perceptiva que servir se base para suas propostas sobre a conscincia so: a
noo de mapas neuronais, a teoria da seleo do grupo neuronal e a ideia de reentrada.
Os mapas neuronais so conjuntos de neurnios cujos pontos esto sistematicamente
relacionados a pontos localizados em clulas receptoras ou em outros mapas
neuronais. essa relao de um grupo de neurnios com outros que sugere a
denominao de mapas, sendo que a informao direcionada a um ponto de um
mapa pode ter consequncias em outros pontos relacionados em outros mapas.
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A teoria da seleo de grupos neuronais sugere que o crebro geneticamente
equipado com um excesso de neurnios, muitos dos quais morrem, sendo que outros
sobrevivem e so fortalecidos. Isso implica que o crebro no um rgo instrutivo,
no sentido de um mecanismo que aprende e se modifica de acordo com as instrues
do ambiente, mas sim seletivo, se desenvolvendo de acordo com um processo
neuronal muito parecido seleo natural das espcies ou genes mais bem adaptados
ao ambiente.
A reentrada um processo atravs do qual sinais paralelos vo de um lado para outro
entre mapas. Isso significa dizer que um mapa emite um sinal a outro mapa que
responde com um segundo sinal, e assim sucessivamente, de modo a ocorrerem vrias
trocas de sinais de forma paralela e simultnea. Para John Searle essa a ideia mais
importante da teoria de Edelman (SEARLE, 1998, p. 67).
Essas so as principais ideias de Edelman na elaborao de uma complexa teoria da
categorizao perceptiva que ter consequncias para a especulao sobre o funcionamento da
conscincia. Sabemos que essa no uma teoria comprovada e aceita sem reservas, mas pode
ser considerada uma hiptese plausvel, pois tem funcionado em simulaes de computador
feitas pelo grupo de Edelman. Searle ressalta este aspecto porque reporta notavelmente sua
noo de IA fraca, que consiste em simulaes virtuais de teorias sobre a mente que no tem o
compromisso de remeterem exatamente aos processos cerebrais que formam os fenmenos
mentais, mas constituem uma maneira alusiva e parcial para entendermos alguns aspectos da
cognio ao contrrio da IA forte que reivindica que a mente pode ser entendida em termos
de sintaxe formal e implantao de softwares adequados em um hardware acessvel. A seguir
citaremos a viso de Searle sobre como as ideias de mapas neuronais, de seleo do grupo
neuronal e de reentrada se articulam na construo da teoria da categorizao perceptiva de
Edelman baseada principalmente na obra The Remembered Present.
Existe um grande nmero de inputs de estmulos para qualquer categoria dada alguns so das bordas ou margens de um objeto, outros da sua cor etc. , e aps diversos inputs, modelos especficos de grupos neuronais sero selecionados em mapas. Mas, agora, sinais similares ativaro os grupos neuronais selecionados previamente no s em um mapa, mas tambm em
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outro ou at mesmo em um grupo completo de mapas, pois as operaes, nos diferentes mapas, esto conectadas pelos canais de reentrada. Cada mapa pode fazer uso, em suas prprias operaes, de discriminaes realizadas por outros mapas. Logo, um mapa pode delinear as bordas de um objeto, outro pode esboar seus movimentos e os mecanismos de reentrada podem, ainda, capacitar outros mapas para descreverem a forma do objeto a partir de suas bordas e movimentos. Como resultado, voc pode obter uma representao unificada de objetos no mundo, apesar da representao ser distribuda por diversas reas do crebro.11 (SEARLE, 1998, p. 67-68)
A teoria de Edelman do mapeamento atravs do mecanismo de reentrada oferece uma
proposta do funcionamento da percepo e da coordenao da ao atravs dos mecanismos
de categorizao e generalizao, dispensando a presena de um homnculo escondido no
crebro, mas vamos nos focar aqui nas consequncias de suas propostas para uma teoria da
conscincia. Inicialmente em sua teoria Edelman distingue dois tipos de conscincia, a
conscincia primria e a conscincia elaborada. O cerne do problema para sua teoria da
conscincia estaria no entendimento da conscincia primria, j que os mecanismos de uma
conscincia superior, a conscincia elaborada, partiriam de processos j existentes que
possuem conscincia primria. Vamos distinguir mais claramente estes dois tipos de
conscincia para, em seguida, continuarmos analisando sua teoria da categorizao perceptiva
envolvendo algumas concluses finais sobre a conscincia.
Podemos distinguir dois tipos de conscincia nos animais, segundo Edelman, a mais
simples delas a conscincia primria, apoiada, anatomicamente, nos sistemas crtico-
talmico e lmbico (com o auxlio de ncleos do tronco cerebral). O primeiro organiza a
informao enquanto o segundo atribui valores. A conscincia primria um estado de
conscincia ou entendimento dos acontecimentos, que considera apenas um estar ciente em
relao ao mundo presente, no estando ligada a nenhum sentido de passado ou futuro. A
conscincia primria est embasada em um pequeno intervalo de memria, determinado no
tempo presente, sendo que nela no encontraremos uma noo explcita ou conceito de um eu
pessoal e nem lhe sendo atribuda a capacidade de modular um objeto no passado ou futuro,
11 It has a large number of stimulus inputs for any given category-some stimuli are from the borders or edges of an object, others from its color, etc.-and after many stimulus inputs, particular patterns of neuronal groups will be selected in maps. But now similar signals Will activate the previously selected neuronal groups not only in one map but also in another map or even in a whole group of maps, because the operations in the different maps are linked together by the reentry channels. Each map can use discriminations made by other maps for its own operations. Thus one map might gure out the borders of an object, another might gure out its movements, and the reentry mechanisms might enable yet other maps to gure out the shape of the object from its borders and its movements. So the result is that you can get a unied representation of objects in the world even though the representation is distributed over many different areas of the brain. (SEARLE, 1997, p. 41-42)
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ou como parte de uma cena. Isto no significa que um animal com conscincia primria no
desenvolva memria de longo prazo ou aja segundo ela, significa apenas que, em regra geral,
ele no tem conscincia desta memria ou lana mo dela para planejar ou agir no futuro.
(EDELMAN, 1995, pp. 171-180)
O outro tipo de conscincia, evolutivamente mais recente, a conscincia elaborada, que
evoluiu a partir da anterior e se diferencia dela por permitir uma percepo de continuidade
no tempo: eu sou o mesmo que fui no passado e serei no futuro. A conscincia do indivduo
reconhece seus prprios atos/e ou estados afetivos, tendo lucidez de estar consciente
(consciente da conscincia, ou autoconscincia como apontamos na Seo 1.1). Nesta forma
de conscincia, h uma memria simblica, um gigantesco avano no processamento de
informaes pelo crebro. um saber no inferencial ou apriorstico dos acontecimentos,
sendo inserido dentro de um contexto com ligaes e inferncias temporais, espaciais e
fenomenolgicas. O indivduo consciente torna-se tambm capaz de introspeco a
possibilidade de refletir sobre si mesmo. Este progresso possibilitado pela emergncia de
duas novas estruturas cerebrais, as reas de Brocca, que evoluiu do crtex motor, e Wernicke,
que evoluiu do crtex auditivo. Nos seres humanos, elas respondem, respectivamente, pela
produo da fala e pelo entendimento da linguagem. (EDELMAN, 1995, pp. 181-197) Edelman considera que as estruturas cerebrais desde o nascimento de um organismo so
organizadas geneticamente para crescer de forma determinstica em direo a alguma forma
final conforme um processo de seleo de grupos neuronais. Como visto, ele pensa que o
crebro vem equipado com um excedente de grupos neuronais, alguns dos quais morrem
enquanto outros florescem devido interao auto-organizada com os estmulos do mundo
exterior e entre si mesmos. Este darwinismo neural estaria bastante de acordo com os
processos de desenvolvimento de muitos rgos em muitas criaturas diferentes. Por exemplo,
as asas de uma borboleta, enquanto no casulo, so inicialmente slidas, a estrutura elaborada
que elas apresentam na criatura emergente o resultado da destruio dos componentes
desnecessrios. Edelman, como Crick, se dirige ao binding problem, discutido na seo 1.2. No entanto,
enquanto o interesse de Crick, como apontamos, estava na ligao do reconhecimento de
diversas reas dos objetos na modalidade sensorial nica da viso, Edelman est mais
interessado na ligao entre as vrias modalidades sensoriais, conduzindo progressivamente
ao reconhecimento e classificao de objetos repetidamente encontrados. Apesar da repetio
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dos objetos expostos percepo ser fundamental para a classificao destes em determinadas
categorias, Edelman ressalta que alguns nveis primitivos de reconhecimento de aspectos dos
objetos como forma, extenso etc., so geneticamente embutidos.
Ao atacar o problema da ligao multi-sensorial, Edelman enfatiza o fenmeno da
reentrada, que j apontamos acima, e que pode ser confundido com um simples feedbak a
partir de clulas receptoras que ajudaria a fornecer representaes mais abstratas do mundo do
indivduo aos grupos de neurnios prximos das fontes sensoriais que forneceriam as
representaes subjacentes mais primitivas. Edelman refora que o mapeamento de reentrada
no apenas feedbak, pois pode haver diversas trilhas de impulsos neuronais contendo
informao operando paralelamente ao mesmo tempo. Para Edelman no h uma direo
unilateral de impulsos dirigidos de uma parte dos mapas neuronais em direo a outras partes
do sistema nervoso.
Os mapas a que se refere Edelman so literais, estruturas fisiolgicas no crebro, mais
de trinta deles somente no crtex visual. Por meio da "reentrada", conjuntos de mapas
evoluem conjuntamente. Um trabalho extensivo tem sido feito sobre a viabilidade deste
processo de reentrada atravs de simulaes computacionais dessas redes de mapas de
neurnios, bem como a importncia das estruturas de feedback em tais redes tem sido
amplamente demonstrada.
O grupo de Edelman foi alm com simulaes de redes neurais usando simples
estmulos sensoriais, como imagens em preto branco para redes que se auto-organizam de
forma a reconhecer as letras em uma variedade de fontes. Eles tm programado robs virtuais
que podem aprender a coordenao de mos e olhos simulados para explorar seus ambientes
(por exemplo o rob Darwin III). (EDELMAN, 1992, p. 91-93 apud SEARLE, 1998, p. 68)
A partir dessas abordagens e resultados, Edelman avanou para conjecturar hierarquias
de auto-organizao para explicar a aquisio gradual de conscincia e autoconscincia. Para
esta abordagem, ser fundamental uma concepo de memria como algo constante e
dinmico, organizada como parte do complexo de evoluo, em vez de qualquer tipo de
depsito separado e passivo.
Alm dessa memria dinmica e do mecanismo de categorizao perceptiva j
mencionado, para possuir conscincia um organismo deve ter, segundo Edelman: sistemas de
aprendizagem valorativa; um mecanismo de distino eu/no-eu, para que se distingua do
resto do ambiente, e estruturas cerebrais que possam ordenar os eventos no tempo. Alm
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disso, o sistema cognitivo do organismo deve possuir conexes de reentrada entre os sistemas
de memria e os sistemas que so dedicados categorizao perceptiva, sendo que essas
conexes tornam possvel o aparecimento do primeiro grau de conscincia denominado
conscincia primria.
Searle exalta Edelman e afirma que sua teoria a melhor tentativa de esclarecer o
problema da conscincia encontrada na literatura biolgica da poca, mas tambm encontra
alguns problemas, principalmente no que diz respeito a respostas vagas deixadas por sua
teoria. Na viso de Searle, por exemplo, possvel imaginar um crebro com todos os
mecanismos descritos por Edelman, incluindo o mecanismo de mapeamento de reentrada, e,
ainda assim, este crebro no ser consciente. Isso no aconteceria porque as caractersticas
qualitativas das experincias conscientes que Searle exige elucidadas em uma teoria da
conscincia, como veremos adiante, no poderiam ser explicadas pela cincia, mas justamente
porque falta a teorias como as de Dennett e Edelman uma abordagem satisfatria para estas
caractersticas.
No consideramos esta uma crtica justa, pois de modo similar, quando Searle afirma
que possvel imaginar um organismo conforme a teoria que Daniel Dennett prope e ainda
assim este ser um zumbi (Searle diz que a conscincia no apenas uma questo de se ter
uma mquina Joyceana instalada no crebro, conforme prope a teoria de Dennett, que
veremos no prximo captulo), o filsofo no fornece critrios sobre o que falta na teoria para
que se explique os qualia ou sobre o tipo de correlao almejada para vincular os aspectos de
terceira pessoa explicados por Edelman e Dennett com os aspectos de primeira pessoa
exigidos por ele. Ao que nos parece, na hiptese de que uma teoria como a de Edelman, ou de
Dennett, esteja certa, no poderamos conceber coerentemente um organismo que tivesse os
mecanismos sugeridos por suas teorias sem que este tivesse capacidades correspondentes s
experincias conscientes e aos qualia presentes nestas, restando algum tipo de correlao
entre os dados de primeira pessoa e terceira pessoa a ser decidida entre uma identidade tipo-
tipo ou ocorrncia-ocorrncia entre os estados mentais e os estados cerebrais. Em resumo, o
problema da correlao entre os dados de primeira pessoa e os dados de terceira pessoa pode
ser diferente do problema do esclarecimento da conscincia atravs de uma teoria que
explique mecanismos neuronais ou funcionais atravs da perspectiva de terceira pessoa, sendo
equivocada a intuio de Searle de que qualquer teoria da conscincia deva trazer
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imprescindivelmente o esclarecimento dos qualia, embora a existncia da perspectiva de
primeira pessoa seja inegvel do ponto de vista ontolgico.
Ainda sobre os qualia, Searle discorda da viso de Edelman sobre o tema e do
ceticismo em relao ao problema. Em Remembered Present, Edelman aponta que no h
razo para esperarmos da cincia a resposta para o problema dos qualia no sentido da
explicao sobre por que sentimos um determinado estado consciente, como o calor. Em A
Biologia da Conscincia, o autor afirma que a cincia com suas generalizaes no pode
explicar os qualia, pois os sentimos de formas diferentes conforme nossas caractersticas
individuais. Searle, por sua vez, ressalta que a explicao sobre por que estamos em
determinado estado consciente no obscurece a busca para uma explicao causal da
conscincia, que no precisar se ater s caractersticas individuais. Para o filsofo, o que a
neurocincia deve explicar justamente como as experincias conscientes so formadas, isto
, causadas, no crebro, incluindo dentro do tema geral conscincia as especificidades
gerais das experincias conscientes, como frio, calor, dor, o rubor do vermelho, o gosto
salgado etc.
Para Searle, as explicaes de Edelman compartilham com Francis Crick a convico
bsica de que o crebro causa a conscincia, ou seja, devemos entender o crebro para
entendermos a conscincia. Apesar de apresentar uma boa explicao sobre a categorizao
perceptiva envolvendo o mapeamento de reentrada em redes neuronais se dirigindo s
especulaes sobre a conscincia primria, ainda resta a pergunta sobre como estes
mecanismos causam os qualia que nos fazem experimentar o mundo conscientemente. Searle
considera que este problema no pode ser deixado de lado, pois os estados qualitativos so a
prpria conscincia, no podendo ser separados dela.
1.4 A noo searleana de causao no estudo da conscincia
Percebemos, a partir das teorias comentadas por Searle nas sees anteriores, o
cuidado que ele tem de no s apresentar e entender claramente as respectivas teorias de
Francis Crick e Gerald Edelman, como tambm a considerao destas como possveis
alternativas para o estudo da conscincia com base neurocientfica, apesar da diferena de
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abordagem entre elas. notvel que um filsofo como John Searle busque nas cincias o
esclarecimento para tradicionais problemas filosficos relativos conscincia e almeje que
este tema possa finalmente constituir um tema cientfico sem perdas para a filosofia, mas pelo
contrrio construindo um dilogo interdisciplinar baseado na mtua contribuio.
Considerando as diversas reas de pesquisa nas Cincias Cognitivas envolvendo a natureza da
conscincia ou aspectos relacionados a ela, como a Inteligncia Artificial, as cincias do
crebro ou at mesmo as propostas que fazem recurso a propriedades qunticas da matria
(Roger Penrose apresenta uma proposta deste tipo baseada no teorema de Gdel em sua obra
Shadows of the Mind, de 1994), podemos cogitar que, apesar da abordagem interdisciplinar
ser fundamental, as propostas menos adequadas ou consensualmente equivocadas para o
estudo da conscincia tero de ser descartadas. Por isso mesmo o trabalho de Searle nos
parece fundamental ao criticar estas diversas teorias quanto sua coerncia relacionando-as a
alguns problemas filosficos tradicionais sobre a conscincia.
Apesar da considerao de diversas propostas em vrios ramos das Cincias
Cognitivas ressaltamos, atravs das propostas para o estudo da conscincia formuladas pelo
filsofo e pelas teses centrais que defende, que o seu pensamento conduz naturalmente a um
prolongamento de sua linha de pesquisa amparada pela neurocincia. Esse parecer tem base
na tese searleana de que os estados mentais so internos ao crebro e so causados e
realizados nele. Apesar de no rejeitar que uma mquina possa de algum modo reproduzir os
estados mentais ou at mesmo pensar, Searle tem rejeitado frequentemente as propostas do
funcionalismo e da IA, formulando at mesmo um argumento (o argumento do quarto chins
que ser abordado mais adiante) para refutar os principais pressupostos destas linhas de
pesquisa, como a reproduo de fenmenos mentais atravs da implementao de um
determinado software, baseado em uma sintaxe, em um substrato material, ou seja, um
hardware.
Vamos tentar demonstrar a aproximao de Searle com as neurocincias atravs da
exposio de sua noo de causao. Esclareceremos as principais caractersticas da
concepo searleana de causao e, devido ao uso e singularidade deste termo, o
utilizaremos e deixaremos o termo causalidade para a noo de causalidade tradicional. A
aproximao seria mais bem expressa como uma tentativa de fazer uma filosofia das
neurocincias, j que a proposta de Searle sobre uma nova viso de causao ainda no foi
testada e corroborada atravs de mtodos cientficos ou usada neurocientificamente como
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uma possvel alternativa para entender o que so os fenmenos mentais produzidos no
crebro. A causao proposta por Searle chamada botton-up causation ou causao de baixo
para cima.
Searle prope essa noo de causao porque a noo tradicional de causalidade
mecnica maneira em que uma bola de bilhar empurra a outra e desse modo causa seu
movimento gera equvocos no debate sobre a relao entre eventos mentais e fsicos.
Seguindo essa noo, analogamente, as caractersticas mentais subjetivas deveriam ser
explicadas em sua relao com as caractersticas fsicas: como poderiam os eventos mentais
impelir os axnios e os dendritos nas descargas eletro-qumicas das sinapses e como se
insinuariam clula nervosa adentro e causariam os eventos cerebrais? Na concepo
tradicional de causalidade, essa relao torna-se misteriosamente oculta e, no caso da
eliminao das caractersticas mentais, pode-se rejeit-la e optar por alguma verso da teoria
da identidade ou pelo epifenomenalismo mental.
A concepo tradicional de causalidade usada na explicao terica das relaes entre
corpo e mente tem como modelo as relaes fenomenais contidas na natureza e identifica
sequencias de causas e efeitos lineares no tempo. Leva consigo tambm a viso do universo
fsico causalmente fechado, em que cadeias de causas e efeitos se entrelaam na totalidade do
universo, sendo excludos como causalmente ineficazes os fenmenos que se encontram fora
desse circuito causal.
Essa noo clssica de causalidade obscurece as relaes causais entre mente e crebro
e fora o debate para a alternativa eliminativista ou para a identidade entre fenmenos mentais
e neurolgicos. Procurando uma explicao causal que esclarea as relaes entre um
fenmeno fsico imediatamente causado por um evento mental, as teorias sobre a mente caem,
quando escapam do dualismo, na iluso sobre a unidade de descrio da natureza, buscando,
em sua exposio sobre os aspectos mentais, elucid-los como fenmenos objetivos
observveis em uma cadeia causal. No tradicional modelo da causalidade bola de bilhar, um
evento mental pensado analogamente bola branca que, posta em movimento, causa
impacto em uma segunda bola e assim sucessivamente. Desse modo e seguindo este modelo,
ao admitirmos a realidade e a eficcia causal do mental, temos de negar qualquer relao de
identidade entre os fenmenos mentais e o crebro; (...) ao contrrio, se afirmarmos uma
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relao de identidade, teremos de negar toda relao causal entre os fenmenos mentais e os
fsicos. 12 (SEARLE, 1995, p. 367).
A noo de causa proposta por Searle para explicar a relao crebro/mente reconhece
a existncia da causao botton-up, ou seja, de nvel microscpico para nvel macroscpico,
sem exigir linearidade temporal entre os fenmenos fsicos e mentais, ou seja, no
necessrio que um fenmeno fsico esteja no tempo t1 e o fenmeno mental esteja no tempo
t2, os dois podem estar, por exemplo, no tempo t1. A proposta de que os fenmenos mentais
so causados pelas ocorrncias neurofisiolgicas do crebro e realizados na mesma estrutura
cerebral, por isso, pode-se adotar um nvel de descrio para os fenmenos fsicos ou ento
para os fenmenos mentais ambos no tempo t1. Desse modo, como a causao no ocorre
necessariamente de maneira linear, os eventos mentais podem ser explicados como sendo
causados pelas correlaes neuronais do crebro e, ao mesmo tempo, realizando-se neste. A
diferena que, em nvel micro, descrevemos fenmenos tais como ocorrncias
neurofisiolgicas no crebro e no resto do sistema nervoso central e em nvel macro podemos
aplicar atribuies mais gerais sobre os fenmenos mentais. Abaixo podemos ver uma
ilustrao sobre a noo searleana de causao botton-up:
Figura 1: A causao searleana (SEARLE, 1983, p. 270).
A elucidao da relao causal micro/macro feita por Searle com o exemplo da
liquidez da gua. O estado lquido da gua causado e realizado pelas molculas constituintes
deste mesmo estado e, mesmo assim, no se pode dizer que cada molcula individualmente
12 by granting the reality and causal efficacy of the mental we have to deny any identity relation between mental phenomena and the brain; and, conversely, if we assert an identity relation we have to deny any causal relations between mental and physical phenomena. (SEARLE, 1983, p. 265)
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seja lquida. Em nvel de descrio micro explicamos as molculas em uma determinada
forma de organizao e uma certa quantidade de movimento que podem causar, em nvel de
descrio macro, o estado slido, lquido ou gasoso da gua. A liquidez da gua ento
causada por e realizada em sua estrutura molecular, pois, quando se altera sua estrutura
molecular, se altera seu estado fsico, e a realizao deste feita no em lugar posterior ou
exterior s molculas, mas na prpria estrutura molecular. A lio aqui que a liquidez no
desprezvel, no pode ser desconsiderada como uma caracterstica epifenomnica da gua, e
que pode haver relaes causais entre fenmenos em nveis diferentes do mesmo tipo de
substncia.
atravs de exemplos cotidianos que Searle tenta mostrar a ocorrncia da causao
micro/macro em fenmenos comuns. Poder-se-ia perguntar como exatamente os eventos
neurofisiolgicos causam os fenmenos mentais e quais exemplos podem ser conseguidos em
favor desta concepo, mas dado o progresso agonizantemente lento (SEARLE,