Paulo Leminski - O Bandido Que Sabia Latim

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  • Toninho Vaz

    PAULO LEMINSKI

    O bandido que sabia latim

  • Cip-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    V497p Vaz, Toninho, 1947-

    Paulo Leminski: o bandido que sabia latim / Toninho Vaz. Rio de Janeiro : Record, 2001.

    ISBN 85-01-05963-3

    1. Leminski, Paulo, 1944-1989 Biografia.

    2. Escritores brasileiros Biografia. I. Ttulo.

    CDD 928.699 01-0411 CDU 92(LEMINSKI, P.)

    hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//ddiiggiittaallssoouurrccee Copyright Toninho Vaz, 2001 Projeto grfico: Regina Ferraz Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, armazenamento ou transmisso de partes deste livro, atravs de quaisquer meios, sem prvia autorizao por escrito. Direitos exclusivos desta edio reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 Rio de Janeiro, RJ 20921-380 Tel.: 585-2000 Impresso no Brasil ISBN 85-01-05963-3 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ 20922-970

  • CCCCCCCCOOOOOOOONNNNNNNNTTTTTTTTRRRRRRRRAAAAAAAA CCCCCCCCAAAAAAAAPPPPPPPPAAAAAAAA

    isso de querer

    ser exatamente aquilo

    que a gente

    ainda vai

    nos levar alm

    PAULO LEMINSKI

    OOOOOOOORRRRRRRREEEEEEEELLLLLLLLHHHHHHHHAAAAAAAASSSSSSSS DDDDDDDDOOOOOOOO LLLLLLLLIIIIIIIIVVVVVVVVRRRRRRRROOOOOOOO

    Rimbaud curitibano com fsico de judoca, escandindo versos

    homricos, como se fosse um discpulo zen de Bash, escreveu

    Haroldo de Campos apresentando seu discpulo. Segundo Caetano

    Veloso, Leminski tem um clima/mistura de concretismo com

    beatnik. Para Augusto de Campos foi o maior poeta brasileiro de

    sua gerao. Em versos se autodefiniu: o pauloleminski/ um

    cachorro louco/ que deve ser morto/ a pau e pedra/ a fogo e a pique/

    seno bem capaz/ o filhodaputa/ de fazer chover/ em nosso

    piquenique.

    Samurai futurista, pensador selvagem, agitador intelectual,

    meio polaco e meio caboclo, provinciano e universal, Paulo Leminski

    foi uma inesquecvel tempestade na cena cultural brasileira, antes de

    morrer aos 44 anos, em 1989, no auge do sucesso, como um mito.

    Fabricando fenmenos e sensaes com sua poesia

    perturbadora, Leminski conjugava a densidade fulminante de haicais

    com a loucura da contracultura, o coloquialismo e o humor de nosso

    primeiro modernismo com sua profunda erudio. Deixou um

    testamento ps-joyciano com a prosa ousada de Catatau, e msicas

    nascidas de parcerias com Arnaldo Antunes, Itamar Assumpo,

    Moraes Moreira, Jos Miguel Wisnik e Caetano Veloso.

    O poeta marginal de Curitiba aderiu ao mainstream miditico

  • dos anos 80 fixando sua marca em trabalhos assinados na Veja,

    Folha de S. Paulo e na televiso, no Jornal de Vanguarda, enquanto

    encantava com suas impecveis tradues de John Fante, Alfred

    Jarry, Yukio Mishima e Samuel Beckett. Suas biografias de Cruz e

    Sousa, Bash, Jesus e Trotski davam a bandeira de sua ligao com

    os cavaleiros da paixo e da poesia, e com os limites do perigo

    sinalizando: Existe um paradoxo nos produtos culturais, superiores

    frutos do trabalho humano: eles sobre-vivem ao autor, so uma

    vingana da vida contra a morte. Por outro lado, s podem fazer isso

    porque so morte: suspenso do fluxo do tempo, pompas fnebres,

    pirmide do Egito. O bandido que sabia latim resgata a vida deste

    artista que foi hippie; professor de jud, Histria e redao;

    publicitrio; inveterado conquistador e bebedor de vodca; candidato a

    monge beneditino; gnio e doido; dolo e mestre que deixou poesia e

    saudade para geraes de leitores.

    Antonio Carlos Martins Vaz

    (Toninho Vaz) nasceu a 2 de

    outubro de 1947, em

    Curitiba. jornalista e

    roteirista de televiso.

    Comeou escrevendo no

    Dirio do Paran, em 1969.

    Foi editor e colaborador de

    diversos jornais alternativos

    nos anos 70 e 80 Anexo, Raposa, Polo Cultural, Pasquim, Nicolau.

    Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1974. casado com Nan Gama

    e Silva e tem uma filha, Maria Carolina. Trabalhou como editor de

    texto na Rede Globo durante quatorze anos. De 1995 a 1998 viveu

    em Nova York. Atualmente mora em So Paulo.

    Capa e quarta capa: fotos Dico Kremer

  • Para Nan, pelo amor

    e Alice, pela amizade

    Para a tia B, que s lia biografias

  • Este livro vai contar a histria de Paulo Leminski Filho, o mais

    iluminado e reverenciado poeta curitibano. Esta biografia no

    pretende analisar o valor de sua obra e nem discutir a qualidade de

    seu trabalho tarefa esta que deve ser delegada a quem de direito:

    os crticos literrios. Aqui se pretende fornecer elementos que

    possam explicar a existncia e a personalidade de um intelectual to

    singular e criativo como Paulo Leminski, poeta responsvel pela

    insurreio da fantasia, o autodenominado cachorrolouco, a besta

    dos pinheirais, o ex-estranho, o que chegou sem ser notado.

  • aqui jaz um grande poeta,

    nada deixou escrito,

    este silncio, acredito,

    so suas obras completas.

    Paulo Leminski

  • SUMRIO

    PREFCIO O tal das qumicas

    CAPTULO 1 A plenos pulmes

    CAPTULO 2 Uma luz na cidade

    CAPTULO 3 A vida no mosteiro e alm

    CAPTULO 4 Curitiba, por trs da neblina

    CAPTULO 5 Com o diabo no corpo

    CAPTULO 6 Delrios e noites cariocas

    CAPTULO 7 O dia da criao

    Um captulo parte

    CAPTULO 8 A Cruz do Pilarzinho

    Outro captulo parte

    ltimo captulo parte

    CAPTULO 9 O poeta descalo

    O resto imortal

    CAPTULO 10 Perhappiness

    EPLOGO 27 clics de Leminski

    Apndices

    Bibliografia

    Discografia

    Agradecimentos

  • O TAL DAS QUMICAS

    A idia deste livro saiu da cabea de Alice Ruiz durante um passeio

    pelo centro antigo do Rio de Janeiro no Natal de 1998. Ela fez a

    sugesto argumentando que com a morte do poeta, dez anos antes, o

    culto sua obra e personalidade principalmente em Curitiba,

    onde foi transformado em mito pelas novas geraes s fez

    aumentar o interesse e a curiosidade por sua vida vale dizer, to

    extraordinria quanto sua obra (ou o Catatau no algo

    extraordinrio?!, um sujeito que passa oito anos escrevendo um livro

    que poucas pessoas conseguem ler e aquelas que o fazem [a

    crtica especializada, em grande parte], chamam-no de obra-

    prima?...).

    Ela arrematou: Eu mesmo preciso conhecer o homem com

    quem vivi por 19 anos. Algum tem que fazer esse trabalho. Assim

    nasceu esta biografia. De um ponto de vista estritamente pessoal,

    posso garantir sem medo que Paulo Leminski nunca me ofereceu

    alternativas: fui seu f at o final.

    Da mesma forma, sempre acreditei que, independentemente de

    seu gnio potico e de sua obra, Paulo Leminski no foi uma pessoa

    normal. No era quando eu o conheci no ano histrico de 1968.

    Tinha algo de especial, algo de magntico, algo fora do comum, algo

    de louco. Sua profunda erudio e modernidade o transformavam

    num intelectual peculiar, brilhante e eloqente um especialista

    em generalidades, como se definia. Quando falava e gesticulava

    parecia materializar uma utopia em forma de charme. Num certo

    sentido pode-se comparar com a apario de um disco voador: quem

    viu no consegue esquecer.

    Lembro-me como se fosse hoje: ao conversar com ele pela

    primeira vez (no tempo que a contracultura era uma postura

  • ideolgica e no um produto de consumo) sobre assuntos culturais

    diversos, finalmente, a escola e os estudos passaram a fazer sentido

    em minha vida. Costumo dizer que me alfabetizei, ento. J

    trabalhava como reprter em redao de jornal, cursava o primeiro

    ano da faculdade mas no suportava a vida acadmica pelo menos

    com aquela rotina que me tinha sido apresentada. Paulo Leminski,

    neste sentido, desempenhou um papel decisivo na minha vida

    profissional, adicionando contedo e perspectiva sopa rala da

    minha pobre cultura ou seria cultura de pobre? Com o passar do

    tempo nos tornamos amigos e compadres. (Ele me chamava de

    Martins, adotando um dos meus sobrenomes paternos.)

    Agora, na virada do ano 2000, subitamente investido no papel

    de seu bigrafo, me deparei com a tarefa de traduzir ao leitor quem

    realmente foi Paulo Leminski Filho, com todas as suas grandezas e

    contradies. Era um convite de grego (helnico, ele diria), pois

    teria que mergulhar numa personalidade complexa e inquieta, que

    viveu cortejando os limites do perigo, irremediavelmente engajado

    no difcil e tendo alguns pontos obscuros na trajetria de sua vida.

    No final, no me restou outra alternativa seno agir, mais uma vez,

    como ele recomendava: respirando fundo e abordando o trabalho

    com raa, mtodo e sinceridade. Eu juro que tentei.

    Aps um ano de pesquisas e 81 entrevistas realizadas com

    parentes, parceiros, alunos, ex-mulheres, professores, amigos e at

    desafetos, foi possvel reunir histrias, escritos, poemas e fotos

    inditas; rascunhos de textos inacabados e muitas pegadas

    espalhadas pelas trs cidades onde o poeta viveu: Curitiba, Rio de

    Janeiro e So Paulo. O resultado est aqui na medida das minhas

    pretenses: o retrato de um poeta brasileiro sem disfarces, o ex-

    estranho Paulo Leminski.

    Toninho Martins Vaz

    Abril, 2000

  • CAPTULO 1

    A PLENOS PULMES

    Ipanema, 17 de dezembro, 1986. O telefone toca logo pela

    manh, fazendo um rrrrring-rriing estridente prximo ao meu ouvido

    no momento mais delicioso do sono. Uma esticada de olho no relgio e

    a indicao dos ponteiros: 8 horas. Simplesmente madrugada para um

    jornalista de hbitos noturnos como eu, amante de bares, blues e lua

    cheia. Arrastei um Alooo?... quase inaudvel com a inteno de ser

    interpretado como um bom dia...

    Martins? voc?

    Imediatamente reconheci a voz de Paulo Leminski e pulei da

    cama.

    Paulo, que surpresa!

    (Vamos dizer que um telefonema do Paulo era sempre uma

    surpresa.)

    Ainda meio tonto, tentei me recompor...

    Ele no esperou:

    Mano, o Pedro pediu a conta.

    (silncio)

    Parei no meio do caminho, segurando o telefone com uma das

    mos e esticando o fio com a outra...

    Pediu a conta como?...

    Se enforcou, se matou, chamou o garom, se foi...

    (silncio)

    Porra, Paulo, que histria essa?!

  • Pedro era o mais novo dos dois irmos Leminski. No incio dos

    anos 70, quando o conheci nos bares de Curitiba, tinha 23 anos e

    parecia carregar o esprito de Bob Dylan no corpo, fazendo uma

    msica visceral e combativa, impregnada de verve revolucionria e

    contracultural. Nada muito elaborado, nada exatamente profissional,

    mas tudo muito criativo e potico. Num certo sentido, o Pedro sempre

    foi uma alma conturbada e sofredora que com o passar dos anos se

    moldou na solido e no alcoolismo. No comeo, dizia canes

    saturadas de amor e raiva, deixando pela madrugada um rastro de

    orqudea selvagem de bar em bar. Se no foi quem ensinou o Paulo a

    tocar violo, certamente exerceu nele uma forte influncia na

    descoberta das primeiras harmonias e acordes. Comps msicas

    notveis e premonitrias como Orao de um suicida, escrita nos

    anos 70 e que viria a funcionar, no futuro, como um paradigma da

    realidade.

    Os irmos Leminski antes que se possa pensar o contrrio

    no eram msicos importantes ou mesmo virtuoses em seus

    instrumentos. Para eles, poetas contemporneos ligados s mais

    variadas formas de expresso, a melodia existia para transformar os

    versos em canes. Esta era a exigncia bsica feita ao violo: que ele

    pudesse oferecer suporte rtmico a certos poemas... E ponto final. De

    qualquer maneira, em curto espao de tempo, o discpulo superou o

    mestre e acabou conquistando um relativo sucesso nas paradas da

    MPB. Em 1972, Paulo Leminski trouxe luz o projeto Em Prol de um

    Portugus Eltrico, onde propunha uma pesquisa mais profunda e

    direcionada para o ponto fraco do rock brasileiro: as letras. Era f de

    Rita Lee exatamente por ela apresentar estas qualidades musicais.

    Mais tarde, suas canes foram gravadas por msicos da importncia

    de Caetano Veloso, Moraes Moreira, Itamar Assumpo, Ney

    Matogrosso, Arnaldo Antunes, Zizi Possi e, uma suprema glria

    pessoal, ngela Maria.

  • Nos ltimos anos, qual dois Karamazov, os irmos no se

    falavam. Ou, quando o faziam, se desentendiam. Tais diatribes

    tinham origem em diversos pontos do relacionamento pessoal, mas

    eram, sobretudo, motivadas por um certo desprezo que o Paulo sentia

    por pessoas que no produziam. O aparente gesto de severidade para

    com o irmo era na verdade um mecanismo de autodefesa ou, a

    considerar algumas avaliaes mdicas, uma maneira de mascarar o

    medo do prprio destino. Para ele, Paulo Leminski Filho, a simples

    idia de consentir uma centelha que fosse com a apatia e o

    desnimo representava o fim, o mesmo que desistir do jogo da vida e

    da criao. Argumentava como uma metralhadora giratria: O sujeito

    tem que apresentar uma produo qualquer, mnima, mesmo que seja

    na rea da malandragem.

    Antes de morrer, Pedro Leminski fez tudo direito e se isolou. No

    momento do gesto extremo, para conseguir quebrar a coluna cervical

    com o golpe do enforcamento, foi obrigado a encolher as pernas,

    pendurado a um armrio...

    A partir deste trgico episdio, segundo observaes de Alice

    Ruiz, com quem Leminski viveu por 19 anos, as coisas mudaram

    tambm para ele. O poeta assumiria, com a morte do irmo mais novo,

    uma postura ainda mais radical diante da vida, resgatando uma

    antiga devoo autodestrutiva (self destruction, ele dizia no incio dos

    anos 70), que contribuiria para acelerar o processo de cirrose heptica

    e provocar sua morte em junho de 1989, aos 44 anos. Quando isto

    aconteceu, ele j era considerado um dos nomes mais importantes da

    literatura brasileira contempornea.

  • CAPTULO 2

    UMA LUZ NA CIDADE

    Paulo Leminski Filho nasceu s dezenove horas e dez minutos

    do dia 24 de agosto de 1944, em Curitiba, mais precisamente na

    Maternidade Vtor do Amaral, no bairro da gua Verde.

    Este fato, assim narrado de forma trivial e despretensiosa, no

    haveria de suscitar nenhum tipo de discordncia ou estranhamento,

    no fossem alguns registros publicados na imprensa paranaense

    afirmando ter o poeta nascido, na realidade, em Itaipolis, uma

    pequena cidade no interior de Santa Catarina. Segundo estas

    verses, a famlia Leminski teria se mudado para Curitiba logo aps

    o nascimento do primognito. Com o passar do tempo, j adulto e

    identificado nacionalmente como um poeta curitibano, o prprio

    Leminski estaria encobrindo sua verdadeira origem.

    Esta , certamente, uma verso equivocada ou fantasiosa mas

    no de todo despropositada, considerando que estaria a a primeira

    surpresa (armadilha, troa, truque, sarro) de uma vida e de uma

    obra marcadas pelo uso e abuso do sobressalto e da metalinguagem:

    ao nascer, o mais famoso poeta curitibano seria, na realidade,

    catarinense. Uma anedota espirituosa, sem dvida, mas que, pelo

    menos desta vez, no pode ser creditada a ele e nem levada a srio

    como informao biogrfica.*

    O dia amanhecera frio e mido naquela tera-feira. Uma

    * O registro de nascimento est arquivado fl. 12 do livro n 21, do cartrio de Francisco Antonio de Abreu, com data de 26 de agosto de 1944 Curitiba, Paran. Signo de Virgem, no horscopo tradicional, e Macaco no horscopo chins.

  • neblina tpica e muito comum nesta poca do ano deixava Curitiba

    mergulhada numa tonalidade opaca e suave, quase transparente. Os

    jornais do dia anterior e os programas matinais de rdio preveniam

    que a temperatura deveria cair nas prximas horas. O termmetro

    marcava 15 graus, mas por fora de suas obrigaes com o Exrcito

    Brasileiro, onde ocupava a patente de sargento, Paulo Leminski

    pulou cedo da cama. Ele tinha o hbito de acordar com os pardais e

    dormir com as galinhas, mantendo, mesmo em casa, as normas

    disciplinares da caserna. No que fosse um sujeito agitado nos

    movimentos ou mesmo vigoroso nas decises; nada disso, muito pelo

    contrrio; mas nestes tempos difceis de guerra, ele redobrava a

    disposio mantendo-se a servio de uma causa nobre e emergente:

    a defesa incondicional das fronteiras do pas.

    No plano domstico, 1944 vai representar a data em que o

    Brasil comemorou o segundo ano de sua participao na Segunda

    Guerra Mundial. No dia 24 de agosto, o presidente Getlio Vargas

    celebrava cerimnia alusiva no Palcio do Catete, no Distrito Federal.

    A devoo pblica, que levara a nao a viver com um olho no

    racionamento e outro na frente de batalha, encontrava no sargento

    Leminski um militar convicto e zeloso de suas obrigaes. Ele tinha

    ento 33 anos e nutria um sentimento de admirao e respeito pelo

    marechal-presidente, Getlio Dornelles Vargas.

    Paulo Leminski, o pai do poeta, era filho de poloneses de uma

    remota provncia de nome Naryow embora isso nunca tenha sido

    devidamente comprovado. A famlia, composta pelo pai Pedro, a me

    Catharina e o irmo Miguel, veio para o Brasil no fluxo da grande

    migrao de 1895, quando grupos da Polnia e da Ucrnia deixaram

    a Galcia (tudo, ento, Imprio Austro-hngaro) e as razes pelas

    quais estes xodos aconteceram so histricas: perseguies polticas

    e raciais, um surto de clera que atingiu a Ucrnia e, ainda, o

    sempre cultivado sonho de um mundo novo e produtivo.

  • Historicamente, sabe-se que os trs fatores agiram simultaneamente

    quando os Leminski decidiram encarar a aventura de cruzar o

    Atlntico a bordo de um navio. Para quem no tinha nada a perder,

    era pegar ou largar. Os Leminski resolveram pegar.

    Os documentos oficiais, emitidos por autoridades da Ucrnia,

    registram a sada deles pelo porto de Gnova, na Itlia, no dia 9 de

    julho. A regio sul do Brasil, pelo seu clima frio e vocao agrcola,

    foi o destino anunciado pela maioria das famlias. Paulo Leminski

    nasceria em 1911 em Restinga Seca, interior do Paran, quando a

    famlia j estava devidamente assentada na regio. Ainda

    adolescente, mudou-se para Curitiba, onde acontecem as principais

    aes desta histria.

    O av materno do poeta, Fernando Pereira Mendes, era um

    paulista de Itu, descendente de portugueses e capito do Exrcito na

    comarca de Curitiba, para onde fora ainda jovem, tambm na

    tentativa de encontrar uma porta aberta para o futuro. J militar,

    trabalhava na administrao da Subsistncia, na rua Joo Negro,

    uma unidade considerada por sua especfica funo de

    abastecimento o supermercado dos oficiais militares. Nas horas

    vagas, Fernando compunha versos pungentes e rebuscados na

    linguagem, que publicava em jornais do interior de So Paulo. Eram

    manuscritos em caligrafia impecvel que iriam denunciar, no futuro,

    o fio condutor da linhagem potica da famlia ou, mais

    especificamente, de Paulo Leminski Filho, seu neto.

    Fernando casou-se em primeiras npcias com Inocncia, filha

    de Mrio e Lia Alves, nativos da regio de Paranagu e Antonina, no

    litoral paranaense. Ela, da vertente negra e indgena brasileira, com

    remota ascendncia carij. Fernando teve nove filhos de dois

    casamentos, sendo que as duas esposas eram irms a outra, com

    quem se casaria mais tarde, chamava-se Lucila. A moa urea, que

    viria a ser a me do poeta, era a terceira filha do primeiro

  • matrimnio, com Inocncia.

    Paulo Leminski e urea Pereira Mendes se conheceram nos

    tradicionais footings da rua XV de Novembro, agenda social que

    embelezava as tardes romnticas de vero nos anos 40. Nesta poca,

    quando as pessoas andavam mais devagar, as caladas e vitrines

    mais concorridas de Curitiba ficavam entre as ruas Dr. Muricy e

    Baro do Rio Branco, um pouco alm da boca maldita, como seria

    chamado um certo trecho da avenida Luiz Xavier. Por ali desfilavam

    o charme e a elegncia da provncia, que tinha pouco mais de 140

    mil habitantes. O que se seguiu entre os jovens enamorados, depois

    dos primeiros olhares, foi um namoro rpido, bastante controlado

    pelo conservadorismo do pai, e, em seguida, o noivado. Como

    resultado da determinao do sargento Leminski, ficou claro, desde o

    incio, que ele estava assumindo um compromisso srio com a filha

    do capito.

    O casamento aconteceu um ano depois, a 7 de outubro de

    1943, na casa da noiva, na rua Duque de Caxias, com a presena do

    juiz e do padre casamenteiro. Nada de igreja ou desfile de carros

    arrastando latas pela cidade, como era costume. Uma cerimnia

    simples e ntima selou a unio do casal, com o testemunho apenas

    das duas famlias.

    Depois da festa os pombinhos seguiram para a casa alugada

    na rua Repblica Argentina, 1.136, uma regio ainda hoje conhecida

    como Capelinha, numa referncia a um santurio carregado de

    significao religiosa e misticismo. O pequeno monumento, onde as

    velas ardiam durante a noite, era uma homenagem da famlia

    Moletta pioneiros da gua Verde Imaculada Conceio e seria

    adotado pelos fiis como um lugar pblico de penitncias e oraes.

    Havia nesta poca dois monumentos religiosos bastante populares e

    msticos em Curitiba; o outro, que no tinha o formato de uma

    capelinha mas sim de uma grande cruz de madeira, ficava no lado

  • oposto da cidade e era conhecido como a Cruz do Pilarzinho.

    Juntos, Paulo e urea comearam a descobrir, nestes dias de

    guerra, todas as exigncias e dificuldades de uma vida provisria e

    racionada; ele, trabalhando pesado em unidades operacionais, sob a

    jurisdio do 3 Exrcito; ela, se aprimorando nas tarefas domsticas

    e se preparando estoicamente para o lar e a maternidade.

    Finalmente, naquela manh, o sargento Leminski pde ouvir

    no rdio as ltimas notcias do front: Foras aliadas retomam Paris;

    as tropas nazistas recuam. Os boletins noticiosos anunciavam uma

    noite de luz e festa em Champs Elyses: O general Charles De

    Gaulle exalta a Frana; o escritor Jean-Paul Sartre, um ativo

    militante da resistncia francesa, comemora com amigos intelectuais

    o sucesso da ofensiva. A guerra estava chegando ao fim. s 11

    horas, as contraes comearam.

    O nascimento do primognito dos Leminski aconteceu no incio

    da noite e foi considerado um parto normal pela equipe mdica. O

    beb veio ao mundo com trs quilos e meio, um razovel volume de

    cabelos negros na grande cabea e muita disposio aerbica:

    chorava alto e em bom tom.

    Na opinio de tia Luiza, uma das cinco irms a visitar a jovem

    me e seu beb na maternidade, era um guri lindo e saudvel.

    Nasceu muito forte e logo se tornou uma criana muito querida. Era

    mesmo uma graa, enfatiza, sugerindo uma ligao entre estes

    sinais de vivacidade e o carisma que o menino revelaria famlia aos

    trs anos de idade. A partir do seu nascimento, e mesmo quando

    adulto, ele seria chamado exatamente assim pelas cinco tias que o

    cercariam de mimo: Paulinho.

    Os pais mandaram fazer pequenos cartes em cores suaves,

    com o desenho de uma criana em fraldas, para anunciar o

    nascimento do primeiro filho: Paulo e urea P. Mendes Leminski

  • tm o prazer de participar o advento de seu primognito Paulo.

    Curitiba, 24 de agosto de 1944.

    Num certo sentido, o que aguardava Paulinho no lado de fora

    do aconchego materno era um planeta socialmente virado de ponta-

    cabea. Os anos ps-guerra estes sim estavam apenas comeando

    trariam brisas aromticas e poeiras radioativas numa mesma

    lufada durante as dcadas seguintes.

    No plano cultural, enquanto o Oriente reunia foras para uma

    profunda reestruturao social, o existencialismo francs pontificava

    nos sales e cafs europeus. Sartre, que havia lanado no ano

    anterior o polmico O ser e o nada, colhia os frutos deste e de outros

    sucessos polticos e intelectuais. Nas estradas da Amrica, a arte e a

    cultura do novo mundo j apresentando sinais de automao

    faziam florescer uma gerao espontnea de artistas, poetas,

    escritores, viajores que preconizavam uma revoluo URGENTE no

    comportamento e nos costumes da juventude. A performance e a

    prosa do aventureiro Jack Kerouac, que neste mesmo dia (24 de

    agosto de 1944) estava preso numa delegacia do Bronx, em Nova

    York, representavam uma nova expresso da literatura americana

    moderna, aquela por ele batizada de a gerao beat.*

    No Brasil, as conseqncias da Semana de 22 ainda ecoavam

    como uma bofetada no rosto da nao. O manifesto antropofgico,

    divulgado em 1928, fora considerado ultrajante pelas elites e de mau

    gosto pela classe mdia. Mesmo provocando reaes apaixonadas na

    platia (ou contra ou a favor), o fato que, aps a exposio pblica

    dos nossos talentos e artimanhas, promovida por intelectuais srios

    * Em conversa informal com John Clellon Holmes, em 1948, Kerouac usou pela primeira vez a expresso beat generation, com o propsito declarado de no criar um slogan. Ironia do destino, o que era uma negao [Ah, this is nothing but a beat generation) transformou-se na bandeira de um importante segmento da produo literria americana do sculo XX. Em 1952, o artigo This Is the Beat Generation, assinado por Holmes, seria publicado com pompa e circunstncia em The New York Times, referendando o movimento.

  • e debochados como Oswald de Andrade, Raul Bopp, Mrio de

    Andrade e Tarsila do Amaral, nossa cultura, do ponto de vista de sua

    organicidade, jamais seria a mesma. A partir de 22, criamos ainda

    que base de doses indigestas de ironia uma identidade verde-

    amarela que viria nos ajudar a desenvolver a capacidade de olharmos

    para ns mesmos.

    Em 1944 (spotlight neste tema, por favor) teve incio uma

    macia fase de produo do cinema brasileiro que entraria para a

    histria como o glorioso perodo das Chanchadas. Comeava a

    surgir nas telas os gnios de Oscarito e Grande Otelo, contemplando

    em suas temticas os hbitos e costumes da sociedade carioca. A

    reao paulista veio com a criao da Companhia Vera Cruz, um

    empreendimento grandioso que na dcada seguinte produziria seu

    maior xito: O Cangaceiro, de Lima Barreto. Era o cinema brasileiro

    gritando Ao!, no plano industrial e intelectual. Em Bogot, onde

    servia na Embaixada do Brasil, o ps-moderno Guimares Rosa

    preparava uma coletnea de contos (Sagarana) e apenas iniciava a

    gestao do seu romance mais radical, Grande serto: veredas,

    editado pela primeira vez em 1956.

    Enquanto isso, no aspecto poltico e econmico, o Estado Novo,

    de Vargas, empurrava o Brasil um pouco mais para perto dos

    brasileiros, anunciando medidas que representariam conquistas

    inquestionveis para a classe trabalhadora. Estava criado o salrio

    mnimo nacional. Em 1944 chegava ao fim, depois de muita

    expectativa e ansiedade, as obras de construo do Aeroporto

    Internacional Santos Dumont, no Rio de Janeiro, a Capital Federal.

    A infncia de Paulinho, neste contexto, foi normal e saudvel.

    No incio, o menino manifestava isoladamente alguns dotes

    artsticos, pendores naturais para a arte e os mistrios da

    linguagem infantil. Tia Luiza lembra que certa vez foi abordada pelo

    pi, antes mesmo de ele completar 4 anos, que lhe mostrou um

  • papel com um desenho que havia feito usando um lpis preto

    comum:

    Era um fogo, muito bem desenhado para uma criana da

    idade dele. Sobre o fogo, vrias panelas vazias...

    Na condio de professora ginasial trabalhando em escola

    pblica e, portanto, familiarizada com a chamada pedagogia

    infantil, tia Luiza foi logo incentivando o artista, fazendo elogios

    qualidade da obra... Mas o garoto surpreendeu:

    Mas isso muito triste, minha tia!

    Triste por que, Paulinho?

    Este quadro chama-se Misria e mostra um fogo sem lenha

    e panelas sem comida.

    Uma idia de misria que certamente no refletia a sua prpria

    condio social. Afinal, era filho de um sargento do exrcito que vivia

    com simplicidade, mas com conforto.

    Tia Luiza lembra que desde cedo Paulinho demonstrava

    aptides para encontrar estas informaes dentro dos limites de sua

    prpria casa, em livros, jornais e revistas. O garoto se revelou, com a

    mais tenra idade, um escarafunchador de publicaes, em todos os

    sentidos no incio, com rasges e safanes desordenados, e logo

    depois, como um apaixonado pelos livros.

    Quando se preparava para completar quatro anos e a casa

    paterna se descortinava como um imprio sem limites ou fronteiras,

    Paulinho ganhou um irmo. No dia 23 de abril de 1948, nascia o

    segundo filho do casal Paulo e urea, que seria batizado com o nome

    do av paterno: Pedro Leminski. A famlia aumentava, mas os bons

    ventos do ps-guerra anunciavam um perodo de reconstruo e

    prosperidade. Vivia-se em todo o pas a febre da procura por bens de

    consumo, principalmente de produtos eletrnicos: rdio, geladeira e

    chuveiro eltrico. No era necessrio subir em escadas e nem trepar

    em rvores para enxergar, logo frente, despontando no horizonte,

    aqueles que seriam chamados de Os Anos Dourados.

  • Nestes dias, Paulinho adquiriu o estranho hbito de subir no

    guarda-roupa. Ele justificava dizendo que ali no seria importunado

    pelo irmo caula, que circulava pela casa engatinhando

    freneticamente, procurando confuso. Diariamente, Paulinho pedia

    ao pai para coloc-lo sobre o enorme mvel de jacarand, onde

    passava horas compenetrado em leituras e divagaes...

    Em 1949, por fora de um ato de transferncia interna do

    Exrcito, o sargento Leminski se viu obrigado a reunir a famlia e

    preparar a mudana de malas e cuia para Itapetininga, no interior

    de So Paulo. A viagem e os transtornos decorrentes dela

    considerando uma famlia com duas crianas, sendo uma recm-

    nascida foram recompensados com a promoo para subtenente,

    agora da 2 Companhia de Transmisso. Os garotos Paulinho e

    Pedrinho tinham ento 5 anos e 1 ano, respectivamente, e gostavam

    de bater continncia sempre que viam o pai fardado.

    Na manh de 3 de maro de 1950, atravs de um telegrama

    nefasto e carregado de dramaticidade, eles souberam da morte de

    Fernando, o pai de urea. Dois dias depois, uma nota seria

    publicada no Dirio de Itapetininga, anunciando o passamento, em

    Curitiba, de Fernando Pereira Mendes, Membro da Academia de

    Letras Jos de Alencar e sogro do Subtenente Paulo Leminski,

    atualmente servindo nesta praa.

    Novas mudanas viriam em seguida. Antes do final do ano eles

    estariam de volta ao Sul, indo morar em Itaipolis, uma pequena

    cidade de Santa Catarina. A casa ficava num bairro afastado do

    centro urbano, uma vila militar conhecida como Quilmetro 34.

    Era um ponto estratgico para o Exrcito, com relao ao que se

    imaginava fosse o nosso inimigo em potencial, a Argentina. Foi um

    perodo no qual os Leminski viveram cercados por uma paisagem

    buclica, de inspirao rural, que iria permitir aos meninos travarem

    contato direto com a vida simples do interior, um trao que ficaria

    indelevelmente marcado em suas personalidades at o fim.

  • Na lembrana de Tia Luiza, que por duas vezes visitou a irm

    urea em Itaipolis, Paulinho era mesmo um menino esperto e

    superativo, no sentido moderno da palavra. Iniciou os estudos

    oficiais aos cinco anos, quando foi matriculado numa escola pblica

    perto de casa. Gostava de subir em rvores e dormir no sto das

    casas. Certa vez, dona urea foi surpreendida com a visita de um

    grupo de ndios que vieram entregar peas de artesanato

    encomendadas pelo garoto e j pagas com suas prprias economias.

    tia Luiza quem conta:

    Os ndios trouxeram arcos, flechas e pequenos utenslios em

    madeira e couro. Foi surpreendente, pois o Paulinho era apenas uma

    criana, conhecendo novos amigos e fazendo negcios a srio.

    Na hora de comer, Paulinho tinha sempre um bom apetite,

    fazendo do trivial arroz, feijo e banana o seu prato preferido.

    Quando ficava em casa, principalmente nos dias de chuva, gostava

    de observar a me desenvolvendo as tarefas domsticas, no preparo

    do almoo e do jantar, enquanto ouvia no rdio os ltimos sucessos

    de Agostinho dos Santos, Pedro Vargas ou Dalva de Oliveira, seus

    artistas favoritos:

    Lbios que eu beijei, mos que eu afaguei...

    Quando j era um poeta famoso, Paulinho (grafando assim o

    nome como uma referncia criana que havia dentro dele)

    escreveria poemas onde se percebe com nitidez a inspirao

    originada nestas janelas do tempo:

    l fora e no alto

    o cu fazia

    todas as estrelas que podia

    na cozinha

  • debaixo da lmpada

    minha me escolhia

    feijo e arroz

    andrmeda para c

    altair para l

    sirius para c

    estrela dalva para l

    Ou este outro, tambm fruto da observao do cotidiano

    materno:

    Minha me dizia:

    ferve, gua!

    frita, ovo!

    pinga, pia!

    E tudo obedecia

    Quando em muitos aspectos a ordem social e poltica no Brasil

    estava sendo reorganizada, surgem os primeiros problemas trazidos

    pelo lcool para dentro da famlia Leminski. O sargento, como ele

    ainda era conhecido, vinha transformando o hbito de tomar

    aperitivos sociais num ritual cada vez mais destemperado na

    quantidade e nas conseqncias. Era considerado um bom marido e

    um pai zeloso, mas sua imagem naturalmente dolente e calada

    ganhava agora a aparncia doentia de um homem de pijamas e com

    a barba por fazer. Certa vez, quando uma visita entrou na cozinha

    para tomar gua, foi aconselhada pelo pequeno Paulinho a no usar

    determinado copo que estava na cristaleira. O garoto nem falava

    direito, mas j se fazia entender:

    No pode usar porcoso que este o copo que o meu pai

    gosta de beber cachaa.

  • Em seguida, uma nova transferncia para outra base militar e

    os Leminski estavam agora na pequena Rio Negro, na divisa do

    Paran com Santa Catarina, a 50 km de Itaipolis. A rigor, eles

    apenas mudaram de bairro e foram morar na Vila Paraso, onde se

    concentravam as casas dos oficiais que vinham de outras regies.

    Ali, Paulinho concluiu a ltima srie do curso primrio no Colgio

    Estadual Dr. Caetano Munhoz da Rocha, onde tambm prestou o

    exame de admisso ao ginsio, em 1955. Nos seis crditos do teste

    de admisso, ele foi aprovado com mdia 7,48, sendo que suas

    melhores notas foram em Geografia e Histria, com as notas 9,5 e

    7,2, respectivamente. Mais tarde, ele diria ter produzido, nesta

    poca, aos 8 anos, seu primeiro poema, O Sapo, cuja temtica

    remetia vida campesina e buclica do interior do Brasil.

    No dia do seu aniversrio, quando completaria dez anos,

    Paulinho e toda a nao brasileira foram surpreendidos logo pela

    manh com uma notcia dita bombstica: Getlio Vargas se

    suicidara com um tiro no corao. A crise poltica no Palcio do

    Catete chegava a seu ponto culminante com a divulgao da carta-

    testamento assinada de prprio punho pelo presidente. Como

    conseqncia deste infausto acontecimento, a festa de aniversrio de

    Paulinho foi bastante contida e reservada; alm do irmo Pedro,

    agora com 6 anos, poucos amigos do bairro apareceram para cantar

    o Parabns pra voc.

    Dois anos depois, em agosto de 1956, finalmente os Leminski

    arrumariam as malas e voltariam para Curitiba. Foram morar numa

    pequena casa de alvenaria na rua Heitor Guimares, 624, no bairro

    Seminrio, a poucos metros do tradicional Internato Paranaense. O

    aluguel no era caro e as despesas continuavam compatveis com os

    proventos de um oficial militar. Provavelmente teria sido a

    proximidade fsica com o colgio e no propriamente uma

    inclinao religiosa a razo pela qual Paulinho seria matriculado

  • na tradicional instituio dos irmos maristas, um ensino com

    prestgio na cidade.

    Para se entender o que vai acontecer com Paulo Leminski deste

    ponto em diante, necessrio antes avaliar ainda que

    sucintamente a importncia e o significado do ensino religioso na

    educao e na formao intelectual de geraes de brasileiros.

    Concebidas como pilares vocacionais das ordens missionrias

    jesuticas, as escolas de cunho religioso que se espalhavam pelo pas

    na virada do sculo funcionavam como um veculo para arregimentar

    e catequizar, muito alm de alfabetizar. Apenas flertando com as

    elites, as aes sociais da Igreja ampliavam os laos de integrao

    com as comunidades (fiis) de base, tornando-se todos, por muitas

    vezes e em diferentes circunstncias, uma grande famlia. Era o

    Brasil das missas, das novenas e das quermesses dominicais. O

    Brasil cristo. E dos milagres dirios.

    Os mtodos de ensino e o relacionamento com o mundo

    exterior eram diferentes para cada ordem religiosa, e as mais

    conhecidas e presentes na vida brasileira eram justamente as dos

    maristas, franciscanos, dominicanos, clareteanos (ordem fundada

    por Santo Antonio Maria Claret, com hbitos pretos e colarinhos

    brancos) e beneditinos. Algumas ordens eram reconhecidamente

    mais liberais, outras mais conservadoras. Alm de uma certa

    pedagogia educacional de elite, os colgios ofereciam, em alguns

    casos, outros bens igualmente inestimveis aos seus alunos: cama,

    comida e roupa lavada.

    Paulo Leminski Filho foi aceito no Colgio Paranaense que

    continuava, informalmente, sendo chamado apenas de Internato

    em agosto de 1956. Tinha onze anos e foi matriculado na 1 srie,

    turma B, turno da manh, em regime de semi-internato o que lhe

    permitia passar as noites em casa. Ali, ele encontraria pela primeira

  • vez, entre as nove disciplinas do currculo, o latim e o francs as

    lnguas estrangeiras, com as quais ganharia no futuro o status de

    tradutor poliglota.

    Neste primeiro ano entre os maristas, dizem os boletins, o

    aluno obteve bom rendimento em geografia, francs, histria do

    Brasil e latim, nesta ordem. Sua paixo pelos idiomas acabaria

    funcionando, tambm, como um catalisador de seus interesses pelos

    estudos clssicos. Foi neste perodo que Paulo Leminski encontrou e

    se fascinou com ensinamentos contidos em dicionrios e

    enciclopdias. Passou a decorar, por sua prpria iniciativa, palavras

    em ingls e francs, tentando freneticamente dominar o vocabulrio.

    Ficava horas debruado sobre o Caudas Aulete e a enciclopdia

    Britannica (em ingls, pois apenas nos anos 60 seria editada no

    Brasil), suas fontes preferenciais de consulta.

    No ano seguinte, 1957, os estudos trariam uma outra

    aguardada novidade: o ingls, que finalmente passava a fazer parte

    do currculo, completando uma grande rea de interesses em torno

    dos idiomas. O resultado do boletim da 2 srie, igualmente

    significativo, registrava a mdia final 7,50. Os melhores

    aproveitamentos seriam em francs, com nota 8,40; latim, 8,12; e

    ingls, 7,40. O desempenho mais fraco seria em matemtica, com

    4,40 de mdia. Mas, certamente, no foram estas as nicas

    tendncias da temporada. A grande surpresa estava no interesse

    sbito que o menino passou a demonstrar pela vida religiosa. Foi

    apresentado pelos maristas s obras completas de padre Antonio

    Vieira e toda a literatura catlica. Devorou o que encontrou pela

    frente. No final do ano, estava aprovado com mdia 6,43 nada

    excepcional, mas o suficiente para conseguir uma matrcula na 3

    srie.

    Para a me, o garoto revelava na intimidade:

    Vou decorar tudo, saber o significado de cada palavra!

    Passou o ano inteiro no desenvolvimento desta magistral e

  • enlouquecida tarefa. Deixou a famlia preocupada e chamou a

    ateno de professores e educadores para o seu comportamento

    precoce. Tinha uma espantosa capacidade de memorizao,

    decorando textos e poemas com extrema facilidade. Era fissurado em

    Cames, Homero, Antero de Quental, que faziam parte de sua leitura

    diria. O pai militar contribuiu com Euclides da Cunha e o relato

    pico de Os sertes. O aluno foi aconselhado a recorrer a estudos

    ainda mais rigorosos, seguindo uma possvel vocao religiosa e

    contrariando o desejo do pai, que sonhava em v-lo na Academia

    Militar. Foi assim que Paulinho, durante um perodo de pesquisa

    autogerenciada e informal, acabou conhecendo o Colgio So Bento,

    em So Paulo, uma instituio secular mantida pelos monges

    beneditinos.

    Descobriu que os monges viviam em mosteiros misteriosos e

    lgubres, concentrados em leituras e anlises meticulosas de

    palimpsestos e manuscritos da Idade Mdia. Ficou sabendo que a

    Ordem dos Beneditinos fora fundada por So Bento de Nrsia (480-

    547), tambm criador das Regras, uma espcie de normas para a

    vida no Monastrio. Curioso, fez perguntas e obteve respostas

    precisas sobre tudo. Ouviu relatos sobre as verdades bblicas e j se

    sentia familiarizado com as diversas teorias da criao, quando sua

    imaginao voou... Em poucos dias estava com o endereo do

    mosteiro na mo e ps-se a escrever uma carta para o coordenador

    da escola, D. Clemente, pedindo informaes sobre como devia

    proceder para tornar-se um monge. A mensagem foi escrita de

    prprio punho e nela Paulinho se candidatava a uma vaga na 3a srie

    do curso ginasial, em regime de internato. Anos mais tarde, D.

    Clemente recordaria esta troca de correspondncia:

    Ele fez tudo sozinho, apesar de sempre consultar a famlia.

    Eu respondi explicando as regras do Colgio, lembrando que por

    uma questo de idade, ele deveria vir para o curso dos oblatos, como

    so chamados os alunos do ginasial ainda sem idade para o

  • noviciado. Ele gostou da idia e prometeu cuidar de tudo.

    No mbito domstico, a notcia soou como uma bomba. O velho

    reagiu demonstrando inicialmente uma certa inquietao com o

    futuro do filho, mas no final acabou ajudando a organizar a viagem

    inclusive tirando do colete sua grande coleo de conselhos e

    provrbios, com os quais sempre alinhavava as conversas reservadas

    com a famlia. Dona urea, que no estava com o esprito preparado

    para esta situao, sofreu o impacto da notcia. Tentou fazer o filho

    recuar da deciso, mas, nos dias que se seguiram, j sem

    argumentos, chorava dia e noite. Na verdade, ela chorou at a hora

    da partida de Paulinho, numa manh de fevereiro de 1958.

    Quando entrou num nibus na rodoviria de Curitiba, em

    companhia do pai, o garoto ento com 13 anos sabia que aps

    uma viagem de quase oito horas teria pela frente um perodo difcil,

    possivelmente com noites de solido e saudades de casa. Talvez at

    mesmo viesse a estranhar a comida ou o novo colcho... Mas

    nenhum obstculo ou desconforto, por maiores que fossem, parecia

    suficiente para afastar dele a idia de se tornar um monge e atingir,

    atravs de exerccios de meditao e estudos aprofundados, a to

    almejada sabedoria.

  • CAPTULO 3

    A VIDA NO MOSTEIRO E ALM

    O mosteiro de So Bento uma construo quadriltera no

    estilo normando, de trs andares, solidamente edificada no centro da

    cidade de So Paulo lembra, em muitos aspectos, uma fortaleza

    impenetrvel. O edifcio passou por diversas reformas ao longo dos

    sculos, mas a iniciativa de constru-lo em grandes propores deve-

    se ao legendrio bandeirante Ferno Dias Paes, um devoto de So

    Bento e amigo dos beneditinos. A escritura, lavrada em 17 de janeiro

    de 1650, denomina a rea como aldeia de Piratininga. As obras de

    construo da abadia se estenderam por mais de dez anos. O colgio

    foi inaugurado somente em 1903, oferecendo vagas para turmas em

    regime de internato e externato.

    Com o passar dos anos, o Colgio de So Bento colocaria

    disposio dos estudantes, alm da cultura secular da ordem

    eclesistica dos beneditinos, uma rica e formidvel biblioteca com

    cerca de 70 mil volumes, catalogados com rigor e metodologia. Tal

    acervo contribuiria para a formao intelectual de alunos ilustres

    como Godofredo da Silva Teles, conceituado jurista paulista e

    primeiro aluno a se matricular no colgio; Srgio Buarque de

    Hollanda, Guilherme de Almeida, Amrico Brasiliense, Francisco

    Prestes Maia e... Paulo Leminski Filho.

    Quando chegou ao mosteiro de So Bento, Paulinho se fazia

    acompanhar do pai e carregava com dificuldade uma mala com

    roupas de inverno e um pequeno ba repleto de livros. Eram obras

    clssicas de literatura e alguns dicionrios, dos quais o aplicado

  • aluno dava sinais de no querer se separar em momento algum. Pai

    e filho foram recebidos na portaria do prdio principal pelo diretor da

    Escola Claustral, D. Clemente, que lhes deu as boas-vindas em nome

    do mosteiro, e por Jos Maria Siviero, o hospedeiro,* ento com 11

    anos, representando os novos colegas. O sargento Leminski estava

    vestido com elegncia naquela tarde, exibindo um terno bem cortado

    de casimira e chamando a ateno por manusear um vistoso chapu

    de feltro, em tom escuro. D. Clemente lembra-se do efeito causado

    pela impoluta figura:

    Era um homem forte e educado, muito cerimonioso. Ele

    estava trazendo o filho, do qual tinha muito orgulho, e aceitou o

    convite para passar a noite como nosso hspede.

    Um detalhe ao acaso permite que o hospedeiro Jos Maria

    consiga lembrar com exatido, quarenta e um anos depois, a hora da

    chegada dos Leminski ao mosteiro: 17:15. O jantar no refeitrio

    coletivo tinha como tradio religiosa ser servido pontualmente s

    17:30. No momento em que as malas e o ba estavam sendo

    arrastados para dentro do claustro, os outros alunos j se

    acomodavam nas mesas. Ele e Leminski tiveram pouco tempo para

    largar a bagagem no terceiro andar, na ala dos oblatos, e descer para

    se juntar aos demais. Na pressa, Siviero largou o chapu do pai de

    Leminski sobre o ba e correu escada abaixo, excitado:

    Foi engraado porque aps o jantar, quando fui buscar o

    chapu, aconteceu um imprevisto. A sala do terceiro andar estava

    escura e eu acabei batendo com o joelho na quina do ba o que,

    alm de provocar uma dor terrvel, me fez cair sentado sobre o

    chapu. O objeto adquiriu o formato de uma pizza... Ns, os garotos,

    rimos muito desta cena, enquanto o pai dele tentava consertar o

    estrago.

    * Como era chamado o aluno escolhido para fazer o contato entre o claustro e o mundo exterior, na funo de hospedar novos companheiros ou receber visitas oficiais. O cargo no era vitalcio.

  • A escola de oblatos tinha nesta poca vinte e dois alunos, que

    ocupavam quase todo o terceiro andar da ala dos fundos do edifcio.

    Um elevador antigo, com estrutura de ferro e chave privativa, servia

    de acesso exclusivo para monges e professores. Os meninos faziam

    uso da escada que comea ao lado da piscina interna, passa pelas

    salas de aula do segundo andar e vai terminar em frente porta que

    d acesso aos dormitrios, no topo do edifcio. No total, so dez

    cubculos (aposentos individuais) fechados por cortinas de pano,

    formando um semicrculo no salo. No centro, uma mesa e duas

    cadeiras.

    Todos os cubculos, como prprio de um monastrio,

    ostentavam o mximo em despojamento material: uma cama, uma

    mesa e uma cadeira. (Estava sendo criada a ambivalncia esttica

    que ele adotaria para o resto da vida.) Do outro lado, seguindo pela

    porta da esquerda, chega-se ao aposento coletivo onde dormiam

    os alunos menores , um grande salo com capacidade para outras

    dez ou doze camas. E, finalmente, bem direita, a porta que conduz

    ao aposento de D. Clemente, o supervisor, hoje transformado em

    capela.

    Os novios alunos mais velhos, que usam hbitos de monge

    ocupavam as clausuras da ala frontal do mosteiro, ou seja, no

    lado oposto aos aposentos dos oblatos, que usam hbitos brancos

    em dias de cerimnia. Em ambos os casos, as janelas laterais

    voltadas para o ptio interno o claustro oferecem uma viso

    completa e area do vistoso jardim, onde se destacam a rvore

    smbolo pau-brasil e um pequeno lago com gua corrente e peixes

    ornamentais. um lugar onde se respira paz e tranqilidade, e o

    silncio sagrado. Conservando uma tradio que se mantm at

    hoje inabalvel, mulheres no podem entrar neste ambiente.

    Sabe-se que Paulinho no teve nenhuma dificuldade de

    adaptao na escola. Aps uma semana, exatamente no dia 4 de

  • maro, ele escreveu a primeira carta para a me, saudando-a

    como faria regularmente, a partir de agora com a palavra latina

    Pax! Falava da rotina no mosteiro e anunciava que tinha visitado o

    rgo de tubos e os sinos da baslica. E conclua:

    Aqui temos futebol (eu no gosto e no jogo), piscina e

    cinema. D. Clemente, os monges e os meninos so

    muito bons para mim. As aulas j comearam. Despede-

    se o Paulo com um beijo e um abrao; ao Pedro minhas

    lembranas.

    Entre seus novos companheiros, Paulo Leminski (que

    comeava a abandonar a identidade de Paulinho para ser chamado

    apenas de Leminski) foi encontrar um verdadeiro time de futebol j

    armado. Sinval de Itacarambi Leo, um paulista de Araatuba, era o

    centro-avante deste time. Mesmo sendo de uma turma mais velha,

    Sinval lembra-se vivamente de quando o jovem curitibano,

    matriculado com o nmero 277, passou a fazer parte da vida do

    mosteiro:

    O Leminski apareceu provocando um impacto na turma com

    a sua inteligncia e sagacidade. Era, sem nenhuma dvida, o mais

    culto entre ns. Possua uma inquietao cultural e existencial muito

    grande. Com apenas 13 anos tinha carisma e, talvez o mais

    importante, era generoso e no nos ofendia com sua inteligncia.

    Para Sinval que no futuro seria jornalista e editor da revista

    Imprensa o curto perodo que Leminski passou no mosteiro um

    pouco mais de um ano parece ter sido multiplicado por dois, tal a

    intensidade da relao entre o novo aluno, os colegas e a instituio.

    (No futuro, Leminski iria valorizar esta passagem, dizendo ter ficado

    dois, trs anos no So Bento.) Sinval recorda-se que logo nas

    primeiras semanas Leminski consolidara grandes amizades no novo

  • ambiente, inclusive com os monges mais eruditos do mosteiro. Entre

    eles, um em particular acabaria exercendo forte influncia em sua

    vida: D. Joo Mehlmann, um exegeta igualmente inquieto que, alm

    de ser considerado um intelectual sofisticado e srio, ocupava a

    funo tcnica de organista da Baslica. D. Joo, que passava o dia

    lendo e fumando charutos, reagiria com surpresa ao saber que um

    certo aluno, oriundo da turma dos oblatos, se vangloriava de ter lido,

    aos doze anos, uma enciclopdia inteira, de A a Z. At ento, ele

    acreditava ser o nico a ter realizado tal faanha. Ato contnuo, deu

    duas baforadas e cruzou os corredores do mosteiro; entrou no

    elevador e subiu at a ala dos obtatos no terceiro andar; queria

    conhecer pessoalmente Paulo Leminski. A partir do primeiro

    encontro, que aconteceu sob o signo dos estudos e do conhecimento,

    os dois ficaram bons amigos.

    Foi D. Joo Mehlmann, um doutor na Sagrada Escritura, cuja

    especialidade era estudar os autores gregos no original, quem

    apresentou a Leminski a biblioteca do mosteiro, no segundo andar.

    Ali, o garoto encontrou o que procurava: obras de autores clssicos

    servidas de bandeja por um orientador (tradutor) ideal para a tarefa.

    Interessou-se por latim e grego, tendo se aprofundado no estudo do

    Panteo, onde se perfilam os deuses sagrados da mitologia. Atualizou

    estes estudos religiosos atravs de Spinoza (Baruch), um expoente do

    pantesmo moderno, que organizou e catalogou as religies,

    conferindo-lhes definies, axiomas e postulados.

    A partir deste encontro, Leminski receberia informaes

    msticas e se deixaria fascinar pela cultura religiosa. Conheceu e se

    dedicou a entender a semiologia musical do Canto Gregoriano, um

    gnero difundido entre os monges e freqentemente entoado pelo

    coral durante as cerimnias oficiais. fato, tambm, que ficou

    visivelmente impressionado quando soube que na Idade Mdia os

    monges compuseram os Cantos Gregorianos acreditando ser a

    msica cantada por anjos e santos, no Cu, diante do Senhor. Na

  • terra, os monges recebiam uma graa momentnea e compunham

    estes cantos, identificados por Leminski como o verdadeiro som

    celestial:

    Dominas dixit ad me: Fillius meus es tu, ego hodie genui te.

    Quare fremuerimt gentes: et populi meditati sunt inania?*

    O depoimento de D. Clemente, concedido anos mais tarde,

    quando se encontrava afastado do monastrio, pode ajudar a

    elucidar o relacionamento entre Leminski e D. Joo Mehlmann:

    Os dois passaram a estudar juntos e discutir temas de

    grande profundidade. D. Joo transferiu para o Leminski uma carga

    muito grande de conhecimento, o caminho das pedras para o

    aprendizado das lnguas clssicas. Eles gostavam de discutir as

    obras-mes, como diziam.

    O resultado desta convivncia se traduziria nas primeiras

    notas do ano letivo de 1958, as chamadas argies do boletim,

    onde se pode ver um 10 em histria geral, dois 9, em latim e religio,

    e um 8 em francs. As piores notas do primeiro semestre, dois zeros

    categricos, foram em matemtica, nos meses de abril e maio. O

    comportamento do aluno, neste sentido, revelava uma forte

    inclinao pedaggica: as coisas que ele amava, amava muito e se

    esforava para entender; as que no gostava, sequer tomava

    conhecimento... Desde cedo seus professores perceberam que o

    melhor seria investir nos estudos em que ele demonstrasse interesse

    e aptido, para no dizer voracidade intelectual. Assim foi feito com

    as lnguas incluindo o portugus e histria universal, ctedras

    com as quais Leminski criaria uma estreita relao no futuro.

    O gosto pela poesia o aproximaria tambm de Lus de Cames

    * O Senhor me disse: Tu s meu filho, eu hoje te gerei. Por que as naes se amotinam e os povos meditam coisas vs? Ad missam innocte (A missa da noite), cnticos de Natal.

  • foi visto vrias vezes com Os Lusadas debaixo do brao e,

    assim que se estabeleceu, juntou-se a Sinval de Itacarambi para

    fundar, informalmente, a Academia de Letras Miguel Kruse, em

    homenagem ao abade que construiu o Colgio de So Bento, no

    incio do sculo. Eles fizeram uma rplica da ABL, constituindo

    estatutos, regulamentos ticos e cadeiras, sendo que a de nmero 1

    seria destinada a Carlos Francisco Berardo, que se recorda da

    homenagem:

    A academia foi fundada sob a inspirao de D. Clemente,

    mas Leminski e Sinval eram seus maiores entusiastas. Acredito que

    o Leminski, nesta poca, j se correspondia com escritores famosos.

    Notava-se nele, ento, alguns traos de boemia, no com relao s

    bebidas, evidentemente, mas com relao ao romantismo.

    Ao mesmo tempo, o ritual secular do mosteiro, que comeava

    diariamente s 5:30, era forte componente disciplinar na vida dos

    oblatos. O grupo mantinha a rotina de assistir missa das 6 horas,

    mesmo no inverno mais rigoroso, para s depois fazer o desjejum no

    refeitrio. As aulas comeavam invariavelmente s 7:05, com todos j

    sentados espera do professor. Revelando uma memria prodigiosa,

    Leminski em poucas semanas j tinha decorado vrios salmos de

    Davi e demonstrava preferncia pelo de n 105, cujo canto 34 faz um

    resumo do xodo, referindo-se especialmente s nuvens de

    mosquitos e gafanhotos. Uma imagem cinematogrfica para uma

    literatura transcendental.

    Segundo o depoimento de Sinval de Itacarambi, Leminski

    passou o ano inteiro estudando com empenho, sem trgua e sem

    hora de recreio:

    Apesar de ficar a maior parte do tempo sobre os livros, ele

    no era visto como um aluno caxias; pelo contrrio, era

    considerado mais um anarquista com idias prprias e originais.

    Gostava de nos envolver com questes que ele mesmo definia como

  • fundamentais. Sabia conversar e tinha orgulho do prprio

    discernimento. Assim que o conhecemos ficamos fascinados por ele.

    Outro monge, D. Jos Leandro, um paranaense de

    Guaraqueaba que tambm havia sido aluno do Internato, em

    Curitiba , no esconde um sorriso ao lembrar de Leminski

    circulando garboso pelos corredores, falando para os colegas que se

    preparavam para jogar futebol, em tom de brincadeira:

    Vamos, existem coisas mais importantes do que futebol.

    Faam consultas ele dizia, levando o dedo indicador cabea ,

    aqui dentro tem uma enciclopdia. grtis...

    D. Leandro se emociona ao falar do carisma do jovem

    estudante que, segundo ele, se destacava por apresentar um nvel

    cultural bastante acima dos demais:

    Apesar disso ele era muito bagunceiro e esperto. Participava

    das festividades da escola e era querido por todos.

    O decano desta turma, a quem cabia, na estrutura social da

    escola, organizar e disciplinar seus prprios colegas, era Osvaldo

    Torrell de Almeida Costa, escolhido para o cargo exatamente por ser

    um dos mais velhos do elenco. Torrell tinha muito trabalho com

    Leminski na questo disciplinar:

    Ele costumava desaparecer com muita freqncia. Certa vez,

    ao fazer a conferncia na hora de dormir, percebi que ele no estava

    em sua cama. J era tarde e, depois de muito procurar na vastido

    daqueles aposentos, fui encontr-lo dormindo atrs do piano, com

    um travesseiro no rosto e um ar angelical.

    possvel que um pouco da tolerncia encontrada junto aos

    novos colegas deva-se ao fato de que Leminski, ao contrrio da

    maioria dos garotos, no sabia jogar futebol, o que poderia ser

    considerado algo de menos neste pequeno universo ldico. (Em

    matria de futebol, o mximo a que Leminski arriscou foi ser

    torcedor do Atltico.) De qualquer maneira, tal deficincia era

    amplamente compensada pelo estilo e personalidade do rapaz. Para o

  • hospedeiro Jos Siviero, suas qualidades eram marcantes:

    O Leminski tinha um fsico avantajado, um corpo de atleta

    emoldurando uma personalidade forte. O fato de no jogar futebol,

    como mandava um certo figurino, no fazia dele um molengo. Ele se

    impunha numa conversa, falava alto e com determinao. Discutia

    com os professores, criava clima para o debate... Isto, na idade dele,

    era uma coisa fora do comum.

    No incio, ele ocuparia uma cama no dormitrio coletivo, junto

    aos alunos menores. Mais tarde, devido ao seu tamanho, seria

    separado dos infantes e transferido para um cubculo individual,

    indo se juntar aos garotos de 14 e 15 anos. Nesta poca, o que j era

    uma tendncia no seu comportamento acabou se transformando em

    atitude: definitivamente, no gostava de tomar banho. Participava

    das brincadeiras no stio dos padres, em Itapecerica da Serra,

    exercitando salto em altura ou jogando futebol (era desajeitado e

    algumas vezes foi visto atuando na defesa), mas na hora de ir para o

    chuveiro procurava desconversar: Tenho mais o que fazer, dizia,

    referindo-se s jornadas de estudos com as quais vinha

    conquistando a fama de aluno excepcional. Era vaidoso com o fsico

    e gostava de andar sem camisa, sempre que o clima e as ocasies

    permitiam.

    Quase na metade do ano, mais precisamente no feriado do Dia

    do Trabalho (1 de maio), os monges programaram um passeio dos

    oblatos a Santo Amaro, naquela poca um bairro afastado do

    centro de So Paulo. Era a chcara dos padres, uma espcie de clube

    de campo do noviado. Para os garotos, seria uma trgua nos

    estudos, um merecido e aguardado dia de recreao ao ar livre.

    Afinal, ningum de ferro!, diziam. Todos se prepararam com

    antecedncia com grande expectativa, o que acabou gerando uma

    ansiedade maior que se arrastou por interminveis dias da semana

    anterior... Finalmente, a viagem foi feita numa jardineira ou

  • lotao, como eram chamados os micronibus de ento.

    Fazia uma tarde agradvel, com cu azul e sol forte. Na

    lembrana de alguns ex-colegas e no registro de vrias fotografias

    Leminski foi o nico que no entrou no lago, preferindo brincar

    longe da gua. Mesmo sendo alvo de zombarias, no se intimidava e

    mantinha uma franca estratgia de contra-ataque ao promover um

    desfile in vitro de suas qualidades fsicas, desafiando qualquer um

    para os chamados esportes olmpicos: salto em distncia, corrida

    livre... Nestas horas, podiam-se ouvir msicas no rdio transistor e

    cantar junto os grandes sucessos do momento, a italiana Nel blu

    dipinto di blu, com Domenico Modugno, e Chega de saudade, com

    Joo Gilberto:

    Pois h menos peixinhos a nadar no mar

    Do que os beijinhos que eu darei na sua boca...

    Certa vez, Leminski tornou-se o centro das atenes dos

    colegas ao participar, involuntariamente, de uma cena curiosa. Ao

    ser descoberto um rato no dormitrio dos menores, imediatamente os

    alunos deram incio a uma verdadeira caada ao animal. A correria e

    a algazarra se instalaram por alguns minutos no 3 andar do

    mosteiro. Em flagrante desespero, o indesejado roedor corria de um

    lado para o outro, passava zunindo, ora em ziguezague, ora por

    debaixo das camas, arrastando uma horda de garotos atrs dele.

    Leminski estava parado, assistindo a tudo encostado num pilar,

    quando o rato passou-lhe pela frente. Num gesto rpido e certeiro ele

    desferiu um chute fatal no animal, que subiu e foi bater na parede

    oposta, antes de cair estatelado no assoalho. Foi uma cena

    surpreendente... Em seguida, saiu dizendo num jeito muito

    particular dele:

    Tem certas coisas que melhor fazer sem suar a camisa...

  • O fascnio e o interesse pela secular tradio dos beneditinos,

    sua histria e personagens, teriam levado Leminski a escrever,

    nestes dias, aquele que seria o seu primeiro (esboo de) livro: as

    biografias dos principais santos da Ordem. Estudou a vida do

    patriarca, o venervel So Bento de Nrsia, a partir de uma obra

    escrita no ano 593 pelo papa Gregrio Magno, em latim. Suas

    anotaes o teriam levado, ao longo de vrias semanas, a

    esquematizar e ordenar esta curiosa rvore genealgica dos

    beneditinos. O resultado da empreitada parece ter sido um pequeno

    caderno escolar com dezenas de folhas preenchidas, das quais no

    se conhece nenhum vestgio.

    provvel, tambm, que Leminski tenha estabelecido nesta

    mesma poca os primeiros contatos com os fundamentos filosficos

    de outras religies, notadamente o budismo e o zen-budismo. De

    qualquer forma, sabe-se que atravs de D. Joo Mehlmann ele ficaria

    conhecendo o outro lado da religio, as chamadas filosofias

    orientais. Dizia-se atrado por um pensamento que pudesse

    estabelecer uma unidade harmnica entre o indivduo e o Universo,

    sem intermedirios. Seguindo o pensamento de Santo Agostinho,

    porm sem as amarras da ortodoxia. No futuro, estas descobertas e

    influncias seriam marcantes em sua vida intelectual e

    devidamente utilizadas como temtica de alguns ensaios e inspirao

    para muitos poemas.

    Assim que se sentiu vontade no novo ambiente, Leminski

    adquiriu um outro hbito que no futuro lhe acarretaria alguns

    aborrecimentos junto direo do mosteiro: passou a colecionar

    fotos de mulheres (vedetes) em trajes sumrios, publicadas na ltima

    pgina do jornal A Gazeta Esportiva. Ele aproveitava as eventuais

    sadas normalmente para ir s aulas de canto orfenico, com a

    turma do coral e, de uma forma dissimulada e sorrateira,

    comprava o jornal numa banca das redondezas. Na poca, A Gazeta

  • era uma publicao bastante popular entre os torcedores de futebol,

    fanticos por jogos e mulheres ao que tudo indica, nesta ordem

    que, a bem da verdade, faziam exatamente como ele: recortavam as

    fotos e as penduravam em paredes de oficinas ou em murais de

    escritrios. No caso dele, num lbum secreto escondido sob o

    colcho.

    A ttulo de ilustrao, sabe-se que a favorita entre as starlets,

    aquela que ocupava o lugar de destaque na imaginao e no lbum

    do adolescente, era nada mais e nada menos do que a incomparvel

    (dizia-se a coqueluche do momento) atriz francesa Brigitte Bardot.

    O sucesso nas telas em ... E Deus criou a mulher (o ttulo uma

    sagrada coincidncia), filme dirigido pelo marido Roger Vadim dois

    anos antes, confirmava a preferncia da torcida brasileira pelo

    sotaque francs de BB. Os lbios carnudos e a pose lnguida

    estampada no lbum certamente embalaram algumas homenagens

    do garoto bela musa, na solido dos cubculos.

    Foi com a cumplicidade de alguns monges ditos progressistas

    que Leminski e Clemens Schrage, um dos craques do time dos

    oblatos, tiveram acesso aos 14 anos a La Putaine Respectueuse,

    de Sartre. Clemens lembraria mais tarde:

    Eu e o Leminski tnhamos a mesma idade e fizemos muitas

    sabotagens juntos. Andvamos sobre o telhado do mosteiro e

    acabamos delatados pelos moradores dos edifcios prximos. Para

    contra-atacar, arrombamos algumas salas eternamente fechadas,

    que continham o inventrio da elite do colgio.

    Em uma destas salas, a dupla dinmica encontraria trinta

    pianos e uma coleo inacreditvel de penicos coloridos de porcelana

    francesa. Era uma viso fantstica, que eles se permitiriam vivenciar

    repetidas vezes:

    Nossas aes neste setor do edifcio nunca foram

    descobertas e nem reveladas.

  • Para compensar alguma possvel tendncia para o relaxo,

    cortejado quase sempre nas esferas dedicadas a Eros, o deus da

    sensualidade, havia os momentos de extremo rigor, que continuavam

    permeando de informao e conhecimento os dias de Leminski no

    mosteiro. As cerimnias pomposas na baslica, em datas especiais,

    lhe mostrariam a magnitude do ritual litrgico. Como a missa

    celebrada no Sbado de Aleluia, por exemplo. Era sempre um dia de

    grande excitao no mosteiro. Durante a cerimnia, na condio de

    aclitos,* os garotos entravam na baslica vestidos com paramentos

    roxos assim como todas as esttuas dos santos, que permaneciam

    cobertas desde o incio da Quaresma. Havia um momento, durante o

    ofertrio, em que um dos coroinhas aparecia na entrada principal da

    igreja carregando um cordeiro; era o Agnus Dei, o cordeiro de Deus

    que tirais os pecados do mundo. Numa outra passagem, todos

    trocavam de roupa na sacristia, rapidamente, para voltar com

    vistosas e alegres batinas amarelas. Era um momento mgico. Os

    panos roxos das esttuas caam e o abade D. Afonso entoava Gloria

    in Excelsis Deo, com uma voz soberba e poderosa. No rgo de

    tubos, profundamente compenetrado, D. Joo Mehlmann.

    Era um jogo de cena incrvel, uma metamorfose que

    encantava a todos lembra Siviero, ele mesmo o encarregado,

    durante trs anos seguidos, de conduzir o cordeiro ao altar.

    Nestas ocasies, os sinos monumentais eram acionados,

    aumentando o tom solene da cerimnia. O Cantabola, o maior e mais

    pesado de todos os sinos, com 4,5 toneladas, badalava com alegria e

    majestade, fazendo-se ouvir por todo o extenso vale do Anhangaba.

    A baslica impregnada de incenso, as pessoas tossindo

    baixinho, o bruxulear das velas, tudo remetia a uma atmosfera de

    meditao e recolhimento. O refinamento e a beleza observados

    nos vitrais da baslica, nos tecidos de linho branco e nas obras de

    * Como so chamados os coroinhas que ajudam o padre a celebrar a missa.

  • arte sacra eram oferecidos como uma espcie de recompensa para

    aqueles que escolheram a abstinncia e a f como o Caminho da

    Verdade. Paulo Leminski viveu intensamente este clima, deixando-se

    tocar pelos dogmas da religio, tornando-se para sempre uma pessoa

    de vida simples e hbitos despojados.

    Logo depois da Pscoa, a primeira data especial no mosteiro

    era o Corpus Christi, no incio de junho, quando voltavam as

    cerimnias pomposas e os oblatos podiam novamente vestir seus

    hbitos brancos. Para confirmar as boas notcias em mbito

    nacional, antes mesmo do final do ms, no dia 29, o Brasil ganharia

    a Copa do Mundo, vencendo a Sucia na deciso, em Estocolmo, por

    4 x 0, com um show de Pel, agora o rei do futebol.

    Foi assim, em meio ao furor das comemoraes, que seria

    acertado entre seu pai e D. Clemente, atravs de uma troca de

    cartas, um perodo de frias em Curitiba. Foi uma visita rpida, que

    ajudou a matar as saudades de todos em casa. Em carta

    encaminhada a D. Clemente, pelas mos do prprio filho, o

    subtenente Leminski agradecia a ateno e a gentileza da direo do

    mosteiro pelo financiamento antecipado, que permitiu pagar a

    passagem do garoto sem muita burocracia.

    O boletim com as notas do segundo semestre veio confirmar a

    tendncia do aluno para as lnguas, com as mdias 8,24 em latim,

    6,50 em francs e 9,62 em histria geral (nota final). Apesar disso, a

    mdia global no passou de 5,79, o suficiente para ser promovido

    4a srie. Alm de matemtica, o aluno apresentava deficincia de

    aprendizado tambm em desenho e canto orfenico. E, mesmo

    estudando em regime de internato, o boletim registra onze faltas em

    aulas normais e outras cinco em educao fsica.

    Quando setembro chegou, dando um refresco no inverno de

    So Paulo, trouxe junto o escndalo da temporada. Foi um

    burburinho no colgio, que se espalhou rapidamente por todos os

  • andares e corredores. No se sabe como, o lbum de vedetes de

    Leminski, escondido durante vrias semanas sob o colcho de sua

    cama, havia sido descoberto por um monge bisbilhoteiro. O fato foi

    notificado imediatamente direo da escola. A partir deste episdio,

    lembram os ex-colegas, as coisas comearam a mudar para ele. O

    desconforto tornou-se evidente e, como conseqncia, ele se sentia

    como um estranho no ninho. Sinval de Itacarambi, testemunha

    ocular destes acontecimentos, reconhece que o lbum foi apenas a

    gota dgua:

    J havia uma certa disposio da direo do mosteiro em

    sugerir a volta de Leminski para Curitiba. Na verdade, ele comeava

    a dar sinais de inquietao e impacincia no claustro. Estava

    ultrapassando os limites fsicos e intelectuais da escola.

    O colega de carteira, Armando Loreto Jnior, lembra que seu

    comportamento era considerado meio amalucado. Ele andava,

    falava e pensava mais rpido que qualquer outro garoto da sala. Um

    dia, obedecendo ao ritual de levantar-se diante da chegada do

    professor sala de aula, como era de praxe, Leminski o fez de forma

    exagerada, provocando um forte barulho com o assento da carteira.

    O gesto irritou o professor Paulo Cechetto, de portugus, que depois

    de um breve sermo de reprovao, determinou:

    Ou voc vem aqui na frente e bate trs vezes com a cabea

    no cho ou ser colocado para fora da sala! Voc escolhe.

    Ser colocado para fora da sala significava uma punio

    extremamente grave neste contexto, uma mancha na ficha pessoal

    do aluno. Como regra bsica, qualquer garoto deveria evitar este tipo

    de referncia. Diz Armando:

    O Leminski no teve qualquer escrpulo e, para surpresa da

    turma e mais ainda do professor, foi frente e bateu com a cabea

    no cho trs vezes. E o fez com tal vigor que o barulho foi ainda

    maior do que quando bateu no assento da carteira.

  • Diante de tantos registros relacionados com a disciplina, a

    famlia foi aconselhada, em tom cordial e amigvel, a requerer a

    transferncia do aluno para outro colgio. Todos concordaram,

    entretanto, que o ano letivo deveria ser cumprido normalmente, at o

    final e que qualquer mudana ficaria para o ano seguinte. Em

    novembro, com o boletim nas mos e tendo conhecimento prvio do

    seu destino, os alunos entrariam em frias. Alguns vinham de longe

    a maioria do interior de So Paulo enquanto outros se

    reconheceriam exilados na rua principal e simplesmente

    mudariam de bairro. Ele, Paulo Leminski Filho, esperou o pai ir

    busc-lo e, juntos, tomaram o nibus de volta para casa.

    Em entrevista publicada vinte e quatro anos depois (a 29 de

    outubro de 1982), no jornal O Estado do Paran, ele deixaria

    registrado:

    Acontece que eu descobri a mulher. No mosteiro eu sentia

    umas coisas, uns arrepios que me faziam pensar: ou o arcebispo

    ou algum. Era a mulher. Ento, tinha coisa melhor que Deus.

    Depois, discretamente, revelaria ter boas razes para suspeitar

    que a descoberta do lbum secreto da Brigitte era resultado de uma

    trama urdida a partir das revelaes feitas no confessionrio, onde

    acumulava penitncias pelas rotineiras homenagens s belas e

    sensuais vedetes aludindo-se mitologia, uma referncia a Onan.

    Com o passar do tempo e com a repetio sistemtica destas

    penitncias, os monges teriam identificado em sua personalidade

    (ainda em formao) pontos visveis de soberba, vaidade e

    sensualidade, elementos considerados incompatveis com a vida

    monstica. Ou, analisando de outra forma, havia evidncias

    suficientes de que faltava ao aluno vocao espiritual para a vida

    religiosa.

    O pedido de transferncia do mosteiro, datado de 20 de janeiro

    de 1959, foi assinado de prprio punho por Paulo Leminski Filho,

    com a autorizao do pai estampada logo abaixo, no canto direito.

  • Chegava ao fim um perodo de intensa convivncia com os

    beneditinos cujo significado, para ele, no futuro, seria mais profundo

    do que uma simples passagem pela escola dos oblatos.

    Logo aps a partida e nos meses seguintes, Leminski escreveria

    vrias cartas para D. Clemente, a primeira delas em latim, a 28 de

    maro de 1959, assinada por Paulus L. Junior. Em maio, uma nova

    correspondncia e uma confisso: Das infinitas coisas que sinto

    falta, do Mosteiro, as principais so o silncio (que eu contribu para

    diminu-lo), a capela e os sombrios corredores.

    Em outubro, D. Clemente receberia um bilhete de apenas dez

    linhas onde Leminski reconhecia, em tom de serenidade: Mudei um

    pouco e tenho mais ordem externa e interna. Continuo tendo por

    lema AUT EGO AUT NIHIL (Ou eu ou nada).

    No dia 2 de fevereiro de 1960, mais uma carta com dois

    motivos aparentes: lembrar a D. Clemente que o Congresso

    Eucarstico Nacional seria celebrado em Curitiba e perguntar, as

    obras do dominicano Giordano Bruno esto no Index?.

    Em julho, numa carta recheada por questes, digamos,

    profundas, ele se mostraria frustrado por no constatar progresso

    no estudo da lngua grega:

    Nestas frias estudei latim, histria antiga, francs (leio

    Telmaco e o gnio do Cristianismo, Chateaubriand),

    hebraico (tenho um amigo que me cedeu uma

    gramtica) e procurei mais santos e vultos beneditinos

    para minha lista, numa enciclopdia catlica italiana;

    grego com uma gramtica me consumiu boas horas,

    porm acho ainda estar imaturo para me embeber do

    esprito da lngua de Xenofonte (emprestei da Biblioteca

    a Anlise. Nada consegui. Bem, disse com meus botes,

  • deve ser o dialeto que Xenofonte usa que no tico,

    mas mescla de jnio. Empresto ento Dilogos, de

    Plato, um dos mais puros escrevinhadores. Nada!).

    Aproveitava para fazer uma srie de consultas tcnicas a D.

    Clemente, sobre regras gramaticais, e se despedia pedindo a bno

    para o Leminski.

    Dois meses depois, uma nova correspondncia, iniciada aps

    ouvir a missa vespertina pelo rdio, trazia mais informaes sobre

    seus progressos nos estudos:

    Me aprofundo agora na literatura latina. Traduzi alguma

    coisa de Virglio e Salstrio que meu prosador

    predileto e leio tambm as cartas de S. Jernimo no

    original latino. Se souberes de algum livro que traga a

    biografia de Champollion, seria favor informar-me.

    A ltima correspondncia entre eles, datada de 19 de dezembro

    de 1960, tem como motivo

    algo que me alegra deveras: aps meses de estudo do

    hebraico, j estou em condies de estudar as Sagradas

    Escrituras ( algo que no me larga!) no original. Vou

    at s cinco da manh estudando os salmos. A alegria

    de poder l-los no original imensa. Todas as formas

    caractersticas do hebraico me so conhecidas.

    Ele voltaria algumas vezes ao So Bento, nos anos seguintes,

    sem jamais passar da recepo, pois sempre se faria acompanhar da

    mulher e da filha urea. O colega Sinval de Itacarambi, por sua vez,

    estima que esteve com Leminski pelo menos oito vezes, nos anos

  • seguintes, sendo a ltima em 1986, em Curitiba. Os outros colegas,

    personagens deste pequeno captulo do mosteiro, jamais o viram

    novamente, embora tivessem notcias suas pela imprensa. Alguns

    compraram seus livros e conhecem sua obra. Brigitte Bardot, j

    afastada do cinema, se tornaria uma incansvel ativista em defesa

    dos animais, e, acredita-se, nunca mais voltou a ser capa em lbum

    secreto de adolescente.

    Vrias experincias vividas nesta poca foram registradas por

    Leminski em folhas de papel e, posteriormente, em livros, tornando-

    se verdadeiras pegadas autobiogrficas lavradas no bojo de sua obra.

    Num poema escrito em agosto de 1984, quando completou 40 anos,

    ele diria:

    IN HONORE ORDINIS SANCTI BENEDICTI

    ordem de so bento

    a ordem que sabe

    que o fogo lento

    e est aqui fora

    a ordem que vai dentro

    a ordem sabe

    que tudo santo

    a hora a cor a gua

    o canto o incenso o silncio

    e no interior do mais pequeno

    abre-se profundo

    a flor do espao mais imenso

    Na mesma entrevista, Leminski diria que aos 40 anos ainda

    me sinto um Beneditino e vai ser assim para sempre... Mais

  • tarde, no incio dos anos 90, foi encontrado entre seus alfarrbios

    cuidadosamente programado para ser editado este poema que ele

    decidiu chamar de

    SACRO LAVORO

    as mos que escrevem isto

    um dia iam ser de sacerdote

    transformando o po e o vinho forte

    na carne e sangue de cristo . . .

    hoje transformam palavras

    num misto entre o bvio e o nunca visto

    Em junho de 1968, a Escola Claustral do Colgio de So Bento

    foi fechada por deciso da abadia, como conseqncia de uma crise

    financeira e de uma onda de escndalos envolvendo denncias de

    homossexualismo entre monges e alunos. A notcia foi mantida longe

    dos foros da imprensa diria, mas mesmo assim D. Clemente

    abandonou o mosteiro e voltou vida civil com o nome de batismo:

    Jos Maria da Costa Vilar.

    D. Joo Mehlman faleceu nos anos 70 em decorrncia de

    problemas com alcoolismo. O oblato Pedro Uzum tambm se afastou

    da vida religiosa por outros motivos e foi trabalhar como

    psiclogo na cidade de So Paulo. D. Jos Leandro e D. Estevo

    continuam no mosteiro ainda hoje, onde so monges professores; o

    decano Oswaldo Torrell, com a identidade religiosa de D. Lucas,

    exerce a funo de prior do mosteiro de So Bento, em Vinhedo,

    interior de So Paulo. Armando Loreto Jnior, colega de carteira de

    Leminski, formou-se em engenharia eletrnica e leciona matemtica

    e religio numa universidade em So Paulo. Carlos Francisco

  • Berardo, o ocupante da cadeira n 1 da Academia de Letras Miguel

    Kruse, formou-se em direito e, na virada do ano 2000, era juiz do

    Trabalho.

    Posteriormente, fazendo um breve resumo sentimental deste

    perodo, Leminski criaria este emblemtico e despojado poema sem

    ttulo:

    nunca sei ao certo

    se sou um menino de dvidas

    ou um homem de f

    certezas o vento leva

    s duvidas continuam em p

  • CAPTULO 4

    CURITIBA, POR TRS DA NEBLINA

    Certa vez, durante uma entrevista a um grupo de jornalistas,*

    ao analisar aspectos culturais da cidade de Curitiba, Paulo Leminski

    diria:

    Primeiro: esta uma cidade em que a sexualidade, o Eros da

    vida, reprimido. E Eros coincide com a criatividade. Ento, a

    represso de Eros a represso da criatividade. No criamos nada

    no setor primrio e secundrio, ou seja, nem agricultura e nem

    indstria. Curitiba , portanto, uma cidade de administrao e

    tabelionatos, onde se vive a plenitude do determinismo econmico da

    classe mdia. Segundo: em Curitiba (como em todo o Paran) existe o

    que se pode entender como a mstica do trabalho, herana

    equivocada dos imigrantes alemes, italianos e polacos, empenhados

    em se convencer de que o trabalho dignifica a vida. Uma idia

    certamente criada por aqueles que se consideravam

    irremediavelmente por baixo, na escala social.

    As anlises sobre a cidade onde nasceu e viveu a maioria dos

    seus 44 anos tinham para Leminski, invariavelmente, este tom

    dramtico e visceral. Suas teses incluam, como elementos inerentes

    ao discurso, a polmica e a provocao. Neste sentido, ele foi um dos

    mais mordazes e agudos crticos que a cidade j conheceu. No

    necessariamente em tom depreciativo que fique bem claro isso ,

    mas quase sempre irnico at porque ele se considerava,

    sobretudo, um curitibano:

    * Revista Quem, Curitiba, maio 1980.

  • Eu jamais consegui morar em outro lugar por muito tempo.

    Agora, aos 40 anos, estou mais tranqilo, pois descobri que sou

    como o pinheiro, que no se pode transplantar.

    A cidade de Curitiba, assim como todo o universo que o

    cercava, vai aparecer em vrios momentos de sua obra, seja em

    forma de poemas, ensaios ou o que aconteceria com mais

    freqncia entrevistas publicadas em jornais e revistas.

    No final dos anos 80, produziria o poema Curitibas, no plural,

    para dizer:

    Conheo esta cidade

    como a palma da minha pica.

    Sei onde o palcio

    Sei onde a fonte fica

    S no sei da saudade

    A fina flor que fabrica.

    Ser, eu sei. Quem sabe,

    esta cidade me significa.

    Para se conhecer a Curitiba que Paulo Leminski cantou em

    prosa e verso, com suas caractersticas e idiossincrasias, recomenda-

    se antes estabelecer uma conexo, atravs do tempo, com as

    correntes migratrias que ocuparam o Sul do Brasil em diferentes

    pocas. Afinal, at o sculo XVIII o planalto curitibano tambm era

    uma terra de ndios no bom sentido, claro , onde viviam as

    tribos j, tingi (da grande nao guarani) e tupi, das quais existem

    hoje poucos vestgios e quase nenhuma narrativa oral. Algumas

    pegadas indgenas ainda podem ser encontradas na nomenclatura

    dos bairros: Capanema, Atuba, Juvev, Guabirotuba. A palavra

  • Curitiba seria grafada, segundo o idioma guarani, algo como Kur ity

    ba.*

    Os colonizadores que se estabeleceram no planalto da Serra do

    Mar, aps o pioneirismo do povoador Mateus Leme, chegaram

    atrados sobretudo pelo garimpo do escasso ouro da regio (quase

    nada, se comparado ao das Minas Gerais). A Vila de Nossa Senhora

    da Luz dos Pinhais, primeiro nome do povoamento, situada a 900

    metros acima do nvel do mar, demorou a se desenvolver

    economicamente justamente por no ter muito a oferecer, alm de

    um frio rigoroso e temperaturas no raro inferiores a zero grau. At

    ento, a vila era usada como pernoite pelos tropeiros que faziam o

    trnsito de gado para So Paulo (o famoso corredor Viamo-

    Sorocaba) e exportao de erva-mate, via porto de Paranagu, a

    partir de 1820.

    Mesmo com as evidentes dificuldades climticas, a regio

    atraiu a primeira leva de imigrantes alemes (na verdade, um

    movimento de reimigrao) vindos de Rio Negro para se estabelecer

    em terras cedidas pelo Imprio como parte do plano de ocupao

    territorial, em 1833. Paradoxalmente, o clima da regio ajudou os

    negcios de Michael Mller e Anna Krantz, pioneiros na explorao

    deste solo, que trouxeram inovaes tcnicas no cultivo de frutas

    europias e batatas inglesas.

    Os poloneses (incluindo os ucranianos) chegariam a partir de

    1871, assentando-se no anel perifrico da cidade, onde criariam as

    colnias Toms Coelho, Muricy, Santa Cndida, Orleans, Lamenha e

    Pilarzinho. Em seguida, os holandeses se estabeleceram numa rea

    mais central do Paran, a regio de Castro, onde construiriam uma

    cidade industrial, Castrolndia, cuja principal atividade econmica

    * Mais tarde, j no sculo XX, o humorista Millr Fernandes criaria uma piada denunciando que, etimologicamente, o sufixo ritiba quer dizer do mundo.