Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

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Toninho Vaz

PAULO LEMINSKI

O bandido que sabia latim

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Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

V497p Vaz, Toninho, 1947-

Paulo Leminski: o bandido que sabia latim / Toninho Vaz. — Rio de Janeiro : Record, 2001.

ISBN 85-01-05963-3

1. Leminski, Paulo, 1944-1989 — Biografia.

2. Escritores brasileiros — Biografia. I. Título.

CDD 928.699 01-0411 CDU 92(LEMINSKI, P.)

hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//ddiiggiittaallssoouurrccee Copyright © Toninho Vaz, 2001 Projeto gráfico: Regina Ferraz Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Direitos exclusivos desta edição reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 — Tel.: 585-2000 Impresso no Brasil ISBN 85-01-05963-3 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ — 20922-970

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CCCCCCCCOOOOOOOONNNNNNNNTTTTTTTTRRRRRRRRAAAAAAAA CCCCCCCCAAAAAAAAPPPPPPPPAAAAAAAA

isso de querer

ser exatamente aquilo

que a gente é

ainda vai

nos levar além

PAULO LEMINSKI

OOOOOOOORRRRRRRREEEEEEEELLLLLLLLHHHHHHHHAAAAAAAASSSSSSSS DDDDDDDDOOOOOOOO LLLLLLLLIIIIIIIIVVVVVVVVRRRRRRRROOOOOOOO

“Rimbaud curitibano com físico de judoca, escandindo versos

homéricos, como se fosse um discípulo zen de Bashô”, escreveu

Haroldo de Campos apresentando seu discípulo. Segundo Caetano

Veloso, “Leminski tem um clima/mistura de concretismo com

beatnik”. Para Augusto de Campos “foi o maior poeta brasileiro de

sua geração”. Em versos se autodefiniu: o pauloleminski/ é um

cachorro louco/ que deve ser morto/ a pau e pedra/ a fogo e a pique/

senão é bem capaz/ o filhodaputa/ de fazer chover/ em nosso

piquenique.

Samurai futurista, pensador selvagem, agitador intelectual,

meio polaco e meio caboclo, provinciano e universal, Paulo Leminski

foi uma inesquecível tempestade na cena cultural brasileira, antes de

morrer aos 44 anos, em 1989, no auge do sucesso, como um mito.

Fabricando fenômenos e sensações com sua poesia

perturbadora, Leminski conjugava a densidade fulminante de haicais

com a loucura da contracultura, o coloquialismo e o humor de nosso

primeiro modernismo com sua profunda erudição. Deixou um

testamento pós-joyciano com a prosa ousada de Catatau, e músicas

nascidas de parcerias com Arnaldo Antunes, Itamar Assumpção,

Moraes Moreira, José Miguel Wisnik e Caetano Veloso.

O poeta marginal de Curitiba aderiu ao mainstream midiático

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dos anos 80 fixando sua marca em trabalhos assinados na Veja,

Folha de S. Paulo e na televisão, no Jornal de Vanguarda, enquanto

encantava com suas impecáveis traduções de John Fante, Alfred

Jarry, Yukio Mishima e Samuel Beckett. Suas biografias de Cruz e

Sousa, Bashô, Jesus e Trotski davam a bandeira de sua ligação com

os cavaleiros da paixão e da poesia, e com os limites do perigo

sinalizando: “Existe um paradoxo nos produtos culturais, superiores

frutos do trabalho humano: eles sobre-vivem ao autor, são uma

vingança da vida contra a morte. Por outro lado, só podem fazer isso

porque são morte: suspensão do fluxo do tempo, pompas fúnebres,

pirâmide do Egito.” O bandido que sabia latim resgata a vida deste

artista que foi hippie; professor de judô, História e redação;

publicitário; inveterado conquistador e bebedor de vodca; candidato a

monge beneditino; gênio e doido; ídolo e mestre que deixou poesia e

saudade para gerações de leitores.

Antonio Carlos Martins Vaz

(Toninho Vaz) nasceu a 2 de

outubro de 1947, em

Curitiba. É jornalista e

roteirista de televisão.

Começou escrevendo no

Diário do Paraná, em 1969.

Foi editor e colaborador de

diversos jornais alternativos

nos anos 70 e 80 — Anexo, Raposa, Polo Cultural, Pasquim, Nicolau.

Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1974. É casado com Naná Gama

e Silva e tem uma filha, Maria Carolina. Trabalhou como editor de

texto na Rede Globo durante quatorze anos. De 1995 a 1998 viveu

em Nova York. Atualmente mora em São Paulo.

Capa e quarta capa: fotos Dico Kremer

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Para Naná, pelo amor

e Alice, pela amizade

Para a tia Bá, que só lia biografias

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Este livro vai contar a história de Paulo Leminski Filho, o mais

iluminado e reverenciado poeta curitibano. Esta biografia não

pretende analisar o valor de sua obra e nem discutir a qualidade de

seu trabalho — tarefa esta que deve ser delegada a quem de direito:

os críticos literários. Aqui se pretende fornecer elementos que

possam explicar a existência e a personalidade de um intelectual tão

singular e criativo como Paulo Leminski, poeta responsável pela

insurreição da fantasia, o autodenominado “cachorrolouco”, “a besta

dos pinheirais”, “o ex-estranho”, “o que chegou sem ser notado”.

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aqui jaz um grande poeta,

nada deixou escrito,

este silêncio, acredito,

são suas obras completas.

Paulo Leminski

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SUMÁRIO

PREFÁCIO O tal das químicas

CAPÍTULO 1 A plenos pulmões

CAPÍTULO 2 Uma luz na cidade

CAPÍTULO 3 A vida no mosteiro e além

CAPÍTULO 4 Curitiba, por trás da neblina

CAPÍTULO 5 Com o diabo no corpo

CAPÍTULO 6 Delírios e noites cariocas

CAPÍTULO 7 O dia da criação

Um capítulo à parte

CAPÍTULO 8 A Cruz do Pilarzinho

Outro capítulo à parte

Último capítulo à parte

CAPÍTULO 9 O poeta descalço

O resto imortal

CAPÍTULO 10 Perhappiness

EPÍLOGO 27 clics de Leminski

Apêndices

Bibliografia

Discografia

Agradecimentos

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O TAL DAS QUÍMICAS

A idéia deste livro saiu da cabeça de Alice Ruiz durante um passeio

pelo centro antigo do Rio de Janeiro no Natal de 1998. Ela fez a

sugestão argumentando que com a morte do poeta, dez anos antes, o

culto à sua obra e personalidade — principalmente em Curitiba,

onde foi transformado em mito pelas novas gerações — só fez

aumentar o interesse e a curiosidade por sua vida — vale dizer, tão

extraordinária quanto sua obra (ou o Catatau não é algo

extraordinário?!, um sujeito que passa oito anos escrevendo um livro

que poucas pessoas conseguem ler — e aquelas que o fazem [a

crítica especializada, em grande parte], chamam-no de “obra-

prima”?...).

Ela arrematou: “Eu mesmo preciso conhecer o homem com

quem vivi por 19 anos. Alguém tem que fazer esse trabalho.” Assim

nasceu esta biografia. De um ponto de vista estritamente pessoal,

posso garantir sem medo que Paulo Leminski nunca me ofereceu

alternativas: fui seu fã até o final.

Da mesma forma, sempre acreditei que, independentemente de

seu gênio poético e de sua obra, Paulo Leminski não foi uma pessoa

normal. Não era quando eu o conheci no ano histórico de 1968.

Tinha algo de especial, algo de magnético, algo fora do comum, algo

de louco. Sua profunda erudição e modernidade o transformavam

num intelectual peculiar, brilhante e eloqüente — um “especialista

em generalidades”, como se definia. Quando falava e gesticulava

parecia materializar uma utopia em forma de charme. Num certo

sentido pode-se comparar com a aparição de um disco voador: quem

viu não consegue esquecer.

Lembro-me como se fosse hoje: ao conversar com ele pela

primeira vez (no tempo que a contracultura era uma postura

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ideológica e não um produto de consumo) sobre assuntos culturais

diversos, finalmente, a escola e os estudos passaram a fazer sentido

em minha vida. Costumo dizer que me alfabetizei, então. Já

trabalhava como repórter em redação de jornal, cursava o primeiro

ano da faculdade mas não suportava a vida acadêmica — pelo menos

com aquela rotina que me tinha sido apresentada. Paulo Leminski,

neste sentido, desempenhou um papel decisivo na minha vida

profissional, adicionando conteúdo e perspectiva à sopa rala da

minha pobre cultura — ou seria cultura de pobre? Com o passar do

tempo nos tornamos amigos e compadres. (Ele me chamava de

Martins, adotando um dos meus sobrenomes paternos.)

Agora, na virada do ano 2000, subitamente investido no papel

de seu biógrafo, me deparei com a tarefa de traduzir ao leitor quem

realmente foi Paulo Leminski Filho, com todas as suas grandezas e

contradições. Era um convite “de grego” (helênico, ele diria), pois

teria que mergulhar numa personalidade complexa e inquieta, que

viveu cortejando os limites do perigo, irremediavelmente “engajado

no difícil” e tendo alguns pontos obscuros na trajetória de sua vida.

No final, não me restou outra alternativa senão agir, mais uma vez,

como ele recomendava: respirando fundo e abordando o trabalho

“com raça, método e sinceridade”. Eu juro que tentei.

Após um ano de pesquisas e 81 entrevistas realizadas com

parentes, parceiros, alunos, ex-mulheres, professores, amigos e até

desafetos, foi possível reunir histórias, escritos, poemas e fotos

inéditas; rascunhos de textos inacabados e muitas pegadas

espalhadas pelas três cidades onde o poeta viveu: Curitiba, Rio de

Janeiro e São Paulo. O resultado está aqui na medida das minhas

pretensões: o retrato de um poeta brasileiro sem disfarces, o ex-

estranho Paulo Leminski.

Toninho Martins Vaz

Abril, 2000

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CAPÍTULO 1

A PLENOS PULMÕES

Ipanema, 17 de dezembro, 1986. O telefone toca logo pela

manhã, fazendo um rrrrring-rriing estridente próximo ao meu ouvido

no momento mais delicioso do sono. Uma esticada de olho no relógio e

a indicação dos ponteiros: 8 horas. Simplesmente madrugada para um

jornalista de hábitos noturnos como eu, amante de bares, blues e lua

cheia. Arrastei um “Aloooô?...” quase inaudível com a intenção de ser

interpretado como um “bom dia”...

— Martins? É você?

Imediatamente reconheci a voz de Paulo Leminski e pulei da

cama.

— Paulo, que surpresa!

(Vamos dizer que um telefonema do Paulo era sempre uma

surpresa.)

Ainda meio tonto, tentei me recompor...

Ele não esperou:

— Mano, o Pedro pediu a conta.

(silêncio)

Parei no meio do caminho, segurando o telefone com uma das

mãos e esticando o fio com a outra...

— Pediu a conta como?...

— Se enforcou, se matou, chamou o garçom, se foi...

(silêncio)

— Porra, Paulo, que história é essa?!

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Pedro era o mais novo dos dois irmãos Leminski. No início dos

anos 70, quando o conheci nos bares de Curitiba, tinha 23 anos e

parecia carregar o espírito de Bob Dylan no corpo, fazendo uma

música visceral e combativa, impregnada de verve revolucionária e

contracultural. Nada muito elaborado, nada exatamente profissional,

mas tudo muito criativo e poético. Num certo sentido, o Pedro sempre

foi uma alma conturbada e sofredora que com o passar dos anos se

moldou na solidão e no alcoolismo. No começo, dizia canções

saturadas de amor e raiva, deixando pela madrugada um rastro de

orquídea selvagem de bar em bar. Se não foi quem ensinou o Paulo a

tocar violão, certamente exerceu nele uma forte influência na

descoberta das primeiras harmonias e acordes. Compôs músicas

notáveis e premonitórias como “Oração de um suicida”, escrita nos

anos 70 e que viria a funcionar, no futuro, como um paradigma da

realidade.

Os irmãos Leminski — antes que se possa pensar o contrário —

não eram músicos importantes ou mesmo virtuoses em seus

instrumentos. Para eles, poetas contemporâneos ligados às mais

variadas formas de expressão, a melodia existia para transformar os

versos em canções. Esta era a exigência básica feita ao violão: que ele

pudesse oferecer suporte rítmico a certos poemas... E ponto final. De

qualquer maneira, em curto espaço de tempo, o discípulo superou o

mestre e acabou conquistando um relativo sucesso nas paradas da

MPB. Em 1972, Paulo Leminski trouxe à luz o projeto “Em Prol de um

Português Elétrico”, onde propunha uma pesquisa mais profunda e

direcionada para o ponto fraco do rock brasileiro: as letras. Era fã de

Rita Lee exatamente por ela apresentar estas qualidades musicais.

Mais tarde, suas canções foram gravadas por músicos da importância

de Caetano Veloso, Moraes Moreira, Itamar Assumpção, Ney

Matogrosso, Arnaldo Antunes, Zizi Possi e, uma suprema glória

pessoal, Ângela Maria.

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Nos últimos anos, qual dois Karamazov, os irmãos não se

falavam. Ou, quando o faziam, se desentendiam. Tais diatribes

tinham origem em diversos pontos do relacionamento pessoal, mas

eram, sobretudo, motivadas por um certo desprezo que o Paulo sentia

por pessoas que não produziam. O aparente gesto de severidade para

com o irmão era na verdade um mecanismo de autodefesa ou, a

considerar algumas avaliações médicas, uma maneira de mascarar o

medo do próprio destino. Para ele, Paulo Leminski Filho, a simples

idéia de consentir — uma centelha que fosse — com a apatia e o

desânimo representava o fim, o mesmo que desistir do jogo da vida e

da criação. Argumentava como uma metralhadora giratória: “O sujeito

tem que apresentar uma produção qualquer, mínima, mesmo que seja

na área da malandragem.”

Antes de morrer, Pedro Leminski fez tudo direito e se isolou. No

momento do gesto extremo, para conseguir quebrar a coluna cervical

com o golpe do enforcamento, foi obrigado a encolher as pernas,

pendurado a um armário...

A partir deste trágico episódio, segundo observações de Alice

Ruiz, com quem Leminski viveu por 19 anos, as coisas mudaram

também para ele. O poeta assumiria, com a morte do irmão mais novo,

uma postura ainda mais radical diante da vida, resgatando uma

antiga devoção autodestrutiva (self destruction, ele dizia no início dos

anos 70), que contribuiria para acelerar o processo de cirrose hepática

e provocar sua morte em junho de 1989, aos 44 anos. Quando isto

aconteceu, ele já era considerado um dos nomes mais importantes da

literatura brasileira contemporânea.

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CAPÍTULO 2

UMA LUZ NA CIDADE

Paulo Leminski Filho nasceu às dezenove horas e dez minutos

do dia 24 de agosto de 1944, em Curitiba, mais precisamente na

Maternidade Vítor do Amaral, no bairro da Água Verde.

Este fato, assim narrado de forma trivial e despretensiosa, não

haveria de suscitar nenhum tipo de discordância ou estranhamento,

não fossem alguns registros publicados na imprensa paranaense

afirmando ter o poeta nascido, na realidade, em Itaiópolis, uma

pequena cidade no interior de Santa Catarina. Segundo estas

versões, a família Leminski teria se mudado para Curitiba logo após

o nascimento do primogênito. Com o passar do tempo, já adulto e

identificado nacionalmente como um poeta curitibano, o próprio

Leminski estaria encobrindo sua verdadeira origem.

Esta é, certamente, uma versão equivocada ou fantasiosa mas

não de todo despropositada, considerando que estaria aí a primeira

surpresa (armadilha, troça, truque, sarro) de uma vida e de uma

obra marcadas pelo uso e abuso do sobressalto e da metalinguagem:

ao nascer, o mais famoso poeta curitibano seria, na realidade,

catarinense. Uma anedota espirituosa, sem dúvida, mas que, pelo

menos desta vez, não pode ser creditada a ele e nem levada a sério

como informação biográfica.*

O dia amanhecera frio e úmido naquela terça-feira. Uma

* O registro de nascimento está arquivado à fl. 12 do livro nº 21, do cartório de Francisco Antonio de Abreu, com data de 26 de agosto de 1944 — Curitiba, Paraná. Signo de Virgem, no horóscopo tradicional, e Macaco no horóscopo chinês.

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neblina típica e muito comum nesta época do ano deixava Curitiba

mergulhada numa tonalidade opaca e suave, quase transparente. Os

jornais do dia anterior e os programas matinais de rádio preveniam

que a temperatura deveria cair nas próximas horas. O termômetro

marcava 15 graus, mas por força de suas obrigações com o Exército

Brasileiro, onde ocupava a patente de sargento, Paulo Leminski

pulou cedo da cama. Ele tinha o hábito de “acordar com os pardais e

dormir com as galinhas”, mantendo, mesmo em casa, as normas

disciplinares da caserna. Não que fosse um sujeito agitado nos

movimentos ou mesmo vigoroso nas decisões; nada disso, muito pelo

contrário; mas nestes tempos difíceis de guerra, ele redobrava a

disposição mantendo-se a serviço de uma causa nobre e emergente:

a defesa incondicional das fronteiras do país.

No plano doméstico, 1944 vai representar a data em que o

Brasil comemorou o segundo ano de sua participação na Segunda

Guerra Mundial. No dia 24 de agosto, o presidente Getúlio Vargas

celebrava cerimônia alusiva no Palácio do Catete, no Distrito Federal.

A devoção pública, que levara a nação a viver com um olho no

racionamento e outro na frente de batalha, encontrava no sargento

Leminski um militar convicto e zeloso de suas obrigações. Ele tinha

então 33 anos e nutria um sentimento de admiração e respeito pelo

marechal-presidente, Getúlio Dornelles Vargas.

Paulo Leminski, o pai do poeta, era filho de poloneses de uma

remota província de nome Naráyow — embora isso nunca tenha sido

devidamente comprovado. A família, composta pelo pai Pedro, a mãe

Catharina e o irmão Miguel, veio para o Brasil no fluxo da grande

migração de 1895, quando grupos da Polônia e da Ucrânia deixaram

a Galícia (tudo, então, Império Austro-húngaro) — e as razões pelas

quais estes êxodos aconteceram são históricas: perseguições políticas

e raciais, um surto de cólera que atingiu a Ucrânia e, ainda, o

sempre cultivado sonho de um mundo “novo e produtivo”.

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Historicamente, sabe-se que os três fatores agiram simultaneamente

quando os Leminski decidiram encarar a aventura de cruzar o

Atlântico a bordo de um navio. Para quem não tinha nada a perder,

era pegar ou largar. Os Leminski resolveram pegar.

Os documentos oficiais, emitidos por autoridades da Ucrânia,

registram a saída deles pelo porto de Gênova, na Itália, no dia 9 de

julho. A região sul do Brasil, pelo seu clima frio e vocação agrícola,

foi o destino anunciado pela maioria das famílias. Paulo Leminski

nasceria em 1911 em Restinga Seca, interior do Paraná, quando a

família já estava devidamente assentada na região. Ainda

adolescente, mudou-se para Curitiba, onde acontecem as principais

ações desta história.

O avô materno do poeta, Fernando Pereira Mendes, era um

paulista de Itu, descendente de portugueses e capitão do Exército na

comarca de Curitiba, para onde fora ainda jovem, também na

tentativa de encontrar “uma porta aberta para o futuro”. Já militar,

trabalhava na administração da Subsistência, na rua João Negrão,

uma unidade considerada — por sua específica função de

abastecimento — o “supermercado” dos oficiais militares. Nas horas

vagas, Fernando compunha versos pungentes e rebuscados na

linguagem, que publicava em jornais do interior de São Paulo. Eram

manuscritos em caligrafia impecável que iriam denunciar, no futuro,

o fio condutor da linhagem poética da família — ou, mais

especificamente, de Paulo Leminski Filho, seu neto.

Fernando casou-se em primeiras núpcias com Inocência, filha

de Mário e Lia Alves, nativos da região de Paranaguá e Antonina, no

litoral paranaense. Ela, da vertente negra e indígena brasileira, com

remota ascendência carijó. Fernando teve nove filhos de dois

casamentos, sendo que as duas esposas eram irmãs — a outra, com

quem se casaria mais tarde, chamava-se Lucila. A moça Áurea, que

viria a ser a mãe do poeta, era a terceira filha do primeiro

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matrimônio, com Inocência.

Paulo Leminski e Áurea Pereira Mendes se conheceram nos

tradicionais footings da rua XV de Novembro, agenda social que

embelezava as tardes românticas de verão nos anos 40. Nesta época,

quando as pessoas andavam mais devagar, as calçadas e vitrines

mais concorridas de Curitiba ficavam entre as ruas Dr. Muricy e

Barão do Rio Branco, um pouco além da “boca maldita”, como seria

chamado um certo trecho da avenida Luiz Xavier. Por ali desfilavam

o charme e a elegância da província, que tinha pouco mais de 140

mil habitantes. O que se seguiu entre os jovens enamorados, depois

dos primeiros olhares, foi um namoro rápido, bastante controlado

pelo conservadorismo do pai, e, em seguida, o noivado. Como

resultado da determinação do sargento Leminski, ficou claro, desde o

início, que ele estava assumindo um compromisso sério com “a filha

do capitão”.

O casamento aconteceu um ano depois, a 7 de outubro de

1943, na casa da noiva, na rua Duque de Caxias, com a presença do

juiz e do padre casamenteiro. Nada de igreja ou desfile de carros

arrastando latas pela cidade, como era costume. Uma cerimônia

simples e íntima selou a união do casal, com o testemunho apenas

das duas famílias.

Depois da festa os pombinhos seguiram para a casa alugada

na rua República Argentina, 1.136, uma região ainda hoje conhecida

como Capelinha, numa referência a um santuário carregado de

significação religiosa e misticismo. O pequeno monumento, onde as

velas ardiam durante a noite, era uma homenagem da família

Moletta — pioneiros da Água Verde — à Imaculada Conceição e seria

adotado pelos fiéis como um lugar público de penitências e orações.

Havia nesta época dois monumentos religiosos bastante populares e

místicos em Curitiba; o outro, que não tinha o formato de uma

capelinha mas sim de uma grande cruz de madeira, ficava no lado

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oposto da cidade e era conhecido como a Cruz do Pilarzinho.

Juntos, Paulo e Áurea começaram a descobrir, nestes dias de

guerra, todas as exigências e dificuldades de uma vida provisória e

racionada; ele, trabalhando pesado em unidades operacionais, sob a

jurisdição do 3º Exército; ela, se aprimorando nas tarefas domésticas

e se preparando estoicamente para o lar e a maternidade.

Finalmente, naquela manhã, o sargento Leminski pôde ouvir

no rádio as últimas notícias do front: “Forças aliadas retomam Paris;

as tropas nazistas recuam.” Os boletins noticiosos anunciavam uma

noite de luz e festa em Champs Elysées: “O general Charles De

Gaulle exalta a França; o escritor Jean-Paul Sartre, um ativo

militante da resistência francesa, comemora com amigos intelectuais

o sucesso da ofensiva.” A guerra estava chegando ao fim. Às 11

horas, as contrações começaram.

O nascimento do primogênito dos Leminski aconteceu no início

da noite e foi considerado um “parto normal” pela equipe médica. O

bebê veio ao mundo com três quilos e meio, um razoável volume de

cabelos negros na grande cabeça e muita disposição aeróbica:

chorava alto e em bom tom.

Na opinião de tia Luiza, uma das cinco irmãs a visitar a jovem

mãe e seu bebê na maternidade, “era um guri lindo e saudável.

Nasceu muito forte e logo se tornou uma criança muito querida. Era

mesmo uma graça”, enfatiza, sugerindo uma ligação entre estes

sinais de vivacidade e o carisma que o menino revelaria à família aos

três anos de idade. A partir do seu nascimento, e mesmo quando

adulto, ele seria chamado exatamente assim pelas cinco tias que o

cercariam de mimo: Paulinho.

Os pais mandaram fazer pequenos cartões em cores suaves,

com o desenho de uma criança em fraldas, para anunciar o

nascimento do primeiro filho: “Paulo e Áurea P. Mendes Leminski

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têm o prazer de participar o advento de seu primogênito Paulo.

Curitiba, 24 de agosto de 1944”.

Num certo sentido, o que aguardava Paulinho no lado de fora

do aconchego materno era um planeta socialmente virado de ponta-

cabeça. Os anos pós-guerra — estes sim estavam apenas começando

— trariam brisas aromáticas e poeiras radioativas numa mesma

lufada durante as décadas seguintes.

No plano cultural, enquanto o Oriente reunia forças para uma

profunda reestruturação social, o existencialismo francês pontificava

nos salões e cafés europeus. Sartre, que havia lançado no ano

anterior o polêmico O ser e o nada, colhia os frutos deste e de outros

sucessos políticos e intelectuais. Nas estradas da América, a arte e a

cultura do novo mundo — já apresentando sinais de automação —

faziam florescer uma geração espontânea de artistas, poetas,

escritores, viajores que preconizavam uma revolução URGENTE no

comportamento e nos costumes da juventude. A performance e a

prosa do aventureiro Jack Kerouac, que neste mesmo dia (24 de

agosto de 1944) estava preso numa delegacia do Bronx, em Nova

York, representavam uma nova expressão da literatura americana

moderna, aquela por ele batizada de “a geração beat”.*

No Brasil, as conseqüências da Semana de 22 ainda ecoavam

como uma bofetada no rosto da nação. O manifesto antropofágico,

divulgado em 1928, fora considerado ultrajante pelas elites e de mau

gosto pela classe média. Mesmo provocando reações apaixonadas na

platéia (ou contra ou a favor), o fato é que, após a exposição pública

dos nossos talentos e artimanhas, promovida por intelectuais sérios

* Em conversa informal com John Clellon Holmes, em 1948, Kerouac usou pela primeira vez a expressão beat generation, com o propósito declarado de não criar um slogan. Ironia do destino, o que era uma negação [Ah, this is nothing but a beat generation) transformou-se na bandeira de um importante segmento da produção literária americana do século XX. Em 1952, o artigo “This Is the Beat Generation”, assinado por Holmes, seria publicado com pompa e circunstância em The New York Times, referendando o movimento.

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e debochados como Oswald de Andrade, Raul Bopp, Mário de

Andrade e Tarsila do Amaral, nossa cultura, do ponto de vista de sua

organicidade, jamais seria a mesma. A partir de 22, criamos — ainda

que à base de doses indigestas de ironia — uma identidade verde-

amarela que viria nos ajudar a desenvolver a capacidade de olharmos

para nós mesmos.

Em 1944 (spotlight neste tema, por favor) teve início uma

maciça fase de produção do cinema brasileiro que entraria para a

história como o “glorioso período das Chanchadas”. Começava a

surgir nas telas os gênios de Oscarito e Grande Otelo, contemplando

em suas temáticas os hábitos e costumes da sociedade carioca. A

reação paulista veio com a criação da Companhia Vera Cruz, um

empreendimento grandioso que na década seguinte produziria seu

maior êxito: O Cangaceiro, de Lima Barreto. Era o cinema brasileiro

gritando “Ação!”, no plano industrial e intelectual. Em Bogotá, onde

servia na Embaixada do Brasil, o pós-moderno Guimarães Rosa

preparava uma coletânea de contos (Sagarana) e apenas iniciava a

gestação do seu romance mais radical, Grande sertão: veredas,

editado pela primeira vez em 1956.

Enquanto isso, no aspecto político e econômico, o Estado Novo,

de Vargas, empurrava o Brasil um pouco mais para perto dos

brasileiros, anunciando medidas que representariam conquistas

inquestionáveis para a classe trabalhadora. Estava criado o salário

mínimo nacional. Em 1944 chegava ao fim, depois de muita

expectativa e ansiedade, as obras de construção do Aeroporto

Internacional Santos Dumont, no Rio de Janeiro, a Capital Federal.

A infância de Paulinho, neste contexto, foi normal e saudável.

No início, o menino manifestava isoladamente alguns dotes

“artísticos”, pendores naturais para a arte e os mistérios da

linguagem infantil. Tia Luiza lembra que certa vez foi abordada pelo

“piá, antes mesmo de ele completar 4 anos”, que lhe mostrou um

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papel com um desenho que havia feito usando um lápis preto

comum:

— Era um fogão, muito bem desenhado para uma criança da

idade dele. Sobre o fogão, várias panelas vazias...

Na condição de professora ginasial trabalhando em escola

pública e, portanto, familiarizada com a chamada “pedagogia

infantil”, tia Luiza foi logo incentivando o “artista”, fazendo elogios à

qualidade da “obra”... Mas o garoto surpreendeu:

— Mas isso é muito triste, minha tia!

— Triste por que, Paulinho?

— Este quadro chama-se Miséria e mostra um fogão sem lenha

e panelas sem comida.

Uma idéia de miséria que certamente não refletia a sua própria

condição social. Afinal, era filho de um sargento do exército que vivia

com simplicidade, mas com conforto.

Tia Luiza lembra que desde cedo Paulinho demonstrava

aptidões para encontrar estas informações dentro dos limites de sua

própria casa, em livros, jornais e revistas. O garoto se revelou, com a

mais tenra idade, um escarafunchador de publicações, em todos os

sentidos — no início, com rasgões e safanões desordenados, e logo

depois, como um apaixonado pelos livros.

Quando se preparava para completar quatro anos e a casa

paterna se descortinava como um império sem limites ou fronteiras,

Paulinho ganhou um irmão. No dia 23 de abril de 1948, nascia o

segundo filho do casal Paulo e Áurea, que seria batizado com o nome

do avô paterno: Pedro Leminski. A família aumentava, mas os bons

ventos do pós-guerra anunciavam um período de reconstrução e

prosperidade. Vivia-se em todo o país a febre da procura por bens de

consumo, principalmente de produtos eletrônicos: rádio, geladeira e

chuveiro elétrico. Não era necessário subir em escadas e nem trepar

em árvores para enxergar, logo à frente, despontando no horizonte,

aqueles que seriam chamados de Os Anos Dourados.

Page 23: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Nestes dias, Paulinho adquiriu o estranho hábito de subir no

guarda-roupa. Ele justificava dizendo que ali não seria importunado

pelo irmão caçula, que circulava pela casa engatinhando

freneticamente, “procurando confusão”. Diariamente, Paulinho pedia

ao pai para colocá-lo sobre o enorme móvel de jacarandá, onde

passava horas compenetrado em leituras e divagações...

Em 1949, por força de um ato de transferência interna do

Exército, o sargento Leminski se viu obrigado a reunir a família e

preparar a mudança “de malas e cuia” para Itapetininga, no interior

de São Paulo. A viagem e os transtornos decorrentes dela —

considerando uma família com duas crianças, sendo uma recém-

nascida — foram recompensados com a promoção para subtenente,

agora da 2ª Companhia de Transmissão. Os garotos Paulinho e

Pedrinho tinham então 5 anos e 1 ano, respectivamente, e gostavam

de bater continência sempre que viam o pai fardado.

Na manhã de 3 de março de 1950, através de um telegrama

nefasto e carregado de dramaticidade, eles souberam da morte de

Fernando, o pai de Áurea. Dois dias depois, uma nota seria

publicada no Diário de Itapetininga, anunciando “o passamento, em

Curitiba, de Fernando Pereira Mendes, Membro da Academia de

Letras José de Alencar e sogro do Subtenente Paulo Leminski,

atualmente servindo nesta praça”.

Novas mudanças viriam em seguida. Antes do final do ano eles

estariam de volta ao Sul, indo morar em Itaiópolis, uma pequena

cidade de Santa Catarina. A casa ficava num bairro afastado do

centro urbano, uma vila militar conhecida como “Quilômetro 34”.

Era um ponto estratégico para o Exército, com relação ao que se

imaginava fosse o nosso inimigo em potencial, a Argentina. Foi um

período no qual os Leminski viveram cercados por uma paisagem

bucólica, de inspiração rural, que iria permitir aos meninos travarem

contato direto com a vida simples do interior, um traço que ficaria

indelevelmente marcado em suas personalidades até o fim.

Page 24: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Na lembrança de Tia Luiza, que por duas vezes visitou a irmã

Áurea em Itaiópolis, Paulinho era mesmo um menino esperto e

“superativo”, no sentido moderno da palavra. Iniciou os estudos

oficiais aos cinco anos, quando foi matriculado numa escola pública

perto de casa. Gostava de subir em árvores e dormir no sótão das

casas. Certa vez, dona Áurea foi surpreendida com a visita de um

grupo de índios que vieram entregar peças de artesanato

encomendadas pelo garoto e já pagas com suas próprias economias.

É tia Luiza quem conta:

— Os índios trouxeram arcos, flechas e pequenos utensílios em

madeira e couro. Foi surpreendente, pois o Paulinho era apenas uma

criança, conhecendo novos amigos e fazendo negócios a sério.

Na hora de comer, Paulinho tinha sempre um bom apetite,

fazendo do trivial arroz, feijão e banana o seu prato preferido.

Quando ficava em casa, principalmente nos dias de chuva, gostava

de observar a mãe desenvolvendo as tarefas domésticas, no preparo

do almoço e do jantar, enquanto ouvia no rádio os últimos sucessos

de Agostinho dos Santos, Pedro Vargas ou Dalva de Oliveira, seus

artistas favoritos:

— Lábios que eu beijei, mãos que eu afaguei...

Quando já era um poeta famoso, Paulinho (grafando assim o

nome como uma referência à criança que havia dentro dele)

escreveria poemas onde se percebe com nitidez a inspiração

originada nestas “janelas do tempo”:

lá fora e no alto

o céu fazia

todas as estrelas que podia

na cozinha

Page 25: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

debaixo da lâmpada

minha mãe escolhia

feijão e arroz

andrômeda para cá

altair para lá

sirius para cá

estrela dalva para lá

Ou este outro, também fruto da observação do “cotidiano

materno”:

Minha mãe dizia:

— ferve, água!

— frita, ovo!

— pinga, pia!

E tudo obedecia

Quando em muitos aspectos a ordem social e política no Brasil

estava sendo reorganizada, surgem os primeiros problemas trazidos

pelo álcool para dentro da família Leminski. O “sargento”, como ele

ainda era conhecido, vinha transformando o hábito de tomar

“aperitivos sociais” num ritual cada vez mais destemperado na

quantidade e nas conseqüências. Era considerado um bom marido e

um pai zeloso, mas sua imagem naturalmente dolente e calada

ganhava agora a aparência doentia de um homem de pijamas e com

a barba por fazer. Certa vez, quando uma visita entrou na cozinha

para tomar água, foi aconselhada pelo pequeno Paulinho a não usar

determinado copo que estava na cristaleira. O garoto nem falava

direito, mas já se fazia entender:

— Não pode usar “porcoso” que este é o copo que o meu pai

gosta de beber cachaça.

Page 26: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Em seguida, uma nova transferência para outra base militar e

os Leminski estavam agora na pequena Rio Negro, na divisa do

Paraná com Santa Catarina, a 50 km de Itaiópolis. A rigor, eles

apenas mudaram de bairro e foram morar na Vila Paraíso, onde se

concentravam as casas dos oficiais que vinham de outras regiões.

Ali, Paulinho concluiu a última série do curso primário no Colégio

Estadual Dr. Caetano Munhoz da Rocha, onde também prestou o

exame de admissão ao ginásio, em 1955. Nos seis créditos do teste

de admissão, ele foi aprovado com média 7,48, sendo que suas

melhores notas foram em Geografia e História, com as notas 9,5 e

7,2, respectivamente. Mais tarde, ele diria ter produzido, nesta

época, aos 8 anos, seu primeiro poema, “O Sapo”, cuja temática

remetia à vida campesina e bucólica do interior do Brasil.

No dia do seu aniversário, quando completaria dez anos,

Paulinho e toda a nação brasileira foram surpreendidos logo pela

manhã com uma notícia dita bombástica: Getúlio Vargas se

suicidara com um tiro no coração. A crise política no Palácio do

Catete chegava a seu ponto culminante com a divulgação da carta-

testamento assinada de próprio punho pelo presidente. Como

conseqüência deste infausto acontecimento, a festa de aniversário de

Paulinho foi bastante contida e reservada; além do irmão Pedro,

agora com 6 anos, poucos amigos do bairro apareceram para cantar

o “Parabéns pra você”.

Dois anos depois, em agosto de 1956, finalmente os Leminski

arrumariam as malas e voltariam para Curitiba. Foram morar numa

pequena casa de alvenaria na rua Heitor Guimarães, 624, no bairro

Seminário, a poucos metros do tradicional Internato Paranaense. O

aluguel não era caro e as despesas continuavam compatíveis com os

proventos de um oficial militar. Provavelmente teria sido a

proximidade física com o colégio — e não propriamente uma

inclinação religiosa — a razão pela qual Paulinho seria matriculado

Page 27: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

na tradicional instituição dos irmãos maristas, um ensino com

prestígio na cidade.

Para se entender o que vai acontecer com Paulo Leminski deste

ponto em diante, é necessário antes avaliar — ainda que

sucintamente — a importância e o significado do ensino religioso na

educação e na formação intelectual de gerações de brasileiros.

Concebidas como pilares vocacionais das ordens missionárias

jesuíticas, as escolas de cunho religioso que se espalhavam pelo país

na virada do século funcionavam como um veículo para arregimentar

e catequizar, muito além de alfabetizar. Apenas flertando com as

elites, as ações sociais da Igreja ampliavam os laços de integração

com as comunidades (fiéis) de base, tornando-se todos, por muitas

vezes e em diferentes circunstâncias, uma grande família. Era o

Brasil das missas, das novenas e das quermesses dominicais. O

Brasil cristão. E dos milagres diários.

Os métodos de ensino e o relacionamento com o mundo

exterior eram diferentes para cada ordem religiosa, e as mais

conhecidas e presentes na vida brasileira eram justamente as dos

maristas, franciscanos, dominicanos, clareteanos (ordem fundada

por Santo Antonio Maria Claret, com hábitos pretos e colarinhos

brancos) e beneditinos. Algumas ordens eram reconhecidamente

mais liberais, outras mais conservadoras. Além de uma certa

pedagogia educacional de elite, os colégios ofereciam, em alguns

casos, outros bens igualmente inestimáveis aos seus alunos: cama,

comida e roupa lavada.

Paulo Leminski Filho foi aceito no Colégio Paranaense — que

continuava, informalmente, sendo chamado apenas de Internato —

em agosto de 1956. Tinha onze anos e foi matriculado na 1ª série,

turma B, turno da manhã, em regime de semi-internato — o que lhe

permitia passar as noites em casa. Ali, ele encontraria pela primeira

Page 28: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

vez, entre as nove disciplinas do currículo, o latim e o francês — as

línguas estrangeiras, com as quais ganharia no futuro o status de

“tradutor poliglota”.

Neste primeiro ano entre os maristas, dizem os boletins, o

aluno obteve bom rendimento em geografia, francês, história do

Brasil e latim, nesta ordem. Sua paixão pelos idiomas acabaria

funcionando, também, como um catalisador de seus interesses pelos

estudos clássicos. Foi neste período que Paulo Leminski encontrou e

se fascinou com ensinamentos contidos em dicionários e

enciclopédias. Passou a decorar, por sua própria iniciativa, palavras

em inglês e francês, tentando freneticamente dominar o vocabulário.

Ficava horas debruçado sobre o “Caudas Aulete” e a enciclopédia

Britannica (em inglês, pois apenas nos anos 60 seria editada no

Brasil), suas fontes preferenciais de consulta.

No ano seguinte, 1957, os estudos trariam uma outra

aguardada novidade: o inglês, que finalmente passava a fazer parte

do currículo, completando uma grande área de interesses em torno

dos idiomas. O resultado do boletim da 2ª série, igualmente

significativo, registrava a média final 7,50. Os melhores

aproveitamentos seriam em francês, com nota 8,40; latim, 8,12; e

inglês, 7,40. O desempenho mais fraco seria em matemática, com

4,40 de média. Mas, certamente, não foram estas as únicas

tendências da temporada. A grande surpresa estava no interesse

súbito que o menino passou a demonstrar pela vida religiosa. Foi

apresentado pelos maristas às obras completas de padre Antonio

Vieira e toda a literatura católica. Devorou o que encontrou pela

frente. No final do ano, estava aprovado com média 6,43 — nada

excepcional, mas o suficiente para conseguir uma matrícula na 3ª

série.

Para a mãe, o garoto revelava na intimidade:

— Vou decorar tudo, saber o significado de cada palavra!

Passou o ano inteiro no desenvolvimento desta magistral e

Page 29: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

enlouquecida tarefa. Deixou a família preocupada e chamou a

atenção de professores e educadores para o seu comportamento

precoce. Tinha uma espantosa capacidade de memorização,

decorando textos e poemas com extrema facilidade. Era fissurado em

Camões, Homero, Antero de Quental, que faziam parte de sua leitura

diária. O pai militar contribuiu com Euclides da Cunha e o relato

épico de Os sertões. O aluno foi aconselhado a recorrer a estudos

ainda mais rigorosos, seguindo uma possível vocação religiosa e

contrariando o desejo do pai, que sonhava em vê-lo na Academia

Militar. Foi assim que Paulinho, durante um período de pesquisa

autogerenciada e informal, acabou conhecendo o Colégio São Bento,

em São Paulo, uma instituição secular mantida pelos monges

beneditinos.

Descobriu que os monges viviam em mosteiros misteriosos e

lúgubres, concentrados em leituras e análises meticulosas de

palimpsestos e manuscritos da Idade Média. Ficou sabendo que a

Ordem dos Beneditinos fora fundada por São Bento de Núrsia (480-

547), também criador das Regras, uma espécie de “normas para a

vida no Monastério”. Curioso, fez perguntas e obteve respostas

precisas sobre tudo. Ouviu relatos sobre as verdades bíblicas e já se

sentia familiarizado com as diversas teorias da criação, quando sua

imaginação voou... Em poucos dias estava com o endereço do

mosteiro na mão e pôs-se a escrever uma carta para o coordenador

da escola, D. Clemente, pedindo informações sobre como devia

proceder para tornar-se um monge. A mensagem foi escrita de

próprio punho e nela Paulinho se candidatava a uma vaga na 3a série

do curso ginasial, em regime de internato. Anos mais tarde, D.

Clemente recordaria esta troca de correspondência:

— Ele fez tudo sozinho, apesar de sempre consultar a família.

Eu respondi explicando as regras do Colégio, lembrando que por

uma questão de idade, ele deveria vir para o curso dos oblatos, como

são chamados os alunos do ginasial ainda sem idade para o

Page 30: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

noviciado. Ele gostou da idéia e prometeu cuidar de tudo.

No âmbito doméstico, a notícia soou como uma bomba. O velho

reagiu demonstrando inicialmente uma certa inquietação com o

futuro do filho, mas no final acabou ajudando a organizar a viagem

— inclusive tirando do colete sua grande coleção de conselhos e

provérbios, com os quais sempre alinhavava as conversas reservadas

com a família. Dona Áurea, que não estava com o espírito preparado

para esta situação, sofreu o impacto da notícia. Tentou fazer o filho

recuar da decisão, mas, nos dias que se seguiram, já sem

argumentos, chorava dia e noite. Na verdade, ela chorou até a hora

da partida de Paulinho, numa manhã de fevereiro de 1958.

Quando entrou num ônibus na rodoviária de Curitiba, em

companhia do pai, o garoto — então com 13 anos — sabia que após

uma viagem de quase oito horas teria pela frente um período difícil,

possivelmente com noites de solidão e saudades de casa. Talvez até

mesmo viesse a estranhar a comida ou o novo colchão... Mas

nenhum obstáculo ou desconforto, por maiores que fossem, parecia

suficiente para afastar dele a idéia de se tornar um monge e atingir,

através de exercícios de meditação e estudos aprofundados, a tão

almejada sabedoria.

Page 31: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

CAPÍTULO 3

A VIDA NO MOSTEIRO E ALÉM

O mosteiro de São Bento — uma construção quadrilátera no

estilo normando, de três andares, solidamente edificada no centro da

cidade de São Paulo — lembra, em muitos aspectos, uma fortaleza

impenetrável. O edifício passou por diversas reformas ao longo dos

séculos, mas a iniciativa de construí-lo em grandes proporções deve-

se ao legendário bandeirante Fernão Dias Paes, um devoto de São

Bento e amigo dos beneditinos. A escritura, lavrada em 17 de janeiro

de 1650, denomina a área como aldeia de Piratininga. As obras de

construção da abadia se estenderam por mais de dez anos. O colégio

foi inaugurado somente em 1903, oferecendo vagas para turmas em

regime de internato e externato.

Com o passar dos anos, o Colégio de São Bento colocaria à

disposição dos estudantes, além da cultura secular da ordem

eclesiástica dos beneditinos, uma rica e formidável biblioteca com

cerca de 70 mil volumes, catalogados com rigor e metodologia. Tal

acervo contribuiria para a formação intelectual de alunos ilustres

como Godofredo da Silva Teles, conceituado jurista paulista e

primeiro aluno a se matricular no colégio; Sérgio Buarque de

Hollanda, Guilherme de Almeida, Américo Brasiliense, Francisco

Prestes Maia e... Paulo Leminski Filho.

Quando chegou ao mosteiro de São Bento, Paulinho se fazia

acompanhar do pai e carregava com dificuldade uma mala com

roupas de inverno e um pequeno baú repleto de livros. Eram obras

clássicas de literatura e alguns dicionários, dos quais o aplicado

Page 32: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

aluno dava sinais de não querer se separar em momento algum. Pai

e filho foram recebidos na portaria do prédio principal pelo diretor da

Escola Claustral, D. Clemente, que lhes deu as boas-vindas em nome

do mosteiro, e por José Maria Siviero, o “hospedeiro”,* então com 11

anos, representando os novos colegas. O sargento Leminski estava

vestido com elegância naquela tarde, exibindo um terno bem cortado

de casimira e chamando a atenção por manusear um vistoso chapéu

de feltro, em tom escuro. D. Clemente lembra-se do efeito causado

pela impoluta figura:

— Era um homem forte e educado, muito cerimonioso. Ele

estava trazendo o filho, do qual tinha muito orgulho, e aceitou o

convite para passar a noite como nosso hóspede.

Um detalhe ao acaso permite que o hospedeiro José Maria

consiga lembrar com exatidão, quarenta e um anos depois, a hora da

chegada dos Leminski ao mosteiro: 17:15. O jantar no refeitório

coletivo tinha como tradição religiosa ser servido pontualmente às

17:30. No momento em que as malas e o baú estavam sendo

arrastados para dentro do claustro, os outros alunos já se

acomodavam nas mesas. Ele e Leminski tiveram pouco tempo para

largar a bagagem no terceiro andar, na ala dos oblatos, e descer para

se juntar aos demais. Na pressa, Siviero largou o chapéu do pai de

Leminski sobre o baú e correu escada abaixo, excitado:

— Foi engraçado porque após o jantar, quando fui buscar o

chapéu, aconteceu um imprevisto. A sala do terceiro andar estava

escura e eu acabei batendo com o joelho na quina do baú — o que,

além de provocar uma dor terrível, me fez cair sentado sobre o

chapéu. O objeto adquiriu o formato de uma pizza... Nós, os garotos,

rimos muito desta cena, enquanto o pai dele tentava consertar o

estrago.

* Como era chamado o aluno escolhido para fazer o contato entre o claustro e o mundo exterior, na função de “hospedar” novos companheiros ou receber visitas oficiais. O cargo não era vitalício.

Page 33: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

A escola de oblatos tinha nesta época vinte e dois alunos, que

ocupavam quase todo o terceiro andar da ala dos fundos do edifício.

Um elevador “antigo”, com estrutura de ferro e chave privativa, servia

de acesso exclusivo para monges e professores. Os meninos faziam

uso da escada que começa ao lado da piscina interna, passa pelas

salas de aula do segundo andar e vai terminar em frente à porta que

dá acesso aos dormitórios, no topo do edifício. No total, são dez

cubículos (aposentos individuais) fechados por cortinas de pano,

formando um semicírculo no salão. No centro, uma mesa e duas

cadeiras.

Todos os cubículos, como é próprio de um monastério,

ostentavam o máximo em despojamento material: uma cama, uma

mesa e uma cadeira. (Estava sendo criada a ambivalência estética

que ele adotaria para o resto da vida.) Do outro lado, seguindo pela

porta da esquerda, chega-se ao aposento coletivo — onde dormiam

os alunos menores —, um grande salão com capacidade para outras

dez ou doze camas. E, finalmente, bem à direita, a porta que conduz

ao aposento de D. Clemente, o supervisor, hoje transformado em

capela.

Os noviços — alunos mais velhos, que usam hábitos de monge

— ocupavam as clausuras da ala frontal do mosteiro, ou seja, no

lado oposto aos aposentos dos oblatos, que usam hábitos brancos

em dias de cerimônia. Em ambos os casos, as janelas laterais

voltadas para o pátio interno — o claustro — oferecem uma visão

completa e aérea do vistoso jardim, onde se destacam a árvore

símbolo pau-brasil e um pequeno lago com água corrente e peixes

ornamentais. É um lugar onde se respira paz e tranqüilidade, e o

silêncio é sagrado. Conservando uma tradição que se mantém até

hoje inabalável, mulheres não podem entrar neste ambiente.

Sabe-se que Paulinho não teve nenhuma dificuldade de

adaptação na escola. Após uma semana, exatamente no dia 4 de

Page 34: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

março, ele escreveu a primeira carta para a mãe, saudando-a —

como faria regularmente, a partir de agora — com a palavra latina

Pax! Falava da rotina no mosteiro e anunciava que tinha visitado o

órgão de tubos e os sinos da basílica. E concluía:

Aqui temos futebol (eu não gosto e não jogo), piscina e

cinema. D. Clemente, os monges e os meninos são

muito bons para mim. As aulas já começaram. Despede-

se o Paulo com um beijo e um abraço; ao Pedro minhas

lembranças.

Entre seus novos companheiros, Paulo Leminski (que

começava a abandonar a identidade de Paulinho para ser chamado

apenas de Leminski) foi encontrar um verdadeiro time de futebol já

armado. Sinval de Itacarambi Leão, um paulista de Araçatuba, era o

centro-avante deste time. Mesmo sendo de uma turma mais velha,

Sinval lembra-se vivamente de quando o jovem curitibano,

matriculado com o número 277, passou a fazer parte da vida do

mosteiro:

— O Leminski apareceu provocando um impacto na turma com

a sua inteligência e sagacidade. Era, sem nenhuma dúvida, o mais

culto entre nós. Possuía uma inquietação cultural e existencial muito

grande. Com apenas 13 anos tinha carisma e, talvez o mais

importante, era generoso e não nos ofendia com sua inteligência.

Para Sinval — que no futuro seria jornalista e editor da revista

Imprensa — o curto período que Leminski passou no mosteiro — um

pouco mais de um ano — parece ter sido multiplicado por dois, tal a

intensidade da relação entre o novo aluno, os colegas e a instituição.

(No futuro, Leminski iria valorizar esta passagem, dizendo ter ficado

“dois, três anos no São Bento”.) Sinval recorda-se que logo nas

primeiras semanas Leminski consolidara grandes amizades no novo

Page 35: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

ambiente, inclusive com os monges mais eruditos do mosteiro. Entre

eles, um em particular acabaria exercendo forte influência em sua

vida: D. João Mehlmann, um exegeta igualmente inquieto que, além

de ser considerado um intelectual sofisticado e sério, ocupava a

função técnica de organista da Basílica. D. João, que passava o dia

lendo e fumando charutos, reagiria com surpresa ao saber que um

certo aluno, oriundo da turma dos oblatos, se vangloriava de ter lido,

aos doze anos, uma enciclopédia inteira, de A a Z. Até então, ele

acreditava ser o único a ter realizado tal façanha. Ato contínuo, deu

duas baforadas e cruzou os corredores do mosteiro; entrou no

elevador e subiu até a ala dos obtatos no terceiro andar; queria

conhecer pessoalmente Paulo Leminski. A partir do primeiro

encontro, que aconteceu sob o signo dos estudos e do conhecimento,

os dois ficaram bons amigos.

Foi D. João Mehlmann, um doutor na Sagrada Escritura, cuja

especialidade era estudar os autores gregos no original, quem

apresentou a Leminski a biblioteca do mosteiro, no segundo andar.

Ali, o garoto encontrou o que procurava: obras de autores clássicos

servidas de bandeja por um orientador (tradutor) ideal para a tarefa.

Interessou-se por latim e grego, tendo se aprofundado no estudo do

Panteão, onde se perfilam os deuses sagrados da mitologia. Atualizou

estes estudos religiosos através de Spinoza (Baruch), um expoente do

panteísmo moderno, que organizou e catalogou as religiões,

conferindo-lhes definições, axiomas e postulados.

A partir deste encontro, Leminski receberia informações

místicas e se deixaria fascinar pela cultura religiosa. Conheceu e se

dedicou a entender a semiologia musical do Canto Gregoriano, um

gênero difundido entre os monges e freqüentemente entoado pelo

coral durante as cerimônias oficiais. É fato, também, que ficou

visivelmente impressionado quando soube que na Idade Média os

monges compuseram os Cantos Gregorianos acreditando ser a

música cantada por anjos e santos, no Céu, diante do Senhor. Na

Page 36: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

terra, os monges “recebiam” uma graça momentânea e compunham

estes cantos, identificados por Leminski como “o verdadeiro som

celestial”:

Dominas dixit ad me: Fillius meus es tu, ego hodie genui te.

Quare fremuerimt gentes: et populi meditati sunt inania?*

O depoimento de D. Clemente, concedido anos mais tarde,

quando se encontrava afastado do monastério, pode ajudar a

elucidar o relacionamento entre Leminski e D. João Mehlmann:

— Os dois passaram a estudar juntos e discutir temas de

grande profundidade. D. João transferiu para o Leminski uma carga

muito grande de conhecimento, o caminho das pedras para o

aprendizado das línguas clássicas. Eles gostavam de discutir as

“obras-mães”, como diziam.

O resultado desta convivência se traduziria nas primeiras

notas do ano letivo de 1958, as chamadas “argüições” do boletim,

onde se pode ver um 10 em história geral, dois 9, em latim e religião,

e um 8 em francês. As piores notas do primeiro semestre, dois zeros

categóricos, foram em matemática, nos meses de abril e maio. O

comportamento do aluno, neste sentido, revelava uma forte

inclinação pedagógica: as coisas que ele amava, amava muito e se

esforçava para entender; as que não gostava, sequer tomava

conhecimento... Desde cedo seus professores perceberam que o

melhor seria investir nos estudos em que ele demonstrasse interesse

e aptidão, para não dizer voracidade intelectual. Assim foi feito com

as línguas — incluindo o português — e história universal, cátedras

com as quais Leminski criaria uma estreita relação no futuro.

O gosto pela poesia o aproximaria também de Luís de Camões

* O Senhor me disse: “Tu és meu filho, eu hoje te gerei.” Por que as nações se amotinam e os povos meditam coisas vãs? Ad missam innocte (A missa da noite), cânticos de Natal.

Page 37: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

— foi visto várias vezes com Os Lusíadas debaixo do braço — e,

assim que se estabeleceu, juntou-se a Sinval de Itacarambi para

fundar, informalmente, a Academia de Letras Miguel Kruse, em

homenagem ao abade que construiu o Colégio de São Bento, no

início do século. Eles fizeram uma réplica da ABL, constituindo

estatutos, regulamentos éticos e cadeiras, sendo que a de número 1

seria destinada a Carlos Francisco Berardo, que se recorda da

homenagem:

— A academia foi fundada sob a inspiração de D. Clemente,

mas Leminski e Sinval eram seus maiores entusiastas. Acredito que

o Leminski, nesta época, já se correspondia com escritores famosos.

Notava-se nele, então, alguns traços de boemia, não com relação às

bebidas, evidentemente, mas com relação ao romantismo.

Ao mesmo tempo, o ritual secular do mosteiro, que começava

diariamente às 5:30, era forte componente disciplinar na vida dos

oblatos. O grupo mantinha a rotina de assistir à missa das 6 horas,

mesmo no inverno mais rigoroso, para só depois fazer o desjejum no

refeitório. As aulas começavam invariavelmente às 7:05, com todos já

sentados à espera do professor. Revelando uma memória prodigiosa,

Leminski em poucas semanas já tinha decorado vários salmos de

Davi e demonstrava preferência pelo de nº 105, cujo canto 34 faz um

resumo do Êxodo, referindo-se especialmente às “nuvens de

mosquitos e gafanhotos”. Uma imagem cinematográfica para uma

literatura transcendental.

Segundo o depoimento de Sinval de Itacarambi, Leminski

passou o ano inteiro estudando com empenho, sem trégua e sem

hora de recreio:

— Apesar de ficar a maior parte do tempo sobre os livros, ele

não era visto como um aluno “caxias”; pelo contrário, era

considerado mais um anarquista com idéias próprias e originais.

Gostava de nos envolver com questões que ele mesmo definia como

Page 38: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

“fundamentais”. Sabia conversar e tinha orgulho do próprio

discernimento. Assim que o conhecemos ficamos fascinados por ele.

Outro monge, D. José Leandro, um paranaense de

Guaraqueçaba — que também havia sido aluno do Internato, em

Curitiba —, não esconde um sorriso ao lembrar de Leminski

circulando “garboso” pelos corredores, falando para os colegas que se

preparavam para jogar futebol, em tom de brincadeira:

— Vamos, existem coisas mais importantes do que futebol.

Façam consultas — ele dizia, levando o dedo indicador à cabeça —,

aqui dentro tem uma enciclopédia. É grátis...

D. Leandro se emociona ao falar do carisma do jovem

estudante que, segundo ele, se destacava por apresentar um nível

cultural “bastante” acima dos demais:

— Apesar disso ele era muito bagunceiro e esperto. Participava

das festividades da escola e era querido por todos.

O decano desta turma, a quem cabia, na estrutura social da

escola, organizar e disciplinar seus próprios colegas, era Osvaldo

Torrell de Almeida Costa, escolhido para o cargo exatamente por ser

um dos mais velhos do elenco. Torrell tinha muito trabalho com

Leminski na questão disciplinar:

— Ele costumava desaparecer com muita freqüência. Certa vez,

ao fazer a conferência na hora de dormir, percebi que ele não estava

em sua cama. Já era tarde e, depois de muito procurar na vastidão

daqueles aposentos, fui encontrá-lo dormindo atrás do piano, com

um travesseiro no rosto e um ar angelical.

É possível que um pouco da tolerância encontrada junto aos

novos colegas deva-se ao fato de que Leminski, ao contrário da

maioria dos garotos, não “sabia” jogar futebol, o que poderia ser

considerado “algo de menos” neste pequeno universo lúdico. (Em

matéria de futebol, o máximo a que Leminski arriscou foi ser

torcedor do Atlético.) De qualquer maneira, tal “deficiência” era

amplamente compensada pelo estilo e personalidade do rapaz. Para o

Page 39: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

hospedeiro José Siviero, suas qualidades eram marcantes:

— O Leminski tinha um físico avantajado, um corpo de atleta

emoldurando uma personalidade forte. O fato de não jogar futebol,

como mandava um certo figurino, não fazia dele um molengão. Ele se

impunha numa conversa, falava alto e com determinação. Discutia

com os professores, criava clima para o debate... Isto, na idade dele,

era uma coisa fora do comum.

No início, ele ocuparia uma cama no dormitório coletivo, junto

aos alunos menores. Mais tarde, devido ao seu tamanho, seria

separado dos infantes e transferido para um cubículo individual,

indo se juntar aos garotos de 14 e 15 anos. Nesta época, o que já era

uma tendência no seu comportamento acabou se transformando em

atitude: definitivamente, não gostava de tomar banho. Participava

das brincadeiras no sítio “dos padres”, em Itapecerica da Serra,

exercitando salto em altura ou jogando futebol (era desajeitado e

algumas vezes foi visto atuando na defesa), mas na hora de ir para o

chuveiro procurava desconversar: “Tenho mais o que fazer”, dizia,

referindo-se às jornadas de estudos com as quais vinha

conquistando a fama • de aluno excepcional. Era vaidoso com o físico

e gostava de andar sem camisa, sempre que o clima e as ocasiões

permitiam.

Quase na metade do ano, mais precisamente no feriado do Dia

do Trabalho (1º de maio), os monges programaram um passeio dos

oblatos a Santo Amaro, naquela época um bairro “afastado” do

centro de São Paulo. Era a chácara dos padres, uma espécie de clube

de campo do noviçado. Para os garotos, seria uma trégua nos

estudos, um merecido e aguardado dia de recreação ao ar livre.

“Afinal, ninguém é de ferro!”, diziam. Todos se prepararam com

antecedência com grande expectativa, o que acabou gerando uma

ansiedade maior que se arrastou por intermináveis dias da semana

anterior... Finalmente, a viagem foi feita numa “jardineira” ou

Page 40: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

“lotação”, como eram chamados os microônibus de então.

Fazia uma tarde agradável, com céu azul e sol forte. Na

lembrança de alguns ex-colegas — e no registro de várias fotografias

— Leminski foi o único que não entrou no lago, preferindo brincar

longe da água. Mesmo sendo alvo de zombarias, não se intimidava e

mantinha uma franca estratégia de contra-ataque ao promover um

desfile in vitro de suas qualidades físicas, desafiando qualquer um

para os chamados esportes olímpicos: salto em distância, corrida

livre... Nestas horas, podiam-se ouvir músicas no rádio transistor e

cantar junto os grandes sucessos do momento, a italiana “Nel blu

dipinto di blu”, com Domenico Modugno, e “Chega de saudade”, com

João Gilberto:

Pois há menos peixinhos a nadar no mar

Do que os beijinhos que eu darei na sua boca...

Certa vez, Leminski tornou-se o centro das atenções dos

colegas ao participar, involuntariamente, de uma cena curiosa. Ao

ser descoberto um rato no dormitório dos menores, imediatamente os

alunos deram início a uma verdadeira caçada ao animal. A correria e

a algazarra se instalaram por alguns minutos no 3º andar do

mosteiro. Em flagrante desespero, o indesejado roedor corria de um

lado para o outro, passava zunindo, ora em ziguezague, ora por

debaixo das camas, arrastando uma horda de garotos atrás dele.

Leminski estava parado, assistindo a tudo encostado num pilar,

quando o rato passou-lhe pela frente. Num gesto rápido e certeiro ele

desferiu um chute fatal no animal, que subiu e foi bater na parede

oposta, antes de cair estatelado no assoalho. Foi uma cena

surpreendente... Em seguida, saiu dizendo num jeito muito

particular dele:

— Tem certas coisas que é melhor fazer sem suar a camisa...

Page 41: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

O fascínio e o interesse pela secular tradição dos beneditinos,

sua história e personagens, teriam levado Leminski a escrever,

nestes dias, aquele que seria o seu primeiro (esboço de) livro: as

biografias dos principais santos da Ordem. Estudou a vida do

patriarca, o venerável São Bento de Núrsia, a partir de uma obra

escrita no ano 593 pelo papa Gregório Magno, em latim. Suas

anotações o teriam levado, ao longo de várias semanas, a

esquematizar e ordenar esta curiosa árvore genealógica dos

beneditinos. O resultado da empreitada parece ter sido um pequeno

caderno escolar com dezenas de folhas preenchidas, das quais não

se conhece nenhum vestígio.

É provável, também, que Leminski tenha estabelecido nesta

mesma época os primeiros contatos com os fundamentos filosóficos

de outras religiões, notadamente o budismo e o zen-budismo. De

qualquer forma, sabe-se que através de D. João Mehlmann ele ficaria

conhecendo o “outro lado” da religião, as chamadas “filosofias

orientais”. Dizia-se atraído por um pensamento que pudesse

estabelecer uma unidade harmônica entre o indivíduo e o Universo,

“sem intermediários”. Seguindo o pensamento de Santo Agostinho,

porém sem as amarras da ortodoxia. No futuro, estas descobertas e

influências seriam marcantes em sua vida intelectual — e

devidamente utilizadas como temática de alguns ensaios e inspiração

para muitos poemas.

Assim que se sentiu à vontade no novo ambiente, Leminski

adquiriu um outro hábito que no futuro lhe acarretaria alguns

aborrecimentos junto à direção do mosteiro: passou a colecionar

fotos de mulheres (vedetes) em trajes sumários, publicadas na última

página do jornal A Gazeta Esportiva. Ele aproveitava as eventuais

saídas — normalmente para ir às aulas de canto orfeônico, com a

turma do coral — e, de uma forma dissimulada e sorrateira,

comprava o jornal numa banca das redondezas. Na época, A Gazeta

Page 42: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

era uma publicação bastante popular entre os torcedores de futebol,

fanáticos por jogos e mulheres — ao que tudo indica, nesta ordem —

que, a bem da verdade, faziam exatamente como ele: recortavam as

fotos e as penduravam em paredes de oficinas ou em murais de

escritórios. No caso dele, num álbum secreto escondido sob o

colchão.

A título de ilustração, sabe-se que a favorita entre as starlets,

aquela que ocupava o lugar de destaque na imaginação e no álbum

do adolescente, era nada mais e nada menos do que a incomparável

(dizia-se “a coqueluche do momento”) atriz francesa Brigitte Bardot.

O sucesso nas telas em ... E Deus criou a mulher (o título é uma

sagrada coincidência), filme dirigido pelo marido Roger Vadim dois

anos antes, confirmava a preferência da torcida brasileira pelo

sotaque francês de BB. Os lábios carnudos e a pose lânguida

estampada no álbum certamente embalaram algumas “homenagens”

do garoto à bela musa, na solidão dos cubículos.

Foi com a cumplicidade de alguns monges ditos “progressistas”

que Leminski e Clemens Schrage, um dos craques do time dos

oblatos, tiveram acesso — aos 14 anos — a La Putaine Respectueuse,

de Sartre. Clemens lembraria mais tarde:

— Eu e o Leminski tínhamos a mesma idade e fizemos muitas

sabotagens juntos. Andávamos sobre o telhado do mosteiro e

acabamos delatados pelos moradores dos edifícios próximos. Para

contra-atacar, arrombamos algumas salas eternamente fechadas,

que continham o inventário da elite do colégio.

Em uma destas salas, a dupla dinâmica encontraria trinta

pianos e uma coleção inacreditável de penicos coloridos de porcelana

francesa. Era uma visão fantástica, que eles se permitiriam vivenciar

repetidas vezes:

— Nossas ações neste setor do edifício nunca foram

descobertas e nem reveladas.

Page 43: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Para compensar alguma possível tendência para o relaxo,

cortejado quase sempre nas esferas dedicadas a Eros, o deus da

sensualidade, havia os momentos de extremo rigor, que continuavam

permeando de informação e conhecimento os dias de Leminski no

mosteiro. As cerimônias pomposas na basílica, em datas especiais,

lhe mostrariam a magnitude do ritual litúrgico. Como a missa

celebrada no Sábado de Aleluia, por exemplo. Era sempre um dia de

grande excitação no mosteiro. Durante a cerimônia, na condição de

acólitos,* os garotos entravam na basílica vestidos com paramentos

roxos — assim como todas as estátuas dos santos, que permaneciam

cobertas desde o início da Quaresma. Havia um momento, durante o

ofertório, em que um dos coroinhas aparecia na entrada principal da

igreja carregando um cordeiro; era o Agnus Dei, o “cordeiro de Deus

que tirais os pecados do mundo”. Numa outra passagem, todos

trocavam de roupa na sacristia, rapidamente, para voltar com

vistosas e alegres batinas amarelas. Era um momento mágico. Os

panos roxos das estátuas caíam e o abade D. Afonso entoava “Gloria

in Excelsis Deo”, com uma voz soberba e poderosa. No órgão de

tubos, profundamente compenetrado, D. João Mehlmann.

— Era um jogo de cena incrível, uma metamorfose que

encantava a todos — lembra Siviero, ele mesmo o encarregado,

durante três anos seguidos, de conduzir o cordeiro ao altar.

Nestas ocasiões, os sinos monumentais eram acionados,

aumentando o tom solene da cerimônia. O Cantabola, o maior e mais

pesado de todos os sinos, com 4,5 toneladas, badalava com alegria e

majestade, fazendo-se ouvir por todo o extenso vale do Anhangabaú.

A basílica impregnada de incenso, as pessoas tossindo

baixinho, o bruxulear das velas, tudo remetia a uma atmosfera de

meditação e recolhimento. O refinamento e a beleza — observados

nos vitrais da basílica, nos tecidos de linho branco e nas obras de

* Como são chamados os coroinhas que ajudam o padre a celebrar a missa.

Page 44: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

arte sacra — eram oferecidos como uma espécie de recompensa para

aqueles que escolheram a abstinência e a fé como o Caminho da

Verdade. Paulo Leminski viveu intensamente este clima, deixando-se

tocar pelos dogmas da religião, tornando-se para sempre uma pessoa

de vida simples e hábitos despojados.

Logo depois da Páscoa, a primeira data especial no mosteiro

era o Corpus Christi, no início de junho, quando voltavam as

cerimônias pomposas e os oblatos podiam novamente vestir seus

hábitos brancos. Para confirmar as boas notícias em âmbito

nacional, antes mesmo do final do mês, no dia 29, o Brasil ganharia

a Copa do Mundo, vencendo a Suécia na decisão, em Estocolmo, por

4 x 0, com um show de Pelé, agora o rei do futebol.

Foi assim, em meio ao furor das comemorações, que seria

acertado entre seu pai e D. Clemente, através de uma troca de

cartas, um período de férias em Curitiba. Foi uma visita rápida, que

ajudou a matar as saudades de todos em casa. Em carta

encaminhada a D. Clemente, pelas mãos do próprio filho, o

subtenente Leminski agradecia a atenção e a gentileza da direção do

mosteiro pelo “financiamento antecipado”, que permitiu pagar a

passagem do garoto sem muita burocracia.

O boletim com as notas do segundo semestre veio confirmar a

tendência do aluno para as línguas, com as médias 8,24 em latim,

6,50 em francês e 9,62 em história geral (nota final). Apesar disso, a

média global não passou de 5,79, o suficiente para ser “promovido” à

4a série. Além de matemática, o aluno apresentava deficiência de

aprendizado também em desenho e canto orfeônico. E, mesmo

estudando em regime de internato, o boletim registra onze faltas em

aulas normais e outras cinco em educação física.

Quando setembro chegou, dando um refresco no inverno de

São Paulo, trouxe junto o escândalo da temporada. Foi um

burburinho no colégio, que se espalhou rapidamente por todos os

Page 45: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

andares e corredores. Não se sabe como, o álbum de vedetes de

Leminski, escondido durante várias semanas sob o colchão de sua

cama, havia sido descoberto por um monge bisbilhoteiro. O fato foi

notificado imediatamente à direção da escola. A partir deste episódio,

lembram os ex-colegas, as coisas começaram a mudar para ele. O

desconforto tornou-se evidente e, como conseqüência, ele se sentia

como um “estranho no ninho”. Sinval de Itacarambi, testemunha

ocular destes acontecimentos, reconhece que o álbum foi apenas a

gota d’água:

— Já havia uma certa disposição da direção do mosteiro em

sugerir a volta de Leminski para Curitiba. Na verdade, ele começava

a dar sinais de inquietação e impaciência no claustro. Estava

ultrapassando os limites físicos e intelectuais da escola.

O colega de carteira, Armando Loreto Júnior, lembra que seu

comportamento era considerado meio “amalucado”. Ele andava,

falava e pensava mais rápido que qualquer outro garoto da sala. Um

dia, obedecendo ao ritual de levantar-se diante da chegada do

professor à sala de aula, como era de praxe, Leminski o fez de forma

exagerada, provocando um forte barulho com o assento da carteira.

O gesto irritou o professor Paulo Cechetto, de português, que depois

de um breve sermão de reprovação, determinou:

— Ou você vem aqui na frente e bate três vezes com a cabeça

no chão ou será colocado para fora da sala! Você escolhe.

Ser colocado para fora da sala significava uma punição

extremamente grave neste contexto, uma mancha na ficha pessoal

do aluno. Como regra básica, qualquer garoto deveria evitar este tipo

de referência. Diz Armando:

— O Leminski não teve qualquer escrúpulo e, para surpresa da

turma e mais ainda do professor, foi à frente e bateu com a cabeça

no chão três vezes. E o fez com tal vigor que o barulho foi ainda

maior do que quando bateu no assento da carteira.

Page 46: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Diante de tantos registros relacionados com a disciplina, a

família foi aconselhada, em tom cordial e amigável, a requerer a

transferência do aluno para outro colégio. Todos concordaram,

entretanto, que o ano letivo deveria ser cumprido normalmente, até o

final — e que qualquer mudança ficaria para o ano seguinte. Em

novembro, com o boletim nas mãos e tendo conhecimento prévio do

seu destino, os alunos entrariam em férias. Alguns vinham de longe

— a maioria do interior de São Paulo — enquanto outros se

reconheceriam exilados na rua principal — e simplesmente

mudariam de bairro. Ele, Paulo Leminski Filho, esperou o pai ir

buscá-lo e, juntos, tomaram o ônibus de volta para casa.

Em entrevista publicada vinte e quatro anos depois (a 29 de

outubro de 1982), no jornal O Estado do Paraná, ele deixaria

registrado:

— Acontece que eu descobri a mulher. No mosteiro eu sentia

umas coisas, uns arrepios que me faziam pensar: ou é o arcebispo

ou é alguém. Era a mulher. Então, tinha coisa melhor que Deus.

Depois, discretamente, revelaria ter boas razões para suspeitar

que a descoberta do “álbum secreto da Brigitte” era resultado de uma

trama urdida a partir das revelações feitas no confessionário, onde

acumulava penitências pelas rotineiras “homenagens” às belas e

sensuais vedetes — aludindo-se à mitologia, uma referência a Onan.

Com o passar do tempo e com a repetição sistemática destas

penitências, os monges teriam identificado em sua personalidade

(ainda em formação) pontos visíveis de soberba, vaidade e

sensualidade, elementos considerados incompatíveis com a vida

monástica. Ou, analisando de outra forma, havia evidências

suficientes de que faltava ao aluno “vocação espiritual para a vida

religiosa”.

O pedido de transferência do mosteiro, datado de 20 de janeiro

de 1959, foi assinado de próprio punho por Paulo Leminski Filho,

com a autorização do pai estampada logo abaixo, no canto direito.

Page 47: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Chegava ao fim um período de intensa convivência com os

beneditinos cujo significado, para ele, no futuro, seria mais profundo

do que uma simples “passagem” pela escola dos oblatos.

Logo após a partida e nos meses seguintes, Leminski escreveria

várias cartas para D. Clemente, a primeira delas em latim, a 28 de

março de 1959, assinada por Paulus L. Junior. Em maio, uma nova

correspondência e uma confissão: “Das infinitas coisas que sinto

falta, do Mosteiro, as principais são o silêncio (que eu contribuí para

diminuí-lo), a capela e os sombrios corredores.”

Em outubro, D. Clemente receberia um bilhete de apenas dez

linhas onde Leminski reconhecia, em tom de serenidade: “Mudei um

pouco e tenho mais ordem externa e interna. Continuo tendo por

lema AUT EGO — AUT NIHIL” (Ou eu ou nada).

No dia 2 de fevereiro de 1960, mais uma carta com dois

motivos aparentes: lembrar a D. Clemente que o Congresso

Eucarístico Nacional seria celebrado em Curitiba e perguntar, “as

obras do dominicano Giordano Bruno estão no Index?”.

Em julho, numa carta recheada por questões, digamos,

“profundas”, ele se mostraria frustrado por não constatar progresso

no estudo da língua grega:

Nestas férias estudei latim, história antiga, francês (leio

Telêmaco e o gênio do Cristianismo, Chateaubriand),

hebraico (tenho um amigo que me cedeu uma

gramática) e procurei mais santos e vultos beneditinos

para minha lista, numa enciclopédia católica italiana;

grego com uma gramática me consumiu boas horas,

porém acho ainda estar imaturo para me embeber do

espírito da língua de Xenofonte (emprestei da Biblioteca

a Análise. Nada consegui. Bem, disse com meus botões,

Page 48: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

deve ser o dialeto que Xenofonte usa que não é ático,

mas mescla de jônio. Empresto então Diálogos, de

Platão, um dos mais puros escrevinhadores. Nada!).

Aproveitava para fazer uma série de consultas técnicas a D.

Clemente, sobre regras gramaticais, e se despedia pedindo a “bênção

para o Leminski”.

Dois meses depois, uma nova correspondência, iniciada “após

ouvir a missa vespertina pelo rádio”, trazia mais informações sobre

seus progressos nos estudos:

Me aprofundo agora na literatura latina. Traduzi alguma

coisa de Virgílio e Salústrio que é meu prosador

predileto e leio também as cartas de S. Jerônimo no

original latino. Se souberes de algum livro que traga a

biografia de Champollion, seria favor informar-me.

A última correspondência entre eles, datada de 19 de dezembro

de 1960, tem como motivo

algo que me alegra deveras: após meses de estudo do

hebraico, já estou em condições de estudar as Sagradas

Escrituras (é algo que não me larga!) no original. Vou

até às cinco da manhã estudando os salmos. A alegria

de poder lê-los no original é imensa. Todas as formas

características do hebraico me são conhecidas.

Ele voltaria algumas vezes ao São Bento, nos anos seguintes,

sem jamais passar da recepção, pois sempre se faria acompanhar da

mulher e da filha Áurea. O colega Sinval de Itacarambi, por sua vez,

estima que esteve com Leminski pelo menos oito vezes, nos anos

Page 49: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

seguintes, sendo a última em 1986, em Curitiba. Os outros colegas,

personagens deste pequeno capítulo do mosteiro, jamais o viram

novamente, embora tivessem notícias suas pela imprensa. Alguns

compraram seus livros e conhecem sua obra. Brigitte Bardot, já

afastada do cinema, se tornaria uma incansável ativista em defesa

dos animais, e, acredita-se, nunca mais voltou a ser capa em álbum

secreto de adolescente.

Várias experiências vividas nesta época foram registradas por

Leminski em folhas de papel e, posteriormente, em livros, tornando-

se verdadeiras pegadas autobiográficas lavradas no bojo de sua obra.

Num poema escrito em agosto de 1984, quando completou 40 anos,

ele diria:

IN HONORE ORDINIS SANCTI BENEDICTI

à ordem de são bento

a ordem que sabe

que o fogo é lento

e está aqui fora

a ordem que vai dentro

a ordem sabe

que tudo é santo

a hora a cor a água

o canto o incenso o silêncio

e no interior do mais pequeno

abre-se profundo

a flor do espaço mais imenso

Na mesma entrevista, Leminski diria que “aos 40 anos ainda

me sinto um Beneditino — e vai ser assim para sempre...” Mais

Page 50: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

tarde, no início dos anos 90, foi encontrado entre seus alfarrábios —

cuidadosamente programado para ser editado — este poema que ele

decidiu chamar de

SACRO LAVORO

as mãos que escrevem isto

um dia iam ser de sacerdote

transformando o pão e o vinho forte

na carne e sangue de cristo . . .

hoje transformam palavras

num misto entre o óbvio e o nunca visto

Em junho de 1968, a Escola Claustral do Colégio de São Bento

foi fechada por decisão da abadia, como conseqüência de uma crise

financeira e de uma onda de escândalos envolvendo denúncias de

homossexualismo entre monges e alunos. A notícia foi mantida longe

dos foros da imprensa diária, mas mesmo assim D. Clemente

abandonou o mosteiro e voltou à vida civil com o nome de batismo:

José Maria da Costa Vilar.

D. João Mehlman faleceu nos anos 70 em decorrência de

problemas com alcoolismo. O oblato Pedro Uzum também se afastou

da vida religiosa — por outros motivos — e foi trabalhar como

psicólogo na cidade de São Paulo. D. José Leandro e D. Estevão

continuam no mosteiro ainda hoje, onde são monges professores; o

“decano” Oswaldo Torrell, com a identidade religiosa de D. Lucas,

exerce a função de prior do mosteiro de São Bento, em Vinhedo,

interior de São Paulo. Armando Loreto Júnior, colega de carteira de

Leminski, formou-se em engenharia eletrônica e leciona matemática

e religião numa universidade em São Paulo. Carlos Francisco

Page 51: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Berardo, o ocupante da cadeira nº 1 da Academia de Letras Miguel

Kruse, formou-se em direito e, na virada do ano 2000, era juiz do

Trabalho.

Posteriormente, fazendo um breve resumo sentimental deste

período, Leminski criaria este emblemático e despojado poema sem

título:

nunca sei ao certo

se sou um menino de dúvidas

ou um homem de fé

certezas o vento leva

só duvidas continuam em pé

Page 52: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

CAPÍTULO 4

CURITIBA, POR TRÁS DA NEBLINA

Certa vez, durante uma entrevista a um grupo de jornalistas,*

ao analisar aspectos culturais da cidade de Curitiba, Paulo Leminski

diria:

— Primeiro: esta é uma cidade em que a sexualidade, o Eros da

vida, é reprimido. E Eros coincide com a criatividade. Então, a

repressão de Eros é a repressão da criatividade. Não criamos nada

no setor primário e secundário, ou seja, nem agricultura e nem

indústria. Curitiba é, portanto, uma cidade de administração e

tabelionatos, onde se vive a plenitude do determinismo econômico da

classe média. Segundo: em Curitiba (como em todo o Paraná) existe o

que se pode entender como a “mística do trabalho”, herança

equivocada dos imigrantes alemães, italianos e polacos, empenhados

em se convencer de que o trabalho dignifica a vida. Uma idéia

certamente criada por aqueles que se consideravam

irremediavelmente “por baixo”, na escala social.

As análises sobre a cidade onde nasceu e viveu a maioria dos

seus 44 anos tinham para Leminski, invariavelmente, este tom

dramático e visceral. Suas teses incluíam, como elementos inerentes

ao discurso, a polêmica e a provocação. Neste sentido, ele foi um dos

mais mordazes e agudos críticos que a cidade já conheceu. Não

necessariamente em tom depreciativo — que fique bem claro isso —,

mas quase sempre irônico — até porque ele se considerava,

sobretudo, um curitibano:

* Revista Quem, Curitiba, maio 1980.

Page 53: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

— Eu jamais consegui morar em outro lugar por muito tempo.

Agora, aos 40 anos, estou mais tranqüilo, pois descobri que sou

como o pinheiro, que não se pode transplantar.

A cidade de Curitiba, assim como todo o universo que o

cercava, vai aparecer em vários momentos de sua obra, seja em

forma de poemas, ensaios ou — o que aconteceria com mais

freqüência — entrevistas publicadas em jornais e revistas.

No final dos anos 80, produziria o poema “Curitibas”, no plural,

para dizer:

Conheço esta cidade

como a palma da minha pica.

Sei onde o palácio

Sei onde a fonte fica

Só não sei da saudade

A fina flor que fabrica.

Ser, eu sei. Quem sabe,

esta cidade me significa.

Para se conhecer a Curitiba que Paulo Leminski cantou em

prosa e verso, com suas características e idiossincrasias, recomenda-

se antes estabelecer uma conexão, através do tempo, com as

correntes migratórias que ocuparam o Sul do Brasil em diferentes

épocas. Afinal, até o século XVIII o planalto curitibano também era

uma terra de índios — no bom sentido, é claro —, onde viviam as

tribos jê, tingüi (da grande nação guarani) e tupi, das quais existem

hoje poucos vestígios e quase nenhuma narrativa oral. Algumas

pegadas indígenas ainda podem ser encontradas na nomenclatura

dos bairros: Capanema, Atuba, Juvevê, Guabirotuba. A palavra

Page 54: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Curitiba seria grafada, segundo o idioma guarani, algo como Kur ity

ba.*

Os colonizadores que se estabeleceram no planalto da Serra do

Mar, após o pioneirismo do povoador Mateus Leme, chegaram

atraídos sobretudo pelo garimpo do escasso ouro da região (quase

nada, se comparado ao das Minas Gerais). A Vila de Nossa Senhora

da Luz dos Pinhais, primeiro nome do povoamento, situada a 900

metros acima do nível do mar, demorou a se desenvolver

economicamente justamente por não ter muito a oferecer, além de

um frio rigoroso e temperaturas não raro inferiores a zero grau. Até

então, a vila∗∗ era usada como pernoite pelos tropeiros que faziam o

trânsito de gado para São Paulo (o famoso corredor Viamão-

Sorocaba) — e exportação de erva-mate, via porto de Paranaguá, a

partir de 1820.

Mesmo com as evidentes dificuldades climáticas, a região

atraiu a primeira leva de imigrantes alemães (na verdade, um

movimento de reimigração) vindos de Rio Negro para se estabelecer

em terras cedidas pelo Império como parte do plano de ocupação

territorial, em 1833. Paradoxalmente, o clima da região ajudou os

negócios de Michael Müller e Anna Krantz, pioneiros na exploração

deste solo, que trouxeram inovações técnicas no cultivo de frutas

européias e batatas inglesas.

Os poloneses (incluindo os ucranianos) chegariam a partir de

1871, assentando-se no anel periférico da cidade, onde criariam as

colônias Tomás Coelho, Muricy, Santa Cândida, Orleans, Lamenha e

Pilarzinho. Em seguida, os holandeses se estabeleceram numa área

mais central do Paraná, a região de Castro, onde construiriam uma

cidade industrial, Castrolândia, cuja principal atividade econômica

* Mais tarde, já no século XX, o humorista Millôr Fernandes criaria uma piada denunciando que, etimologicamente, o sufixo “ritiba” quer dizer “do mundo”.

∗∗ Em 1820, segundo relato do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, “existem 22 cazas, pequenas e cobertas de telhas...”.

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seria a produção de laticínios da fábrica Batavo. Por último,

chegaram os italianos, tricolores e festivos, dispostos a manter a

tradição gastronômica da pátria amada — e, para isso, criaram de

imediato um bairro, Santa Felicidade, que se tornaria famoso pelas

inúmeras cantinas e vinícolas. Entre os vários grupos italianos, um

em particular faria história ao se deslocar para Palmeira e fundar a

Colônia Cecília, uma experiência anarquista de resultados

transcendentais: depois de dissolvida a comunidade, seus

integrantes se espalhariam pelo sul do país e fundariam, em Porto

Alegre e Curitiba, os primeiros sindicatos brasileiros. É a herança

politizada do nosso povo.

O desenvolvimento cultural e urbano da cidade, portanto, vem

se consolidar com a participação de diferentes e variadas etnias

européias. Fisicamente, vista do alto, a área se assemelha a uma

colcha de retalhos onde cada forma geométrica representa uma

colônia. Enquanto muitos analistas (sociólogos, sobretudo) viam

nesta conformação múltipla uma “virtude” trazida pela união de

diversas raças — o que proporcionaria uma certa democracia de

cores —, Leminski entendia o mesmo fenômeno como uma “poda de

raízes”:

— Nossos pais, num passado recente, tiveram suas culturas

decapitadas pela mudança brusca de contexto, de realidade. Eles

perderam a cultura deles e não encontraram outra. Até muito além

do ano 2000 ainda vamos estar trabalhando para construir a nossa

identidade. Além disso, o imigrante trouxe também o puritanismo

calvinista e o ascetismo próprio de quem vive para o trabalho.

Esta biografia não pretende apresentar um tratado sociológico

sobre a cidade de Curitiba e nem se desviar do assunto a que se

propõe, fazendo um guia histórico e cultural (pior ainda seria o

marketing) da cidade onde Leminski viveu. O que se acredita

conveniente e oportuno, neste ponto da narrativa, é fornecer

Page 56: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

elementos para que se possa entender o contexto que favoreceu o

surgimento de um poeta da estirpe de Paulo Leminski, cuja “ligação”

com a cidade e suas raízes sempre foi de “alta voltagem” e

determinante em sua obra. Num certo sentido, Leminski e Curitiba

se parecem em suas modernidades e formação genética, não fosse ele

descendente de poloneses e brasileiros (com forte traço de negro e

índio), um arquétipo desta mesma miscigenação cultural. Ele

analisava esta condição social:

— Meus avós vieram para cá na tentativa de construir algo e

descobriram que ser imigrante é barra pesada! O imigrante não é o

estrangeiro que viajou! É um tipo de gente especial, com um

conjunto de dotes psíquicos que lhe permitem dizer: “Vou-me embora

da minha terra, vou para o outro lado do oceano, construir alguma

coisa lá!” E para isso trabalharam de sol a sol.

Leminski foi certamente um herdeiro da força de trabalho de

seus antepassados. Era incansável naquilo que chamava de “labor

braçal do escriba”, sentindo-se confortável diante de uma máquina

de escrever e um calhamaço de papel em branco — ou de uma

montanha de livros a serem lidos e resenhados. Era dotado de “raça”,

no sentido usado para significar determinação e brio, uma certa

disposição férrea de encarar o trabalho e a vida. Atravessava as

noites estudando e escrevendo.

Do ponto de vista intelectual, Curitiba ofereceu a Paulo

Leminski, segundo sua próprias palavras, “muito pouco além do

movimento simbolista de Dario Vellozo e o Instituto Neo-pitagórico”.

Tornou-se freqüentador do templo Neo-pitagórico, no bairro de Vila

Isabel, onde se professava, como o próprio nome sugere, uma volta à

filosofia de Pitágoras. Havia ainda um estranho altar com terra

retirada do túmulo do ilustre helênico, na Grécia. Dario Vellozo e os

simbolistas ainda dominavam o cenário cultural da província, por

volta de 1930, quando no resto do país já trafegavam informações

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que permitiam avaliar, por exemplo, o significado e a importância do

Movimento Modernista. Leminski mostrava-se fã e crítico impiedoso

deste particular episódio da cultura local:

— O Dario Vellozo foi a figura mais curiosa que Curitiba

produziu no início do século, mas o simbolismo que ele representava

existiu durante anos como uma espécie de elefante nos nossos

horizontes, impedindo o nosso progresso. Os intelectuais da

província continuavam inebriados pelo prestígio de um movimento

que já estava moribundo.

— Poucos e bons!

Era assim que ele definia a “sopa rala” da cultura curitibana a

partir dos anos 50 e 60, quando os meios de comunicação

permitiriam o acesso às produções de massa. Leminski acompanhou

o nascimento das rádios, que explodiam com o sucesso dos

programas de auditório; viveu plenamente o surgimento dos grandes

jornais da cidade: Última Hora, Diário do Paraná, Gazeta do Povo e

Estado do Paraná, com os quais estreitaria relacionamento desde

cedo. Aos 17 anos publicava crônicas e poesias no boletim do Colégio

Estadual do Paraná.

A cultura popular da cidade se manifestava com naturalidade

diante de seus olhos, revelando talentos que atravessariam décadas

como entidades-símbolo de vários segmentos de criação; a dupla

sertaneja Nhô Belarmino e Nhá Gabriela, além de pioneira, tinha

identidade local e perpetuou um estilo; o Circo Irmãos Queirolo, com

o legendário palhaço Chic-Chic, contava com a herança da tradição

circense do uruguaio Otelo Queirolo, mas podia ser considerado um

“produto” de Curitiba, onde divertiu gerações, criou raízes... e nunca

mais saiu. Chic-Chic foi certamente um dos últimos nobres da

profissão de palhaço. Fora do picadeiro era elegante e refinado, um

gentleman, com um acentuado sotaque portenho. Seus descendentes

diretos, a cadela de pano Violeta e o palhaço Gabiroba, estes com

Page 58: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

certeza nasceram em Curitiba. Com todos estes personagens, Paulo

Leminski fez história.

A cidade cresceu e os fenômenos se multiplicaram. A fé

popular, capaz de “remover montanhas”, faria surgir a força mística

de Maria Polenta (Maria Trevisan Tortato), a benzedeira milagrosa

que mobilizou multidões em busca de alívio e conforto para o corpo.

Era a versão curitibana para as curandeiras do candomblé. Em

oposição ao ritual cromático dos trópicos e das correntes africanas, a

“manifestação” de Maria Polenta era conhecida popularmente como

“espiritismo branco”.

Como um apaixonado pela lingüística em seus múltiplos

aspectos, Leminski “ouviu” e “pensou” a linguagem do seu povo,

estudou o jeito de ser do curitibano e acabou tirando algumas

conclusões:

— A fala curitibana é desornada de aparatos musicais

berrantes. É seca e concisa, como o conjunto de pertences de um

tropeiro, como a araucária imóvel ao vento, como o gosto do pinhão,

nossa fruta totêmica. O curitibano não fala bonito. Fala exato. Ou,

como diz o orgulho local da cidade que teve a primeira Universidade

do país: a gente fala como se escreve.

Certa vez, levado a citar valores de “expressão” em Curitiba,

pessoas que admirava nas artes, Leminski destacaria o prestígio da

música erudita, com a existência de boas sinfônicas e uma Camerata

Antiqua “de respeito”, além de compositores como Bento Mossurunga

(“um injustiçado, pelo que sua obra tem de inédito”) e os irmãos

Henrique e Norton Morozowicz, regentes. Ao mesmo tempo,

aproximou-se dos músicos populares, tornando-se um admirador da

obra e amigo pessoal dos compositores Lápis (Palminor Fernandes) e

Waltel Branco, “o lado negro da música dos polacos”:

— Nós, os curitibanos, não temos tradição, nascemos com o

Page 59: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

gás néon, somos o futuro. O nosso karma é a nossa liberdade —

dizia.

Paulo Leminski considerava que Curitiba produzira, desde o

início do século, grandes talentos isolados em diversas áreas. A verve

e as patuscadas de salão de Emílio de Menezes faziam sucesso nas

elites cariocas e, segundo ele, “seriam as primeiras a serem levadas a

sério como produção intelectual”. Nossa escola de artes plásticas

revelava o talento de Guido Viaro, Potty Lazarotto e Bakunin, todos

nomes consagrados no panteão dos imortais curitibanos (mais uma

vez, nomes europeus, é bem verdade, mas isto é Curitiba). No

cinema, os pioneiros Anibal Requião e João Batista Groff, registrando

imagens das Cataratas do Iguaçu e cenas urbanas de Curitiba,

ganharam de Leminski o título de “desbravadores”.

No campo específico da literatura, dizia encontrar no Paraná

apenas “manifestações literárias”, não exatamente uma “literatura

paranaense”:

— O Paraná é um estado em alta ebulição. Está tudo em fase

de começar. Qualquer coisa que você fizer aqui é inaugural.

Analisando outra particularidade deste mesmo caráter, ele

diria estar convencido de que, em Curitiba, produz-se socialmente

um tipo estranho e perverso de comportamento coletivo:

— Aqui não se perdoa o fracasso e nem o sucesso. Por isso esta

é uma cidade mediana. De uma maneira geral, consumimos mas não

produzimos cultura.

Em texto intitulado “Sem Sexo, Neca de Criação”, lembraria o

lado conservador da cidade, que em 1837 proibiu a execução do

fandango dentro de sua povoação, por considerá-lo um ritmo lascivo,

se não obsceno. “Essa lei provavelmente matou o nosso carnaval”,

denunciava. Como resposta ao comportamento conservador do

curitibano, Leminski se autoproclamaria “a ovelha negra do

rebanho”, nos conturbados anos 60:

Page 60: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

— Fui dos primeiros em Curitiba a usar blusão vermelho e

deixar o cabelo crescer. Em verdade, em verdade vos digo, o ideal do

curitibano é ser invisível.

Traçando um perfil vertical ainda mais contundente da

incipiente “alma” curitibana, Leminski conseguia se superar em

provocação e originalidade compondo um dos seus mais irreverentes

comentários:

— O pecado capital de Curitiba é a avareza. Esta avareza está

ligada à mística imigrante do trabalho, que se traduz na idéia de

poupança. Inteligente é poupar, não desfrutar. Então,

freudianamente, Curitiba é a retenção das fezes.

De acordo com sua tese, a avareza dos curitibanos — “um povo

acostumado a comer três vezes ao dia” — pode se manifestar de

várias formas:

— A mais curiosa delas é a modéstia. A modéstia é uma virtude

artesanal e nós vivemos num mundo industrial. Para o curitibano a

modéstia é um valor artístico, uma forma de avareza.

Por outro lado, evidenciando uma flagrante e assumida

contradição, ele iria protagonizar um episódio exemplar na redação

da revista ISTO É, em São Paulo, nos anos 70, que revelaria seu

orgulho pelos ditos “valores genuinamente curitibanos”. Durante

uma mesa redonda promovida para discutir questões relativas a

poesia e literatura, quando já se sentia visivelmente abatido pelo que

vinha considerando “um debate de baixo nível”, levantou-se

bruscamente, fez um movimento de mão com a papelada que

carregava e disparou, olhando para o poeta Cacaso:

— Olha, brother, qualquer bar em Curitiba, numa sexta-feira à

noite, tem um nível de discussão mais alto do que o desta mesa.* Vou

tentar pegar o Bife Sujo aberto...

E saiu da sala — no que foi acompanhado por Bonvicino —,

* Na mesa, além de Cacaso, estavam os amigos Arrigo Barnabé, Régis Bonvicino e jovens poetas desconhecidos, que ele chamava de “meninas da USP”.

Page 61: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

deixando uma grande confusão atrás de si.

(Na primeira oportunidade Leminski arredondaria esta

anedota, ironicamente, sentenciando que “nenhum lance de dados

abolirá o Cacaso”, numa citação a Mallarmé.)

No contexto curitibano, Leminski costumava polemizar em

torno de assuntos literários ou não criando muitas vezes desconforto

e mal-estar nos ambientes. Abriria fogo contra os intelectuais da

Boca Maldita, “que se casam com donas-de-casa e usam galochas”;

apontou sua artilharia para o crítico Wilson Martins, que nunca o

engoliu, chamando-o de “o Ney Braga da cultura paranaense, o

primeiro a divulgar notícias velhas”. E arrematava: “Um sujeito tão

ancestral quanto a medicina que receitava sanguessugas.”

Considerava Dalton Trevisan um grande artesão das letras, mas

avaliava que sua importância — por falta de participação na vida

cultural da cidade — não passava disso. Este comportamento

irreverente permitiu que ele mesmo se considerasse — e fosse

considerado — o “louco da aldeia”. Uma aldeia — ou megaprovíncia,

como querem alguns — que ele cantava com paixão e orgulho,

mesmo quando não a citava explicitamente, como neste poema no

qual sugere a vitória da filosofia e das raízes sobre o turismo

cultural:

pariso

novayorquizo

moscoviteio

sem sair do bar

só não levanto e vou embora

porque tem países

que eu nem chego a madagascar

Page 62: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Da mesma forma, mas num sentido inverso, a cidade

responderia a esta paixão cantando sua obra e assobiando suas

músicas... E, orgulhosa, veria o nome do seu poeta brilhar nas

manchetes dos grandes jornais brasileiros e nas redes de televisão.

Mas esta é uma outra história que será contada a seu tempo. No

momento, Paulo Leminski está voltando para Curitiba, no outono de

1959, depois de um ano no Mosteiro — e encontra, para sua

surpresa e espanto, o irmão Pedro, agora com 11 anos, prestes a se

tornar o “senhor do castelo”.

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CAPÍTULO 5

COM O DIABO NO CORPO

Se havia uma certeza na cabeça de Paulo Leminski, quando de

sua volta a Curitiba, era com relação aos estudos. A passagem pelo

Colégio São Bento deixara o garoto — agora com 15 anos — em

contato direto com as obras de Homero, Virgílio, Dante, a poesia

clássica, enfim. Através desta iniciação verdadeiramente sofisticada e

precoce, ele iria adquirir uma metodologia de trabalho que lhe

proporcionaria importantes conquistas no futuro. Leminski foi

matriculado na 4a série ginasial do Colégio Senhor Bom Jesus, um

estabelecimento administrado por freis franciscanos e, segundo o

conceito da época, com menos rigor que os irmãos maristas. Era o nº

52 da turma. Ao final do primeiro semestre, mais uma vez as

melhores notas seriam nas disciplinas de história geral (9,5), francês

(8,5) e latim (8,0). A pior nota, como sempre, em matemática: 2. Um

detalhe revela que o boletim escolar foi assinado pelo diretor, frei

João Crisóstomo Arns, e pela inspetora pública do Ministério da

Educação, Helena Kolody, na época ainda não devidamente

reconhecida como a padroeira da poesia em Curitiba.

A distância entre a casa e o colégio, algo em torno de 15

quarteirões — ou quadras, como dizem os curitibanos —, teria sido a

principal razão da volta do aluno, na metade do ano, para o antigo

Colégio Paranaense, ainda conhecido como Internato. Nem tanto pela

média (5,41, sofrível), mas sobretudo pelo esforço desprendido nas

provas finais, para compensar a quantidade de aulas perdidas — 64

nos dois semestres —, as notas das provas finais seriam

Page 64: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

consideradas “brilhantes” por uma anotação feita a lápis, na margem

do documento: 10 em história geral; 9 em francês, inglês e geografia;

8 em latim e ciências humanas. A pior nota, mais uma vez, em

matemática: 4.

Durante o tempo que esteve fora, a situação familiar tinha

sofrido algumas alterações que se mostrariam incômodas para ele:

reformado do Exército, o velho agora passava horas de pijamas,

bebericando, lendo Euclides da Cunha e consultando os dicionários;

o irmão Pedro, já “um homenzinho”, exigia cada vez mais espaço e se

mostrava ainda mais irrequieto. Seu pai costumava dizer que “o

caçula veio ao mundo furioso e destemperado como o tio Miguel”.

A casa em que viviam agora, na rua Bispo Dom José, nº 2.459,

no mesmo bairro Seminário, era acanhada e os dois irmãos dividiam

um quarto nas mesmas proporções — o que não seria nada

extraordinário para quem vinha de uma temporada num monastério.

Mesmo assim, Leminski decidiria ficar a maior parte do tempo na

biblioteca da escola, ou num lugar qualquer onde pudesse estudar

com tranqüilidade. Começaria a usar óculos com aros grossos e

escuros, para corrigir uma miopia precoce, resultado das incontáveis

horas de leitura.

Nesta época, quando circulava com uma camiseta de mangas

compridas com o nome Colégio São Bento estampado no peito,

Leminski conheceria Sérgio Zippin, vizinho de bairro, com o qual

construiria uma sólida amizade e formaria uma dupla impagável.

Durante anos eles estudariam juntos — mesmo quando

matriculados em colégios diferentes —, sempre conquistando a

reputação de estarem entre os melhores alunos da turma. Sérgio, um

neto de judeus russos, tinha a mesma idade e era filho da “classe

média alta”, morando numa chácara com 10 mil m2 de terreno. Os

dois passaram a usufruir a bem forrada biblioteca da família Zippin,

onde Leminski encontrou a edição de uma gramática hebraica (a que

ele se referiu na carta a D. Clemente). O irmão de Sérgio, o advogado

Page 65: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Dálio Zippin, na época com 19 anos, recorda-se do episódio:

— O Leminski ficou fascinado pela gramática e poucas

semanas depois estava lendo, escrevendo e discutindo seu conteúdo.

Tinha uma memória fotográfica e conversava com o meu irmão em

latim. Quando queriam deixar bilhetes um para o outro, o faziam em

grego para manter os curiosos à distância.

Acompanhando com satisfação tanta dedicação aos estudos,

dona Lili, mãe de Sérgio, decidiu construir uma “meia-água” nos

fundos do terreno arborizado, uma pequena casa com grandes

janelões para onde a biblioteca foi transferida. Era o território livre

com que eles sonhavam. Ali, entre montes de livros e maços de

cigarros fumados escondido, eles passavam as noites estudando,

traduzindo e se preparando desde cedo para o tão famoso e temido

vestibular.

Ao que tudo indica, teria acontecido nesta época o primeiro

contato físico de Leminski com uma mulher, no sentido “profano” da

palavra, segundo seu próprio depoimento:

— Eu tinha 16 anos e “arrochei” uma empregada doméstica no

portão da casa dela. Foi um momento inesquecível. Não chegamos às

vias de fato, mas para quem quase tinha se tornado monge, o avanço

era notável...

Concluído o ginásio no Colégio Paranaense, Leminski se

transferia agora para o Colégio Estadual do Paraná, outra instituição

com excelente conceito educacional, onde seria matriculado no curso

clássico. Ao mudar de colégio ele ganhava, como conseqüência

natural, o direito de circular pelo centro da cidade. Aliás, para chegar

ao novo colégio, saindo do Seminário, ele tinha necessariamente que

atravessar a cidade, no sentido sul-norte, percorrendo um longo

caminho todas as manhãs. E costumava fazê-lo de ônibus. Sérgio

Zippin era agora seu colega de turma e fazia parte da diretoria da

União Curitibana dos Estudantes Secundários — UCES — à frente

Page 66: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

do Departamento de Arte e Cultura. Os dois liam diariamente o

Curso de grego e a Gramática grega de Madre Maria da Eucaristia

Daniellou e tentavam decorar na íntegra o Novíssimo dicionário

latino, da editora Saraiva. No jornalzinho da escola — uma única

folha de papel impressa em mimeógrafo — o redator T. A. Garro

revela na coluna de fofocas que o apelido de Leminski, entre os

colegas de turma, era Medusa — muito provavelmente graças aos

cabelos em constante desalinho.

Entre seus novos colegas estava João Casillo, um paulista do

interior que um ano antes se mudara com a família para Curitiba.

Casillo lembra-se de que certa vez Leminski foi abordado na sala de

aula pelo professor Leopoldo Scherer, no momento em que

consultava uma gramática grega, enquanto o assunto em pauta era

outro. O professor — que era considerado um sujeito tolerante e

amigo dos alunos — pegou o livro de suas mãos e, conhecendo a

fama de Leminski, fez uma leitura pausada de um pequeno trecho

escolhido ao acaso. Era possivelmente um capítulo da Ilíada, de

Homero. Em seguida, Scherer teve a preocupação de perguntar se a

leitura estava satisfatória. Na opinião de Casillo, o episódio foi

exemplar:

— O Leminski disse: “Não, senhor!, eu vou lhe mostrar com são

as inflexões, professor.” E fez uma leitura maravilhosa de um trecho

clássico: Pararapara... pararaparara... pararapara... Ele fez isso de

uma maneira muito humilde e até o professor aplaudiu.

Casillo ficou amigo de Leminski, que se sentava no canto dos

fundos da sala, entretido com livros e anotações:

— Eu não tenho dúvidas de que, do ponto de vista de uma

cultura humanística, o Leminski foi a pessoa que eu conheci com o

maior grau de conhecimento. Ele lia muito e sabia fazer as

articulações entre os temas. Ao mesmo tempo era uma pessoa muito

ingênua, deixando-nos a impressão de que, ao lado daquela cultura

monumental, não existia uma vivência correspondente. Tanto que

Page 67: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

logo que conseguiu a primeira namorada, ele não sabia o que fazer e

veio nos pedir conselhos.

Nesta época, Leminski participaria eventualmente de reuniões

clandestinas onde se discutia a emergente política estudantil. Foi

visto em congressos da UPES e, na opinião de Casillo, “já se notava

claramente que ele não era apenas um erudito, mas um humanista

que nos ensinava a pensar”.

Houve uma reunião entre lideranças estudantis, onde ele

defendeu uma posição polêmica e desconfortável: a de que um

ditador, como Getúlio Vargas, podia ser também um estadista.

— Estava difícil concordar com esta tese do Leminski — lembra

Casillo —, mas ele nos provou que era possível. Falava que Salazar

era um medíocre e Franco, um estadista, embora ambos fossem

ditadores. Era uma colocação antipática mas inteligente.

Em março de 1962, tendo se aproximado do pessoal do centro

acadêmico, Leminski publicaria no boletim do Colégio Estadual a

crônica “Inverno”, como um prenúncio do estreito relacionamento

temático que manteria com a cidade e seu famigerado clima. O texto,

com cerca de trinta linhas, um tanto rebuscado e aparentemente

influenciado pela visão e maneirismos estilísticos do pai, termina

dizendo:

Tão cedo vejo que o outono se retira e o inverno dá os

primeiros sinais de vida. Parece-me que a cidade passou

por uma longa provação, cruel e opressiva, e, de súbito,

tudo volta ao sossego. Paz de inverno. As linhas todas

que distinguem Curitiba — o traçado de suas moradias

e o semblante de seus habitantes — permanecem

irrealizadas e estrangeiras enquanto as cerquem halos

de calor. O inverno, enfim, já expulsa o sol e a canícula

Page 68: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

para plagas mais próprias de seu brilho. Alegremo-nos,

curitibanos, com o amigo inverno ao nosso lado.

Ao freqüentar a Biblioteca Pública do Paraná, no centro da

cidade, Leminski entraria para o Clube Literário Juvenil Dario

Vellozo, onde conheceria Luiz Felipe Ribeiro, quatro anos mais velho

e calouro da Faculdade de Direito. Eles ficaram amigos e se

encontrariam anos depois nos bancos da mesma faculdade. Foi

também na Biblioteca, onde passava horas do dia, que Leminski

conheceria Nevair Maria de Souza, uma curitibana do subúrbio e

aluna do professor Guido Viaro, um artista de renome na cidade.

Neiva — como era conhecida — costumava passear nas horas vagas

pelo centro da cidade, como qualquer menina-moça desocupada. Ela

se lembra do primeiro encontro com Leminski:

— Era um sábado pela manhã. Eu estava com uma amiga e ele

parou para conversar. Falou alguma coisa rapidamente e nos

convidou para assistir a uma aula que daria na biblioteca, na

segunda-feira. Ele era muito jovem para isso! Eu fui, mas não havia

aula nenhuma. Ele estava pesquisando e fazendo anotações em

grego num bloquinho enquanto consultava diversos livros. O rapaz

era um poeta e, nesta época, eu tinha 14 e ele 17 anos.

O incipiente “namoro” continuou firme nos dias seguintes,

sempre nas salas da biblioteca, com direito a uma fuga rápida para o

cinema. Nesta semana foram assistir A face oculta, com Marlon

Brando. No momento do encontro, na porta do Cine Marajó, uma

surpresa: Leminski apareceu com o amigo Sérgio Zippin e com outra

garota, a tiracolo. Neiva explica:

— Ele tentou uma jogada de mestre e se deu mal. A moça não

facilitou a vida dele e se mostrou desinteressada, enquanto eu peguei

na mão do Sérgio durante todo o filme. Na próxima vez ele apareceria

sozinho no cinema.

Só então Neiva saberia que Paulo era irmão de Pedro, de quem

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fora colega de escola durante anos, do primário ao ginásio.

Ao chegar em casa, nesta mesma noite, Leminski tratou de

contar imediatamente a novidade ao irmão, construindo o seguinte

diálogo:

— Pedro, é com imenso prazer que lhe comunico que estou

namorando uma guria da sua turma.

— Verdade? Como é o nome dela?

— Neivair, que vocês chamam de Neiva.

— Sei. Mas ela é feia, Paulo!

— Era!

Tudo ficaria mais fácil entre eles, que iniciaram um namoro

cada vez mais ardoroso e inevitável. Tão ardoroso que dona Marina, a

mãe de Neiva, meses depois, passou a considerá-lo igualmente

“comprometedor”, exigindo que o casamento fosse marcado o mais

breve possível. Ainda hoje Neiva considera que tudo foi um exagero

de sua mãe, pois eles não tinham, “até então”, avançado nenhum

sinal. O pai de Leminski reagiria tentando adiar qualquer decisão,

argumentando que o filho devia terminar os estudos na universidade

antes de assumir um compromisso dessa “envergadura”.

Mesmo assim, a cerimônia seria marcada para a manhã do dia

9 de fevereiro de 1963, num cartório do Centro Cívico. Como

testemunhas, apenas as duas famílias. Em seguida, Paulo e Neiva

foram morar na casa de dona Marina, no bairro de Vila Isabel, onde

ficariam por pouco tempo. Neiva lembra-se de que nesta época

Leminski gostava de ler gibis, dando atenção especial ao popular

“Terror Negro”, enquanto estudava para o vestibular:

— Ele tinha esta particularidade: ou se interessava por temas

muito populares ou muito eruditos.

O vestibular não seria nenhum mistério. Durante o período de

preparação, ele e Zippin ostentaram um certo ar de arrogância,

fazendo apostas sobre qual deles chegaria em primeiro ou segundo

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colocado na classificação geral; tentavam, desta forma, estabelecer

psicologicamente o nível de disputa para o qual estavam gabaritados.

Decidiram de comum acordo fazer as provas para direito na

Universidade Federal e filosofia (letras), na Católica. Num certo

sentido, começava a nascer, neste momento, o mito do sujeito

competente e culto, “um verdadeiro fenômeno”, que acompanharia

Leminski ao longo de sua vida. Resultado: ele foi classificado em

primeiro lugar para o curso de letras, com Sérgio ficando em

segundo. No vestibular para direito, Leminski ficou em segundo e

Sérgio em terceiro lugar. Eles se mostraram surpresos, para não

dizer atônitos, com o nome de Odília Ferreira da Luz, uma aluna do

Colégio Nossa Senhora de Lourdes, aparecendo em primeiro lugar.

Conferindo a lista na parede repetidas vezes, eles se olharam e

tiveram que reconhecer: havia uma mulher no meio do caminho.

Em décimo lugar na lista dos classificados em direito, estava

Carlos Alberto Sanches, de origem portuguesa, que anos depois se

tornaria um grande empresário na área de educação ao fundar o

Curso Camões, um preparatório para o vestibular. Sanches

conheceu Leminski na sala de aula da faculdade, onde iniciaram

uma amizade que duraria por muitos anos. Como filho dileto da

linhagem lusitana de poesia, Sanches reconhece que suas pretensões

literárias, naquela época, podiam “passar pelo simbolismo e até

chegar em um Garcia Lorca, no máximo”, enquanto o colega “já

estava lendo Maiakovski, Walt Whitman e Pound”:

— O Leminski não conseguia assistir as aulas. Era um

aborrecimento para ele. Depois passou a se desentender

intelectualmente com os professores, que além de acadêmicos eram

também conservadores. Certa vez terminou uma prova escrita de

português — uma redação — com tanta rapidez que muitos alunos

pensaram que ele tinha entregado a folha em branco.

Neiva tem a vaga lembrança de que era uma tarde de inverno

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de 1963, quando Leminski leu num jornal a notícia sobre um

encontro de poesia marcado para Minas Gerais. Era a Semana

Nacional de Poesia de Vanguarda, que prometia reunir em Belo

Horizonte a fina flor da intelligentsia brasileira. Ele decidiu ir para

conhecer de perto o grupo paulista de Poesia Concreta, editores da

revista Noigandres, com os quais tinha profundas afinidades —

sobretudo pelos poemas e as traduções dos Cantos, de Ezra Pound,

feitas por Haroldo de Campos. Falava da produção poética dos

“irmãos Campos” como a descoberta do “fio da meada”.

Influenciado pelo repertório do grupo, seu livro de cabeceira era

ABC of Reading, de Pound, considerado o manual das “antenas da

raça”, ou seja, de artistas e intelectuais.

Depois de uma manobra na qual foi orientado pelo amigo Luiz

Felipe Ribeiro, agora um membro do Diretório Acadêmico, ele

conseguiu a liberação de uma verba para a passagem. Ribeiro redigiu

de próprio punho uma carta de apresentação nomeando-o

representante da faculdade no referido encontro. “Era chegar e

desempenhar”, como ele dizia. Ribeiro, que logo depois seria exilado

no Chile e ficaria anos sem voltar ao Brasil, recorda-se de que este

foi um dos seus últimos atos como representante do diretório:

— Conseguimos embarcá-lo sem dificuldades, mas somente

anos depois eu fui saber da importância desta viagem na vida dele.

Leminski embarcou às 8 horas da noite num ônibus na

rodoviária de Curitiba, com a previsão de chegar na manhã do dia

seguinte em Belo Horizonte. Estava empolgado e apresentava em voz

alta o que pretendia argumentar com os mestres. O evento literário,

que não era aberto ao público, estava sendo organizado pelos poetas

Affonso Ávila e Affonso Romano de Sant’anna, a quem Leminski

procurou no hotel para ter a sua participação garantida. Depois de

explicar que estava sem dinheiro e de contar a longa aventura vivida

até chegar a Belo Horizonte, ele seria liberado do pagamento da taxa

de inscrição.

Page 72: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

O que aconteceria nesta semana de tertúlias aos pés das

Alterosas seria decisivo em sua vida. Além do grupo de poesia

concreta — incluindo o professor Décio Pignatari, um especialista na

nova linguagem dos signos, a semiótica, e sua mulher Lila —, ele

conheceria o poeta Pedro Xisto, o artista plástico Waldemar Cordeiro

e os críticos Roberto Pontual, do Jornal do Brasil, e Luiz Costa Lima.

Sobre este encontro, Haroldo de Campos escreveria mais tarde:∗

O Leminski nos apareceu aos 18 anos, Rimbaud

curitibano com físico de judoca, escandindo versos

homéricos, como se fosse um discípulo zen de Bashô, o

Senhor Bananeira, recém-egresso do Templo Neo-

pitagórico do simbolista filelênico Dario Vellozo.

Noigandres, com faro poundiano, o acolheu na

plataforma de lançamento de Invenção, lampiro-mais-

que-vampiro de Curitiba, faiscante de poesia e vida. Aí

começou tudo. (...) Esse polaco-paranaense soube,

muito precocemente, deglutir o pau-brasil oswaldiano e

educar-se na pedra filosofal da poesia concreta (até hoje

no caminho da poesia brasileira), pedra de fundação e

de toque, magneto de poetas-poetas.

Terminado o encontro, Leminski aceitou o convite de Augusto

de Campos, e sua esposa Lygia, e decidiu fazer uma escala em São

Paulo, por uma noite, antes de voltar a Curitiba. Os três viajaram de

ônibus durante o dia, conversando sobre vários assuntos,

especialmente sobre uma edição dos Cantos, de Pound,∗∗ que

∗ Texto escrito em 1983 e publicado na abertura de Caprichos e relaxos, Paulo Leminski, editora Brasiliense.

∗∗ Em Ezra Loomis Pound (1885-1972), Leminski encontraria diversos elementos para a estruturação de sua poética. Como o rompimento com as tradições literárias — inclusive com a idéia de que a poesia deve falar de sentimentos. Aprendeu também o conceito de “tradução criativa”, que ele chamaria de “transcriação”.

Page 73: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Augusto tinha em São Paulo. Augusto lembra-se de que ele ficou

muito excitado em poder consultar a obra no original inglês:

— Quando chegamos em casa, ele não dormiu, ficou lendo os

Cantos até amanhecer. Eu fiquei impressionado. Ele era muito novo

e tinha um entendimento e uma identificação com o nosso trabalho

como nenhum outro poeta naqueles anos.

Para quem já tinha predisposição para adotar uma postura de

vanguarda diante das artes e da literatura, este encontro consolidou

esta tendência. Foi convidado por Augusto de Campos a participar

da revista Invenção, o bólido da vanguarda nos anos 60, na qual

apresentou quatro poemas ligeiros, com a marca da surpresa e com

grande aproveitamento espacial. Um deles:

PARKER

TEXACO

ESSO

FORD ADAMS

FABER

MELHORAL

SONRISAL

RINSO

LEVER

GESSY

RCE

GE MOBILOIL

KOLYNOS

Page 74: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

ELETRIC

COLGATE

MOTORS GENERAL

casas pernambucanas

Depois disso, passou a ser considerado uma espécie de

mascote do time. Foi apresentado ao poeta José Lino Grünewald e ao

professor Boris Schneiderman, tradutor de Maiakovski e especialista

em literatura russa; por influência direta dos mestres, conheceu a

obra e o pensamento de Marcel Duchamps, o homem que aprisionou

num pequeno frasco “l’air de Paris”; Anton Webern, músico

“concreto” morto prematuramente e cuja obra cabe em quatro LPs; o

cubano Lezama Lima; e, por último mas não finalmente, Stéphane

Mallarmé, o poeta francês de “Lance de dados”, em tradução de

Haroldo de Campos para “Un coup de dés”. Passou a ter uma

admiração especial por obras e autores considerados “exagerados” ou

“difíceis”.

Com relação à literatura brasileira — concretismo à parte —

Leminski vasculhou a obra de Sousândrade, Cruz e Sousa,

Guimarães Rosa e decorou todas as dentições da Revista de

Antropofagia, uma criação do Movimento Modernista. Gostava de

citar um versinho de autoria de Oswald de Andrade, a respeito de

uma intriga adolescente em colégios paulistanos:

Indalécio Randolfo Ferreira de Aguiar

passou na prova escrita

rodou na prova orar

Na volta a Curitiba, Leminski se mostrava envaidecido com a

atenção dispensada pelos mestres. Contou as histórias para Neiva,

Page 75: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

falou das fotos feitas por Augusto, uma delas no alto das Alterosas,

ele “garboso” segurando na mão direita um exemplar da revista

Noigandres 5, a antologia. No final, estava convencido de ter

conquistado a admiração e o respeito (nihil obstat, dizia-se) de todos.

Na verdade, ele tinha causado forte impressão no ambiente, pois era

capaz de discorrer sobre pequenos detalhes da obra de cada um e de

citar poemas sem consultar anotações.

Logo que foi possível, Leminski escreveu aquela que seria a

primeira de uma longa série de cartas a Augusto de Campos, a 23 de

agosto de 1963, um dia antes de completar 19 anos. Ele dizia (como

de costume, iniciando as frases com letras minúsculas):

Amigo Augusto

são e salvo, cheguei sem mais, 10 da noite — Neiva e

sogra esperavam na rodoviária, turma aqui toda

entusiasmada com a coisa, ontem mesmo relatei as

ocorrências da semana na aula de literatura

portuguesa, levei todo o material — noigandres,

invenção, apresentei à classe que está no momento

lendo Garret, imagine.

surpreendente, ninguém por aqui conhece o

cavalheiro de nome Sousândrade. providenciarei,

conferências na biblioteca, talvez já na semana próxima,

ótimas possibilidades de aceitação, o ar fresco é sempre

bem recebido na estufa, bons elementos não falta, em

especial meu amigo Sérgio Zippin, bom latinista,

conhecedor do inglês, o dono da antologia grega,

lembra-se? parece-me que Sérgio gostaria de ter em

particular a antologia noigandres. ainda não pude

conversar mais longamente com ele e, mesmo, ele não

Page 76: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

viu ainda o material que trouxe daí. na próxima direi

mais do assunto.

tua cubasgrama está sendo um sucesso, assim

como a esteia do Décio. do Haroldo em particular “a

servidão”.

(...)

pouco antes de epistolar, trabalhava no “ôvo de

Símias”, vi também Marcial que tem coisas ótimas: o

epigrama para Marcial obedece a um programa muito

eficiente, e era sátira. e a sátira é a arma de todas as

épocas.

comprei também a “Atlântida” do nosso Dario

Vellozo. Não é bem o que eu esperava. Em todo caso, te

mandarei um exemplar.

que coisa notável que é Gôngora!

o final de um seu soneto sobre la brevedad

enganosa de la vida:

mal te perdonarán a ti las horas,

las horas que limando están los días,

los días que royendo están los anos

e ainda houve gente que falou mal dele...

bem, por aqui vou ficando.

como vão teus dois guerreiros? tenho falado muito

do Cid aqui em casa: o fato de ele te chamar de

“Augushtu” e sua inclinação para a pintura, lembrança

ao Cid, ao Rolland e à Lygia. A Neiva está bastante

animada com a idéia de ir aí a S. Paulo conhecer vocês

todos. Envie a fotografia na Rola-Môça assim que possa.

Vou mandar-te algumas fotos, minhas com a Neiva, em

Page 77: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

poses maiakoviskianas.

é esperando logo tua resposta

que te manda um abraço

o Paulo Leminski .

Ps: campo a estudar é a Pleiade francesa do

renascimento em especial o grande Joachim du Bellay,

poeta muito preciso e enxuto.

Dentro do envelope havia três fotos; duas mostrando-o com

Neiva e uma dele sozinho, estudando, e a dedicatória carregada de

vaidade:

Numa cena displicente, cigarro. Pena. Cinzeiro, restos

de batalha, mas logo a cena se aclara simples: Leminski,

poeta-mais, trabalha. Ao Augusto e sua equipe do amigo

Leminski

Na seqüência, ele fundaria informalmente, tendo como sede

sua própria casa, o Núcleo Experimental de Poesia Concreta de

Curitiba, do qual Carlos Alberto Sanches se faria membro na

primeira hora:

— Traduzimos John Donne, Mallarmé, Robert Browning, Poe e

todos os malditos “noirs” com os quais o Paulo se identificava.

Mergulhamos a fundo na tradução/transcriação, essa aventura

mágica que é a passagem de um código para outro. Não se falava em

outra coisa...

Semanas depois, Leminski escreveria de próprio punho uma

carta ao poeta Affonso Ávila agradecendo o convite e as gentilezas

dispensadas no encontro em Minas. A carta foi postada em Curitiba

no dia 1º de novembro de 1963 e era, na verdade, uma resposta ao

Page 78: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

“puxão de orelha” que recebera por não ter escrito antes, como

prometera:

(...)

mas cadê tempo? leciono o dia inteiro e as horas

que tenho vagas lá vão estudando.

foi preciso uma carta sua para me dar vergonha.

por aqui:

fiz na biblioteca pública uma conferência sobre

poesia de vanguarda.

tenho estudado um bocado: traduzo Maiakovski,

haikais japoneses, leio uma infinidade de poetas, escrevo

muito também, prosa e poesia de vanguarda.

surpresa foi a qualidade (e a quantidade) do

suplemento aí do “estado de minas”, notável. (...)

agradeço também a gentileza de publicar-me um

fragmento de poema. (...)

tenho feito por aqui um bom movimento pró poesia

de vanguarda, entrevistas, palestras de esquina. (...)

li teu artigo sobre Mário de Andrade no Estadão-SP

algumas semanas atrás: realmente o MA merecia, e bem,

uma apreciação mais justa da geração que hoje ara as

vastas searas (se ara!) da literatura desse Brasil que

merece tanto e tem tão pouco.

um abração grato do amigo leminski

A excitação naquele momento foi tamanha que em poucos dias

ele estava marcando uma nova viagem, agora para São Paulo, com

Neiva embarcando junto num ônibus noturno. Ficariam hospedados

na casa de Augusto, no bairro de Perdizes, onde passaram o Ano-

Novo de 63/64. A festa de reveillon, na verdade, teve como cenário a

Page 79: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

casa do pintor Volpi, no Brás, onde todos assistiam pela televisão a

corrida de São Silvestre. Refugiado no ateliê do artista, Leminski

conheceria o poeta José Carlos Paes e reencontraria Waldemar

Cordeiro e Pedro Xisto, que havia conhecido em Belo Horizonte.

Circulando entre todos os “figurões”, ele seria visto falando e

gesticulando com muita disposição, “apresentando armas”, como

costumava dizer. Tinha então 19 anos.

A volta para casa, mais uma vez, foi marcada por uma série de

desavenças, já devidamente anunciadas, entre Leminski e dona

Marina, a mãe de Neiva — e o casal decide, então, morar na casa dos

pais dele, no Seminário. A esta altura, poucas mudanças estariam

reservadas no quadro familiar, não fosse a presença de um cachorro

“pêlo-de-arame”, o Fumaça, a nova “criança” da casa. O pai, um

pouco mais sombrio, apesar de manter a calma e o carinho com a

família, bebia agora compulsivamente (meio litro de conhaque pela

manhã) e passava horas cozinhando para os outros, sem se

alimentar necessariamente. Dona Áurea, como sempre estóica e

atenciosa com todos, apenas trabalhava para manter a casa limpa. O

irmão Pedro seria o mais incomodado com a nova divisão de espaço,

apesar de continuar sozinho em seu quarto. Pedro sentia ciúmes

explícitos da cunhada, tornando ainda mais difícil o relacionamento

entre eles. De qualquer maneira, a casa era mesmo pequena e a

situação precária; e ele teria mesmo que arrumar um trabalho

urgentemente.

E arrumou. Seu primeiro emprego foi na filial da livraria

Ghignone, na rua Dr. Muricy, no centro da cidade, exercendo a

função de vendedor de balcão. Foi uma experiência curta e mal

remunerada, que nada lhe acrescentaria na vida além de algumas

horas de consulta grátis em livros e revistas. Era um leitor freqüente

do “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, publicado

aos sábados, embora demonstrasse interesse por tudo que se editava

na área de poesia e literatura. Algumas semanas depois, estava

Page 80: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

novamente à procura de emprego.

Paulo Leminski nunca seria um aluno regular em nenhuma

das faculdades nas quais estava matriculado. Nos dois cursos,

chegou a freqüentar o primeiro ano mas foi se afastando aos poucos

para continuar investindo nos estudos de outra maneira — num

certo sentido, mais revolucionária. Sabe-se que ele tinha dois bons

motivos para deixar de lado as aulas, em meados de 1964: o

principal era o Golpe de Estado de 31 de março, que destituiu o

presidente da República, João Goulart, e inaugurou uma ditadura

que se sustentaria por vinte anos, provocando o desmantelamento da

vida universitária brasileira. O segundo motivo seria um convite para

dar aulas no Curso Dr. Abreu para alunos em fase pré-vestibular,

onde lhe ofereciam as disciplinas de literatura e história. O salário

era bom e juntava “a fome com a vontade de comer” — e ele aceitou

no ato.

Como professor de cursinho, Leminski teve uma atuação

marcante e histórica em Curitiba. Foi o pioneiro de um estilo

moderno de ensinar, onde a didática se confundia com os atrativos

de um espetáculo; imagem, texto e som compunham a nova

linguagem dos jovens dos anos 60. Vivia-se a plenitude da era

Beatles, com as rádios e radiolas mandando ver “I wanna hold your

hand” e “She loves you”, no compacto simples. Um disco de Bob

Dylan na radiola e uma aula destinada a explicar os movimentos

cíclicos da humanidade em torno de sua própria História: “How

many roads must a man walk down, before...” A fórmula deu certo.

Os cursinhos passaram a viver um momento de grande euforia e

visível prosperidade: derrubavam-se paredes para ampliar as

instalações, alugava-se o andar de cima para acomodar novas

turmas... Dizia-se: “É um ensino caro mas eficiente.” A atriz de teatro

e advogada Esmeralda Barros, hoje aposentada, foi aluna de

Page 81: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Leminski:

— Eu era fascinada pelo Paulo, achava ele o máximo como

professor. Em suas aulas ele usava recursos absolutamente

charmosos para se fazer entender... O aluno percebia que havia

erudição, não era apenas uma encenação.

O estudante Carlos João, que viria a ser amigo e parceiro do

poeta, lembra ter assistido algumas dessas aulas, mesmo não sendo

aluno do cursinho:

— Era qualquer coisa de extraordinário. Ele falava

praticamente durante três horas seguidas, fazia um arrasa-

quarteirão sobre Grécia e Roma, aliava o prazer de ensinar ao de

falar sobre coisas que tinha paixão e conhecimento. Se empolgava,

dava conselhos, fazia observações bem-humoradas, acendia o cigarro

pelo filtro, dava um show...

Outra aluna, Peggy Pacionick, tornou-se amiga e “fã

incondicional do professor”. Ela tem boas lembrança das vezes em

que esteve com ele na casa do Seminário:

— Eu achava o pai do Paulo uma figuraça, sempre de pijamas,

usando um linguajar rebuscado, todo empolado. Certa vez, o velho

olhou-me atentamente, fez um gesto com a mão e disse: “A senhorita

me parece muito ensimesmada hoje.”

Peggy freqüentava as aulas do cursinho como quem vai a um

show de rock, aproveitando a tarde para convidar algumas amigas,

falando com entusiasmo da experiência que era assistir a uma aula

de Paulo Leminski. Contrariando um certa tendência entre as moças,

que preferiam suspirar por artistas de cinema e cantores populares,

seu ídolo era o professor, o sujeito mais esperto do quarteirão:

— Mesmo nas brincadeiras ele tinha um papo “cabeça”, fora do

normal; me enchia o saco dizendo: “Peggy, você é da classe

dominante...”

Outro aluno do cursinho, Ernani Buchmann, mais tarde um

conhecido publicitário curitibano, lembra-se de que a partir da

Page 82: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

metade do ano Leminski passou a dar aulas em três matérias:

literatura, redação e história.

— Ele era o professor mais presente na escola. Estava sempre

disponível para qualquer assunto. Era o nosso mentor intelectual,

empenhado em nos passar o gosto pelos estudos e pela vida criativa.

Um dos seus discursos favoritos em sala de aula — mesmo não

constando especificamente do currículo — tinha como tema os

macacos babuínos, cuja estrutura social ele estudava e admirava.

Gostava de dizer que os babuínos “vivem em bandos de 70 a 80

vagando pelos desertos da Etiópia, Abissínia e sul do Egito. Como os

humanos, eles são monógamos. O gorila morre de dor se perder a

fêmea.” Defendia a tese de que os babuínos carregam seus velhos

nas costas para que possam ensinar para o grupo o caminho mais

seguro, de acordo com as mutações temporais e climáticas:

— Os exemplares mais fortes e nobres, entre os babuínos, são

os macacos-alfa; os outros são a plebe. Quando no cio, as fêmeas

cruzam com eles, preferencialmente, que ficam ferocíssimos. Depois

que as engravidam, eles se desinteressam pelo assunto e elas podem,

então, transar com qualquer outro. Assim fica garantida a

descendência dos macacos-alfa. Surge também aí — em forma de

embrião — a idéia de herança, da propriedade, do germe da

aristocracia.

Em 1965, uma nova mudança de endereço, desta vez para o

edifício São Bernardo, na rua Dr. Muricy, um ponto nobre no centro

da cidade. Dona Marina alugou um apartamento amplo, de três

quartos, onde todos foram morar em aparente harmonia. A sala foi

decorada com peças de artesanato em ferro, penduradas pelas

paredes como esculturas, e num dos quartos ficava a biblioteca e o

gabinete de trabalho. Havia a promessa — finalmente concretizada —

de uma certa estabilidade no emprego e então eles poderiam ficar

neste apartamento por muito tempo. Foi também nesta época que

Page 83: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

conheceu pessoalmente a poeta Helena Kolody, uma filha de

ucranianos bem mais velha, que morava no andar de cima — e desde

os anos 40 fazia poemas em forma de hai-kais. Hoje, aos 92 anos,

Helena Kolody ainda guarda viva a lembrança do primeiro encontro:

— O Leminski apareceu logo nos primeiros dias. Tinha um livro

meu nas mãos, onde eu explicava que minha concepção de hai-kai

vinha de Guilherme de Almeida. Ele estava estudando japonês e se

interessou pelo assunto. Era extremamente jovem e brilhante, e vivia

em estado permanente de inspiração.

Nova vida, nova casa, novos bens de consumo... Com o

dinheiro do primeiro salário, o casal comprou um aparelho de som

(ainda vinil) e muitos discos: no início, músicas medievais e cantos

gregorianos; logo depois Elvis, Beatles, The Mamas and the Papas,

Donovan liberando a libido da rapaziada:

— Música brasileira a gente ouve no rádio! — eles diziam.

Com freqüência, o prédio inteiro sintonizava cantorias do tipo:

— Alleeeeluuuuuiaaaaaa.......aleluia.

Ou, então:

— Ie-ie-ie-ie-ie...

Alegria de uns, tristeza de outros. Ao final de dois meses, dona

Marina, exaurida pelo ritmo frenético da casa, decidiu comprar um

apartamento no mesmo edifício, no terceiro andar, para onde se

mudaria. A filha e o genro ficariam sozinhos no primeiro andar. A

liberdade foi comemorada com uma grande festa na qual seriam

registrados muitos convidados exóticos, alto consumo de bebidas,

cigarros e “bolinhas”, o aditivo da ocasião. Segundo o depoimento de

Neiva, seu marido não se comportou bem aquela noite:

— O Paulo estava flertando na sala, fazendo charme para uma

aluna. Foi o primeiro sinal de distúrbio entre nós. Dias depois eu o vi

na rua, caminhando e falando, todo interessado, ao lado de uma

Page 84: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

outra aluna, a Ernestina.

Não se conhece nenhum progresso no relacionamento dele com

Ernestina, mas sabe-se que o episódio foi suficiente para virar a

cabeça de Neiva. A partir destes dois “flagrantes” revelando as

segundas intenções do marido, tudo indica que ela ficou apenas

esperando por uma oportunidade. E a oportunidade apareceu:

chamava-se Ivan da Costa, era magro e tinha 17 anos. À primeira

vista, devido ao nariz anguloso e à pele morena, podia lembrar um

jovem índio guarani, mas na verdade era um catarinense de

Joinville, que aos 10 anos se mudara com a família para Curitiba.

Neiva recorda-se de que naquele momento uma rádio qualquer

tocava “Quero que vá tudo pro inferno”, com Roberto Carlos, quando

Ivan entrou com Leminski. Chegou falando de seus interesses

específicos sobre música: jazz, blues, som progressivo. Trazia discos

de John Coltrane embaixo do braço. Eles se conheceram dias antes

quando caminhavam pela rua XV e agora tinham se encontrado num

cineclube durante o Festival Eisenstein, promovido pelo jornalista

Aramis Millarch, que será identificado, a partir deste momento, como

o aglutinador do grupo que se tornaria uma importante fonte de

renovação da cultura local.

Junto com eles, nesta noite estava o jovem crítico Lélio

Sottomaior Jr., 18 anos, um homossexual assumido e

reconhecidamente talentoso, atrevido no comportamento e com

idéias de vanguarda. Lélio era apaixonado pela nouvelle vague e leitor

fiel dos Cahiers du Cinéma, a bíblia do cinema. Fazia o gênero

debochado e tinha, digamos assim, bases teóricas para explicar sua

opção sexual. A palavra mágica para ele, nestes dias, era Godard.

Através de Lélio, Leminski conheceria o cinema e se aprofundaria

nesta forma de expressão artística chamada de “Sétima arte”.

Motivado pelas conversas e projetos com os novos parceiros,

Leminski decide participar do II Concurso Popular de Poesia

Moderna de 1966, promovido pelo jornal O Estado do Paraná em

Page 85: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

parceria com a Academia de Letras José de Alencar e o comendador

Umberto Scarpa, que ofereciam prêmios em dinheiro para os

vencedores. Por força do regulamento deste ano, os trabalhos

deveriam abordar o tema Imprensa. Leminski escreveu e selecionou

um conjunto de sete poemas curtos, sem títulos, apenas com

numeração, todos formatados em caixa baixa e sem muita pontuação

(que ele considerava uma prática “parnasiana”). Num dos poemas —

nunca publicados em livro —, o de número 3, ele dizia:

jornal planta de letras

canetas de plantão

entre planetas/ e pernas da multidão

(na via láctea

escolha uma constelação)

plantada na noite

a árvore voraz dos linotipos

a boca dentes teclados triplos

planta carnívora devora vida viva:

esqueletos letras no papel em

manchete

(letras letras a mancheias)

marchetado de manchetes

O poema de número 7 trazia a semente de um estilo sucinto e

ligeiro, que seria para sempre a sua marca registrada:

quem me lerá

amanhã

quando for

amanhã

amanhecerá

Page 86: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

a flor

& a letra

que agora é minha

e linha?

quem te lerá

notícia adventícia

nesta superfície?

Ele ficaria com o primeiro prêmio, entre os 23 trabalhos

apresentados, embolsando a razoável quantia de Cr$ 80.000. O

segundo lugar premiou Antenor de Barros Leite, um fiscal aduaneiro,

e o terceiro, a jornalista Rosy de Sá Cardoso, uma das dez mulheres

participantes. Na festa de premiação, na noite de 30 de junho de

1966, Leminski surgiria da platéia com ar de menino, vestindo uma

camisa de gola rolê, para receber o diploma das mãos de João Feder,

diretor-presidente do jornal.

Nesta mesma época, começaria a treinar judô numa academia

no centro da cidade, no Edifício Garcês, onde tinha como professor

(sensei) o italiano Aldo Lubes, recém-chegado de Turim. Leminski

fora levado à academia pelo irmão Pedro, que vinha recebendo aulas

há várias semanas. Nos dias seguintes, sentindo mais uma vez o

gosto amargo da rivalidade, Pedro se afastaria do judô, ainda como

faixa branca, enquanto o irmão, ao final de quatro anos, seria

graduado no primeiro grau, ou dan, conquistando a tão almejada

faixa preta.

Como atleta, Leminski participou de diversos torneios e

campeonatos de judô, algumas vezes representando a seleção

paranaense, outras competindo no circuito universitário. Foi

campeão com o quimono da Academia Kodokan numa disputa direta

com atletas das Forças Armadas, durante uma competição realizada

Page 87: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

no ginásio da Sociedade Thalia.

Um dos colegas de academia, José Carlos Miceli, lembra-se de

uma competição em Apucarana, quando a equipe conquistou o vice-

campeonato, graças à vitalidade de Leminski:

— Seu princípio tático não era a cautela, mas o ímpeto, que,

associado ao vigor físico, fez dele um grande atleta.

O mestre Aldo Lubes confirma que Leminski foi um aluno

especial:

— Trabalhamos juntos durante quase dez anos. Eu era o

mestre, mas com ele aprendi a não ver a vida de uma maneira

complicada e tão material. Ele era a pessoa mais natural do mundo.

Do ponto de vista intelectual, a cultura oriental se configurou

para Leminski num único movimento: conhecendo os princípios

filosóficos das lutas marciais, que lhe foram apresentados através da

“grande aventura dos samurais”, e decodificando a linguagem

totêmica, os ideogramas do idioma japonês. Ficou fascinado pelo

poder de síntese dos ícones. Costumava dizer que o judô foi

importante para a sua poesia na medida em que lhe ensinou a

confiar na intuição:

— Qualquer hesitação, seja diante de um golpe ou de um

poema, pode ser fatal. Pensar pode ser fatal.

Entre suas anedotas favoritas — anedotas, aqui, no sentido

dos koans —, uma dizia que o “verdadeiro” princípio das lutas

marciais fora “assimilado” por um monge após um longo período de

meditação diante de uma parede branca:

— Ou seja, diante do nada. Assim, na sua essência mais

profunda, as lutas marciais não pressupõem a agressão e nem o

revide, mas sim evitar receber o golpe, oferecendo ao oponente o

vazio.

Ao mesmo tempo que se exercitava com disposição no tatame,

Leminski fazia descer das prateleiras livros e mais livros de poesia

Page 88: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

oriental, hai-kais, biografias e até uma bíblia escrita em japonês —

roubada dos arquivos da Biblioteca Pública. Pôs-se a ler com

voracidade Alan Watts, Teitaro Suzuki e Thomas Merton, todos

estudiosos do zen-budismo, o lado transcendental da filosofia

budista. Ele gostava de citar Watts, que dizia: “O Zen nunca explica,

apenas oferece sugestões. Tentar explicá-lo é como tentar prender o

vento numa caixa. No momento em que se feche a tampa, perde-se o

vento e obtém-se ar estagnado...”

Era um experimentalista em campo, convencido de que todos

os seres humanos eram dotados de potencial para alcançar, através

da superação da ignorância, o que se poderia chamar de iluminação

repentina, também denominada de satori — que se atinge sob a

orientação de um mestre. Tentar a perfeição, tanto como aluno

quanto como professor, era um preceito dogmático para ele, que

gostava de aprender e ensinar.

Aos poucos, moldava-se nele um tipo absolutamente singular e

magnético, uma mistura de atleta com intelectual, onde o físico e a

mente recebiam igual tratamento de saúde. Para ele, o judô, em si, já

era um esporte intelectual: “Mens sana in corpore sano”, dizia-se.

Na parede da academia Kodokan, Aldo Lubes mantém ainda

hoje um recorte de jornal com o autógrafo do poeta e a dedicatória:

Discípulo, aprendi com sensei Aldo não apenas golpes,

mas toda a grandeza humana que se oculta por trás da

prática de uma arte marcial. A serenidade alerta. A

paciência diante da derrota. A humildade diante da

vitória. A relatividade das derrotas e vitórias.

Ao mesmo tempo, continuava sua atividade literária,

produzindo e publicando poemas em larga escala, enquanto

conquistava um novo e regular hábito para fazer parceria com o

Page 89: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

cigarro: o de beber cerveja. Na lembrança de Neiva, o álcool surge na

vida dele, sorrateiramente, como um ritual de lazer merecido após

uma exaustiva aula de judô, entre colegas de academia:

— O Paulo bebia mesmo em casa. Mas a cada dia ele ficava

mais tempo no bar. O passo seguinte foi trocar a cerveja pelo

martíni, com o qual realmente se iniciaria na bebida...

Com a chegada de novos amigos, a vida no edifício São

Bernardo foi se tornando uma mistura de farras e atividades

culturais, num equilíbrio tênue entre o relaxo e o rigor. Mais tarde,

ele reconheceria que foi nesta fase que descobriu que a única coisa

que poderia fazer na vida era escrever, ser um poeta. Passou a

ministrar palestras em universidades e a realizar performances em

livrarias, sempre provocando fortes reações na platéia.

Em casa, Neiva sentia-se muito solitária e angustiada,

enquanto o marido “curtia” uma boa, cercado de amigos e garotas.

Ela passava as tardes na biblioteca, a poucos metros do edifício São

Bernardo, fazendo consultas e freqüentando os cursos de arte. Certa

vez, encontrando Ivan na rua, Leminski sugeriu:

— Vai lá em casa e faz companhia pra Neiva que eu vou

encontrar uma amiga. Me quebra essa...

Ivan foi, Neiva estava sozinha no apartamento e o namoro

começou. No início eles cuidaram para não deixar pistas muito

evidentes e nem permitir que o relacionamento ultrapassasse os

limites do São Bernardo. Discretamente, porém, começaram a

participar do coral do padre Penalva, no Conservatório, uma maneira

que encontraram de passar as tardes juntos. Logo se descobriram

apaixonados. Entretido com as aulas do cursinho e com um novo

projeto literário, Leminski não perceberia o movimento das peças.

Sua atenção estava voltada exclusivamente para o Concurso de

Contos do Paraná, o mais conceituado troféu literário no Brasil nos

anos 60.

Page 90: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

A idéia do conto, com o qual decidira participar do concurso,

era original e surgiu durante uma aula de história no cursinho:

imaginar René Descartes no Nordeste brasileiro — como parte da

expedição holandesa do príncipe Maurício de Nassau — em confronto

direto com a realidade e o calor dos trópicos. Sentado na areia da

praia, em Olinda (que os holandeses chamavam de Vrijburg), o

filósofo do racionalismo aguarda ansiosamente ser “resgatado” por

Krzystof Arciszewski, o comandante polonês da expedição, enquanto

vislumbra aterrorizado jibóias, tamanduás, plantas carnívoras, “o

escambau”. O resultado se traduziria num delírio da mente

cartesiana, o “derretimento” das idéias numa deformação consentida

e proposital do texto. Em alguns momentos, Descartes aparece

fumando um cachimbo preparado com ervas nativas e de efeitos

alucinógenos. A história ganhou o nome de “Descartes com lentes” e

foi assinada com o pseudônimo “Kung”.

Leminski não ganharia o concurso e, pior, depois de uma

decisão polêmica e confusa da comissão julgadora, dizia-se

convencido de que “a banca não tem metodologia classificatória para

enquadrar o meu trabalho”. Apesar de aborrecido com o resultado,

ele continuaria apaixonado pelo tema a ponto de anunciar a

adaptação da obra para um romance, construindo o que seria, de

acordo com suas pretensões, não mais um conto, mas sim um texto,

um romance-idéia com o perfil de “objeto revolucionário no universo

da prosa”. E pôs-se a executar a tarefa. O começo era assim (em

minúscula):

ergo sum, aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido,

aqui presente, neste labirinto de enganos deleitáveis, —

vejo o mar, vejo a baía e vejo as naus. Vejo mais. Já lá

vão anos III, me destaquei de Europa e a gente civil, lá

Page 91: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

morituro. Isso de “barbaras — non intellegor ulli” — dos

exercícios de exílio de Ovídio é comigo. Do parque do

príncipe, a lentes de luneta, CONTEMPLO A

CONSIDERAR O CAIS, O MAR, AS NUVENS, OS

INIGMAS E OS PRODÍGIOS DE BRASÍLIA.

Ele havia decidido que as palavras deveriam CRESCER sempre

que Descartes, na história, usasse a luneta para procurar a nau de

Artichevski no horizonte, ou para sondar as tenebrosas alucinações

da mata virgem, uma alusão ao jardim botânico criado por Nassau,

em Olinda. O nome Artyschewski, não por acaso, aparece com

diferentes grafias durante a narrativa. Também decidiu que o texto

seria cíclico, ou seja, a primeira frase poderia ser um complemento

da última. E as palavras, muitas delas formatadas como port

manteaux (brincadeiras verbais popularizadas por Lewis Carrol),

deveriam traduzir dois ou mais significados, assim como

miravínculos, abstratagema ou mongoluscofuga. Tudo — do

começo ao fim — num único parágrafo. Seria uma homenagem, uma

citação explícita de Grande sertão: veredas, de Rosa, Finnegan’s

Wake, de Joyce, e O livro das galáxias, de Haroldo de Campos, suas

grandes influências na prosa.

A primavera de 1967 trouxe consigo duas notícias “quentes”

para agitar a temporada no São Bernardo. A primeira foi o Festival

de Música Pop, realizado em Monterey, EUA, onde dois “astros”

desconhecidos, Jimi Hendrix e Janis Joplin, chamaram a atenção

com performances consideradas “chocantes” pela imprensa

internacional. Leminski ficou impressionado ao saber que Hendrix

queimara a guitarra no palco e que tudo acontecera no embalo da

marijuana e do LSD. A segunda notícia, de âmbito doméstico, foi

ainda mais impactante: Neiva estava grávida e, como elemento

Page 92: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

complicador, continuava mantendo, aparentemente, relacionamento

com os dois rapazes. Ela estava grávida há um mês e 10 dias,

enquanto as relações amorosas com Leminski, ela garante, “haviam

terminado três meses antes, quando começou o namoro com Ivan”.

Alguns dias antes, Leminski descobrira, através de um poema

escrito por ela, o romance secreto de Neiva com o seu melhor amigo.

No primeiro momento mostrou-se um pouco aborrecido e frustrado,

mas nunca ofendido moralmente. Havia um clima de liberação

sexual da mulher permeando as “novas relações”, o que atenuava a

gravidade da ocorrência. Ele propôs uma conversa a três, onde ficou

decidido que iriam evitar especulações e aborrecimentos,

principalmente com a família e os vizinhos, mantendo as aparências

por mais algum tempo. (Lélio diria mais tarde: “Jules e Jim”, numa

referência ao filme de François Truffaut sobre o romance entre três

amigos.) Para “desbaratinar”, Ivan continuaria morando na casa dos

pais, oficialmente. Semanas depois, porém, quando a barriga de

Neiva já mostrava sinais de vida e a gravidez seria oficialmente

anunciada, havia uma pergunta que não queria calar: quem era o pai

da criança?

— Era o Ivan e nós três sabíamos disso — garante Neiva.

Apesar da alegada certeza da paternidade, ela preferiu manter

as aparências, enquanto aguardava uma definição das

circunstâncias. Estava insegura quanto às conseqüências que a

revelação poderia trazer e ficou por algum tempo engendrando uma

estratégia. Semanas depois, sentindo-se mais à vontade, comunicou

a gravidez às famílias sem dizer que isto vinha acontecendo há

alguns meses e sem dar maiores explicações. Ela lembra da reação

de Leminski diante de todos:

— Está grávida? Isto é comigo. Você quer tirar ou quer ter o

filho?

Neiva decidiu sem vacilar:

— Quero ter a criança.

Page 93: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

A vida continuaria “normal” para eles no São Bernardo: a

barriga de Neiva crescendo e as aparências sendo mantidas com

muito fair-play. Para Leminski, as aulas no cursinho Abreu seguiam

fazendo sucesso e o dinheiro do salário agora permitia um conforto

razoável, ao mesmo tempo que o consumo de álcool aumentava para

meia garrafa de rum a cada noite. Era o cuba-libre. Neiva tentava

administrar a situação:

— O Paulo acordava pela manhã e saía para dar aulas sem

pentear os cabelos. Muitas vezes eu tive que sair atrás, retocando,

até ele escapulir pela porta. Eu nem tinha filho e já era mãe.

Certa vez, durante uma aula, ao fazer um movimento brusco

com a perna, tentando sentar na mesa, suas calças rasgaram na

altura dos fundilhos, deixando um grande buraco negro e um pedaço

de pano pendurado na virilha. Leminski continuaria a aula

impassível, lembrando um personagem chapliniano, uma figura

absolutamente improvável como professor.

A frustração pela perda do Concurso de Contos já era assunto

do passado (ver Apêndice 1) para ele, que se mantinha firme na

tarefa de escrever o tal romance, enquanto procurava desenvolver

projetos e discutir novas idéias sobre arte. Afinal, tinha encontrado

em Lélio e Ivan dois afinados interlocutores, ambos, como ele,

comprometidos com o “novo”. Como elemento comum e aglutinador,

os três apresentavam em seus discursos e comportamento um certo

tom de revolta que acabaria por se transformar no leitmotiv da

juventude dos anos 60. Deste encontro sairia muita faísca, ou

melhor, a criação de um grupo que seria batizado de Áporo, uma

referência a um poema de Carlos Drummond de Andrade. A idéia era

concentrar a atividade intelectual nas três áreas — literatura, cinema

e música — e partir para a publicação e editoração de artigos em

jornais e revistas. Planejavam “cerrar fogo na produção intelectual

para afastar a pasmaceira que reina na cidade”. Tinham também a

intenção de produzir e apresentar programas de rádio e televisão.

Page 94: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Curiosamente, não havia no grupo nenhum especialista em teatro,

embora Curitiba estivesse cheia deles — no bom sentido, é claro.

Neste mesmo ano, Denise Stocklos estreava como autora, diretora e

atriz da peça Círculo na lua, lama na rua, em temporada polêmica no

Teatro de Bolso.

Enquanto intensificavam-se as doses diárias de “birita”,

Leminski deixava o cabelo e a barba crescerem e mostrava-se cada

vez mais relaxado com as roupas, perdendo o aspecto bem-

comportado de seminarista. Continuava evitando tomar banho e,

como novidade, passaria a cometer o mesmo desleixo com os dentes,

escovando-os apenas esporadicamente. Usava óculos escuros

redondos e segurava constantemente um cigarro entre os dedos. O

apartamento do São Bernardo transformara-se em ponto de encontro

de alunos e intelectuais que chegavam atraídos pelo magnetismo do

jovem poeta, que segundo os jornais “já tinha reconhecimento

nacional”.

Outro visitante do São Bernardo, o estudante Paulo Vítola,

chegaria declaradamente atraído por interesses literários e

intelectuais. Tinha assistido a algumas palestras de Leminski,

quando foram apresentados por amigos comuns, e logo encontraram

muitos pontos de interesse que sustentariam uma sólida amizade.

Vítola, três anos mais jovem, ainda guarda viva na memória a visita

que fez a Leminski, quando passaram a tarde ouvindo música

chinesa em meio a uma cena insólita:

— Chegaram os carregadores para fazer uma troca de colchão e

tudo aconteceu como numa seqüência de cinema. Os caras passando

pela sala com o colchão, uma música absurda, o Leminski com

aquela barba e os cabelos compridos... Algo de muito moderno

pairava no ar.

Para dar continuidade às aulas de judô, ele teria que

submeter-se a uma cirurgia para extração de uma hérnia, que vinha

Page 95: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

lhe provocando dores e atrapalhando o desempenho. A operação

aconteceu no centro cirúrgico do Hospital Militar, onde ele ficaria

internado por alguns dias. Como sempre reagia nas situações

adversas, o bom humor o acompanhou durante o período de

tratamento. Vítola apareceu no horário das visitas e o encontrou

risonho, lendo “pela enésima vez” Grande sertão: veredas:

— Quando a gente chegou, o Paulo estava se divertindo,

tentando imitar Guimarães Rosa, meio bichona, falando aquele texto

do Diadorim. Era engraçado porque não combinam: Grande sertão é

um texto para macho.

Neiva atesta que nesta época crescia a comunidade do

patchouli. E abre um enorme sorriso ao falar de alguns nomes que

freqüentavam as “noturnas” do São Bernardo: Paquito, amigo de

Lélio; Christo Dikoff, crítico de cinema, Peggy, Julinho Karatê (como

o próprio nome diz, um praticante de lutas marciais e adepto da

violência), o irmão Pedro — agora com um violão embaixo do braço —

e meia dúzia de ilustres desconhecidos. Um deles, Brodão, um

curitibano que morava no Rio de Janeiro, foi quem colocou na roda

pela primeira vez um cigarro de maconha, o “baseado” — atitude que

foi logo considerada de vanguarda por todos. A comunidade se

formava, espontaneamente, sob a égide do movimento hippie que

eclodia nos EUA e na Europa pedindo paz e amor — uma resposta

pacifista ao genocídio do Vietnã.

Certa vez, Leminski recebeu a visita de outro talentoso

intelectual, como ele também jovem, de nome Eduardo Portela, que

anos depois seria ministro da Cultura e imortal da Academia

Brasileira de Letras. Não há registro e nem testemunho se o futuro

ministro, nas horas que passou no São Bernardo, teria fumado mas

não tragado ou se nem sequer fumou. Como muitos outros, Portela

manifestara o desejo de conhecer Leminski, “o jovem gênio” que

falava várias línguas e preconizava o avanço de novas idéias na

Page 96: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

construção de um mundo “libertário em sua essência, a linguagem”.

Havia sinais evidentes de que dentro dele estava sendo construído,

aceleradamente, o alter-ego de Vladimir Maiakovski.

Em julho de 1967, em pleno inverno, Leminski ainda

encontraria tempo e disposição para participar de uma competição

de judô fora do Paraná. Fora convidado e aceitou fazer parte de uma

equipe universitária na disputa de um torneio interestadual, em

Piracicaba. Nesta mesma semana, nadando contra a correnteza, o

irmão Pedro é convocado para o serviço militar. Estimulado pelo pai

e contrariando a dissidência coletiva, Pedro decide fazer o curso para

a Escola de Formação de Sargentos, o vestibular da caserna.

Enquanto aguardava o resultado dos exames, entretanto, tomou

uma carraspana nas proximidades do quartel e, ao ser pilhado em

flagrante por uma patrulha militar, seria expulso do exército na

semana seguinte.

Quando o estudante Carlos João chegou ao São Bernardo, em

meados de 1967, seria para ficar. Interessado em música popular

brasileira, ouvinte de primeira hora de João Gilberto e da Bossa

Nova, queria ser jornalista e trazia um disco do Babulina (Jorge Ben)

embaixo do braço. Seus interesses apontavam neste sentido e ele

passaria a fazer parte do grupo como amigo de Ivan, que conhecera

num curso de estética cinematográfica, no Riviera. O escritor Wilson

Bueno, que anos depois seria editor do jornal de cultura Nicolau,

também freqüentava o São Bernardo nesta época. Bueno era

curitibano mas tinha livre trânsito entre os poetas cariocas e até

mesmo planejava morar no Rio. Como parte integrante dos

“homossexuais do grupo”, ele estava equipado com um sistema de

defesa social que, segundo sua própria avaliação, “beirava a

belicosidade”, uma atitude típica daqueles dias:

— Em Curitiba, como em poucos lugares no Brasil, você tinha

Page 97: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

a figura do “dedo-duro”, que costumava apontar na rua: “Aquela é

desquitada... Aquele é viado...” etc.... O reduto liberal da cidade era o

São Bernardo e o seu mentor Paulo Leminski, que ficava deitado nas

almofadas lendo Spengler, A decadência do Ocidente, enquanto eu

namorava o Darci.

A radiola agora tocava John Cage e Caetano Veloso, a esta

altura o grande “estouro” nacional, surgido na ebulição dos festivais

de música. E, num certo sentido, parecia que tudo tinha entrado em

torvelinho. Ivan lembra-se deste momento:

— A droga naqueles dias foi um componente de revolta, com

um significado especial para cada um de nós. Não fumávamos

apenas porque era bacana ou para alterar o sentido da percepção —

que era o “barato” —, mas para quebrar toda uma estrutura política.

A postura iconoclasta seria um fenômeno mundial, uma atitude de

contracultura diante de um país vivendo os “anos de aço” da

ditadura militar. Éramos rebeldes com boas causas. Na França os

motivos eram outros, mas a reação foi a mesma.

O Grupo Áporo, com Leminski exercendo sua plena liderança,

tomou partido da situação colocando em xeque os valores do

passado. Dizendo-se arautos das novas tendências das artes, eles

adotaram uma postura crítica bastante agressiva ao divulgar um

Manifesto de 30 laudas, datilografadas em espaço 3, onde investiam

contra os intelectuais locais. O alvo principal era o escritor — a esta

altura consagrado — Dalton Trevisan, apresentado como um contista

seguido por uma legião de “daltônicos”, seus leitores. “O conto é uma

forma fácil de literatura; precisamos avançar nas formas”, brandiam.

O mesmo acontecia em outras áreas: “Na questão da música”,

dizia o manifesto, “o intelectual curitibano ainda continua no bel

canto, e em matéria de cinema prefere Ben-Hur e Marcelino Pão e

Vinho”.

Agora “apadrinhados” pelo jornalista Aroldo Murá Haygert, que

dispunha de amplos poderes no Diário do Paraná, eles conseguiram

Page 98: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

um espaço no caderno de cultura, onde a divulgação do manifesto

ganharia destaque na primeira página:

ÁPORO NASCE CONTRA O DILETANTISMO

(...)

O grupo de jovens se propõe a trabalhar contra o

“provincianismo cultural de Curitiba, uma cidade de

anti-radicais, onde ninguém parte para a pesada em

termos de engajamento intelectual”.

Dando uma boa mostra da agressividade do

movimento, Leminski responde à pergunta sobre as

razões que levaram ao surgimento do Áporo:

— Curitiba é a capital do segundo Estado da

Federação em potencial econômico, mas sob o ponto de

vista cultural é uma aldeia. O intelectual curitibano típico

é um aventureiro que passeia de galochas entre a

literatura, o cinema e a música, sem se preocupar com a

especialização. O que está superado na Europa ou no Rio

e São Paulo, passa aqui como vanguarda. Falta de

curiosidade, falta de dedicação, falta de fé, de

radicalidade.

O manifesto seria recebido com azedume no reduto

conservador da cidade, a Boca Maldita, onde alguns intelectuais

(inclusive Dalton Trevisan) costumavam se reunir em torno de

cafezinhos e bate-papos. Alguns tentaram reagir à altura, escrevendo

e publicando artigos de repúdio e contestação nos jornais locais;

outros simplesmente ignoraram ou partiram para a galhofa (uma das

características da Boca Maldita), avaliando: “São um bando de porra-

loucas, desequilibrados.” Na opinião de Ivan, a questão era

basicamente política:

Page 99: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

— O Paulo lia poesias de Allen Ginsberg, um intelectual judeu

de esquerda; lia Sartre, Maiakovski e se considerava trotskista, mas

as patrulhas exigiam militância partidária e ele nunca foi disso. Na

verdade, ele nunca se submeteu a nenhuma escola, nem mesmo ao

concretismo.

Ivan reconhece que a grande fonte de idéias do grupo Áporo era

Leminski:

— O Paulo era “antenado” em todas as tendências. Ainda por

cima era considerado de direita, num momento em que os

intelectuais da província ainda questionavam se Beatles era arte ou

não. O rompimento haveria de ser na porrada. Ele pensava — assim

como Maiakovski — que não poderia haver arte revolucionária sem

forma revolucionária.

Para Leminski, politicamente, a forma sempre foi uma

admirável manifestação de poder e a vanguarda um modo de ser

essencialmente subversivo. A subversão da linguagem. Seu

pensamento era expresso dessa forma:

Não é apenas no terreno do conteúdo que se deve ser

subversivo e se opor ao sistema. É sobretudo no terreno

das formas que esse trabalho deve ser feito. A forma é

realmente revolucionária. Eu estou empenhado numa

luta de guerrilha cultural contra um parque de formas

estanques, reconhecidas pelo sistema e premiadas com

cheques, com favores de toda sorte. As formas

tradicionais vendem. A hostilidade ao experimento tem

origem neste ponto. Contestando as formas que estão no

poder, você está contestando o poder na única maneira

realmente eficaz. Eu luto para denunciar a impostura

destas formas e não praticá-las. Procurar superá-las,

arrebentá-las por baixo, por cima, pelo lado...

Page 100: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

O Ano do Macaco no horóscopo chinês, 1968, foi também “um

ano do cão” para muita gente. No dia 31 de janeiro, depois de uma

saudável gestação, nascia de parto natural o bebê de Neiva: era um

menino. Naturalmente, nas felicitações das famílias e dos amigos, na

maternidade, Leminski era saudado como o pai da criança. Para

continuar mantendo as aparências, Ivan se afastaria da cena

enquanto fosse necessário. Mas logo reapareceria para se revelar um

“tio” muito atencioso, superando em muitos momentos a ausência do

suposto pai, que continuava ocupado com aulas e palestras. Para

agravar a situação, a mãe de Neiva, sabendo da verdade, deu ordens

na portaria para que não permitissem o acesso de Ivan ao

apartamento. O bebê foi registrado em cartório quinze dias depois do

nascimento com o nome de Paulo Leminski Neto, tendo como

declarante “o pai”, ou seja, Paulo Leminski Filho, o que só fez

aumentar a confusão (confusão que, a rigor, continua até hoje, pois

oficialmente vale o que está escrito). Em seu depoimento a esta

biografia, Neiva alega que Leminski, durante um porre fenomenal,

planejou dar uma satisfação para a família e, à revelia dela, teria

“forjado” a certidão de nascimento. Alguns amigos íntimos, no

entanto, referem-se ainda hoje discretamente “ao filho do Leminski

que mora no Rio”.

Nesta época, o São Bernardo começaria a receber uma

população, digamos, mais heterogênea e menos qualificada, que

vinha perturbando a ordem do ambiente. Era o folclore do “mocó”

atraindo os “maluquinhos” da cidade, ansiosos por um “baseado” e

um guru. (Leminski dizia: “em matéria de doutrinação, tem gente que

prefere ir às faculdades para ouvir o professor”.) Este não era o caso

de Peggy Paciornick, que era sempre bem recebida e fazia parte da

família.

Aliás, no dia do aniversário de Leminski, 24 agosto de 1968,

Page 101: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

um sábado, foi programada uma festinha para comemorar a data,

quando o melhor presente da noite lhe seria oferecido por Peggy —

ele diria depois. Havia um show na cidade com o conjunto Os

Incríveis — aqueles que cantavam “Era um garoto que como eu

amava Beatles e Rolling Stones... Ratatata Ratatata... tata...” — e a

festa foi marcada para começar depois das onze. Peggy chegaria na

hora da animação, tipo meia-noite, acompanhada de uma amiga, e

promoveria rapidamente as apresentações:

— Este é o Paulo Leminski, meu professor... Paulo, esta é

minha amiga Alice Ruiz.

Os dois se olharam, fizeram os meneios triviais com a cabeça,

um aperto de mão, um beijinho no rosto e se afastaram. Alice

recorda-se de que, minutos depois, estava fascinada por aquele

sujeito, pela maneira como ele se movia pela sala, o tom de voz.

Discretamente, ela prestaria atenção no tipo: os cabelos compridos

caindo nos ombros, a roupa, uma verdadeira obra-prima de

engenharia: a camisa muito curta terminava na cintura, depois

vinha uns cinco centímetros de barriga, três centímetros de cueca e

só então começava a calça.

Subitamente ele reapareceu para perguntar:

— Uísque ou martíni?

— Uísque — ela respondeu.

Ele voltou com o copo cheio de martíni, o que ela considerou

um gesto desajeitado de um rapaz fazendo a corte a uma moça.

Leminski, por sua vez, estava igualmente perturbado por aquela

garota charmosa e bem-informada, que demonstrava interesse em

literatura e poesia. Alice pegou o copo, abriu um sorriso atrevido e

voltou a conversar com os amigos. Sabe-se que esta foi uma festa de

arromba, que agitou o São Bernardo até o amanhecer. Havia algo de

psicodélico no salão, onde se misturavam os pais de Leminski — no

começo da noite —, o diretor de teatro Antonio Carlos Kraide,

Esmeralda, outras alunas do cursinho, Lélio, Ivan (porque era um

Page 102: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

dia especial), Brodão, Carlos João e uma dúzia de desconhecidos. A

principal ausência da noite era a do irmão Pedro, que estava preso

numa delegacia por roubo de carro. Nesta noite, eles ouviram

repetidas vezes o disco Ttopicália ou Panis et Circensis, que tinha sido

lançado semanas antes numa grande festa no Dancig Avenida, em

São Paulo. O vinil reunia os talentos de Gil, Mutantes, Nara Leão,

Tom Zé, Gal Costa, Caetano Veloso, Capinam, maestro Rogério

Duprat e consolidava o movimento que vinha sendo chamado de

Tropicalismo:

Na mão direita tem uma roseira

autenticando eterna primavera

e nos jardins os urubus passeiam a tarde toda

entre os girassóis

Leminski veio se chegando ao grupo onde Alice estava,

cantando junto, estalando os dedos e fazendo charme, até conseguir

atraí-la para um canto da sala. Os dois passaram a noite em

conversas sobre temas variados e atuais. Alice falou de suas poesias

e contou que estava morando no Rio de Janeiro, onde fora procurar

“um mundo mais arejado e menos machista”. Vaidoso, ele se exibiu o

quanto pôde, apresentando sua biblioteca de obras clássicas e

declarando seus autores preferidos. Foi como se as outras pessoas

tivessem desaparecido da sala e os dois permanecessem envolvidos

por uma nuvem de gelo seco. Leminski abriu uma pasta, tirou uma

folha de papel e mostrou um poema que tinha feito naqueles dias —

e que vinha chamando de Esplêndido Corcel. Eis um trecho:

o esplêndido corcel

vê a sombra do chicote

e corre, esplendores do cavalo

Page 103: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

em labirintos de crina

incentivado pelo vento

cancela espaços de quimera

consumindo o tempo

pira que heróis incinera

(...)

Mais tarde Alice diria:

— Fiquei aquela noite com ele, saí no dia seguinte para voltar

logo em seguida e ouvi-lo dizer: “Estou vidrado em você, guria.” Não

saí mais. Foi uma coisa absurda, uma paixão alucinada.

Alice sempre considerou este encontro uma “obra-prima do

destino”, pois ela teria ido à festa muito a contragosto. Primeiro, por

não ter sido convidada; e, segundo, por ter informações que

desabonavam Leminski. Nada contra sua honestidade ou honradez,

apenas contra a sua imagem:

— Eu namorava um escritor, o Jamil Snege, que falava muito

mal dele. Dizia que ele era arrogante, metido, pretensioso, o dono da

verdade etc. etc.... De fato ele era, depois pudemos comprovar, mas

em absoluta justa causa.

Na manhã do dia seguinte, ao voltar para o apartamento onde

planejava encontrar-se com ele, Alice estava com o coração aos pulos

e caminhava em direção oposta ao desfile militar de 25 de agosto, o

Dia do Soldado. Foi um momento poético, um signo dizendo que se

houvesse bom senso ela daria meia-volta e seguiria a parada. Mas

ela foi em frente, no sentido contrário ao da correnteza, para nunca

mais voltar.

A presença de Alice no São Bernardo, na condição de

namorada de Leminski, iria tornar ainda mais difícil — se não

impossível — a tarefa de manter as aparências. Agora, moravam no

Page 104: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

mesmo “apê” os dois casais e o pequeno Kiko, como vinha sendo

chamado o mascote da turma. Na sala, os convidados eventuais se

esparramavam pelas almofadas. Os mais constantes eram: Carlos

João e Fredinho (filho da dona do cursinho Dr. Abreu); ainda Julinho

Karatê (que tempos depois seria encontrado morto ao lado da

amante, vítima de asfixia por gás e envenenamento por cianureto) e o

artista plástico Franklin Horilka. Alice lembra-se com bom humor da

primeira conversa para racionalizar as tarefas domésticas: quem

lavaria as meias de Leminski? Seria a empregada, que já vinha

lavando? Ou a nova namorada? Ou, ainda, Neiva, que para todos os

efeitos era a esposa oficial? A situação continuava confusa entre os

quatro e, na verdade, à luz de uma avaliação jurídica, acontecia ali

um caso explícito de adultério.

A rotina passou a ser mais ou menos assim: ele dava aulas

pela manhã, folgava à tarde e voltava para o cursinho à noite. A vida

social no São Bernardo, portanto, começava depois das 11 e

terminava por volta das 4 horas da madrugada. Ele continuava

freqüentando apenas ocasionalmente as aulas de judô na Kodokan,

mas, para compensar a falta de exercícios, treinava em casa

amarrando a faixa preta na porta do quarto — como se fosse um

adversário —, contra a qual deferia um elenco impressionante de

gritos e golpes. Como num contragolpe, a vizinhança começaria a se

manifestar.

Para complicar o quadro, um novo e intrigante personagem

surgiria no São Bernardo. Seu nome era Olavo, tinha 22 anos e dizia

estar chegando da Califórnia, “onde todos falam da nova onda, a Era

de Aquarius”. Não era músico, poeta, muito menos intelectual, e não

tinha uma obra ou projeto artístico para apresentar. Era bonito e

gostava de fazer reverências ao sol e falar de horóscopo. Não morava

em nenhum lugar, especificamente. Era um hippie com

comportamento bissexual, o primeiro a surgir no “pedaço”. Chegou

como amigo de Brodão, que conhecera no Rio de Janeiro, onde ouviu

Page 105: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

falar da turma de Curitiba. Sua presença no São Bernardo faria Lélio

citar o filme Teorema, de Pasolini, no qual o personagem de Terence

Stamp faz amor com toda a família. Leminski escreveria um poema

para Olavo, fazendo brincadeiras verbais com a frase Lavar o Olavo.

Fez uma dedicatória onde dizia: “do beatnik para o hippie”. Apesar

das evidências, não se conhece nenhum envolvimento homossexual

de Olavo com qualquer membro do grupo. Mas, a se considerar as

declarações de alguns amigos, “ninguém deve colocar a mão no fogo

por isso”.

Para Carlos João, porém, aquelas noitadas tinham uma

conotação estritamente cultural:

— O nosso maior contentamento era quando o Paulo chegava

em casa, depois das aulas. Os papos se estendiam muita vezes até o

raiar do dia. Os temas eram variados: de Glauber Rocha a Euclides

da Cunha, passando por análises do Brasil arcaico e conversas sobre

estética, de um modo geral. Hélio Oiticica tinha lançado as bases de

uma exposição chamada Tropicália, que Caetano Veloso

transformara em música e em movimento cultural. Falávamos disso.

Uma noite de inverno, em 68, Leminski foi visto bebendo sozinho

no La Fontana de Trevi, o bar que agora freqüentava com o pessoal da

academia, no andar térreo do mesmo edifício. Tinha os cabelos na

altura dos ombros, usava barba também comprida e um sobretudo

escuro que terminava bem abaixo do joelho. Passou boa parte do

tempo lendo e fazendo anotações em guardanapos. Carregava um

calhamaço de papéis e revistas que consultava a todo instante. Era

uma figura única no ambiente, lembrando em muitos aspectos um

poeta maldito do século XIX. Eu estava na mesa ao lado, com um

grupo de amigos, todos estudantes, discutindo calorosamente um

tema polêmico e de ocasião: o festival de música da Record, que

contrapunha de um lado os defensores da estética musical de “Roda

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Viva”, de Chico Buarque, e, do outro, a modernidade preconizada por

“Alegria Alegria”, de Caetano Veloso. O festival tinha acontecido em

outubro do ano anterior, mas as músicas continuavam nas paradas de

sucesso. A certa altura, Leminski pagou a conta, colocou os alfarrábios

embaixo do braço e falou, dirigindo-se à nossa mesa:

— Nesta polêmica eu sou mais o Caetano, colocando o Brasil no

mundo eletrônico. Adeus, cavaquinho — e saiu.

14 de outubro de 1968. Alice está esperando Leminski chegar

do trabalho no cursinho Abreu, o que aconteceria exatamente às

22:30 horas. Eles namoram e fazem amor como todas as noites, mas,

por um motivo qualquer, nesse dia foi diferente para ela:

— Minutos depois eu sabia, de alguma forma misteriosa, que

tínhamos feito um filho.

A intuição feminina funcionou. Alice engravidara e, assim que

a barriga começou a aparecer, surgiriam também novos problemas

no edifício, onde alguns moradores cogitavam passar um abaixo-

assinado para afastá-los do condomínio. A situação estava cada vez

mais delicada:

— A notícia chegaria ao ouvido de dona Ruth, a proprietária do

cursinho Dr. Abreu e fiadora do apartamento. Ela considerou que

não podia ter em seus quadros um professor de vida dupla. O Paulo

dependia do aval dela para alugar um outro apartamento. Assim, eu

tive que ser literalmente oculta.

A situação financeira da casa passava subitamente por um

período de dificuldades. Fazendo cálculos na ponta do lápis, chegou-

se à conclusão de que o valor do aluguel estava muito alto e seria

conveniente encontrar um novo endereço mais afastado do centro e,

portanto, mais barato.

Jurando que estava “tudo acabado” entre ele e Alice, que a

relação tinha sido apenas “uma loucura momentânea”, Leminski

conseguiria o aval desejado com dona Ruth. Ato contínuo, um novo

Page 107: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

apartamento foi alugado na rua Paula Gomes, próximo ao Cemitério

Municipal, para onde foram também Ivan, Neiva e Kiko. Agora, era

Alice quem não podia ser vista, principalmente por dona Ruth, que

costumava se materializar a qualquer hora, com o dedo na

campainha, pois não havia telefone na casa:

— Certa vez fiquei escondida na despensa, um quartinho

escuro e frio. Foi humilhante. Eu estava grávida e não tinha espaço

nem para uma cadeira. Fiquei assim parada, esperando até a velha ir

embora. É como diz a canção: o que a gente não faz por amor?!...

Com as finanças equilibradas, o sinal vermelho começou a

piscar em “outro departamento”, que progressivamente ganhava

mais espaço na vida da comunidade: as drogas. (É claro que este

“problema”, amigo leitor, pode existir apenas na minha e na sua

cabeça, já que tudo o que eles procuravam era mesmo o “nirvana”.)

Foi assim que apareceu uma turma “barra pesada” no “guruato” do

Leminski, que agora recebia aulas de violão do irmão Pedro. A nova

rotina consistia em comprar um “galo” ou uma “perna” — o

equivalente a 50 e 100 cruzeiros — de maconha por semana, para

consumo coletivo. Alguns foram abandonando o hábito —

subitamente ingênuo — de tomar o xarope Romilar (um expectorante

que, quando ingerido em quantidade acima do normal, faz o sujeito

falar com eloqüência, funcionando como anfetamina) e trocavam-no

por “picadas nos canos” — ou nos “barbantes”, como diziam alguns.

O depoimento é de Carlos João:

— Uma tarde eu estava lendo no escritório quando o Pedro

entrou esbaforido e agitado. Mal me cumprimentou, praguejando

algumas coisas. Achei por bem voltar às costas e continuar a leitura.

Ouvi então ruídos estranhos. Quando me voltei o Pedro estava

colocando uma seringa sobre a estante e tirando um elástico do

braço. Parecia mais tranqüilo. Neste dia eu percebi que as coisas

estavam ficando pesadas por ali.

Page 108: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

O ex-aluno Ernani Buchmann lembra-se de ter visto Leminski

no cursinho, durante um semestre inteiro, usando um indefectível

suéter cor-de-rosa, mesmo em dias de forte calor. Por uma

casualidade, descobriria logo depois que a manga comprida era para

esconder as marcas de picadas no braço esquerdo.

Eles se aplicavam com anfetaminas destiladas e injetadas com

uma seringa, ou “arpão”, quase sempre em péssimas condições de

higiene e segurança. Pedro costumava dizer que canabis (maconha)

era brincadeira de “estudante em férias”. Alice recorda-se:

— Por estar grávida, fiquei de fora dessa. Para compensar, fui

fazer um curso de teatro, no Guaíra. Mesmo assim, meu diretor na

escola, o Otávio, me pediu delicadamente para eu sair do grupo. Ele

alegava que as atrizes já eram muito mal faladas e ter entre elas uma

grávida solteira só poderia piorar a situação.

O resultado foi um abaixo-assinado de alunos e professores do

curso de teatro tentando evitar a discriminação, posicionando-se

contra o afastamento dela. Um conhecido ator, Sale Wolokita,

professor de interpretação, assinou o documento em solidariedade,

mas sua mulher, Flora, secretária de Otávio, recusou-se. Houve

polêmica e muito desconforto durante o episódio, mas Alice acabou

saindo da escola.

Para ela, então com 21 anos, o período de gravidez não seria

nenhum convescote. Todos ainda viviam com o dinheiro que

Leminski ganhava dando aulas, sendo esta a única fonte de renda do

grupo. Em contrapartida, ele se sentia no direito de aproveitar

intensamente todas as horas livres de que dispunha. Mas, longe da

mulher grávida, é claro. Um dia, Alice acordou com febre, fome e um

profundo mal-estar:

— Decidi arrumar minhas coisas e ir para a casa de uma tia.

Um exame médico constatou anemia e inflamação nos rins. Fiquei lá

para fazer o tratamento. Eu não podia voltar à vida desregrada sem

colocar em risco a gravidez...

Page 109: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

A saída dela da Paula Gomes não foi exatamente uma

separação, apenas uma fuga estratégica. Depois de recuperar as

energias — o que exigiu um retiro de pelo menos duas semanas —

ela reapareceria para uma rápida visita. Encontraria Leminski sem

barba e de cabelos curtos. Mas, antes, quando ele a viu chegar, saiu

correndo para o banheiro e fechou a porta. Ela ainda pensou:

— Ele não pode ser tão covarde assim!

Certamente não era. Estava apenas querendo aparecer mais

bonito e foi terminar de escanhoar a barba. Ele se comportava como

se fosse o namorado e não o pai do filho que ela carregava na

barriga. Neste momento, Alice percebeu que estava inexoravelmente

se transformando em mãe e que Leminski parecia cada vez mais

longe de ser um pai...

Eles passaram o dia juntos e decidiram que Alice continuaria

na casa da tia até o nascimento da criança. Lá ela teria roupa lavada

e boa alimentação, conforto que o apartamento da Paula Gomes não

podia oferecer. E assim foi feito.

Houve um momento em que todos estavam produzindo e

escrevendo regularmente para o caderno de cultura do Diário do

Paraná, o “DP Domingo”. Eles cobriam as quatro áreas com

desenvoltura (Carlos João agora fazia parte do grupo, escrevendo

sobre MPB), sempre escoltados por Aroldo Murá, que continuava

“alimentando as feras”:

— Eles eram estranhos, criativos e tinham gestos rebeldes que

perturbavam a redação, mas pareciam ser a representação

curitibana daquele processo de renovação que acontecia no mundo.

Havia uma relação de sincronicidade entre as experiências sociais e

pessoais que eles estavam personificando naquele momento, e o

resto do planeta.

Num certo sentido, Murá estava certo. Ivan passou a comandar

um programa na Rádio Colégio Estadual (depois Cultura), chamado

Page 110: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Clube do Jazz, e se orgulha de ter colocado no ar, “pela primeira vez

em Curitiba”, John Coltrane e John Cage. Ele abordava o jazz da

linha modal como um assunto de vanguarda. Tinha um amigo,

chamado Ney Macedo, rico e de bom gosto, que possuía uma

maravilhosa discoteca de importados, “a melhor da cidade”. Foi

estudar teoria musical e começou a desenvolver um projeto que

chamava de “Pragmasom”, para música de vanguarda, com

gravações de ruídos num túnel de Copacabana. Imaginou um

concerto de piano dentro do túnel Novo, com carros e ônibus

andando em apenas uma das pistas.

Ao mesmo tempo, passou a trabalhar no setor de música da

Biblioteca Pública, onde um conjunto de quatro cadeiras (como

cadeiras elétricas) acopladas a gravadores do tipo Akai, de rolo,

forneciam uma programação revolucionária, despejando decibéis nos

ouvidos dos “bichos”. O ambiente era progressivo e civilizado nas

relações. Podia-se ouvir Lalo Schifrin, música dodecafônica e coisas

assim... Este autor freqüentava a sala no terceiro andar — sem

nunca ter se relacionado com Ivan — principalmente para ouvir a

programação de jazz, de um modo geral, e a música “A Whiter Shade

of Pale”, com Procol Harum, em particular:

We skipped the light fandango

Turned cart wheels ‘cross the floor

I was feeling kind of sea sick

The crowd called out for more

Lélio Sottomaior cuidava da crítica de cinema e movimentava a

programação dos cineclubes da cidade. A concentração dos cinéfilos

acontecia no Cine de Arte Riviera, do Colégio Santa Maria (apenas

uma referência, já que a sala de projeção era um anexo ao colégio).

Sylvio Back, Valêncio Xavier, Manoel Karam e Dico Kremer estavam

Page 111: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

sempre na platéia participando dos debates. Eram todos jovens e

brilhantes. Back, que já tinha realizado quatro curtas-metragens,

preparava seu primeiro longa, Lance maior, com Reginaldo Farias e

Irene Stephania no elenco. Leminski passou a freqüentar o cineclube

atraído pelos eflúvios desta efervescência. Lélio, o agitador, falava

entusiasmado sobre Oito e meio, de Fellini, os últimos filmes de

Antonioni e Hitchcock; escrevia ensaios sobre o cinema industrial

americano e, claro, divulgava à exaustão “as obras completas de

mestre Godard”. Ao mesmo tempo, radicalizava na postura e nos

trejeitos, descendo a rua XV de mãos dadas com o amigo Paquito e

os lábios pintados de batom vermelho. Eram ameaçados, ofendidos e

muitas vezes foram molestados fisicamente. Lélio recorda-se destes

dias:

— Nós vivíamos na zona franca dos malucos, onde estavam os

intelectuais, artistas e pessoas ligadas ao futuro. Ou, muito pelo

contrário. Desafiamos tudo e todos.

Uma reportagem publicada no Diário do Paraná, a 19 de janeiro

de 1969, aborda a produção cultural do Grupo Áporo, mostrando

uma foto com o time completo: Leminski, Ivan, Lélio, Alice, Pedro,

Carlos João e Neiva, sentados nas escadarias internas do Diário do

Paraná. A legenda esclarece que o grupo nascera “para fazer de

Curitiba uma cidade de homens que, face às coisas da cultura,

tomem partido em termos agressivos”.

Levando ao pé da letra este item do manifesto, durante o II

Seminário Nacional de Literatura, em sua versão 69, Leminski iria

protagonizar um episódio que resultaria em trauma psicológico para

alguns participantes do evento, que se realizava paralelamente ao

Concurso Nacional de Contos — este ano premiando o escritor

Rubem Fonseca, com a trilogia “Desempenho”, “Lúcia” e “O caso de

F. A.”. As palestras do Seminário, intermediadas pelo acadêmico

Adonias Filho, no auditório da biblioteca, aconteciam durante as

tardes e recebiam ampla divulgação da imprensa. Na mesa, entre os

Page 112: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

palestrantes do dia, estavam o escritor José Louzeiro, o poeta

Wlademir Dias Pino e a poeta Lupe Cotrim, professora de estética da

USP. A certa altura de sua preleção, Cotrim fez uma citação de

James Joyce em trecho, segundo ela, “extraído do polêmico livro

Finnegan’s Wake”... Leminski, que estava na platéia com um grupo

de amigos, reagiu imediatamente:

— Um momento! Joyce nunca disse isso em Finnegan’s Wake.

Deve haver algum engano.

A professora reagiu com surpresa, um tanto assustada, mas

confirmou a informação. Leminski insistiu:

— Eu continuo afirmando que o trecho citado pela senhora não

existe na obra mencionada.

O mal-estar foi crescendo e o bate-boca também. Agora em pé,

Leminski dirigia-se para a platéia, desafiador:

— Ela não está falando coisa com coisa!

Ao tentar interferir, na condição de presidente da mesa, o

acadêmico Adonias Filho se mostraria ainda mais descontrolado:

— O senhor é um imprudente! Está tumultuando os trabalhos

e desdenhando da capacidade da professora Cotrim.

— Eu não sou imprudente, senhor, sou apenas um provinciano

que já leu muito e adora James Joyce. E não posso admitir que

intelectuais de grande centros, como os senhores, venham aqui

contar falsas histórias.

O depoimento de Louzeiro:

— A professora Cotrim começou a chorar. O Wlademir Dias

acabou se envolvendo mas apenas gaguejava, e a confusão

aumentou. Na platéia, Leminski agora falava coisas ininteligíveis.

No dia seguinte, quando Leminski reapareceu no Seminário

abraçado a vários livros e cercado por um grupo maior de amigos,

todos estremeceram. Assim que a sessão foi aberta, levantou-se e,

dirigindo-se à professora Cotrim, falou com voz forte e poderosa: “Eu

voltei para dizer que o trecho que a senhora citou ontem, professora,

Page 113: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

é de Ulisses e não de Finnegan’s Wake.” Um novo tumulto teve início,

que só terminou minutos depois com a interferência de outros

palestrantes, inclusive dos escritores locais que estavam à mesa.

Louzeiro, um maranhense radicado no Rio de Janeiro, onde

atuava como contista e repórter policial, recorda-se de que sua

admiração por Leminski começou neste momento. Ele consideraria o

episódio, apesar do desconforto provocado, um ato de coragem e

competência do jovem intelectual. Após o encerramento da

tumultuada sessão, Louzeiro saiu com o grupo de Leminski pelos

bares da cidade:

— Falamos de literatura, bebemos e comemos pinhão a noite

inteira. Logo pude perceber que ele tinha muito conhecimento. Eu o

convidei para aparecer no Rio, num próximo evento literário

qualquer. Ele prometeu pensar no assunto.

Quer seja pela competência ou pela excentricidade, a partir

deste episódio o poeta começou a ser notícia na imprensa local. Em

14 de novembro de 1968, o jornal O Estado do Paraná, na seção

“Seis colunas”, assinada por Aramis Millarch, abordava o “Perfil de

um homem: Paulo Leminski”:

Professor, poeta e judoca. Com seus longos cabelos e

barba negra, jeito de atleta (que é) e sempre em

companhia da jovem esposa, a pintora Neiva, Paulo

pode parecer à primeira vista um “hippie”

subdesenvolvido. Mas bastam cinco minutos de

conversa com o moço para surgir uma nova imagem.

Afinal, são poucos os barbudos na idade dele que

dominam oito idiomas.

(...)

A notícia com Paulo: está escrevendo seu primeiro

romance, de uma idéia originalmente aproveitada num

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trabalho para o concurso da Fundepar. Trata-se de uma

ficção elaborada em linguagem de vanguarda onde o

personagem central é o filósofo francês René Descartes.

(...)

Certo dia, alguém surgiu na Paula Gomes com uma idéia

fabulosa e perturbadora: ir embora para o Rio de Janeiro. Arrumar

as malas e zarpar pela rodoviária que, como dizem os curitibanos, é

“a segunda estação da cidade” — a outra é o inverno. O apartamento

se tornara inviável e a paranóia tomava conta dos verdadeiros

moradores. Eles tinham perdido o controle da situação e viviam em

estado permanente de “grilo”, expressão usada para designar uma

“preocupação aguda de origem interna ou externa”. Leminski estava

particularmente “grilado” com a informação que lhe fora passada no

cursinho de que eles estavam sendo vigiados pela polícia (no caso,

diziam, a Polícia Política). Os visitantes eram passageiros, mas

deixavam rastros... Começaram a desaparecer objetos da casa. Umas

peças de artesanato foram roubadas da parede. As relações de

Leminski com o trabalho estavam em crise — ele vinha sendo

descontado em seus salários pelas faltas constantes... Neiva não

suportava mais:

— Eu entrei em depressão, cortei os cabelos bem curtos e

esperei por uma mudança.

Pode-se dizer que, grosso modo, em termos de projeto outsider,

os curitibanos se dividem em dois grupos: aqueles que planejam

ganhar dinheiro em São Paulo e os que sonham com as praias, os

bares e a paisagem carioca; o lado lúdico da vida, enfim. Eles faziam

parte deste segundo grupo e começaram a criar as condições para

“cair na estrada”. Nestes dias de ditadura militar, o Rio de Janeiro

oferecia como opção de sobrevivência o “desbunde espetacular”, uma

Page 115: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

prerrogativa da geração “sem lenço e sem documento” — para usar

uma expressão celebrizada por Caetano Veloso. As dunas da Gal —

ou “o píer do barato” — na praia de Ipanema, e o tablóide O Pasquim,

reunindo a fina flor do humor e da inteligência brasileira,

concentravam o que havia de mais criativo no país naquele

momento. Eles se imaginavam neste cenário tropical, trabalhando e

curtindo a vida como mereciam.

O assunto era abordado a todo instante, sempre com grande

empolgação. Tinham restabelecido contato com José Louzeiro, que os

incentivou de maneira decisiva. O velho amigo Brodão tinha

oferecido um apartamento na Zona Sul para que pudessem se

acomodar na hora crucial da chegada — e eles decidiram aceitar.

Carlos João estava entusiasmado e prometeu partir o mais breve

possível. Leminski e Alice teriam que conversar e decidir a vida deles.

Lélio resolveu continuar em Curitiba e estava fora dos planos. Havia

um frêmito entre as relações neste momento. O país vivia um período

conturbado politicamente. Tudo estava conturbado.

11 de julho de 1969. No dia mais frio do ano nascia o

primogênito dos Leminski. Alice estava sozinha em casa e assim que

sentiu as primeiras contrações seguiu, às pressas, para o hospital.

Antes, pediu para a tia avisar Leminski (o que significava ir à casa

dele) e saiu de casa segurando a barriga. Curitiba era uma cidade de

trânsito fácil nesta época e o caminho até o Hospital São Vicente foi

percorrido em poucos minutos. Levada para a sala de parto, ouviu da

médica de plantão que a criança estava com “apresentação de face”,

ou seja, tinha o rosto para fora e não a cabeça, complicando o parto.

Apesar de toda a dilatação, o bebê não saía. Foram feitas muitas

tentativas, todas frustradas. A solução seria uma operação

“cesariana” de emergência. Antes, porém, a médica quis saber:

— Existe alguém aqui que possa ficar responsável por você?

— Ninguém. Eles devem estar a caminho...

Page 116: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

— Existe um risco de vida. Alguém precisa estar ciente disso. A

questão é: se for feita a cesariana, o risco é seu; caso contrário, se

formos pelo método convencional, o risco é da criança.

Ela decidiu no ato e assinou o documento autorizando a

cesariana. Foi um momento de extrema solidão, que ela jamais

esqueceria, apesar do sucesso da intervenção.

A tia chegou logo depois do parto e Alice pediu para ver a

criança. Era um menino saudável, com muita tranqüilidade na face

morena e rechonchuda. Ela olhou emocionada a criança e

considerou que não se parecia com ela e nem com ele, mas com sua

mãe Ângela.

Leminski chegaria ao hospital tarde da noite, bêbado, mas sem

criar tumulto e problemas aparentes. Afinal, tinha um bom álibi,

pois estivera com os amigos comemorando o nascimento do filho.

— Ele ficou muito transtornado no hospital — diz Alice. —

Passou a noite inquieto, sem poder dormir, e eu mesma fiquei

incomodada com isso. Mas o bom é que ele estava lá.

Assim que recebeu alta, Alice voltou para a casa da tia e

esperou.

Uma semana depois ele reapareceu para irem juntos registrar o

filho num cartório. Ela se lembra da cena:

— Ele passou a mão na minha cintura e falou que estava

sentindo falta da curva, referindo-se às minhas formas antes da

gravidez. Era um galanteador desajeitado.

O garoto foi registrado como Miguel Angelo Leminski, do signo

de Leão. Alice escolheu o nome Angelo. Leminski preferia Miguel,

nome do tio. Mas o garoto ficaria conhecido como Guegué.

Neste mesmo dia, Alice seria informada de que Leminski

deveria partir. A decisão tinha sido tomada. Carlos João estava no

Rio há uma semana — foi o primeiro a viajar — e tudo estava

programado com Ivan e Neiva, que deixariam o pequeno Kiko

temporariamente com os pais dela. Leminski seguiria na frente, uma

Page 117: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

espécie de batedor à procura de emprego e acomodação, e voltaria

para buscá-la, juntamente com o filho. Levava alguns números de

telefones anotados, referências de jornalistas para jornalistas, e

muita esperança de “pintar uma legal na Guanabara”. Três dias

depois eles embarcaram.

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CAPÍTULO 6

DELÍRIOS E NOITES CARIOCAS

Quando chegaram ao Rio de Janeiro, a 30 de julho de 1969, os

três curitibanos sentiam-se como se estivessem pisando na Lua,

repetindo o que fizera Neil Armstrong, o astronauta, duas semanas

antes. Eles desembarcaram na rodoviária, respiraram fundo e

seguiram direto para o Solar da Fossa, um casarão em Botafogo,

quase ao pé do morro do Pasmado. Era uma antiga mansão de dois

andares, com um pátio central e dezenas de apartamentos — 84,

para ser exato — ocupados por artistas, músicos, poetas e pessoas

excêntricas de um modo geral. O amigo Brodão era apenas um deles.

O imóvel estava com os dias contados, aguardando uma decisão

judicial para, finalmente, ser demolido e dar lugar ao primeiro

shopping center da cidade, o Rio Sul. Eles bateram no apartamento

de Brodão e esperaram eternos segundos até a porta se abrir. Ivan

lembra-se da cena:

— O Brodão apareceu e tomou um susto, ficou pálido. Muito

provavelmente porque tinha nos convidado sem esperar que

aceitássemos o convite. Em Curitiba ele deu uma de bacana, mas na

hora se borrou.

O problema estava criado. No Solar havia três tipos de

apartamentos: os com dois quartos, os de quarto e sala e aqueles

com apenas um cômodo. O apartamento de Brodão era dos menores

— pela fresta da porta Neiva viu uma mulher cozinhando no

banheiro — e a situação exigia uma solução rápida. Brodão teve a

idéia de alojá-los no apartamento ao lado, onde moravam Olavo, o

Page 119: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

hippie, e um amigo de nome Serginho, que estavam viajando. Eles

dormiriam ali aquela noite, apesar de estarem se sentindo “intrusos e

invasores”. No dia seguinte não tiveram tempo para tomar fôlego: os

donos do apartamento chegaram e um novo constrangimento estava

criado.

Apesar do mal-estar, a questão foi discutida civilizadamente e

chegou-se à conclusão de que eles continuariam acampados por ali

até a situação melhorar. E que fossem rápidos os movimentos. Todos

os mecanismos foram acionados, todos os contatos estabelecidos e

toda sugestão era bem-vinda.

Dias depois, Carlos João apareceu dizendo que estava na

cidade há um mês e ainda “batalhava” por um emprego. Estava

dormindo em Jacarepaguá, mas vinha ao centro diariamente para

visitas-relâmpago às redações:

— No meio daquele tiroteio, foi um grande contentamento rever

os velhos camaradas. Havia muito o que conversar. Traçamos

estratégias e decidimos colocá-las imediatamente em prática.

Carlos João, que também estava sendo desalojado da casa de

um amigo, iria morar provisoriamente no Solar, num outro

apartamento — e, de repente, eles estavam novamente juntos. Aos

poucos, foram se relacionando com os moradores daquela inusitada

“república dos prazeres”. Os dias se passavam e seus corpos se

acomodavam como água num recipiente. Carlos lembra-se com

delicadeza da Baiana, uma mulata que mantinha uma espécie de

pensão, servindo um PF (prato feito) barato e substancioso; havia um

roqueiro, Flávio Spírito Santo, que dava aulas de inglês nas horas

vagas; um jornalista da revista Manchete, que eles chamavam de

Moura. Tim Maia, Cassiano, Hildon formavam a brigada da soul

music. Os mais agitados eram os rapazes da banda Os Brasas, que

acompanhava o pessoal da Jovem Guarda fazendo um “trabalho fixo”

no programa de Carlos Imperial na tevê. Mas o folclore do lugar era

maior: falava-se que por ali passaram Caetano Veloso, Gilberto Gil e

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Paulinho da Viola. Carlos João encontrou certa vez a atriz Darlene

Glória pelos corredores, loura e espetacular — tendo ao lado um

sujeito forte e bronzeado:

— É o Mariel Mariscot, que algumas vezes aparece por aqui

cheirando a cadáver. Ele está namorando a Darlene — comentou um

morador.

O temido policial fazia parte de um grupo especial de xerifes

cariocas. Dizia-se, à boca pequeníssima, que era um dos homens

mais cruéis do Esquadrão da Morte. Quando ele passava pelos

corredores do Solar todos batiam três vezes na madeira.

Uma tarde, Carlos atravessou o túnel do Pasmado para tomar

cerveja com Leminski num botequim do Leme. Eles tinham umas

conversas pra levar:

— Eu chamei a atenção do Paulo, que estava desconectado do

mundo, para duas músicas que se apresentavam naqueles dias

conturbados: “Aquele abraço”, de Gilberto Gil, e “Irene”, de Caetano

Veloso. Comentei que elas significavam uma despedida do Brasil e fiz

um relato do que vinha acontecendo.

Em conversa com amigos jornalistas, no botequim em frente ao

Correio da Manhã, Carlos João ficara sabendo que os músicos

baianos tinham sido presos e detidos durante três meses na Vila

Militar, em Realengo. Agora estavam finalmente liberados, mas o

episódio fora considerado suficientemente grave e eles decidiram se

mudar para Londres. Até já tinham partido. A reação de Leminski

teria sido de desconsolo; ele ficou pensativo, mas logo tratou de

mudar de assunto. Como sempre acontecia nestas horas, ele reagiria

com o silêncio. Viviam-se os tempos do AI-5, o ato que suspendia as

garantias constitucionais e elevava à categoria de guerrilha o

confronto do aparato policial com as organizações de esquerda, em

todo o país. Como ficaria registrado nos escaninhos da boa memória,

1968 conquistou a fama (pela sincronicidade planetária), mas foi em

1969 que o pau comeu solto nos porões da ditadura. As rádios de

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todo o país colocavam no ar o último sucesso de Caetano Veloso:

Eu digo sim

Eu digo não ao não

Eu digo é proibido proibir...

Nestes dias de Solar da Fossa, um fato curioso se repetiria.

Sempre que Leminski surgia nos corredores, abraçado aos seus

alfarrábios — antologias de guardanapos, rótulos de cerveja com

anotações, folhas avulsas com textos originais —, as pessoas

sentadas nas varandas saudavam-no em voz alta:

— Lá vem o Leminski com aquele catatau embaixo do braço!

A repetição do refrão faria o monge: ele passou a chamar o livro

de Catatau. Até então o título mais provável era Zagadka, que

significa “enigma”, em russo-polonês.

Em carta a Augusto de Campos, escrita três meses depois da

chegada ao Rio, ele mandava notícias dizendo que “Descartes está no

trópico”, citando Panis et Circenses:

O nome da Obra vai ser (quase certo) CATATAU. Estou

morando no Solar da Fossa onde morou Caetano.

“Mandei plantar/folhas de sonho no jardim do solar...”.

Caetano plantou, Leminski colhe. A minha hora vai

chegar, está chegando.

Chegou o verão e com ele uma surpresa: Wilson Bueno aparece

no Solar para dividir temporariamente uma kitchnet com um amigo.

Como todos os outros, Bueno sonhava arrumar um emprego e

estabilizar a situação, alugar um apartamento na Zona Sul ou algo

assim. Enquanto o sonho não acontecia, canalizava sua libido para

os prazeres de Ipanema e seus jovens poetas da geração “desbunde”.

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Certa madrugada, tipo quatro horas da manhã, ele e Leminski

encontraram-se por acaso no jardim interno do Solar:

— O Paulo queria drogas e eu sexo. Estávamos os dois

tresloucados. Fazia uma noite quente e decidimos garimpar em

Copacabana.

Os dois saíram caminhando pelo Leme, passaram pelo Beco

das Garrafas, onde tomaram uma cerveja no balcão e,

disfarçadamente, sussurraram coisas no ouvido de alguns

noctívagos. Nada conseguiram. Continuaram caminhando sem

destino, mas a emenda mostrou-se pior do que o soneto. O dia

amanheceu, o sol explodiu em cores nas bancas de jornais e eles

sentiram um profundo desconforto com o calor. Era como se — de

repente — começassem a derreter no asfalto:

— O Paulo tinha uma caneta e um caderninho, onde fazia

anotações para o livro que estava escrevendo. Desanimados,

sentamos no calçadão e contemplamos inertes o oceano. Foi quando

ele resumiu o nosso drama: “Wilson, quer saber? É muito tarde para

as drogas e muito cedo para o amor.”

Em Curitiba, onde cuidava do pequeno Miguel e vivia uma

grande expectativa com relação ao futuro, Alice esperava. Em agosto

de 1969, Leminski escreveria uma carta onde, entre outras coisas,

confirmava que o livro deveria mesmo se chamar Catatau. E

terminava fazendo pose de galã juvenil:

— Menina, quem te deixou prenhe foi um poeta que passou por

aqui procurando uma etimologia.

Nestes dias, Leminski conheceria o músico Paulo Diniz, um

pernambucano de Pesquera, que se tornaria famoso ao colocar nas

paradas de sucesso uma música cujo refrão dizia:

“I don’t want stay here, I wanna to go back to Bahia”. (Leminski

tentou corrigir, “Está errado, tem um verbo auxiliar em excesso, o

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certo é “I wanna go back to Bahia”. No fim, foi gravado “errado”

propositadamente.)

A música chamava-se “Quero voltar pra Bahia” e falava do

exílio de Caetano Veloso, na Inglaterra — e este seria mais um ponto

de identificação entre os dois Paulos.

Diniz também morava no Solar — seu companheiro de

apartamento era o locutor de rádio Adelzon Alves — e nos dias

seguintes os dois passaram a se encontrar para tocar violão. Ficavam

horas fumando baseado e conversando sobre música e poesia, tendo

os jardins internos do solar como cenário. O curitibano ganhou

algumas aulas de música e retribuiu a gentileza com um baú de

informações e jogadas textuais. Foi a partir de uma frase pinçada

nas páginas do Catatau que surgiria o título de um novo sucesso

musical de Diniz: “Ponha um arco-íris na sua moringa.” (Depois que

a música foi gravada, Leminski retirou a frase do livro, em

homenagem.)

A situação no Solar da Fossa, que já estava difícil, subitamente

ficou impossível. Uma manhã, os quatro — Carlos João agora fazia

parte da trupe — tiveram que deixar o apartamento de Olavo.

Perambularam pela cidade o dia inteiro, sem ter onde ir. Quando a

noite chegou, aproximaram-se de um circo armado nas redondezas,

explicaram a situação para o domador e foram autorizados a ocupar

o picadeiro. Era uma segunda-feira e não haveria espetáculo à noite,

o que facilitou as coisas.

No dia seguinte, após uma rápida reunião matinal, eles

decidiram em regime de urgência procurar José Louzeiro, que

morava com a mulher e quatro filhos no Beco da Lagoinha, em Santa

Teresa. E para fazer qualquer contato, não havia como recorrer ao

telefone. A única maneira era subir de ônibus ou bonde — neste

caso, atravessando os Arcos da Lapa — e caminhar até a parte

posterior do morro. Eles preferiram o bonde. A casa ficava atrás da

Page 124: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

mansão da Nunciatura Apostólica, a representação do Vaticano no

Brasil.

O encontro com Louzeiro finalmente se revelaria uma dádiva.

Ele trabalhava como repórter policial no Correio da Manhã e na

Última Hora, e editava, “em regime de resistência”, o Jornal do

Escritor, um tablóide especializado em resenhas e notícias sobre o

mercado editorial. O jornal havia sido criado com objetivos políticos,

para fortalecer a existência do Sindicato dos Escritores. Louzeiro

conta como tudo aconteceu:

— Eu estava deitado, conversando com minha mulher, quando

alguém tocou a campainha. Fui olhar da janela de cima e ele gritou:

“Oi, Louzeiro, é o Leminski.” Eles entraram e explicaram o drama

que estavam vivendo. Minha mulher reclamou bastante, mas no final

eu os deixei ficar.

O depoimento de Carlos João confirma a ousadia desta

decisão:

— Foi um ato de coragem do Louzeiro hospedar aquele bando.

Eu conhecia um livro de contos dele, mas não o conhecia

pessoalmente.

De imediato, ficou decidido que o grupo ocuparia um quarto no

andar de cima até as coisas de acalmarem. Louzeiro lembra-se de

que, apesar do despojamento, às vezes exagerado, havia um clima de

respeito e ousadia entre eles:

— Eu não entendia muito bem quem formava o casal básico.

Porque não havia um casal básico. Eles estavam colocando em

prática um conceito teórico anarquista de primeira linha, sem

nenhum preconceito, sem nenhum peso.

Na opinião de Ivan, no plano afetivo o momento representava

para Leminski um compasso de espera, um tempo de observação:

— Parecia que o Paulo estava testando a firmeza do meu

relacionamento com a Neiva para tomar uma decisão na vida. Em

público, ainda se comportava como o marido dela, pois eles não

Page 125: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

estavam separados legalmente e ela ainda usava o sobrenome

Leminski.

Carlos João recorda-se de que naquele momento todos

pensavam apenas em conseguir um emprego, o que só iria acontecer

como resultado de muito trabalho:

— Na primeira noite, o Louzeiro deu um curso superintensivo

de jornalismo para nós. Ele jogou alguns jornais sobre a mesa e

começou a explicar como fazer um lead, o sub-lead etc.... Apesar de

colaborar com os jornais curitibanos, nós não sabíamos fazer jornal.

Era recomendável que eles tivessem pelo menos as noções

básicas do jornalismo de redação, para fortalecer a missão marcada

para começar na manhã do dia seguinte. Neste sentido, a

cumplicidade de Louzeiro seria fundamental:

— Falamos e tomamos vinho até às 4 horas da manhã, quando

fui para o meu quarto. O Leminski não dormiu. Ficou batendo na

máquina até amanhecer, fazendo exercícios de redação. Minha

mulher ficou uma fera. Logo pela manhã, eles tomaram café no

andar de cima e saíram.

A missão foi bem-sucedida. Leminski conseguiria trabalho

como copydesk n’O Globo e redator da Revista Geográfica, da editora

Bloch. Dois dias depois começaria a trabalhar também como

tradutor da agência Reuters. Tinha — em menos de uma semana —

três empregos. Em seguida, Ivan seria contratado pelo Correio da

Manhã para a função de redator, e Carlos João, repórter. Eles

agarraram as oportunidades com “unhas e dentes”. Diz a lenda — ou

a história, nunca se sabe — que ao negociar um longo trabalho com

a revista Manchete, algo como a História da Humanidade em

capítulos, o editor perguntou quanto tempo Leminski precisava para

entregar o primeiro; ele teria respondido, olhando para o relógio na

parede, que precisava apenas de uma máquina de escrever e uma

xícara de café. O jornalista sorriu argumentando que não havia tanta

pressa, mas que era admirável aquela determinação etc.... Era mais

Page 126: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

uma jogada de estilo, com a qual ele gostava de alimentar o mito da

própria competência.

Como parte da estratégia de chegada ao Rio, os curitibanos

passaram a escrever regularmente para o Jornal do Escritor, onde

exibiam suas habilidades profissionais e falavam de suas obras. A

presença e o trabalho do grupo no jornal seria marcante e ganharia

uma chamada na primeira página, onde Louzeiro anunciava “para a

próxima edição” o início da série “Vanguardas em Debate”, “com

reportagens que pretendem ser, ao mesmo tempo, didáticas e

polêmicas”.

Na edição de agosto, Ivan faria sua estréia com o ensaio “Atlas

Eclipticalis de John Cage”, onde argumentava: “Se você quer saber a

verdade, a música de Cage é aquela que ouvimos quando tudo está

quieto. Tudo aquilo que fazemos é música.” Na edição de setembro,

Ivan e Carlos João assinariam em parceria uma entrevista com Décio

Pignatari, sobre semiótica e comunicação, na qual o professor

anunciava a importância do computador “como linguagem comum

universal do fim do século”. Na mesma edição, Leminski apresentaria

dois trabalhos de sua lavra: um ensaio sobre o concretismo,

lançando luzes no movimento de poesia que se iniciara no Brasil nos

anos 50, e um longo texto intitulado “Poema com aparato persa” (ver

Apêndice 2), até agora inédito em livros.

Ficou decidido, ainda, que fariam uma abordagem sobre o

Catatau, com direito a entrevista de Leminski e amostragem de

fragmentos. Ivan foi destacado para escrever o artigo e encaminhar a

entrevista.

O material seria publicado na edição de novembro, com direito

a chamada na primeira página: “Paulo Leminski e Catatau: dois

nomes que vão dar o que falar.” Na página 6, o artigo de Ivan ganhou

o título “Descartes no Brasil Psicodélico & Tropical”. No centro da

página, uma foto de Leminski, de perfil, deixava transparecer uma

barba rala e os óculos de aros escuros. O livro foi apresentado como

Page 127: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

um texto de pensamento alto, ou seja, “recomenda-se a leitura em

voz alta”. O tradicional tom de polêmica com os grupos de poesia

engajada continuava em pauta:

— Os praxistas são ótimos rapazes, mas sem ira nem brilho.

São obras que não têm pegadas.

Ao lado da entrevista, quatro trechos do livro. Era a primeira

vez que se mostrava publicamente a prosa considerada

revolucionária do Catatau. Eis um trecho apresentado:

Disfarce, falésias de facécias... Meu falar é maior que eu:

o apaga-eu, o apogeu, apage! Vivo para falar ou falo

para viver? Falo mor de falir, falecer, o falecer maior e

disfalando, afalego e disafaleço. Ah, estarrecer de meu

estar e ser! Falo o que se falar; nem mars nem vênus; o

que se diz por aí, o que se diz aí; o que se fala, acaso,

nestas paragens é melhor falagem? (...)

Enquanto trabalhava nas diversas redações, Leminski jamais

deixaria de escrever o Catatau. Estudava e lia com a mesma

tenacidade de sempre. Passou a se aprofundar na obra de Charles

Peirce e traduzir trechos de Joyce. Num determinado período,

trabalhou no plantão da madrugada de O Globo. Neiva recorda-se

destes tempos:

— Ele acordava às quatro horas da madrugada para ir à rua

Irineu Marinho. Era um massacre... Depois passava em todas as

outras redações onde fazia trabalhos esporádicos.

Após um mês de rotina pesada, tinha chegado para ele,

finalmente, o dia de receber o primeiro salário. Louzeiro lembra das

conseqüências:

— Ele apareceu em casa com um bolo de dinheiro no bolso,

referente aos três salários. Fomos para um botequim em Santa

Page 128: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Teresa onde bebemos quase a metade do que ele tinha recebido. No

dia seguinte ele não foi trabalhar em nenhum dos empregos.

Ao mesmo tempo, todos continuavam colaborando com o

Jornal do Escritor, onde Ivan publicaria um novo ensaio, desta vez

sobre “Marshall McLuhan e a teoria da comunicação”. Fez entrevista

update com Quentin Fiori, o designer de McLuhan, que estava

hospedado num hotel da cidade. Carlos João escrevia resenhas e

secretariava a redação. A rapaziada se mexia e conquistava espaços.

Quer pelas relações de Louzeiro com a cidade, quer por

influência do grupo de poesia concreta, o fato é que eles ampliaram a

rede de contatos com os escritores cariocas. Ficaram amigos de José

Lino Grünewald, em cujo apartamento, no Corte do Cantagalo,

aconteceria uma reunião informal com Quentin Fiori, recepcionado

por intelectuais e artistas brasileiros. Em meio à tertúlia, Leminski

criaria um certo constrangimento no ambiente ao acender um

baseado, aplicado numa “marica” de caixa de fósforo, que oferecia

aos presentes como se fosse um cachimbo da paz. Foi interpelado

discretamente por Décio Pignatari que recusou o convite e lhe lançou

um olhar de censura, acompanhado de uma advertência:

— Eu não preciso de incentivo para fumar maconha, Leminski!

Já tenho idade suficiente para decidir sozinho o que fazer.

Para “engrossar o caldo” de suas atividades, Louzeiro

escreveria um artigo chamado “Os hippies que vieram em busca do

sol”. Falava-se neles como “os curitibanos”. Louzeiro admite que o

cotidiano da casa podia ser tenso em alguns momentos, devido ao

excesso de contingente, mas foi sempre criativo. Ele acredita ter

assimilado um conceito novo sobre a posse de livros e os cuidados

com eles. Sua vasta e bem conservada biblioteca compunha o

cenário de um dos cômodos da casa:

— Até conhecer o Leminski eu tinha ciúmes de livros, não os

emprestava com medo de não serem devolvidos. Ele, ao contrário,

dizia que livros eram para ser lidos e não guardados em prateleiras

Page 129: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

como objetos decorativos. Escrevia poemas em papel higiênico, nas

revistas, nos meus livros, em qualquer superfície... Eu aprendi com

ele que o importante não é o papel, mas o que está impresso nele.

O comportamento anticonvencional e a aparência de poeta

maldito podiam dar uma falsa impressão de Leminski, atestam seus

amigos desta época. Na verdade, ele poderia sem muito esforço ser

confundido com um mendigo (hippie) andarilho. Louzeiro lembra-se

de que levantavam-se suspeitas nos meios intelectuais sobre sua

competência com as línguas estrangeiras. Alguém teria perguntado:

“Afinal, quem já viu o Leminski falando inglês ou francês?”

— Eu vi — garante Louzeiro. — Foi na Embaixada da Índia, no

Rio de Janeiro. Era um evento cultural e o Leminski circulava pelas

rodas falando ora em inglês, ora em francês, com grande

desenvoltura. Esteve entre os alemães, falando obviamente em

alemão. Ele era uma pessoa muito pura e sem maldade.

Foi Louzeiro quem programou o encontro de Leminski com o

professor Antonio Houaiss, seu compadre. O que aconteceu naquela

noite foi um choque de gerações unidas pelo mesmo interesse: a

linguagem. Logo após as apresentações, Leminski mostrou um

poema de sua lavra para mestre Houaiss, que na condição de filólogo

obediente às normas gramaticais resolveu implicar com as

contrações pra e pro que apareciam no texto. Houaiss contestou.

Leminski explicou que a liberdade de poder escrever à maneira que

se fala era a alma da sua poesia. A discussão se prolongou noite

adentro e só ter-minou quando Leminski, decidido, anunciou:

— Pois bem, professor Houaiss, eu vou retirá-las agora em

consideração ao senhor, mas quando chegar em casa eu as coloco

novamente.

Foi também através de Louzeiro que ele e Ivan conseguiram

agendar um encontro com o crítico e escritor Otto Maria Carpeaux,

em seu apartamento de Copacabana. Eles conheciam e admiravam

Carpeaux pela História da literatura ocidental, no caso de Leminski, e

Page 130: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Uma nova história da música, no caso de Ivan, que relembra o

episódio:

— O Paulo tinha preparado um texto curto e grosso, de uma

lauda, sobre o tema “O Que é Poesia?”, onde defendia que a poesia

era o nada. O Carpeaux leu, colocou o papel de lado e não fez

nenhum comentário. Nós chegamos com alguma expectativa e

descobrimos que o professor era gago. Foi uma frustração, pois o

Paulo gostava de conversas rápidas, raciocínios fulminantes... aquele

pique!

Eles saíram do apartamento do professor mais irreverentes do

que nunca, sugerindo que o episódio tinha sido muito engraçado.

Riram desbragadamente “com todo o respeito” e decidiram tomar

uma cerveja num botequim para arrematar a conversa e baixar a

pressão.

Para Alice, a espera em Curitiba representava um momento de

dúvidas. Tinha sido combinado que Leminski mandaria as cartas

para o endereço dos pais dele, no Seminário; seria uma forma de,

esporadicamente, Alice poder levar Miguelzinho para visitar os avós.

De fato, isto aconteceu algumas vezes, mas ela nunca encontrou

uma carta especialmente para ela, apenas recados dentro de uma

carta; algo do tipo “diga para a Alice que já estou preparando etc....”.

Depois de seis meses, ela tomou uma decisão: arrumou as malas e

viajou para o Rio. Antes, deixou o cunhado Pedro, com quem vinha

mantendo uma boa relação de amizade, saber disso. Ficou três dias

na cidade e, surpreendentemente, não procurou por ele. Na segunda-

feira estava de volta a Curitiba. A estratégia funcionou. Assim que

soube, Leminski mandou uma carta urgente:

— O que está acontecendo?? Está tudo bem?!...

Alice respondeu com outra carta dizendo que nada estava bem,

que, após seis meses de silêncio, o vazio de notícias tinha um

significado claro para ela. Cinco dias depois ele voltou. Alice descreve

Page 131: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

a cena:

— Eu estava trabalhando numa loja de acessórios de

automóveis, quando ele me apareceu encostado na porta, fazendo

pose ao lado do irmão. Minhas pernas amoleceram, mas eu disfarcei.

Ele falou: “E aí, boneca?”

Após uma história intensa de amor, um filho recém-nascido e

seis meses de silêncio, Leminski continuava fazendo o jogo da

sedução, chamando-a de boneca.

Neste momento — e cercada por essas circunstâncias — Alice

faria uma descoberta importante, fruto de suas próprias suspeitas: a

de que a “genialidade” de Leminski e suas excepcionais qualidades

intelectuais — e mesmo de personalidade — haveriam de existir em

detrimento de algum outro aspecto de seu caráter — e logo ela

descobriu que era do emocional. Ele era capaz de fazer gestos

intelectualmente grandiosos e arriscados mas, ao mesmo tempo,

mostrar-se inepto para pequenas tarefas, como trocar lâmpadas,

tirar documentos ou, simplesmente, demonstrar afeto consigo

mesmo. Alice percebeu que o lado “responsável” da vida era uma

violência para ele, que estava profundamente envolvido com o mundo

das idéias e dos pensamentos.

24 de dezembro de 1969. O casal passa as festas de final de

ano separados. Alice e Miguel na casa dos pais dela e Leminski no

Seminário. Eles se encontravam diariamente para namorar e fazer

planos para o futuro. Neste dia, Leminski apareceria dizendo ter

composto uma música enquanto tocava violão com Pedro — aquela

que seria a sua primeira canção, “Flor de cheiro”:

Você tem o cheiro de uma flor

eu não me lembro mais

lilás, jasmim, incenso

Page 132: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

amor-perfeito e sassafraz

flores de há muito tempo atrás

Nesta época, teria início, informalmente, uma intensa parceria

musical entre os irmãos, desenvolvida à custa de muitas talagadas

de conhaque ou qualquer outra bebida forte e barata. Certas vez,

Pedro surgiu com a primeira parte de uma música (inclusive a

melodia) que vinha chamando de “Oração de um suicida”:

Vejo nos teus olhos tão profundo

as durezas que este mundo

te deu pra carregar

E vejo também

que sentes que tem

amor para dar

Perdi-me na vida, achei-me num sonho

A vida que levo não é a que quero

Não quero mais nada...

Pedro mostrou para o irmão observando que estava faltando

uma segunda parte, que eles poderiam criar juntos. Leminski, então,

apresentou uma sugestão de letra e melodia — que acabou sendo a

definitiva — na qual alterou o sentido original do “suicídio”,

transformando-o em ameaça física ao planeta:

Quando a terra se acabar

Você vai chorar

Não adianta mais

Vendo esta terra não compensa

Rezando na presença

De um gigante cogumelo

Page 133: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Teu retrato é poeira

Luminosa nebulosa

Brilha tanto e ninguém vê

Era um mundo tão bonito

Caprichado de milagres

Deus gostava de florir

A música “Oração de um suicida” passou a ser o “carro-chefe”

da produção doméstica. Pedro era o intérprete e tinha encontrado

uma dicção misteriosa para cantá-la, como sugerindo uma referência

autobiográfica. Era o que ele chamava de “punch”. Pedro era visto

freqüentemente entre os alpinistas que escalavam o pico do

Marumbi, na Serra do Mar, onde era conhecido como Escoteiro. Suas

escaladas e porres acompanhados do violão — e com uma turma

divertida — acabaram influenciando o irmão que decidiu conhecer a

cabana na montanha. No dia 4 de janeiro de 1970, o Diário do

Paraná publicaria uma pequena nota com o título “No Marumbi

Leminski Terminará o Catatau”. A nota seguia dizendo que “o erudito

Paulo Leminski pretende passar dois meses vivendo numa cabana na

Serra do Mar, se dedicando totalmente à parte final de sua obra,

aguardada com vivo interesse nos meios literários do país”. A

intenção de passar uma temporada na serra revelou-se, no final,

muito remota. Nos dias seguintes Leminski e Alice decidiriam o rumo

de suas vidas de uma forma completamente diferente.

Foram horas de conversa sobre o que representaria para a

estabilidade da relação uma nova separação física. Alice estava

exigindo uma decisão e deixou isso claro. Leminski tentou

tranqüilizá-la, garantindo que voltariam juntos para o Rio, onde já se

considerava “estabelecido”. Por influência das duas famílias,

entretanto, ficou decidido que o pequeno Guegué ficaria em Curitiba

Page 134: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

sob a guarda de uma tia de Alice e de Dona Áurea, que dividiriam

esta responsabilidade. Foi um momento de amargura para Alice:

— Na ausência do Paulo, eu tinha centralizado toda minha

afetividade no Miguel. Sair de perto dele representou me dilacerar.

Mas nós fomos, apesar de tudo...

Quando colocou o pé no Rio, em março de 1970, Alice não quis

viver em comunidade. Alegando que não teria condições de acomodar

o filho sequer razoavelmente, propôs que se pensasse num local

definitivo para “erguer acampamento”. Neiva concordou

prontamente, pois vivia a mesma ansiedade com o pequeno Kiko —

e, assim, a temporada na casa de Louzeiro, que já durava quase dois

meses, chegou ao fim.

Eles alugaram dois quartos vizinhos numa pensão da rua

Hermenegildo de Barros, na Glória. Era uma casa de cômodos

tipicamente portuguesa que, na definição de Louzeiro, tinha a

qualidade de ser uma “cabeça-de-porco bem-comportada”. A pensão

ficava a poucos metros da casa de Paschoal Carlos Magno, um

benemérito da cultura que tinha vivido em Curitiba, onde ajudara a

fundar o Teatro do Estudante, em 1948. Alice arranjaria um emprego

como secretária num escritório de advocacia, no centro da cidade.

Leminski, com 12 quilos a menos, escrevia regularmente para as

revistas da editora Bloch. Eram tempos difíceis mas aguerridos, pois

da janela via-se o Corcovado, o Redentor, que lindo...

Houve um período em que tanto Leminski quanto Ivan e Carlos

João trabalharam juntos no Correio da Manhã, em diferentes setores.

Ivan na editoria de economia, Carlos no caderno de cultura — na

época editado por Celso Itiberê — e Leminski na chamada editoria

geral, cobrindo crimes e problemas de bairro. Fizeram amizades que

se mostrariam sólidas ao longo dos anos. Conheceram Reinaldo

Jardim, responsável pelo projeto gráfico do jornal, e Ruy Castro, na

Page 135: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

época deixando de ser “apenas” um repórter promissor para escrever

artigo “de fundo” para a revista Playboy e outros upgrades. Em seu

depoimento, Carlos João — que fora morar com um amigo em

Ipanema — reconhece que o Jornal do Escritor também tinha se

tornado um ponto de referência em suas vidas:

— O Wlademir Dias Pino, do poema-processo, e a turma de

jovens poetas, como Kátia Bento, costumavam aparecer. O Paschoal

Carlos Magno chegava oferecendo um livro e um dinheirinho para o

meu almoço.

Leminski foi convidado a participar de um ciclo de debates

sobre literatura no Museu de Arte Moderna, o MAM. Ele seria visto

circulando no auditório com os rascunhos do Catatau embaixo do

braço, distribuindo cópias para os participantes. Em seguida, houve

uma confusão com a polícia que quase terminou mal para o seu

currículo. Alguém falava ao microfone, quando agentes do DOPS

infiltrados na platéia se aproximaram e lhe deram voz de prisão.

Carlos João estava por perto e ficou atento. Eram tempos difíceis e

todos sabiam que qualquer mal-entendido poderia resultar em

prisão, tortura e, até mesmo, desaparecimento e morte dos

suspeitos. Quando vislumbrou o poeta Décio Pignatari no saguão,

Carlos correu para informá-lo, pensando que, talvez, quem sabe, o

professor pudesse interferir em favor de Leminski. O tiro saiu pela

culatra:

— O Décio reagiu com irritação. Ele deve ter pensado que o

Paulo estava tendo problemas com drogas ou coisa assim. Na

verdade, os agentes suspeitavam que os rascunhos eram manifestos

subversivos. Algumas pessoas interferiram dizendo serem textos de

teoria literária. Os “homens” olharam os originais e liberaram o Paulo

que, como os policiais — mas por outro motivo —, sairia meio zonzo

da confusão.

Page 136: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Os tempos difíceis trouxeram problemas incontornáveis para o

casal, no ano do Milagre Econômico e do tricampeonato mundial de

futebol:

— O dinheiro começou a ficar curto — lembra Alice. — O Paulo

trabalhava muito mas a grana entrava de forma irregular, pois ele

continuava sem documentos e sem carteira assinada. Nós não

tínhamos o menor talento para administrar finanças. Para

sobreviver, passamos a almoçar no bandejão do Correio da Manhã.

Em meados do ano, Alice ficaria novamente grávida. A notícia,

paradoxalmente, trouxe alegria e apreensão para o casal. Assim que

sua barriga mostrou-se saliente, ela seria demitida do emprego.

Leminski adotaria um expediente inusitado para voltar para casa, no

final do dia, com alguns trocados: guardava o dinheiro que lhe

davam para o táxi e circulava de ônibus pela cidade.

Certa vez, ao voltar da cobertura de um crime no subúrbio, ele

criaria a sua primeira música espontânea, sem o auxílio de violão e

sem parceria, batendo o ritmo com as mãos:

Mãos ao alto

isto é um assalto

um insulto um sinal

O senhor me parece um homem de bem

Eu prefiro o caminho do mal

Não discuto

Eu chuto tudo pra escanteio (repete)

Sou lobisomem na lua cheia

Criança domingo no futebol

Eu tenho um Exu atrás da orelha (repete)

Procurando a navalha vermelha

O estanho jorrando à bangu

Page 137: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

O entusiasmo com a experiência foi de tal ordem que o amigo

Louzeiro decidiu lhe dar um violão de presente. Sua primeira

providência foi comprar o método “Paulinho Nogueira”, com o qual

ensaiava diariamente, confirmando sua vocação para o aprendizado

autodidático. Trabalhava exaustivamente para tirar no violão as

músicas de que mais gostava. E tirou. Logo se faria acompanhar em

qualquer clássico da bossa-nova ou em suas próprias canções. Seu

desempenho durante os ensaios era simplesmente infernal. Ficava

horas tocando a mesma nota musical, batendo com tal força nas

cordas que os dedos começavam a sangrar. Mas ele não parava e o

sangue esguichava pelo quarto. À custa do sofrimento de todos,

incluindo os vizinhos, ele aprenderia a tocar violão em poucos meses.

Ou, como preferia, “o suficiente para me acompanhar”.

Em julho de 1970 aconteceria o meu segundo encontro com

Leminski, que eu aprenderia a chamar de Paulo, desta vez num

botequim da rua Cândido Mendes, na Glória, a poucos metros da

pensão. Eu fora levado por Carlos João, meu conhecido dos tempos de

estudante, que naqueles dias praticamente morava na redação do

Jornal do Escritor. Carlos promoveu as apresentações formais como

se o encontro de dois anos antes, no La Fontana de Trevi, não tivesse

existido — e assim deveria ser. Em seguida, Leminski abriu um sorriso

maroto e disparou, com o dedo em riste:

— Curitibano em férias no Rio está sempre com dinheiro. Paga

um mel?

Eu não estava em férias (participava como repórter de um

encontro internacional da Columbia Pictures), mas lhe ofereci várias

rodadas de uma batida de mel extremamente açucarada e com efeito

devastador, como pudemos comprovar. Falamos de vários assuntos,

mas o que mais me impressionou foi a sua eloqüência, construída a

partir de uma mistura equilibrada de gírias e expressões sofisticadas.

Page 138: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Vestia um sobretudo escuro — apesar do calor —, tinha os cabelos

compridos e as unhas sujas e quebradiças. Mas sua conversa

mantinha-se inteira: explicou as bases temáticas do Catatau,

demonstrou erudição ao falar da história do Brasil, do movimento

hippie na Califórnia e da modernidade na qual a MPB estava

entrando pelas mãos de Caetano Veloso. Ilustrou a conversa

confessando que não gostava de praia, que seria impossível para

qualquer “pensador” viver no Rio de Janeiro durante o verão: “É como

Descartes na Olinda do Catatau, o sujeito entra em parafuso.” Fez

algumas piadas de fino humor e, num determinado momento, me

pareceu um mascate da cultura: a cada efeito causado na platéia,

pedia um “mel” para o garçom.

Depois, me convidou para conhecer a pensão e o “resto do

pessoal”. Lá estavam Alice, Neiva e Kiko, então com dois anos. Ivan

estava trabalhando. Era um quarto pequeno mas aconchegante, onde

o pé-direito do casarão fazia a diferença. Um janelão, com a boca

escancarada, transformava em brisa de fim de tarde as rajadas de

vento que desciam pelas escadarias de Santa Teresa. Sem dar trégua

para a conversa, sentamo-nos no chão em formação indígena e

fumamos dois baseados, que circulavam em sentido contrário:

— Ssshhh...

Num determinado momento, ele abriu a gaveta da escrivaninha,

tirou uma caixa de fósforos e fez um sinal misterioso me pedindo para

olhar o conteúdo. Havia duas pílulas brancas:

— Dois ácidos — murmurou. — Dois LSDs dos bons. Estou

guardando para tomar no campo.

— Você sabe a procedência? — perguntei.

— Vem da Califórnia, é claro!

Ele aproveitou para traçar o perfil de Timothy Leary, o guru da

geração lisérgica, “certamente uma das figuras mais inquietantes

nesta virada de década”, arriscou. Falou o que sabia (e ele sabia

alguma coisa) sobre o Lisergic acid diethylamide, o semi-sintético que

Page 139: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

estava se tornando o protótipo da droga alucinógena. Mais tarde fiquei

sabendo que ele jamais tomou estes ácidos, que foram surrupiados

por Paquito, o amigo de hélio, durante uma visita de fim de semana. A

reação do Paulo, quando descobriu o prejuízo, teria sido explosiva:

“Vou matar o vagou do Paquito.” Os outros consideraram o episódio

“uma obra do destino”, um castigo merecido pelo egoísmo de não

querer dividir os ácidos em quatro e proporcionar uma “viagem

coletiva”.

José Louzeiro era um dos poucos amigos a visitá-los na pensão

da Hermenegildo de Barros. Até por uma questão de espaço, eles não

costumavam “receber” em casa. Quando isso acontecia, compravam

um garrafão de vinho Sangue de Boi, colocavam no centro da roda e

a conversa se prolongava por várias horas. Carlos João chegava no

meio da noite. Segundo Louzeiro, tudo era muito estimulante:

— O Leminski falava horas seguidas sem nenhuma

contestação. Não era submissão, mas o prazer de ouvi-lo falar. Ele

era um sonhador e eu sempre gostei de sonhar. Ele gostava de ler

trechos do Catatau e nós gostávamos de ouvir. Estas noitadas eram

uma delícia.

Em agosto, Alice e Leminski decidiram que era hora de buscar

o filho em Curitiba — que já tinha um ano e começava a dar os

primeiros passos. Eles foram, mas encontram uma série de

dificuldades para separar o neto dos avós. Os pais de Leminski

tentaram dissuadi-los a não voltar para o Rio, uma vez que Alice

estava grávida e as dificuldades financeiras podiam continuar.

Depois de muita conversa, a decisão final seria ainda mais

surpreendente: a mãe de Alice, dona Ângela, seguiria junto para

garantir os cuidados da criança, e o irmão Pedro os acompanharia

como uma espécie de “enviado especial” dos pais dele. Na verdade,

Pedro queria participar da “festa” que, supunha, estava acontecendo.

Page 140: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Gravou uma fita com suas canções e foi para a rodoviária, com o

coração cheio de esperança. Sonhava em esbarrar “por acaso” com

Caetano, Gil, ou alguém que demonstrasse interesse por suas

músicas.

A despeito de todas as atribulações e do excesso de contingente

no quarto de pensão — agora eram quatro adultos e uma criança —,

Leminski continuava levando com disciplina espartana seus estudos.

Lia vorazmente Laforgue — que considerava “romântico no bom

sentido” e do qual traduziria alguns poemas curtos. Preparou um

artigo para a revista Ele e Ela com o título “A mulher é a mensagem”,

onde sustentava que McLuhan nascera obsoleto, pois o sentido de

“Medium is Message”, sua obra-referência, estava em Santo Tomás.

Ao mesmo tempo, relia com sofreguidão Les Paradis Artificieis, de

Baudelaire, livro que considerava “tremendo” por vincular-se às

experiências psicodélicas modernas. Ao mesmo tempo, decidiu

apresentar algumas pautas aos editores do Pasquim, elaboradas a

partir de um enfoque sobre a nova cultura underground.

Alice começaria a fazer seus primeiros poemas nesta época,

sem mostrar para ninguém, só para Leminski. Era o início de uma

parceria também profissional entre eles.

Em seu depoimento, ela não deixa dúvidas sobre o que

representaram estes três meses vivendo no quarto superlotado:

— Foi uma barra! Os dois irmãos bebiam alucinadamente,

tocavam violão até não poder mais e no final brigavam.

Logo depois, um tanto quanto frustrado, Pedro decidiria

abandonar o sonho e voltar a Curitiba. A mãe de Alice, dona Ângela,

aos 64 anos, faria o mesmo.

Os melhores momentos deste período, sem dúvida, seriam as

visitas ao Pasquim, na rua Clarice Índio do Brasil, em Botafogo. Eles

costumavam parar no botequim da esquina para bater papo e tomar

Page 141: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

cerveja com os novos amigos. Um deles, o jornalista Luiz Carlos

Maciel, editava uma coluna de duas páginas com o título

“Underground” e seria contemplado, mesmo à revelia, com a fama de

um dos mais importantes gurus da imprensa brasileira. A tribuna

“alternativa” comandada por ele abordava uma extensa pauta de

assuntos pertinentes àqueles conturbados anos, desde as teorias de

Marcuse, passando pelas experiências lisérgicas dos pioneiros, até o

novo comportamento da juventude pós-68, com seus cabelos

compridos e o símbolo da paz. Aliás, “Cabelo” era o título de um

manifesto assinado por Jorge Mautner — que freqüentava as

paradas de sucesso com a música “Eu queria ser uma locomotiva” —

traduzindo para o “brasileiro” a onda internacional da peça Hair. Foi

uma receita de sucesso para um público específico, aquele unido

pelos mandamentos da contracultura. Maciel lembra-se do primeiro

encontro com Leminski, na redação do Pasquim:

— No início achei que se tratava de mais um maluco que

aparecia me procurando para discutir temas transcendentais. Eu

demorei um certo tempo para perceber que se tratava de um

intelectual, até porque ele não se comportava como tal. O Leminski

era o espírito ambulante da contracultura.

Pelas mãos de Maciel, Leminski publicaria no Pasquim o

“Indicionário”, uma seleta de gírias da época, analisadas sob o ponto

de vista das necessidades de fuga, como um código secreto de

linguagem. Era o sinal dos tempos. Em sua apresentação, Maciel

destacaria o caráter de vanguarda do trabalho:

— Tanto quanto sei, este Indicionário é a primeira tentativa de

codificação do dialeto mais falado no underground brasileiro, o

malaquês, o idioma do malaco ou vagau. O Leminski é um purista,

interessado na preservação da integridade do malaquês.

Alguns dos 70 verbetes apresentados tinham suas explicações

tão misteriosas quanto os próprios substantivos: mocó, necessa,

babilaca, pinote, birita, sujeira etc.... Este era, em resumo, o

Page 142: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

vocabulário do fumador de maconha. Muitas dessas expressões

acabariam assimiladas pela cultura popular e hoje fazem parte do

cotidiano da classe média, mas foram forjadas no lado marginal

daquela sociedade. Assim:

Babilaca. Por dentro. Bom tê-las à mão. Também se diz

“do-cuma”.

Birita. Tem sobre a água a vantagem de levantar a

peteca. Vagau não é biritão. Etil não facilita a ação, o

vagau é prático. “Birita só pega bem na continuação”

(Provérbio Malaquês).

Berro. Mantém o próximo à distância. Carregar é

sujeira. Dá tecos.

Bode. Variedade de dormir, caindo na cama para

acordar 18 horas depois. Sem sonho.

Pinote. O lance maior. Modalidade esportiva favorita do

vagau. Distingue-se da corrida olímpica de fundos

porque nesta o monitor dá um tiro para o ar. No

pinote, o vagau se ganha levando tecos sem conta

pelas costas.

(Ver Apêndice 3.)

Em contato com Maciel, Leminski teria notícias dos

movimentos de vanguarda no mundo (eles falavam muito em Jimi

Hendrix e Janis Joplin, tentando adivinhar quem seria o próximo a

morrer de overdose; elegeram Joe Cocker como barbada) e de

Caetano Veloso, em particular. Ele e o irmão Pedro gravaram uma

fita com várias músicas, que tentariam, através de Maciel, fazer

chegar aos ouvidos de Capinam ou Gal Costa. Tudo deveria ser feito

no melhor estilo maçom, por baixo dos panos. A grande imprensa

vivia uma rotina de censura — e as notícias do calabouço e dos

Page 143: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

confrontos urbanos ou rurais eram constantemente confundidas com

boatos. Nada se confirmava, tudo ficava resumido a insinuações.

Esta situação de silêncio e medo acabou favorecendo o surgimento

de uma “imprensa alternativa”, a guerrilha da informação. Maciel

fora destacado pelo editor Tarso de Castro para conseguir uma

colaboração regular de Caetano para o Pasquim, diretamente de

Londres, o que acabaria acontecendo.

Na redação do Pasquim, os Leminski conheceriam também a

jornalista Martha Alencar, recém-casada com o ator Hugo Carvana, e

durante algum tempo a única mulher na redação do jornal. Para

Alice, identificada com Martha inclusive pelo que havia de feminista

na sua atitude, a jornalista foi uma espécie de “anjo da guarda” do

cotidiano:

— Ela nos emprestaria dinheiro algumas vezes, para suprirmos

as necessidades básicas. Era uma pessoa doce e corajosa. O dinheiro

era pouco, mas o significado, grandioso.

No final de 1970, apesar de todo o esforço desprendido,

Leminski continuava produzindo muito e recebendo pouco. Tomava

várias “bolinhas” por dia, para se agitar e perder o apetite. Em carta

a Augusto de Campos, de 30 de dezembro, ele diria:

Prossigo meu trabalho de formiga das letras treinando

para o grande salto: cataqual? Continuo extraindo as

séries estocásticas (estoxicásticas, melhor melhorando)

da língua. Ouço as pessoas (do povo prefiro,

ascensoristas, flamenguistas, crioulos, que manejam

maravilhosamente o código oral do português)... (Ver

Apêndice 4.)

Essa extraordinária fertilidade criativa e intelectual era o

Page 144: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

sintoma de uma época rica em contradições, conflitos e hipertensões.

Houve um momento — quando a gravidez de Alice e as dificuldades

financeiras estavam bastante acentuadas — em que havia chegado

para eles a hora de se haver com todas as crenças da contracultura e

adequá-las à responsabilidade de colocar gente no mundo. Os dois

caminhos, que sempre lhes pareceram opostos, se encontravam

finalmente. A questão era séria e algo tinha que ser feito:

— O Paulo não podia ser contratado na Enciclopédia por falta

de documentos. O dinheiro do primeiro salário ainda estava retido no

banco. Eu já estava entrando no último mês de gravidez quando

decidimos voltar a Curitiba.

A retirada estratégica foi feita em duas etapas, para evitar

desgastes com uma viagem de quase doze horas na poltrona de um

ônibus. Eles pararam em São Paulo por uma noite, e ficaram

hospedados na casa de Augusto de Campos. Alice recorda-se de que

o filho de Augusto, Cid, então com 13 anos, mostrou-se fascinado

pela sua enorme barriga:

— Ele pediu para passar a mão, sem saber que ali estava

Áurea, que no futuro seria sua amiga.

Esta noite eles não saíram de casa. Ficaram bebendo vinho e

conversando. Falaram sobre a volta a Curitiba e do filho que estava

para nascer. Atualizaram as conversas sobre literatura e a nova

roupagem da poesia, a música popular. Augusto estava em contato

com várias experimentações na área, estudando e se aproximando de

músicos como Anton Weber, Caetano Veloso e outros poetas do

gênero. A certa altura, percebendo que a camisa de Leminski estava

rasgada, Augusto lhe ofereceu uma do seu guarda-roupa, o que foi

prontamente aceito. Eles foram dormir cedo esta noite, pois no dia

seguinte teriam um longo trecho da viagem para percorrer. Ao deitar-

se, Alice experimentou a sensação de que a criança poderia nascer a

qualquer momento.

Page 145: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

CAPÍTULO 7

O DIA DA CRIAÇÃO

A Curitiba dos anos 70 é uma cidade muito diferente daquela

arquitetada pelos pioneiros, movida a carroças e rodas d’água, e

onde — até meados dos anos 60 — ainda se podia contar com a

entrega diária de pão e leite na porta de casa. A cidade entrou na

nova década passando por uma mudança radical em sua fisionomia,

acompanhada de um crescimento populacional fulminante,* depois

de ser tratada no século XVIII como “localidade quase esquecida e

praticamente isolada”, segundo o historiador Ruy Wachowicz, em

sua História do Paraná. O ano de 1971, portanto, vai aparecer neste

contexto como o divisor de águas em matéria de modernização

urbanística da cidade.

Foi por um ato de decreto, assinado pelo então governador

Haroldo Leon Peres, em plena ditadura militar, que o arquiteto Jaime

Lerner tornou-se prefeito de Curitiba pela primeira vez. Este teria

sido um dos poucos atos administrativos de Peres, que ocupou o

governo por apenas oito meses, antes de ter seu mandato cassado

por corrupção, numa denúncia inédita envolvendo espionagem,

empreiteiros e propinas. Lerner sobreviveu à crise política e exerceu

até o final o seu mandato. Fez uma administração de impacto,

promovendo profundas mudanças na cidade, que ganharia novos

espaços para os pedestres e um conceito cívico de participação

comunitária. Nos anos seguintes, como um exemplo de postura

politicamente correta, seriam criados parques e locais públicos

* Em 1944, quando Leminski nasceu, Curitiba tinha 140 mil habitantes; em 1970, o

Page 146: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

arborizados, elevando de meio metro a 50 metros quadrados as áreas

verdes por habitante, ou seja, quatro vezes mais que o padrão

mínimo — de 12 metros — recomendado pela ONU e pela

Organização Mundial de Saúde.

O centro da cidade se transfiguraria num piscar de olhos. Os

bares e cafés, beneficiando-se das obras de circulação, ampliavam

seus domínios, instalando mesinhas e canteiros nas calçadas. Foram

colocados bancos de praça, cabines de telefone — em acrílico azul —

e bancas de jornais — também em acrílico — ao longo da avenida

central, a Rua das Flores (flores que, felizmente, não eram de

acrílico). No outro lado da cidade, um velho paiol de pólvora seria

desativado e remodelado para dar lugar a um teatro de arena, o

Teatro Paiol. O curitibano fazia parte da paisagem urbana e parecia

gostar disso. A Boca Maldita, reduto popular e ponto de encontro de

pessoas influentes na cidade, ganhava fama nacional como

“formadora de opinião” por sua capacidade extraordinária de

espalhar boatos, erguer e destruir reputações.

Neste sentido, a popularidade do prefeito Lerner acompanharia

o ritmo das obras. Ele se tornava o darling da classe média

curitibana ao ser identificado como símbolo de administrador

eficiente e desenvolvido. Criou um marca de modernidade

administrativa com a qual apoiaria o marketing de suas futuras

campanhas políticas.

As forças de oposição a Lerner, entretanto, contra-atacavam

acusando o prefeito de promover sessões de “maquiagem” no centro

da cidade, deixando de lado as obras de saneamento básico na

periferia. Apontavam estatísticas indicando o surgimento de bolsões

de miséria ao redor de Curitiba (que se consolidariam nos anos

seguintes, formando as primeiras favelas da cidade), enquanto os

bairros privilegiados continuavam cada vez mais privilegiados. Anos

mais tarde — como se isso pudesse ser considerado um ajuizamento

censo apontava 650 mil.

Page 147: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

— Lerner ocuparia novamente o cargo de prefeito por mais duas

ocasiões, uma delas escolhido pelo voto direto nas urnas. A partir

dos anos 80, com a normalização do processo democrático, ele seria

escolhido duas vezes governador e elegeria seu sucessor na

Prefeitura — o engenheiro Rafael Greca de Macedo — perpetuando

um estilo e uma marca de administração.

Quando chegaram a Curitiba, a 28 de fevereiro de 1971,

Leminski, Alice e Miguelzinho foram para uma pensão na rua

Ermelino de Leão, no centro da cidade. Era um casarão antigo, com

vários quartos e um corredor comprido interligando todos os

aposentos. O quarto deles era o último. O dono da pensão, um

homem gordo, careca e baixinho, tinha o costume de aparecer

sempre de forma inesperada, como se estivesse permanentemente à

espreita. Leminski o apelidaria de Minotauro. A pensão era chamada,

então, O Labirinto do Minotauro.

A volta a casa revelou-se providencial: na madrugada do dia

seguinte, Alice começou a sentir fortes contrações. Miguelzinho,

então com um ano e oito meses, ficou assustado com a

movimentação noturna, vendo sua mãe sendo levada às pressas para

um hospital. Ele foi junto no táxi, pois não havia como deixá-lo em

casa sozinho.

Áurea Alice Leminski nasceu de parto normal a 2 de março, ao

meio-dia; signo de Peixes. O nome fora escolhido dias antes e era

uma homenagem “às duas mulheres” da vida dele. Leminski chegou

ao Hospital São Vicente novamente atrasado, já no final da tarde,

mas sem provocar mal-estar. Estava apenas atrapalhado. Para Alice,

o mais desesperador seria receber alta e ter que voltar para a

realidade do Labirinto:

— Morávamos todos num quarto e agora tinha um bebê que

trocava o dia pela noite, chorando de madrugada. Era uma cama de

casal para os quatro. O Paulo, para se aliviar desta tensão,

Page 148: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

encontrou a saída da rua e passou a freqüentar novamente os bares

da cidade.

Nestas circunstâncias aconteceria o meu terceiro encontro com

Leminski, numa noite agitada no bar Cachorro Quente, entre cervejas

e doses de conhaque. Faziam parte da roda o irmão Pedro — sempre

com o violão —, o fotógrafo Haraton Maravalhas e o crítico Lélio

Sottomaior, que reapareceria, surpreendentemente, com uma

namorada. Na condição de colaborador do suplemento “DP Domingo”,

do Diário do Paraná, editado por Aroldo Murá — o que me fazia,

portanto, um herdeiro do grupo Áporo, ou algo assim —, propus a

Leminski uma entrevista onde poderíamos atualizar seus conceitos

sobre arte, literatura e vida. Ele concordou e passamos a noite

conversando sobre os temas que seriam abordados na reportagem —

que eu apresentaria depois para Murá como “a polêmica do próximo

fim de semana”. Falamos de McLuhan, poesia concreta,

megaprovíncia, Woodstock — valorizando a performance de Joe

Cocker e a consolidação do rock como expressão musical e agora,

mais do que nunca, também de mercado.

Sua aparência física tinha se alterado um pouco desde aquele

encontro no Rio, meses atrás. Agora ele usava os cabelos mais curtos

e o rosto estava mais limpo, embora os dentes estivessem mais

estragados e os óculos continuassem sujos. Como sempre, tinha

planos para amanhã e para algumas semanas depois, sempre

envolvendo atividades intelectuais. O máximo de lazer programado,

por sugestão do irmão Pedro, eram as excursões ao pico do Marumbi

com os alpinistas.

A certa altura, atravessamos a rua e fomos à farmácia Minerva

comprar alguns frascos de xarope Romilar, com o qual garantimos o

bom ritmo da conversa até o dia clarear... Ele não falava mais em

“tomar picos”, apenas em conseguir alguns ácidos para “agitar os

macaquinhos do sótão”, expressão que usava para dizer “fazer uso da

Page 149: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

parte de cima do casarão, ou seja, o cérebro”. Nesta noite, Pedro

apresentou uma música nova, em ritmo de balada, que funcionaria

como um hino da turma, por alguns meses:

Quando a noite cai

Sobre a cidade

Não vou ficar

De novo na saudade

Junto uma grana e vou buscar

Maria Joana,

Junto uma grana e vou buscar

Maria Joana

Maria Joana já passou minha paz pra trás

Há muito tempo eu não sou o mesmo rapaz

Como sempre acontecia, bebemos, rimos, cantamos e fomos para

nossas casas com o dia amanhecendo.

Alice relata que após uma dessas madrugadas boêmias, em

março de 1971, Leminski chegaria em casa cantarolando a música

“Luzes”, que tinha acabado de compor:

Acenda a lâmpada às seis horas da tarde

Acenda a luz dos lampiões

Inflame a chama dos salões

Fogos de línguas de dragões

Vagalumes

Numa nuvem de poeira de neon

Tudo claro, tudo claro

A noite assim que é bom

Page 150: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

A luz acesa na janela lá de casa

O fogo, o foco lá no beco e o farol

Esta noite, esta noite

Vai ter sol

Eles ficaram quase dois meses morando na pensão do

Minotauro e fazendo as refeições na casa dos pais dele, no

Seminário. Os cursinhos pré-vestibular passaram a assediá-lo com

propostas tentadoras, melhorando sensivelmente o astral da família.

O ex-colega Sanches, agora à frente do Curso Camões, fez uma

primeira proposta salarial de balançar o coreto. O concorrente, Dr.

Bardhal, ofereceu mais e acabou levando seu passe por um salário

de primeiro time. Com boas perspectivas de trabalho e duas crianças

para criar, eles decidiram alugar uma nova casa e foram morar na

rua Brasílio Itiberê, na Água Verde, a poucos metros do estádio do

Atlético Paranaense, a Baixada. Era um casarão pintado de amarelo,

com fogão a lenha, amplos quartos e janelões de madeira. O bairro

era residencial e agradável. Para ajudar Alice na tarefa de casa e nos

cuidados com as crianças, foi contratada uma empregada doméstica,

a Mary, uma “polaquinha por excelência”. Alice escreveria mais tarde

em suas memórias:

— Nossa primeira casa, de verdade. Velhos e novos amigos.

Marinho Galera, Getúlio Tovar, Paulo Bahr e o mano Pedro, todos

parceiros.

Na lembrança do amigo Marinho Galera, um paulista de

Araraquara e exímio tocador de viola, convivem ainda hoje,

claramente, a imagem de uma casa espaçosa e uma criança recém-

nascida — Áurea —, sendo ela objeto de todas as preocupações

durante as estridentes noitadas de música:

— Como não havia telefone, a solução era passar de carro pela

Page 151: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

casa dos Leminski. Era comum encontrarmos as janelas abertas e as

luzes acesas mesmo depois de três horas da madrugada. Nos fins de

semana, quando todos apareciam com seus instrumentos, ele

aproveitava para aprender um pouco de violão. Era de uma

tenacidade incrível.

Das cantorias no casarão surgiria a primeira formação musical

entre eles, um esboço de conjunto, com o irmão Pedro e o estudante

de medicina Paulo Bahr no segundo violão: estava criado o trio Duas

Pauladas e Uma Pedrada. Para animar a festa, eles passaram a

freqüentar o bar da moda, o Bactuc, uma cave no alto da Alameda

Cabral, onde um pequeno palco e as luzes dos refletores estavam

sempre à disposição de fregueses talentosos. O lugar, decorado com

simplicidade e modernidade gótica — sacos de estopa colados nas

paredes —, era administrado pelos gêmeos Luiz e Toninho Stinghen,

que costumavam estimular sessões improvisadas ao convidar para

um drinque de fim de noite os músicos eventualmente em temporada

na cidade. Houve uma jam inesquecível com Vinícius de Moraes e

Toquinho, na qual a grande atração foi Marinho Galera, com sua

viola. No final, Vinícius estimulou: “Rapaz, você toca muito bem,

pode viver disso se quiser.” Outra vez, Fafá de Belém agitou os

porões do Bactuc, escandalosa, até o dia amanhecer. Ou, ainda, uma

noite em que os músicos da banda Expresso 2222, de Gilberto Gil,

criaram um verdadeiro happening fazendo um som acústico

descontraído e informal. Rita Lee e os Mutantes também apareceram

provocando frísson na madrugada.

Resumindo, o Bactuc fervia depois de meia-noite e apenas

conseguiam entrar no recinto aqueles que cumprissem as exigências

da casa: ter uma boa recomendação ou um sobrenome ilustre no

mundo artístico. A gerência não fazia questão do freguês comum,

aquele de fim de semana, até porque não havia espaço físico para ele.

O trio Duas Pauladas e um Pedrada faria ali algumas apresentações

informais à guisa de ensaio. Cantavam coisas do tipo:

Page 152: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Esta voz está sendo ouvida em Marte

Esta voz está sendo ouvida em Marte

Esta voz está sendo ouvida em Marte...

Ou em qualquer parte além da morte

Desta vez deu sorte

Ou talvez nem volte

É uma pena

É uma pena que um rapaz

Tão moço, tão magro e tão profundo

Não fique pro almoço

Não fique pro jejum

Este rapaz não vai dar um quilo certo, mamãe

Este rapaz não vai ser muito certo, papai

Este rapaz não vai dar nada certo, não, de jeito nenhum

Esta voz está sendo ouvida em Marte

(letra e música de Paulo Leminski)

Logo surgiu uma oportunidade para o trio participar de um

programa de televisão, no Canal 4, TV Iguaçu. Era uma apresentação

em um programa vespertino. O produtor destacado para acompanhá-

los era o conhecido Paulo Vítola, agora um homem de televisão, que

marcou hora no estúdio e cuidou pessoalmente dos detalhes. Ficou

combinado que a gravação aconteceria pela manhã e o programa

entraria no ar, em vídeo tape, na tarde do mesmo dia. Eles decidiram

apresentar um repertório à base de músicas próprias, escolhendo

temas com leve sotaque caipira, ou “country”, como dizia o Pedro.

Haveria muita expectativa em torno do evento. Mais do que

expectativa, ansiedade.

No dia marcado, Pedro não resistiu à pressão psicológica e

anunciou a decisão de tomar um ácido momentos antes da

Page 153: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

apresentação. Leminski e o outro Paulo — que seria chamado de

Psicopaulo, devido à sua especialidade na medicina — não

concordaram; mas, digamos, nesta época ninguém era muito contra

nada — até porque de contra já bastavam as leis — e Pedro tomou o

ácido. Uma hora depois estávamos todos — incluindo o autor desta

biografia — dentro do carro do Psicopaulo seguindo para os estúdios

da TV Iguaçu, propriedade do então governador Paulo Pimentel. A

gravação, com Vítola no comando, aconteceu sem nenhum

contratempo, apesar do sorriso enigmático e um certo olhar perdido

do Pedro, enfocando um ponto qualquer entre as duas câmeras.

Eles encerraram a apresentação com um original de Paulo e

Pedro Leminski:

foi sendo

cada vez mais difícil

ser feliz

este mundo

um hospício

fugi pelos furos do vício

entrei por um cano furado

uma cidade quadrada

é o fim da picada

Depois da gravação, seguimos todos — menos o Psicopaulo, que

foi encontrar a namorada — para um boteco na rua Cruz Machado,

zona de inferninho urbano em Curitiba, também conhecido como

Fumacinha. Sentamos numa mesa de fundos e pedimos cerveja,

conhaque e um aperitivo qualquer. A conversa estava exaltada e isso

era compreensível, pois algo de muito importante tinha acontecido

para eles. O Pedro viajava. A certa altura, houve uma explosão de

ânimos. O Paulo considerou que eu estava de conversa fiada com Alice

Page 154: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

e criou uma espetacular cena de ciúme, levantando bruscamente uma

cadeira com a qual tentaria me acertar:

— Pára de conversa fiada com a minha mulher — ele berrou,

ameaçador.

O Pedro segurou a cadeira no ar, mas eu já estava três passos

atrás, dizendo:

— Porra, Paulo, o que é isso?

A Alice, com aquela expressão de quem está sendo alvo da

disputa — ou, melhor dizendo, da proteção extremada do seu homem

—, olhava a cena com uma certa distância, como quem deixa

acontecer... Olhei bem nos olhos dele quando voltamos a nos sentar:

— Porra, você não percebe que estou viajando de ácido??? Alice

pra mim é um sargento. Estou olhando os apliques no jeans dela...

Ele me olhou sério por trás dos óculos:

— Ah, é?

Tudo se acalmou. Quer dizer, por alguns minutos, já que

decidimos ir para a casa do Seminário, onde havia um aparelho de

televisão disponível. Alguém comprou mais cervejas, uma garrafa de

conhaque e fomos todos para o quarto do Pedro, esperar. Os velhos

(dona Áurea e seu Paulo) acompanhavam com cautela toda aquela

movimentação. Na hora prevista, uma decepção: o programa saiu do

ar sem mostrar a apresentação deles. A cada encerramento de bloco,

na entrada dos comerciais, Pedro levantava o copo e exclamava,

otimista:

— Agora vem!

Quando ficou evidente que o programa tinha se encerrado sem

mostrar o Duas Pauladas e Uma Pedrada, ele já estava visivelmente

descontrolado e passou a disparar impropérios contra “esta televisão

de merda”. Num gesto rápido e inesperado, saiu do pequeno quarto e

voltou em seguida com um revólver na mão, um Taurus calibre 38.

Abriu o tambor para colocar algumas balas na agulha. Alice se afastou

da cena discretamente. Ficamos no quarto, eu e os irmãos, quando

Page 155: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

houve um princípio de tumulto. Pedro ameaçava:

— Vou dar um teco neste Vítola. Uma azeitona para ele entender

com quem está lidando.

Paulo falou sério:

— Pedro, me dê essa arma...

Dona Áurea entrou no quarto e se escandalizou com a cena, no

momento exato em que ele tentava tirar o revólver do irmão, os braços

erguidos e a arma apontada para o teto. Ela colocou as duas mãos na

boca:

— Meu Deus!

Eu dei dois passos em direção à janela, como que preparando

uma fuga estratégica, caso fosse necessário. Mas logo tudo voltou ao

normal. Ou quase.

Anos mais tarde, mesmo sem saber deste incidente, Vítola

deixaria registrado em seu depoimento:

— O programa foi ao ar no dia seguinte e obteve uma grande

repercussão. Foi uma ousadia e um sucesso a apresentação deles.

Certa vez, Leminski resolveu aceitar o convite de um aluno (por

acaso, irmão de Ernani Buchmann, seu ex-aluno) e, em nome dos

companheiros, combinou uma apresentação informal durante uma

festa no apartamento dos pais do rapaz. Leminski chegou com a

formação completa do Duas Pauladas e Uma Pedrada, mais os dois

violões e Alice. Ernani lembra-se das conseqüências:

— Foi uma confusão no bairro. Eles fizeram um show

fantástico, mas o violão do Paulo era um absurdo aquela hora. Ele

dava porradas nas cordas e o som saía pelas janelas, ecoando entre

os prédios e despertando a vizinhança. Eles tocaram a noite inteira e,

no final, quando foi encerrar uma música, o Paulo quebrou uma

cadeira de estilo que a minha mãe tinha na sala.

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Nesta mesma época, nascida nos bailes moderninhos da

cidade, surgia uma banda de rock que rapidamente ganharia fama e

notoriedade como a pioneira na tentativa de se afastar dos covers e

apresentar sua própria produção musical. A Chave tinha sido criada

em 1969 pelo baterista Orlando Azevedo, um português dos Açores, e

pelo guitarrista Paulo Teixeira, o Paulinho, “o maestro”, aquele a

quem cabiam os arranjos e a condução musical do grupo. No vocal,

outro grande talento, Ivo Rodrigues, ou simplesmente Ivo, com voz

poderosa e feeling de ator de teatro. Carlão Gaertner cuidava da

iluminação e do equipamento, era o produtor, além de ser o amigo

inseparável de Orlando. Havia também o “saca-trapo” (mais tarde, a

função ganharia um novo conceito e seria chamada de roadie), nesse

caso Helder, irmão mais novo de Paulinho, também conhecido como

o Arcanjo dos Fios e das Ligações. Eram todos bonitos, cabeludos e

tinham bom gosto para se vestir — acentuando uma preferência por

tecidos de veludo e cetim. Na início, pontificavam nos guetos do rock

tradicional que se formavam no clube Sírio e Libanês, onde os

embalos de sábado à noite viraram um tormento na vida dos

seguranças. Era comum a plaqueta pendurada na grade da

bilheteria: “Lotação esgotada”. Os garotos, então, tentavam entrar

pelos basculantes dos banheiros.

Lá dentro, a insopitável turba pulava e urrava ao som de

Rolling Stones, Procol Harum, The Animais, Iron Batterfly e

Mutantes, os standards da época. Ivo fazia pose de cantor de rock

internacional se exibindo para uma multidão (no imaginário de

todos, Woodstock) e conseguia levar ao delírio uma platéia formada

não mais por adolescentes. Houve um momento — e isto aconteceu

exatamente em 1971 — que A Chave era o conjunto musical de

maior sucesso na cidade. Deu-se ao luxo de criar um espetáculo

para um público seletivo, convidados especiais para uma

performance-concerto na Fundição Müeller, batizada de “O Sangue

das Máquinas”. Durante o show, máquinas e caldeiras funcionavam

Page 157: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

a todo vapor enquanto a banda improvisava melodias de acordo com

os compassos criados mecanicamente. Tudo sob a bênção de John

Cage, diziam os cartazes afixados nas paredes: “O som contra o

silêncio”. “O silêncio é um absurdo”.

A Chave, segundo o conceito assimilado por Orlando, não

deveria ser apenas um conjunto de rock para animar bailes de fins de

semana. Em torno do grupo gravitava uma série de manifestações

artísticas e culturais que se propunham interligadas, fazendo parte

de um verdadeiro “laboratório de criatividade”. Orlando e Carlão

tinham conhecido em São Paulo um projeto similar desenvolvido pelo

professor de comunicação da USP, José de Jesus Patriani, do qual

herdaram os atos de fundação e a fórmula jurídica para a montagem

do laboratório. O primeiro passo foi alugar uma casa em Curitiba,

onde pelo menos cinco pessoas e seus respectivos projetos pudessem

se instalar.

A mansão escolhida ficava num trecho aprazível e arborizado

da rua Padre Anchieta, nas Mercês, a poucos metros do Bactuc.

Tinha dois andares e seria inteiramente pintada de branco, inclusive

o telhado: era a Casa Branca da Chave. No porão, revestido com

placas de isolamento, obtinha-se uma acústica perfeita para um

estúdio de gravações, equipado com uma bateria, amplificadores,

cabines e uma vasta discoteca de rock. Não era exatamente um

estúdio profissional, pois faltava uma mesa para a equalização dos

canais, mas prestava-se muito bem para os ensaios e gravações em

rolos. Para compensar, no quintal havia árvores frutíferas e muito

capim variado ou, como dizia o Ivo, “de crescimento selvagem e

natural”.

No andar de cima, onde ficavam os três quartos e a grande

sala, moravam, além de Orlando e Carlão — mais tarde o baixista da

banda —, os artistas plásticos Toninho Stinghen — o mesmo do

Bactuc — e sua mulher Marília Guasque, além do jovem empresário

Meningite, também identificado pelo nome verdadeiro de Ricardo

Page 158: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Voigh, e um estudante conhecido como Jacaré, que logo partiu.

Havia ainda a cadela Modesty Blase, um galgo russo de porte

magnífico. O grupo produzia trabalhos com música, ilustrações e

textos. O autor desta biografia, então colunista de espetáculos do

Diário da Tarde, passaria a fazer parte do grupo, cuidando dos

releases para a imprensa ou redigindo qualquer texto de apoio às

idéias em produção. O artista Rones Dunke, com traços surrealistas

e espetaculares, era o ilustrador de plantão e autor dos principais

trabalhos gráficos da banda. Conhecia a linguagem das capas de

disco — gostava particularmente de Roger Dean, designer da banda

inglesa Yes — e era fã de Jethro Tull, que ouvia enquanto pintava. O

encontro do poeta Paulo Leminski com o grupo A Chave parecia

inevitável.

— Foi um momento de grande efervescência — recorda

Orlando. — Nós já tínhamos feito teatro com a Denise Stocklos, onde

estavam também o Ariel Coelho e o Ari Pára-raios, ou seja, tínhamos

uma experiência diversificada nas artes. Quando encontramos o

Leminski, havia um clima perfeito para a criação.

Passava das três horas da madrugada quando alguém bateu na

janela frontal da Casa Branca, gritando: “Ô, de casa!” Era o fotógrafo

Haraton Maravalhas trazendo Leminski para promover as

apresentações formais. Junto com eles estava Paulo Bahr — a outra

paulada do trio. Foi uma agitação. Quem estava dormindo acordou e

quem estava “viajando” apenas continuou. Apertaram-se alguns

baseados, alguém apareceu com copos e garrafas e a noite continuou

rolando. Carlão ligou a aparelhagem e colocou som nas caixas: Bob

Dylan, Genesis, o que pediam. Lia-se pelos cantos o jornal Rolling

Stones, em sua versão brasileira, lançado em novembro de 1971 com

Gal Costa na capa (a foto com os pelinhos aparecendo). Não havia

drogas reconhecidamente pesadas esta noite; o máximo em potência

destrutiva que se consumia no ambiente, além da canabis, era a

cachaça Velho Barreiro.

Page 159: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

— Começava assim um período muito louco, que foi a nossa

convivência com o Leminski — diz Carlão. — Acredito que tenha sido

fantástico para ambas as partes. Ele chegou com uma informação de

última hora e muito ágil. Era um agregador e se desbundou com a

nossa banda. Fomos os primeiros a gravar parcerias com ele.

De imediato, Leminski apresentaria o projeto “Em Prol de um

Português Elétrico”, onde propunha uma pesquisa mais aprofundada

no sentido de adequar o idioma à sonoridade específica do rock’nd

roll, “um ritmo feito para inglês ouvir, certo, Johnny?”. (Ele brincava

dizendo que o título remetia à nacionalidade do Orlando, “o

português elétrico”.) A parceria com a banda começava no exato

momento em que o trio Duas Pauladas e Uma Pedrada chegava ao

fim, com a mudança de Psicopaulo para os Estados Unidos, onde

daria continuidade aos estudos. Diante da porta e com A Chave na

mão, Leminski entrou de corpo e alma no mundo da música.

Paulinho Teixeira, o guitarrista, lembra-se de ter visto Leminski e

Alice chegarem ao estúdio como verdadeiros beduínos, “os nômades

do deserto curitibano”:

— Traziam as crianças, penicos, sacolas com fraldas, garrafas

de vodca e muita disposição. Ficávamos a noite inteira compondo e

tocando. O Leminski, claro, sempre com um monte de papel embaixo

do braço. Eram as páginas do Catatau.

Em artigo publicado n’O Estado do Paraná, ainda com o

apadrinhamento de Millarch, Leminski definia o projeto: “A meta é

atingir uma estética através de uma tecnologia. Assim, o projeto visa

a: (a) libertar a música pop da imagem do inglês, reputado como

veículo ideal para esse som; (b) contribuir para a criação de uma

música BRASILEIRA (ao contrário dos reacionários folclóricos e

saudosistas que tentam em vão incompatibilizar a cultura brasileira

com a nova realidade industrial e eletrônica, que veio para ficar),

ELÉTRICA E INDUSTRIAL.”

Ele escreveria as letras de várias músicas que entrariam para o

Page 160: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

catálogo da banda: “Blues Satanás”, “Povo desenvolvido é povo

limpeza”, “Vai à luta”, “Mulher interessante”, “Luva de pelica”, “Me

provoque pra ver” e “Buraco no coração”, a primeira a ser gravada

em compacto simples:

você vive só pichando

a minha indisposição

meu humor não vale nada

então pra que me alegrar?

não quero mais nada

daquela condenada

que me deixou

com um buraco

dentro do... coração

hoje eu vivo só lembrando

tapeando o meu coração

nada mais me importa

se não o meu rock’nd roll

(não quero mais nada...)

Sobre estes trabalhos, Leminski costumava dizer:

— Quem já teve contato com os resultados obtidos até agora,

pode perfeitamente pensar que, em Curitiba, se a percussão de

Orlando, a voz de Ivo, a guitarra de Paulinho, o baixo de Carlão e os

teclados do Eli, não conseguirem essa ligação da nossa fala, é porque

ninguém mais vai conseguir.

Seu parceiro mais constante na banda era o cantor e

guitarrista Ivo, um cabeludo, cinco anos mais novo, com quem os

Leminski — inclusive as crianças — manteriam uma saudável

Page 161: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

relação de amizade por muitos anos. Leminski era fã do parceiro, que

considerava “um dos melhores vocalistas do Brasil, o rock’n roll em

pessoa”. A Casa Branca transformava-se, definitivamente, num

centro de agitação contracultural. Por ali passaram, em diferentes

épocas, atraídos pelo trabalho do grupo, Gilberto Gil e a banda

Expresso 2222, com Perna, Bruce, Lanny (que deixou de presente

um pedal de guitarra para o Ivo) e Tutti Moreno; Rita Lee e os

Mutantes, o cantor Antonio Marcos e parte do elenco da peça Hair

(com Sônia Braga e Altair Lima). Quando entrou no estúdio, pelo

porão, Gil exclamou:

— Parece que estou em Londres!

Nesta mesma época surgiria na cena curitibana uma loura

misteriosa, personagem que pode ser identificada como uma carioca

de Ipanema aparentando 30 anos (portanto, mais velha que todos do

grupo) e conhecida apenas pelas iniciais M. L. Era casada com um

diplomata brasileiro e vivia no exterior, Londres, de onde acabara de

chegar. Desembarcou no Brasil com 10 mil ácidos lisérgicos (LSD)

embutidos em casacos de pele e outras miçangas — e, destes, pelo

menos 1.000 estavam com ela em Curitiba. Chegou na cidade

procurando por Paulo Leminski, do qual tinha ouvido falar como

“uma pessoa interessante, o melhor representante da nova tribo

psicodélica”. Era também jornalista e conhecia os curitibanos que

trabalhavam nas redações cariocas.

O encontro com a loura aconteceu num fim de tarde na casa da

Água Verde. Eles estavam sentados no chão da sala, fazendo a

transação num tête-à-tête fabuloso, quando eu cheguei pela porta

lateral. Logo pude perceber a cena: o Paulo mostrava-se bastante

excitado com tudo mas, particularmente, com a presença da loura, que

estava vestida com roupas longas, estampadas e adornada por um

colete de cetim — bastante descontraída em sua elegância hippie. E

era também corajosa, podia-se perceber. Quando exibiu o “produto”

Page 162: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

dentro de uma caixinha, pude vislumbrar dezenas de cilindros com a

cor e a forma de pequenos grafites, que ela chamava simplesmente de

“micro”. Confidenciou ter tido várias experiências com eles sempre em

perfeita harmonia com as novas percepções. “Sem bad trip”, garantia.

O negócio foi fechado, como se diz, “em consignação”. Ficou

combinado que M.L. deixaria 300 ácidos, que deveriam ser pagos em

três etapas, através de depósitos em conta bancária. Leminski

comemorou o acordo tomando o primeiro ácido àquela mesma noite,

enquanto desfilava uma extensa literatura sobre o assunto, fazendo

citações magníficas de Aldous Huxley, Timothy Leary e toda a geração

francesa do absinto. Suas “viagens” eram projetadas para o mundo

intelectual e perceptivo; fazia referências lúcidas sobre o imaginário e

o concreto; voava na criação de novas fórmulas, mas tinha o pé no

chão com a realidade. Neste sentido, como apoio logístico, recorria ao

que de melhor havia na literatura e no pensamento místico e esotérico.

Dizia: “Vamos aos extremos da mente porque, no final, quem tem boa

cabeça vai se salvar: ‘just the strong survive’.” A paisagem para ele,

então, estava ficando novamente colorida.

A quem interessar possa: dois dias depois de deixar Curitiba,

M.L. seria presa pela polícia num quarto de hotel em São Paulo com

mais de 5 mil “micros” de LSD. Ela fora se encontrar com o marido, o

diplomata, que também tinha participação na operação. Na verdade,

era mais uma curtição do que um tráfico, embora à luz de qualquer

jurisprudência este argumento seja considerado irrelevante. Na

prisão, envolvida numa manobra arquitetada pelos advogados do

marido, M.L. foi convencida a assumir a culpa integral pelo flagrante,

como estratégia para negociar a própria liberdade. No final, acabou

ficando com o papel sujo da história: foi julgada e condenada a um

ano de prisão, pena que cumpriu num dos presídios mais violentos

do Brasil, o Carandiru. O companheiro ficou em liberdade e foi

deslocado para uma embaixada na África, onde continuaria a

Page 163: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

carreira diplomática até virar uma zebra nas pradarias do Quênia. O

episódio contribuiu para que o acordo entre M.L. e Leminski jamais

fosse cumprido, pela parte dele. Quando informado da prisão da

“sócia”, Leminski teve um sobressalto e mostrou-se paranóico,

repetindo a todo instante: “Alice, se ela abrir o bico os homens vão

bater aqui.” Nunca aconteceria. Como conseqüência, estima-se que

ele tenha tomado pelo menos 40 ácidos, vendido outros tantos e

distribuído o restante entre os amigos, nos dias seguintes. E advertia

secamente:

— Cuidado para não pirar!

Esta foi a onda lisérgica que varreu Curitiba no início dos anos

70. Até hoje não se conhece com exatidão as conseqüências deste

episódio, em plena era Garrastazu Médici — mas sabe-se que

algumas frentes de criação (comportamental e cultural) surgiram

como manifestações espontâneas em várias áreas: música, teatro e

ócio explícito. A reação da sociedade foi imediata: os órgãos de

repressão criaram uma entidade civil chamada Licopar (Liga de

Combate ao Tóxico no Paraná), sustentada por doações de pais

aflitos e indefesos. Tal instituição representaria o inferno astral da

rapaziada durante algumas temporadas. A Licopar existia para

alertar a família curitibana sobre as ameaças que pairavam “em

nossa cidade”, colocando à disposição dos interessados um

dicionário com palavras usadas por viciados, as gírias da ocasião,

uma espécie de Indicionário às avessas — e com segundas intenções.

O pior de tudo: a entidade, depois de concebida ideológica e

estatutariamente, foi instalada a quatro quarteirões da Casa Branca.

Leminski nunca teve problemas com a polícia, mas os rapazes

d’A Chave receberam certa vez a visita inesperada “e cordial” do

coronel Polido, o mentor intelectual da Licopar. Ele estacionou o

carro policial na porta, acompanhado de um paisano, e foi

entrando... Encontrou Carlão e Ivo na sala principal, conversando.

Olhou para todos os lados, desceu aos estúdios — falou pouco e

Page 164: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

perguntou bastante — para, finalmente, pedir a colaboração do

conjunto na missão de “bem conduzir os destinos da nossa

juventude”. Carlão, que fez o papel de anfitrião, registraria o

constrangimento:

— O Ivo ficou um pouco apavorado e saiu de perto... Eu fiquei

tranqüilo porque o pior — que seria alguém estar fumando um

baseado naquela hora — não aconteceu. Pelo contrário, o coroa ficou

impressionado com o que viu, com a organização do grupo. E com

isso ganhamos um certo tempo de imunidade.

A vida continuaria sem mistério para os Leminski, com todos

perfeitamente adaptados ao casarão da Água Verde, ele

desenvolvendo a atividade de professor e Alice a de mãe. Leminski

passava boa parte do tempo no sótão da casa, para onde tinha

transferido alguns livros — incluindo uma coleção de revistinhas

eróticas (tipo sueca, de sacanagem) — e montado um pequeno

escritório, com mesa, cadeira e máquina de escrever. Algumas vezes,

porém, o lugar seria usado como cenário para as fantasias eróticas

do casal, quando Alice personificava uma dama da sociedade e ele

um escritor pobre morando numa “água furtada”. No meio da noite,

quando o poeta estava trabalhando e as crianças dormindo, Alice

aparecia de surpresa vestindo sua melhor camisola para provocar

um romance proibido, digno de um Flaubert:

— O Paulo gostava de sexo com fetiche, embora não tivesse

nenhuma tara inconveniente. Eu diria mesmo que, como amante, ele

estava no ponto certo.

Mesmo trabalhando no cursinho, Leminski aceitaria uma

proposta para voltar ao jornalismo. A revista chamava-se Joy —

Indústria e Comércio e era editada pelo colunista Carlos Jung para

divulgar arte, negócios e sociedade — não necessariamente nesta

ordem. Era uma publicação financiada extra-oficialmente pelo

Page 165: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

extinto Banco Bamerindus, “o banco da nossa terra”. Ele e Alice

eram os redatores e, além de cuidar dos textos dos colaboradores,

ainda criavam oportunidades para publicar suas próprias produções.

Na redação, o casal conheceria os artistas plásticos Retamozo, Solda

e Rogério Dias, responsáveis pelas ilustrações e diagramação da

revista. Rogério era discípulo bem aplicado de Guido Viaro e tinha

uma sólida formação acadêmica, mas estava progressivamente se

afastando das telas para trabalhar com objetos. Era um performático

e tinha participado como ator na peça A semana, de Denise Stocklos.

Na parceria com os novos amigos do texto, Rogério daria soluções

plásticas e gráficas para diversos trabalhos da dupla durante muitos

anos. O primeiro deles foi o cartaz da 1ª Noite de Poesia Paranaense,

onde Leminski era um dos organizadores e apresentador oficial da

cerimônia. Rogério recorda-se:

— Na noite do evento, o Leminski subiu ao palco para fazer

uma bela homenagem a Helena Kolody, que ele chamava de

“Padroeira da poesia paranaense”. Destacou a leveza e o aspecto

ingênuo de sua poesia, fazendo uma defesa, inédita na província,

com relação ao trabalho de uma mulher. Disse que Helena era “o

Mário Quintana de saias”. Leu alguns poemas dela e mandou “aquele

abraço pra minha mãe Helena”.

Com Retamozo e Solda, Leminski conheceria o humor e, do

ponto de vista operacional, aprenderia um truque que lhe seria útil

num futuro próximo: eles publicavam seus trabalhos

meticulosamente editados, em qualquer jornal ou revista — sem se

preocupar com a qualidade da publicação —, apenas de olho no

fotolito, que recolhiam da gráfica e guardavam numa gaveta. No final

de alguns meses tinham material suficiente para editar um livro —

ou algo assim — com pelo menos 60% de redução no preço de custo.

Com isso, os artistas curitibanos obtinham um padrão gráfico

sofisticado, em relação à “geração mimeógrafo”, ao incorporar a

melhor tecnologia para participar da guerrilha de informação que

Page 166: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

envolvia a imprensa naqueles anos. Debochados, adotavam uma

atitude rock para se explicar aos visitantes:

— Aqui a fome é loura!

1972. No ano da morte de Leila Diniz e Torquato Neto, os seres

marginais — jornalistas, economistas de esquerda, professores, tiras

e desempregados de um modo geral — se reúnem no bar Elle e Ella,

que vai entrar nesta história com o codinome de Bife Sujo. Era um

bar comum, ordinário mesmo, com uma dúzia de mesas espalhadas

no andar térreo e outro tanto no mezanino. Parecia, mas não era um

lugar violento. O dono, um chinês-moçambicano, Eduardo How, era

constantemente criticado pela freguesia, que o acusava de “desertor”.

O garçom Pedro resolvia diplomaticamente estas questões. Podia-se

tomar cerveja e jogar no bicho sem se afastar do salão. As estrelas do

lugar, nas noites de agitação, eram o cantor Ivo e um quibe frito

inteiramente falso em sua tradição culinária, ao incorporar um

surpreendente e abominável ovo cozido como recheio.

Foi ali, num final de noite, que Alice e Leminski sentaram-se

para tomar cerveja e começaram a brincar, sem nenhum

compromisso, com um mote caipira que estavam investigando. No

final, estava concebida uma canção que seria adotada como hino

pelos alpinistas do pico do Marumbi, para onde iam quase todo fim

de semana. Esta seria a única parceria musical do casal ao longo da

vida. Leminski diria depois: “É uma música feita para excursão, que

deve ser cantada como uma forma de repetição à manivela, um

realejo.” O resultado era engraçado e provocava boas reações no

trem:

Nós fumo cantá numa festa

na festa dum batizado

o anjo não tinha nascido

Page 167: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

só tinha bebida

eu não tinha jantado

Então fumo cantá noutra festa

na festa d’aniversário

o vento soprava as velinha

e o dono da festa

já estava apagado

Então fumo cantá noutra festa

na festa dum casamento

os noivo já tinha três filho

e o mais crescidinho

já era sargento

Então fumo acabá num velório

dum cara chamado Gregório

o morto não tava bem duro

e o vivo do padre

cantava a comadre

(repete indefinidamente)

Foi numa destas excursões ao pico do Marumbi, onde fazia

parte do Círculo de Marumbinistas de Curitiba, que Pedro

conheceria Elly Maria Trymtje Bertomeu Y Zuidhoff, uma filha de

holandeses e espanhóis, de 17 anos. Elly era ruiva, sardenta,

graciosa e, além de tudo, pára-quedista. Eles casaram rapidamente e

foram morar num edifício no centro da cidade, na praça Carlos

Gomes, onde teriam dificuldades de ordem “moral” com o síndico. O

homem se mostrava irredutível em sua posição conservadora e não

Page 168: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

admitia relações informais no prédio, exigindo deles uma certidão de

casamento. Elly usava uma aliança na mão direita durante a tarde,

no trabalho, e ao entrar no prédio, à noite, passava para a esquerda,

com a intenção de confundir a vigilância. A curta temporada no

edifício chegou ao fim depois que Pedro deu dois tiros na parede do

apartamento, como um aviso para a vizinhança. Em seguida, como

que impelidos pelas circunstâncias, foram morar na casa dos pais

dele, no Seminário.

A publicidade surge na vida de Paulo Leminski em meados de

1972 e coincide com o fim das aulas no Curso Dr. Bardhal, quando

estaria encerrando a carreira de professor, no sentido clássico da

palavra. Mais tarde, ao avaliar a importância do magistério em sua

vida, ele diria:

— Eu sou um professor frustrado. Acho que sou um professor

na medida em que consigo transmitir clareza, porque procuro clareza

para mim, para as coisas que me interessam. Mas acontece que na

mecânica de transmissão do saber há um ponto incompatível com o

meu lado contracultural, meio hippie, meio bandido. Acordar às 8

horas, em plena segunda-feira, para dar aula é incompatível comigo.

Peguei toda uma banditice meio boêmia, que é um dado fundamental

meu. Sou um bandido que sabe latim.

Assim, a primeira agência onde Leminski trabalharia como

redator se chamava Lema Publicidade e era administrada por um

carioca de nome Carlos Augusto. Ali, ele reencontraria o time de

artistas plásticos (ou gráficos, dependendo da função no momento)

que havia conhecido na revista Joy: Rogério Dias, Retamozo e Solda,

que seriam companheiros de bar e prancheta. O fotógrafo Dico

Kremer, que freqüentara o cineclube anos antes, fazia parte da

equipe. A curta experiência na Lema, entretanto, teria na sua

história apenas a função de trampolim para o futuro, ou, como ele

mesmo dizia, “um estágio remunerado” para o que viria a seguir,

Page 169: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

quando, aí sim, se tornaria um dos principais nomes do texto

publicitário curitibano.

Em outubro, Carlos João voltaria a Curitiba, mas apenas de

passagem. Usava os cabelos até os ombros e se fazia acompanhar de

amigos cariocas, um casal, o jornalista Luís Augusto Gollo, que tinha

deixado um emprego n’O Globo para “cair na estrada”, e sua

namorada Dalva. Estavam partindo para uma viagem pela América

Latina, que percorreriam de ponta a ponta, durante os dois anos

seguintes. Era o êxodo de uma geração ameaçada pela repressão,

sem oferta de trabalho e sem perspectiva de vida nas grandes

cidades. Os jornais mais influentes do país estavam com suas

redações tomadas pelos censores; o Correio da Manhã, com postura

reconhecidamente de oposição, capitulava diante das pressões

políticas e econômicas. O mesmo acontecia com O Estado de S.

Paulo, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa (o jornal mais censurado

durante a ditadura) e quem mais se atrevesse a encarar o AI-5. Sair

para os Andes, andar com os nativos nas alturas de Matchupichu ou

catar cogumelos nos bosques da Bolívia era, para eles, uma

perspectiva de vida bastante considerável.

O reencontro de Carlos João com Leminski e Alice seria

emocionante. Eles se abraçaram e colocaram a vida “em dia”,

retomando a conversa interrompida numa tarde carioca. Em

seguida, todos foram levados à Casa Branca, onde Ivo cantou

durante o ensaio da banda como se fosse um show ao vivo no

Madison Square Garden. Foi de arrepiar. Quando o dia estava

amanhecendo, eles decidiram passar o fim de semana juntos,

escalando o pico do Marumbi, numa grande excursão organizada por

Pedro. Carlos João recorda-se:

— Viajamos de trem na manhã de sábado com destino ao alto

da serra. À noite, em volta da fogueira, alguém jogava cachaça para

levantar labaredas e aquecer o ambiente. O frio era de rachar e tudo

Page 170: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

se concentrava no violão e nas músicas. Desde os dias da pensão, no

Rio, o Paulo tinha aumentado o repertório de canções e agora se

exibia também como um músico.

O porre desta noite foi memorável. A certa altura, no meio da

neblina mais insondável, Leminski aplicou um golpe de judô no

irmão Pedro, que foi lançado ao chão, resultando numa clavícula

quebrada. Ele se mostraria preocupado e sério com as conseqüências

da brincadeira, repetindo que “não tinha sido para machucar”. O

carioca Gollo, que faria algumas fotografias deles nestes dias, atesta

que, apesar do incidente, tudo acabou bem:

— Eles fumaram um baseado, que funcionou como um

cachimbo da paz. No dia seguinte, logo cedo, encontrei o Paulo junto

ao que sobrara da fogueira, ainda cheio de energia, com uma caneca

de cachaça e suco de laranja na mão. O porre dissipava-se como a

névoa da manhã para todos nós, menos para o Polaco, que

continuava a desferir golpes e frases no ar.

Mas a confusão não acabaria aí. Durante a viagem de volta

houve um princípio de tumulto num dos vagões, envolvendo apenas

as mulheres. Alice e Elly entraram em atrito com as garotas de um

outro grupo, por motivos absolutamente pueris. Foi uma cena de

ciúmes, onde Leminski era o alvo da discórdia. Logo depois, quando

as duas se preparavam para uma confrontação física em praça

pública, na estação ferroviária, outra confusão, mais séria e violenta,

teve início envolvendo os dois irmãos e um grupo de rapazes. A

polícia chegou com a sirene ligada e ameaçou prendê-los. Num

movimento rápido e preciso, Alice ergueu Miguelzinho no colo e se

colocou entre os policiais e o camburão, implorando para que

libertassem seu marido, fazendo uma encenação formidável. Elly se

comportaria da mesma forma. Diziam aos policiais, enfaticamente,

que a prisão dos rapazes seria uma punição para elas e para as

crianças — não para eles. Mantiveram a ladainha até conseguir o

que queriam. Anos depois, Alice resumiria o episódio reconhecendo

Page 171: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

que havia amor e cumplicidade entre os irmãos, mas era uma

relação perturbada por muita competição pessoal.

1973. O ano começa com a morte de Paulo Leminski, o Velho,

vítima de um ataque cardíaco fulminante. Ele tinha se afastado da

bebida havia alguns anos, mas sofria de complicações renais e

faleceu durante uma crise aguda. O inesperado acontecimento

abalou profundamente a estrutura da família. Pedro mostrou-se

bastante descontrolado e, para surpresa de todos, pôs-se a dividir a

herança (algo como um revólver calibre 38 e um sabre do Exército

Brasileiro) mesmo antes do anúncio oficial do óbito. Ele estava de

olho na arma que já conhecia e manuseava como se fosse sua.

Leminski mostrou-se revoltado com a atitude do irmão e decidiu,

com toda a autoridade que o momento lhe conferia, que o revólver

ficaria com ele. Houve uma violenta discussão. Durante todos os

momentos da crise — e mesmo durante o velório — o álcool seria

consumido em quantidade exacerbada.

Nestes dias, para complicar o quadro de desentendimentos

familiares, após uma briga com Pedro, Elly decide viajar para a casa

da mãe, em Buenos Aires. Estava grávida, mas, magoada com as

cenas de ciúmes do marido, nada revelaria em casa. Pensava apenas

em ficar sozinha e “dar um tempo”. Pedro suportaria por três meses

esta situação. Logo conseguiu o dinheiro da passagem com dona

Áurea e estava também seguindo para a capital argentina. Ele e Elly

foram felizes por algum tempo. Pedro recebeu a notícia da gravidez

com orgulho e alegria — e imediatamente escreveria uma carta para

o irmão, contando a novidade. Falava de planos para o futuro e do

começo de uma nova fase. Era como um pedido de reconciliação com

todos. Leminski responderia com outra carta postada para Buenos

Aires. Esta troca de correspondência entre os irmãos oferece uma

rara oportunidade para se conhecer, sem censura, o universo afetivo

que os cercava. Leminski escreveu (sempre em minúsculas):

Page 172: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

oi, brother!

depois de alguns dias de expectativa (para saber como

você estava se saindo nas américas latinas), tua carta

pintou debaixo da minha porta (a mãe estava aqui, foi

ela que viu primeiro), eu não podia ficar mais contente

do que fiquei quando soube que tudo tinha corrido bem,

que você aterrisou sem incidentes, que a elly está bem,

que vocês voltaram a se entender e, mais do que tudo,

saber que vou ser tio (alivia um pouco a dor da perda do

maior leminski de todos saber que mais um leminski vai

nascer) & aqui a gente vai se refazendo aos poucos deste

ano de pesadelos & a mãe está mais animada e reage

com uma força incrível (mulher de samurai é assim) &

está até saindo sozinha para fazer pagamentos.

A carta segue com outros comentários descontraídos, agora

sobre uma série nova da Tv, Kung Fu,

um monge zen chinês, desde pequeno recebendo um

treinamento espiritual e físico incrível, daqueles de

deixar o julinho se babando, karatê, desviar de lanças,

ukemis sensacionais, andar sem fazer ruído, provas zen

para entender e dominar o medo, a dor e a dúvida (um

misto de ninja com iluminado).

A seguir, Leminski descreve com riqueza de detalhes uma

seqüência espetacular da luta entre o monge e um grupo de índios

do Oeste americano, com direito a nomenclatura dos golpes

aplicados pelo ator David Carradine (ver Apêndice 5).

A certa altura, Leminski notificava o irmão de um trabalho que

Page 173: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

encomendara a um artesão amigo:

O primo da Alice vai fazer minha placa para pôr no

jardim: LEMINSKI, PROFESSOR DE LÍNGUAS MORTAS,

CIÊNCIAS OCULTAS E ASSUNTOS ENCERRADOS.

Terminava falando de uma terrível dor de dente e da remessa

de dinheiro pelo National City Bank: “Foram 500,00, mas o problema

é que vai levar quinze dias para chegar.”

No PS, aconselhava o caçula a não ter preguiça de escrever:

“Comunique-se. Não nos deixe imaginando tuas dificuldades sem ter

meios de te socorrer quando preciso.”

A morte do companheiro acentuaria em dona Áurea, então com

63 anos, uma melancolia que já lhe era notável por natureza. Mesmo

com toda a sua apreciável aceitação da realidade, a situação com a

viuvez apenas se agravou, e ela, subitamente, deixou de se

alimentar. Sua profunda apatia ficou sendo motivo de preocupação

para todos. Na verdade, ela e o marido, apesar da superfície

turbulenta do cotidiano, tinham vivido como dois apaixonados e não

seria exagero dizer que mantiveram-se numa bolha de paz e

harmonia durante todos estes anos. Nunca foram vistos brigando e

acredita-se mesmo que isto nunca tenha acontecido. Na opinião de

Alice, “eram dois pombinhos que se bastavam”. Como solução de

emergência, para manter o fio de vida que a sustentava, ficou

decidido que dona Áurea iria morar com o filho mais velho — e numa

casa que deveria ser alugada imediatamente. Assim, Pedro e Elly

ficariam morando na casa do Seminário e tudo estaria

(aparentemente) resolvido.

A nova casa tinha como principal característica a pintura cor

de vinho nas paredes externas e ficava na esquina da travessa

Amando Mann, no bairro das Mercês. Era de madeira, cercada por

Page 174: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

um muro estreito de concreto armado e tinha três quartos mas não

tinha sótão; era, portanto, menor do que a anterior. Dona Áurea,

depois de passar algumas semanas com as irmãs (todas solteiras,

morando na mesma casa paterna), chegaria para ocupar um quarto

com as crianças, enquanto o terceiro aposento seria transformado

em escritório e biblioteca. Na parede havia um quadro-negro onde

Leminski fazia anotações de momento, frases ou palavras quase

sempre relacionadas com os trabalhos em progresso. Ele continuava

escrevendo o Catatau, que já tinha quase 200 páginas.

Neste mesmo ano, um novo desemprego e uma nova crise

financeira, desta vez atenuada pelo fato de poderem contar com a

pensão de Dona Áurea, que ajudou a “segurar a barra” das despesas

do cotidiano. Enquanto isso, a parceria musical com Ivo — que

sempre chegava com a namorada Ju e o violão embaixo do braço —

ganhava força e intensidade. Dedicado somente à música e às

cervejas, Ivo dispunha das tardes livres e de energia suficiente para

cantar como se hoje fosse o último dia de rock. (Entre os covers

gostava de “Eve of Destruction” e “Georgia on my mind”, com os

quais botava os botequins abaixo). Leminski e Ivo fizeram história na

cidade. Qualquer motivo, por mais prosaico que fosse, era suficiente

para um churrasco improvisado, mesmo durante a semana, com

muita música, baseados e crianças. (Algo que lembraria o sítio dos

Novos Baianos, em Jacarepaguá, também conhecido como o

“mosqueiro do Galvão”). Ivo chegava cantando a música dos

Mutantes que fala em curtir a vida “enquanto a turma da cidade dá

um duro até às 6”:

— Era comum colocarmos as poltronas no quintal, para

aproveitarmos o sol. Depois, todos dormiam e podia chover que as

poltronas ficavam lá. Eu passava de carro no dia seguinte e as

poltronas continuavam lá...

A parceria Leminski-Ivo (e, por extensão, com a banda A

Chave) renderia dezenas de músicas, inclusive o reggae “Sou legal”,

Page 175: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

cantado com batidas jamaicanas:

sou legal eu sei

agora só falta convencer a lei

que eu sou real eu sei

agora só falta convencer o rei

eu sei que sou real

mas isso não sei se vão deixar dizer

eu sei que tudo mais vai pro beleléu

a terra, o mar, o céu

mas nesta hora eu quero mais é estar

com a turma do pinel

(gritando:) com a turma do pinel

O trabalho com música era apenas mais uma de suas

atividades, digamos, artísticas. Ele continuava produzindo poemas e

trabalhando desesperadamente no Catatau. No dia 30 de julho, o

jornal O Estado do Paraná publicaria um grande artigo intitulado “O

Catatau: um calhamaço grilante”, assinado por Diogo Bello,

advogado e diretor de teatro. Nele, Leminski é apresentado como um

ex-universitário que “polemizava com os mestres, acabando com as

aulas e que, numa certa ocasião, conseguiu mencionar 116 objeções

ao professor palestrante, Osvaldo Arns, enquanto este discorria

sobre Introdução Artística”. Na entrevista que se seguia, Bello

perguntava:

— O Catatau é uma transa cabalística só comunicável aos

iniciados ou terá acesso à massa?

A resposta:

— O Catatau verifica uma categoria de ilegibilidade. Os

estatutos dessa categoria não estão elaborados teórica e nem

Page 176: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

pragmaticamente: só depois de muitas Galáxias e Catataus é que se

vai saber o que fazer com textos ilegíveis porém procedentes. Eu não

sei para que servem. Só sei fazer.

Em agosto, quando completaria 29 anos, Leminski estava com

a agenda cheia, começando com duas palestras na Escola de Belas

Artes, pelas quais receberia 600 cruzeiros. Conseguiu comprar um

tênis quédis, uma calça USTop e pagar a metade dos “50 contos”

cobrados por um método de violão; a outra metade foi um presente

de aniversário de dona Áurea. Aproveitando a boa maré, ele e Alice

embarcaram numa viagem com A Chave para Londrina, onde a

banda se apresentaria sábado à noite num clube local. Foram todos

de Kombi, levando alguns equipamentos e fazendo uma boa

brincadeira pelo caminho. Ivo estava com a namorada Ju, alguns

baseados na bota e o violão em punho, equipamento adequado para

suportar sete horas na estrada. Leminski e Alice ficaram hospedados

na casa de Marília e Toninho Stinghen — que tinham deixado a Casa

Branca e o Bactuc e agora trabalhavam numa agência de publicidade

como arte-finalistas. Londrina, então no auge de sua impressionante

ocupação territorial, era conhecida como “a capital do café”.

A imprensa local repercutiria a passagem de Leminski e da

banda pela cidade. No dia 5 de agosto, a Folha de Londrina

publicaria um ensaio assinado por Leminski sobre Maiakóvski,

intitulado “O suicídio da vanguarda”, ocupando uma página inteira

do suplemento “Rascunho”. Ele escrevera, na verdade, “O suicídio

como vanguarda”, mas, vítima de um erro de revisão, o sentido foi

modificado. No texto de apresentação, ilustrado por uma fotografia

do carioca Gollo feita no pico do Marumbi, ele é apresentado como “o

único paranaense incluído no compêndio sobre poesia concreta no

Brasil e agora fazendo músicas com o conjunto A Chave”. Gostava de

definir o rock, sem nenhum sentido pejorativo, como “uma música

feita pelos incompetentes para os inconformados”, num casamento

Page 177: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

perfeito entre as partes.

Em dezembro, uma notícia para abrandar o espírito de toda a

família: no dia 9, nascia Elly Tryntje Leminski, primeira e única filha

de Pedro, que agora passava uma boa parte do tempo em casa

lambendo a cria e aproveitando para “dar um tempo” na boemia. Ele

tinha feito um acordo com a mulher: se fosse menino, ela escolheria

o nome; se fosse menina, a escolha seria dele — e foi o que

aconteceu: Pedro decidiu multiplicar a Elly. Eles moravam na casa

do Seminário e dona Áurea acompanhou tudo de perto, ajudando a

nora na hora do parto. Ellinha veio ao mundo com cabelos louros,

diferente da mãe (ruiva) e do pai, que tinha cabelos castanhos. A

paternidade viria abrandar um pouco os ânimos de Pedro, que

sempre se mostrou afetuoso com a menina.

Nesta época, surgem os primeiros sintomas da doença que

abalaria a saúde de Miguelzinho por vários meses. Brincando

sozinho numa escada de três degraus, ele teria, aparentemente,

torcido o pé direito, que inchou na altura do tornozelo. Alice não

gostou do que viu, colocou o garoto num táxi e seguiu para o

massagista, que recomendou uma chapa de raio X. Nenhuma fratura

foi constatada. Dias depois, Miguelzinho passaria a mancar com o

outro pé, que também foi inchando lentamente. Eles voltaram ao

médico, fizeram novos exames, mas o problema não foi

diagnosticado; e, para desespero de Alice, novos inchaços

apareceram em outras articulações. A doença se manifestava com

dores e dificuldades de locomoção. O garoto, nestes dias, adquiriu o

hábito de desenhar, ler e escrever. Tinha — todos diziam — o jeito do

pai, cerebral, analítico, embora se diferenciasse dele na fragilidade

física. O pouco dinheiro de que dispunham, os Leminski o usavam

agora com médicos e remédios. A única exceção foi a compra de uma

televisão, um eletrodoméstico considerado agora artigo de primeira

Page 178: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

necessidade.

Para escapar da pressão do cotidiano, Leminski começou a

reescrever o Catatau, ou melhor, a datilografar as páginas, passando

a limpo e corrigindo os originais com a ajuda de Alice. Era o “ataque

final”. Eles ficavam em casa à noite, trabalhando e conversando com

os amigos, que continuavam aparecendo com freqüência. O escritório

era uma babel de livros e papéis, onde a grande estrela do palco era

uma máquina de escrever Remington, com estrutura de ferro, típica

de colecionadores. Nas horas vagas, mais churrasco e cerveja.

Um dos mais jovens freqüentadores da casa era um garoto

chamado Helinho Pimentel, de apenas 16 anos, que aparecia sempre

com carros enormes e belas amigas — uma delas de nome

Sandrinha, era a namorada secreta de Caetano Veloso (ao que tudo

indica, secreta para os outros, menos para sua mulher Dedé).

Helinho tinha os cabelos compridos encaracolados e uma

semelhança física com Carmen Miranda, de quem herdara a boca e

os trejeitos. Era também um representante da “classe dominante”,

mas não tinha veleidades intelectuais e nem se deixava atrair por

teorias literárias ou afins:

— O Paulo Leminski foi uma bomba atômica na minha cabeça,

mas não pelo que representava como escritor ou poeta. Eu tinha 16

anos e não fazia a menor idéia deste universo intelectual. Fui atraído

pela visão genial e contemporânea que ele tinha da vida, sempre

sintonizado com o mundo e dividindo esta sabedoria com a gente.

Para nós, pivetes, era um fator de segurança saber que um sujeito

daqueles também tomava ácido. Era o meu guru. Com ele aprendi

que as brincadeiras (como as drogas, o rock, o sexo e as artes) são

coisas sérias. Ou vice-versa: se você as tiver levando a sério demais,

são apenas brincadeiras.

Uma tarde, chegando na casa das Mercês, encontrei o Paulo

aproveitando o violão e o talento do Ivo para fazer um revival musical.

Page 179: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

E entrei na brincadeira. A partir de uma série de canções

consideradas clássicas de Roberto Carlos, tentávamos escolher o

verso mais romântico e apaixonado, numa forma de explicitar uma das

melhores qualidades musicais do Rei. Cantamos o repertório inteiro da

Jovem Guarda: “Namoradinha de um amigo meu”, “Pensando bem”,

“Quero que vá tudo pro inferno”, “As curvas da estrada de Santos”,

“Como é grande o meu amor por você” e todas as outras. Estávamos

esparramados na cozinha, de onde se podia avistar, através da porta

dos fundos, dezenas de garrafas vazias — a maioria de conhaque

Dreher e cervejas — empilhadas junto à cerca. No final, o verso

escolhido pelo Paulo como the best of the King (na verdade, de autoria

de Antonio Marcos) foi:

... peço a alguém pra me contar sobre os teus dias

anoiteceu e eu preciso só saber

como vai você

que já modificou a minha vida...

Ele argumentava:

— Não é demais? A garota não quer mais ver o sujeito que, sem

saída, pede para alguém “me contar sobre os teus dias”...

Nos dias seguintes, como treinamento de base e harmonia no

violão, ele escreveria uma balada romântica no mesmo estilo que,

dizia, deveria ser gravada por Wanderléia, a Ternurinha:

Não dei pra ninguém

Aquilo que você mandou eu não dar

Deixei meu amor

Ficar na solidão

Filhinhas da mamãe como eu

Page 180: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

não dá

não dão

não deu

Houve uma noite memorável na casa das Mercês, quando eles

receberam a visita da escritora e líder feminista Rose Marie Muraro,

e, por coincidência, da loura M.L., a moça dos ácidos, agora

completamente reintegrada à vida civil. Alice defendeu as honras da

casa desfraldando a bandeira do feminismo, mas havia outras

pessoas na sala, presenciando o que ficou conhecido como “A noite

das mães”, uma longa discussão sobre trabalho, socialismo e

maternidade. Rose Marie, no auge da fama como ativista, gozava de

um conceito além do trivial, na condição de executiva da Editora

Vozes e intelectual de opiniões lúcidas e corajosas. A Editora Vozes,

com frei Ludovico e Rose Marie Muraro à frente, se posicionava

naquele momento histórico, com um regime autoritário no poder,

ligeiramente à esquerda da intelectualidade brasileira. O dia

amanheceu e a conversa ainda se desenrolava. Os homens na sala,

depois de um certo momento, apenas ouviam. Sobre este encontro,

Alice diria:

— Trouxeram a papisa que motivou discussões fundamentais,

mas havia no ambiente M. L. e uma garota, a Verinha, que tinham

um desempenho prático do feminismo. As duas, como mulheres

liberadas que eram, viajavam livremente no circuito do sol: Ipanema,

Arembepe, Bombinhas... Foi uma noite muito interessante, movida a

não sei que substância.

No dia seguinte, num táxi, Rose disse à Alice que achava muito

legal a sua teoria, mas que não podia levá-la a sério como feminista.

Tudo por causa de Leminski, na sua opinião, um absolutista.

Alice retrucou:

— Bem, não se deve ser absolutista no sentido contrário. Que

tal imaginar que eu e o meu homem vamos crescer e melhorar

Page 181: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

juntos?

Rose Marie insistiu:

— Isto é possível em tese, mas como conviver com alguém que

fala com esse volume de voz?

Neste momento alguém colocou o dedo no ponto mais sensível

da relação dela com Leminski, já que o objetivo, neste caso, não era

quebrar a supremacia masculina vigente e nem desenvolver uma

disputa de valores com o parceiro. Como num passe de mágica Alice

percebeu, conversando com Rose num táxi, que ele era

absolutamente centralizador; pior, não era igual aos outros homens,

pois falava mais alto do que qualquer outro homem.

Em julho de 1974, motivado por um fato qualquer do cotidiano,

Leminski escreveria um pequeno artigo (ele não gostava desta pa-

lavra, preferia “texto-ninja”), anotação em apenas uma lauda da-

tilografada — que jamais seria publicada — com um título sucinto:

“Trotsky”. De resto, não havia nenhuma citação explícita ao líder

político russo no corpo do texto, no qual ele comparava a guerra fria

URSS x USA, ao casamento eternamente litigioso entre Elizabeth

Taylor e Richard Burton (ver Apêndice 6).

No final do ano, para compensar as vicissitudes de um período

de baixo astral financeiro, surgiria um episódio capaz de alegrar a

vida de qualquer um, principalmente de Paulo Leminski, um

tropicalista de primeira hora. Aconteceu numa tarde de sábado,

quando ele andava sobre o muro lateral da casa, fazendo um

exercício rotineiro de equilíbrio. Alice estava no quarto lendo, quando

um carro parou em frente ao portão. Leminski falou “tem gente aí,

benzinho”, pulou do muro e foi conferir quem chegava — e quase

perdeu a voz. Eram Caetano Veloso e Gal Costa, esvoaçantes,

descendo de um carro enorme. Ele não acreditou no que viu. Ficou

nervoso e resolveu fazer uma surpresa para Alice, que já perguntava,

curiosa:

Page 182: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

— Quem é, Paulo?

Alguém bateu na porta, Alice foi atender e deu de cara com

Caetano e Gal. Leminski vinha por último, tentando se controlar. Ele

ficaria particularmente perturbado com Gal, muito mais do que com

Caetano, diria mais tarde Alice. Depois das primeiras conversas,

todos foram para o quarto, onde os músicos sentaram-se na cama e

o casal no chão. Caetano contou que tinha ouvido falar de Paulo

Leminski na casa de Augusto de Campos, que lhe mostrara alguns

trechos do Catatau. Leminski, por sua vez, começou a tirar poemas

das pastas e a falar sem parar, tentando deixar claro que conhecia o

trabalho de todos os poetas de Salvador. Falou dos poemas de

Augusto gravados por Caetano no ano anterior, como parte da obra

chamada Caixa preta. Falaram de música, poesia e literatura — e,

como num passe de mágica, os códigos se interagiam. Ele estava

finalmente conhecendo o homem que musicava poemas. A conversa

durou horas e nela houve espaço para o trivial, comentários sobre

afinidades recíprocas de um Brasil rico e diversificado culturalmente.

Este seria o primeiro de uma série de encontros entres eles. No

dia seguinte Leminski e Alice foram assisti-los no Teatro Guaíra e, no

final do espetáculo, depois de uma conversa rápida nos camarins,

todos saíram pela noite. Definindo este primeiro encontro, Leminski

diria:

— Foi um traumatismo na minha vida. O Caetano era o meu

ídolo e chegou sem avisar, de surpresa. E, para não deixar barato,

veio com a Gal, divina-maravilhosa, simplesmente fatal.

As conseqüências deste encontro em sua vida se fariam

notáveis não apenas na seleção de camisas mais coloridas e roupas

tropicais, como na própria essência de sua sensualidade. Ele passou

a tirar, com mais facilidade, a roupa que cobria a sua nudez mais

atávica. O polaco encontrava os embaixadores dos trópicos e suas

doutrinas de prazer, capazes de derreter qualquer puritanismo ou

ascetismo de imigrante. Leminski planejou com Alice viagens futuras

Page 183: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

para o Rio e Salvador. Começou a esboçar, do ponto de vista

intelectual, a tese que chamaria de Pororoca, “a ponte arco-íris”, o

encontro das correntes paulista e baiana. O Yin e o Yang. Ele

advertia:

— Sempre tive medo da Bahia, da alegria da Bahia, das

tentações do calor, de Dionísio — esse verdadeiro patrono da Bahia,

que o Senhor do Bom Fim tenta em vão catequizar e exorcizar:

Senhor do Bom Começo e dos sete pecados. Tenho medo que o

termômetro a 40 graus e o azul das praias me dissolvam.

Page 184: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

UM CAPÍTULO À PARTE

O ano de 1975 começa com a volta à publicidade e termina

com o lançamento do Catatau, uma obra que merece um capítulo à

parte na vida de Paulo Leminski. Nesta época, Vítola tinha deixado a

televisão e estava abrindo a agência P.A.Z., em sociedade com alguns

amigos publicitários. Logo nos primeiros meses ele receberia a visita

de Leminski, que foi objetivo:

— Acabei de escrever meu livro e estou com o potencial

redacional livre pra trabalhar. Tem vaga aí?

Eles formaram um time de criação muito conceituado no

mercado publicitário. A eles viriam se juntar os ex-companheiros da

Lema: Solda, Retamozo e o fotógrafo Dico Kremer. Cada um, em sua

especialidade, podia ser considerado “craque” na comunicação. Eram

profissionais que recebiam os melhores salários e viviam num

ambiente franco e criativo. Como Vítola mesmo reconhece, eles não

tinham suporte teórico e trabalhavam basicamente com a intuição:

— Todos éramos iniciantes. O papel do Leminski, neste

contexto, foi muito importante. Ele nos fez entender que havia uma

linguagem própria para cada veículo, o rádio, a TV, o jornal... Ele

apresentava algumas teorias e esperava para ver os artistas

resolverem na prática... Era um animador cultural.

Como redator de publicidade, Leminski orgulhava-se

particularmente da campanha criada para a Imobiliária Galvão, na

qual estruturara a mensagem central a partir do texto base:

A Galvão acha fácil

Page 185: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

O imóvel que você acha difícil

O cartunista Solda, o mascote da equipe, revela que Leminski

tinha outra função além de animador e redator. Era também a

antena do rádio:

— Quando ele se levantava da cadeira e se afastava da mesa, o

rádio parava de tocar. Todos gritavam: “Volta Leminski, deixa esta

música terminar...” Ele então corria para a posição e o rádio voltava

a funcionar. Ele dizia: “É duro este papel de antena da raça.”

O gaúcho Retamozo, que também dividia o espaço e a conversa

com eles, observa que Leminski tinha uma peculiaridade notável:

— Ele não reclamava de nada. Era um sujeito zen, sempre de

bom humor, uma característica rara no curitibano. Aqui é o muro da

lamentação do universo, todos reclamam de tudo. Um baiano tem

orgulho do outro, mas o curitibano, não. O Leminski era o oposto;

qualquer um na sala apresentava uma idéia e ele reagia: “Gênio!” E

normalmente era mesmo.

Foi neste clima e nestas condições que se viabilizaria a

primeira edição do Catatau. Em nenhum momento Leminski

considerou procurar os órgãos oficiais ou uma editora estabelecida

no mercado. Queria a obra marginal, maldita, no sentido da

contracultura, da independência dos próprios movimentos. Na P.A.Z.

ele encontraria soluções técnicas e parceiros para o livro, que foi

sendo montado dentro da agência, utilizando-se as facilidades e o

relacionamento comercial com as gráficas da cidade. O sonho estava

se realizando.

A capa do Catatau, escolhida por ele e montada pelo cartunista

Miran, mostrava uma seqüência de pequenos desenhos primitivos,

cenas de luta na sala de uma tumba em Beni Hasan, no Egito antigo.

Tudo em preto e branco como num fotograma; apenas o nome

Catatau em vermelho. Na contracapa, uma foto com os esqueletos de

uma dupla sepultura descoberta em Grimaldi, em 1895, identificada

Page 186: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

como da espécie Homo sapiens do tipo negróide. As fotos receberam

tratamento em laboratório para fortalecer o contraste, antes de

serem encaminhadas ao fotolito. O livro foi diagramado com 218

páginas e uma advertência do autor: “Repugnado Benevolentiae —

Me nego a ministrar clareiras para a inteligência deste catatau que,

por oito anos, agora, passou muito bem sem mapas. Virem-se.” No

final da história — ou do texto — ficou assim o discurso cartesiano:

Este pensamento sem bússola é meu tormento. Quando

verei meu pensar e meu entender voltarem das cinzas

deste fio de ervas? Novamente: a maré de desvairados

pensamentos me sobe vômitos ao pomo adâmico. É essa

terra: é um descuido, um acerca, um engano de natura,

um desvario, um desvio que só não vendo. Doença do

mundo! E a doença doendo, eu aqui com lentes,

esperando e aspirando. Vai me ver com outros olhos ou

com os olhos dos outros? AUMENTO o telescópio: na

subida, lá vem ARTYCHEWSKY. E como!

Sãojoãobatavista! Vem bêbado, Artyschevisky bêbado...

Bêbado como polaco que é. Bêbado quem me

compreenderá?

Por isso, eles acharam graça quando as equipes de revisão e

past-up botaram o olho no texto e ficaram sem entender o que estava

certo ou errado e sem acreditar no que lhes diziam: que era assim

mesmo. Alice foi obrigada a pegar a tarefa e transformou-se na

revisora e montadora do Catatau, com o que se ocuparia durante

várias semanas neste inverno. Um inverno, aliás, que entraria para a

história da cidade.

17 de julho de 1975. Eles estavam dormindo, cedo pela manhã,

Page 187: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

quando alguém bateu na janela do quarto, freneticamente. Alice

acordou e ouviu uma voz estranha gritando coisas ininteligíveis.

Leminski continuava dormindo. Estava frio. Ela se levantou, abriu a

janela e reconheceu Orlando, o baterista da Chave. Ele anunciava

em estado de euforia a boa nova: estava nevando em Curitiba.

— Venham todos ver — gritava.

Alice acordou Leminski e as crianças. Eles abriram a porta e

viram que estava tudo branco — e fizeram uma festa também.

Orlando levou os pequenos para o quintal onde, juntos, tentaram

construir um boneco de neve, com cenoura no nariz e cachecol. (Não

havia neve para tanto, mas, enfim, eles tentaram.) Alice saiu para

comprar conhaque no botequim da esquina enquanto desfrutava

esses momentos mágicos:

— Eu empurrava um guarda-chuva contra o vento, quando ele

foi deslocado para trás e eu recebi uma golfada de neve no rosto.

Continuei caminhando de boca aberta, comendo e sentindo o gosto

da neve. Neste dia o Paulo só foi trabalhar à tarde. Pela manhã, nós

três derrubamos uma garrafa de conhaque.

A neve entraria para o folclore da cidade como o dia em que a

frieza do curitibano derreteu. Foi registrada uma catarse coletiva em

vários bairros durante boa parte da manhã. Muitas pessoas se

abraçaram e se cumprimentaram nas ruas, falando umas com as

outras, eufóricas. Era a terceira vez que nevava em Curitiba, mas a

última tinha acontecido em 1928 e ninguém lembrava mais. Agora

estava nevando bastante, “como na terra dos nossos avós”, e todos

eram testemunhas disso. No dia seguinte, o jornal O Estado do

Paraná estampava em manchete de primeira página, ilustrada por

uma foto aparentemente clonada de uma paisagem européia:

CURITIBA BRANCA DE NEVE

A neve se dissiparia em algumas horas, mas seus efeitos

Page 188: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

continuariam fazendo a fama e a alegria da cidade durante muito

tempo. Imediatamente foram lançados concursos de música, poesia e

fotografia sobre a neve. As imagens seriam congeladas e

reproduzidas como uma lembrança eterna do grande happening.

No dia 28 de setembro, em entrevista ao Diário do Paraná,

Leminski esquentaria a temperatura cultural ao refletir publicamente

sobre aquele que era, na sua opinião, o grande dilema da

intelectualidade brasileira:

— Como dizem os poetas concretos, a cultura brasileira é

periférica pois é um setor da cultura latino-americana que, por sua

vez, é um pequeno setor da cultura do Terceiro Mundo. Então, ou

você está colonizado ou você está atrasado, se recusar as

informações de fora. Um dos nossos intelectuais da Boca Maldita,

dito engajado, se recusa a aprender o idioma inglês porque, se assim

o fizer, acredita, ficará à mercê de revistas como Playboy, Newsweek,

Times etc.... Ele escolheu o atraso, preferindo ser topeira. Eu optei,

estrategicamente, por ser colonizado. Falo várias línguas,

principalmente o inglês. Ou seja, eu sou antropofágico.

Foi estimulado por esta inclinação que ele lambeu os beiços

quando recebeu de presente dois exemplares de uma edição

sofisticada da Revista de Antropofagia que Augusto de Campos criara

como brinde de aniversário para a empresa paulista Metal Leve S/A.

A edição, com apenas 100 exemplares, trazia em tamanho natural as

1a e 2a Dentições, referente aos anos 1928-1929.

Ele ficaria com um exemplar e me daria o outro de presente (de

Natal), com o seguinte comentário:

— Este é o melhor exemplo de imprensa alternativa, no

segmento cultural. A vanguarda fazendo o Brasil existir com

soberania, mesmo que isso tenha custado a violabilidade do bispo

Sardinha, atazanado em seu Sarcófago histórico.

Page 189: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Um movimento musical liderado por Vítola e Marinho Galera,

reunindo músicos e compositores locais, vinha crescendo dentro da

agência P.A.Z. Leminski fazia parte do grupo que ajudou a batizar de

MAPA — Movimento de Atuação Paiol. Eles se apresentariam

regularmente no Teatro Paiol, durante os três anos de existência do

movimento. Assim aconteceria a primeira apresentação de Leminski

diante de uma platéia — num show com banquinho, violão e

microfone — com músicas de seu repertório. Era a porção MPB

convivendo com a verve de roqueiro radical, em mais uma de suas

contradições explícitas. Surgiriam a partir de agora as parcerias

musicais com Marinho Galera e outros músicos desta praia, entre

eles José Oliva e Celso Pirata, para quem ele escreveria a letra de

“Estratégia”:

Dia vai vir

Você vai ter que travar

Batalhas de verdade

Ai da tua estratégia

Ai da tua tática

Ai da tua defesa

Ai do teu ataque

Se você não fez bom uso

Do tempo da sua paz

Pense nisto, rapaz

E nunca, nunca, nunca mais

Olhe pra frente

Sem antes olhar pra trás

Page 190: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

A música o aproximaria também de Jorge Mautner, um artista

multimídia, militante de primeira hora da contracultura, poeta,

violinista e autor do sucesso “Maracatu atômico”, na interpretação de

Gilberto Gil. Mautner e seu fiel escudeiro, o violonista Nelson

Jacobina, procuraram por Leminski assim que chegaram em

Curitiba para cumprir uma curta temporada. Mautner tinha ouvido

falar do poeta na casa de Gil e conhecia as histórias (ou lendas,

nunca se sabe) que circulavam sobre ele:

— Como eu sou judeu, falávamos muito sobre o tema. O

Leminski tinha um senso de humor incrível. Ele contou uma piada

que falava do êxodo do judaísmo, quando havia um rabino que tinha

chegado ao máximo em sofisticação: elevado a níveis desconhecidos

a arte da lamúria. Ou, então, aquela do rabino famoso à beira da

morte, cercado por um séquito de discípulos, que balbuciou no

ouvido do mais próximo: “A vida é como uma xícara de chá.” A frase

foi se espalhando entre as centenas de pessoas que se enfileiravam

nas condolências: “Ele disse que a vida é como uma xícara de chá.”

O último da fila ouviu e perguntou: “Afinal, por que a vida é uma

xícara de chá?” A pergunta fez o caminho de volta até o primeiro da

fila, que a devolveu ao rabino: “Afinal, por que a vida é como uma

xícara de chá?” O rabino, surpreso, respondeu: “Ora, então, a vida

NÃO é como uma xícara de chá.”

O entendimento entre ele e Mautner foi instantâneo. A partir

do primeiro encontro, na Cruz do Pilarzinho, eles se viram

aproximados por uma série de afinidades. Ambos gostavam de

drogas, sexo, rock’n roll e lutas marciais — Mautner praticava aikidô,

era comunista, místico e leitor de Ezra Pound. No segundo dia de

espetáculo, Leminski foi convidado a subir no palco para abrir suas

apresentações cantando músicas de sua fase mais madura: “Valeu”,

“Luzes” e “Mudança de estação” — que apresentava de forma visceral

e pungente, dando verdadeiras “porradas” no violão. O resultado se

traduzia num show bastante descontraído e afinado com o espírito

Page 191: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

da contracultura. Estas experiências se repetiriam sempre que

Mautner voltasse a Curitiba:

— Eu fiz o convite para o Leminski participar da Revolução

Caótica Permanente e ele aceitou na hora. Alice Ruiz foi convidada e

concordou em participar como comissária de todas as mulheres. Nós

queríamos que o povo brasileiro pudesse ler e escrever. O Leminski

citava o economista e pensador Adam Smith: “A riqueza das nações é

a cultura dos seus povos.” Ao contrário do que muita gente pensa, o

Leminski era um sujeito muito sério.

Com a chegada da primavera, começariam os arranjos finais do

Catatau, em termos de revisão e composição. A gráfica apresentara

um custo pelo trabalho de impressão que, segundo ficou acertado

com a agência P.A.Z. — contra a qual seria emitida a fatura —, ele

pagaria mensalmente, em suaves parcelas e, caso não o fizesse, seria

descontado do salário. Leminski concordou e decidiu finalizar a obra,

dedicando-a “à glória de Paulo Leminski o Velho, pelas mensagens

em código, pelo sangue de Kzysztof Arciszewski. Para Alice pelo

saber, querer, ousar e calar. Para Augusto de Campos, Décio

Pignatari e Haroldo de Campos”. Decidiu também que não teria texto

de orelha e nem prefácio assinado por qualquer “notável”, uma vez

que não se pretendia que a obra viesse decifrada ou mesmo

recomendada. O livro era para ser um enigma e assim seria até o

final.

Não fossem eles todos publicitários, trabalhando na P.A.Z., a

idéia do cartaz talvez não tivesse existido. O fato é que alguém

sugeriu uma peça promocional, em forma de cartaz, lembrando que

poderia ser aproveitada em futuros lançamentos. O objetivo, como

sempre, era chamar atenção através do impacto da mensagem.

Leminski conversou com o fotógrafo Dico Kremer e, juntos, decidiram

fazer uma foto do autor nu, como John Lennon e Caetano Veloso,

Page 192: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

num fundo infinito. E foram para o estúdio. No cartaz, ele aparece

encobrindo o sexo com as pernas cruzadas em posição de lótus.

Estava de barba e cabelos compridos profundamente negros. Sobre

sua cabeça, um título sucinto:

CATATAU

O cartaz foi impresso e posteriormente colado em murais de

bares, cafés e livrarias, para anunciar o lançamento do livro. Era

uma propaganda esquisita para um produto cultural, mas ao mesmo

tempo se mostrava eficiente, pois conseguia chamar a atenção das

pessoas.

O cineasta Sylvio Back lembra-se de que encontrou Leminski

fazendo a entrega das páginas do livro, já compostas e finalizadas,

para a Grafipar, onde seriam finalmente impressas:

— Ele fez uma piada dizendo que o encarregado da

composição, ao tentar corrigir alguns trechos, criou palavras mais

interessantes que as dele e que, portanto, seriam mantidas no texto.

Chamava o funcionário de co-autor. Ele se despediu do calhamaço

de papel beijando as folhas, dizendo pra elas: “até já”.

Finalmente, em dezembro de 1975, o livro ficaria pronto.

Foram impressos 2 mil exemplares, sendo que mil seriam enviados

diretamente para a livraria Ghignone, onde aconteceria a noite de

autógrafos e seria feita a distribuição. A outra metade seguiu para a

casa das Mercês, onde ficaria amontoada no sótão. A festa aconteceu

na calçada da livraria, na Rua das Flores, exatamente em frente ao

bar Cometa, um dos pontos favoritos da boemia intelectualizada.

Leminski receberia uma pequena e ruidosa multidão de amigos e

assinaria vários livros. Assinaria não, colocaria as impressões

digitais com tinta vermelha de carimbo, usando para isso o polegar

esquerdo. Lá estava o pessoal do Bife Sujo, jornalistas amigos e

estudantes. O sonho tinha se tornado realidade.

Page 193: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Depois do lançamento do Catatau, quando, sem dúvida, ele

colheu os louros do sucesso, era hora de trabalhar. Arregaçou as

mangas e colocou em prática o que chamava de “distribuição

qualitativa do produto”, uma estratégia criada para superar o

aspecto artesanal da distribuição. Envelopou e despachou pelo

correio dezenas de livros com endereços certos: os influenciadores de

opinião. O que o afetava, e muito, era ser ignorado pelos “criadores”.

Assim, ele contabilizava:

— Pessoas básicas no Brasil e até mesmo fora do Brasil têm o

Catatau. O Octavio Paz, no México, tem o Catatau, Julián Rios, na

Espanha, tem o Catatau. No Brasil, Décio Pignatari, Caetano Veloso,

Darcy Ribeiro e até Mário Shöemberg têm o Catatau. Eu fiz uma

escolha para um público em condições de impactar.

Nesta época, já morando no Rio de Janeiro, fui encarregado de

levar dois exemplares autografados do Catatau para Nelson Motta e

Gláuber Rocha. Apenas Nelson receberia o dele; Glauber jamais seria

encontrado. Quando ele me passou um dos livros, fez questão de

mostrar o que escrevera: “Para Gláuber, o criador do anti-cinema, uma

pequena amostra da anti-literatura (e logo abaixo, como uma

assinatura:) Do Leminski”. Ele me entregaria ainda outros vinte

exemplares para serem distribuídos, segundo os meus critérios, entre

os vários amigos que tínhamos no Rio: “Você sabe para quem entregar,

compadre.” Devo informar que semanas depois, ao ser despejado da

pensão onde morava, na Lapa, fui obrigado a deixar para trás metade

destes livros como forma de pagamento para o meu senhorio. Não que

a velha Beatriz manifestasse interesse pela obra, muito pelo contrário,

mas jamais me seria permitido voltar aos meus aposentos, mesmo

para resgatar objetos pessoais. Um amigo que morava em Santa

Teresa garante ter visto, dias depois, uma pilha de livros —

aparentemente com as feições do Catatau — em frente do casarão,

esperando o caminhão do lixo. Ele estava no ônibus e nada pôde

Page 194: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

fazer.

O resultado da estratégia de lançamento do Catatau se

revelaria compensador. O livro chamaria a atenção da crítica

especializada e, mesmo sendo editado fora do eixo Rio-São Paulo,

sem a chancela de editora importante, ocuparia um bom espaço na

mídia nacional. A revista Veja não apresentaria, de imediato,

exatamente uma resenha, mas daria a notícia em mais de uma

página, tratando o Catatau como um evento que estava sendo

esperado — um objeto cult com trâmite num certo substrato da

inteligência brasileira. A resenha seria feita logo depois pelo cronista

e poeta Afonso Romano de Sant’anna, que não elogiaria e nem

picharia a obra, mas dedicaria uma coluna inteira com o título “Porre

Verbal”. O poeta Geraldo Carneiro escreveu um artigo elucidativo

sobre o Catatau nas páginas do jornal Opinião. O crítico Léo Gilson

Ribeiro foi mais longe, saudando o Catatau como “o livro do ano” nas

páginas do Jornal da Tarde, onde advertia:

Décadas se passarão até que o Brasil reconheça neste

esplêndido, profundo, perene Catatau, uma de suas

imagens mais radicais e tão perfeitas quanto as

transmitidas por Os sertões, Grande sertão: veredas,

Fluxofloema, Serafim Ponte Grande e pouquíssimos

outros trechos de prosa poética e revolucionária

criatividade, equivalentes, em suas devidas proporções,

à fundamental tomada de posição de um Joyce, de uma

Virginia Woolf, de um Raymond Queneau, de um Céline,

a uma forma de ser e de dizer já pretéritas e que só se

enfrentam com o “Não” rebelde de uma nova forma,

insólita, ousada de dizer esse ser. Catatau já é uma das

obras-primas da língua portuguesa, é uma espécie de

Page 195: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Pedra de Roseta à espera de pacientes Champollions.

Alice lembra-se de que estas palavras — e outras tantas do

longo artigo, todas elogiosas — deixaram Leminski mais do que

eufórico, histérico. Enquanto ele se agitava de um lado para outro,

ela continuaria imperturbável, apenas olhando... Ele reagiu:

— Você não vai vibrar?

Ela respondeu que não estava surpresa, pois afinal este era o

reconhecimento esperado para o talento dele etc.... Mas Leminski

gritava, exclamava “genial!”, relendo o jornal a todo instante. Alice

percebeu que ele estava acumulando problemas de reconhecimento,

ou seja, o não-reconhecimento o deixava desequilibrado. Ao mesmo

tempo — era fator considerável que ele estava esperando mais de oito

anos por este momento. Era uma celebração justa.

Semanas depois a revista José, editada por um grupo de poetas

cariocas, publicaria um longo artigo do crítico baiano Antonio

Risério, com o título “Catatau: Cartesanato”. Risério não conhecia

pessoalmente Leminski mas era amigo de Augusto de Campos, que

lhe presenteara com um exemplar do livro. Incentivado por Augusto,

Leminski escreveria uma longa carta (ver Apêndice 7) a Risério, na

qual revelava a disposição de estabelecer “uma ponte mágica e

epistolar” com a Bahia. Risério tomou a iniciativa e escreveu um

texto-roteiro para a leitura do Catatau, onde, no final, se

descortinava outra apoteose:

Para encerrar, digamos que o Catatau ocupa um lugar

raro na prosa literária brasileira. O que pintou depois

das aventuras textuais de Guimarães Rosa? Quase

nada. Uma exceção, sem dúvida, é o livro-viagem

Galáxias, de Haroldo de Campos. Por tudo isso, o

Catatau é uma surpresa e uma alegria. Não só em

Page 196: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

termos brasileiros. O livro de Leminski deve, sem

esforço, ser colocado ao lado do que há de melhor na

produção literária do continente. Ao lado de Cortázar, do

melhor Cortázar, aquele da Prosa del Observatorio, e do

cubano Cabrera Infante, por exemplo.

E as reações não pararam aí. O poeta uruguaio Eduardo Milán,

secretário pessoal de Octavio Paz, escreveu:

A más de diez años que Paz dijera que la vanguardia

poética estaba en Brasil, hoy, y sin hablar de

Vanguardia, se sigue produciendo la poesia más

creativa. Sigue sendo dificil encontrar, en lengua

española, niveles poéticos igualables a los de Augusto-

Décio-Haroldo; la sintesis teórica era inmensa. Y al nivel

de los más jovenes: raro encontrar experimentos de

formulación teórica tan precisa como Catatau.

E, para finalizar, o professor e crítico Bóris Schnaiderman, que

Leminski tanto admirava como tradutor de poetas russos, fez o

seguinte comentário, inserido num ensaio para a editora Perspectiva,

de âmbito nacional:

Aliás, toda esta problemática da relação prosa/poesia

passou a apresentar-se de modo completamente novo,

depois de obras como as de Joyce e a prosa de

Khlébnikov ou, em nosso meio, o Catatau de Paulo

Leminski. Temos, modernamente, ora a fusão de prosa e

poesia, a explosão dos seus limites, ora justamente o

contrário, um sublinhamento da relação entre ambas,

cada uma com sua especificidade.

Page 197: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

No plano doméstico, a reação ao Catatau foi lenta e nada

efusiva. O ponto principal — e que ninguém podia ignorar — era que

o livro tinha saído, estava nas livrarias e deixava de ser uma “lenda

do Leminski”. Uma lenda de oito anos. Ele, por sua vez, provocava “a

onça com vara curta”:

— Que apareçam os críticos!

Meses depois foram publicadas algumas críticas em jornais

locais, sendo que duas delas vinham assinadas pelos poetas e

escritores Jamil Snege e Jaques Brand. Sobre o primeiro — que

tinha sido namorado de Alice em tempos idos — Leminski diria, sem

alimentar maiores polêmicas: “Fez um artigo que honra a inteligência

local, pela finura das observações, pela perspicácia de leitura que

revela, pelo respeito a um trabalho honesto.”

Quanto a Brand, que na verdade escreveu o artigo “Do

Bigorrilho para o Mundo” antes mesmo do lançamento do livro,

destacando o ego do autor e sua “jogada publicitária” ao posar nu

para um cartaz, mereceu dele mais do que um comentário. Ele foi

para a máquina e escreveu uma resposta que foi publicada no

mesmo jornal, dias depois, com o título “Do mundo para o

bigorrilho”:

O que irrita Brand é que eu usei técnicas de propaganda

para lançar um livro de literatura. Como se a literatura

— numa sociedade de mercado e consumo — fosse algo

de santo ou pátrio. Décio Pignatari ficou surpreso

quando expus a promoção do Catatau. Publicitário,

Pignatari disse que o Catatau era o primeiro livro que

aparecia dentro de uma perspectiva inovadora de

promoção e marketing. Eu tenho o defeito de acreditar

em evolução, em progresso e em saltos qualitativos.

Page 198: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Isso, literariamente, faz de mim um monstro e Brand me

aponta com o dedo.

E, como epílogo, algumas semanas depois do lançamento do

“bumerangue”, ele mesmo se permitiria emitir uma opinião sobre o

Catatau, oferecendo algumas chaves de entendimento, como sempre

de escritor para escritor:

O Catatau procura gerar a informação absoluta, de frase

para frase, de palavra para palavra: o inesperado é sua

norma máxima. A seqüência das frases de um texto

coloca uma lógica. Mas nessa busca da informação

absoluta, sempre novidade, novidade sempre, por uma

reversão de expectativa, ele produz a informação nula: a

redundância. Se você sabe que só vem novidade,

novidades vêm, e deixa de ser novidade. O Catatau é, ao

mesmo tempo, o texto mais informativo e, por isso

mesmo, o texto de maior redundância. Tese de base da

Teoria da Informação. O Catatau não diz isso. Ele é

exatamente isso.

Depois, divertia-se quando alguém conseguia superar o

constrangimento e dizer: “Sinto muito, Leminski, mas este texto é

ilegível.” Ele retrucava, cofiando o bigode:

— Estas palavras falam mais de você do que do livro. Tenho

acumulado elogios dos mais conceituados críticos literários do país.

Assim, entre você e o Haroldo de Campos, eu fico com o Haroldo.

Com algumas peças de roupa e vários livros na mochila,

Leminski e Alice embarcaram para São Paulo com a intenção de levar

o Catatau pessoalmente para os amigos e mestres — e, é claro,

Page 199: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

aproveitar para deixar alguns exemplares nas redações dos jornais.

Nestes dias, na chamada Paulicéia Desvairada, finalmente, eles

conheceriam Risério e Régis Bonvicino, sendo que deste último eles

tinham recebido pelo correio o livro de estréia, Bicho Papel, meses

antes. O encontro aconteceu na casa de Augusto de Campos e,

segundo Alice:

— Estavam o Régis e os dois irmãos Nepomuceno, o Guto e o

Marcelo. Eles tinham em média 18 anos e nos foram apresentados

como representantes da novíssima geração. Num certo sentido, a

minha dificuldade de relacionamento com o Régis começou aí,

quando ele comentou, em particular, que um dos irmãos não

merecia atenção por ter tido meningite na infância. Achei muito

estranha esta discriminação. Ele e o Paulo se tornariam amigos.

No dia seguinte, Leminski e Alice foram levados por Lygia e

Augusto de Campos para um encontro com Antonio Risério, que

estava hospedado com a mulher, Mônica, na casa de Pedro Tavares

de Lima, em Vila Madalena (por acaso, na rua Purpurina, onde eles

ficariam algumas vezes no futuro). Surpreendentemente, dez

minutos após as apresentações, Leminski se aproximou, deu um

forte abraço em Risério, seguido de um inesperado golpe de judô e

uma explicação:

— Não sejamos formais um com o outro...

Eles fumaram alguns baseados e beberam algumas cervejas

naquela noite. Mônica e Alice se entenderam bem, enquanto os dois

firmavam pactos de cumplicidade, principalmente tendo em vista a

esquerda literária. Leminski dizia, brincando:

— Nós temos em comum o fato de que gostamos de bater pra

tirar sangue do nariz.

Ele e Alice curtiram dias animados e produtivos em São Paulo.

Na volta, aproveitaram para dar uma parada no Rio de Janeiro, onde

havia um encontro marcado com Neiva e Ivan num cartório do

Page 200: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

centro. Eles iriam formalizar a ação de desquite — o que permitiria

aos casais, num futuro imediato, legalizar suas situações jurídicas.

Uma carta precatória emitida pela 1ª Vara de Família desfazia o

casamento que os unira durante os últimos treze anos. Neiva voltaria

a usar seu sobrenome de solteira, Maria de Souza. Menos de um mês

depois, a 17 de fevereiro de 1976, o pequeno Kiko (na verdade, Paulo

Leminski Neto), agora com 8 anos, surpreendentemente ganharia um

novo registro civil, com o nome de Luciano da Costa, filho de Neiva e

Ivan. Estava para sempre sepultada a identidade de Kiko, que jamais

seria chamado assim novamente.

De volta a Curitiba, eles se defrontariam com a doença de

Miguelzinho, que continuava misteriosa e perversa. Alice chegaria ao

limite máximo de tolerância, decidindo entrar na fila do Hospital de

Clínicas, onde conseguiria tratamento gratuito e especializado.

Miguelzinho seria atendido pelo dr. Orival Costa, que após várias

baterias de exames e uma investigação no passado clínico da família

chegaria ao diagnóstico de artrite reumatóide, uma doença

hereditária mas de tratamento possível. O médico teria encontrado

sintomas idênticos no histórico clínico da avó Áurea. Diagnosticar a

doença seria meio caminho andado para resolver o problema.

A cura de Miguel, portanto, acontece no exato momento em

que a situação financeira do casal voltava a se complicar. As relações

profissionais de Leminski com a P.A.Z. tinham se deteriorado nas

últimas semanas, como uma conseqüência natural da vida paralela

que ele levava como escritor. O Catatau ainda ocuparia a sua força

de trabalho mais produtiva por diversos meses, com constantes

viagens ao Rio, São Paulo e onde quer que fosse possível lançar e

divulgar o livro. Enquanto isso, eles continuavam vivendo de

trabalhos esporádicos — free-lancer — em redações de publicidade.

Tinham agora mais duas agências para onde produzir: Múltipla e

Exclam. Para o lugar dele, na P.A.Z., foi contratado o ex-aluno

Page 201: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Ernani Buchmann:

— Não havia compatibilidade de horários entre Leminski e a

agência. Eles me chamaram para cobrir uma ausência crônica dele.

O Vítola estava morando no Rio e, com isso, o Leminski tinha

perdido um pouco de sua imunidade. Os diretores diziam que não

podiam contratá-lo, pois ele não existia como cidadão e continuava

sem carteira de identidade.

A visita de Caetano e Gal foi o último acontecimento marcante

na casa das Mercês. Houve um momento em que o edifício entrou em

colapso físico, tornando-se inviável qualquer pretensão de se

continuar vivendo nele. Um buraco de quase meio metro no

assoalho, próximo à porta da cozinha, impedia o trânsito por aquela

área, mas a madeira se mostrava podre em todos os aposentos. Eles

decidiram ir embora e Alice passou a consultar os classificados dos

jornais à procura de ofertas de imóveis. Em poucos dias o problema

estava resolvido. A nova casa, também de madeira, com fogão a

lenha e sótão, ficava num bairro tradicional da periferia, numa das

mais antigas colônias de imigrantes poloneses da cidade.

Page 202: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

CAPÍTULO 8

A CRUZ DO PILARZINHO

Assim que colocou o pé na nova casa pela primeira vez,

Miguelzinho falou sem hesitar:

— Eu não quero morar aqui! Esta casa é mal-assombrada.

Houve um momento de perplexidade e silêncio entre eles. Só

depois de respirar fundo Alice falaria calmamente sobre as vantagens

de se viver naquele grande espaço, cada um com seu quarto e um

sótão para todos. Era noite e ela argumentou que durante o dia

certamente ele teria uma visão menos tenebrosa do lugar. O garoto

tinha apenas 8 anos, mas ficou analisando tudo, por todos os

ângulos. Andou pelo quintal, onde descobriu um poço de água e uma

grande (para ele) árvore carregada de folhas, uma laranjeira. Alice

ficou por perto mostrando o quintal amplo que — ela sugeria —

deveria ser bem aproveitado. Tentou construir em palavras um

futuro possível para a família naquele novo ninho.

Leminski foi para o sótão reconhecer o terreno onde os 1.000

exemplares do Catatau ficariam estocados até serem totalmente

distribuídos. A casa, na rua Jorge Khoury Bhraim, 874, tinha quatro

cômodos em baixo, além da cozinha equipada com dois fogões, sendo

um a lenha. No escritório, o quadro-negro estava de volta à parede

com as habituais anotações em giz. Na sala, um velho baú de

madeira e várias almofadas espalhadas acomodavam os visitantes.

Cadeiras apenas na mesa da cozinha.

Logo nos primeiros dias, Alice e Miguel se impuseram a tarefa

de construir uma pequena horta no jardim ao lado da casa — e

Page 203: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

assim foi feito. Salsa, cebolinha e algumas verduras foram as

primeiras mudas que vingaram. Em pouco tempo eles passaram a

colher os temperos com as próprias mãos. E sentiam prazer nisso.

Num certo sentido, tudo voltava a ser poesia para eles. Inclusive para

Miguel, que fazia seus primeiros poemas projetados para compor um

livro sobre os bichos, sua grande paixão. Ele adorava tigres, ursos,

águias, animais selvagens. Também gostava de escaravelhos,

besouros; onde eles estivessem, embaixo dos postes de luz ou na

porta da cozinha, Miguelzinho estava por perto, investigando. Ele

mesmo, se ícone fosse, poderia ser considerado um passarinho frágil

e sensível.

O bairro do Pilarzinho é um dos mais antigos de Curitiba e sua

história remonta ao final do século XVIII. Seus primeiros habitantes

foram os colonizadores portugueses, seguidos de imigrantes alemães

e poloneses, que se estabeleceram na região a partir de 1858. O

nome se refere à Capela de Nossa Senhora do Pilar, uma das mais

antigas da cidade, construída em 1782. Diz a lenda — ou a História,

como se queira — que a chegada dos poloneses foi saudada com

gritaria e protestos contra os indesejados “arruaceiros e

vagabundos”. Na verdade, sabe-se que estas eram ameaças dos

colonos alemães, fornecedores de produtos granjeiros, lenha e

verduras aos moradores de Curitiba. Em 1872, acusam os registros

históricos, havia 150 pessoas vivendo no Pilarzinho, “em 30 lotes

divididos em 5 hectares cada lote”. Por ali, na virada do século, se

estabeleceram os Prudlik, Grzybowski e Kowalski. E, agora, em

meados de 1976, os Leminski, frutos da mesma árvore.

A repercussão da publicação do Catatau e a visita-surpresa de

Caetano Veloso representariam para Paulo Leminski um acúmulo de

energia nesta virada de página. Energia que se faria acompanhar de

uma certa notoriedade, agora também em escala nacional. (É bom

Page 204: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

que se diga que este processo, em nível local, demorou pelo menos

três anos, tempo exigido para se consolidar a lenda de que “Caetano

apareceu sem avisar na casa do Leminski”.) O poeta continuava

adotando um layout maldito e armazenando idéias radicais na

cabeça, como um samurai das letras. Acentuavam-se-lhes, nesta

época, as contradições: era erudito e popular, arrogante e humilde,

carinhoso e mordaz, trabalhador e preguiçoso, preto e branco. Tinha

os dentes mais estragados, mas isto não importava, pois planejava

mergulhar numa grande safra de produção poética para criar um

volume capaz de ser chamado de livro; seria a primeira reunião de

suas poesias. Alice já armazenava também uma significativa safra de

poemas, que vinham sendo publicados eventualmente em

suplementos culturais ou revistas de literatura.

Na cidade, ainda sob os efeitos da onda lisérgica, Leminski

desfrutava, mais do que nunca, da fama de um sujeito socialmente

imprevisível, identificado pelo establishment como, no mínimo,

inconveniente. Nada nele era politicamente correto; muito pelo

contrário. Um freqüentador assíduo da Boca Maldita, integrante da

turma “do lado de lá”, o jornalista Carlos Alberto Pessoa, ou

simplesmente Nêgo, reconhece que havia uma forte discriminação

contra Leminski nesta época:

— Faziam piadinhas maliciosas, quadrinhas com rimas chulas

e outros comentários desairosos. Podia até haver o estigma de

drogado, de desleixado, de sujeito que não gostava de tomar banho,

mas o que o pessoal não perdoava mesmo era a inteligência e o

talento dele. Isso era imperdoável.

Os órgão oficiais da área de cultura, de olho no padrão

acadêmico da classe média curitibana, não lhe davam a mínima

atenção. Tratavam-no com distanciamento. Como também é possível

que poucos executivos na área cultural tivessem capacidade (ele diria

“instrumental”) para identificar o universo de suas preferências

intelectuais. Em seu cardápio literário e musical, não havia oferta de

Page 205: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

quantidade — e muito menos a abordagem de temas de caráter

“abrangente e popular”, bem ao gosto das secretarias de cultura.

Seus produtos — mesmo enquanto idéias — traziam a marca

registrada do novo, em detrimento do belo. O setor de editoração da

Fundação Cultural de Curitiba, entidade criada por Lerner e

responsável por vários títulos “nobiliárquicos” para autores locais,

levaria mais de quinze anos até publicar um trabalho de Paulo

Leminski. Ele nunca seria convidado (curiosamente, por Aramis

Millarch, agora mais cauteloso, cuidando dos interesses do Estado)

para fazer parte do catálogo de autores, onde estavam nomes como

Jamil Snege, Manoel Carlos Karam, Valêncio Xavier e outros menos

conhecidos. E, se convidado fosse, certamente não aceitaria, pois

estava em sua fase mais radical:

— Curitiba é uma cidade de caretas. Jamais vou virar estátua

aqui porque tenho uma bagana no bolso. A minha missão é outra.

E o “missionário” passou a “despachar” do casarão da Cruz do

Pilarzinho, levando romarias de pessoas excêntricas ao bairro

durante mais de uma década — naqueles que seriam seus anos mais

produtivos. Caravanas se formavam espontaneamente para conhecer

“o tal Leminski, um sujeito fascinante e de posições extremas”.

Vinham de todos os cantos da cidade e do Brasil. Ele curtia:

— Os meninos ficam fumando dentro dos carros e alguém tem

a idéia: “Vamos visitar o Leminski?” Aparecem aqui em bandos.

Fazem perguntas que um aluno deveria fazer ao professor na sala de

aula. Fumamos um, falamos sobre tudo, tocamos violão e eles vão

embora produzir alguma coisa, porque, eu digo sempre: sem

produção não há salvação.

Esta talvez seja a principal virtude de Leminski no

relacionamento com os jovens: ele os fazia produzir. Todos — com

exceção do irmão Pedro, é claro! — saíam de uma conversa com ele

acreditando na capacidade de transformar o exercício intelectual e

criativo numa categoria de trabalho, com direito a mão-de-obra,

Page 206: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

proventos, férias, 13° salário etc... Propunha transformar em

realidade o sonho romântico de uma geração voltada para a criação:

viver de literatura, arte ou até mesmo de jornalismo (que agora

deixava de ser uma atividade para advogados de carreira). Este era o

sonho. Para ele, qualquer um que tivesse sérias pretensões

intelectuais na vida deveria trabalhar duro para ser mais do que um

profissional competente: um profissional brilhante. Este era o

caminho para a verdadeira liberdade, a liberdade de criar. Adotando

um certo tom de soberba, sugeria a adoção de um “espírito olímpico”

de disputa que beirasse o confronto “só pra animar a festa”. Era

competitivo mas mantinha um forte espírito de equipe, tornando a

causa sempre coletiva e distribuindo faíscas de otimismo e auto-

estima (mais do que estima, crença) entre todos que o cercavam.

Descobria com facilidade o que o “outro” tinha de melhor e, com

satisfação e cumplicidade, fazia a revelação:

— Ivo, com certeza você é um dos melhores gogós do Brasil.

Cantando de calça jeans, camiseta e tênis, sem nenhuma fantasia. O

rock é básico.

Ou, então:

— Soldinha, você está no mesmo nível ou acima dos caras do

Pasquim. O que você tem se chama talento!

Nestas horas, como parte da estratégia, gostava de reafirmar a

necessidade de estudos e especialização:

— A receita é de Pound, mas serve até mesmo para quem

escreve horóscopo em jornal: vamos beber das fontes originais e

dispensar as diluições. Depois de conhecer os clássicos fica fácil

identificar os diluidores.

Falava sempre na célebre equação “quanto maior o repertório,

menor o auditório”. Tinha um discurso para subverter esta ordem:

— Temos que fazer John Cage e Joyce chegar às massas. Elas

também precisam desses conceitos para viver melhor. Não traz a

felicidade, mas ajuda a entender o mundo. Daqui a algum tempo

Page 207: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

alguém vai programar Cage como música de elevador. Isto é

evolução.

Os garotos ouviam e percebiam que muito de suas “pregações”

faziam sentido. Ao lado de algumas contradições explícitas — outras

ele expunha involuntariamente —, havia também uma grande e

fundamental coerência: sua própria vida era o exemplo concreto de

que sonhar era possível. Lutava bravamente para viver de poesia.

Era um ser profundamente ideológico. Não planejava comprar um

apartamento na praia, o carro do ano ou estabelecer convênio com o

BNH para adquirir a casa própria — mas sim “brincar” com coisas

sérias e aprender com as novas tendências da arte.

A casa da Cruz do Pilarzinho seria muito freqüentada a partir

da segunda metade dos anos 70. Leminski costumava se referir ao

fenômeno como uma particularidade de Curitiba, uma cidade

culturalmente dividida em “guruatos”, espaços administrados por

gurus. Assim, ele identificava “o guruato do Oraci Gemba, no teatro;

o guruato do Karam, também no teatro. O guruato do Sylvio Back,

com a turma do cinema. Temos ainda o guruato da Boca Maldita,

uma região cheia de profetas”. E se autodefinia:

— Eu fico com os marginais. Fui empossado Ministro-Sem-

Pasta da Marginália.

Quando era levado a acumular o cargo de embaixador da

cultura local, Leminski gostava de levar os amigos “de fora” ao

Templo das Sete Musas, onde Dario Vellozo, o simbolista, construíra

um altar de adoração à cultura helênica, uma espécie de maçonaria

do conhecimento filosófico. Era o Instituto Neo-pitagórico, onde o

centro de toda as atenções, como o próprio nome diz, era Pitágoras.

O templo obedecia a uma arquitetura clássica, réplica dos edifícios

gregos, mantendo a mística das colunas monumentais. Um dos que

foram levados por ele ao templo é Décio Pignatari:

— Era uma coisa estranha, onde havia um altar e um vaso com

Page 208: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

terra retirada do túmulo de Pitágoras. O Leminski adorava este

fanatismo.

Um dia, surgiu na Cruz do Pilarzinho um jovem motoqueiro

pilotando uma 250 de escapamento aberto. Tinha uma cicatriz no

rosto e era bastante selvagem nos gestos. Não trazia uma missão

específica, queria apenas bater papo e conversar sobre

generalidades. O rapaz se apresentou como sendo Fernando Blim.

Leminski achou curioso: Blim?

— É o barulho das “garrafinhas” (ampolas) no meu bolso;

quando eu ando elas fazem blim, blim...

Leminski percebeu que tinha encontrado uma onomatopéia

viva para brincar nos próximos dias e dedicou alguma atenção ao

rapaz, um aspirante ao mundo das letras e da criatividade.

Estabeleceu como premissa universal que “poeta é quem se

considera”. Eles conversaram e tomaram algumas cervejas. Falaram

de suas paixões pelos grafites agressivos, pelas gangues da

madrugada, spray na mão, tudo pela poesia espontânea: Celacanto

provoca maremoto; Lerfa mu.

Dias depois, o motoqueiro voltou à Cruz do Pilarzinho para

mostrar aquele que seria o seu primeiro poema, sua primeira

produção literária, submetendo-a aos rigores do “professor”.

Leminski olharia o texto com atenção mas não identificaria a

natureza das palavras, dispostas em coluna como uma poesia

concreta. Ele reconhecia vagamente algumas grafias. Seria no idioma

húngaro, a língua magiar? Não. Blim explicou:

— São as drogas que eu já tomei: dexamil, desbutal, themiram,

abulimim, mandrix...

Outra vez, um grupo de adolescentes apareceu procurando um

nome para a banda que estavam criando. Os ensaios musicais já

haviam começado mas faltava um distintivo, um slogan que pudesse

soar forte e que tivesse o apelo da “sacação”. Eram duas meninas e

Page 209: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

dois rapazes na faixa dos 17 anos, bonitinhos e rebeldes, fazendo

uma música tosca e rudimentar intelectualmente. Eles chegaram

sacando um baseado de meio metro, um presente para o poeta,

cantaram alguma coisa no violão, mas, no final, depois de duas ou

três canções, não chegaram a um acordo. Os garotos receberam com

reservas a sugestão de Leminski:

— Fratura Exposta — repetia ele, com um sorriso malicioso.

Em junho de 1976, um novo encontro com Caetano Veloso,

durante a passagem da trupe Doces Bárbaros por Curitiba. Desta

vez, Leminski conheceria Gilberto Gil e Maria Bethânia — que, como

Gal Costa, fazia parte de um universo menos intelectual, pouco se

interessando pelas conversas. Gil apareceu uma noite na Cruz do

Pilarzinho, com o percussionista Djalma Corrêa e o guitarrista

Perinho Santana. Foi o primeiro encontro entre eles. Leminski,

sentado no chão da sala, passou a mão no violão e pôs-se a tocar,

cantando músicas como quem diz poemas, ao estilo Bob Dylan — ou

algo ainda mais tosco. Gil também tocaria um pouco e, a certa

altura, improvisaria um “toque” ao novo amigo:

— Pare de beber, pare de beber

pare de beber, rapaz...

Leminski baixou a cabeça, acusando o golpe, mas reagiu

imediatamente, pedindo o violão emprestado para improvisar sobre a

mesma batida:

— Pare de parar... pare de parar

pare de parar, rapaz...

Eles não falaram abertamente, mas ficou claro que Gil tinha

informações de que o álcool estava marcando presença em excesso

na vida do poeta. A despeito disso, eles passaram a noite bebendo e

dando “uns tapas” nuns baseados, enquanto a conversa girava fácil

Page 210: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

pelos trezentos e sessenta graus do sumário.

Nos dias seguintes, enquanto o espetáculo Doces Bárbaros

permanecia em cartaz na cidade, eles se encontrariam nos lugares

mais inusitados. Houve uma conversa com Caetano Veloso numa

mercearia de secos e molhados, ao lado do Teatro Guaíra, quando

falaram sobre Hélio Oiticica e Torquato Neto. Alice fazia parte do

grupo — e o autor desta biografia registraria em fotos este momento:

Leminski aparece de sobretudo escuro e Caetano tomando uma

Coca-Cola com seu casaco estilo London London. Ao longo da

conversa, eles trocaram idéias sobre tropicalismo, Pagu e o filme

Doces Bárbaros, que o cineasta Jom Tob Azulay tinha acabado de

rodar. (Depois, Leminski repetiria algumas vezes, em circunstâncias

adequadas, a frase “Boa noite, Oswaldo!”, com a qual Caetano

encerrava sua participação no filme tropicalista.)

7 de julho de 1976. A turnê Doces Bárbaros é interrompida e os

músicos Gilberto Gil e Chiquinho Azevedo são presos por porte de

maconha, em Florianópolis. Existem fortes indícios de que seria uma

maconha adquirida num hotel, em Curitiba, por um outro músico da

banda, dois dias antes. O fato é que o episódio trouxe sérias

conseqüências para a vida de muita gente. Durante o período na

prisão, Gil aproveitaria para compor temas sobre a indesejada

experiência (a música “Gaivota”, por exemplo, tem como cenário o

caminho para a praia de Canavieiras, paisagem de uma das janelas

do presídio) e assumir intelectualmente o chamado “delito”,

repudiando a hipocrisia e provocando uma discussão nacional sobre

o assunto. O pai do músico, o médico José Gil Moreira da Silva,

apareceria nos jornais para garantir que o filho não era marginal,

trabalhava honestamente e podia ser considerado muito responsável.

Chegou a publicar um pequeno livro médico sobre o tema Canabis

sativa.

Na casa dos Leminski, onde sempre se fumou diante das

Page 211: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

crianças, o assunto foi muito discutido, ainda que

involuntariamente. Eles disseram para os filhos que aquilo

[marijuana] não lhes fazia mal, desde que ninguém soubesse que

fumavam, caso contrário também poderiam ser presos. Agora, a

conversa tinha sido provocada pela tia de Alice, que chegou com os

olhos arregalados, alardeando: “Aquele amigo de vocês, o músico, é

um drogado e está preso em Florianópolis.” Alice argumentou com

convicção dizendo que devia haver algum engano, pois era público e

notório que Gil sustentava a família, ganhava muito dinheiro e tinha

energia suficiente para fazer grandes espetáculos no palco. Houve

um silêncio eloqüente entre elas. Em nenhum momento da conversa

Alice tentou negar, dizendo que Gil não fumava ou algo assim — até

porque ele mesmo tinha sustentado o contrário:

— Eu não tive coragem de assumir para não magoá-la.

Tínhamos um pacto, eu e o Paulo, de nunca fumar na frente de

nossas mães. E assim fizemos a vida inteira.

Dias depois, Leminski criaria um poema que chamaria de “Riso

para Gil”:

teu riso

reflete no teu canto

rima rica

raio de sol

em dente de ouro

everything is gonna be allright

teu riso

diz sim

teu riso

satisfaz

Page 212: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

enquanto o sol

que imita teu riso

não sai

Sabe-se que como conseqüência do infortúnio da prisão,

Gilberto Gil se aproximaria espiritualmente do pensamento oriental,

ligando-se à teosofia e mantendo um novo hábito alimentar através

da macrobiótica. Era o que se chamava de “evolução espiritual ou

mística”. Leminski, é claro, acompanharia este processo com vivo

interesse, acreditando mesmo que “agora tudo começa a fazer

sentido”.

Não se pode afirmar que ele tenha tido uma visão premonitória

do que aconteceria exatamente nove dias depois, quando os jornais

curitibanos amanheceram com uma notícia espetacular na primeira

página. A Tribuna do Paraná chegou a decorar a manchete com

tintas vermelhas, para anunciar em letras garrafais:

Baianos lançaram nova moda?

TAMBÉM AQUI,

CANTOR É PRESO

COM MACONHA

No centro da página, uma grande foto mostrava o guitarrista

Ivo atrás das grades, com os cabelos caindo pelos ombros. Era uma

foto de arquivo onde, desafortunadamente, ele aparecia atrás de

grades cenográficas. Ivo tinha sido preso por agentes da Delegacia de

Entorpecentes no momento que entrava num edifício no centro da

cidade. A notícia continuava: “O artista do conjunto A Chave foi

denunciado por um garoto que notou quando ele deixou cair um

pequeno pacote de plástico contendo a ‘erva’ e avisou a polícia.” Ivo

Page 213: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

conseguiria se livrar do chamado “flagrante delito” mas seria

indiciado em inquérito policial, o que representaria, no somatório dos

acontecimentos, o máximo em baixo astral para os próximos dias.

“Sujou”, ele mandou avisar.

Curiosamente, estes dois dramáticos acontecimentos

transformados em notícias policiais viriam contribuir para solidificar

a estética contracultural do grupo. Havia algo de patético em se

querer rotular o cabeludo Ivo de criminoso ou delinqüente; logo ele,

um sujeito reconhecidamente pacífico e ingênuo. (Dizem que certa

vez tentou entrar no cinema com a namorada, mas sem os bilhetes.

Quando o porteiro pediu os ingressos, ele explicou que “já tinha

superado isso” e continuou andando...) De qualquer forma, o trauma

estava deflagrado. Era necessário agora dar um tempo nas coisas.

Em novembro, os Leminski aceitariam o convite para a festa de

aniversário de Moreno Veloso, filho de Caetano e Dedé, que fazia

quatro anos. Depois de reunir algumas economias, eles embarcaram

num ônibus da Penha e seguiram para o Rio de Janeiro.

Ficaram hospedados na casa do poeta Duda Machado, na

época casado com Suzana de Moraes — ela, por sua vez, filha de

outro poeta, Vinicius. Na festa, Leminski conheceria Moraes Moreira

e reencontraria Risério e Jorge Mautner. Eles passaram horas

conversando, sentados no chão da sala, ouvindo Caetano cantar

uma música que estava terminando de criar. Depois do último

acorde, Caetano comentou que algumas vezes encontrava dificuldade

para dar nome às canções. Leminski observou que, em caso de

dúvida, costumava “puxar” as duas primeiras palavras do poema,

adaptando-as como um título. Caetano murmurou: “Um Índio”? A

música foi gravada com este nome por Maria Bethânia no LP Doces

Bárbaros, em 1976, e pelo próprio Caetano no álbum Bicho, no ano

seguinte.

Ao contrário do que aconteceria no futuro, quando selariam

uma forte e fecunda parceria, Leminski e Moraes Moreira quase não

Page 214: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

conversaram esta noite. De fato, este primeiro encontro não passou

das apresentações. Mesmo assim, quando o casal voltava a Curitiba,

cinco dias depois, sentia-se com as esperanças e os ânimos

renovados. Afinal, tinham se aproximado um pouco mais dos ídolos e

das pessoas pelas quais sempre manifestaram especial carinho e

admiração.

No final do inverno, os Leminski conheceriam um jovem e

dinâmico empresário, Luiz Henrique Garcez de Oliveira Mello — o

Gordo Mello — com o qual trabalhariam no desenvolvimento de pelo

menos dois projetos literários. Gordo Mello, sujeito com ares de

poderoso, reconhecidamente rico e folgazão, era uma figura folclórica

em Curitiba. Diz a lenda — ou a história, nunca se sabe — que certa

noite ele criou o seguinte constrangimento no Teatro Paiol, durante

uma apresentação do conjunto MPB4: sacou uma latinha de cerveja

do bolso, dessas com arroz dentro, e passou a acompanhar o grupo,

fazendo o que chamava de “percussão”. Quando um dos músicos

protestou, pedindo clemência, ele ponderou, compenetrado:

— Não, bicho, pode tocar aí que eu garanto aqui.

Com planos de se lançar no ramo editorial e posteriormente na

política, Gordo Mello decidiu fundar a Editora Etecetera — e

escolheu como trabalho de estréia a edição de um livro de Leminski,

o poeta da terra. Logo na primeira conversa entre eles, surgiria a

idéia de uma edição misturando fotos e textos. O projeto visava a

aproveitar os flagrantes da cidade que o veterano fotógrafo Jack Pires

vinha coletando há mais de um ano. Leminski conhecia as fotos e via

poesia nelas. Jack era paulista e durante os anos 50 e 60 trabalhara

nas grandes revistas nacionais. Era um especialista em imagens do

cotidiano, fotos de gente do povo. Agora, em fim de carreira mas

ainda produtivo, era espezinhado pelos “artistas” da cidade que iriam

apelidá-lo de Jack, o Ex-trepador. Ele não se aborrecia, apenas pedia

“juízo” aos “meninos” com quem trabalhava agora, no mesmo

Page 215: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

sobrado onde Retamozo mantinha seu estúdio de arte. Jack fazia

parte da turma.

Foi assim que certa vez ele apareceu na Cruz do Pilarzinho com

dezenas de fotos 18 x 24, que seriam espalhadas pelo chão para

permitir uma visão global do material. Leminski buscou uma pasta

de poemas no escritório e, junto com Alice, passaria horas

selecionando os textos que se identificavam melhor com as fotos. No

final estava concebida a caixa “Quarenta Clics em Curitiba”,

reunindo quarenta fotos e quarenta poemas. Leminski escreveria no

prefácio:

Jack Pires me convidou para sua festa e nessa festa havia

pipoqueiros, menores abandonados, gente do êxodo rural

jogada pelas praças pensando no destino, vagabundos,

mendigos, biscateiros. Uma Curitiba popular, cotidiana,

cômica, dramática, trágica.

“Fotografia” quer dizer “escrever com a luz”. Fotos.

Grafeim. É o que Pires faz. Um poeta que escreve com a

luz. Logo vi.

Aproximamos fotos e poemas como ideogramas

japoneses. Entre foto e poema — a faísca de uma nova

poesia.

Nenhum texto foi escrito para uma foto. Foi buscada

a relação/contradição texto/foto. Os poemas estavam

prontos já. E deu certo.

Esperamos Pires e eu, que tenha dado certo.

Uma das fotos mostrava uma mulher comum, do povo,

dormindo sentada num banco de praça, com ares de tranqüilidade.

O poema escolhido como referência:

Page 216: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Depois de hoje

a vida não vai mais ser a mesma

a menos que eu insista em me enganar

aliás

depois de ontem

também foi assim

anteontem

antes

amanhã

O lançamento de Quarenta clics em Curitiba, no dia 23 de

dezembro, na Livraria Ghignone, seria marcado pela confusão. As

capas, onde as folhas soltas — mais de 40 — deveriam vir

encartadas, não ficaram prontas a tempo, provocando uma correria

no quartel-general de Gordo Mello. Um funcionário fora encarregado,

de forma desesperada, de conseguir pelo menos 50 caixas na gráfica,

para quebrar um galho. Ele voltou com algumas dezenas de caixas,

que acabaram rapidamente na fila dos autógrafos — e a solução foi

se desculpar, garantindo que os compradores as receberiam em casa,

ou, se preferissem, poderiam retirá-las durante a semana na própria

livraria. Quem comprou, levava as folhas soltas na mão.

Leminski e Jack escolhiam as cartelas para fazer a dedicatória

de acordo com cada leitor/amigo. Assim, por exemplo, Leminski

separou uma foto onde havia uma criança e um longo caminho de

jardim ao fundo, como background, para escrever com caneta

vermelha: “Para Martins, amigo velho e irmão, admiração e carinho

do Leminski”.

Jack Pires escolheu a foto de dois garotos sentados por trás de

um monte de jornais — na Casa do Pequeno Jornaleiro —

aproveitando a poesia de Leminski para dizer: “Martins, só mesmo

um velho para descobrir detrás de uma pedra toda a primavera”.

Page 217: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Apesar das aporrinhações e contratempos da noite, eles se

divertiram tomando uns drinques com os amigos e reforçando o

folclore do momento, criado pela inusitada união de Paulo Leminski

com Jack Pires e Gordo Mello. Uma espécie de geléia geral

curitibana.

Semanas mais tarde, já refeitos da ressaca, os Leminski foram

surpreendidos por uma visita matinal de Gordo Mello, que chegou na

hora do café para comunicar a uma família ainda sonolenta:

— Meninos, estou alugando uma casa perto daqui. Vim avisá-

los que vamos ser vizinhos.

Alice recorda que todos colocaram as mãos na cabeça,

inclusive o Miguelzinho, que exclamou:

— Não!!!

Leminski teria dito:

— Mello, pense bem...

No final de 1976, finalmente, Miguelzinho estava curado dos

problemas nas articulações. O casal continuava vivendo de trabalhos

ocasionais para agências de publicidade — o que possibilitava levar

uma vida sem nenhuma ostentação mas também sem muitas

dificuldades. Eles tinham criado uma espécie de agência própria de

produção de texto, trabalhando em casa para vários clientes.

Leminski costumava contabilizar:

— Além das biritas, nossos consumos são modestos: um ou

dois discos por mês, um show por quinzena e um livro por semana.

Temos conseguido manter o padrão.

O item sagrado das despesas era a escola das crianças. Certa

vez, quando havia pouco dinheiro e duas contas para pagar — a luz e

o colégio —, eles decidiram ficar no escuro por alguns dias. Até

porque, nesta época, mesmo os momentos ruins eram bons.

No início do inverno — como um antídoto para — o poeta

Page 218: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

baiano Waly Salomão, que ouvira falar de Leminski e do Catatau

através de Augusto de Campos e Caetano Veloso, de quem era amigo

e parceiro, chegava de mansinho na cidade. Waly, que na época se

assinava Sailormoon ou Sailorsun, o marinheiro da lua ou do sol, era

parceiro de Jards Macalé na música que representava o hino da

contracultura: o clássico “Vapor barato”, na interpretação memorável

de Gal Costa no disco A todo vapor, de 1971. Agora, depois de uma

temporada em Nova York, Waly estava desenvolvendo o projeto

Babilaques, feito de anotações, poesias informais e textos-sacadas —

e surgiu em Curitiba atraído pela “pedra magneto da poesia”, como

ele mesmo definiu, repetindo Haroldo de Campos:

— Eu fui a Curitiba com o único fito de conhecer Paulo

Leminski. Ele chamou minha atenção, a partir da revista Invenção,

por ser um erudito e um louco ao mesmo tempo, um heterodoxo,

fazendo um trabalho que me interessava muito. Eu gostava da idéia

de atravessar o paideuma da poesia concreta, se abeberar dela e sair

pelo outro lado com uma proposta pessoal. Ninguém trabalhava

como ele, nesta linha. De um modo geral, outros poetas — como o

Cacaso — rejeitavam absolutamente a poesia concreta. Eu achava

esta posição ignorante. Então resolvi fazer a ponte Norte-Sul. Ele não

tinha telefone e eu guardava na memória dois nomes que deveria

procurar em Curitiba: o fotógrafo Júlio Covello e o jornalista Toninho

Martins Vaz.

O Waly me encontraria através do Júlio, que ele conhecera no

Rio durante os anos do desespero. Eu estava em Curitiba fazendo um

jornal alternativo chamado Scaps, em parceria com Retamozo,

enquanto tomava fôlego para uma volta estratégica para a Guanabara

— antes, porém, tinha que cuidar da saúde, temporariamente abalada

pelos excessos.

Quando nos encontramos no hotel, Waly preferiu fazer o trajeto

até a casa do Paulo num ônibus, para conhecer melhor a cidade e

Page 219: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

poder voltar nos dias seguintes. Ele planejava ficar em Curitiba “até

esgotar o assunto”:

— O Leminski era um grande apreciador de Canabis sativa.

Fazíamos verdadeiras toras, algo parecido com uma flauta doce, com

se diz na Mangueira, com a qual embalávamos horas e horas de

conversa. Entre uma baforada e outra, ele sempre tentava me aplicar

um golpe de judô, o que deixava tudo muito elétrico. A conversa era

concentrada e ao mesmo tempo dispersa, pela própria natureza da

Canabis.

Nesta época, todo o trabalho que produzíamos era publicado no

caderno de cultura do Diário do Paraná, o chamado “Anexo”, onde

Retamozo, o único verdadeiramente contratado, agitava as massas. O

jornal estava deixando de ser uma empresa dos Diários Associados e

passava por uma fase de transição, o que favorecia a apropriação

quase clandestina de suas páginas. E nós o fazíamos com a intenção

de contra-atacar o silêncio dominante. Waly trazia também na mochila

vários exemplares de Folias brejeiras, de José Simão, uma pequena

antologia hedonista sobre as grandes vedetes brasileiras, de Luz Del

Fuego a Virgínia Lane. Fizemos uma edição com direito a capa de

caderno: o Paulo editou as Babilaques e eu as Folias Brejeiras. O

trabalho foi realizado com bastante agilidade, de maneira que Waly

ainda estava na cidade quando o jornal circulou com a edição

especial.

Para Waly, este encontro representou a superação de muitas

barreiras ameaçadoras, inclusive a geográfica. Havia algo de científico

nesta alquimia, definida por ele como explosiva:

— O Leminski era uma pessoa nada convencional, cheia de

vitalidade, um agitador no mais alto significado do termo. Não engolia

um papo médio, queria o melhor, nada de “sopa rala”. Ele sempre me

pareceu uma cunha, um divisor de águas na poesia brasileira,

Page 220: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

reunindo o marginal e o erudito como ninguém.

Passamos uma tarde andando pela cidade praticamente sem

destino, vagando entre um bar e outro. O Waly dizia: “Esta é a melhor

maneira de se conhecer um lugar.” Foi quando fizemos a foto

registrando o trio — com Waly de braços abertos sob a Cruz do

Pilarzinho — momentos antes de entrarmos num ônibus. Estava frio e

soprava um vento gelado, apesar do céu profundamente azul. Uma

tarde tipicamente curitibana. Em seguida, fomos ao Bife Sujo tomar

cerveja; Waly, como um bom árabe, se escandalizaria com o quibe frito

recheado com ovo cozido que lhe seria oferecido. Apesar disso, a tarde

transcorreu alegre para todos. O Paulo era, na mesa do botequim, o

apresentador oficial do folclore da cidade. E assim seria por muitos

anos.

No início de 1977, cansada de guerra e acometida por uma

forte crise de depressão, dona Áurea era motivo de preocupação para

todos, com sinais visíveis de apatia e inanição. Ela simplesmente

parou de comer. Prostrada numa cama, mantinha-se sob os

cuidados das cinco irmãs na antiga casa dos Pereira Mendes, na rua

Duque de Caxias. Como conseqüência imediata, uma nova crise se

instalou entre os irmãos. Tal como havia acontecido anteriormente,

Paulo costumava rechaçar com muita energia as atitudes

intempestivas de Pedro. Agora, o irmão mais velho exigia toda

atenção e cuidados com dona Áurea, que não podia ter

aborrecimentos “em hipótese alguma”. O grande problema com

Pedro, na maioria das vezes, eram as dívidas financeiras que ele

assumia e não conseguia pagar. Como se diz na gíria, era um joguete

fácil na mão dos agiotas. Ele e a mãe viviam com o dinheiro da

pensão deixada pelo pai, que se mostrava insuficiente para cobrir

todos os gastos. Em meio às tórridas discussões, Leminski

reafirmava a necessidade de Pedro arrumar um emprego

urgentemente: “Afinal, você já tem 30 anos, brother?”

Page 221: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Na primeira semana de maio fizemos uma viagem a São Paulo,

Paulo e eu, onde ele programara visitar Augusto de Campos e fazer

contatos com seus amigos poetas. Embarcamos num ônibus noturno

da Penha levando duas garrafinhas de Coca-cola misturadas com

cachaça — o popular “samba” — que foram reabastecidas no

caminho. Passamos a noite bebendo e conversando com empolgação,

as always. Devo dizer que, para desespero dos outros passageiros, o

Paulo liberava enormes bolas de fumaça do cigarro, enquanto

gesticulava nervosamente, tirando e colocando os óculos de aros

escuros. Como um reflexo total de imprudência, dormimos dez minutos

antes de chegar em São Paulo e descemos quadrados na rodoviária.

Durante os três dias previstos de agitação na Desvairada,

ficaríamos hospedados no apartamento de Risério e Mônica, no bairro

de Perdizes. Risério acabara de escrever os fascículos sobre Caetano e

Gil da série MPB, publicada pela Editora Abril, e estava em contato

direto com os músicos, o que garantia uma boa fonte de informação. E

informação era tudo que buscávamos.

O apartamento era uma espécie de república poética da nova

geração, ponto de encontro para Régis Bonvicino, Walter Silveira,

Lenora de Barros, Ornar Khouri, Jorge Caldeira e muitos outros, que

recebiam as visitas ocasionais dos “professores” Augusto, Julio Plaza,

Décio Pignatari e Zé Agripino.

Havia alguma expectativa neste grupo em torno da visita e do

trabalho de Paulo Leminski. Augusto, que estava lançando RE-

DUCHAMP, em parceria com Julio Plaza (ensaio sobre Marcel

Duchamp), nos avisaria que no dia seguinte, um sábado, teríamos um

almoço na casa dele, onde deveriam aparecer Regina Vater e

Sebastião Uchôa Leite, que manifestaram o desejo de conhecer

Leminski. No dia e na hora marcados lá estávamos, tocando a

campainha no apartamento de Augusto, que já fazia sala para o irmão

Haroldo e o professor Pignatari. Sem tergiversar um minuto, o Paulo

Page 222: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

pediu algo para beber e sentou-se no chão, acomodando-se no tapete.

Bebeu com grande sofreguidão e nenhum comedimento, apesar dos

olhares de preocupação de Augusto. Ele suportou cerca de meia hora

de conversa animada, mas logo cansou e acabou dormindo,

ressonando como um grande urso. Os convidados chegaram e ele

continuaria dormindo. As reações diante daquele corpo inerte, no meio

da sala, foram diferentes. Regina Vater não lamentou muito. Ela

apenas sorriu e comentou:

— Faz sentido. Foi como me disseram que ele era.

O poeta Sebastião Uchôa, um pouco impaciente, chegou a sugerir

a remoção do corpo para um dos quartos, já que estava atrapalhando

o trânsito em frente das poltronas. Augusto, no papel de anjo da

guarda, interferiu:

— Vamos deixar ele dormir... Eles viajaram a noite inteira.

Eu confirmei:

— Sim, estamos muito cansados, isso é verdade...

O Paulo acordaria horas depois, quando as visitas já tinham ido

embora, pedindo “urgentemente” uma cerveja bem gelada.

Nestas temporadas em São Paulo, ele observava prioridade

absoluta para os contatos dito “profissionais” com seus mestres. Tinha

perguntas a fazer, inquietações para deflagrar e descobertas a

anunciar. O mais influente era Augusto de Campos, embora todos

tivessem sua parcela de responsabilidade em seu projeto intelectual.

Risério lembra que o ritual era quase sagrado. Na hora de sair para

encontrar Décio Pignatari, por exemplo, ele dizia em tom de

brincadeira:

— Então, Risério, tudo pronto! Vamos lá tirar sangue do

velhinho?...

Houve uma conversa, entre ele e Risério, ambos sentados no

chão do apartamento, minutos antes da nossa despedida, que

entraria para o anedotário de sua vida. Um tanto quanto intrigado,

Page 223: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Risério perguntou:

— Percebo por suas preferências de leitura que Freud não tem

nenhuma importância, nem mesmo como linguagem. Como pode

alguém no mundo moderno dispensar Freud?

A pergunta foi uma surpresa. Bem ao seu estilo, Paulo ergueu

lentamente a cabeça, ajeitando os óculos e a sobrancelha, deu uma

baforada no cigarro e reagiu com precisão:

— Acontece que eu não tenho psiquê. Eu sou a Besta das

Araucárias. Não me faz a menor falta o universo freudiano. Até mesmo

porque tudo está na mitologia grega.

Logo depois estávamos na rodoviária, voltando para Curitiba

com um grande volume de livros e revistas embaixo do braço.

Nesta época, Leminski revelaria seus planos de viver apenas de

jornalismo, trabalhando em casa, e — o que era o grande desafio —

mantendo-se dentro da mesma faixa de produtividade, com o rigor de

horários e tudo. Tal iniciativa pode ser encarada, neste momento,

como uma armadilha para urso, na medida em que a nova rotina o

deixaria mais próximo da vodca e longe dos olhares vigilantes dos

chefes de redação. Alice, por sua vez, aceitaria um convite para fazer

parte de uma equipe de propaganda e, ao se afastar de casa durante

as tardes, deixaria a cena armada para a elaboração de um crime.

Os tempos tumultuados teriam imediatas conseqüências na

vida doméstica do poeta. Os excessos com o álcool afetariam

visivelmente seu equilíbrio emocional. Certa vez, ao tentar acordá-lo

durante um pesadelo, Alice foi atacada no pescoço e quase agredida.

Ele urrava e vociferava palavrões mas continuava dormindo, em

transe. Quando finalmente acordou, não fazia a menor idéia do que

tinha acontecido. Seu estado de irritabilidade o deixava por vezes em

alta voltagem, como um vulcão prestes a explodir. Foi o que

aconteceu em Florianópolis, durante um evento de literatura onde

estavam também Décio Pignatari e o escritor Domingos Pellegrini,

Page 224: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

um representante da chamada “poesia engajada” e, portanto, seu

adversário em potencial.

Depois de tomar alguns drinques, Leminski dormiu durante a

palestra de Pellegrini, cujo teor conhecia muito bem e já tinha sido

motivo de polêmica entre eles. Neste dia, porém, Pellegrini

apresentaria uma palestra diferente das anteriores, menos fechada e

mais simpática às experimentações dos poetas concretos. Sem saber

disso, Leminski, acordado pelos aplausos finais, levantou-se, pediu a

palavra e começou uma argumentação que aos presentes soaria

quase como um teatro nonsense. Em pouco tempo a platéia percebeu

que ele tinha assistido a outra palestra. Ouviram-se alguns risos

contidos... Leminski, que já não estava entendendo nada, ficou

irremediavelmente desnorteado quando Pignatari saiu em defesa de

Pellegrini. Confuso, ele não prestou atenção em Alice, que tentava

impedir a catástrofe, alertando-o baixinho, com o canto da boca:

— Paulo, não é nada disso!

Ele suportou duas ou três vezes as intervenções dela, até reagir

com um sonoro palavrão para, em seguida, continuar esbanjando

cátedra em seu equívoco. Quando finalmente descobriu o que estava

acontecendo, Leminski sentiu o golpe. Tal exibição de ego não lhe

facilitava as amizades. Muito pelo contrário.

No dia seguinte, durante um passeio no balneário de

Camboriú, quando se mostrava sóbrio, Pignatari aproveitou para

reforçar seus apelos, pedindo que ele cuidasse um pouco da saúde.

Os três caminhavam pela praia, envolvida numa bruma de inverno,

quando Leminski ouviu algo parecido com um sermão. Décio falou

textualmente — e com muita calma — que alguém com o potencial

dele não tinha o direito de se destruir daquela maneira etc.... Ele

ouviu em silêncio — como se o silêncio fosse uma estratégia — e

nada argumentou, mesmo quando era isso que se esperava dele. Não

era difícil perceber que estava com os nervos à flor da pele e que,

mesmo com todos os disfarces, esta tinha sido uma parada indigesta

Page 225: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

para ele.

Certa vez, no auge de uma crise, Leminski destruiria o violão

na parede depois de atirá-lo em Alice. Era o violão que tinha sido

presente de José Louzeiro. Ele ainda mandaria o instrumento para

uma oficina especializada, mas não havia nada para ser feito: o

violão estava morto e o casamento abalado. Para tentar salvar o que

consideravam “um verdadeiro caso de amor, uma love story”, a

reação do casal foi imediata. Alice intensificaria a carga de trabalho

na agência de publicidade (chamada Século XX) e Leminski

escreveria resenhas em jornais locais para estimular a discussão

sobre o Catatau, agora reforçado pelo leferendum bem qualificado de

Caetano Veloso. Tudo levava a uma mudança de hábitos — e ele

efetivamente passou a beber menos, substituindo o conhaque e a

vodca por bebidas mais suaves, ou ligth, como dizia: vinho branco,

cerveja ou martíni, sem nunca misturá-las. Na avaliação de Alice, ou

as coisas mudavam entre eles ou a relação amorosa estaria

irremediavelmente comprometida. Alterar o hábito alimentar era um

bom começo.

Em meados do ano, a mãe de Alice sofreu um acidente

estúpido, porém com sérias conseqüências. Ela foi atropelada num

dia de chuva, no centro da cidade, tendo como resultado uma

clavícula quebrada e leves escoriações pelo corpo. Nada

aparentemente muito grave, mas na idade dela uma fratura de osso

não seria algo fácil de resolver — e dona Angela passaria por um

longo calvário de tratamentos e operações. Ela iria falecer em

decorrência deste acidente, exatamente um ano e dez cirurgias

depois. Ao longo deste tempo, Alice se afastaria circunstancialmente

da Cruz do Pilarzinho para dar assistência à mãe — e esta fase

coincide com outro problema de saúde na família, desta vez com o

próprio Leminski.

Depois de uma tarde de cerveja com os amigos, ao deitar-se,

Page 226: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

ele passou mal e vomitou. Como sempre acontecia nestes momentos,

tentaria camuflar a situação. Alice, percebendo que algo estava

errado, levou uma bacia para o quarto, que logo ficou manchada de

sangue. No dia seguinte, um médico conhecido, o dr. Jamur,

apareceria para uma visita rápida. Leminski estranhou a

movimentação na casa e, mais uma vez, tentaria fugir da raia. Na

hora da consulta, ameaçou se aproveitar do fato de que o médico era

especialista em semiologia médica — uma área com muitas

afinidades com a semiologia da lingüística — para transformar a

conversa num encontro de intelectuais. No final, depois de ser

examinado, o diagnóstico não lhe pareceria duro demais. O dr.

Jamur foi categórico:

— Sim, é grave. Você pode morrer em poucos meses, mas

tenho certeza que, no seu caso, o pior seria a degenerescência dos

neurônios.

Assustado, assim que o médico saiu Leminski voltou-se para

Alice e anunciou:

— Fofa, não boto mais nem uma gota de álcool na boca!

Depois de permanecer por algum tempo estacionado na fase

light, fazendo uma espécie de vestibular para a abstinência, Paulo

Leminski parou completamente de beber. Ficou restrito aos baseados

e aos cigarros “caretas”, que continuava fumando com grande

voracidade. Para compensar os impulsos de oralidade, bebia

refrigerantes compulsivamente, que lhe eram servidos em taças de

champanhe. Nesta época, já fazia parte do layout um vasto bigode,

no melhor estilo Emiliano Zapata, que ele adotara com o propósito de

esconder os dentes estragados.

Convidado a dirigir um canal de televisão — a TV Paraná, uma

empresa dos Diários Associados — desembarca em Curitiba, “para

ficar”, o jornalista e poeta Reinaldo Jardim. Considerado um

profissional de elite, responsável pela histórica reforma gráfica do

Page 227: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Jornal do Brasil, nos anos 50, Jardim tinha o perfil de um jornalista

ligado às artes visuais. Ele ficaria pouco tempo na televisão. Logo

seria convidado a criar o projeto de reforma do Diário do Paraná,

onde cuidaria particularmente do suplemento cultural “Anexo” e se

encontraria com Retamozo, que comungava das mesmas preferências

estéticas. Com seu reconhecido espírito de aventureiro, Jardim logo

envolveu-se na criação de um outro jornal diário, o Correio de

Notícias, onde pôs em prática uma concepção modular de

diagramação, concebendo um jornal vistoso e visualmente apelativo

(no bom sentido, é claro). Teve início, então, uma fase bastante

efervescente de produção cultural na cidade, com quatro frentes

ativas na imprensa: além do suplemento do Correio, estavam a todo

vapor o “Anexo”, do Diário do Paraná, e Raposa, um jornal de idéias e

grafismos, editado pelo cartunista Miran, que todos chamavam de

Mirandinha. Havia também, pelo lado civil da sociedade, uma certa

distensão política, com o país vivendo os “brandos anos Geisel”,

quando aconteceria a tal abertura democrática “lenta e gradual”.

Em seguida, Jardim criaria um escritório de promoção com o

propósito de transformar Curitiba em Pólo Cultural — e editaria

semanalmente um jornal com o mesmo nome em quatro versões,

uma para cada “arte”. Leminski logo estava trabalhando com ele,

cuidando do segmento Inventiva, dedicado a “textos, experimentos e

vanguarda”. Os outros eram Espaço (arquitetura), Artes (espetáculos)

e Grafia (o jornal da foto). Em todas as publicações, Leminski teve

atuação constante e significativa, mostrando uma profusão de

poemas, ensaios e textos em prosa. O poeta Waly Salomão, mesmo

morando no Rio de Janeiro, participava destas invenções:

— Houve um momento em que Curitiba tinha a melhor

produção nacional em publicações de arte e literatura. Um

acabamento gráfico de primeira com profissionais cuidando de

textos, desenvolvendo grandes idéias temáticas e com ousadia. Era

muito sofisticado.

Page 228: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Em carta ao amigo Régis Bonvicino, datada de 27 de janeiro,

Leminski exultava: “O troço aqui tá bom pacas, tá dando pra se

mexer. Recebendo um alô teu e de Risério de quando em vez dá até

pra agüentar.”

Em 29 de abril de 1977, confirmando sua paixão pela cultura

oriental, Leminski publicaria uma edição especial do Anexo

abordando o tema “Zen e as artes marciais japonesas”, com design

de Retamozo. Na capa do suplemento, ocupando a página inteira,

aparecia o intrigante e elucidativo Jogo do Senhor e do Servo, “criado

por um mestre Zen para significar o relacionamento do praticante

zen com a Verdade Última”:

Page 229: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

O ensaio tinha como título “Zen: o fruto de um silêncio de

Buda” e apresentava oito koans, “anedotas zen para abrir sua cuca”.

Um desses koans, o de número 8, tinha como título “O Mestre Ikkyú

e o Eremita”, de que Leminski gostava particularmente (ver Apêndice

8).

Suas contribuições para a imprensa diária foram bastante

significativas. Ele abria as páginas democraticamente (“neste negócio

de democracia temos que ser muito seletivos”) e propunha a

discussão de temas pouco convencionais, dando um sentido de

evolução ao seu trabalho, quase sempre com um cunho didático

permeando as abordagens. No dia 6 de julho, também no Anexo,

publicaria uma página dupla, com dois artigos diferentes. Num

deles, falava pela primeira vez, dez anos depois, da “contribuição do

grupo Áporo” para Curitiba, concluindo: “Éramos um bom grupo.

Mas, entre os que foram e os que chegaram, ficou o espírito de uma

época em que criar era um esporte nesta cidade.” No segundo texto,

“Onde está a poesia?”, ele mesmo respondia:

A poesia está na literatura. A poesia está na letra de

música popular. A poesia está no cartum e em

experimentos gráfico-plásticos. A poesia está nesses três

lugares. Existe tanta poesia em Drummond quanto em

Caetano, Millôr Fernandes e John Lennon.

Page 230: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

A produção não se limitava apenas a uma amostragem em

âmbito local. Vendo ampliar seu ciclo de amizades e parcerias,

Leminski articulava-se nacionalmente com os “fazedores de coisas”,

participando de diversas experiências literárias. Na revista Código no.

3, editada em Salvador por Risério e Erthos Albino, ele apresentaria

um trabalho gráfico onde o centro do desenho era a palavra POESIA,

circundada por raios de frases (como raios de sol) com suas

múltiplas definições e respectivos autores. Assim, para Mário de

Andrade, poesia é “tudo o que meu inconsciente me grita”. Para

Roman Jakobson, “é a mensagem voltada para a mensagem”; para

Oswald de Andrade, “é a descoberta das coisas que nunca vi”; para

Fernando Pessoa, “um fingimento deveras”. E assim por diante... Ele

tinha compilado, ao longo dos anos, a definição de vários escritores

sobre poesia. Ao mesmo tempo, participava da revista Muda, editada

em São Paulo por Augusto de Campos, onde publicaria o poema que,

no futuro, lhe serviria como uma grife:

o pauloleminski

é um cachorro louco

que deve ser morto

a pau a pedra

a fogo a pique

senão é bem capaz

o filhadaputa

de fazer chover

em nosso piquenique

Todas estas atividades, constantes e regulares, faziam

aumentar o volume de originais em seus escaninhos. A visão de uma

pilha de poemas sobre a mesa acabaria estimulando nele a

Page 231: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

expectativa de publicar um livro com regras e sintaxe puramente

poéticas. Enquanto isto não acontecia, ele seguia musicando a

poesia.

Em novembro de 1977, finalmente a estréia em disco. Depois

da grande “batalha” em que se transformou a fase de produção, em

São Paulo, ficava pronto o compacto simples d’A Chave, com duas

músicas by Leminski: “Buraco no coração” e “Me provoque pra ver”,

apresentada no estilo rock-a-billy:

Você não cansou

De me convencer

Que eu sou o cara duro

Que vai te amolecer

Mas pode me crer

Você sendo tão pura, baby

Vai desaparecer

Eu sou o cara duro

Que vai te amolecer

Se o dia é de sol

Sou eu que faço chover (ha ha ha)

Sou de carne e osso

E adoro uma tentação

Me provoque pra ver

Pura, pura, pura

Este teu jeito de pura

É pura provocação

Me provoque pra ver

A festa de lançamento do disco aconteceria no ginásio do

Page 232: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Círculo Militar, tendo o músico Manito, do conjunto Os Incríveis,

como convidado especial, tocando sax tenor na banda. Em artigo

publicado na Folha de Londrina, no dia 22, Leminski responderia às

críticas de alienação que se fazia ao “roque brasileiro”:

— É claro que não se trata de uma manifestação

autenticamente nacional. Mas essa discussão nasce sempre viciada

por esquemas artesanais, pré-industriais, nostálgicos. Como se a

cultura brasileira fosse um objeto de substância rara que tivesse que

ser preservado de influências estrangeiras e de ataques de corsários

franceses, holandeses, ingleses, fenícios...

A estréia em disco vai coincidir, paradoxalmente, com o

momento em que a banda A Chave deixaria de existir. Cansados de

tentar uma independência financeira, depois de quase dez anos “na

estrada”, os meninos capitularam. Atraídos para outras atividades,

Orlando e a namorada Wilma partiram para a criação de um estúdio

de fotografia; Eli formou-se engenheiro químico e foi trabalhar numa

empresa do setor; o baixista Carlão continuaria na produção de

shows, agora como músico da banda Bartenders; Ivo e Paulinho

deram continuidade às respectivas carreiras participando do

Blindagem; que nos anos seguintes gravaria em vinil a grande

produção musical de Paulo Leminski.

Nestes dias, Gilberto Gil voltaria à cidade, agora com o show

Refavela, em temporada no Teatro Guaíra. Na banda que o

acompanhava, estava Lúcia Turnbull, guitarrista que Leminski havia

conhecido anos antes como integrante da banda Tutti Frutti, de Rita

Lee. O grupo faria uma visita à Cruz do Pilarzinho, quando todos

passaram a noite conversando e tocando violão. Lucinha, como é

conhecida, lembra-se do charme derramado pelo poeta, que dias

depois lhe mandaria um telegrama dizendo:

— Um beijo no lóbulo da orelha esquerda.

PS: Devolva o arrepio.

Page 233: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

O ano de 1978 traria a perspectiva de mudança de emprego

para o casal. Alice se afastaria da agência de publicidade para

escrever nas revistas da Grafipar, a mesma editora onde o Catatau

fora impresso. A gráfica editava uma profusão de pequenas

publicações, sendo que uma delas, chamada Peteca, permitia contos

eróticos e horóscopos picantes. Alice passou a escrever ensaios e

histórias em quadrinhos, contando com os desenhos de Solda e

Rogério Dias — que editavam também Passarola, então a revista de

bordo da Varig. Leminski voltaria a trabalhar na P.A.Z. com

Retamozo e Mirandinha, o que significava uma aproximação maior

do jornal Raposa, onde era um dos editores.

Tudo parecia perfeitamente encaixado e sobre controle, com as

atividades profissionais a mil, quando a doença de dona Áurea se

agravou. Ela foi internada no Hospital Militar e faleceu no dia 12 de

fevereiro. A notícia deixaria a todos desarvorados. Pedro voltaria a

beber durante o velório, a ponto de perder a cabeça e provocar um

grande bate-boca com o irmão — o que representaria o rompimento

das relações entre eles. E desta vez seria pra valer.

Alice acredita que — sem nenhum exagero — dona Áurea possa

ter morrido de tristeza:

— Sem o companheiro, ela foi progressivamente perdendo o

prazer de viver. O casal tinha uma cumplicidade de vida muito

grande. Ela foi ficando muito triste até parar completamente de

comer.

Dona Áurea foi enterrada ao lado do marido Paulo Leminski, no

jazigo da família, no Cemitério da Água Verde.

A morte da mãe, somada à crise afetiva com Alice, reforçaria

em Leminski a disposição assumida de se manter abstêmio por

algum tempo. A canabis — não incluída por ele na categoria das

drogas — continuaria sendo sua companheira inseparável. Em carta

ao amigo Bonvicino, a 13 de abril de 1978, referia-se a esta nova

Page 234: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

empreitada como “o mesmo que domar um touro enfurecido”:

meu fígado deu um stop, parei de beber total: está

fazendo uma semana que não provo álcool, se der não

provo mais. cheguei à conclusão q o álcool até agora

tinha me dado, mas ia começar a me tirar, não quero

acabar como f pessoa com hepatite etílica aos 44 anos.

pound e maiakovski, os maiores poetas do século, não

bebiam.

No dia 24 de julho — mais de três meses depois, portanto — ele

escreveria a outro amigo (por acaso, este biógrafo) uma longa carta

onde voltava a falar da abstinência, agora encarando-a como um

projeto mais amplo, envolvendo vida e obra e que, finalmente,

resultaria na idéia (estética) de delírio e rigor ou visceralidade

tropical e geometria cartesiana:

aqui

multiplico minhas

formas

até o extremo limite de minhas forças

polo raposa poesia livros propaganda

isto é até onde posso ir sem sacrificar o rigor

ando aliás fanático pela idéia de rigor

o que é um contrasenso

fanatismos nada têm de rigorosos

um rigor digamos romântico

apaixonado

de descoberta

Page 235: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

invenção

sóbrio

estou na fase mais exata de minha poesia

A casa da Cruz do Pilarzinho se encaminhava para ser

reconhecida como um dos elementos mais autênticos do

underground curitibano. Festas e tertúlias, encontros profissionais e

churrascos se sucediam em ritmo de cavalaria rusticana. Leminski

receberia a visita de Sinval de Itacarambi, seu ex-colega do mosteiro,

que, de passagem pela cidade, acabaria dormindo uma noite no

sótão do casarão. Alice estava viajando — e os dois passaram a noite

conversando sobre as lendas e histórias do mosteiro — e sobre o

avanço de suas respectivas religiosidades. Para Sinval, agora um

jornalista trabalhando como diretor da Rede Globo, este reencontro

serviria para consolidar uma velha amizade:

— Eu reencontrei o Leminski ainda bastante elétrico, orgulhoso

de seus valores e humilde por contradição. Relembramos as boas

coisas do mosteiro e fizemos algumas análises sobre o nosso

universo intelectual. Ele estava mais maduro e senhor dos seus

passos literários. Finalmente, começava a ter o seu talento

reconhecido.

Ao mesmo tempo, o casal Leminski continuaria se relacionando

com outros representantes da intelectualidade local. Mantinham

contatos com os poetas da Cooperativa de Escritores, que reunia

Domingos Pellegrini, Reinoldo Atem, Raimundo Caruso e Hamilton

Farias, reconhecidamente de esquerda e representantes da literatura

politicamente engajada. No primeiro encontro com Reinoldo, num

botequim, Leminski se mostraria irônico e, no mínimo, atrevido, ao

ouvir dele a lista de compositores e músicas preferidas:

Page 236: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

— Mas, me diga uma coisa, depois da Segunda Guerra não tem

nada?

Apesar das aparentes animosidades, eles ficariam amigos. Alice

e Leminski estavam lendo A Revolução Russa, de Trotski, quando

Atem e a mulher Sueli foram presos pela polícia política. O motivo

pueril seria uma escolinha para crianças que estaria funcionando

sob a didática de Karl Marx. O assunto parecia uma piada, mas era

grave. Eles ficaram preocupados porque na escola havia outras

crianças, filhos de outros amigos. Foi um momento de tensão na

cidade. Alice lembra-se com carinho do episódio, por estar nele

embutida a revelação de um sentimento de fraternidade ideológica

com os amigos, com os quais esteticamente tinham posições

distintas e mesmo antagônicas. Leminski costumava dizer: “A

realidade objetiva é a prostituta mais barata no mercado das idéias”,

referindo-se às poesias cujas temáticas versavam sobre “bóias-frias

ou metalúrgicos do ABC”. A convivência entre ele e os rapazes da

cooperativa renderia muita polêmica intelectual nos jornais locais.

Atem lembra que era uma questão de marketing entregar antes

para Leminski qualquer livro a ser lançado pela Cooperativa:

— O Polaco certamente iria ler e cair de pau na imprensa,

acusando a obra disso ou aquilo. Assim, o livro tinha alguma chance

de ser comentado.

Então, certo dia, depois que a poeira baixou, Pedro apareceu

na casa do irmão brandindo um exemplar da revista Panorama com

a reportagem sobre o caso da escolinha — e, orgulhoso, mostrava a

foto de Ellinha, uma das crianças arroladas na confusão. Seguiu-se

uma grave divergência entre os irmãos. Leminski considerou um

absurdo — “uma pobreza”, ele dizia — alguém se envaidecer por ter

seu filho apontado como criminoso, ou mesmo envolvido num caso

policial. Ele acusava o irmão de aceitar ser notícia a qualquer preço,

nunca pelas vias normais de produção, como músico ou poeta. Foi

um bate-boca danado. Pedro saiu pela porta para nunca mais voltar.

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No final, Miguelzinho, que tudo ouvia, virou-se para os pais e

fulminou:

— Falem a verdade: vocês não são militantes porque se

preocupam comigo e com a Áurea.

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OUTRO CAPÍTULO À PARTE

Foi após um período de calmaria e prosperidade, quando a

Cruz do Pilarzinho podia ser comparada a um verdadeiro paraíso,

que um novo e poderoso acontecimento surgiria na vida deles. Nesta

época, com 9 anos, Miguelzinho seguia os passos do pai e fazia aulas

de judô na escola. Uma tarde, depois de sair do banho, ele parou no

meio da cozinha e fez um comentário aparentemente despretensioso:

— Mãe, depois que comecei a treinar judô, ganhei um músculo

novo.

Alice ergueu a cabeça, fechou o livro que estava lendo e,

intrigada, foi conferir o que se tratava. O tal músculo era uma bola

localizada embaixo do braço direito, na altura da axila. Ela tocou

com o dedo para reconhecer através do tato o que esperava que fosse

uma trivial íngua ou, na pior das hipóteses, uma distorção muscular.

Mas Miguelzinho não acusava nenhuma dor. Ela congelou:

— Na verdade eu entrei em pânico, mas tinha que disfarçar do

Miguel. No dia seguinte fomos procurar o dr. Costa, que tinha

tratado da artrite dele e era uma pessoa de confiança. O médico foi

categórico, dizendo que era necessário fazer uma biópsia

urgentemente.

A intervenção aconteceria no Hospital das Clínicas, com

Miguelzinho recebendo anestesia local para a retirada de uma

amostra do tecido que continuava crescendo. Na data marcada para

se conhecer o resultado dos exames, estando Leminski ocupado com

o trabalho na P.A.Z., durante a tarde, Alice foi sozinha ao hospital.

Page 265: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Uma enfermeira lhe informaria que o envelope só deveria ser aberto

na presença do pai e da mãe, juntos. Em transe pelas ruas, ela

voltou para casa imaginando coisas. Mesmo usando de todas as

argumentações, somente após uma semana de tentativas uma nova

entrevista seria marcada. A cada dia, Leminski apresentava uma

desculpa diferente para evitar o encontro com o diagnóstico do filho.

Quando a paciência de Alice se esgotou, ela entrou decidida num táxi

e mandou o motorista seguir para a P.A.Z., na altura do Centro

Cívico. Entrou no prédio e voltou em poucos minutos trazendo

Leminski pelas mãos. Mandou tocar para o hospital.

Minutos depois, eles estavam frente a frente com uma junta

formada por quatro médicos, além do dr. Costa, o encarregado de dar

a notícia. O palco era uma grande mesa de reuniões. O médico

começou explicando que os exames haviam constatado um tumor

maligno, mas que os prognósticos eram bons, pois fora detectado no

início de formação etc. etc... Alguém disse que havia uma chance

remota de o tratamento funcionar etc... O médico explicava, mas

suas palavras não pareciam encontrar o sentido exato da verdade;

eram palavras fugidias, disfarçadas por uma coreografia de intenções

anestésicas. Neste momento, Leminski jogou o corpo para trás e

suspirou:

— Ah! Graças a Deus. Pensei que fosse pior!

Alice virou-se pra ele e murmurou crispada:

— Mas, Paulo, é o pior!

Ela jamais vai esquecer aquele olhar:

— Acho que neste momento o Paulo desejou cortar a minha

cabeça como os imperadores faziam com os mensageiros que traziam

más notícias. Ele parecia não querer entender o que estava

acontecendo. Foi quando eu percebi que teria que cuidar dele

também.

Os médicos explicaram detalhadamente os procedimentos que

deveriam ser adotados nas semanas seguintes, quando seriam

Page 266: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

realizados novos exames para definir a origem do câncer, já que o

gânglio inflamado era um sintoma, não um diagnóstico. O casal saiu

do hospital e, por sugestão de Leminski, seguiu andando em direção

à livraria do Chaim, atrás da Universidade do Paraná. Alice

caminhava pensando em como iria encarar o filho, sabendo que ele

estava ansioso por conhecer o resultado dos exames. Como um

elemento agravante, era óbvio que Miguelzinho tinha discernimento

suficiente para entender TUDO o que estava acontecendo. Parados

num sinal de trânsito, Leminski tentaria tranqüilizá-la:

— Fofa, aconteça o que acontecer eu não vou voltar a beber.

Em casa, Alice procurou o tom certo para conversar com o filho

e falar de uma doença séria — sem jamais dar nome à doença — que

eles deveriam tratar com muita dedicação e paciência; só assim

conseguiriam bons resultados. Como um bom menino, o garoto

prometeu se empenhar para manter a situação sob controle,

garantindo fazer a parte dele. Desde então, Miguelzinho deixaria de

subir no pé de laranjeira, a sua brincadeira favorita. Dias depois

Alice escreveria este poema-referência:

Tem palavra

Que não é de dizer

Nem por bem

Nem por mal

Tem palavra

Que não é de comer

Que não dá pra viver

Com ela

Tem palavra

Que não se conta

Page 267: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Nem prum animal

Tem palavra

Louca pra ser dita

Feia bonita

E não se fala

Tem palavra

Pra quem não diz

Pra quem não cala

Pra quem tem palavra

Tem palavra

Que a gente tem

E na hora H

Falta

A relação entre Leminski e Alice entraria novamente num

período conturbado. Motivos não faltavam. Os médicos haviam

decidido fazer uma cirurgia na barriga de Miguelzinho, suspeitando

ser ele portador de um câncer de origem visceral ou, no mínimo,

relacionado com o aparelho digestivo. Nenhum raio X e nenhum

outro exame poderia detectar o ponto exato onde a doença se alojava.

A cirurgia foi marcada para o Hospital das Clínicas, onde Alice

passou a noite acompanhando todos os movimentos. No final, os

médicos encontraram o que procuravam: o distúrbio estava na linfa,

alojado no hilo hepático, tornando impossível a radioterapia. Havia

perigo de lesões no fígado — e o tratamento adequado seria a

quimioterapia. Durante todo este tempo, Leminski manteve-se fora

da área de estresse familiar, fazendo com que todos os seus projetos

profissionais e intelectuais se transformassem numa grande válvula

de escape.

Page 268: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Em fevereiro de 1979, ele deixaria Alice e os problemas em

Curitiba para acompanhar os músicos da banda Blindagem numa

curta temporada no Teatro Opinião, no Rio, com o show Blues do Sul.

Leminski viajou de ônibus com Ivo, que estava com uma nova

namorada, Suca. Nos encontramos em Ipanema, quando ele me

perguntou onde poderia dormir nas próximas três noites, sugerindo

“um canto qualquer para jogar o boneco quando o dia amanhecer”.

Fomos juntos à casa de Márcio Borges, em Santa Teresa, onde ele

ficaria hospedado. (Na época, a produção musical do Clube da

Esquina, de um modo geral, e a de Milton Nascimento, em particular,

estavam no auge do sucesso, e Márcio era um de seus artífices). Os

dois passaram dias conversando sobre tudo, quando tiveram uma boa

interação intelectual.

Na noite de estréia do show “Ivo e a banda Blindagem” — como

estava no cartaz —, o Jornal do Brasil publicou reportagem com o

título “A música do Sul não vem de sandálias havaianas”, com direito

a uma foto do cantor, que declarava estar chegando ao Rio com

“esterco na bota e um sotaque carregado no r”. O Paulo era

apresentado como “um poeta concreto, o principal letrista da banda”.

A sessão maldita da meia-noite se cobriria de sucesso durante as três

noites de espetáculo, para um público fiel e caloroso. No repertório

havia pelo menos oito músicas by Leminski. Entre elas, uma balada

com toque caipira no refrão, entoado por três vozes:

Não posso ver sangue

Fico logo vermelho

Querendo chorar

Não posso ver sangue

Fico logo vermelho

Querendo chupar

Page 269: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Não posso ver

Água, poço, rio, mar

Que eu já começo

A tirar a roupa

Louco pra mergulhar

Não posso ver ninguém

Que eu já quero, que eu já quero

Namorar

(...)

De volta a Curitiba, ele daria um grande impulso na produção

musical, com a criação das músicas “Valeu”, “Mudança de estação” e

“Verdura”, esta composta a partir de uma notícia de jornal. Alice

fazia a leitura em voz alta sobre o tráfico de crianças na Colômbia, e

ele aproveitaria a idéia para concluir a letra em que vinha

trabalhando há dias. Para Miguelzinho, a melhor música do pai, no

entanto era “Valeu” que ele cantava durante o tratamento.

Alice passaria a viver uma crise pessoal com a doença do filho,

quando se reconheceria perdendo uma certa alegria que talvez nunca

pudesse recuperar:

— Eu e o Paulo estávamos diante de algo que exigia muita

estrutura, uma coesão familiar que nos faltava naquele momento.

Havia uma afinidade intelectual, mas agora o intelecto não servia

para nada. Para complicar as coisas, o Miguel apresentaria uma

reação negativa à quimioterapia. Nenhum alimento parava no

estômago dele. Foram meses de angústia e sofrimento.

Foi assim, neste clima dramático e dilacerante, que eu os

reencontrei na Cruz do Pilarzinho, uma certa tarde. Foi uma visita

rápida, marcada pelo desencontro e pela tensão, quando nenhum

Page 270: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

deles conseguiria me falar da doença do Miguel Não havia energia

para nada. Minutos depois da minha chegada, quando a situação já

estava insustentável, o Paulo anunciou que precisava dormir, e saiu

da cozinha. Alice perguntou:

— Você quer ver o Miguel?

— Claro que quero... Ele está doente?!

Ela não respondeu e entrou no quarto, desaparecendo por trás

de uma cortina de pano. Eu nem tive tempo de montar uma equação,

mentalmente, pois logo ela retornou fazendo um sinal, afastando a

cortina para o lado. O Miguel estava deitado na cama com um livro

nas mãos — e me dirigiu uma saudação bastante serena e enfática,

quase cerimoniosa na sua simplicidade:

— Oi, Martins.

Sentei-me numa cadeira ao lado e conversamos por alguns

minutos sem que eu percebesse a gravidade de sua doença. Ele

apenas se expressava num tom exageradamente grave e profundo

para alguém de sua idade. Falamos das particularidades de alguns

animais, ele fazendo um pequeno relatório de suas últimas

descobertas. Era evidente que não estava podendo andar. Cheguei a

considerar a volta dos problemas com as articulações, a artrite, mas

nunca imaginei aquele anjo com câncer. Quanto ao astral dominante

na casa, preferi creditá-lo como contingência rotineira das rusgas de

um casal, nada além disso. Mas, por essas e por outras, quando voltei

para a cozinha senti uma vontade incontrolável de sair dali. Minutos

depois eu caminhava pelas ruas do bairro amargando uma sensação

estranha e forte, que só veio se esclarecer dias depois quando conheci

a verdade.

Em meio a toda esta carga emocional, Leminski conseguiria

conceber um novo livro, que chamaria de “Minha classe gosta, logo é

uma bosta”. Era uma novela que nunca seria publicada, visto que ele

próprio, no final, duvidava de suas qualidades. O livro apresenta-se

Page 271: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

ainda hoje como um documento emblemático deste período típico de

traumas e desequilíbrios. Neste sentido, era mesmo revelador, pois o

texto mantinha o máximo de distanciamento da realidade, sem fazer

nenhuma menção à vida cotidiana. Apresentava o duelo do

personagem Privada Joke, um outsider engajado na contracultura,

versus Slogan, o sujeito que defendia o socialismo. Estavam criados,

em tese, os dois representantes máximos do pensamento da geração,

que atravessam centenas de páginas se digladiando teoricamente.

Em carta ao amigo Bonvicino, Leminski encontraria razões

técnicas e emocionais para a rejeição da obra:

Talvez o q eu quis fazer com certos meios não seja

possível de fazer com esses meios. Quero fazer ficção.

Mas sem enredo. Romance. Sem personagens.

Realidade. Com idéias apenas. Talvez meu material

(contracultura &/x marxismo) dê ótimos ensaios. Dê

impulso à minha poesia. E me dê motivos para viver.

Mas não dá um romance. Alice disse: “V. quer fazer um

romance q não ousa dizer seu nome...”

Para Alice, este período representou um afastamento

compulsório dos assuntos literários:

— Pela primeira vez na vida, eu que me habituara a ter

orgasmos com os textos do Paulo, não conseguia prestar atenção. Ele

mostrava novas páginas do livro, mas eu não conseguia ler. Ele

estava totalmente envolvido com este trabalho e eu com a situação

do Miguel. Até que um dia...

Miguelzinho morreu em 30 de julho de 1979, logo após

completar 10 anos. Alice ficou sabendo no exato momento em que

olhou pela janela da sala e viu o carro do tio se aproximando. Ela

Page 272: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

não queria acreditar, mas naquela hora, 9:30 da manhã, não haveria

outro motivo para ele estar ali, em pleno inverno. Terminando por

fulminá-la de certezas, o velho, um reconhecido durão, desceu do

carro aos prantos. Miguelzinho estava há alguns dias internado na

UTI do Hospital das Clínicas, depois de suportar oito meses de

tratamento — ao longo dos quais foi se enfraquecendo até entrar em

coma. Os últimos tempos tinham sido difíceis para eles. Durante

semanas, Alice conseguira se comunicar com o filho pelo tato, até

que o último vestígio de força desapareceu da pequena mão. Agora,

chegava ao fim um doloroso período de peregrinações por farmácias,

laboratórios e hospitais. Alice acredita que o “encontro” entre

Leminski e o filho se deu apenas nesta reta final:

— O Paulo mudou de atitude e voltou a me olhar nos olhos,

coisa que não fazia há meses. Eu quis me separar, tive um xilique...

Ameaçado, ele ficou no hospital alguns dias cuidando do Miguel,

levando o filho ao banheiro, trocando de roupa etc.... Seu olhar

voltou a mostrar leveza, ele estava conseguindo. Estava sem beber há

quase um ano. Isto aconteceu na última semana de vida do Miguel.

Miguelzinho foi sepultado no jazigo da família, no cemitério da

Água Verde, ao lado dos avós, Paulo e Áurea. O poeta Régis

Bonvicino e a mulher Mônica (ex-mulher de Risério) chegaram um

pouco antes do enterro. Eles tinham sido avisados por Leminski e

imediatamente pegaram um avião em São Paulo. Durante o velório e

mesmo durante o enterro, Leminski permaneceu num imenso

silêncio. Alice identifica este sintoma como uma profunda tristeza:

— Naquele momento eu não me senti sozinha, várias vezes

percebi no Paulo um movimento de cuidar de mim. Era preocupação

mesmo. Mas ficamos o tempo todo silenciosos.

Depois do enterro, algumas pessoas seguiram para a casa do

fotógrafo Dico Kremer, onde mais tarde se uniria a eles o músico

Walter Franco, que estava se apresentando na cidade. A certa altura,

Alice teve sua atenção despertada para a voz de Leminski, pairando

Page 273: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

sobre todas as outras, falando animadamente sobre música e

criação. Ela se perguntava: “Como ele pode?...”

É possível que, junto com o filho, Leminski e Alice estivessem

enterrando neste dia todas as esperanças de uma vida futura para

eles. No momento, o que era certo é que havia muitas feridas a serem

cicatrizadas — e eles deveriam tratar disso juntos e, de preferência,

carinhosamente. Então, Régis e Mônica os convidaram a seguir com

eles e passar uns dias em São Paulo. Seria uma forma de se afastar

da pressão à qual certamente estariam expostos em Curitiba. Eles

aceitaram. Deixaram um bilhete na porta da casa do Pilarzinho,

avisando que estariam ausentes, e pegaram um avião no mesmo dia.

A curta temporada na Paulicéia não traria boas conseqüências

para a vida do casal. Alice consideraria a viagem inoportuna:

— A Mônica estava grávida e, com toda razão, cuidava do filho

que ia nascer. O Paulo e o Régis falavam como verdadeiros deuses

sobre poesia, idéias, literatura, enfim, tudo que não fosse relacionado

com a vida imediata. Eu era a única a estar vivendo uma morte.

Depois de uma semana estávamos de volta a Curitiba, onde

procuramos nos reconstruir. Afinal, havia a Áurea, por quem

tínhamos que viver, e a poesia, que dava algum sentido às nossas

vidas.

Como sempre acontecia nestas horas, Leminski adotaria um

comportamento bastante retraído, esquivo mesmo, quando o assunto

era a morte do filho. Não gostava de falar de “coisas que dizem

respeito à natureza”. Sua manifestação mais efusiva ainda era a

poesia. Nestes dias, escreveria um poema chamado “Parada

cardíaca”:

Essa minha secura

essa falta de sentimento

não tem ninguém que segure

Page 274: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

vem de dentro

Vem da zona escura

donde vem o que sinto

sinto muito

sentir é muito lento

Em carta de 17 de agosto, ele seria lacônico também com

Bonvicino:

— Mergulhamos Alice e eu no trabalho. Alice prepara livro com

material deixado por Miguel, textos, desenhos, poeminhas, fotos, a

sair ano q vem. É em signos que se fica, o resto não passa de

moldura.

Dois meses depois, escrevendo para Risério, ele faria referência

a uma entidade do candomblé:

— Aqui a barra pesada (miguel agora é erê), mas a gente vai

levando trabalho e saúde. Estamos trabalhando muito.

E, finalmente, em carta escrita no dia 1º de outubro para este

biógrafo, Leminski já não falava mais da perda e apenas fazia

considerações sobre o futuro:

Gil e Caetano levaram (enfim!) fitas minhas. Caetano

declarou amor eterno a “Verdura” que não dá pra sair

neste lp dele “Cinema transcendental”, já gravado, mas

ele vai cantar “Verdura” no show “Cinema” e grava

depois. Grafipar pode editar meus textos de humor, o

volume: HERRAR É UMANO. Gil convidou a gente a

passar dezembro na casa dele na Bahia. Tamos

guardando $ para.

Logo depois, quando a árvore favorita de Miguelzinho, a

Page 275: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

laranjeira, tombou de velha ao lado da casa, Leminski faria um

poema curto em homenagem ao totem:

árvore caída

vira amarela

última vez na vida

Antes do final do ano, Caetano e Gil voltariam a se apresentar

em Curitiba, em espetáculos diferentes, quando se mostraram

bastante solidários com a dor dos amigos. Na noite de estréia no

Teatro Guaíra, Gil os homenagearia em cena aberta cantando “Aqui e

Agora”, a música preferida de Miguelzinho. Ele disse apenas: “Para a

Alice e ela sabe por quê”. Para Leminski, Gil cantou “Logunedé” — e

todos aplaudiram freneticamente. Era a consagração do poeta em

sua própria casa. Dias depois, Leminski escreveria a este biógrafo

dizendo:

mano

gil dedicou uma música todo dia para mim

junto com um puta comercial (me chamou de “poeta

realce”,

“uma das inteligências mais faiscantes do país”)

isso no guairão cheio

já caetano foi mais sóbrio

ao cantar “cajá” — pedido meu —

apenas disse que eu era “o grande paulo leminski”

tudo quer dizer: ego feito por milênios.

A viagem a Salvador, depois de superada a etapa da poupança,

acabou acontecendo em janeiro de 1980. Esta seria uma das poucas

ocasiões em que Leminski viajaria de avião (como no dia do enterro

Page 276: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

de Miguelzinho), agora ao lado de Alice e Áurea, então com 8 anos.

Um dos fatores decisivos para a escolha do transporte, sempre que

uma viagem o obrigava a sair de Curitiba, era o pânico das alturas.

Leminski dizia que “aviões não fazem sentido, logo não posso

acreditar neles, apesar de vê-los voar...”. Mas o caminho até a Bahia

era muito longo para ser encarado pelo chão, de ônibus.

Ficaram hospedados no apartamento do poeta Erthos Albino,

na Pituba. Neste primeiro dia, Leminski não sairia de casa, enquanto

Alice e Áurea fariam uma rápida incursão pela cidade. No dia

seguinte, sol brilhando, praia garantida, eles tomaram o caminho da

Boca do Rio, seguindo para o point da constelação baiana. Estavam

alegremente reunidos Caetano Veloso, Moraes, Paulinho Boca de

Cantor, Pepeu, Baby Consuelo etc.... Quis o destino que este verão

fosse efervescente em Salvador, um congraçamento diário para vinte

talheres. Alice recorda-se de que Leminski foi recebido como ídolo

pelo grupo:

— Quando Caetano o apresentou, todos fizeram uma festa.

Falavam dele como um grande poeta e músico, um tratamento que

ele nunca havia recebido. A nossa alegria somente seria ofuscada

pela dor que estávamos sentindo pela perda do Miguel.

Leminski reencontraria Moraes Moreira, com quem

desenvolveria parceria em pelo menos uma dúzia de músicas

consolidadas e outras tantas interrompidas. Foi convidado e aceitou

se apresentar na abertura do show de Jorge Mautner, no Teatro Vila

Velha, quando cantou músicas do seu repertório. Tudo sem beber

uma única gota de álcool. Em nenhum momento ele se mostraria

deprimido ou mesmo frustrado por não estar bebendo. Eles

chegavam pela manhã na praia e saíam para almoçar no final da

tarde, sempre debaixo de um sol escaldante. Visitaram o terreiro de

candomblé da ialorixá Stella de Oxóssi, que cantaria para eles “O

Canto de Oxóssi”, na língua nagô. Foram a Santo Amaro da

Purificação, a convite de Caetano, conhecer a casa dos pais dele,

Page 277: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

onde se encontrariam com Maria Bethânia e dona Canô. Durante

todo o tempo, Leminski mostrava-se extasiado com a descoberta

deste novo Brasil, com aroma de dendê.

Em Salvador, eles reencontrariam Waly Salomão numa festa de

Largo, no Rio Vermelho, tentando convencê-los a ficar para o

carnaval. O episódio é engraçado, pois sentados num bar,

contemplando a folia, Waly contaria em detalhes a fantástica história

da turista francesa que quase foi estuprada durante uma festa de

rua, em meio a uma multidão. O marido em cima do trio elétrico

assistindo à mulher cercada por sete negões, sem nada poder fazer...

A turista charmosa entrou em pânico, mas o barulho ensurdecedor

da música, além do calor e o aroma de cerveja no ar, transformava

tudo em agonia... O homem, aos berros, pedia ajuda à distância, mas

ninguém prestava a menor atenção. E os negões ao redor da moça...

Leminski não deixaria Waly terminar a história — e, dirigindo-se a

Alice, falou sério:

— Benzinho, acho que não vamos ficar para o reinado de

Momo, vamos embora mais cedo.

Outro episódio divertido aconteceria durante uma madrugada,

quando eles voltavam para a Pituba num ônibus lotado de homens.

Todos negões. Alice vestia um short de tamanho normal, mas

suficiente para chamar a atenção dos marmanjos. Leminski, roxo de

constrangimento, não sabia onde colocar as mãos:

— Para descer do ônibus tivemos que passar por uma

passarela humana e os negões abriram a ala com muita malícia.

Quando saltamos, um deles colocou a cabeça pra fora da janela e

gritou:

— Vai se tratar bem hoje, hein, Bigode?

No dia 22 de janeiro, os amigos da Boca do Rio prepararam

uma grande festa pelo aniversário de Alice, que foi abraçada e

beijada à moda baiana, com direito a fortes amassos. Leminski

morria de ciúmes mas se controlava, sabendo que, afinal, estavam

Page 278: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

ali para isso, para participar do jogo lúdico da vida. A pequena Áurea

encontraria os filhos de Paulinho Boca e Moraes e passaria o tempo

todo entre as crianças, não muito longe dali. Assim chegava ao fim

um agradável período de férias para eles.

De volta a Curitiba, Leminski era outra pessoa. Muitas dúvidas

tinham desaparecido dentro dele, que agora mostrava-se mais seguro

e com o ego aparentemente restaurado. Além de ser um artista

reconhecido nacionalmente, ele estava completando dois anos sem

beber, o que era outro motivo de júbilo. Atendendo a pedidos,

trabalharia na tradução para o espanhol da primeira e última

páginas do Catatau — enviando-as posteriormente ao poeta Julián

Ríos, no México. Dedi cava-se a leitura de biografias (“bilac, antero

de quental, pessoa, vitor hugo”, diria em carta a Bonvicino) e

aproveitava a boa fase para se dedicar a um novo projeto, desta vez

embalado pelo entusiasmo dos fotógrafos da ZAP, um estúdio (sendo

P.A.Z. ao contrário) criado para prestar serviços de publicidade. O

sócio de Dico Kremer, Márcio Santos, teve a idéia e eles prepararam

uma edição quase artesanal dos poemas, um grande livro intitulado

“Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e era quase”. Na

verdade, o projeto arrastava-se há mais de um ano em trâmites de

produção, ameaçando se transformar numa nova lenda, desta vez

sobre o “livro de poemas do Leminski”. No dia 9 de maio de 1980, o

cartunista Dante Mendonça publicaria n’O Estado do Paraná, uma

entrevista com o título:

Vai sair outro livro do Leminski. Olhai a prova!

Na ilustração, o facsímile da nota fiscal emitida pela Grafipar,

para 1.000 exemplares, especificando um livro de 80 páginas,

tamanho de revista, papel importado, capa dura e plastificada. Na

entrevista a Dante, concedida na época de governadores e prefeitos

Page 279: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

biônicos, Leminski explicava a natureza da obra:

— São oitenta poemas, uma seleta de minha produção de 63

para cá, feita por um punhado de amigos. Então, não existe nenhum

poema biônico; os poemas não estão ali por um arbítrio meu, mas

sim por uma eleição do gosto de inúmeras pessoas, entre elas

Augusto de Campos, Alice Ruiz, Caetano, Gil, enfim, os poetas que

fazem parte da minha ecologia.

Uma das dificuldades operacionais da edição era que o livro

tinha sido projetado em foto-traço, ou seja, fotografando-se e

ampliando-se as letras da máquina de escrever. O resultado gráfico

era vistoso e se traduzia num produto híbrido, bastante limpo em

sua cor dominante branco, mas “sujo” na medida em que fazia as

letras “estourarem” na ampliação. Na abertura, nenhuma dedicatória

especial, apenas um agradecimento em forma de poema:

grande angular para a zap

as cidades do ocidente

nas planícies

na beira mar

do lado dos rios

feras abatidas a tiro

durante a noite

de dia

um motor mantém todas

vivas e acesas LUCROS

à noite

fantasmas das coisas não ditas

Page 280: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

sombras das coisas não feitas

vêm

pé ante pé

mexer em seus sonhos

as cidades do ocidente

gritam

gritam

demônios loucos

por toda a madrugada

No mesmo empenho editorial, a ZAP produziria o primeiro livro

de Alice, Navalhanaliga, graças ao esforço de Márcio Santos, que

tomaria para si a tarefa da diagramação, foto da capa e

acompanhamento gráfico. Era a reunião de dez anos de produção

poética de Alice, que escreveria a dedicatória:

para Miguel Angelo Leminski

não era ainda pessoa

e já sonhava

não é mais pessoa

e ainda sonha

Ainda em 1980, aproveitando algumas sobras do Não fosse

isso..., Leminski lançaria um novo livro de poesia. Um elenco de 32

textos que tinham como identidade, segundo seu próprio conceito,

“uma natureza voluntariosa, quase uma poesia retumbante”, que ele

chamaria de Polonaises. Retamozo desenharia a capa a partir de um

manuscrito original de Leminski em polonês, borrifado com gotas de

sangue (em vermelho) como um elemento dramático. Na penúltima

Page 281: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

capa, ao lado da ficha técnica — onde se percebe que a produção

acontecera dentro da agência de publicidade Eskala —, uma foto

mostra o autor encostado diante de um painel com uma montagem

de manchetes do jornal El Dia, de Managuá, em contagem regressiva

para a queda do ditador Somoza. O cenário era a casa do jornalista

Raimundo Caruso, um dos poetas da Cooperativa, que acabava de

chegar do México, onde estivera acompanhando os acontecimentos

políticos na Nicarágua. Polonaises seria dedicado ao professor Bóris

Schnaiderman e apresentaria em suas páginas o poema “Esplêndido

Corcel”, com o qual Leminski tentara, doze anos antes, impressionar

Alice no primeiro encontro. Mas tinha um outro poema, sem título,

aparentemente à deriva nas páginas:

um poema

que não se entende

é digno de nota

a dignidade suprema

de um navio

perdendo a rota

Foi no outono de 1980, durante uma mudança de estação, que

Leminski voltaria a beber. No início timidamente e, logo depois, de

forma vertiginosa. Tudo começou com algumas rodadas de chope

num restaurante, em companhia de amigos. Ele ergueu o copo

dizendo: “Depois de dois anos sem beber, não vai ser uns goles de

chope que vai me comprometer.” Alice, que também não bebia há

vários meses, por solidariedade, lembra-se que o efeito do álcool em

sua cabeça foi devastador. Esta noite eles conversaram sobre um

tema que Leminski e Áurea vinham insistindo nas últimas semanas.

Eles achavam que Alice deveria ter outro filho. Ela, de imediato,

Page 282: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

rechaçaria a idéia argumentando que, para isso, seria necessário

uma mãe inteira, saudável — e ela não estava se sentindo assim.

Áurea rebatia prometendo ajudar nas tarefas domésticas,

argumentando que tudo funcionaria melhor com uma criança em

casa. Foram algumas semanas de conversa, até que...

Alice ficaria grávida no dia 6 de junho de 1980 (ela memorizou

a data por conta de uma transa sexual inusitada entre eles), mesmo

contra todas as evidências. A principal, era que ela não tomava pílula

há vários anos, sem nunca ter engravidado. Tivera um problema no

ovário e, desde então, se acreditava virtualmente estéril. Por tudo

isso, nas semanas seguintes, ela diria que a criança que estava vindo

fazia questão de chegar. Ao contrário das vezes anteriores, quando se

sentiu deprimida durante a gravidez, agora ela havia decidido que

nada abalaria o seu humor.

Em agosto de 1980, eu voltaria à casa da Cruz do Pilarzinho,

após um ano de ausência. Foi, como sempre, uma visita de amigos,

sem nenhum protocolo. Eu estava apresentando minha namorada

carioca, Naná, que foi recebida por Leminski com uma única pergunta,

dirigida surpreendentemente para mim:

— É ela? — perguntou em voz alta, querendo saber se devia

considerar um namoro sério, algo que pudesse merecer uma certa

solenidade.

Diante da confirmação, virou-se para Naná e fez o convite:

— Então, comadre, vamos tomar uma? Vai cerveja ou conhaque?

Leminski e Naná, que era professora universitária e ex-militante

do PC do B, conversaram muito sobre o poeta sergipano Mário Jorge,

falecido aos 25 anos, que ela conhecera em Aracaju. (M) morreu num

acidente de carro, em 1973, depois de levar uma vida intensa e

exagerada com sua verve de poeta maldito e contracultural.) O casal,

por sua vez, faria um rico relato da viagem a Salvador, no início do

Page 283: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

ano, e da relação de amizade que vinham mantendo com os músicos

baianos. O frio era curitibana no Pilarzinho: 10 graus.

Depois do almoço, Ivo apareceria com a mulher Suca, a filha

Angela — com apenas dois meses — e o violão. Passamos a tarde

tomando cerveja e cantando as novas parcerias da dupla. Alice

entrava no terceiro mês de gravidez. O fogão à lenha deixava escapar

labaredas pelas aberturas da chapa, onde fumegava um panela de

pinhão, que seria servido acompanhado de uma porção de sal. “Sal e

pimenta”, coisa de polaco, ele diria. Ficamos sentados na escada da

varanda, onde fizemos a foto mostrando um bom pedaço da casa de

madeira. (A mesma paisagem captada pelo filme Vida e sangue de

polaco, de Sylvio Back, onde Leminski aparece dizendo preferir a

expressão polaco ao invés de polonês.) Enquanto conversávamos, ele

repetiria um gesto que era a sua marca registrada, em âmbito

doméstico: quando ouvia uma notícia que considerava espetacular, ou

apenas notável, não respondia diretamente ao interlocutor, mas

levantava-se e desaparecia pelo interior da casa, aos gritos:

— Alice... Alice... Escute o que o Martins está dizendo...

Estas manifestações davam densidade e espessura ao seu

cotidiano. Havia vibração no menor gesto, tudo lhe era magistral.

Assim, por força destes próprios desígnios, planejamos promover o

lançamento de Não fosse isso... e Polonaises no Rio de Janeiro. Como

ponto de partida, argumentei que o livreiro Rui, da Muro, em Ipanema,

era meu amigo e não seria difícil agendar uma data para o evento.

Eles acharam a idéia maravilhosa e vibraram com a perspectiva de

poder voltar à Guanabara, agora em outras circunstâncias. Nos

despedimos com um “até breve”.

O ano de 1981 traria uma seqüência de boas surpresas na

casa da Cruz do Pilarzinho, onde a harmonia parecia estar de volta.

A primeira das conquistas foi a compra de um telefone, 223-7866

(sem dúvida, um bom milhar), com o qual eles iriam virtualmente

Page 284: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

encurtar as distâncias e desacelerar a prática de escrever cartas para

os amigos. Em compensação, passariam a gastar uma pequena

fortuna mensal com ligações telefônicas. Ainda assim, a boa notícia

chegaria mesmo num táxi, no dia 4 de março. O amigo Retamozo e

sua mulher Gorda (que na verdade era magra) chegariam trazendo o

disco Outras palavras, de Caetano, onde estava gravada a música

“Verdura”, de Paulo Leminski (tecnicamente, por ter criado a

harmonia, Ivo deveria constar como parceiro):

De repente me lembro do verde

A cor verde

A mais verde que existe

A cor mais alegre

A cor mais triste

O verde que vestes

O verde que vestistes

O dia em que me viu

O dia que me vistes

De repente vendi meu filho

Pruma família americana

Eles têm carro

Eles têm grana

Eles têm casa

E a grama é bacana

Só assim eles podem voltar

E pegar o sol em Copacabana

E pegar o sol em Copacabana...

Foi uma festa. Eles tocariam a faixa dezenas de vezes, sempre

tecendo os melhores comentários sobre o disco e a gravação — que

Page 285: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

neste mesmo ano seria escolhida como tema musical do filme O rei

da vela, de Zé Celso e Noilton Nunes, que também apareceram no

Pilarzinho. Enquanto ouviam a música repetidas vezes, a capa do LP

circulava de mão em mão, todos querendo conhecer detalhes da

gravação. Neste dia, em meio a tantas comemorações, Alice sentiria

as primeiras contrações.

7 de março de 1981. Depois de uma gravidez tranqüila e

verdadeiramente diferenciada, nascia Estrela Ruiz Leminski, signo de

Peixes. Se fosse homem seria Leon, em homenagem a Trotski, já que

Leminski estava envolvido nestes dias com a organização de

esquerda Libelu — Liberdade e Luta. Estrela veio ao mundo de

manhã cedo, junto com os primeiros raios de sol. Desta vez, o pai

não apenas estava presente na maternidade como ajudaria a cortar o

cordão umbilical. É bem verdade que um dia antes ele tinha tomado

um porre daqueles de perder o rumo de casa. (Sabe-se que estava

com uma namorada, a dona de um bar.) Durante a madrugada,

quando finalmente apareceu em casa, ele e Alice tiveram uma áspera

discussão, que parece ter provocado as contrações. Eles saíram às

pressas, no meio da noite, e chegaram ao hospital às 6 horas da

manhã, com Alice segurando a barriga com uma das mãos. Estrela

nasceu às 6:25 — e quando isso aconteceu, Leminski estava ao lado,

com um relógio na mão, colhendo informações para o mapa astral do

bebê. Ele foi o primeiro a exclamar:

— É uma menina!

Quando tudo terminou, tinha as marcas das unhas e do relógio

na palma da mão. O médico deu o nó no cordão umbilical e passou-

lhe uma tesoura, pedindo para ele cortar. A enfermeira tirou a

criança do colo da mãe e entregou-a a ele, que desajeitadamente a

embalou por alguns minutos. Em seguida, sairia do quarto deixando

atrás de si um enorme ponto de interrogação, até retornar minutos

depois com uma cesta de frutas para Alice. Chegou dizendo que

Page 286: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

sentira vontade de ajoelhar-se diante de cada mulher que encontrara

na rua. Estava profundamente emocionado com o ato da

maternidade. Estes acontecimentos teriam, no futuro, uma forte

influência em seu comportamento, ajudando a quebrar alguns mitos

e remover algumas barreiras. Ele tinha vivido uma experiência

inédita, bastante revolucionária, que poderia, finalmente,

transformá-lo num grande pai. Ou algo assim. Em carta a Bonvicino,

um mês depois, Leminski deixaria escapar um sentimento

igualmente inédito em seus textos:

tem acontecido coisas, maravilhosas, coisas

fundamentalmente maravilhosas, coisa linda é essa

estrela, doce de leite e coco de amor.

Antes do final do ano, juntando os direitos autorais da música

gravada por Caetano e o dinheiro de um prêmio literário que Alice

ganhara com Navalhanaliga, eles comprariam um carro de segunda

mão, um fusquinha verde, ano 70, que seria batizado de Verdura.

Leminski jamais aprenderia a dirigir, razão pela qual sempre dizia

que o carro não era dele e sim de Alice. Na verdade, mesmo viajando

de carona, ele tinha medo do trânsito e freqüentemente entrava em

pânico, sentindo-se à mercê dos acontecimentos. O ideal seria que o

tempo e o espaço, entre um ponto e outro do cotidiano, fosse sempre

mínimo.

Nesta época, Leminski e Alice tiveram uma conversa profunda

seguida de uma decisão que mudaria o rumo de suas vidas. Ou a

rota. Baseados num leque de argumentos, inclusive a própria

infidelidade dele, até então mantida na obscuridade das

conveniências, eles decidiram “abrir” o casamento. Na verdade, sabe-

se que Leminski vinha mantendo alguns “casos” amorosos, com

mulheres conhecidas ou não. Uma delas, a loura Mara, era viúva,

Page 287: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

jovem e proprietária do bar Kappelle, um belo ambiente decorado

como uma pequena igreja — com altar e púlpito — bastante

freqüentado pelos rapazes no final dos anos 70. Como um bom

seminarista, Leminski dizia sentir-se “em casa, tomando o vinho do

padre na sacristia”. O estúdio de fotografia de Jack Pires e Retamozo,

e a redação do jornal Scaps, enquanto existiu, ficavam no prédio ao

lado, na rua Barão do Cerro Azul. Durante algumas madrugadas

Leminski foi visto como o último freguês a sair do Kappelle, quase

sempre acompanhado. Mara confirma:

— Não vou negar este fato. Mas eu não esperava nada da

relação com ele, apenas amizade. Ele ficava até o final da noite,

quando eu fechava o caixa e saíamos pela madrugada. Era divertido

e bem melhor que a solidão.

Alguns amigos contabilizaram pelo menos quatro “namoradas”

para ele num período de dois anos. Tinha inclusive uma moça

reconhecidamente lésbica e uma colega da agência Múltipla, onde ele

agora trabalhava como redator. Alice, por sua vez, conheceria um

rapaz, um caso definido por ela como “superficial”, mas

suficientemente poderoso para causar o efeito de uma bomba na vida

conjugai. Para complicar a situação, eles tiveram um romance duplo

certa noite, quando dois amigos ficaram para dormir. Alice deitou-se

com o rapaz num dos quartos e Leminski ficaria com a moça em

outro. A experiência seria amarga para todos, reconhece Alice:

— Foi uma tolice o que fizemos. Nenhum de nós tinha o perfil

para esta situação. Nos agredimos e sofremos muito com estes casos

mal resolvidos.

O que se seguiu foi um período de desarranjo conjugai, durante

o qual Leminski expressaria seu ciúme de forma estranha e

totalmente nova. Ele passaria a pressionar Alice diariamente para

conhecer detalhes de sua transa com o namorado — ou qualquer

outro caso que ela pudesse ter. Ele queria conhecer tudo, inclusive

Page 288: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

as passagens mais íntimas e espetaculares. Para confundir ainda

mais as emoções, ele mesmo passaria a contar detalhes de seus

casos extraconjugais. Era uma forma curiosa de paranóia ou

fetichismo, uma manifestação embalada e resguardada por suas

próprias defesas e temores.

O lançamento de Não fosse isso... e Polonaises em terras

cariocas seria finalmente marcado para o começo de agosto de 1981,

na livraria Muro. Programou-se um lançamento triplo, uma vez que

Alice estaria autografando a tradução de 10 haikais de mulheres

japonesas, uma edição artesanal e sofisticada da Noa Noa, de Santa

Catarina. Eles chegaram carregando caixas de livros e seguiram para

o nosso apartamento, em Ipanema, onde Naná preparara um quarto

de hóspede. (Na verdade, tivemos que deixar as crianças na casa de

amigos para recebê-los). Áurea ajudava a cuidar de Estrela, que com

quatro meses fazia a sua primeira viagem nesta galáxia. Eles tinham

uma entrevista agendada para o mesmo dia com a repórter Cora

Rónai, do Jornal do Brasil, que apareceria na hora combinada: onze

da manhã. Eles conversaram animadamente sobre assuntos

referentes a poesia e literatura — e, sendo ela filha do imortal Paulo

Rónai, tudo ficaria mais fácil. A reportagem seria publicada no dia

seguinte no “Caderno B” com o título “Paulo e Alice, o poema como

inutensílio”, onde ele refletia:

— A poesia não é literatura. Ela está muito mais próxima das

artes plásticas e da música do que da ficção, embora seja feita com

palavras. A diferença é que na poesia as palavras têm uma função

diferente da que têm na prosa.

A reportagem, ilustrada com uma foto do casal, ajudaria a

divulgar a promoção — da qual eu havia sido investido de produtor —,

e a noite de autógrafos no dia seguinte seria um sucesso. Ainda bem!

Lá estavam os amigos Caetano Veloso, Moraes Moreira, Julio Barroso

e a cantora Alice Pink Punk, do grupo Gang 90 e Absurdetes. Uma

Page 289: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

revista de Curitiba mandou uma equipe registrar o evento e quem

apareceu foi o fotógrafo Julio Covello — que aproveitaria para rever

seu velho amigo Waly Salomão, que chegou de repente com o artista

Luciano Figueiredo. A comunidade curitibana apareceria em peso para

prestigiar a festa do Polaco. (Menos Ivan e Neiva, que agora viviam

outra vida, morando em Copacabana com o pequeno Luciano.) Carlos

João conversava animadamente com velhos companheiros e tentava

surpreender o fotógrafo Zeka Araújo, lembrando os “bons tempos” do

Correio da Manhã. Presentes no local o rádio e a televisão... Na época

trabalhando como editor da TV Bandeirantes, no Rio, consegui

garantir a presença de uma equipe de jornalismo — que colocaria a

reportagem no ar no dia seguinte, em rede nacional. Uma fita com

músicas by Leminski, inclusive “Verdura”, “Valeu” e todas as

gravadas em estúdio pela banda Blindagem, tocava sem parar. Como

o repertório não era suficiente para completar o rolo, os DJs Laurinho e

Willie incluíram músicas de John Lennon, Elvis e Dylan, bem ao gosto

do autor. No final, os Leminski venderam uma quantidade suficiente

de livros para garantir a viagem de volta, comprar algumas novidades

e tomar várias cervejas.

O trabalho na agência Múltipla, de onde Leminski vinha

tirando “o leite das crianças”, reeditava a mesma equipe de anos

anteriores na P.A.Z., com Solda e Rogério Dias formando uma dupla

impagável, conhecida na cidade como o Duo Deno; com a chegada de

Leminski, a formação passaria para um trio, o Seqüelas do

Alcoolismo. Eles faziam poesias a quatro mãos (ver Apêndice 9) e

compunham músicas engraçadas que cantavam informalmente em

bares e casas de amigos. Como o próprio nome sugere, todos bebiam

muito. Costumavam derrubar uma garrafa de vodca durante a tarde,

no bar da esquina, onde efetivamente trabalhavam. Solda lembra que

tudo dava certo, apesar dos conflitos com a direção da agência:

— A gente voltava no final do expediente para passar a limpo e

Page 290: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

encaminhar a arte para ser feita no dia seguinte. O caos era apenas

aparente. É verdade também que ninguém nos pagava para que

trabalhássemos no botequim, mas era assim que a coisa funcionava.

No repertório do Seqüelas, despontava uma paródia de samba-

enredo curitibano criado para animar as tardes no trabalho. A letra

era de Leminski, com ajuda de Solda:

Foi na Antiga Grécia

Que nasceu a Filosofia

Mas em Curitiba

A coitada entrou numa fria

Pois na Faculdade de Filosofia

Foi submetida

A um corte epistemológico

Que a fez cair na vida

(onde foi?)

Foi na Antiga Grécia...

A brincadeira com música acabaria tornando-se séria depois

que a banda Blindagem gravou um LP com sete músicas dele, a

maioria em parceria com Ivo, que aparece como vocalista em todas

as faixas. O disco fora gravado em São Paulo, pelo selo Continental,

com Almir Sater na viola de apoio. Em seguida, Paulinho Boca de

Cantor, Moraes Moreira e o conjunto a A Cor do Som — formado por

remanescentes dos Novos Baianos — fariam o mesmo. A Cor do Som

daria nome ao disco gravado em 1981: Mudança de estação. Os

contatos foram feitos através de Helinho Pimentel, agora morando no

Rio e trabalhando como empresário do grupo.

Mas seria mesmo o resultado da parceria com Moraes Moreira

que deixaria tudo em pratos limpos para ele. A música “Promessas

demais” seria escolhida como tema de abertura da novela Paraíso, da

Page 291: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Rede Globo. Ele havia criado a letra no ônibus, durante uma viagem

para o Rio. Ao mostrá-la para o parceiro durante o ensaio, Moraes

resolveria — com a ajuda do guitarrista Zeca Barreto — a parte

melódica. Agora, ele podia ouvir a música diariamente, a todo

volume, na voz de Ney Matogrosso:

Não precisava não

Acenar

Tanta felicidade

O rio que vai me levar

Não passa na tua cidade

(...)

Sobre a sensação de ouvir sua própria canção tocando na

televisão, ilustrada por um trabalho gráfico de Hans Donner,

Leminski diria:

— A coisa mais parecida é o orgasmo.

A parceria com Moraes renderia outras três canções no LP

Coisa acesa, de 1982. Ao todo, foram 12 músicas. O grupo MPB4

escolheria “Baile no meu coração”, que seria gravada também em

Portugal pelo conjunto Os Trovantes. Por conta do trabalho e da

amizade que nascia entre eles, Leminski e Alice voltariam muitas

vezes ao Rio de Janeiro, agora hospedando-se na casa de Moraes, no

Horto Florestal. Eles seriam compadres “a vera”, desde que Moraes e

Marília foram escolhidos como padrinhos de Estrela. Num desses

encontros, e diante da perspectiva agradável de passar uma tarde

chuvosa compondo e bebericando, os dois decidiram tomar um LSD.

Não discutiram muito com o destino e mandaram as pastilhas pra

dentro. Moraes lembra-se de que estava na expectativa, esperando

algo acontecer, quando Leminski levantou-se bruscamente e

Page 292: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

denunciou:

— Porra, este ácido é fajuto! Mais de meia hora e nenhuma

rima!

Nesta temporada carioca, Leminski conheceria o compositor

Antonio Cícero — irmão da cantora Marina — que, como ele, era um

letrista de música popular com acentuada formação erudita. Cícero

seria um interlocutor à altura para questões de “poesia musicada”,

uma de suas especialidades:

— Nossas conversas foram concentradas neste universo poético

da MPB. Troquei idéias com Leminski sobre este específico segmento

lítero-musical, que ele chamava de “neoconcreto”.

Em seguida, Ângela Maria gravaria “Sempre Angela”, escrita

especialmente para ela (em parceria com Fred Góes, poeta carioca), e

usaria a faixa para dar nome ao disco. Leminski reagiria com

entusiasmo ao saber da novidade através de um telefonema de

Moraes:

— É a glória!

Quando estas coisas, longamente esperadas, começaram a

acontecer, a conseqüência imediata seria uma trégua nas

dificuldades financeiras. Eles conseguiam finalmente equilibrar as

finanças ganhando um bom dinheiro com direitos autorais e ainda

fazendo trabalhos publicitários esporádicos. Em janeiro de 1982, a

revista Veja publicaria uma ampla reportagem com o título “Um

Brilhante Maldito”, destacando que “o agressivo Leminski sai do

anonimato literário e invade as rádios com boas canções”. Na

legenda da foto, o bigode em primeiro plano, uma linha e dois

slogans: “Leminski: arredio a badalações, autodefine-se como ‘uma

besta dos pinheirais’.” Na outra foto, na página seguinte, ele aparece

tocando violão sentado nas escadas da casa do Pilarzinho. Em meio

a uma série de elogios, uma constatação da revista: “Agora, com

duas canções entre as mais executadas nas rádios FM do país —

Page 293: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

‘Mudança de estação’, com a Cor do Som e ‘Chapéu de marinheiro’,

com o grupo Blindagem —, ele conquista uma popularidade tão justa

quanto avessa à sua personalidade.”

Para consolidar a vivência com o mundo da música, Leminski

conheceria Itamar Assumpção, “o nego Dito”, um legítimo

representante do lado marginal da MPB. Eles tinham sido

apresentados meses antes num show de Arrigo Barnabé, em

Curitiba. Deste encontro nasceria uma sólida amizade e algumas

parcerias. Eles ficaram três noites conversando, na Cruz do

Pilarzinho, fumando verdadeiras toras e bebendo todas — mas

sempre se afinando em idéias musicais e outras linguagens

pertinentes. Num certo sentido, considerando o pendor marginal de

cada um, eles eram “farinha do mesmo saco”. Itamar ganharia um

exemplar do Catatau e, como o Descartes da história, ficaria a ver

navios. De volta a São Paulo, aproveitaria a viagem de ônibus para

ler os poemas que ganhara e considerava mais “digestivos”. Sua

primeira parceria musical seria com Alice — para uma música

chamada “Navalhanaliga”. Com Leminski, ele faria “Vamos nessa”,

gravada no disco Sampa Midnight, no ano seguinte.

Em meados de 1982, ficaria pronto o livro de poemas de

Miguelzinho, um trabalho das Edições Piratas, de Recife, que Alice

produziu desde o início. Kátia Bento, a poeta que se tornara amiga

deles na época do Jornal do Escritor, no Rio, trabalharia na

composição artesanal dos onze poemas. Um deles:

Sou um gatão

como um tigrão

Sou um felino

como um menino

Page 294: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Na foto da capa, trabalhada em sépia e assinada por Dico

Kremer, Miguelzinho aparece como sempre viveu: andando descalço,

com o tênis na mão, em meio às barracas de um acampamento.

Parece história, mas tudo aconteceu num único dia. Eu estava

em Curitiba em companhia de um amigo carioca que manifestara o

desejo de conhecer Paulo Leminski, além dos livros e da fama. Era o

jornalista Cosme Coelho, meu colega na TV Globo, para o qual eu

agendara, informalmente, uma visita a Cruz do Pilarzinho. Era como

que, ao apresentar de viva voz meus amigos poetas, só então eu

pudesse dar por encerrado o relato vivo das histórias curitibanos,

temas de muitas conversas de botequim. Quando chegamos, no início

da noite, encontramos Alice afivelando as malas, se preparando para

passar três dias em São Paulo. Diante desta perspectiva, o Paulo não

conseguia disfarçar a excitação pela nossa entrada em cena, o que lhe

garantia um motorista para o Verdura e, como conseqüência, uma

noitada movimentada e festiva pela cidade:

— Fofa, podemos te levar na rodoviária, o Martins sabe dirigir.

Seguimos os quatro no fusquinha. Assim que Alice desapareceu

na porta de vidro, caminhando em direção ao ônibus, ele entrou no

carro passando-me as chaves e indicando o destino:

— Vamos ao bar do Pudim! É um botequim ao lado do cemitério,

onde a qualquer momento podemos ser surpreendidos com a chegada

sempre espetacular de Rita Pavão e suas coristas — referindo-se a

uma conhecida bailarina da cidade.

O bar do Pudim, quer dizer, do jeito que o encontramos, mais

parecia um velório. Mas o Paulo não perdeu o rebolado:

— Calma, rapazes. Elas costumam chegar de repente... Vai ser

uma festa!

Ele pediu um conhaque, que veio acompanhado de uma cerveja

não muito gelada. A conversa girava em torno de suas últimas

produções, tanto musicais como literárias. Logo vieram mais um

Page 295: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

conhaque e outra cerveja. E depois outros. Falamos animadamente de

tudo, durante quase duas horas, sem que a Rita Pavão — e sequer

uma única corista — desse o ar de sua graça. Já estávamos

sensivelmente atingidos pelo efeito das biritas, quando ele decidiu

recuperar o tempo perdido propondo uma saída estratégica até a

churrascaria do Coritiba, no estádio do Alto da Glória:

— Vamos comer uma carne, um churrasco tipicamente

paranaense, com aquele corte América do Sul...

Na rua, tivemos uma surpresa desagradável, pois procuramos

mas não encontramos o Verdura. Ficamos parados por alguns minutos

girando no exato local onde o carro deveria estar, tentando entender o

que estava acontecendo. De braços abertos, o Paulo subitamente

explodiu no óbvio:

— Roubaram o carro! Não acredito. A Alice vai me matar! Como

isso foi acontecer, meu Deus?

— ...

— Martins, você travou bem a porta quando chegamos?

— Claro, Paulo, mas ladrões não respeitam isso...

— Incrível! A Alice não vai acreditar que foi simples assim:

entramos no bar do Pudim e roubaram o carro!

Desolado, sentou-se no meio-fio compondo mais uma cena

tipicamente chapliniana. O Cosme, tentando abrandar a nossa

estupefação, ponderava que o carro estava velho e não era nenhum

modelo cobiçado, portanto, “quem iria roubar!”.

Neste momento, um desconhecido que subia a rua proferiu uma

pergunta esclarecedora:

— Por acaso vocês estão falando de um fusquinha verde?

O carro descera sozinho a ladeira da rua Nilo Peçanha, seguindo

por dois quarteirões até atravessar a rua, subir na calçada e bater no

muro de um terreno baldio. Foi um acontecimento inusitado para as

crianças que acompanharam tudo de perto, correndo ao lado em

grande algazarra. Alguns ônibus tiveram que desviar e uma manobra

Page 296: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

mais brusca de uma Kombi quase provocou um acidente. Quando

chegamos o Verdura estava cercado de garotos que se perguntavam

quem seria o dono do “carro fantasma”. No final, apenas um pára-

choque levemente amassado. (Mais tarde, Alice promoveria uma

pequena investigação para concluir que houve falha humana, pois o

freio de mão não tinha sido acionado.)

Minutos depois, na churrascaria do Coritiba, a cena que nos

aguardava não seria menos insólita: todas as mesas estavam

reservadas para jantares de confraternização, como só acontece nesta

época do ano. As cadeiras, mais de duzentas em formação militar,

aguardavam inclinadas num sinal respeitoso de “ocupadas”. Mesmo

assim, o garçom decidiu abrir uma exceção, afastando para o lado

uma mesa com três cadeiras. As reservas, feitas por duas grandes

empresas, estavam marcadas para as 21 horas e o relógio na parede

indicava 20:30.

Diante da constatação, o Paulo fulminou o garçom com um

estranho pedido:

— Pode trazer oito cervejas e churrasco para três.

O homem ainda nos varreu com o olhar antes de perguntar:

— Oito cervejas?

Eu tentei influenciar:

— Bem, Paulo, ele pode abrir duas cervejas agora, depois

pedimos mais duas...

Ele insistiu argumentando com aquela lógica meio amalucada

que manifestava em algumas situações:

— Vocês podem imaginar como este lugar vai ficar quando as

pessoas chegarem? Não vamos encontrar o garçom com facilidade e a

cerveja vai acabar em questão de minutos...

E dirigindo-se ao garçom:

— Faça o que estou dizendo: oito cervejas. E deixe todas

abertas, por favor!

— Mas, Paulo, veja bem...

Page 297: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

No final, vieram seis cervejas, tomamos quatro e deixamos duas

pagas, abertas e sem tocar. Na saída, ele fez o último comentário

olhando para o garçom:

— É melhor sobrar do que faltar.

É claro que, até então, nenhum freguês havia chegado.

Um dia, um telefonema. Era Luis Schwarcz, da Editora

Brasiliense, fazendo um convite. Ele oferecia uma oportunidade para

Leminski participar da coleção Encanto Radical, um sucesso da

editora paulista — na época uma das mais importantes no mercado

brasileiro. O petisco era uma coleção de biografias rápidas, quase um

perfil, sempre com personagens de impacto no mundo da cultura,

como Emiliano Zapata, Oswald de Andrade, Bob Marley e Antonin

Artaud.

Os olhos dele cintilavam quando propôs escrever sobre Cruz e

Sousa, o poeta negro catarinense, e Schwarcz aceitou. Os dois

combinaram prazos, forma de pagamento e se despediram. Ato

contínuo, Leminski pôs-se a trabalhar com exclusividade no projeto.

O material de pesquisa já estava em casa, ao alcance das mãos.

Como um fã de Cruz e Sousa, costumava dizer: “Fosse um negro

norte-americano, ele tinha inventado o blues. Brasileiro, só lhe

restou o verso, o soneto e a literatura para construir a expressão da

sua pena.” Em prazo recorde pôs o ponto final naquela que seria a

primeira de uma série de biografias que escreveria para a

Brasiliense, a partir de 1983. Seu estilo sucinto acompanhava um

conceito de “idéia” do personagem, que poderia muito bem ser

apresentada em poucas palavras. Leminski não acreditava em obras

prolixas, como as de Lobsang Rampa e outros místicos, que

amontoavam “verdades supremas” em mais de vinte volumes. “Não é

mais filosofia; é mercado editorial”, acusava. O livro Cruz e Sousa, o

negro branco, em formato de bolso e com 80 páginas, seria dedicado:

Page 298: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

ao lado negro, do lado da minha mãe, para Gilberto Gil,

pai de santo, guru, sensei, mestre zen, brilho do 3º

mundo, mimo de todos os orixás. Para Cassiana

Lacerda,* pelo amor ao Símbolo.

O lançamento da biografia de Cruz e Sousa suscitaria pelo

menos duas reações distintas da crítica, partindo de dois

interlocutores importantes para ele. Num rompante de sinceridade,

Risério faria restrições ao livro, considerando o resultado final uma

frustração: “Eu esperava mais do tema, principalmente vindo de

Paulo Leminski.” Para contrabalançar os valores dos quesitos, o

sambista Nei Lopes, um conceituado estudioso da cultura negra

brasileira, lhe escreveria uma carta dizendo-se entusiasmado com o

livro.

Nei mandaria, via editora Brasiliense, seus dois livros

abordando a cultura e as agruras da comunidade negra no Brasil.

Depois disso, os dois trocariam correspondências e telefonemas.

Leminski apresentaria o ensaio Alegria da senzala, tristeza das

Missões, que havia publicado num suplemento cultural. Em seguida,

receberia uma nova carta de Nei Lopes, que suscitaria a seguinte

resposta:

Mano: que baile você me deu! Suas considerações sobre

a Alegria da senzala e tristeza das Missões são setas

certeiras como as flechas de Oxóssi. Te proclamo desde

já meu mestre e consultor máximo em assuntos afro.

E encerrava com uma saudação em ioruba, que significa “até

* Cassiana Lacerda é professora de Literatura na Universidade Federal do Paraná e executiva na área de cultura.

Page 299: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

logo, irmão”.

A biografia de Cruz e Sousa funcionaria como um talismã. As

relações com a editora se fortaleceriam com a entrada em cena de

Caio Graco Prado — o principal executivo da Brasiliense — que

assumiria o papel de grande incentivador do trabalho de Leminski no

campo literário. Caio e Schwarcz se mostrariam receptivos às idéias

do poeta, que passaria a exercer uma saudável influência em seus

editores, apresentando uma safra de sugestões editoriais das quais

se encarregaria também das traduções. Assim, Leminski traduziria e

a Brasiliense publicaria Pergunte ao pó, de John Fante (a única que

não foi indicação sua); Folhas das folhas da relva, de Walt Whitman;

O supermacho, de Alfred Jarry; Satyricon, de Petrônio (traduzido do

latim); Sol e aço, de Mishima; Um atrapalho no trabalho, de John

Lennon, e Giacomo Joyce, de James Joyce. Suas afinidades com as

obras da geração beat o levariam a traduzir Vida sem fim, de

Ferlinghetti, e a sugerir a edição — da qual escreveria o prefácio —

de Cartas na rua, de Charles Bukowski. (Qualquer semelhança entre

ele e o personagem Henry Chinaski, um “sujeito ávido de uísque,

cerveja, vinho e sexo”, não é mera coincidência.)

Seu trabalho como tradutor chamaria a atenção dos

especialistas. O crítico Ariovaldo Augusto Peterlini, professor da USP,

escreveria na Folha de S. Paulo:

— Paulo Leminski está entre os tradutores que amam o perigo.

Depois de Joyce, Petrônio. O Satyricon (texto latino escrito

provavelmente sob Nero, por um suposto Petrônio) é um desafio que

impõe audácias. E como é audacioso o artista que há em Paulo

Leminski. “Entre trair Petrônio e trair os vivos”, escreve ele no

prefácio, “escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém.”

O próprio Leminski diria que, ao traduzir Satyricon, o fizera

com o máximo de fidelidade ao sentido original, mas usando uma

linguagem “de hoje”. Assim, a expressão “Por Júpiter capitolino”

Page 300: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

seria traduzida simplesmente por “Céus!”

O professor Antonio Houaiss, também na Folha de S. Paulo,

comentaria a tradução de Giacomo Joyce:

— Texto destinado ao frêmito, à emoção, a fundas

concupiscências interiores, é texto que dá prazer à vida pois dá

prazer de ler: o que se logra, aqui, no original e na tradução.

Em seguida, Leminski decidiria encarar outro desafio ao propor

a tradução de Malone Morre, de Samuel Beckett, consolidando seu

engajamento no “difícil”, primando pela escolha de textos

considerados “pedreiras”. No caso de Beckett, traduziria

simultaneamente do inglês e do francês — idioma original da obra.

Em sua apresentação, ele afirmava: “Beckett é um senhor das

palavras que usa, nunca um escritor comum, desses que são usados

pelas palavras.” O resultado final, em português, levaria em conta

valores dos textos nas duas línguas. Ele diria:

— Neste boom de traduções, do qual eu participo, se traduzem

obras B ou C quando ainda tem coisas A que não foram editadas no

Brasil. Eu tenho sete livros traduzidos, todos eles esgotados, e

alguns de valor enorme, como Beckett e Joyce, que considero as

melhores coisas que fiz na área. Numa jogada um pouco diferente,

posso incluir também John Lennon, com o qual eu pratiquei uma

transcriação.

Ainda em 1983, Leminski publicaria uma coletânea de poemas

— pela primeira vez com distribuição nacional — que chamaria de

Caprichos e relaxos, reunindo 150 páginas de trabalhos publicados

anteriormente em Polonaises, revista Invenção e Não fosse isso...,

além de letras de música e dos capítulos inéditos “Ideolágrimas”,

“Sol-te” e “Contos semióticos”. A obra tinha apresentação de Haroldo

de Campos e Caetano Veloso, que destacava na última capa:

— Esse livro de poemas é uma maravilha, porque os poemas de

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Leminski são muito sintéticos, muito concisos, muito rápidos, muito

inspirados. Ele é um personagem único no panorama da curtição de

literatura no Brasil. Eu acho um barato. Deve ser instigante para os

poetas do Brasil o aparecimento desses novos poetas. Leminski é um

dos mais incríveis que apareceram.

A crítica — como havia acontecido com o Catatau — receberia o

livro com entusiasmo. O jornalista Mário Sérgio Conti, da revista

Veja, saudaria o lançamento:

— Leminski alerta para o fato de que alguns de seus poemas

devem ser ditos em voz alta, e até cantados, para serem plenamente

usufruídos. Mas o melhor dele são os poemas impressos — é na luta

com as palavras no branco e preto da página que ele ocupa o lugar

de um dos nomes mais inovadores da atual poesia brasileira.

Régis Bonvicino, mesmo sendo uma pessoa “de casa”, juraria

isenção crítica ao afirmar categoricamente, em resenha publicada no

Jornal da Tarde:

— Sem exagero, o melhor livro de poesia do ano.

A professora e crítica Leila Perrone-Moisés, no jornal O Estado

de S. Paulo, mostrava-se sensibilizada com a obra:

— Samurai e malandro, Leminski ganha a aposta do poema,

ora por um golpe de lâmina, ora por um jogo de cintura. Tão rápidos

que nos pegam de surpresa; quando menos se espera, o poema já

está ali. E então o golpe ou a ginga que o produziu parece tão

simples que é quase um desaforo:

acordei bemol.

tudo estava sustenido

sol fazia

só não fazia sentido

Outro analista, Marcos Augusto Gonçalves, na época editor do

Page 302: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

caderno “Ilustrada”, da Folha de S. Paulo, saudaria a “Volta a

trivialidade de Paulo Leminski”, não exatamente com elogios diretos,

mas com inquietações: “Leminski emite uma voz multidirecional,

uma voz cujos estilhaços podem atingir em cheio o leitor mais

sofisticado ou irritá-lo — quando então estará acertando o leitor

menos literário, se bem que esperto.”

O sucesso de crítica seria acompanhado do sucesso de venda

— e, em menos de um mês, a primeira edição de 3 mil exemplares de

Caprichos e relaxos estava esgotada. Os editores decidiriam

rapidamente rodar uma segunda fornada, de 5 mil exemplares, que

repetiria o sucesso da primeira. Então, uma terceira e última edição,

de 10 mil exemplares, em parceria com o Clube do Livro, seria

lançada e esgotada no ano seguinte. Ele aparecia na mídia para

esnobar:

— Agora vou dar um tempo em publicidade, deixar de lado o

discurso exato e preciso; quero reconquistar o direito de ser

nebuloso.

Em janeiro de 1984, uma nova mudança de endereço para os

Leminski. Sem se preocupar com dinheiro, eles escolheram uma casa

em melhores condições que a atual e igualmente ampla — e

mudaram-se para a rua Antonio Cesar Casagrande, ainda no

Pilarzinho. A escolha seria por um bangalô de madeira, de estrutura

baixa, com varanda e um amplo jardim na frente, ao estilo japonês. À

esquerda da porta principal, na sala, num espaço marcado pelo

desnível do piso, ficava a biblioteca, mais revirada de livros do que

nunca, um verdadeiro caos de propósitos literários. Na parede, um

pôster de Miguelzinho com o poema de Alice ocuparia o espaço

principal da sala. A estante de bambu, a radiola, as grandes

almofadas e o velho baú compunham os elementos básicos. Na

garagem, o fusquinha Verdura resistia à passagem do tempo.

Page 303: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Quando apareceram no bar da esquina, pela primeira vez,

alguns vizinhos comentaram que aquela casa não trazia sorte para

seus moradores. O último casal a morar nela — disseram —

separou-se depois de uma briga sensacional, daquelas de quebrar

móveis e atirar louças pela janela. Leminski e Alice riram da história,

dizendo que eles iriam quebrar, sim, mas era a tradição de baixo

astral, fazendo daquela casa o lugar onde seriam felizes para sempre.

E a felicidade pode assumir algumas vezes a faceta do

reconhecimento público. Foi assim com a entrevista publicada pela

revista Veja com o escritor e crítico Nicolau Sevcenko, que, instado a

falar da experiência cultural de sua geração, definiu-a como uma

geração sem palavras, “não por não ter vocação para falar, mas

porque sua palavra não era solicitada pelo espaço público, que já

estava ocupado pela ditadura”. Assim, como conseqüência, teríamos

uma geração “que traz um enorme anseio pelo respeito às

individualidades e diferenças, de uma abertura à multiplicidade das

manifestações culturais em todos os níveis”.

O entrevistador, Guilherme Cunha Pinto, quis saber “onde se

pode notar esse caráter introspectivo da cultura atual”. A resposta de

Sevcenko:

— Na poesia de Paulo Leminski, por exemplo — nadei, nadei,

não dei em nada —, um jogo de aliterações vinculado ao concretismo,

mas cuja contextura vem toda da beat generation, de uma geração

marginalizada, corroída, sem perspectivas. Tudo que respira,

conspira. Na poesia de Leminski, há a síntese de uma vivência e

experiência histórica muito fragmentada e concisa.

Em seguida, Leminski mergulharia no projeto de uma nova

biografia: Bashô, a lágrima do peixe, sobre aquele que era, na sua

opinião, “o maior poeta que o Japão já produziu”. Suas pesquisas

sobre haikais o remeteriam a duas fontes de consulta: o original, em

japonês (Nippon Haishô Taikei, editora Kanda Hosui), e uma tradução

Page 304: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

em inglês para Haiku, de R. H. Blyth. O livro seria dedicado “a

Kenjiro Hironaka, Makoto Yamanouchi e Aldo Lubes, meus mestres

de judô, na Kodokan. Para Alice Ruiz que, entre tantas coisas, ainda

acha tempo para ser uma haikaisista japonesa do século XVIII. Para

Augusto de Campos, inventor da poesia japonesa no Brasil”. Em nota

editada no final do livro, ele recomendava também a produção de

haikais de Millôr Fernandes, como referência do gênero.

O trabalho dava resultados e ele desfrutava de privilégios

concedidos apenas aos grandes autores. Planejava completar um

ciclo de biografias que, no futuro, deveriam ser publicadas num

único volume chamado “Vida”. Os dois outros livros eram sobre

Jesus, que seria lançado em 1984, e Trotski, em 1986:

— São quatro maneiras de como a vida pode se manifestar: a

vida de um grande poeta negro, simbolista, que se chamou Cruz e

Sousa; Bashô, um japonês que abandonou a classe samurai para se

dedicar apenas à poesia, e é considerado o pai do haikai; Jesus,

profeta judeu que propôs uma mensagem que está viva há 2.000

anos; e Trotski, o político, o militar, o ideólogo e revolucionário.

Quero homenagear a grandeza da vida em todos esses momentos.

A biografia de Jesus — dedicada a Domingos Pellegrini, Alice

Ruiz e Paulo Cesar Bottas, um frei dominicano, também compositor

— traria novamente a marca da polêmica, ao propor uma nova

leitura do Personagem, inclusive tratando de aspectos considerados

“tabus”:

— Para mim, Jesus é um sinal que deve ser lido a cada

geração. E cada qual dará a sua própria interpretação, conforme o

seu repertório e interesses. Numa parte do livro — que chamei de

Parabolário — traduzo diretamente do grego as principais parábolas

de Jesus, com um minicomentário. Eu tenho a pretensão de ter feito

a leitura de Jesus para a minha geração. Jesus é a soma das

interpretações que provoca. Eu sou um homem religioso mas não

Page 305: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

sou alinhado a nenhuma seita.

A Folha de S. Paulo abriria espaço para o lançamento do livro,

em artigo assinado por Eduardo Sganzerla, com o título: “O

Evangelho Segundo Leminski”, sugerindo que Jesus “parece ter tido

uma ternura especial por uma das irmãs de Lázaro, de nome Maria.

A outra irmã, Marta, viu a caçula sentada aos pés do mestre, flagrou

o namoro e, por ciúmes, a chamou para a cozinha”. O livro

surpreenderia, sobretudo, por se atrever a propor a releitura de uma

das biografias mais consolidadas ao longo dos séculos.

A boa fase profissional se fortaleceria com as propostas da

Folha de S. Paulo, para uma coluna semanal, e da revista Veja, que o

queria como resenhista de livros, ao lado de Marcelo Rubens Paiva e

Paulo Sérgio Conti — o mesmo que havia feito a crítica a Caprichos e

relaxos. Leminski aceitaria na hora as duas propostas e começaria a

trabalhar como uma máquina, escrevendo preferencialmente durante

as madrugadas:

Andar e pensar um pouco

que só sei pensar andando.

Três passos, e minhas pernas

já estão pensando.

Aonde vão dar estes passos?

Acima, abaixo?

Além? Ou acaso

se desfazem ao mínimo vento

sem deixar nenhum traço?

Motivados pelo alto astral da temporada, Leminski e Alice

voltariam a falar com freqüência em casamento. Fizeram planos —

nunca concretizados — para legalizar a situação civil e consolidar a

Page 306: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

relação amorosa que já completava 15 anos. Ao mesmo tempo,

Leminski desenvolveria com Guilherme Arantes a trilha sonora do

musical infantil Pirlimpimpim 2, da Rede Globo. Foram sete músicas

em parceria, sendo que a mais tocada nas rádios era “Xixi nas

estrelas”, nome do show de Arantes, no Canecão. Eles trabalhariam

diariamente pelo telefone, fazendo ligações entre São Paulo e

Curitiba. O músico improvisaria um pedestal para o telefone em seu

estúdio, para que pudesse cantar e falar com Leminski sem sair do

piano.

O especial Pirlimpimpim 2 iria ao ar numa Sexta-feira Nobre,

como era chamado o programa. Eles assistiriam o programa na casa

de Ernani Buchmann, onde uma equipe de televisão apareceria para

registrar a cena: o poeta assistindo ao próprio musical no vídeo.

Depois, ele diria envaidecido:

— Agora eu saio na Globo assim: Paulo Leminski — e, embaixo

— poeta. Exatamente como eu queria. Mas leva vinte anos para se

conseguir isso.

Apesar do relativo e planejado sucesso de Pirlimpimpim,

Leminski não ficaria satisfeito com o resultado final do trabalho.

Argumentaria que “o projeto não decolou, faltou química entre eu e o

Guilherme”.

Certa vez, diante das evidências de que suas origens estavam

numa aldeia polonesa chamada Narájow, Leminski decidiria fazer

uma investigação minuciosa no mapa-múndi. Debruçado sobre a

mesa da biblioteca, ele gastaria um bom tempo tentando resolver

este mistério, sem nada conseguir. Narájow, definitivamente, não

estava no mapa. Já havia desistido quando percebeu uma mosca

pousar sobre o mapa, dentro do território da Polônia. Calmamente

ele pegou uma caneta e fez um círculo no ponto exato onde o inseto

esfregava as patinhas — para decidir que ali estava Narájow! Logo

depois, criaria o poema:

Page 307: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

uma mosca pouse no mapa

e me pouse em Narájow,

a aldeia donde veio

o pai de meu pai,

o que veio fazer a América,

o que vai fazer o contrário,

a Polônia na memória,

o Atlântico na frente,

o Vístula na veia

que sabe a mosca da ferida

que a distância faz na carne viva,

quando um navio sai do porto

jogando a última partida?

onde andou esse mapa

que só agora estende a palma

para receber essa mosca

que nele cai, matemática?

Em março de 1984, quando estava em São Paulo fazendo a

entrega da tradução de Pergunte ao pó (Ask the Dust), Leminski

ouviria do editor Caio Graco uma proposta inesperada:

— Quanto você quer de salário mensal para escrever um

romance para a coleção Cantadas Literárias? O prazo para entrega

dos originais é setembro.

Leminski pediria alguns minutos para responder. Depois de

fazer os cálculos “na ponta do lápis”, tendo como base os gastos

mensais da casa e projetando a inflação para o período, ele chegaria

a um valor que lhe permitiria viver confortavelmente durante quatro

meses, mesmo se afastando das agências de publicidade. Ele

Page 308: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

apresentaria a cifra para o editor que responderia no ato:

— Negócio fechado.

O romance (ele diria “novela”) iria se chamar Agora é que são

elas — e seria um pretexto, segundos suas próprias palavras, “para

criar uma história na velocidade do fliperama, com texto

fragmentário, capítulos curtíssimos e cortes bruscos”. Seria uma

novela com começo, meio e fim — não necessariamente nessa ordem.

O primeiro parágrafo dizia, em tom surpreendentemente

confessional:

Aos 18 anos, pensei ter atingido a sabedoria.

Era baixinha, tinha sardas e tirei-lhe o cabaço na

primeira oportunidade.

Não ficou por isso.

A lei falou mais forte. E tive que me casar,

prematuro como uma ejaculação precoce.

Nem tudo foram rosas, no princípio.

Nos pulsos ainda me ardem as cicatrizes de três

malsucedidas tentativas de suicídio.

Mas eu não posso ver sangue. Sobretudo, quando

meu.

Assim decidi continuar vivo.

Principalmente porque o mundo estava cheio

delas.

De Marlenes. De Ivones. De Déboras. De Luísas.

De Sônias. De Olgas. De Sandras. De Edites. De Rosas.

De Evas. De Anas. De Mônicas. De Helenas. De Rutes.

De Raquéis. De Albertos. De Carlos. De Júniors. De...

(ihh, acho que acabo de cometer um ato falho). De

Joanas. De Veras. De Normas.

Page 309: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

A história, apresentada ao leitor sem nenhuma explicação,

narra as aventuras textuais de um estudante de astronomia (o

narrador) que está sendo analisado por Vladimir Propp, escritor

russo, autor da Morfologia do conto fantástico, que também era

conhecido como um grande bebedor de vodca. Norma é a filha de

Propp, com quem o estudante mantém relações amorosas. Leminski

misturava mais uma vez ficção com realidade, sempre trabalhando

com inverossimilhanças. Para não estimular grandes expectativas

quanto às chaves de leitura, convém lembrar que o livro seria

dedicado “ao delito de deixar o dito pelo não dito”.

A noite de autógrafos, bastante concorrida, aconteceria a 30 de

novembro no Instituto Goethe. Através de sua obra, Leminski ficaria

novamente exposto às críticas.

Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, no mesmo mês do

lançamento, o crítico Eduardo Ramos Quirino, depois de observar

que a narrativa de Leminski “é muito influenciada pelo Joyce de

Retrato do artista quando jovem, mais uma pitada de Flaubert e um

outro tanto de Dostoievsky”, concluiria:

— Assim, o forte do romance é sua narrativa e sua construção

e não a linguagem como se poderia esperar vindo de um poeta.

Enfim, um belo romance, o suficiente para curar Paulo Leminski

daquele problema de bexiga que teve junto com Guilherme Arantes.

Fernando Py, em O Globo, dedicaria eloqüente artigo intitulado

“Estilhaços”:

O livro é assim, um mosaico à primeira vista

disparatado, mas que se revela, a uma leitura atenta,

um conjunto bastante consistente de estilhaços que o

leitor é convidado a remontar. À sua maneira.

Page 310: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Apesar disso, o livro passaria a sofrer do estigma de mal-

amado pela crítica. Talvez em função de o próprio autor ter renegado

a obra, afirmando não ter atingido o objetivo que pretendia:

— O romance não é mais possível. Agora é que são elas é um

romance sobre a minha impossibilidade de escrever um romance.

Em ensaio publicado anos depois (revista da USP, 1989), o

conceituado Bóris Schnaiderman falaria do “romance enjeitado”,

como um equívoco da crítica e não da obra:

Na base disso e de uma releitura do romance de

Leminski, tenho que contrariar a opinião consagrada da

crítica, os desafetos e amigos do poeta e a própria

opinião deste, pois, na medida em que posso tratar

desse tema, considero Agora é que são elas uma das

obras de ficção brasileira mais interessantes dos últimos

anos.

Em seguida, o professor pergunta:

Para começar, qual dos detratores desse romance seria

capaz de escrever um trecho de prosa tão ágil, numa

linguagem tão realizada como a da seqüência que vou

transcrever?

Com aquela cara de homem fingindo estar interessado

no papo de uma mulher apenas porque está com

vontade de comê-la, com aquela cara de mulher

costurando e bordando pensamentos apenas porque

está a fim de ser comida por ele, cheguei, caprichei,

relaxei, lembrei tudo o que tinha aprendido em Kant e

Hegel, repassei toda a teoria dos quanta, a morfologia

Page 311: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

dos contos de magia de Propp, o vôo 14-bis, cheguei e

não perdoei: — Tem fogo?

Assim, uns dos textos menos realizados da carreira literária de

Paulo Leminski, aquele que mais apanhou da crítica, ainda era

considerado muito bom ou acima da média. (Consolidando esta

posição também no mercado, o livro ganharia uma 2ª edição nos

anos 90. Caso estivesse vivo para saber disso, provavelmente ele

diria: “Entre vocês e o Bóris Schnaiderman, eu fico com o Bóris.”)

Uma tarde, em maio de 1985, quando minha mãe convalescia de

um câncer num hospital especializado, em Curitiba, tivemos uma

conversa profunda e séria na Cruz do Pilarzinho. Certamente

motivados pela minha aflição e dor, falamos da morte durante um

longo tempo, embora eles não estivessem exatamente tentando me

consolar. Era — como vamos dizer? — mais uma atividade intelectual

do que um ato de comiseração. Eu me sentia como que sugado pelas

últimas noites mal dormidas, quando Alice nos revelou que tinha

“visto” Miguelzinho dias antes num teatro, sentado nas poltronas

vazias da platéia. Era uma visão mágica na qual, honestamente, ela

acreditava; uma comunicação extra-sensorial com o filho que partira

prematuramente. Divergimos neste ponto, quando expusemos nossos

conceitos sobre o status do ser após a morte — que eu, apesar de uma

autêntica formação cristã, chamava de O Nada. Eu argumentava que

O Nada não era ruim, mas algo parecido com o que acontecia antes de

você nascer: nada. O impacto da morte (se natural, por acidente ou

doença) era a única variável. Na substância, então, existiria o ser e o

nada.

Durante boa parte do tempo, Paulo se manteve em silêncio,

contrariando um comportamento natural dele. Apenas ouviria e, no

final, ponderaria dizendo acreditar que as pessoas, em vida,

constroem uma alma capaz de se perpetuar como uma extensão da

Page 312: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

existência, muito além da existência. Não ofereceu mais detalhes e, na

verdade, era como se não os tivesse. Mais tarde, ele resumiria tudo

num poema com o pomo às avessas, mais uma vez desfigurando o

confronto ao desviar o olhar exclusivamente para a vida:

leite, leitura,

letras, literatura

tudo o que passa,

tudo o que dura

tudo o que duramente passa

tudo o que passageiramente dura

tudo, tudo, tudo,

não passa de caricatura

de você, minha amargura

de ver que viver não tem cura

No dia 24 de junho de 1985, ele faria uma trégua no trabalho

para participar — como convidado especial — do evento Um Escritor

na Biblioteca, um bate-papo informal com estudantes no auditório. A

sabatina seria coordenada pelos poetas Reinoldo Atem e Marise

Manoel para um público eminentemente jovem. Marise abriria a

conversa perguntando se, à luz de tantos títulos já editados, “você

hoje abandonaria a sua principal teoria estética, ou seja, a poesia

como inutensílio?”:

— Não, ao contrário, eu comecei por uma profissão de fé no

inutensílio. Quer dizer, a poesia não tem que estar a serviço de

nenhuma causa, de nenhum pressuposto. A poesia é um exercício de

liberdade. Hoje sabemos que, a nível científico, existe uma função

poética na linguagem, detectada pelo lingüista russo Roman

Jakobson. A função poética está presente na linguagem de um modo

geral e não apenas na poesia feita pelos poetas.

Page 313: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Alguém na platéia quis saber:

— Como é seu processo de criação? Existe inspiração?

— Disciplina profissional. Eu não sou poeta de fim de semana,

nem faço por hobby, como quem faz poesia quando vai para a praia.

Faço poesia 24 horas por dia. Montei a minha vida de tal forma que a

produção textual me permite pagar o aluguel no fim do mês, a escola

das minhas filhas, o meu cigarro, o vinho. Antigamente, eu

trabalhava mais no sentido de adquirir aquela perícia artesanal que

todo mundo tem que ter. Agora, acho que as coisas estão mais

automatizadas em mim. Quer dizer, com dois toques eu estou

chutando em gol.

Enquanto falava, usava um quadro-negro colocado à sua

disposição. A certa altura, mencionaria a presença na platéia do

poeta Alberto Cardoso, um veterano trovador de reconhecidas

virtudes, cujo principal talento não estava exatamente em escrever

as líricas, mas dizê-las. O resultado da palestra, acrescido de outros

comentários e amostras de poemas, seria transformado em livreto

editado pela Biblioteca, como acontecera com Antonio Callado,

Márcio Souza, Thiago de Mello, Helena Kolody e Fernando Sabino.

Ele assinava a publicação, na última página, fazendo uso da frase

que adotara como lema:

Para ser poeta, é preciso ser mais que poeta

Paulo Leminski

Na equipe que trabalhava no projeto editorial estava uma bela

e jovem intelectual, Josely Vianna Baptista, que seria amiga do casal

Leminski — ou algo mais para ele, considerando a opinião de alguns

amigos. Josely, ou Jose, como era conhecida, trabalhava na tradução

do monumental Paradiso, de Lezama Lima, considerada a obra

máxima do neobarroco hispano-americano. Ela o escolheu para fazer

a primeira leitura crítica do trabalho. Naturalmente, esta confluência

Page 314: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

de interesses e atividades os aproximaria e eles passariam a sair

juntos. E o que era melhor: brigavam de vez em quando. Ela

considerava que Leminski “facilitava” demais os poemas; ele

replicava dizendo que poemas “deveriam nascer quase por acaso”.

Falava numa “faísca”, onde estava a poesia:

pedirem um milagre

nem pisco

transformo água em água

e risco em risco

A idéia de encurtar a distância entre expressão e realização o

levaria a desenvolver um pensamento-síntese dos seus estudos zen e

a verbalizar esta postura diante do cotidiano criando o slogan

Distraídos Venceremos, em contraponto ao popular Unidos

Venceremos, dos movimentos de política sindical. Assim, quando a

conversa com os amigos passava pelas “estratégias de combate para

abrandar a zona de sufoco”, ele — como um bom Dom Quixote —

sacava e brandia as palavras-bálsamo:

— Distraídos venceremos!

Em 8 de julho, corroborando a fase de franca ebulição,

estreava no pequeno auditório do Teatro Guaíra o espetáculo-

performance Polonaises, com o trovador Cardoso e outros jovens

artistas fazendo uma leitura de seus poemas. Com uma parede

branca ao fundo, um ator aparecia em cena empunhando um spray

para escrever “Pau no Leminski”. Outros atores passavam como

transeuntes, assustando o desvairado pichador, que solta o primeiro

poema: “o paulo leminski é um cachorro louco, que deve ser morto...”

etc.... Em meio à confusão urbana, o próprio Leminski apareceria no

cenário para gritar: “Parem, eu confesso, sou um poeta!” Fotos

Page 315: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

coloridas projetadas pelo fotógrafo Carlos Macacheira mostravam o

poeta aos pés da Cruz do Pilarzinho e em cenas domésticas com

Alice. Durante uma hora, tempo de duração do espetáculo, seriam

apresentadas nove músicas (com Marinho Galera ao violão) e

diversos textos.

Dois meses depois, em setembro de 1985, estava programada

uma viagem a Londrina para o lançamento de vários livros, numa

única noite de autógrafos. A festa aconteceria no reduto etílico-

intelectual da cidade, o bar Valentino, onde uma clone da cantora

Nina Hagen apareceu para dar uma pitada de nonsense à festa.

Nestes dias, eles conheceriam dois jovens que se tornariam amigos e

admiradores do casal. Os poetas Rodrigo Garcia Lopes e Ademir

Assunção, ambos de 17 anos, que podem ser incluídos entre aquelas

pessoas que foram “tocadas” por Leminski, sensibilizadas por seu

talento e carisma, como eles mesmos reconhecem. Ademir assinaria

uma reportagem de página inteira no caderno cultural da Folha de

Londrina: “Paulo e Alice no país das maravilhas e o que eles estão

vendo por lá”. Leminski seria apresentado nas páginas como o poeta

responsável pela “insurreição da fantasia”. Este encontro teria uma

forte influência na vida de Ademir, mais conhecido como Pinduca,

que se inquietaria o suficiente para considerar a possibilidade de sair

de Londrina e estudar em outra cidade. E foi o que acabou

acontecendo.

Em 1986, chegava ao fim a série de trabalhos de encomenda

para a editora Brasiliense, onde a partir de agora ele seria apenas

um autor. Continuaria recebendo pagamentos ocasionais pelos

direitos das obras — tanto de discos como de livros —, mas aceitaria

o convite de Ernani Buchmann para recompor a dupla de criação

com Solda, na agência Exclam. O dois voltariam a freqüentar o bar

da esquina, para desespero das respectivas mulheres e patrões.

Page 316: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Escolhiam os ambientes mais simples para beber, quase sempre

uma padaria ou botequim com mesas de bimbolim (totó) e

sinuquinha. A cada rodada, um litro de vodca era consumido. Sua

aparência física dava sinais de decadência, os cabelos, finos e lisos,

estavam agora mais ralos — e o porte atlético se consumia, por vezes

permitindo a saliência ululante dos ossos da clavícula. Dos dentes,

na arcada de cima, apenas ruínas. Como decorrência destas tardes

desregradas, Solda também apresentaria problemas de saúde,

fazendo com que ambos tivessem algo mais em comum além da

paixão pelo humor e poesia.

Os dois amigos estabeleceriam uma saudável cumplicidade

para administrar a produção feita em parceria, estabelecendo como

regra que o autor assumido seria aquele que primeiro pudesse fazer

uso do texto ou da idéia. Assim, uma palavra ícone criada por Solda

aparece assinada por Leminski na página 137 do livro Caprichos e

relaxos: a foto do poeta com o quimono oriental e o título Kamiquase,

escrito com a caneta pilot. Da mesma forma, o slogan Quem tem Q.I.,

vai! seria uma criação coletiva, com a participação de Retamozo.

Alguém teria falado primeiro:

— Bem, eu tenho que ir.

O outro emendou:

— Quem tem que ir, vai.

O último teria dito:

— É isso: quem tem Q.I., vai!

O trabalho na agência era constantemente interrompido pelas

viagens a São Paulo, onde ele mantinha sempre uma extensa agenda

a cumprir. Em outubro, seria convidado e aceitaria ministrar um

curso sobre poesia, com duração de uma semana, na Faap —

Fundação Álvaro Penteado — onde abordaria temas como Arte na

sociedade de consumo, Poesia concreta e vanguardas e a Presença

do hai-kai no Brasil. Ele reencontraria Itamar Assumpção e Pinduca,

Page 317: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

agora trabalhando como repórter de O Estado de S. Paulo. Itamar

produzia aquele que seria o primeiro disco da cantora Fortuna,

chamado Só. No dia 21 de outubro, o “Caderno 2” do Estadão

publicava uma entrevista assinada por Ademir com o título “Poesia

na idade mídia”, onde Leminski sustentava:

não existe nenhuma língua no mundo que seja superior

a outra quanto ao seu potencial expressional. Todas as

línguas são igualmente capazes de expressar. São

igualmente ricas, são igualmente musicais. A língua

grega em si, não é dotada de propriedades que a torne

superior à língua, digamos, vietnamita. Tudo vai das

circunstâncias. Então, a questão é saber se, por

exemplo, Shakespeare seria o grande teatrólogo que é se

ele não tivesse coincidido com o apogeu imperial da

Inglaterra.

Foi Pinduca quem levou Leminski ao bar Madame Satã, uma

agitação das boas na noite de São Paulo, onde ele conheceria

Arnaldo Antunes, na época lançando seu primeiro livro de poesia,

Psia. Arnaldo era o principal nome do grupo Titãs e ostentava em seu

breve currículo de 26 anos uma prisão espetacular por porte de

heroína e vários feitos literários nada acadêmicos — fatos que,

certamente, contribuiriam para aproximá-los definitivamente.

Arnaldo lembra-se da primeira vez que Leminski apareceu num

ensaio dos Titãs:

— Ele chegou dizendo: “Posso dar uma voltinha nessa

guitarra?” E já foi pegando o instrumento e tocando alguns acordes.

O pessoal reagiu: “Pô, que sujeito folgado!” Depois nos acostumamos

com aquela maneira relaxada de ser e nos tornamos amigos. Ele

aparecia no apartamento do Aguilar, da Banda Performática,

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vestindo um blusão de couro e querendo ouvir Sex Pistols. Parecia

um punk.

Na volta a Curitiba, Leminski colocaria uma antiga idéia em

prática, ao reunir seus ensaios num único volume que chamaria de

Anseios crípticos e seria impresso pela editora Criar, de Curitiba. O

livro apresentava, em 143 páginas, textos publicados anteriormente

em diversos jornais e revistas, além dos prefácios para as traduções

de Beckett e John Fante. Alguns trabalhos eram inéditos. Ele

apresentaria o livro como sendo uma busca de sentido:

O sentido, acho, é a entidade mais misteriosa do

universo. Relação, não coisa, entre a consciência, a

vivência e as coisas e os eventos.

O sentido dos gestos. O sentido dos produtos. O

sentido do ato de existir.

Me recuso a viver num mundo sem sentido.

Este anseios/ensaios são incursões conceptuais

em busca do sentido.

Pois isso é próprio da natureza do sentido: ele não

existe nas coisas, tem que ser buscado, numa busca

que é sua própria fundação.

Só buscar o sentido faz, realmente, sentido.

Tirando isso, não tem sentido.

Nos ensaios, apresentava digressões a respeito de temas os

mais diversos, colocando em evidência “O Último Show de Rock.

Quem Chora?”, “Click. Zen e a Arte da Fotografia” ou “Punk, Dark,

Mini-mal, O Homem de Chernobyl”. Continuava fazendo do labor

artesanal da escrita o seu assunto favorito. Em “Sem eu, Sem tu,

Nem ele”, expunha:

Page 319: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

O primeiro personagem que um escritor cria é ele

mesmo. Só os imbecis procuram um eu atrás do texto

literário. Em literatura, a própria “sinceridade” é,

apenas, uma jogada de estilo.

Um escritor medíocre não consegue ser “sincero”.

Técnica, coração.

Para ser sincero, é preciso dispor das técnicas que

indiquem, signem, sinceridade. Sem isso, a mais pura

das explosões verbais, a mais direta, a mais

“espontânea”, será apenas mais uma manifestação de

imperícia literária. Um amontoado de bobagens que o

tempo vai se encarregar de destinar ao lixo, onde jazem

as ilusões.

Este mesmo raciocínio apareceria no filme Ervilhas da fantasia,

um curta-metragem dirigido por Werner Shumann e que fora

gravado na biblioteca de sua casa. Depois de ouvir o diretor gritar

Gravando!, Leminski sustentaria o valor da saga de um poeta que

supera a fase romântica dos 18 anos para continuar fazendo poesia

ao longo da vida:

— Ser poeta quando jovem é fácil. Continuar acreditando na

beleza da linguagem, como Drummond e Mário Quintana, que fazem

isso há 60 anos, é um ato de heroísmo ou santidade.

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ÚLTIMO CAPÍTULO À PARTE

17 de dezembro de 1986. Neste dia Pedro Leminski acordou

decidido. Fez a barba com capricho, vestiu uma camisa bem

alinhada e saiu para comprar uma corda de náilon numa loja de

ferragens. Não se sabe por quê, escolheu uma corda branca. Ele

estava morando numa pensão na rua Paula Gomes, próximo à casa

das tias, onde fazia as refeições diariamente. Vivia mergulhado em

forte crise depressiva, com sinais visíveis de alcoolismo — e,

certamente, contava apenas com as tias e a sorte para sobreviver.

Estava separado de Elly há muitos anos e não falava com o irmão há

pelo menos seis, quando passou a ter notícias dele através dos

jornais. Às vésperas de completar 40 anos, Pedro tinha perdido as

esperanças de encontrar uma profissão ou mesmo um trabalho

regular que pudesse lhe permitir levar uma vida normal. Sua revolta

e inquietação deram lugar a uma apatia assustadora. Passava as

noites perambulando pela cidade, entrando e saindo de bares, agora

sem o violão e sem amigos. Ele vinha tomando remédios pesados que

eram incompatíveis com a bebida, mas continuava bebendo.

Neste dia, caprichou para confirmar a rotina. No horário de

sempre, apareceu para o almoço na casa das tias, que fizeram

alegres e repetidos comentários sobre a sua esmerada elegância.

Almoçou calmamente e, antes de sair, deixaria recomendações sobre

como gostaria de ter o jantar, pedindo para a tia Izelite levar um

prato de sopa na pensão, às 19 horas em ponto. Argumentou que

não estava se sentindo bem e deveria passar a tarde na cama,

descansando:

— Vou deixar a chave aqui. Quem chegar pode entrar sem

Page 321: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

bater.

Era impossível saber o que se passava naquela cabeça

atormentada. Na hora combinada, as tias Luiza e Izelite prepararam

um farnel com um prato de sopa e fatias de pão, pegaram a chave

que ele havia deixado sobre a cômoda e saíram. Caminharam os

duzentos metros que separam as duas casas e, ao abrir a porta do

quarto, receberam um forte impacto. Pedro estava pendurado com

uma corda no pescoço na posição inequívoca de um enforcado, ainda

que com os pés no chão e os joelhos dobrados. O corpo pendia

apoiado no guarda-roupa, indicando que a corda havia cedido ao seu

peso. Tia Luiza aproximou-se o suficiente para notar que do canto da

boca escorria um líquido branco — como também percebeu que

naquele corpo não havia mais vida. Foi como um soco no estômago.

Ela recuou e tratou de afastar a irmã para fora do quarto enquanto

gritava pedindo socorro. Um rapaz que ocupava o aposento ao lado

apareceu com ares de espanto. Houve um momento de indecisão

entre eles até que o rapaz desfez o nó em torno do pescoço. O corpo

agora jazia inerte, dobrado, com o tronco sobre a cama e os joelhos

no chão. Tia Luiza balbuciou alguma coisa nervosamente indicando

que precisava dar alguns telefonemas e que estaria de volta em

poucos minutos. O rapaz tentaria tranqüilizá-la, mas sempre

insistindo para que alguém notificasse a polícia. Tia Luiza agarrou a

irmã pela mão e saiu apressada da pensão.

Não longe dali, Leminski e Alice viviam uma cena doméstica

trivial quando o telefone tocou. A notícia o deixaria absolutamente

transtornado. Ele ouvia sem acreditar no que a tia falava. Era como

se estivesse diante de um texto clássico de tragédia grega, algo

beirando a ficção. Ao mesmo tempo, tudo fazia sentido e, na verdade,

este desfecho já era mesmo esperado. Ainda assim, Leminski

desmoronou ao transmitir a Alice os detalhes que acabara de ouvir,

enquanto se vestiam.

Na pensão havia um camburão da polícia estacionado na porta.

Page 322: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Alice ficaria dentro do carro, a uma curta distância, esperando.

Leminski encontraria tia Luiza na calçada — ela estava conversando

com alguns policiais — e, em seguida, desapareceria porta adentro.

Logo depois, Elly e a filha Ellinha chegaram num táxi. Alguém

habilmente as separou, puxando Elly para um canto com o propósito

de informá-la sobre o que poderia encontrar lá dentro. Ela ouviu

atentamente e seu rosto se crispou. Quando voltou, segurou a filha

pelo braço e, abaixando-se à sua altura, contou-lhe que o pai estava

morto e que ela não iria entrar desta vez. Alice recorda-se da cena:

— Eu pude ver o joelho da Ellinha dobrando diante do impacto

da notícia. A mãe amparou-a com um forte abraço e as duas saíram

dali.

Na noite do velório aconteceria o pior. Leminski comportava-se

como um alvo atingido em cheio pela tragédia do irmão — e pela

primeira vez falaria em suicídio com Alice, argumentando que “o

melhor dos projetos humanos acaba invariavelmente em tragédia”.

Estava pessimista como nunca. Fazia do ritual da morte um

momento de meditação profunda, recusando-se a ficar

contemplativo, “dar um tempo” ou esfriar a cabeça. Agitava-se diante

do cadáver do caçula, como que trazendo para si a responsabilidade

pelo episódio. Ele passaria a noite com amigos no botequim ao lado

do cemitério, com o copo na mão. Falava em “pedir a conta pro

garçom”, entabulando uma conversa que, para Alice, soava

irreconhecível. Pedro Leminski seria sepultado no dia 18 de

dezembro, ao lado do pai, da mãe e do sobrinho Miguel.

Dois dias depois, a coluna do Correio de Notícias abriria com o

título “Adeus, Pedro Leminski”:

Meu irmão, que escolheu partir esta terça-feira, era,

sobretudo, um poeta. Dos poetas sempre foi forte nele

uma recusa de viver a vida comum, os dias comuns, as

Page 323: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

tarefas comuns, a mecânica banalidade do dia-a-dia

burguês.

Infenso a toda disciplina, sua paixão era a

natureza.

Marumbinista da fase áurea do marumbinismo,

era alpinista e estar com ele num acampamento no meio

do mato era como estar com um chefe de escoteiros.

“Escoteiro” era seu apelido na “Serra”, como diziam os

marumbinistas dos anos 60, para designar aquele verde

viver à sombra do Marumbi.

Tinha alguma coisa de colono polaco e alguma

coisa de índio.

Jamais aceitou o mundo moderno, o mundo do

salário, dos horários, dos compromissos inadiáveis.

Sempre foi rebelde a tudo, à escola, à autoridade,

à ordem dos outros.

Nos anos 60, viveu intensamente toda a margem e

toda exceção.

Era muito hábil com as mãos, um verdadeiro

artista, capaz de muitos artesanatos, capacidade que

jamais quis colocar no mercado.

Era músico e compositor.

Foi meu único professor de violão.

Na passagem dos anos 60 para os 70, fizemos

muitas composições juntos.

Entre elas, a “Oração dos suicidas” que a

Blindagem gravou em seu LP.

A primeira parte, letra e música, é toda dele.

Pedro fez ainda inúmeras outras canções que trago

na memória, algumas da mais absoluta pureza lírica.

Page 324: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

A vida é demais para os poetas.

Sobretudo para os melhores.

Pedro, quando queria e quando podia, era dos

melhores.

Ainda sobre os efeitos da morte do irmão, Leminski se

preparou para o lançamento triplo de Trotski, Anseios crípticos e o

mais recente trabalho de tradução, Fogo e água na terra dos deuses,

o poema egípcio. A festa aconteceria no dia 8 de fevereiro, na livraria

Dario Vellozo. Em seguida, o lançamento de um novo livro de poemas

sustentaria o astral num nível, digamos, aceitável para as

circunstâncias: estava chegando às livrarias Distraídos venceremos,

reunindo textos produzidos entre 1983-1987, onde Leminski dizia

acreditar ter atingido um horizonte longamente almejado: a abolição

(não da realidade, evidentemente) da referência, através da rarefação.

“Seria demais, certamente, supor que eu não precise mais da

realidade.”

O livro, de 134 páginas, era — como ele mesmo dizia na

primeira página — um gesto “Em direção a Alice, cúmplice nesse

crime de lesa-vida chamado poesia. Para Antonio Cícero, Arnaldo

‘Titã’ Antunes e — sobretudo — para ltamar Assumpção”.

A obra seria recebida com entusiasmo pela crítica. Em

contundente artigo intitulado “Rimas, Hai-Kais e Compulsão.

Leminski voltou”, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, Flora

Figueiredo anunciava:

— Pleno de sutis e mirabolantes momentos, Distraídos

venceremos traz de volta a poesia do curitibano Paulo Leminski,

depois do sucesso de seu livro Caprichos e relaxos publicado em

1983. A nova obra contém poemas escritos desde então e vem agora,

mais uma vez, confirmar o brilho e a versatilidade do autor.

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Na página 89, encontra-se um poema em forma de bilhete, com

características biográficas, representativo destes dias de incertezas:

Último aviso

caso alguma coisa me acontecer.

informem a família

foi assim, assim tinha que ser

tinha que ser dor e dor

esse processo de crescer

tinha que vir dobrado

esse medo de não ser

tinha que ser mistério

esse meu modo de desaparecer

um poema, por exemplo,

caso alguma coisa me suceder,

vá que seja um indício

quem sabe ainda não acabei de escrever

Em abril de 1987, uma surpresa agradável.

Obedecendo a um impulso natural, Alice voltaria a trabalhar

em publicidade, agora fazendo dupla de criação com Retamozo na

agência Umuarama, cuidando da imagem do Banco Bamerindus. O

envolvimento com o trabalho externo promoveria os primeiros sinais

de mudança em sua vida pessoal. Ela decidiria por fazer terapia e

freqüentar o AA como uma forma de indicar um caminho capaz de

Page 326: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

solucionar parte dos problemas que vinham enfrentando. Áurea

acompanharia a mãe, participando das reuniões da chamada Ala

Teen, reunindo os filhos de alcoólicos. Leminski, depois de se dizer

“sensibilizado” pela sutileza do convite, decidiria fazer análise

também, ainda que por um curto período.

Sua palestra de apresentação na reunião mensal do AA seria

considerado um show de lucidez, quando surpreenderia e comoveria

uma platéia tão numerosa quanto eclética, formada por

desembargadores, artistas, empregadas domésticas e marceneiros.

Ele começou dizendo:

— Não existe nada mais delicioso na vida do que birita. Uma

boa dose de vodca bem gelada. Mas é preciso merecê-la. Eu hoje

tenho que admitir que não estou sendo digno deste prazer.

E continuaria desfilando argumentos imbatíveis e charmosos a

favor da abstinência, do equilíbrio espiritual e da vida saudável. Sua

experiência no AA seria curta, apesar da encenação. Ele, que se

notabilizara por assumir posições firmes e determinadas, agora vivia

se esgueirando, tentando evitar qualquer confronto, em qualquer

circunstância. Alguns amigos se afastariam dele — não

necessariamente por mesquinharia ou desprezo, mas para não beber

junto, enquanto sua vida estivesse conturbada. Todos sabiam que ele

passava por um processo no qual estava imerso há muito tempo e do

qual teria que se livrar sozinho. Como dizem seus patrícios “polacos”,

para definir um certo estado de torpor provocado pelo álcool, ele

estava ficando de “miolo mole”. Apesar disso, reagiria com alegria ao

saber que Wilson Bueno estava na cidade planejando o lançamento

de um jornal de cultura, patrocinado pelo governo, que se chamaria

Nicolau. Eles se encontraram para planejar futuras edições

temáticas, das quais Leminski seria sempre um assíduo colaborador.

Ele aparecia na porta da sala de Bueno gesticulando de maneira

ambígua, com uma mão no sexo e a outra voltada pra cima, em

forma de concha:

Page 327: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

— Um autor que se preza tem que ter volume, Bueno.

Na primeira edição do Nicolau, em julho de 1987, Leminski

apresentaria um abrangente panorama da nova poesia paranaense,

chamando atenção para nomes que considerava promissores. Era

como se ele estivesse passando o bastão para uma nova geração de

poetas. Falava de Marcos Prado (que morreria logo depois, ainda

jovem, por excessos etílicos), Rodrigo Garcia Lopes e Josely Vianna,

aquela para quem, declaradamente, ele arrastava as asinhas. Era

visto murmurando entre suspiros:

— Ah, Bueno, aquela pintinha no olho da Jose vale mais que

toda a poesia do mundo.

O que aconteceria, então, seria uma dose dupla de Josely, pois,

sem dúvida, houve muita harmonia entre eles quando traduziram

outros poetas e chegaram a ensaiar, ludicamente, uma série

intitulada “Poemas Neon-Barrocos”, unindo influências pop, haikai e

a “nossa cornucópica tradição barroca”. Leminski tinha acabado de

traduzir e lançar Fogo e água na terra dos deuses, que era um

assunto que interessava particularmente a ela. Moça tímida, Josely

iria sempre se comportar com extrema discrição. Ele a chamava de

Transpenumbra, apelido “neobarroco” que havia inventado. Na

época, Josely começou a namorar o artista João Virmond Suplicy,

que seria parceiro de Leminski em mais um bólido poético. Eles

freqüentavam o Café Poesia, perto do Teatro Guaíra, onde uma noite

Virmond desenhou um leque num pedaço de papel, escrevendo em

cima: “ó liberdade”. E Leminski, no ato, completou: “vento/onde

tudo/ cabe”. Quando estavam saindo, Josely voltaria para pegar a

anotação que ficara jogada sobre a mesa. A cena se repetiria nos dias

seguintes, em outros bares, quando nasceram outras composições a

partir de textos dele ou vice-versa. Como, por exemplo:

vazio agudo/ ando meio/ cheio de tudo.

Page 328: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Quando Josely se afastou de sua vida, motivada, sobretudo,

pelo excesso de álcool e pelas constantes crises de saúde que vinha

atravessando, Leminski sentiria o golpe, registrado no poema que

chamou de “Transpenumbra”:

tempestade

que passasse

deixando intactas as pétalas

você passou por mim

as tuas asas abertas

passou

mas sinto ainda uma dor

no ponto exato do corpo

onde tua sombra tocou

que raio de dor é essa

que quanto mais dói

mas sai sol?

Não seria surpresa, portanto, a partir destas noitadas e destes

envolvimentos, a volta das crises com Alice. Como também é verdade

que o principal motivo das neuroses seria o álcool, agora deixando

marcas visíveis em seu físico debilitado. (Ele estava se tornando uma

pálida lembrança do atleta que fora um dia.) Além de tudo, havia

sinais evidentes de que o nosso herói estava namorando, em São

Paulo, uma moça chamada Aninha. Alice, que de tudo era

informada, continuava escondendo dos amigos esta situação, que

nas últimas semanas tornara-se insustentável. Eles viviam uma

guerra de ciúmes em casa, quase sempre em prejuízo das crianças.

Aliás, Guerra dentro da gente seria o título de uma fábula

infanto-juvenil que Leminski escreveria em julho de 1987. Sua

principal interlocutora na construção do texto seria a pequena

Page 329: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Estrela, que passava as tardes ao seu lado, em casa. Na

apresentação do livro, ele propunha “menos guerra e mais amor”, ao

contar uma história “onde os milagres são freqüentes, onde existem

armas para acabar com todas as armas. Afinal, toda palavra aqui é

um gesto de amor”. Ele estava lidando com dois dos seus temas

favoritos: paixão e guerra.

E foi para discorrer sobre paixão, especificamente, que a

Funarte o convidou para a série de debates Os Sentidos da Paixão,

ao lado de nomes conhecidos como José Miguel Wisnik, Sérgio Paulo

Rouanet e Marilena Chauí. O coordenador do evento, Adauto Novaes,

ligara oferecendo o tema de uma forma abrangente, cabendo a ele

definir o assunto específico que gostaria de apresentar. Leminski

escolheria falar de “Poesia: a paixão da linguagem”. Uma semana

depois estava no Rio, onde debateria durante mais de uma hora,

defendendo um curioso postulado: o de que poetas podem ser um

erro de programação genética.

— O poeta é aquele produto que saiu com falha. Entre dez mil

sapatos, um sapato saiu meio torto. É aquele sapato que tem

consciência da linguagem, porque só o torto é que sabe o que é o

direito. Então, o poeta seria, mais ou menos, um ser dotado de erro,

e daí essa tradição de marginalidade, romântica, do século XIX pra

cá, do poeta bandido, banido e perseguido, vivendo socialmente em

condições adversas.

Ele chamava atenção para o interesse súbito pela palavra

paixão, lembrando que Affonso Romano de Sant’Anna tinha lançado

um livro, Paixão e política, e Alice um outro chamado Paixão chama

paixão. Fez charme com a platéia, onde estava o seu amigo Antonio

Cícero, que ele apresentaria como “grande poeta, irmão da cantora

Marina”. Lá pelas tantas, surpreendentemente, disparou:

— O amor é como o boxe, um esporte aristocrático que depois

se popularizou. A paixão, como a conhecemos, foi cultivada pelos

poetas provençais, na aristocracia da nobreza do Sul da França no

Page 330: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

século XII, o amor cortês. Daí, sai toda a poesia portuguesa com as

cantigas de amigo, D. Dinis, que foi o conteúdo da nossa poesia

moderna.

do sinal de candura e do fino humor da obra, o seu particular

caso de amor continuava cada vez mais tempestuoso. As brigas com

Alice se sucediam, muitas vezes diante das filhas, que

acompanhavam tudo em silêncio. Silêncio que era um ato coletivo;

eles já não tinham mais o que dizer, estavam ficando mesmo sem

assunto. Ao mesmo tempo, o progresso de Alice no trabalho a

colocava a bordo de jatinhos executivos em viagens constantes para

Rio e São Paulo. Usava blusas de seda, tailleur e bolsa de couro,

adotando um modelo condizente com a função que exercia: era a

nova diretora de criação da agência, trabalhando 12 horas por dia.

Algumas vezes Leminski ligava no meio da tarde mas ela não podia

atender. A secretária era gentil: “A Alice retorna a ligação mais tarde,

depois da reunião.” Os papéis se invertiam, a gata estava subindo no

telhado.

A reação dele diante desta nova realidade seria quase de

desespero. Acusava Alice de estar traindo pressupostos de vida que

tinham estabelecido como parâmetros para a eternidade. Ela contra-

atacava dizendo que era um absurdo ele pensar assim, pois quem

trazia o dinheiro agora era ela, trabalhando com publicidade — e

argumentava em defesa própria: “E o que faremos com suas

namoradas? Vamos colocá-las em baixo do tapete?”

Pela primeira vez, Alice tentaria sugerir uma clínica

especializada em tratamento de alcoolismo, a qual ajudaria a pagar,

se fosse o caso. Leminski descartou a idéia de imediato. A gota

d’água, porém, aconteceria durante um almoço, quando eles

receberam a visita de Solda, agora trabalhando com a mulher do ex-

parceiro. Alice percebeu quando Leminski fez um movimento brusco

por trás dos livros, escondendo alguma coisa. Era uma garrafa de

Page 331: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

vodca — e ela acreditava que ele não estava bebendo. Com muita

habilidade e dissimulação, ele tinha conseguido enganá-la por

alguns dias. Aos amigos mais íntimos confessava ter criado um

espaço atrás da estante que chamava de “litroteca”.

Os tempos que se seguiriam seriam infernais. Para complicar a

situação, Lemisnki contrairia uma doença venérea, ou algo parecido,

que se traduzia numa espécie de verruga na glande do pênis.

Assumindo uma idéia infeliz de automedicação, decidira fazer a

cauterização com as próprias mãos. Trêmulo, deixaria cair o

conteúdo do frasco sobre os órgãos genitais e a queimadura atingiria

as áreas do pênis e do saco. O resultado foi catastrófico. Ele berrava,

uivava, mas, como dizia o seu dístico favorito: “hic filius lacrimat

mater non audit” — aqui o filho chora e a mãe não ouve. À noite,

desesperado, ligaria pedindo ajuda ao amigo Rubão, dono do bar que

freqüentava, o Camarim, ao lado do Teatro Guaíra. Rubão entrou no

carro e, atravessando a cidade como uma ambulância, chegaria em

poucos minutos à Cruz do Pilarzinho. Mas, em vez de resolver,

complicou ainda mais o problema, recomendando a aplicação de

xilocaína no ferimento. A intenção era aliviar a dor, mas o remédio

agiu de forma contrária, acentuando a queimadura e terminando por

cauterizar toda a região. Leminski berrava e bebia vodca em grandes

talagadas. Em menos de 48 horas o ferimento infeccionou e ele foi

levado ao Hospital São Vicente onde, mesmo sedado, continuava

gritando de dor.

Alice chegaria de São Paulo a tempo de acompanhar estes

momentos dramáticos, tomando conta da situação. O ferimento era

uma chaga só, em carne viva. A equipe médica, depois de promover a

assepsia do local com a ajuda de anestesia geral, recomendaria que o

paciente fosse transferido para uma enfermaria de queimados.

Estavam, na verdade, se preparando para a crise de abstinência

alcoólica que deveria surgir nas próximas horas. Ao lado de outros

Page 332: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

internos, e próximo ao monumental sofrimento alheio, todos queriam

crer, ele teria alguma chance de amenizar o seu. E o que aconteceria

nos próximos dias seria mesmo comovente.

Leminski transformou-se no animador de festas da ala dos

queimados, contando e ouvindo histórias com maestria. Usava de

toda sua erudição e talento para alinhavar enredos adequados à

ocasião, trazendo à luz as mais edificantes fábulas sobre sofrimento

e dignidade humana. Era reconhecido por todos como “o poeta e

músico Paulo Leminski”. Ele estava mesmo iluminado, diante de

uma platéia de queimados. É verdade também que passaria boa

parte do tempo com os olhos cheios de lágrimas, tentando resolver os

enormes sofrimentos daqueles que o cercavam.

Ao seu lado, envolto em ataduras de gaze, jazia um homem

com queimaduras de terceiro grau em 80% do corpo — um

desconhecido de quem apenas se podia enxergar os olhos e ouvir os

gemidos. Leminski adotaria o cidadão como seu ouvinte preferencial,

criando com ele uma irmandade instantânea. Sem apresentar sinais

de depressão, ainda encontraria tempo para fazer uma revisão no

Catatau, acrescentando um glossário ao texto original, conforme

solicitação de uma editora gaúcha, que manifestara o desejo de

reeditar a obra. Ele ainda comentaria com um amigo sobre o infernal

cheiro de queimado no ambiente, que definia como “hiper-realismo”.

Foram sete dias de enfermaria, em outubro, quando ele produziu o

poema “Sete dias na vida de uma luz”:

durante sete noites

uma luz transformou

a dor em dia

uma luz que eu não sabia

se vinha comigo

ou nascia sozinha

Page 333: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

durante sete dias

uma luz brilhou

na ala dos queimados

queimou a dor

queimou a falta

queimou tudo

que precisava ser cauterizado

milagre além do pecado

que sentido pode ter

mais significado?

No oitavo dia, o poeta voltaria para casa com a recomendação

expressa de manter repouso e seguir rigorosamente os conselhos

médicos. Sentia-se fisicamente esgotado, mas o que mais lhe doía

certamente não eram as queimaduras. Tudo estava ruim.

A esperança da família em mantê-lo afastado da bebida não se

sustentaria por muito tempo. Uma noite, na mesma semana que teve

alta, ele não apareceu em casa e nem no dia seguinte. Voltaria no

terceiro dia, abatido e confuso. Ficara as últimas 48 horas ligado no

“piloto automático”, bebendo e cheirando cocaína com alguns

amigos, nos bares. Usava apenas ocasionalmente o “pó”, que

considerava uma droga da burguesia, “coisa de garotos da bolsa de

valores” — numa referência explícita à nova tendência da juventude

em ganhar dinheiro acima de tudo. Eram os yuppies — ou yaps,

como ele dizia — que estavam chegando. O ponho tinha acabado

anos antes, mas só agora o pesadelo começava efetivamente.

Em contato com médicos e companheiros do AA, Alice se

familiarizaria com o comportamento dos alcoólicos, conhecendo suas

Page 334: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

famílias e compartilhando seus dramas. Por iniciativa própria,

consultaria uma adequada literatura sobre o assunto. Ouviria

conselhos médicos indicando que a última tentativa de fazê-lo parar

de beber seria negociar o casamento, condicionando uma coisa a

outra. Uma reação que talvez demorasse um pouco a surtir efeito,

mas que tinha boas chances de dar resultado, tal a dependência de

Leminski com a família. Apoiada moralmente por Áurea, Alice

preparava o espírito para a grande decisão, que seria um ultimato

curto e grosso.

Por outro lado, Leminski mostrava-se cada vez mais irascível,

algumas vezes mesmo destemperado. Não raro reforçava uma

postura suicida, falando em “morrer com dignidade”. Continuava

produzindo poemas densos cujas temáticas iriam traduzir estas

inquietações. Um deles dizia:

tudo em mim

anda a mil

tudo assim

tudo por um fio

tudo feito

tudo estivesse no cio

tudo pisando macio

tudo psiu

tudo em minha volta

anda às tontas

como se as coisas

fossem todas

afinal de contas

Seu hábito de pensar e trabalhar andando, durante as

Page 335: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

madrugadas, ganharia um impulso extra com a ansiedade que

estava sentido. Certo dia, após uma discussão com Alice durante o

almoço, retirou-se da mesa, jogando bruscamente a cadeira para o

lado. A pequena Estrela, com apenas seis anos, comentou:

— Acho que vocês têm razão. Vamos ter que nos separar do

pai.

Assim, Alice e as meninas decidiram partir. Ou melhor,

decidiram que Alice e Estrela sairiam de casa e que Áurea ficaria

mais algum tempo com o pai, enquanto fosse possível e necessário.

Na verdade, Áurea passaria a cuidar dele, ajudando na

administração mínima da casa, preparando o café da manhã,

separando as roupas para a diarista etc.... Este período se revelaria

importante para o relacionamento deles. Mesmo não sendo o modelo

paterno que Áurea idealizara — o grau de desleixo era absolutamente

insuportável —, eles se gostaram mutuamente, consolidando, por

fim, uma cumplicidade. Áurea recorda-se destes dias:

— Meu pai estava muito vulnerável e debilitado fisicamente.

Ele passou a conversar comigo como se eu já fosse uma mulher,

querendo saber minhas idéias e opiniões. Eu preparava uma sopa e

ficávamos no quarto conversando, ele tentando interpretar certos

fatos, usando-me como referência para fazer uma leitura das

relações.

Uma tarde, Áurea ligaria para Alice avisando que o pai estava

passando mal em casa. O clínico Júlio Caprioti seria imediatamente

acionado e, ao se inteirar dos sintomas, recomendaria a internação.

Alice apareceria com Estrela para ouvir, durante uma conversa

rápida com o médico, que o diagnóstico era de pré-cirrose hepática e

enfisema pulmonar. Uma hemorróida renitente e sangrenta fazia

parte do quadro clínico. Algumas vezes, quando se levantava e

caminhava, pedaços de papel higiênico ou guardanapos manchados

de sangue lhe caíam pelas calças.

A situação, segundo o parecer médico, era grave, mas ele ainda

Page 336: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

poderia viver alguns anos caso concordasse em seguir uma dieta

rigorosa, estruturada a partir da eliminação quase absoluta de

gorduras. Pelo menos era o que se esperava dele: o máximo de rigor

na recuperação da saúde abalada. Mas os fatos quiseram diferente.

Antes mesmo que alguém apresentasse qualquer reação, Leminski

anunciaria à família um pacote de decisões pessoais de grande

impacto: sair de casa, parar de beber e voltar apenas quando

estivesse definitivamente recuperado. Sentindo-se ferido no seu

orgulho, murmurou para Alice que já tinha causado muitos

problemas e que o próximo gesto era dele. “É uma questão de

tempo”, garantiu.

Alice e as meninas voltariam para casa, enquanto ele se

mudava para o apartamento do jornalista Jaime Lechinski e da

artista Leila Pugnaloni — ele assessor de comunicação do prefeito

Jaime Lerner, de quem o poeta se aproximaria muito nesta fase.

Chegaria empunhando uma mala de couro, com algumas peças de

roupa, papel e canetas. O casal era amigo também de Alice, o que

facilitava as coisas. Logo no primeiro dia, Jaime chamou Leminski

para uma conversa em particular, quando lhe confidenciou que era

alcoólico e membro do AA, razão pela qual na casa não havia um bar,

propriamente. Explicou que ele e a mulher Leila tentavam evitar que

houvesse bebidas alcoólicas por perto, como prudência mínima

contra as tentações. Era uma farsa que estavam criando para

estimular uma abstinência na qual, acreditava-se, Leminski estava

empenhado até a medula.

E, efetivamente, ele pararia de beber por algumas semanas,

quando escreveu, a pedido dos Titãs, um texto para ser usado como

press release, chamado “Consciência selvagem x Capitalismo

selvagem”, onde sustentaria que os Titãs representavam “o que

restou do rock, suas letras são o que restou de um país falido, um

vice país vice governado, vice feliz, viceversa”.

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Em casa, tomava chá pela manhã e recebia as visitas diárias de

uma psiquiatra, a doutora Margarida, e do médico, dr. Júlio. Diante

de uma receita de tranqüilizante que lhe fora recomendado —

Urbanil — sentiu-se motivado a escrever um texto em forma de

receituário, sobre um tal Boinil, ironicamente definido por ele como

“um remédio para boi dormir”. Estimulado pelos amigos anfitriões,

Leminski participava com entusiasmo das tertúlias programadas

para preencher as noites — agora regadas a suco de laranja e

refrigerantes.

O poeta suportaria quase dois meses esta situação. Depois de

combinar tudo com Alice, ele faria as malas e voltaria para o

Pilarzinho — uma vez que, supunha-se, ele estava mesmo

empenhado em parar de beber. Mas o período de abstinência duraria

pouco. Logo ele era visto novamente nos bares, cercado de amigos e

garotas. Voltaria a chegar tarde em casa, quase sempre cheirando a

cigarro e bebida. A situação doméstica, portanto, atingia o seu limite.

Alice tinha procurado um astrólogo para fazer um trabalho de

regressão e, durante a conversa gravada em fita, ela falava da

separação eminente do casal, dizendo que eles haviam “chegado ao

fim da linha” etc.... À noite, quando todos dormiam, Leminski —

morto de curiosidade — confiscou a fita na gaveta da cômoda e ouviu

as revelações de Alice. Assim que terminou, foi ao quarto acordá-la:

— Fofa, você vai mesmo se separar de mim?

Alice respondeu, enfática:

— Mas, Paulo, eu estou dizendo isso há meses e você não ouve!

Pode parecer um capricho do destino, mas o fato é que Alice,

Áurea e Estrela saíram de casa no dia 24 de dezembro de 1987.

“Deus”, diria ele, “porque tanta precisão?” Elas saíram carregando as

malas e ele ficaria sozinho na Cruz do Pilarzinho. Alice levaria o

carro e deixaria o telefone, única partilha possível nesta comunhão

de bens.

No dia seguinte, eles seriam vítimas de um desencontro

Page 338: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

incrível, quando combinaram jantar em família na noite de Natal. O

destino manipularia os movimentos, fazendo Leminski pegar um táxi

e seguir para onde Alice estava; ela, na mesma hora, entrou no

Verdura e foi para a casa do Pilarzinho. Bastante nervosos e vivendo

momentos de freqüências distintas, eles não se encontrariam mais

esta noite. Alice recorda-se da frustração:

— Acabamos jantando sozinhas, eu e as meninas. Foi um

jantar triste de uma despedida que não houve. Desta vez nem o

acaso ajudou.

O silêncio na casa era insuportável. Ele tinha a impressão de

que a cabeça podia estourar a qualquer momento. Quando o telefone

tocava, corria e se atirava como um náufrago avistando uma bóia na

tempestade. Foi assim que eu o encontrei pela penúltima vez, em

Curitiba, numa quinta-feira ensolarada. Quando liguei de um telefone

público, por volta das 11 horas da manhã, era apenas para marcar

um encontro. Foi ele quem atendeu:

— Leminski!

— Salve, Paulo, estou ligando pra dizer que estou na cidade...

— Martins, é você? Venha pra cá AGORA!

— Paulo, escute...

— Entre num táxi e VENHA!

Quando cheguei pude perceber o jardim descuidado, a grama

alta e alguns galhos na varanda. Havia nuvens negras pairando sobre

a Cruz do Pilarzinho. Ele estava sozinho na cozinha tomando cerveja.

Entrei olhando para os lados, desconfiado, achando tudo esquisito.

Logo perguntei:

— Onde estão Alice e as meninas?

Ele respondeu com a voz contrita:

— Alice foi embora. Estamos separados. Áurea e Estrela foram

com ela.

Page 339: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Visivelmente triste, contou-me detalhes da separação — sem

blasfemar uma única vez. Estava monossilábico, como que esperando

que eu adivinhasse tudo que estava acontecendo só ao olhar para ele.

Dizia que, nestas horas, “o importante é a elegância”. O máximo que

faria seria se lamuriar, convencido de que Alice não era mais a mesma

pessoa, que tinha mudado de vida:

— Ela agora é uma executiva de publicidade. Resolveu fazer

carreira e viver na ponte aérea. Não me ama mais. Está morando com

as meninas num apartamento no bairro do Ahú.

Ficamos ali na cozinha, tomando cerveja e esmiuçando o

cotidiano. Ele contaria que enganava alguns amigos com uma suposta

abstinência. Falou nos dignos propósitos do AA — obviamente,

omitindo o diagnóstico de cirrose —, mas deixando claro sua

determinação com relação ao destino. A vida com o álcool era

intolerável, mas sem ele era impensável:

— Tenho que tomar uma birita pra levantar a peteca, ver o

mundo pela ótica certa.

A menção ao AA seria o primeiro sinal de gravidade que emitiria,

ainda que tentando matreiramente escamotear o assunto. Era próprio

dele desmanchar qualquer princípio de dramalhão que pudesse estar

sendo armado, ainda que por motivos reconhecidamente justos. Eu

argumentei, sem muita convicção, falando da minha experiência

pessoal, de quem estava levando uma vida mais saudável, com

caminhadas freqüentes e redução drástica no consumo de bebidas

alcoólicas — cerveja, no meu caso. Nenhuma sugestão para

“estacionar a máquina” ou assumir a caretice, apenas uma tentativa

de diminuir o ritmo da locomotiva. Sugeri que ele fizesse o mesmo, que

planejasse gastar as energias com longas caminhadas pelos campos

do Pilarzinho, um lugar favorecido pela qualidade do clima e

excelência do ar. Ele ouviria meus argumentos mas não os levaria

muito a sério. Estava profundo em sua angústia, parecendo dizer com

o olhar:

Page 340: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

— Martins, nada de paliativos, ok?

Eu ainda voltaria ao tema, tentando torná-lo intelectualmente

palatável:

— Isto vale para covardes como eu, Paulo, que têm medo de

morrer. Estou chegando aos 40 e decidi me cuidar para prolongar um

pouco mais o prazer. Mas você sempre me pareceu um destemido.

Sua reação foi o silêncio. Quando ergueu a cabeça, lançou-me

um olhar oblíquo, mudando de assunto e falando da queimadura no

púbis e nos dias passados na enfermaria; uma experiência marcante,

pude perceber. Embora estivesse cansado e desorientado, em nenhum

momento me inspirou preocupação do ponto de vista físico. Tinha o

raciocínio mais lento, é verdade, mas ainda assim conseguia sustentar

uma conversa acima do trivial. Estava mergulhado num estado de

espírito que chamava de Marasmo Carlos. Usava as indefectíveis

sandálias franciscanos — ao lado dos tênis, seu calçado favorito —

que lhe acentuavam o aspecto messiânico.

Num determinado momento da nossa conversa, toquei

inadvertidamente num assunto proibido. Usando de um falsete quase

profissional, mencionei um encontro com o pequeno Kiko, filho de

Neiva, dias antes no Rio:

— O garoto está com uns 18 anos, toca num conjunto de rock

pesado e tem a sua cara. Você não acha muita coincidência!

(Silêncio)

— OK... Não vamos falar do assunto, é isso!

Ele estava de costas enchendo o copo e, curiosamente, não

apresentou sequer uma negativa que pudesse desfazer a dúvida. Algo

como, “o que é isso Martins, de onde você tirou essa idéia?”. Pelo

contrário, pincelou um silêncio absolutamente intrigante que se

prolongou por longos segundos. E mais não falou e nem lhe foi

perguntado. Terminamos a noite encharcados de birita, depois de uma

maratona que durou mais de 10 horas de consumo frenético.

Page 341: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

No dia seguinte, ele teria uma nova surpresa com a visita

inesperada da ex-cunhada Elly e da sobrinha Ellinha. Elas estavam

passando de moto — com Ellinha na garupa, abraçada à cintura da

mãe — quando decidiram descer para uma conversa rápida.

Encontraram-no sozinho em casa, bebendo e mexendo nas

prateleiras da biblioteca, revirando livros e papéis. Os três ficaram

sentados nas almofadas da sala, durante um bom tempo,

conversando serenamente num tom até mesmo surpreendente para

Elly:

— Foi a melhor conversa que eu tive com o Paulo durante a

vida inteira. Ele parecia muito tranqüilo e bastante profundo na sua

solidão. Estava despido de todas as vaidades, com um semblante de

monge. Falou coisas lindíssimas...

Ao lado de uma vida poética e filosófica realmente rica, as

questões práticas naufragavam em águas profundas. Depois de

sofrer uma crise hepática na redação — quando teve que ser levado

às pressas para um hospital —, Leminski seria finalmente demitido

da Exclam. Ernani Buchmann, agora no papel de patrão, não via

mais condições de mantê-lo na agência:

— Ele não conseguia mais trabalhar. Estava disperso, tomando

vodca durante a tarde. Um dia meus sócios pediram uma definição.

Ele, que já tinha perdido a mulher, estava agora perdendo o

emprego.

Afastada dele há algum tempo, Josely receberia um telefonema

de uma amiga dizendo-se preocupada com o poeta, que parecia estar

mal de saúde, isolado e sem se alimentar adequadamente. Elas

foram encontrá-lo na desordem da casa, entre montes de papéis

velhos e livros que se espalhavam pelo chão da biblioteca e,

curiosamente, também no quintal dos fundos. Josely percebeu que

Leminski estava com os cabelos alvoroçados, óculos quebrados e

Page 342: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

muito magro. Ela questionou singelamente as lentes quebradas,

dizendo que um escritor precisava ter uma boa visão do mundo. Ele,

sensível como sempre e com o espírito afiado, lembraria da equação

do sábio chinês, que dizia: “como no jade facetado, existem pelo

menos três pontos de vista: o meu, o teu e o verdadeiro”. “As outras

faces”, concluía, “sendo reflexos cambiantes, fabulares, de outros

olhares com o sentido do silêncio no centro.” Mesmo assim — e

apesar das filigranas — elas praticamente o arrastaram até uma

ótica na cidade, onde foram aviadas as novas lentes.

Leminski aproveitaria este encontro para pedir a Josely que

guardasse em sua casa alguns pertences que lhe sobraram no

desmanche do lar: o quimono de judô, com a respectiva faixa preta,

uma pequena mala de couro com um estilingue dentro, algumas

caixas com livros, fotografias, cartas e inéditos — inclusive os

originais de Metaformose, um ensaio de 50 páginas em forma de

“viagem pelo imaginário grego”, que ele escrevera em dezembro de

1986, ou seja, dois anos antes. Na caixa maior, Josely encontraria

um pequeno papel, meio borrado, onde estava escrito:

Maremotos em mares mortos. Pai morto. Mãe morta.

Filho morto. Irmão morto. Como querer que minha vida

não seja torta?

As aparências enganam. Uma tarde, Vítola receberia um

telefonema em caráter de urgência no escritório. Era alguém, algum

vizinho, ligando do botequim da esquina para alertar que o professor

Leminski certamente estava precisando de ajuda, pois tinha

comprado uma garrafa de álcool, “mesmo já estando embriagado”.

Vítola saiu em desabalada carreira em direção ao Pilarzinho,

tentando avaliar a gravidade da situação. Sabia que o amigo estava

passando por uma fase ruim, mas jamais imaginou uma situação

extrema.

Page 343: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Quando chegou, encontrou Leminski no quintal,

tranqüilamente sentado ao lado de uma fogueira onde ardia em

chamas uma pilha de livros e papéis. Ele estava consolidando uma

revisão em suas mais íntimas anotações e escritos, queimando —

numa espécie de inquisição particular — o que não considerava

digno de ser lido. Movido por uma eterna adolescência, Leminski

contemplava a chama azul da fogueira afirmando estar ouvindo os

últimos suspiros de alguns poemas preteridos. Tinha um copo de

cerveja bem gelada à mão. Dois dias depois, ele entregava as chaves

da casa do Pilarzinho para a família Pietruk e embarcava para São

Paulo, carregando a velha e surrada mala de couro.

Page 344: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

CAPÍTULO 9

O POETA DESCALÇO

“Um milagre por dia”, assim ele definiria suas necessidades de

sobrevivência a partir de agora. Quando desembarcou na rodoviária

de São Paulo, estava ciente de que o próximo milagre deveria

acontecer rapidamente, antes que a noite chegasse. Entrou num táxi

e seguiu para a casa da amiga Fortuna, que mesmo sendo namorada

de Ademir Assunção, o Pin, morava sozinha no bairro de

Higienópolis. Fortuna ofereceu e Leminski aceitou ocupar um dos

quartos do amplo apartamento com vista para o Pacaembu — e, ato

contínuo, trataria de anunciar aos amigos que estava na cidade.

Dizia estar chegando com a intenção de permanecer alguns dias,

talvez semanas, mas a temporada acabaria se prolongando por

vários meses. Ele aproveitaria a ocasião para consolidar o namoro

com Aninha, sua companhia constante nestes dias. Juntos, eles

formavam um grupo animado pela noite paulistana, onde Fortuna

costumava se apresentar em bares e teatros, desfilando um

repertório típico da MPB. Em outros momentos, Leminski podia ser

visto em companhia de velhos e novos amigos, como Haroldo de

Campos, Itamar Assumpção, José Miguel Wisnik, Arnaldo Antunes e

Edvaldo Santana, o Baitola. Entre os novos, um deles, o cartunista

Glauco, se aproveitaria (no bom sentido, é claro!) do estereótipo

leminskiano para criar o personagem Tio Lema, história em

quadrinhos cujas tiras seriam publicadas durante vários meses na

Folha de S. Paulo.

Havia claros indícios — observados pelos amigos — de que ele

Page 345: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

estava entrando em sua fase mais radical com relação a bebida, ao

tomar vodca minutos após o café da manhã. Ou melhor, já não havia

mais café da manhã. Ao que tudo indica, agia escondido de Fortuna,

que não recorda tê-lo visto bebendo em casa:

— O Paulo mantinha um comportamento muito civilizado. O

único deslize em vários meses foi esquecer o fogo ligado com uma

chaleira de água. Ele gostava de beber nos bares, cercado de amigos.

Nas ruas, vivia como se o mundo pudesse acabar a qualquer

momento, afirmando com convicção que sua urgência não podia ser

confundida com pressa. Estava sempre em companhia de jovens —

moças e rapazes com pendores poéticos — que viam nele um

exemplo de intelectual autêntico e confiável. Continuava escrevendo

poesias com disciplina profissional, levando a sério a recente safra

que vinha arquivando numa pasta denominada La Vie en Close.

Pinduca recorda-se de que Leminski trabalhava diariamente na casa

de Fortuna, ouvindo Frank Zappa:

— Era uma compulsão. Durante a noite, nos bares, escrevia

em guardanapos e pedaços de papel, fazendo um bolo de pequenas

anotações. No dia seguinte, sentava-se na máquina e dava forma

definitiva aos poemas. Depois deixava os textos largados em

qualquer lugar para que pudessem ser vistos.

Um poema representativo desta fase:

a todos os que me amam

ou me amaram um dia

deixo apenas um padre nosso

meio mal passado

e essa espécie de ave maresia

Ou então, esse outro, também sugestivo:

Page 346: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

o que o amanhã não sabe,

o ontem não soube,

nada que não seja hoje

jamais houve

Leminski e Fortuna se tornariam grandes amigos. O convívio

diário favoreceria uma batelada de conversas íntimas e profundas.

Eles se identificariam — além da paixão por música e arte — como

duas pessoas abaladas em seus projetos de auto-estima. Enquanto

um tratava o próprio corpo como um “boneco”, jogando-o para cima e

para baixo, a outra sentia-se carente de convicção naquilo que vinha

fazendo, tanto no plano pessoal como profissional. E, pior, Fortuna,

que nunca consumira drogas, se descobriria vivendo emoções

equivocadas, forjando uma realidade que implicava negar o próprio

judaísmo de suas origens. Nesta hora, Tio Lema se mostraria um

bom conselheiro. Era algo como: “quem anda fora dos eixos tem uma

melhor visão deles”. Fortuna, que era treze anos mais nova, atesta

que em pouco tempo “caiu a primeira ficha”:

— O Paulo, que era reconhecidamente um marginal, me

ajudaria a entrar nos trilhos. Estava ao lado, junto comigo, fazendo

as reflexões mais dolorosas sobre a vida e nós mesmos. Foi

emocionante. Eu nunca tinha olhado tanto e tão profundamente

para dentro de mim.

Fortuna se tornaria uma das poucas pessoas com quem

Leminski falaria da morte dos pais, do Miguelzinho, do irmão Pedro

— e de todas as coisas que lhe tinham acontecido e escapado pela

vida. Ela concluiria, depois de vê-lo desnudar-se em montes de

reminiscências, que ali estava um homem saturado de emoções:

— Era evidente que o Paulo sentia-se culpado por estas mortes.

Page 347: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Carregava um duro fardo nas costas. Emocionava-se com freqüência

e chegava às lágrimas, tendo que tirar os óculos para enxugá-las. Ele

estava vivendo um momento muito delicado.

Sua chegada a São Paulo vai coincidir com o lançamento de

Guerra dentro da gente, livro com temática infantil no qual ele é

apresentado como um designer de texto. A edição era limitada e

despretensiosa, formando um pequeno livreto de 60 páginas onde se

apresenta, em linguagem fabular, o diálogo de um velho ensinando a

arte da guerra para um garoto. No prefácio, o indicador:

Nesta vida

Pode-se aprender três coisas de uma criança:

Estar sempre alegre,

Nunca ficar inativo

E chorar com força por tudo o que se quer.

Em entrevista a um jornal de Curitiba, o autor explicaria a

obra:

— É um livro que vai atingir meninos e meninas, ambos vão se

identificar com os personagens. Eu quis fazer uma história que

atingisse os dois sexos. Mas é justamente a menina que acaba

mostrando o outro lado do céu, a dimensão feminina da novela.

No início de 1988, ainda tendo que operar um milagre por dia,

subitamente o dinheiro acabou. Ele tentaria levantar algum com a

editora Brasiliense, através de Caio Graco, fez vários telefonemas,

pediu e implorou, mas nada conseguiu. Começaria, então, a procurar

trabalho em caráter de emergência, com a ajuda de Fortuna e

Pinduca.

O primeiro trabalho remunerado surgiria justamente pela

Page 348: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

intermediação de Pinduca. Era uma oficina de texto com duração

prevista para três meses, no Centro Oswald de Andrade, um órgão da

Secretaria de Cultura do Governo Fleury. O dinheiro que ofereciam

não era nenhuma maravilha, mas ajudava nos gastos. Ele precisava

pelo menos de alguns trocados para o conhaque e o táxi, os gastos

básicos, ao lado do cigarro — e aceitou a programação. Entre os seus

alunos estava Rodrigo Lopes, que testemunharia o sucesso destas

palestras:

— Todos adoravam o Leminski. Enquanto a maioria dos poetas

é obsessivamente egoísta, paranóica e supercompetitiva, ele não

tinha medo de passar informação, em dizer francamente do que

gostava e não gostava. Sua alma era cosmopolita, dialógica, curiosa.

Depois das oficinas, íamos ao boteco da esquina, onde a conversa

continuava mais saborosa.

Quando Pinduca foi convidado a trabalhar na TV Bandeirantes

como redator de um telejornal a ser lançado — o Jornal de

Vanguarda —, surgiria para eles uma luz no fim do túnel. Pin

hesitaria em aceitar a vaga, preocupado com o distanciamento

técnico que mantinha do veículo televisão, mas negociaria um tempo

mínimo para responder: 24 horas. Em casa, pediria conselhos para

Leminski sobre como deveria fazer, por exemplo, com a abertura do

programa. No dia seguinte, logo pela manhã, Leminski lhe entregaria

o texto pronto para ir ao ar. Por vários motivos, inclusive este, Pin

lhe passaria o trabalho. Na verdade, Leminski já vinha conversando

com o diretor Renato Barbieri, que queria vê-lo apresentando uma

coluna semanal de cultura. Ele acumularia, então, as duas funções:

seria redator e colunista. O negócio foi fechado e ele passou a

freqüentar os estúdios da TV Bandeirantes, no Morumbi, onde

chegava diariamente por volta das 18 horas:

— O poeta foi um aditivo para todos nós — declara Barbieri. —

Trouxe novas fórmulas, criou vários vídeo-poesias — os chamados

Page 349: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

“clip-poemas” — e demonstrou um grande domínio da linguagem

audiovisual. Era um casamento perfeito com a televisão.

Ele estava conquistando um espaço cultural valioso, ao ocupar

uma rede de televisão e criar performances poéticas para mais de um

milhão de espectadores, de segunda a sexta-feira. Ao seu lado, como

parceiros nesta aventura criativa, estavam nomes consagrados como

Fausto Wolff, Fernando Gabeira, Waly Salomão e Gilberto Gil. O

professor Pignatari, destacado para apresentar um quadro sobre

Televisão, voltaria a encontrá-lo sempre às pressas, na redação do

jornal:

— O Leminski estava mais magro e tinha um aspecto doentio.

Os colegas estavam preocupados com seu estado de saúde. Mesmo

assim, ele produziria bons momentos de poesia, agora trabalhando

com outra linguagem.

A estréia como colunista de televisão aconteceu em 31 de maio

de 1988, com a abordagem de um tema maldito: a grafitagem. Com

imagens noturnas da cidade de São Paulo, sua voz aparecia em off

falando de “um tipo de bandido urbano que não produz feridas,

produz letras: o grafiteiro”. O próprio Leminski, então, aparecia com

um tubo de spray em punho, pichando um muro com a frase criada

anos antes pelo Seqüelas:

Quem tem Q.I., vai

Seus quadros eram apresentados por Doris Giesse, ex-modelo

de publicidade que fazia sua estréia na televisão. Ela conhecia a

poesia de Leminski dos tempos de estudante na Unicamp, mas no

Jornal de Vanguarda estaria mais próxima dele, vendo-o trabalhar.

Ele era o seu principal redator e mentor. Doris ficava fascinada e, ao

mesmo tempo, confessa, temerosa:

— O Leminski nos empurrava para os limites. Quando eu

Page 350: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

conversava com ele, sentia um frio na barriga, pois ele propunha

sempre uma performance audaciosa, nada comportada. Queria que

eu perdesse a postura clássica de apresentadora de televisão. Eu,

que já era influenciada por Denise Stocklos, tinha agora um outro

“demoniozinho” paranaense a me estimular no trabalho.

O comportamento do poeta na redação era estranho:

trabalhava praticamente deitado sobre a mesa, procurando uma

posição para diminuir as dores abdominais. Não reclamava de nada,

mas era evidente que tinha problemas de saúde. Nestes dias, pela

primeira vez, Pinduca detectaria sinais de debilidade e doença no

amigo:

— Eu dei uma carona até o Morumbi. Antes de entrar no carro,

ele foi até o botequim e virou uma dose de conhaque. No caminho,

quando estava dormindo, eu tive uma visão tenebrosa, e

aparentemente inexplicável, olhando para ele. E pensei: “Ih, ele está

mal.”

Em suas anotações, Leminski deixaria registrado estes

sintomas:

um homem com uma dor

é muito mais elegante

caminha assim de lado

como se chegando atrasado

andasse mais adiante

carrega o peso da dor

como se portasse medalhas

uma coroa um milhão de dólares

ou coisas que os valha

ópios édens analgésicos

Page 351: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

não me toquem nessa dor

ela é tudo que me sobra

sofrer, vai ser minha última obra

A namorada Aninha também reagiria ao excesso de álcool,

decidindo “dar um tempo” na relação. Antes, tentaria levá-lo para o

AA paulista, mas ele rejeitaria com veemência, mostrando-se

irredutível:

— Alcoólicos anônimos, jamais. Eu hoje sou um alcoólico

famoso!

Aninha se foi para não mais voltar. Para compensar, ele recebia

as visitas regulares de Josely e João Virmond, que vinham de

Curitiba para animar a festa. Eles passaram o carnaval de 1988 em

Ubatuba, no litoral paulista, onde estavam também Pinduca,

Fortuna e Itamar Assumpção. A casa era de Ana Cordeiro, filha de

Waldemar, que ele conhecera nos velhos tempos de poesia concreta.

Nestes dias, sua parceria com Virmond, nascida nos bares e cafés de

Curitiba, ganharia contornos finais. Eles decidiram chamar de

Winterverno o trabalho que vinham desenvolvendo, desde que Josely

assumira o papel de “coordenadora de rabiscos e guardanapos”,

organizando a produção “quase” informal da dupla. Certo dia, a

partir de uma observação feita por Pinduca — que se debruçava

sobre uma cena de natureza-morta, na cozinha —, Leminski foi

procurar um papel e uma caneta e em poucos minutos voltaria com

o lance em forma de poesia:

acabou a farra

formigas mascam

restos da cigarra

Page 352: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Ele continuaria produzindo poemas, que canalizava também

para o programa de televisão. Em julho, estaria novamente no ar

para enaltecer o valor das camisetas “como suporte para poemas”,

literalmente se vestindo de poesia — dele e de outros autores. A

última peça de roupa que vestiu, finalizando o quadro, era um

quimono com ideogramas orientais. Doris Giesse apresentaria o

quadro dizendo que “para Paulo Leminski, poesia se leva no peito”.

No dia 7 de setembro, uma performance audaciosa no estúdio,

com o cartunista Miguel Paiva interpretando D. Pedro II tocando

piano. Como fundo musical, o Hino da Independência, o objeto da

análise. Ele aparecia no vídeo sem óculos, com os restos de um único

dente na arcada superior e muita autoridade moral, para dizer:

— O Brasil é uma piada de português. Nós fomos descobertos

por acaso e a nossa independência veio de um grito, dado por um

príncipe que representava o próprio poder que nos oprimia. Ouçam o

que diz este hino.

Analisando ironicamente diversas imperícias do texto oficial,

Leminski concluiria questionando a palavra de ordem que diz:

— Ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil. Não seria melhor

ficar a pátria livre e VIVER pelo Brasil?

Ao longo de sete meses, tempo que duraria sua participação no

Jornal de Vanguarda, ele levaria ao ar diversos temas de sua real

preferência. Uma homenagem a Carlos Drummond de Andrade no

primeiro aniversário de morte; ironizava o Descobrimento do Brasil,

alertando que “se o brasileiro não descobrir o Brasil, alguém de fora

o fará novamente”; dramatizaria um monólogo sobre Guimarães

Rosa, assumindo a dicção de Diadorim, o personagem de Grande

sertão. Em outro momento dramático, desempenhava o papel de

Kafka atrás de grades gráficas, construídas com textos (o prisioneiro

das palavras), apresentando o perfil de um homem

irremediavelmente excluído do convívio social e intelectual da

sociedade. Sua performance mais teatral, entretanto, seria a

Page 353: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

reprodução do ritual de harakiri desfechado pelo samurai Mishima, o

guerreiro homossexual, que ele havia traduzido anos antes. O diretor

Barbieri reconhece as qualidades dramáticas de Leminski:

— Ele era um bom ator. Tinha uma dimensão global do papel

da arte, o que lhe tornava tudo acessível, em vários planos.

Durante o tempo que esteve na casa de Fortuna, ele voltou

algumas vezes a Curitiba e, em outras ocasiões, Alice e as meninas

foram visitá-lo em São Paulo. Num desses encontros, eles fizeram

juntos a seleção final da última safra de poemas, que seria

definitivamente batizada de La vie en close. Alice lembra-se de que

Leminski alternava momentos de depressão com total descontração e

euforia. Quando depressivo, reagia dormindo; quando alegre e des-

contraído, bebia além do normal. Nestes dias, eles reencontrariam

Lúcia Turnbull, que os acompanhou em algumas noitadas:

— O Leminski estava bebendo muito. Ele era como um trem —

e ninguém consegue parar um trem. Só mesmo uma paixão.

Numa das idas a Curitiba, quando ficava hospedado no

apartamento de Josely, na Galeria Lustosa, Leminski conheceria

uma jovem cineasta, Berenice Mendes, que lhe fora apresentada por

amigos comuns. Na verdade, ele foi à casa dela com um grupo

animado, numa tarde de sábado, e a encontrou com um livro na

mão: A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera — que ele

criticaria com o pretexto dissimulado de iniciar uma conversa a dois.

Dez minutos depois, eles continuavam na seção “olho no olho” da

qual sairiam irremediavelmente atraídos um pelo outro. O encontro

só não foi mais avassalador porque Berenice mantinha um

relacionamento amoroso com outra moça — também cineasta — com

quem dividia a casa e o trabalho. Afastando-se do fogo cruzado,

Leminski voltaria a São Paulo com a promessa de ligar quando

chegasse em casa. E assim o fez, criando um vínculo afetivo entre

eles.

Page 354: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

A vida na televisão e a rotina da cidade grande colocavam o

poeta num ritmo frenético de produção, que iria se revelar, num

futuro próximo, profundamente desgastante. Não tinha problemas

financeiros — pois recebia um bom salário e continuava com as

despesas básicas reduzidas —, mas gastava sempre na mesma

proporção que ganhava. Continuava sem carteira de identidade e,

como conseqüência, tendo problemas para receber o salário no final

do mês. Domingos Pellegrini, o escritor de Londrina, lembra-se de tê-

lo visto andando atabalhoado pela cidade, tomando precauções de

guerrilha para atravessar uma rua. Estava trêmulo e inseguro. Ele e

Pinduca freqüentavam um bar, em frente à Faap, onde bebiam

conhaque e cerveja e falavam o tempo todo de poesia. Sua conversa

estava se tornando vertiginosa e seus poemas continuavam radicais

e inflamados. Um deles:

cinco bares, dez conhaques

atravesso são paulo

dormindo dentro de um táxi

Houve uma noite agitada na casa noturna Dama Schok,

quando a grande atração era o conjunto Legião Urbana, com Renato

Russo no auge da fama. O show de abertura estava a cargo de

Fortuna e sua banda. Leminski pediria para dar uma canja antes da

apresentação da amiga, no que foi prontamente atendido. Ele

decidiu, então, que apresentaria duas ou três músicas, sozinho,

acompanhado apenas do violão. No camarim, entornou várias doses

“para quebrar o gelo” e quando entrou no palco estava trôpego,

vestindo uma calça vermelha que lhe caía pela bunda, deixando

metade dos glúteos à mostra. Sentou num banquinho e cantou “Se

houver céu”..., e o resultado foi uma estupenda vaia. A platéia,

formada basicamente por adolescentes radicais, considerou o

espetáculo xx-bizarro e foi implacável com ele. Era a vertigem do

Page 355: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

universo. Pinduca recorda-se da cena:

— Os garotos gritavam: Fora! Sai dessa! Ele não entendia o que

se passava e berrava no microfone, em estilo heavy metal: “Porra,

vejo que vocês estão adorando minha música e vou cantar mais

uma.” A segunda música ele cantou embaixo de vaia. Assim que foi

possível, a produção tratou de tirá-lo do palco.

Em setembro de 1988, Leminski voltaria a apresentar

complicações de saúde quando, por sugestão e iniciativa de Fortuna,

seria levado a um hospital. Lhe seria oferecido, pela segunda vez —

e, agora, de uma forma mais contundente —, o diagnóstico de

cirrose. A avaliação médica era de que um terço do fígado estava

necrosado. Ele estava cuspindo sangue e tinha as fezes brancas

como uma folha de papel. Alimentos sólidos provocavam-lhe ânsias

de vômito e não paravam no estômago. Assustado com a própria

debilidade, mas ao mesmo tempo inabalável em seus propósitos, sua

primeira reação foi escrever um bilhete, que seria guardado por

Fortuna e posteriormente por Pinduca:

Este pode ser meu último texto.

Talvez eu repita o destino de Fernando Pessoa,

aos 44 anos e do mesmo mal.

Nunca estive muito interessado em envelhecer,

eu que sempre amei a juventude.

Quero repousar em Curitiba, ao som dos Beatles.

Com o meu quimono de faixa preta.

Saio da embriaguez de viver para o sonho

de outras esferas.

Alice: por toda uma vida.

Page 356: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Ana: obrigado pela vida que você me deu.

Fortuna: você foi demais pra mim.

Áurea, Estrela: vou amar vocês até o fim e depois.

Surpreendentemente, assim que se recuperou do impacto da

crise, ele passaria a mão no telefone e ligaria para Alice:

— Fofa, parei de beber! Fortuna me levou a um acupunturista

chinês e eu tenho que fazer uma dieta danada. O problema é que a

Fortuna viajou...

Alice pegaria um ônibus e desembarcaria em São Paulo na

manhã seguinte para fazer supermercado para ele. E o que ela

encontrou não era nada animador:

— O Paulo estava com uma cor terrível, esverdeada. Tinha o

abdome saliente, revelando problemas nos órgãos internos. Ele me

falou, na maior cara de pau, que por causa da doença tinha

diminuído sua disposição sexual. Justo no momento em que,

garantia, estava com seis namoradas, três em cada cidade.

Ele estava justamente reclamando que não podia dar conta das

namoradas, quando a campanhia tocou. Para surpresa geral, mas

sobretudo para ele, era Berenice, uma delas. Houve um ligeiro mal-

estar no ambiente. Desnorteado, Leminski conseguiu dar meia-volta

e ir dormir, deixando-as na sala. Alice entendeu o que se passava e

decidiu falar do estado de saúde dele, que inspirava cuidados.

Neste ponto, existe uma contradição flagrante no depoimento

das duas mulheres. Enquanto Berenice afirma nunca ter sido

informada sobre o diagnóstico de cirrose — nem por ele e nem por

ninguém —, Alice garante que abordou o assunto exatamente neste

momento, na casa de Fortuna. Mais tarde, diante da dúvida,

Berenice reconheceria que talvez não quisesse ouvir a verdade, pois

“como pode alguém se apaixonar e casar com uma pessoa que está

morrendo?”.

Page 357: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Sem mais nem por quê, Alice voltaria para Curitiba enquanto

Berenice ficaria alguns dias namorando em São Paulo. Foram

tempos de primavera para o novo casal. Os programas eram quase

sempre culturais e temáticos, fechando a noite no bar das Putas,

reduto tradicional da boemia paulistana. Berenice estava decidida a

pôr fim num casamento de dez anos — que envolvia também uma

sociedade na produtora de filmes — para ficar com ele. Houve uma

proposta de um triângulo amoroso — apresentada menos como

fetiche e mais como solução de harmonia — que a companheira de

Berenice descartou imediatamente. O estágio de namoro, portanto,

se estenderia ainda por vários meses, com o relacionamento se

tornando cada vez mais intenso e inevitável.

Na noite de 22 de setembro de 1988, Leminski e Fortuna

estavam na platéia do show de Walter Franco, na sala Adoniran

Barbosa, para ouvir um poema de sua lavra, “Pedra polida”, em

versão musical. A peça seria apresentada com arranjos de Cid

Campos, filho de Augusto, então baixista da Banda Nova. No final,

chamaram-no ao palco, onde ele subiu trôpego e desajeitado, para

receber uma calorosa salva de palmas. Era evidente que desfrutava

de grande prestígio junto aos jovens intelectuais paulistas — como

poeta, era o darling do caderno “Ilustrada”, da Folha de S. Paulo —

mas, no íntimo, sentia-se aturdido e massacrado pelo ritmo

avassalador da cidade. Nada de que não pudesse abrir mão em troca

da tranqüilidade e da neblina de suas araucárias. Assim, quando a

decisão de voltar a Curitiba surgiu pelas vias sinuosas da paixão, a

manobra lhe caiu como uma luva.

A despedida do Jornal de Vanguarda aconteceria em 3 de

novembro, com a sua performance mais sóbria e ao mesmo tempo

mais quadrada do ponto de vista formal: a leitura standard do poema

“O que passou, passou?”. Em seguida, sentindo-se fraco e

Page 358: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

desnutrido, Leminski despedia-se de Fortuna, Pinduca e Itamar e

voltaria para Curitiba com Berenice. Ele queria chegar a tempo de

votar em seu candidato, Jaime Lerner, nas eleições para prefeito, no

dia 15. Logo depois, estavam ambos dentro de um ônibus, descendo

a famigerada e tétrica Rodovia da Morte, a Régis Bittencourt. Eles

viajaram sabendo que quando chegassem a Curitiba não poderiam

continuar juntos, pois, embora a situação já estivesse definida em

fórum íntimo, Berenice ainda continuava morando com a ex-

companheira:

— O Paulo foi me seduzindo até não me restar outra alternativa

se não me separar. A decisão foi difícil e, neste momento, exigiria

ainda algumas semanas de conversações.

Pelo telefone, no dia anterior, Leminski contara uma pequena

mentira para Alice, dizendo que chegaria na rodoviária de Curitiba

por volta das cinco horas da tarde. Ele nada pediu, apenas

comunicou. Alice decidiria buscá-lo na hora marcada, mas não

encontraria ninguém, além de rostos anônimos e sonolentos

descendo do ônibus. Ele havia embarcado em outro horário, horas

depois.

Quando se viu sozinho em Curitiba, no começo da noite,

Leminski estava confuso e não sabia que rumo tomar. Na dúvida,

seguiu para um bar atrás do Teatro Guaíra, onde poderia encontrar

alguns amigos. O publicitário César Bond, um ex-colega da agência

Múltipla, o encontraria ali. Apresentava sinais de embriaguez e

parecia bastante fraco, alegando não ter onde dormir. Bond levou-o

para sua casa, onde providenciou um repasto acompanhado de

umas cervejas. Havia um gravador portátil na casa, que eles usaram

para registrar conversas sobre arte, cultura de massa e literatura. Na

gravação, a voz de Bond é ouvida discretamente em mais de uma

hora de conversa. Leminski falava como quem escreve uma carta-

testamento — ou algo parecido — ao analisar pela última vez

Page 359: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

diversos temas do seu universo intelectual (ver Apêndice 11).

Pouco depois, Bond pediria ajuda aos amigos para encontrar

um lugar onde Leminski pudesse ficar. Pensou mesmo em interná-lo,

por perceber que o poeta estava fraco e sofrendo de fortes dores

abdominais. Ligou inicialmente para Solda, que prometeu falar com

Paulo Vítola, que por sua vez tentaria resolver o problema. Assim, ele

foi localizado pelos amigos depois de meses de ausência de Curitiba.

Vítola teve a idéia de colocá-lo temporariamente num hotel, enquanto

as coisas tomavam um rumo qualquer. Leminski foi morar no Hotel

Elo, na rua Amintas de Barros, ao lado da Reitoria e da Faculdade de

Letras, onde fora aluno um dia. Era um quarto pequeno mas

confortável, onde ele construiu um varal com barbantes para fixar

seus poemas — folhas brancas datilografadas, como roupas comuns

dependuradas. Um deles tinha o título “Estupor”:

esse súbito não ter

esse estúpido querer

que me leva a duvidar

quando eu devia crer

esse sentir-se cair

quando não existe lugar

aonde se possa ir

esse pegar ou largar

essa poesia vulgar

que não me deixa mentir

Sua companhia mais freqüente nestes dias era Rubão, o arauto

da xilocaína, que lidera com folga o ranking dos “amigos-da-onça” —

segundo avaliação de pessoas próximas ao poeta — por “arrastá-lo”

Page 360: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

irresponsavelmente para as esbórnias da noite. Rubão não aceita o

título “honorífico” e defende-se, lembrando ser apenas o dono do bar:

— O Leminski chegou a morar em minha casa por alguns dias.

Estava todas as noites no Camarim porque ali tinha vários amigos.

Quando o bar fechava, em função de um feriado ou coisa assim, ele

era visto caindo em botequins baratos, perto da rodoviária. Além do

mais, ficou meu amigo. Dizia que se tivesse um bar daria o nome de

Bar ou Ímpar.

Foi num sábado, depois de uma tarde de biritas no bar do

Passeio Público, que o cartunista Dante Mendonça, vendo Leminski

sozinho e aparentemente sem destino, decidiria convidá-lo para

saborear um prato de comida em seu apartamento. Dante foi para a

cozinha preparar alguma coisa. Eles continuaram bebendo e

conversando por algum tempo, até Leminski literalmente capotar no

sofá da sala. No dia seguinte, quando partiu, deixou para trás um

cheiro amargo impregnando o sofá, algo como a sudorese da bílis,

que permaneceria no ar ainda por muitas semanas. Quando,

finalmente, Dante descobriu a origem do espantoso mau cheiro num

certo canto da casa, confidenciou para a mulher:

— O Leminski está com sérios problemas hepáticos.

Já se disse que o poeta estava pálido e magro da cintura para

cima, como um pino de boliche. Quando Alice o encontrou, ele não

dormia além de três horas por dia, quase sempre desmaiando. Ela

perceberia nele um olhar apavorado, “o olhar de um homem que

sabe que vai morrer”. Seu hábito de não puxar a descarga do vaso

sanitário — que em outros tempos era motivo de rusgas entre eles —

revelaria que sua urina estava com uma tonalidade entre o marrom e

o vermelho, quase cor de sangue. A visita que ele planejara tinha

como pretexto rever as meninas e passar uma tarde em família. Por

sorte, ele encontrou Alice anestesiada pela opinião de amigos, que

Page 361: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

lhe pediam para não “endurecer o jogo” — e ela, então, como que

fazendo parte de uma encenação bíblica, lhe ofereceria uma acolhida

resignada. Sua benevolência iria lhe custar o peso da desistência, ao

se reconhecer impotente para alterar a realidade. Como que

atingidos por um efeito embriagador instantâneo, Leminski e Alice

puderam sentir novamente — por poucos minutos — o sabor da

velha cumplicidade:

— Diante da situação de relaxamento, ele tentou transar

comigo, queria fazer sexo como antigamente. Eu parei e disse que a

gente tinha que dar um tempo. Sustentei a condição para uma volta:

primeiro ele teria que cuidar da saúde.

Esta noite, Leminski iria dormir sozinho no hotel, onde

repetiria o comportamento desvairado que vinha cometendo na casa

de Bond, ao andar nu pelos corredores a qualquer hora do dia.

Acumulavam-se reclamações de hóspedes contra ele, o que deixava a

situação à beira do insustentável. Seu discurso mais freqüente tinha

como objetivo enaltecer figuras que se mataram, começando por

Yukio Mishima. Era uma estratégia recorrente: em épocas que bebia

muito, falava das pessoas geniais que bebiam; quando parava de

beber, dizia o mesmo dos abstêmios da história. Agora, tinha um

discurso maravilhoso sobre os gênios que tinham se matado, mesmo

involuntariamente.

Em novembro de 1988, após um ano de namoro, Leminski e

Berenice puderam, finalmente, “juntar os trapos”. Ele deixaria uma

dívida no Hotel Elo (e também alguns pertences, que nunca seriam

resgatados) e iria morar no apartamento dela, na praça Santos

Andrade. Logo alugariam uma casa e se mudariam para a rua Duque

de Caxias, próximo às cinco tias, que ele visitava regularmente “na

hora da sobremesa”. Assim que se instalaram, uma Kombi de

aluguel estacionou na porta trazendo caixas e mais caixas de livros,

Page 362: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

papéis, fotos, o arquivo completo, enfim, de Paulo Leminski — e, no

subscrito, Alice Ruiz. Ele e Berenice, que era quinze anos mais

jovem, gastaram as primeiras semanas do casamento organizando

estes arquivos, enquanto revolviam com palavras o passado de suas

vidas.

Sua volta a Curitiba seria saudada pela imprensa local com

efusivas reportagens de boas-vindas. No dia 27 de novembro, o

resultado de uma conversa informal com a repórter Adélia Lopes

seria publicado nas páginas do jornal O Estado do Paraná com o

título: “Leminski: a vida espiritual é muito material”. Ocupando três

páginas do suplemento “Almanaque”, a entrevista era ilustrada com

fotos onde, pela primeira vez, ele não aparecia em sua casa, mas no

alto de um edifício, tendo a cidade como cenário. Na legenda, um

slogan que perpetuaria sua ligação territorial: “Nunca saí de

Curitiba. Pinheiro não se transplanta”. Ao refletir sobre sua

experiência de oito meses fora de casa, diria:

— Fui para uma megalópole, uma supercidade, a Nova York

que nós merecemos, no bom e no mau sentido. São Paulo é cidade de

efervescência cultural, intelectual e criativa muito grande. Consegui

trabalhar em televisão, coisa que ainda não tinha me acontecido.

Na mesma entrevista, ele faria uma declaração conclusiva, uma

espécie de inventário poético, ao afirmar:

— Se me perguntarem quem é o maior poeta brasileiro vivo,

hoje, na área de escrita — texto no papel —, eu diria João Cabral de

Mello Neto. Tem a obra mais densa e irradiante e continua

influenciando a produção.

Mesmo à distância, Leminski vinha acompanhando a segunda

edição do Catatau, que estava sendo finalizada em Porto Alegre, nas

gráficas da Editora Sulina. A novidade era a capa, que sofria uma

grande modificação em relação à primeira edição. As gravuras das

Page 363: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

lutas marciais foram substituídas por um desenho estilizado de René

Descartes e, na contracapa, os dois esqueletos foram substituídos

pela foto do autor. Ele não participaria das decisões editoriais, mas

se diria convencido de que mesmo as obras clássicas e sinceras

“mudam de roupa” por razões comerciais.

Ao mesmo tempo, a editora Arte Pau-Brasil, de São Paulo,

preparava a edição do livro infantil A lua no cinema, escrito e

dedicado a Estrela, então com oito anos. A história, carregada de

candura e magia, era, na verdade, um poema sugestivamente

ilustrado por Alonso Alvarez, que arranjou cada verso (ver Apêndice

12) em páginas duras e grossas, com um bom aproveitamento

gráfico. O resultado sugere um álbum sofisticado e luminoso.

Em dezembro de 1988, aconteceria o meu último encontro com

Paulo Leminski. Ele e Berenice chegaram ao Rio para uma reunião na

Embrafilme, onde ela negociava contratos para a realização de um

longa-metragem (o projeto — já aprovado — se desmantelaria junto

com o casamento de dez anos e a sociedade na produtora).

Desafiando uma velha sina, eles viajaram de avião para o Rio, com

Leminski ostentando um vistoso chapéu panamá e muita verve à

bordo: passaria boa parte do tempo contando para a senhora da

poltrona ao lado uma verdadeira antologia de histórias

extraordinárias sobre acidentes de aviação. Ao que tudo indica,

apenas ele achava graça nos verbetes.

Ao longo de nossa história de amizade, meu amigo Paulo me

transmitiria por telefone todas as notícias ruins, enquanto, ao vivo,

entre um abraço e outro, apenas as notícias boas. Este movimento

parece ter influenciado o nosso humor com relação ao telefone, que

sempre evitamos: era tudo ou nada, sem intermediários. Jamais

ligamos apenas para saber como o outro estava passando no Natal ou

coisa assim — contatos que ele incluía na categoria das grandes

Page 364: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

abobrinhas. Um telefonema era sempre para comunicar algo muito

importante ou apenas raro — como quando ele ligou para lamentar

que a filha Áurea estava se preparando para participar do concurso

Garota Caiobá, desfilando de maiô e tudo. Ele “precisava” contar para

alguém e esperava cumplicidade. Eu ponderei:

— Um baile de debutantes seria pior, Paulo, pois a moça tem que

dançar com o pai!

Ele agradeceu e desligou.

Foi, portanto, uma grande surpresa reencontrá-lo em Ipanema,

com a nova namorada — que ele chamava de Bere — e com os dois

“filhotes” recém-saídos do prelo, que foram sacados da mochila como

coelhos de uma cartola: A lua no cinema e uma revista temática

chamada Leite Quente, cuja coleção ele inaugurava com “Nossa

linguagem”, ensaio sobre as inflexões típicas do falar curitibano. Esta

revista seria, a rigor, a primeira parceria dele com a Fundação

Cultural de Curitiba, ou seja, com o setor de editoração do órgão

cultural, ao longo de uma gestão de Jaime Lerner — que, afinal,

venceria as eleições de 15 de novembro. Na apresentação do trabalho,

Leminski chama a atenção do leitor:

Aqui, uma viagem de leve, em asas de andorinha, pelas

várias linguagens desta cidade de nome tupi, ouro de ipê

pelo chão, onde se diz “leite quente”, não “leitchi

quentchi”.

Ele falaria com empolgação sobre as duas obras, que

considerava essenciais naquele momento. A certa altura,

comportando-se como um velho rato de livraria, após passar o olho

num álbum de Marcel Duchamp que descansava sobre a mesa da

sala, ele me dirigiu um gesto carinhoso, sugerindo ganhar o livro de

Page 365: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

presente. Eu respondi passando-lhe a obra:

— Já é sua! Afinal foi você quem me apresentou a Duchamp.

Mais alguma coisa?

Ele respondeu igualmente rápido, com uma outra pergunta:

— Que tal me levar pra tomar uma birita?

Na rua, nuvens densas e quentes pairavam sobre a praia de

Ipanema, abafando nossos ímpetos — o que nos faria procurar refúgio

num restaurante com ar-condicionado, na praça General Osório. Foi

um alívio “pra cútis”, ele diria. Berenice e Naná ficaram pra trás,

passeando na Feira Hippie. Sentamo-nos numa mesa estratégica para

quatro pessoas e pedimos dois dry martínis caprichados. Fizemos o

brinde e detonamos o primeiro gole. Foi quando ele, sem me encarar,

falou:

— Compadre, fui ao médico em São Paulo e os exames

confirmaram que estou com cirrose!

— ...??

Olhei para ele no momento exato em que o garçom se preparava

para servir outras duas doses. Com uma das mãos parei a bandeja no

ar e falei vacilante:

— Paulo!...

Ele me encarou impacientemente, esperando uma cumplicidade

instantânea, antes que as moças entrassem pela porta:

— Porra, Martins, estou aqui com você pra falar de coisas

fundamentais da vida... Agora, você quer deixar o garçom trabalhar?

Nossa conversa iria girar sobre a política nacional, a nova

conjuntura do Brasil e a nossa atividade profissional neste contexto.

Falamos muito de televisão, ele ainda empolgado com o Jornal de

Vanguarda, que continuava lhe pulsando nas veias. Súbito, passaria

a falar coisas etéreas, abstratas, fazendo um discurso enviesado e

desconexo. Era como se a máquina estivesse fora de rotação,

Page 366: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

deixando o pensamento galopar desordenadamente. Ao mesmo tempo,

como num velho sinal de contradição, demonstrava lucidez e humor ao

explicar o making off das recentes produções. Falou, entre um gole e

outro, que seus sonhos estavam sendo dirigidos por cineastas

americanos:

— Tenho sonhos dirigidos por Hitchcock pelo menos uma vez por

semana. Ontem sonhei Blade Runner, na semana passada foi John

Ford que me conduziu, mas também já peguei muito Woody Allen pela

frente.

As moças chegaram e continuamos bebendo como se nada esti-

vesse acontecendo. Ou quase isso.

No dia seguinte, antes de voltar a Curitiba, o casal iria à casa

de Marieta Severo, em São Conrado, que acertava detalhes de sua

participação como atriz no tal filme de Berenice, que jamais seria

realizado. A visita aos Buarque de Holanda era para Marieta, mas

Leminski passaria boa parte do tempo conversando com Chico, na

biblioteca, onde seria apresentado a um computador PC, que o

compositor vinha usando para redigir seus textos. Na saída,

Leminski se mostraria impressionado com o que acabara de ver:

— O Chico dispensou a máquina e garante que a operação de

escrever um texto naquele aparelho ficou dez vezes mais veloz.

A vida de casado e, conseqüentemente, a volta a uma

alimentação saudável e regular, ajudariam o poeta a manter-se

ocupado e bem-disposto por algum tempo. Ele cogitou, inclusive, a

possibilidade de marcar uma consulta no dentista — mas a ameaça

nunca seria concretizada. Quando necessário, continuaria

recorrendo ao ex-colega de judô, o dentista Micelli, para eventuais

extrações e curativos.

Em fevereiro, Fortuna apareceria para passar o carnaval com

eles, em Tibagi, uma cidade do interior do Paraná. Eles estavam

Page 367: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

sendo apresentados à cidade natal de Berenice. Todos viajaram de

carro com Rubão e tiveram um agradável fim de semana prolongado.

À noite, Leminski e Fortuna tocaram violão no melhor bar da cidade

e fizeram um show em praça pública — diante dos olhares

incrédulos dos pacatos habitantes do lugar — e tudo foi uma festa

para eles. Berenice, que também se revelaria uma boa companheira

de copo e poesia, continuava desconhecendo a gravidade do seu

estado de saúde. O que não lhe passou despercebido é que Leminski

vivia dias muito dramáticos:

— Uma tarde, ele ficou observando a filha da diarista

brincando dentro de uma caixa de papelão, enquanto a mãe passava

roupa. De repente, abaixou-se, ergueu a garota no colo e começou a

chorar. Chorava de soluçar, abraçado à criança...

Alice iria morar em São Paulo com as meninas, depois de se

afastar voluntariamente do emprego. Para ela, ficar na mesma cidade

que Leminski estava se revelando uma condição insuportável. Com

ajuda de alguns amigos, planejava reestruturar a alma e recomeçar a

vida.

Mas, mesmo morando em cidades diferentes, eles continuariam

se falando pelo telefone quase diariamente. Na maioria das vezes era

ele quem ligava. Alice tentava falar de poesia, fazer humor ou

conversar alegremente sobre qualquer assunto, mas isto já não era

mais possível. Ele continuava tomando vodca pura e teorizando

sobre a própria desistência.

Em março, finalmente, apareceria um trabalho capaz de

garantir algum dinheiro e ajudar nas despesas da casa. Após uma ou

duas reuniões com os editores do jornal Folha de Londrina, ficou

acertado que ele escreveria uma coluna semanal, às sextas-feiras, no

suplemento cultural “Caderno 2”. Em entrevista ao próprio jornal,

anunciando a novidade, ele revelaria como o atual momento de crise

Page 368: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

se revertia em fluxo poético:

— Quando se dissolve uma união, um casamento, ou se sai de

um emprego, fica aquele vazio... aquela instabilidade. É aí que a

nossa criatividade se torna mais aguda até a nível biológico. Tem um

momento que o bicho se sente mais ameaçado e produz soluções.

Na mesma entrevista, finge-se autoconfiante ao falar pela

primeira vez publicamente de La Vie en Close, a ser lançado pela

Brasiliense no segundo semestre:

— Estou sem pressa.

Sua estréia como colunista da FL aconteceu a 7 de abril de

1989, com o tema “Como era boa a nossa banda”, onde abreviava

reminiscência de uma juventude (geração) criativa e esplendorosa.

Tratava do assunto como se lembrança fosse algo que se tem e não

que fosse perdido.

Na sexta-feira, 2 de junho, além de frio e quadrado, o mundo

estava também distante para Paulo Leminski. Como fazia

regularmente, ele passaria a mão no telefone e ligaria para Alice —

para levar aquela que seria a última conversa entre eles. Ela recorda:

— O Paulo estava com a voz triste, mais do que de costume.

Falou de um poema que tinha criado naquele momento (ver Apêndice

13) e me perguntou se eu estava feliz. Respondi como Borges,

dizendo que “hay tantas otras cosas en la vida” além da felicidade.

De repente fui interrompida pelo choro dele e comecei a chorar

também. Não havia mais nada para dizer, pois estávamos a

quilômetros de distância, e desligamos rapidamente.

A se considerar os depoimentos dos amigos que estiveram com

Leminski nestes primeiros dias de junho, não havia indícios

evidentes de que algo de grave estava para acontecer. Pelo menos

nada que o impedisse de trabalhar ou passear. Nesta mesma noite de

sexta-feira, ele e Berenice foram se reunir a alguns amigos num

Page 369: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

restaurante no Alto de São Francisco, o bairro histórico de Curitiba.

Durante a madrugada, de volta em casa, recolheu-se no escritório

para trabalhar em alguns textos antes de dormir. Estava

organizando um conjunto de contos que escrevera em 1986 e que

chamava de “Gozo fabuloso”; também finalizava uma nova seleção de

poemas que vinha arquivando numa velha pasta identificada por

uma etiqueta como O Ex-estranho. É bem verdade que estava

cansado e não resistiu mais do que vinte minutos de trabalho. A

fraqueza do organismo finalmente parecia estar minando as poucas

energias que lhe restavam. Algo mais forte do que a vontade de viver

vinha neutralizando as proteínas que uma boa alimentação pudesse

estar lhe fornecendo. Para isso, Berenice preparava sopinhas,

caldinhos e sucos de frutas. Mas ele continuava fumando e bebendo,

fazendo da abstinência uma conquista cada vez mais remota. Mas

outros amigos também não conseguiram isso. Toninho Stinghen, um

dos gêmeos do BacTuc, tinha morrido meses antes, vítima dos efeitos

infernais do álcool; e mesmo seu irmão, Luizinho, já dava sinais de

uma precoce debilidade, e viria a falecer no ano seguinte.

No sábado, dia 3, eles almoçaram na casa de dona Isabel, mãe

de Berenice, onde passaram a tarde. Leminski comeu pouco, dando

uma ou duas garfadas frouxas. Depois do almoço, deitou-se no sofá

da sala, repousando a cabeça no colo da mulher, enquanto

entabulava uma conversa com a sogra sobre um assunto pertinente

e no qual se considerava especialista: as drogas. Na condição de

vereadora em Tibagi, dona Isabel estava se preparando para

participar de um seminário onde deveria abordar o tema e propor

soluções para o problema. Leminski se mostraria interessado,

querendo saber o enfoque que ela pretendia apresentar. Diante da

explicação de que seriam priorizadas as drogas mais comuns, como a

maconha e a cocaína, ele se permitiu sugerir uma mudança de 180

graus no diagnóstico ao direcionar o foco exclusivamente para o

Page 370: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

álcool. “Uma droga anônima e permitida por lei, a pior de todas”,

garantia.

No domingo, 4, o casal estava com a casa cheia de amigos. O

jovem poeta Rodrigo Garcia Lopes ficaria até mais tarde e jantaria

com eles numa cantina vizinha, o Porão Italiano, onde Leminski

novamente apenas beliscou a comida — uma inoportuna pizza a

quatro queijos — e tomou algumas cervejas. Rodrigo recorda-se

destes momentos:

— Ele não parava. Estava no auge de sua maturidade

intelectual e poética. Ao contrário do que dizem, quando falam em

decadência, o Leminski havia virado, de fato, um mestre.

Na segunda-feira, 5 de junho, eles foram dormir cedo. A cena,

do ponto de vista de Berenice, aconteceu de forma brutal. Os

ponteiros do relógio estavam para se encontrar, à meia-noite, quando

ela foi acordada por Leminski, que reclamou de um mal-estar. Ela

levantou-se para acender as luzes e aproveitou para ir à cozinha

buscar um copo d’água. Tudo foi muito rápido e violento, como

sempre acontece neste tipo de hemorragia. Num gesto único e ligeiro,

Leminski sentou-se na cama e explodiu em vômitos de sangue, num

jorro que atingiu as paredes, Berenice, o quarto inteiro. Diante da

gravidade da situação, Berenice chamaria um táxi e sairia voando

para a Casa de Saúde Paciornik. Na confusão, não perceberia que

estava cometendo um equívoco ao levá-lo para um hospital-

maternidade.

O paciente receberia atenção imediata do cirurgião geral

Ricardo Rydygier e da equipe médica de plantão. Assim que o dia

amanheceu, Berenice telefonaria para alguns amigos pedindo ajuda.

No início da tarde, ela pessoalmente ligaria para a redação do jornal

Nicolau, procurando por Josely e Rodrigo Lopes, que seguiram

imediatamente para a clínica. Encontraram Leminski numa maca,

preparando-se para uma endoscopia. O poeta estava lúcido quando

Page 371: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

segurou a mão de Josely e murmurou:

— Trans, a barra agora pesou.

O amigo Rubão e a mulher Mônica chegariam para passar a

noite no hospital. Depois de uma série de exames, Leminski seria

removido para um quarto no segundo andar, enquanto a família e os

amigos eram convocados para doar sangue do tipo A positivo. O

hospital estava apenas seguindo uma praxe adotada para garantir as

reservas nos bancos de sangue gratuitos. Com o objetivo de ampliar

a coleta, alguém teve a idéia de veicular um apelo na televisão,

chamando os voluntários. Os boletins de plantão entrariam no ar em

vários canais e em poucos minutos a notícia se espalhava pela

cidade: Paulo Leminski está internado em estado grave. Quando o

dia amanheceu, os amigos começaram a chegar, lamentando não

encontrar boas notícias.

Assim que tomou conhecimento do quadro clínico, o dr.

Cláudio Paciornik — um amigo da família e médico particular de

Berenice — decidiria, em comum acordo com o dr. Ricardo, pela

remoção do paciente para o Hospital Nossa Senhora das Graças,

onde havia melhores condições de atendimento e uma estrutura

montada para este tipo de emergência. Imobilizaram-no na maca e

levaram-no numa ambulância que atravessaria a cidade lentamente,

na hora do rush. Josely seguia na frente em outro carro, abrindo

espaços no trânsito. O caminho agora era sem volta. Na ambulância,

ao lado dele, estavam o poeta Rodrigo e a irmã de Berenice, Isabel,

que tem o mesmo nome da mãe. Leminski estava lúcido durante o

percurso e reconheceria a voz do amigo:

— Rodrigo, é você?

O rapaz pegou uma de suas mãos e murmurou algo sem muita

convicção, uma saudação do tipo “ôi, Paulo, vai dar tudo certo,

depois a gente se fala com mais calma...”. Ao que o poeta respondeu,

segurando o murmúrio:

— Até mais, coisa nenhuma! Pode dar boa noite pro gaiteiro!

Page 372: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Os médicos planejavam fazer uma cauterização do esôfago,

mas antes teriam que estancar a hemorragia. O quadro revelava

varizes esofágicas que deveriam ser prontamente atacadas. No balcão

de recepção, Josely preencheu e assinou a ficha de internação como

responsável pelo paciente. Assim que chegou, Leminski foi levado

para a UTI. Ele gemia de dor enquanto era submetido a inúmeras

transfusões de sangue. Berenice ficaria ao lado o tempo todo. A certa

altura, Josely convenceu a amiga a dormir um pouco numa sala ao

lado, assumindo para si a tarefa da vigília. Ela se recorda destes

momentos:

— O Paulo parecia febril e eu fiquei umedecendo seus lábios

com algodão molhado. Ele entreabriu os olhos esgazeados e se agitou

um pouco. Em seguida, levantou levemente a mão direita, teve um

estremecimento e percebi que tinha perdido a consciência. Acredito

que entrou em coma neste momento.

Em São Paulo, Alice receberia a primeira notícia na madrugada

de terça-feira, quando Mônica, a mulher de Rubão, ligaria avisando

que Leminski estava internado em estado grave. Pela manhã, outro

telefonema, agora de Jaime Lechinski, acionava a luz vermelha: ele

estava em coma. Alice negociou uma licença no trabalho, apanhou

as meninas na escola e seguiu para o aeroporto. Quando chegaram

ao hospital, foram recebidas pela dra. Margarida, a psiquiatra, que

gentilmente encontrou um lugar na sala de espera da UTI, agora

reservada apenas à família do poeta, ou seja, Berenice, sua mãe e

irmãos.

Na manhã de quarta-feira, dia 7, o hospital estava literalmente

ocupado pelos amigos mais próximos, enquanto outros tipos de fãs

— os anônimos descamisados, companheiros de infortúnio e poesia

— se espalhavam pelos bares das redondezas.

Por volta de meio-dia, o secretário de Cultura do Estado,

advogado René Dotti, apareceria para desejar boa sorte a todos e

Page 373: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

garantir que o governo estava assumindo as despesas hospitalares.

Alice percebeu quando Aldo Lubes, o mestre de judô, surgiu

emocionado e exasperado na outra extremidade do corredor. Ele

estava fora de si quando parou diante dela e, com mãos e braços

fortes, sacudiu-a violentamente pelos ombros, vociferando:

— Eu vim aqui por sua causa! A vontade que tenho é de entrar

lá e cobrir aquele filho da puta de porrada. Não posso perdoar o

Paulo por estar fazendo isso conosco.

Disse isso e pôs-se a chorar, saindo apressado do hospital,

como se estivesse fugindo do próprio desespero. A esta altura, entre

os amigos que aguardavam em vigília, esperando por um milagre, o

clima era de comoção. Para aliviar a tensão, uma das amigas, ao

entrar na sala de espera e perceber várias mulheres reunidas,

exclamaria com bom humor:

— Nossa! Quantas viúvas de Paulo Leminski!

Quando a noite chegou, o médico de plantão permitiria que

Alice e Berenice fizessem uma entrada rápida na UTI. As duas

mulheres ficariam ao lado dele por alguns minutos, mergulhadas

naquela atmosfera rarefeita. Berenice cantarolou um trecho da

música “Valeu...” e saiu chorando do quarto. Alice continuou até ser

interrompida em sua meditação por Jaime Lechinski, que propôs um

café na cantina. Eles saíram caminhando vagarosamente pelos

corredores do hospital. Estavam mergulhados num profundo

silêncio. No lado de fora e nas ruas próximas, grupos de jovens

fumavam baseados nas esquinas para incensar o lugar. Todos

estavam consternados e parecia que algo de muito grave estava para

acontecer. Alguns gritavam:

— Sai dessa, Leminski! Estamos te esperando aqui!

* * *

Page 374: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Paulo Leminski Filho “pediu a conta pro garçom” às 21h20 do

dia 7 de junho de 1989, vítima de cirrose hepática. Antes, às 20

horas, ele teve uma parada cardíaca. Ao saber da morte do amigo, o

cartunista Solda, aparentemente em transe, disparou na mesma

noite vários faxes para vários amigos em suas casas e escritórios.

Tinha como título “Sete de seis de oitenta e nove” e dizia:

fechem as portas

apaguem as luzes

o poeta

jaz num canto

todo em cânticos

silêncio semântico

kamikase do espanto

por um porém

um talvez

quase um acaso

do desencanto

mergulhou fundo

no instante

em que era raso

Alheio a toda esta movimentação, levando uma vida pacata e

rotineira em Ipanema, a notícia me chegaria em forma de susto

através de um telefonema matinal de Márcio Borges:

— Compadre, o Paulo Leminski morreu!

No mesmo instante, Naná apareceria atônita na porta do quarto

com um jornal nas mãos e a manchete em letras, obviamente,

garrafais: Morre em Curitiba o poeta Paulo Leminski. Ainda pela

manhã, Carlos João ligaria para descarregar seu estado de choque.

Page 375: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Fizemos um novo telefonema pro Márcio e fomos os três ao bar Aurora,

em Botafogo, derramar nosso pranto e comungar da nossa dor: o

poeta do lirismo louco tinha caído.

O velório foi marcado para a capela da Reitoria da UFP, onde

ele tinha sido em outros tempos um aluno de vida acadêmica

irregular. Houve um indisfarçável mal-estar entre as duas famílias,

justamente no momento de acomodá-las no espaço reservado ao lado

do caixão. Num gesto no mínimo deselegante, dona Isabel, mãe de

Berenice, fez um discurso no qual assumia para si as honras do

funeral e praticamente agradecia a presença de Alice e das meninas.

É provável que tal fato seja conseqüência de um sentimento

consagrado entre algumas pessoas — aquelas que chegaram depois

da separação —, para as quais Alice era “a mulher que abandonou o

marido num momento difícil”. Na verdade, havia neste ambiente

carregado de emoção e dor duas viúvas de fato e nenhuma de direito.

Com suas almas agitadas e igualmente conformadas, Áurea e Estrela

tudo observavam. Elas vinham ao longo dos últimos meses

decodificando o ritual de despedida do pai, que deixava pegadas

indisfarçáveis sobre o seu destino. As meninas fizeram uma leitura

madura destas mensagens, embora tivessem apenas 18 e 8 anos.

O prefeito Jaime Lerner estava presente e participou das

homenagens com um discurso improvisado e emocional:

— A palavra que melhor define o Leminski é brilho. Como

escritor, poeta e pensador, tudo que fez foi com brilho.

E terminaria fazendo uma pergunta aos presentes:

— E, agora, quem vai fazer a nossa cabeça??

O enterro, que estava marcado inicialmente para às 15 horas

do dia seguinte, seria antecipado para às 11 da manhã. O corpo

estava inchando e o caixão teria que ser trocado por um outro maior,

onde coubesse o último excesso do poeta. Na sala da administração

Page 376: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

do cemitério, Ernani Buchmann e Lechinski cuidavam das

formalidades. A certa altura do procedimento, o funcionário

encarregado de liberar o corpo quis saber a profissão do morto.

Ernani indicou:

— Poeta.

Houve um momento de hesitação do funcionário, que

perguntou:

— Poeta é profissão?

Diante da incerteza da resposta, foi-lhe sugerido:

— Então coloque escritor.

O funcionário quis saber se o falecido deixava bens. Ernani

concluiu:

— Deixa muitos bens, todos intangíveis.

O enterro, no dia 8, foi acompanhado por mais de cem amigos,

entre eles, segurando as alças do caixão, Fernando Blim, o

motoqueiro, e Rubão, o dono do bar. O jovem Ademir Assunção, o

Pin, chegaria de São Paulo no primeiro vôo da manhã.

Quando o caixão estava descendo, todos cantaram “Valeu”,

num trabalho de coral magnífico puxado, à capela, por Paulinho, Ivo

e Carlão, os ex-integrantes d’A Chave. Alice se uniu a eles, sem

desafinar:

Valeu agitar esta vida que podia ser melhor

Valeu encharcar este planeta de suor...

Foi de arrepiar. Neste momento, a ex-aluna Peggy Paciornik,

pagando uma promessa feita durante um pacto de morte juvenil, em

1967, deixava cair folhas de papel em branco no túmulo, um símbolo

de eternidade para o operário das letras e da poesia. Se fossem

pombas, certamente sairiam voando, mas eram apenas folhas de

papel em branco, que no final se acomodaram, uma a uma, junto ao

Page 377: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

caixão. Paulo Leminski Filho foi enterrado ao lado de toda a família:

o pai Paulo, a mãe Áurea, o filho Miguel e o irmão Pedro.

Page 378: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

O RESTO IMORTAL Paulo Leminski, 1944-1989

Queria não morrer de todo. Não o meu melhor. Que o melhor

de mim ficasse, já que sobre o além sou todo dúvidas. Queria deixar

aqui neste planeta não apenas um testemunho de minha passagem,

pirâmide, obelisco, verbetes numa obscura enciclopédia, campos

onde não cresce mais capim.

Queria deixar meu processo de pensamento, minha máquina

de pensar, a máquina que processa meu pensamento, meu pensar

transformado em máquinas objetivas, fora de mim, sobrevivendo a

mim.

Durante muito tempo, cultivei esse sonho desesperado.

Um dia, intuí. Essa máquina era possível.

Tinha que ser um livro.

Tinha que ser um texto. Um texto que não fosse apenas, como

os demais, um texto pensado. Eu precisava de um texto pensante.

Um texto que tivesse memória, produzisse imagens, raciocinasse.

Sobretudo, um texto que sentisse como eu.

Ao partir eu deixaria esse texto como um astronauta solitário

deixa um relógio na superfície de um planeta deserto.

Claro, eu poderia ter escolhido um ser humano para ser essa

máquina que pensasse como eu penso. Bastava conseguir um aluno.

Mas pessoas não são previsíveis. Um texto é.

A impressão do meu processo de pensamento não poderia estar

na escolha das palavras nem no rol dos eventos narrados. Teria que

estar inscrito no próprio movimento do texto, nos fluxos da sua

Page 379: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

dinâmica, traduzindo para o jogo de suas manhãs e marés.

Um texto assim não poderia ser fabricado nem forjado. Só

podia ser desejado.

Ele mesmo escolheria, se quisesse, a hora de seu advento.

Tudo o que eu poderia fazer nessa direção era estar atento a

todos os impulsos, mesmo os mais cegos, nunca sabendo se o texto

está vindo ou não.

Era óbvio, um texto assim teria, no mínimo, que levar uma vida

humana inteira. Na melhor das hipóteses.

Page 380: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

CAPÍTULO 10

PERHAPPINESS

No dia seguinte ao enterro de Leminski, a imprensa revelava

sua perplexidade com a trágica notícia. A Folha de Londrina, onde o

poeta publicou seu último texto — ainda que cometendo o erro de

afirmá-lo nascido em Itaiópolis —, estampava em manchete de

página inteira:

A VIDA MATA PAULO LEMINSKI

E, como subtítulo: “Ele queria o futuro, ontem”.

A Folha de S. Paulo apresentou matéria assinada por Régis

Bonvicino, com o título:

MORRE LEMINSKI, O POETA-SÍNTESE DOS ANOS 70

No Jornal da Tarde, uma reportagem de página inteira:

O IRREVERENTE ADEUS AO POETA

A legenda da fotografia, mostrando o cortejo fúnebre com

Berenice, Rubão, Fernando Blim e Marinho Galera em destaque,

utilizava um poema feito naquele mesmo dia por Itamar Assumpção:

Leminski,

Page 381: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

ei, psiu, sou eu Beleléu

não fui no enterro teu

porque você não irá no meu

estamos quites, adeus

O jornal O Globo mostrou agilidade, divulgando a notícia no dia

8, o dia do enterro:

MORRE EM CURITIBA O POETA LEMINSKI

O Estado do Paraná, onde ele tinha começado sua carreira

jornalística, tratou do assunto também em primeira página:

CURITIBA ENTERROU SEU MAIOR POETA

O Jornal do Brasil publicaria, além do registro factual, um texto

assinado pelo articulista Wilson Coutinho com o título “Um ímã de

modernidade”, concluindo que Leminski “na sua provençal Curitiba,

acabava por fazer uma poesia que interessava — e muito — às

antenas cosmopolitas”.

O Correio Brasiliense, na sexta-feira, 9, apresentou a notícia em

artigo assinado por Nuevo Baby:

MORRE O POETA MESTIÇO QUE ERA PURA POESIA

Três dias depois, o muro do cemitério da Água Verde

amanheceria grafitado no trecho próximo ao túmulo, com uma

grande frase pintada a pincel, com adornos em spray:

PAULO LEMINSKI MORA AQUI

Page 382: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Na edição de julho, a revista Panorama, editada em Curitiba,

publicaria matéria de quatro páginas assinada por Jaques Brand,

com fotos de Julio Covello, mostrando Leminski em sua biblioteca,

sem camisa e com o título: “O Poeta se faz puro charme”.

Os acontecimentos importantes — ou meramente significativos

— registrados após a morte de Paulo Leminski, não foram poucos:

• Em menos de um mês ficava pronta e chegava às livrarias a nova

edição do Catatau, que mereceria de Haroldo de Campos e Leo

Gilson Ribeiro amplas análises críticas, respectivamente, na Folha

de S. Paulo e no Jornal da Tarde. Haroldo usou a expressão “Uma

leminskíada barrocodélica”, para saudar o relançamento do livro

“que teve, por assim dizer, um sucesso de câmera ou um sucesso

de estima” junto a um pequeno círculo de aficionados. Leo Gilson

resumiu sua apreciação no título: “Para Desnortear Europeus

Arrogantes”. Cada um a sua maneira ratificava o que afirmara 15

anos antes: a obra mantinha seu tom instigante e consolidava seu

valor — como uma jóia — para a literatura brasileira.

• Em agosto, quando Leminski completaria 45 anos, foi inaugurado

por iniciativa da Prefeitura de Curitiba o Espaço Leminski, uma

pedreira desativada que seria adaptada para receber grandes

espetáculos com o aproveitamento de um majestoso cenário

natural. Qual o bairro? Pilarzinho, é claro! Por sugestão de Jaime

Lechinski, o nome oficial passou a ser Pedreira Leminski, hoje

situada ao lado da igualmente sugestiva Ópera de Arame — ambas,

obras marcantes no contexto cultural da cidade.

• Ainda em agosto, como parte das homenagens ao Cachorro Louco,

seria criado o Projeto Perhappiness (talvez felicidade, segundo um

Page 383: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

portmanteau criado por ele), uma semana de programação cultural

abordando temas de diversas áreas. Uma grande exposição de

fotografias, vídeos e objetos do poeta (violão, máquina de escrever,

anotações originais, quimono de judô etc....) foi montada como

parte da retrospectiva, no Centro de Criatividade, onde foi

inaugurado o Bar ou Ímpar, em sua homenagem. Mas o principal

foco do evento era a inauguração da Pedreira Leminski, com show

para 30 mil pessoas. Foram colocados ônibus extras e gratuitos

para a população, partindo do centro da cidade. No palco, quase

todos os seus ex-parceiros: Moraes Moreira, Blindagem, Jorge

Mautner e Jacobina, Marinho Galera, Paulinho Boca de Cantor,

Fortuna, José Miguel Wisnik, Itamar Assumpção, Lúcia Turnbull,

A Cor do Som, José Roberto Oliva e outros. Caetano Veloso e

Gilberto Gil tinham compromissos inadiáveis e não puderam

comparecer. Nos eventos paralelos, as palestras sobre Leminski e

sua obra reuniam Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman,

Walter Silveira, Renato Barbieri, Sylvio Back, Cassiana Lacerda,

Domingos Pellegrini, Régis Bonvicino, João Alexandre Barbosa,

Antonio Risério e outros.

• No dia 21 de agosto morria, em São Paulo, o cantor Raul Seixas,

vítima de uma pancreatite aguda, resultado de problemas com

alcoolismo.

• A revista Exu, editada pela Fundação Casa de Jorge Amado, na

Bahia, publica “o dossiê Leminski”, com trabalhos de Antonio

Risério e Haroldo de Campos.

• Em outubro, o Pasquim prestaria sua homenagem ao poeta

publicando um réquiem assinado por este biógrafo com o título “O

tal das químicas, tributo a Paulo Leminski”. O texto, que fora

escrito no Rio de Janeiro, no exato momento do enterro do poeta,

Page 384: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

vinha acompanhado de uma ilustração de Solda — uma caricatura

mostrando Leminski numa mesinha de bar diante de uma galáxia

de taças e copos, exclamando: “Garçom! Traz a saideira!” A edição

ganhou um texto de introdução onde o cartunista Jaguar — a esta

altura o único editor do Pasquim — se penitenciava publicamente:

“Você é um babaca, Jaguar”, eu disse pro espelho logo

depois que li no jornal a notícia da morte de Leminski.

“Um tremendo babaca.” Leminski foi um dos quatro

porra-loucas de gênio que conheci; os outros foram

Hélio Oiticica, Armando Costa e Glauber.

Quando Leminski mandou pro Pasquim aquele seu

romance-tijolo, Catatau, me irritou. Achei pernóstico,

pretensioso, provinciano, metido à besta. Os artigos que

nos mandou também, botei na gaveta. E ficou por isso

mesmo. Isso foi há quase 20 anos. Há uns 2 anos estive

em Curitiba, nos encontramos por acaso num bar. Porre

de steinhager com cerveja. Me mostrou poemas

magníficos. Ficou de mandar colaborações pro jornal.

Escreveu um telefone de São Paulo num guardanapo de

papel, é claro que perdi. Antes que conseguisse localizá-

lo, a cirrose o apanhou.

Depois recebi Nicolau, uma revista paranaense

com textos e poemas dele da maior qualidade. Mas no

Pasquim, que é bom, não teve Leminski. Culpa minha.

Perdão, leitores.

Toninho Vaz e Solda (reaparece depois de um

longo e tenebroso inverno), que tiveram a sorte de pegar

uma carona na viagem de Leminski, fazem parceria

neste réquiem. Ass. Jaguar.

Page 385: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

• Durante curta temporada em Curitiba, de 20 a 22 de outubro, a

cantora Fortuna apresenta um espetáculo onde aparecem no

repertório algumas parcerias com Leminski, incluindo a música

inédita “Hoje tá tão bonito”.

1990

• Em maio, a exposição do Projeto Perhappiness ganha os salões do

MASP, em São Paulo, tendo como curadora a professora Cassiana

Lacerda Carollo.

• Em outubro, a editora Sulina coloca à disposição dos leitores Vida,

com 352 páginas, reunindo as quatro biografias escritas por ele.

Leo Gilson Ribeiro escreveria no Jornal da Tarde: “Quatro retratos.

Com a marca de Leminski.” Na Folha de S. Paulo, Frederico

Barbosa observaria que “cada uma das quatro vidas nos mostra

claramente uma faceta da quinta: a de Paulo Leminski”.

• Por iniciativa oficial, partindo do governo do Estado, Quarenta clics

em Curitiba (Jack Pires-Leminski) ganha uma segunda fornada,

com a editora Etecetera, de Gordo Mello, repetindo o trabalho

gráfico.

1991

• Sai, pela Brasiliense, La Vie en Close, com 180 páginas de poemas

inéditos preparados por ele antes de morrer. Por ser uma obra

póstuma, não foi dedicada a ninguém. Não por acaso, o último

poema dizia:

Page 386: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

essa idéia

ninguém me tira

matéria é mentira

1992

• Em maio, chega às livrarias Uma carta — uma brasa através,

Iluminuras, reunindo cartas de Paulo Leminski a Régis Bonvicino

escritas entre 1976 e 1981. A mesma obra, com pequenas

modificações, seria reeditada em 1999 com o título Envie meu

dicionário — Cartas e alguma crítica (Editora 34). Em ambos os

casos, as publicações trariam constrangimentos para a família de

Leminski, já que alguns trechos revelavam intimidades que Alice e

as filhas gostariam que “tivessem sido respeitadas”.

1994

• A editora Iluminuras publica o inédito Metaformose — Uma viagem

pelo imaginário grego (título que os revisores são levados a “corrigir”

para metamorfose, desconhecendo que o poeta queria falar da

forma como meta). O livro tinha apresentação de Alice Ruiz e nota

introdutória de Régis Bonvicino. Na opinião do poeta Arnaldo

Antunes, “esta obra tem a magnitude e o calibre do Catatau. É um

dos trabalhos mais sérios do Leminski”. No ano seguinte, o livro

ganharia o prêmio Jabuti para poesia.

• A Fundação Cultural de Curitiba finalmente decide editar

Winterverno, da dupla Leminski-Virmond. A edição, criativa e com

sofisticado aproveitamento gráfico, exagerou nos textos

introdutórios e de apresentação. Falam do autor e da obra o

Page 387: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

prefeito Rafael Greca, a professora Cassiana Lacerda, Alice Ruiz,

Rodrigo Garcia Lopes, Josely Vianna e Arnaldo Antunes. No meio

de todos, aparecendo com um conjunto de quarenta haikais, Paulo

Leminski.

• Sai a edição húngara de Distraídos venceremos, organizada pelo

professor Pál Ferenc, da Universidade Eötvös Lorand, de

Budapeste, que credita a tradução a Egressy Soltán, embora ele

tenha sido o tradutor literal e coordenador da coletânea. A primeira

edição de 3 mil exemplares foi vendida em três semanas na

Hungria.

• Com organização de Josely Vianna, a antologia Desencontrários —

6 poetas brasileiros (Unencontraries — 6 Brasilian Poets) tem edição

bilíngüe da Fundação Cultural de Curitiba. Leminski é um dos seis

poetas.

1996

• Em maio, a editora Iluminuras lança O ex-estranho, livro que Alice

Ruiz apresentaria como “provavelmente a última reunião de

poemas inéditos de Paulo Leminski”. Entre eles, havia um

representativo dos anos difíceis, concebido poucas semanas antes

de sua morte:

Trevas.

Que mais pode ler

um poeta que se preza?

• O jornalista e escritor José Castello, duas semanas antes do

lançamento de O ex-estranho, escreveria no jornal O Estado de S.

Page 388: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Paulo, que a nova obra de Leminski “mostra as dúvidas do poeta

com relação à sua fé e o sentimento de exclusão que dominou sua

vida”.

• Antes do final do ano, uma seleção de poemas reunindo “os

melhores” de Paulo Leminski, na concepção dos professores Fred

Góes (o parceiro musical em “Sempre Angela”) e Álvaro Martins,

sairia pela Global, com direção de Edla Van Steen.

1997

• A revista O Carioca, editada por Chacal, Bernardo Vilhena e Waly

Salomão apresenta três inéditos de Leminski, entre eles uma letra

de música feita para Edvaldo Santana, o Baitola, e o bilhete de

despedida deixado com Fortuna, que Pinduca apresentou assim:

“Leminski sabia que estava morrendo. E continuou pisando firme

no acelerador. Tinha que ser assim. Com ele era tudo ou tudo.

Nenhuma mistificação. É o que é.”

• Zizi Possi grava “Filhos de Santa Maria”, parceria de Leminski com

Itamar Assumpção.

• Uma coletânea de poesias com o título Aviso a los náufragos, de

Paulo Leminski, organizada por Rodolfo Mata, é publicada no

México pela editora Eldorado. No mesmo ano, seus poemas são

incluídos na antologia Nothing the Sun Could Not Explain, editada

em Los Angeles, com organização de Michael Palmer, Nelson Arsher

e Régis Bonvicino. Sun & Moon Press. O título da antologia foi

escolhido a partir do poema de sua autoria Nada que o Sol não

possa explicar.

Page 389: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

1999

• A revista Medusa apresenta três contos inéditos de Leminski, como

parte do volume também inédito Gozo fabuloso. A festa de

lançamento da revista, no pub Finnegan’s, em São Paulo, no dia 31

de agosto, teve leitura de poemas de Arrigo Barnabé, Arnaldo

Antunes, Alice Ruiz e Itamar Assumpção. Nesta noite, com a casa

superlotada, foram registradas algumas manifestações de

fanatismo na platéia; a certa altura, alguns jovens gritavam:

“Leminski, venha tomar um uísque” — frase que se repetia em

todos os cantos do salão. Alguém, em uma das mesas, ponderou:

“Acontece o mesmo fenômeno com Raul Seixas, que deixou uma

legião de órfãos.”

• A parceria musical (póstuma) em “Além alma”, com Arnaldo

Antunes, sai no disco Um som, selo BMG. No mesmo disco, foi

incluída uma parceria de Arnaldo com Alice Ruiz: “Socorro”,

gravada anteriormente por Cássia Eller.

2000

• Na virada da década, vários sites enfocando a produção poética e

intelectual de Paulo Leminski foram criados na Internet. Um deles,

uma iniciativa da Revista de Estudos Literários da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul, apresenta Leminski em inglês, com

tradução de Charles A. Perrone. Eis uma amostra de sua poesia na

língua de Joyce:

we were born in diverse poems

Page 390: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

it was fate’s wish that we find each other

in the same strophe sister and brother

in the same verse the same phrases

rhyme at first sight we saw each other

trading what was synonymous

our gazes no longer anonymous

having read this far along

the same track and lines

of mine of yours of ours blended

2001

• Paulo Leminski faz parte da coletânea Os cem melhores poetas

brasileiros do século, seleção de José Nêumanne Pinto. Geração

Editorial.

Page 391: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

EPÍLOGO

27 CLICS DE LEMINSKI

AS três primeiras frases do Catatau são, para mim, um retrato

em preto e branco do Leminski adolescente que eu, em 1958 também

adolescente, conheci. Só que para essa adolescência já lá vão anos

XLII.

Como é que um taludo caboclo de 12 anos poderia almejar ser

um místico se sua testosterona naquele ambiente formalmente casto

do Mosteiro de São Bento o levava secretamente a colecionar

anúncios de filmes onde apareciam seminuas as divas de Hollywood?

No futebol era um cavalo mas, em compensação, discutia erudições

sobre os primeiros sábios da Igreja, com D. João Mehlman, o único

sábio que nós então conhecíamos. E trombava nas horas vagas, com

os sonetos porque aos haikais ele não havia sido apresentado, ainda.

Fui rever o Leminski nos anos 80, em Curitiba, num jantar

com o governador Richa na casa do Malucelli. Eu, já editor da

Revista Imprensa e ele redator de publicidade. Findo o jantar fomos

beber conhaque em sua casa, no Pilarzinho. O assunto foi,

logicamente, o Mosteiro. Ao me despedir, ele foi à biblioteca e pegou

uma página amarelada e m’deu de presente, com dedicatória, aquele

poema falando da “ordem de são bento, a ordem que sabe que o fogo

é lento”... O poema termina dizendo: “e no interior do mais pequeno

abre-se profundo a flor do espaço mais imenso. Basta estar

desatento”. Só então, entendi o misticismo do Leminski. E entendi

também que para ser sábio, poeta e talvez editor ou publicitário, é

preciso estar desatento.

Page 392: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Sinval de Itacaiambi Leão

Jornalista. Diretor e editor da revista Imprensa.

Depois que deixei o mosteiro, no começo dos anos 60, estudei

biologia na USP, onde fui assistente e me envolvi com a organização

AP. Lá me “profissionalizei”, peguei uma cana brava e fui expulso do

Brasil em fins de 69. Os amigos do Brasil tinham medo de se

corresponder comigo e fiquei felicíssimo em conseguir o endereço do

Leminski. Ele não tinha medo de me escrever, mandou o Catatau e

surgiu uma correspondência pouco sistemática entre nós.

Me espantava a capacidade que ele tinha em decorar

dicionários. Lembro-me bem o de alemão. Decorava tudo e sabia

usar as palavras. Lia o que lhe caía nas mãos e D. Clemente ainda

dava uma força maravilhosa, contrariando discretamente as

diretrizes da santa ordem. Éramos um grupo de “enfants terribles”,

dos quais Leminski, obviamente, fazia parte. Andávamos sobre os

telhados do mosteiro e fomos delatados pelos edifícios próximos.

Tínhamos uma pequena criação de pombos numa das torres do

Mosteiro, enfim, conhecíamos todas as dependências fechadas há

decênios naquele edifício e nunca fomos descobertos! Realizávamos

as expedições durante a noite, depois que todos estavam

adormecidos ou nos fins de semana. Éramos, creio, desajustados em

relação ao que se esperava da vocação religiosa de um “oblato”. E

esta avaliação, evidentemente, refere-se muito ao Leminski.

Clemens Schrage

Biólogo. Ex-colega do Colégio São Bento.

Quando Leminski voltou da Semana de Poesia de Vanguarda,

de Belo Horizonte, em agosto de 1963, viajando comigo e Lygia,

dormiu em minha casa, para retornar no dia seguinte a Curitiba.

Melhor, não dormiu, revirando minha biblioteca, respingando os

Cantos de Pound, agitadíssimo. A primeira carta que mandou está

Page 393: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

datada de 23 de agosto de 1963. A partir daí começou entre nós uma

longa e assídua correspondência, que só terminaria em 1981, quase

20 anos depois. Em dado momento, após uma carta que eu lhe

mandei em 20.9.66, ele subitamente silenciou. Preocupado, escrevi a

Neiva, em dezembro, perguntando o que havia acontecido. Nenhuma

resposta. Uma noite, em julho de 1967, ao retornar do lançamento

do livro Maiakóvski, na Livraria Sal, no centro de São Paulo,

encontro este bilhete telegráfico debaixo da minha porta: CAR’AUG/

Cá estive/ de volta PIRACICAB JUDÔ (universitário). I’m sorry.”

Respondi logo: “é bom saber que você está (viva o judô) vivo”. Mas só

recomeçamos, de verdade, nosso epistolário em março de 1969,

quando ele me mandou os primeiros esboços do ainda inominado

Catatau, que eu recebi assim, em carta que escrevi em 1º de abril:

“ave lemniscus/quia ressurrexit/cartesius renatus/ em teu

cartesanato furioso”. Mas aí começa uma outra história. Na minha

opinião foi o maior poeta brasileiro da sua geração.

Augusto de Campos

Poeta e escritor. Autor de Caixa preta; Poesia antipoesia

antropofagia; Guimarães Rosa em três dimensões;

e Tygre, de William Blake (tradução).

O Paulo Leminski era o mais jovem entre os interessados em

poesia que nos procuraram naqueles anos 60. Caiu na estrada muito

cedo, atrás de informação. Fizemos o lançamento nacional de sua

poesia na revista Invenção, em 64. Depois, estive com ele na Cruz do

Pilarzinho e no Templo Neo-pitagórico, em Curitiba. Ele morava

numa casa pobre, de madeira, bastante simples e com uma

arquitetura tradicional da região, com as sapatas altas, para se

proteger do frio. Nós tínhamos algo em comum, pois eu era

publicitário e ele decidiu também enveredar por este caminho — e

então nos tornamos amigos. Sua grande obra é o Catatau, um

trabalho de fôlego que ainda aguarda uma edição crítica e

Page 394: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

aprofundada para ser definitivamente desvendado. A história é

magnífica e muito criativa, a idéia de colocar Descartes numa praia

nordestina fumando um cachimbo de ervas alucinóginas. A partir de

um certo momento, Leminski deixou de ser um escritor experimental

e começou a fazer poemas breves, que lhe garantiriam a fama. Falava

que conhecia línguas, mas na verdade conhecia muito mal umas sete

ou oito. Tinha crises de megalomania que faziam parte do próprio

delírio etílico no qual vivia mergulhado. Seu discurso político-

ideológico era confuso, sem muita coerência. No final, ficou

conhecido também como músico e se tornou um escritor importante

para a sua geração.

Décio Pignatari

Poeta, professor e escritor. Autor de Informação.

Linguagem. Comunicação e Contracomunicação.

Considero Paulo Leminski o mais criativo poeta de sua geração

e um intelectual completo, armado de erudição e argúcia crítica:

além de poeta, era tradutor, ensaísta, prosador, a culminar no

Catatau, pleno de invenção e ousadia experimental, onde prosa e

poesia confluem. Foi também um artista bem característico de sua

geração, um hippie-zen, no plano existencial, plenamente aberto à

aventura da vida. Nada melhor, como expressão de sua irreverente

atitude perante a vida, do que o poema em que Leminski define-se

como um “cachorro louco”, zombeteiro, ou aquele poema-letra

(belamente cantado pelo Caetano) em que, irônica e criticamente,

anuncia que venderá os filhos para uma “família americana”...

Haroldo de Campos

Poeta, professor e escritor. Autor dos livros Metalinguagem,

A arte no horizonte do provável e A operação do texto.

Conheci o Leminski na década de 60. Foi meu vizinho no

Edifício São Bernardo. Ele me emprestou as revistas Invenção e

Page 395: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Noigandres e foi assim que tomei conhecimento do concretismo em S.

Paulo. Mas, quando veio me procurar, ele já estava em outra. Estava

interessado em haikais e se surpreendeu ao encontrar três deles em

meu livro Paisagem interior, de 1941. Por isso ele me procurou. Mas,

o verdadeiro haikaiista era ele. Nesta ocasião, estava aprendendo

japonês para mergulhar no espírito da língua e na cultura oriental.

Por isso seus haikais foram tão autênticos. Por mais antigas que

sejam, em seus poemas as palavras são sempre inaugurais. Leminski

tinha uma fome insaciável de conhecimento. Em 1969, mudou-se do

prédio e nunca mais deu notícias. Finalmente, em 1985, reapareceu

com a maior naturalidade. Ele e Alice Ruiz, a maravilhosa Alice Ruiz,

entrevistaram-me no programa Um Escritor na Biblioteca. Acho que o

Leminski foi um marco original e luminoso em nossa literatura. Falar

dele sempre me emociona muito. Ele me chamava de mãe.

Helena Kolody

Autora de Viagem no espelho e Luz infinita, livros de poesia.

(Para este depoimento, ela fez questão de se definir como “mocinha

no sentido antigo da palavra, ou seja, virgem, aos 87 anos”.)

Uma noite, no São Bernardo, Neiva chegou agitada. Tinha visto

Caetano Veloso à porta de um hotel, ele que tinha uma apresentação

marcada em Curitiba. Para o Paulo, a coisa esquentou mesmo, em

termos de importância da MPB, quando ele soube que Augusto de

Campos conhecera Caetano e iria escrever sobre ele (mais tarde

publicaria O balanço da bossa). Por aqueles dias, me surpreendi

quando, numa das nossas noitadas, vi o Paulo não debruçado sobre

os livros, como era de costume, mas empunhando um tosco violão

num canto da sala, junto com o irmão Pedro, também de violão em

punho, que lhe ensinava alguns acordes. Eram umas oito horas da

noite. Às quatro da manhã, a aula continuava. Às seis, o Paulo já

compunha um arremedo de canção, manejando bem os trastes.

Assim era Paulo Leminski, quando se propunha a fazer alguma

Page 396: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

coisa: obstinado.

Carlos João

Jornalista, fazia parte do Grupo Áporo. Especialista em MPB.

O Leminski queria nos fazer crer que era um provinciano. Nada

disso. Ele tinha uma mente de vanguarda, uma cultura universal,

informações de primeira grandeza. Fazia gênero com a pequenez da

alma, usando o álibi das boas intenções. No fundo, parecia um

monge alucinado. Nada para ele era impossível. Tinha a capacidade

de transformar o imponderável em algo possível e concreto. Mesmo

quando estava vivendo dentro de uma lata de lixo, pela precariedade

da situação, ainda assim se parecia com um oficial polonês a serviço

de alguma Majestade. Não perdia a dignidade. Sua grande paixão era

o mundo intelectual e literário. Era fascinante ouvi-lo falar,

discorrendo sobre qualquer assunto que dominava. Aprendi muito

com ele.

José Louzeiro

Escritor, jornalista, roteirista de televisão. Autor dos livros

Infância dos mortos e Lúcio Flávio, o passageiro da agonia.

Conheci o Paulo Leminski no Rio de Janeiro, em 1970, na

redação do Correio da Manhã. Fui reencontrá-lo em Curitiba, dois

anos depois, quando fizemos a escalada ao pico do Marumbi.

Acompanhei o trabalho literário dele como um leitor privilegiado, pois

conhecia o personagem e sua história. Foi uma pessoa marcante.

Andou também por São Paulo, trabalhou na imprensa e freqüentou a

academia de judô, mas era em Curitiba onde estava à vontade, que

parecia reinar como o maldito, o assinalado de Cruz e Sousa.

Quando morreu, deixou pesar e alívio. É mais cômodo enterrar

figuras assim, batizar lugares públicos com seu nome e seguir a vida

na certeza de não mais ser perturbado por aquela inteligência de

assustar secretário de cultura. Dizer que ficamos mais pobres com

Page 397: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

sua morte é falso: sua vida não enriqueceu nenhum de nós em

particular, mas sim uma geração maldita, perdida entre a polícia de

costumes e a polícia política. O maior mérito de Paulo foi ter driblado

o rígido esquema da defesa para não fazer o gol, mas sim, como

Garrincha, apenas mostrar que não existe adversário invencível.

Luiz Augusto Gollo

Jornalista carioca, amigo “dos curitibanos”. Atualmente mora em

Brasília, onde comanda um programa matinal numa rádio FM.

Paulo Leminski conheci muitos. Fui aluno do professor, colega

do publicitário, patrão do poeta doente. Amigos mais de vinte anos.

Da lira dos próprios ao impróprio caixão.

Posso escrever sobre o rapaz com fama de gênio, capaz de

resumir em uma aula a matéria de ano inteiro para o vestibular. Ou

sobre o compositor travestido em cantor, a esganiçar maltratando o

violão com tamanha fúria que fez quebrar, felizmente, a cadeira do

canto em decapê da casa de minha mãe.

Também do autor a andar pela casa das Mercês teorizando aos

berros, enquanto Alice, sentada no chão, tratava de cortar os rolos

com o texto já composto do Catatau para montar as pranchas, de

forma que, assim, pudéssemos revisá-lo — tarefa que jamais chegou

a ser realizada, se posso dar crédito às lembranças que me restam da

época, para sempre envoltas nos eflúvios que dali emanavam.

Talvez conte a visita que a família Leminski nos fez na casa de

praia, dois dias inteiros de churrasco, cachaça e cigarros. Eu

queimando os industrializados, tantos que jamais voltei a pitar

cigarros de qualquer espécie, ele fumando também os artesanais,

como desde sempre.

Falaria do pai que se negava a ver a gravidade da doença do

filho, ocupado demais estava, ou do sujeito que costumava furtar

livros da biblioteca dos amigos, como levou da minha um raro

exemplar — comprado no mercado das pulgas de Paris — de Marco

Page 398: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Antônio, de Shakespeare, tradução francesa de André Gide.

Conto, afinal, sua última molecagem. Depois de Jaime

Lechinski e eu comprarmos o caixão, ele, inchado, não coube. Pedro

Franco fez-me companhia na volta à funerária, viagem macabra para

a troca por um ataúde de dimensões extremas, não fosse seu futuro

ocupante um sujeito assim mesmo.

Meu acesso compulsivo de choro ao ver Paulinho do Blindagem

puxar, à beira do túmulo, aquela interpretação maravilhosa de

“Valeu”, foi emoção, homenagem, saudade e expiação — por não ter

sido com ele mais rigoroso, relevando mentiras evidentes: “Agora só

bebo uma ou outra cervejinha.”

Saudades do PauLeminski cachorro louco, do Paulo pauleira,

polaco provocador irresistível de quem me restaram alguns

exemplares, relidos sempre, a imaginar o riso irônico que a tudo

dedicava, com que talvez ainda nos veja.

Ernani Buchmann

Escritor e publicitário. Autor de Cidades e chuteiras,

livro de crônicas, e Os heróis da liberdade, romance.

Conheci o Paulo pessoalmente quando fizemos (eu e alguns

amigos) a Cooperativa de Escritores, em 1974. Eu fiquei encarregado

de levar sempre um exemplar dos livros que lançávamos para ele,

com antecedência.

Ele fazia a crítica para ser publicada nos jornais no mesmo dia

do lançamento do livro. Criticava com veemência, a partir de sua

posição de vanguarda concretista. Nós, da Cooperativa, tínhamos,

então, o ensejo de responder às críticas, no próximo domingo, no

mesmo jornal, o Estado do Paraná. Assim, a polêmica se estendia por

mais de mês, a respeito do nosso lançamento e outras posições

estéticas e literárias. Como fui sempre muito bem recebido por ele,

acabei, nessa época, freqüentando sua casa todo final de semana.

Quando a hospitalidade é generosa e estimulante, a gente retorna.

Page 399: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Acabamos muito amigos. Na morte de seu filho, Miguel, eu e

minha mulher Suely conduzimos o casal Leminski durante o funeral.

Outra vez, estávamos só eu e ele em sua casa, na Cruz do Pilarzinho.

Conversa vai, conversa vem, surgiu o papo do judô. Pedi, meio

descrente, que ele me aplicasse um golpe. Ele topou na hora.

Pusemo-nos em posição. Ele me virou de ponta-cabeça e me

derrubou no chão. Detalhe: os óculos voaram, mas eu não me

machuquei, porque ele me segurou antes que eu caísse totalmente.

Depois me levantou, peguei os óculos, demos boas risadas. Outra

ocasião, eu trabalhava na Pão de Açúcar Publicidade, precisávamos

de um redator, eu indiquei Alice Ruiz para o cargo. Ela foi

contratada. Depois, a vida nos levou para outros caminhos. Ele ficou

famoso e passou a freqüentar mais o eixo Rio-São Paulo-Bahia.

Reinoldo Atem

Poeta e publicitário. Autor de Urbe vage, poema longo,

e O aprendizado da vida, livro de poesias.

Paulo Leminski entrou em minha casa como o amigo de um

amigo, em 1979. Eu o considerava então apenas mais um desses

escritores herméticos, autor de um “Catatau”, que eu havia

começado a ler e não engolido de todo, por achar demasiado

rebarbativo, tentativa redundante de reinventar a roda, experiências

empobrecedoras do tipo joyce-proust tupiniquins, pois aos meus

olhos infanto-nouvelle-vague tais coisas se assemelhavam não às

citações e private-jokes de um filme de Godard, mas ao Walter Hugo

Khoury querendo dar uma de Antonioni, o que é totalmente uma

outra coisa. Eu pensava: colonizados! Não sabia ainda sobre o poeta

privilegiado e genial, sobre o homem culto e gentil, sobre o pai

extremoso e seu gigantesco drama. Paulo já entrou em minha casa

com nome próprio, amado e reverenciado por nosso grande amigo em

comum, Toninho Vaz, seu conterrâneo, seu melhor amigo desde os

tempos que brincavam juntos de fisdusca-em-pó, quase polaquinhos

Page 400: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

de calças curtas. Paulo havia chegado ao Rio com os músicos da

banda Blindagem, Ivo & cia., para uma curtíssima e memorável

temporada no Teatro Opinião, rock fulgurante e meteórico, com letras

engraçadíssimas de Paulo (“sou legal eu sei/ agora só falta/

convencer a lei”). Como era uma produção tipo “Dubolso”, como diria

o Sebastião Nunes, eis que sobrou o hóspede Paulo lá em casa, na

Santa Teresa hippie dos anos 70. Conversamos muito sobre o

aspecto provinciano das nossas culturas, a mineira e a paranaense,

rimos da ta-canhez de nossas próprias vidas, e, na saída, ele deixou

pichado na parede: “HIC FILIUS LACRIMAT MATER NON AUDIT”. (O

velho dístico das cadeias: “aqui o filho chora e a mãe não ouve”.)

Poderia ter sido escrito em grego. Ou em japonês. Ou sânscrito. O

homem era um perfeito intelectual e artista. Daqueles que as

metrópoles tarde demais descobrem e adotam, transformam em

parâmetros, talvez por sentirem ali um restinho do gosto que já

perderam há tempo.

Márcio Borges

Poeta, compositor e escritor. Autor do livro autobiográfico

Os sonhos não envelhecem, a história do Clube da Esquina.

Madrugadas no Bar Palácio foram a senha e a cena de muita

conversação com Leminski, às vezes em grupos grandes, outras só

com ele ou poucos mais. Numa dessas ocasiões, entrou numa de

sustentar que na Segunda Guerra os generais alemães tinham

levado enorme surra dos seus colegas russos, dando como boa prova

disso a captura de von Paulus, creio que durante a batalha de

Stalingrado. Ele queria — porque queria — que eu (como neto de

alemães por parte do meu Ôpapa — meu avô — paterno) tomasse a

defesa dos boches... enquanto, com seu lado eslavo, ele ficaria, no

caso, com a do vencedor!

Eu vivia uma curiosidade inadiável das letras clássicas.

Leminski generosa e pacientemente se dispôs a me passar algumas

Page 401: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

noções. Sobre o aoristo, um aspecto dos tempos gregos, deu essa

explicação singular: de que era como se fosse um tempo em que

transcorre a ação dos provérbios. Assim, quando se diz Quem não

tem cão caça com gato, em qual tempo está o verbo? Não é bem um

presente, está longe de ser um pretérito. É um tempo digamos

virtual. Esticando o conceito seria talvez possível dizer: é o tempo em

que vivem as crianças e os animais; é o tempo em que estão postas

as obras de arte.

Jaques Mario Brand

Poeta. Autor de Brisais (Das brisas do Brasil os ais et os sais).

É um dos poetas da antologia bilingüe Outras praias/Other Shores,

Iluminuras, 1998.

Guardo lindas lembranças do Paulo. Certa vez, hospedado em

nossa casa de São Paulo, ele continuou mantendo o hábito de não

“se lembrar” de tomar banho. A casa era uma farra só. Numa bela

manhã, Mônica, minha mulher, acordou disposta a botar ordem na

bagunça. Quando ela entrou na cozinha, me encontrou com um copo

de cerveja e o Paulo com um de conhaque. Ela tirou os copos de

nossas mãos e disse pro Paulo ir tomar banho e que depois estava

programado um café da manhã, como pessoas normais. Ele se

levantou sério, algo solene mesmo, tomou o seu copo de volta e,

encarando a Mônica, disse: “Mônica, por favor, não atrapalhe a

minha viagem autodestrutiva.”

Nosso último encontro foi já nos anos 80, em São Paulo. Logo

que ele chegou, o telefone tocou. Era uma namorada minha, a Dulce

Ferrero, ligando da Bahia. Eu desliguei o telefone e comentei com ele:

“Veja só, estou namorando com uma moça que está lendo ítalo

Svevo.” E ele: “Não caia nessa. Ela tá lendo Svevo pra lhe seduzir.”

Ato contínuo, me convidou para tomar uma. Eu disse: “Paulo, eu

estou dando um tempo, não estou bebendo.” Ele ficou calado, com

um ar meio triste. Ficamos conversando durante algum tempo, mas

Page 402: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

ao se despedir, ele me deu um abraço e, com o mesmo ar de tristeza,

disse: “Você ficou me devendo uma farra.”

Logo depois, ao receber a notícia de sua morte, chorei muito. E

me veio essa frase, de que eu ficara lhe devendo uma farra. Tomei

um tremendo porre.

Antonio Risério

Poeta, compositor e crítico literário, autor de Fetiche

e Ensaio sobre o texto poético em contexto digital.

Quem primeiro me falou de Leminski foi Gilberto Gil, que me

deu notícias do experimento do Catatau. Na minha primeira

temporada em Curitiba, fizemos — eu e o Nelson Jacobina — um

contato com ele quando passamos a tarde na chácara polaca do

Rafael Greca. O caos nos unia. Ele escreveu um artigo me chamando

de O Olho do Ciclone, que eu reproduzi no meu livro Panfletos da

Nova Era. Depois nos encontramos algumas vezes na casa do Moraes

Moreira, no Rio. Nossa identificação vem de uma verve otimista que

estranhamente contrastava com a visão crítica que tínhamos de

tudo. Tudo que Leminski fazia tinha a marca da paixão. Era um

vulcão, um ativista cultural e um pensador fenomenólogo. Participou

de todas as experiências extremas da nossa geração. Poucos artistas

e escritores tiveram uma atitude tão heróica diante do amor e da

poesia quanto ele.

Jorge Mautner

Músico, compositor e escritor. Autor do livro

Fragmentos de sabonete.

Quando voltei de Curitiba, onde conheci Leminski, trouxe uma

pilha de Catatau comigo e virei um divulgador do livro no Rio de

Janeiro. Mais do que isso, um propagador, evangelizador, um

macaco de auditório do Leminski. Distribuí o livro para as pessoas

certas, falando com entusiasmo da obra. Uma noite, minutos antes

Page 403: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

de um show de Caetano, no Canecão, ficamos sabendo da morte

dele. Por coincidência, o Haroldo de Campos também estava no

camarim quando alguém nos transmitiu a notícia. Foi um horror, um

buraco que se fez no mundo. Paulo Leminski foi a realização da

contribuição milionária de todos os erros de que falava Oswald de

Andrade. Ele encarnava isso. Bebia das fontes originais, tinha uma

cultura e uma sapiência assombrosa, descomunal. Ao mesmo tempo

fumava grandes baseados e se interessava por temas nada

acadêmicos. Desta forma, pulava de um registro para outro com

muita rapidez. Foi quem primeiro me falou de Carl von Clausewitz, o

teórico da guerra. Ele não apenas conhecia a obra como tinha

assimilado os postulados do grande estrategista. Era o seu lado

Golbery, um pouco Glauber Rocha, formado por uma mente

geopolítica. Eu acho que nós, os poetas brasileiros, devemos alguma

coisa ao Paulo Leminski.

Waly Salomão

Poeta, compositor, produtor musical. Autor de Lábia, livro de

poemas. Um dos editores da revista de poesia NAVILOUCA.

Primeira vez que vi o bigodudo, ele agitava um cartaz numa

cerimônia ou debate, não lembro, do saudoso Concurso de Contos do

Paraná. O cartaz só tinha três palavras:

O CONTO

MORREU!

Anos depois, ele elogiaria um conto meu, e eu diria ué, mas

você não pregava que o conto morreu?

— Naquele tempo, mas renasceu. Até eu ando fazendo contos!

Quando ele ainda morava no Pilarzinho, um dia, depois de

muita conversa e bebida, me ofereceu pouso:

— Você vai dormir cercado por pilhas de obra-prima!

Era no sótão, uma cama cercada por pilhas de Catatau, que ele

Page 404: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

ia dando a um e outro:

— E ainda vou ter Catatau por muitos anos!

Onze da manhã. Já tinham ligado três vezes da agência

quando ele chamou um táxi. Alice recomendou:

— Vê se manera, tá? Não bebe no trabalho, Paulo!

— Xacomigo, amor. Prometo!

Mas, no caminho, mandou parar num bar, virou uma vodca

dupla.

— A caminho do trabalho não prometi nada.

A outra casa, também de madeira, tinha uma sala gostosa

onde ele era capaz de ficar horas conversando comigo sobre filosofia

política e a chamada arte militar, único intelectual que conheci a

discutir essas coisas com independência mental. Eu estava sempre

de passagem, a caminho do litoral, então gastávamos a tarde com

Sun-tzu, Lao-tsé, Jesus, Trotski, os anarquistas etcétera.

Começo da tarde, toca o telefone, era uma agência querendo

um slogan, ele anotou os dados. Fim de tarde, toca o telefone, é a

agência querendo o slogan, ele fica procurando o papel das

anotações.

— Pois é, eu ia agorinha mesmo ligar pra vocês, passei a tarde

pensando nesse slogan.

Dá uma olhada nas anotações, solta um suspiro fundo

ganhando tempo, aí fala o slogan. Explica por que, enquanto alguém

anota do outro lado da linha. Desliga.

— Tim-tim — falava assim também quando ouvia música sua

no rádio. — Dinheiro na caixinha!

E voltamos a falar de Ghandi ou de von Klausewitz.

Um dia, perguntei por que não fazia de bate-pronto os pedidos

das agências.

— Ah — passava a mão no bigode. — Se não demorar, eles

Page 405: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

pensam que é fácil, não dão valor.

Outro telefonema. Ele ouviu, suspirando fundo, em seguida só

soltou negativas:

— Não... não... de jeito nenhum... já falei... não quero... não.

Desligou.

— Era um pessoal que ano passado fez um encontro trotskista,

me convidaram, fui lá, falei de Trotsky, até cantei, acharam ótimo.

Agora estão me convidando de novo, mas chega desse brinquedo,

ano passado já brinquei.

Do hotel, liguei, ele falou vou aí, vamos fazer um programa.

Chegou, perguntei qual o programa, ele falou conversar, ué, que

mais? E ficamos conversando horas, aí chegou o César Marquesini,

que só conhecia o polaco de vista, e ficou ouvindo, até que não

agüentou:

— Caras, vocês não param de pensar!

— E nem tudo — Leminski emendou — a gente consegue

expressar!

Fugia de falar de contratos de edição, confessou que assinava

sem ler direito, na compulsão de publicar, publicar, com a urgência

duma visível ansiedade. Seus fundos suspiros pareciam os vapores

duma máquina de criar e esperar reconhecimento. Era apaixonado

pela imprensa cultural e pela divulgação da própria arte,

preocupação que foi se acentuando conforme o reconhecimento foi

aumentando, talvez porque também pressentisse o próprio fim. Na

última vez em que pousei a mão em sua coxa, estava quase só pele e

osso, sugado pela vida que passou a levar DA (Depois de Alice).

Passei a evitar o bigodudo que nos bares falava acima de todas

as vozes, e que estava sempre adiante algumas doses. Ele tinha

também certas mesquinharias que me irritavam e, na última

passagem por Curitiba, liguei, convidou para um bate-papo mas me

esquivei.

Page 406: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Um dia, estou no Rondon Palace Hotel, Porto Velho, Rondônia,

onde fazia um trabalho de propaganda, e eis que ele surge na tela da

televisão do saguão. Fui lá, aumentei o volume:

— Paulo Leminski tinha 44 anos e...

Virei as costas e fui para o serviço a fazer. Tempo depois,

convidam para uma mesa-redonda no Perhapiness, e na minha hora

de falar comecei a chorar e não parava mais. Haroldo de Campos

olhou espantado, quando falei:

— Estar aqui é como estar no velório dele, então eu gostaria de

hoje estar aqui apenas para chorar.

E chorei. E agora, lembrando, torno a chorar. Me pegou de

novo, polaco!

Domingos Pellegrini

Escritor e jornalista. Fazia parte da Cooperativa dos Escritores do

Paraná. Autor dos romances Teria vermelha e Questão de honra.

O traço que mais me comoveu na personalidade do Leminski,

que não conheci integralmente, foi o orgulho de sua metade negra.

Intelectual e artista cultuado ainda em vida, ele poderia muito bem

ter “deixado isso pra lá”, como tanta gente faz. Mas ele sentia prazer

em assumir-se como um afro-polaco-brasileiro — o que se constitui

numa grande injeção de auto-estima em nós todos. Quando lhe

mandei meu livro Islamismo e negritude, ele afirmou, benevolamente,

que foi a melhor coisa que já lera sobre o assunto. E mandou-me um

esboço de “poema/letra” que havia feito: “Oxalá Xangô Ogum/ dai-

me a graça de ser forte/ para. que eu possa ser bom/ para que eu

possa ser um”.

Nei Lopes

Compositor, escritor e bamba de escola de samba. Autor dos livros O

samba na realidade e Islamismo e negritude.

O Paulo Leminski me resgatou junto aos intelectuais, que eu

Page 407: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

sempre considerei pessoas chatas, que dificultam o relacionamento

com os “normais”, tornando muitas vezes a conversa inacessível.

Eles entendem de tudo, sabem de tudo, têm uma visão

particularíssima do mundo etc.... Nunca tive muita simpatia por

intelectuais. Mas com o Paulo era diferente. Ele tinha erudição, tinha

conhecimento mas era muito generoso, conversava da mesma forma

com os mais variados interlocutores, desde uma criança até um

catedrático. Se você não demonstrava conhecimento de um

determinado assunto, não tinha a menor importância. E ouvir suas

explicações era uma delícia. Depois, estive com ele uma noite em São

Paulo, em 1987, e fiquei triste: tomava conhaque a cada quinze

minutos. Eu estava no Rio de Janeiro quando acompanhei a notícia

de sua morte pela televisão. A imagem mostrava ele dançando e

cantando num show dos Titãs. Sinto a maior saudade daquele olhar

doce e das covinhas que se formavam quando ria encabulado. Eu o

amava profundamente.

Lúcia Turnbull

Cantora e compositora. Guitarrista nas bandas de Rita Lee, Gilberto Gil

e Moraes Moreira. Tem uma filha, de 11 anos, chamada Alice em homenagem

à personagem de Lewis Carrol e a Alice Ruiz.

Paulo Leminski foi uma das pessoas mais marcantes na minha

vida. Eu conheci sua poesia aos 17 anos, quando morava em

Londrina, e decidi ir a Curitiba entrevistá-lo. Encontrei-o por acaso

na livraria Ghignone, na Rua das Flores. Me apresentei e ele

imediatamente me convidou para “passar lá em casa mais tarde, e

não se esqueça de levar uma garrafa de vinho”. Telefonei antes para

confirmar o encontro naquela mesma noite. Ele atendeu o telefone

tratando a mim — um total estranho — de “meu nego”, me dando as

coordenadas para I chegar à sua casa. A primeira coisa que percebi

na rua do Leminski foram os números que não obedeciam a

nenhuma seqüência. Era mais ou menos assim: 4, 35, 2749, 815, 76

Page 408: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

etc. Quando cheguei ele estava varrendo a varanda, com as duas

filhas brincando por perto. Logo Alice apareceu e o ambiente ficou

mais animado, as idéias rolando entre fumaças. Ele falou das origens

da poesia, música, contracultura, Bashô, zen. A empatia com ele era

total. Este encontro revelou para mim pistas essenciais sobre “o que

é ser poeta” e “como se vive a poesia”. Quem o conheceu sabe do

privilégio que foi tê-lo conhecido. Leminski, na minha opinião, foi

uma das maiores inteligências, um dos maiores talentos da cultura e

da poesia brasileira e mundial do XX.

Rodrigo Garcia Lopes

Poeta, jornalista e tradutor.

É organizador do livro Sylvia Plath: Poemas.

Leminski é (os poetas não morrem) um poeta multimídia. A sua

poesia antevia a velocidade da internet e a fugacidade desses tempos

modernos. Por isso Leminski não teve nem que se adaptar à

linguagem da TV. Ele já possuía um texto sintético, que é, em tese, o

texto televisivo. Leminski está à frente do seu tempo. É um homem

do século XXI. E estar à frente do seu tempo é sempre um problema.

Leminski é o nosso Prometeu (mesmo que existam outros). Paulo

Leminski, o poeta intrépido, nos trouxe o fogo dos Deuses. Sua

poesia veloz e precisa iluminou nossas gerações. Há muito não se via

um poeta tão eloqüente e apaixonado em terras brasileiras. Leminski

é fiel aos altos ensinamentos da tradição grega: o poeta faz de seu

sangue a sua lira. Tal como Prometeu, Leminski foi sacrificado e seu

fígado virou alimento de abutres. Mas estes morrerão. Leminski não.

O poeta vive. Sua verve está fresca em nosso olhar. É como se

Leminski tivesse partido ainda ontem em uma longa viagem pelo

mundo (do grego: cosmos). Até então nunca tinha saído do Brasil. O

homem poliglota, que traduziu até Bashô, conheceu o planeta azul

sem sair de Curitiba, em sua santa felicidade. Leminski, poeta,

amigo, daonde você estiver agora, fazendo poesia com as letras do

Page 409: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

universo, lhe desejamos feliz jornada.

Renato Barbieri

Cineasta, diretor do documentário Atlântico negro — Na rota dos orixás.

Ex-diretor da produtora de vídeo Olhar Eletrônico e do Jornal de Vanguarda.

O Paulo e a Alice agendaram um dia cheio em Londrina:

lançamentos de livros dele e dela, entrevistas, palestras. Era 1988,

se não me engano.

Saímos de Curitiba na noite anterior, de ônibus. Ele embarcou

com uma garrafa de vodca a tiracolo, que chegaria completamente

vazia ao destino, lá por seis da manhã. Vodca quente, que ele tomou

diretamente do gargalo, da primeira à última gota, já que Leila, Alice

e eu recusamos um gole sequer e não se viu entre os demais

passageiros qualquer intenção de participar da beberagem.

Viagens sempre exaustivas estas de longo percurso em ônibus

convencional, por melhor que possa ser a companhia. Daí que

imaginávamos pelo menos um pequeno descanso na chegada, mas

Leminski, sempre falante e animado, insistiu para continuar a

conversa no apartamento que os anfitriões haviam reservado para ele

no Hotel Bourbon. Ali, em poucos minutos, derrotou

sistematicamente tudo que havia de interessante no frigobar,

primeiro as garrafinhas de uísque, depois as de vodca, as de vinho e,

finalmente, as latinhas de cerveja.

Ainda no hotel, e antes que desse 9 horas, quando estava

agendado o primeiro compromisso, apareceram alguns dos anfitriões

e, com eles, os baseados e as carreirinhas que o polaco consumiu

com voracidade e uma naturalidade que impressionavam até os mais

íntimos, como nós.

Enfim, a tal palestra. Ele, sem dar qualquer demonstração de

cansaço ou de que pudesse ter a mente turvada depois de tamanha

extravagância, falou por mais de uma hora, eloqüente como sempre,

marcando pela exatidão das palavras e pela exuberância de gestos.

Page 410: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Encerrada a fala, vieram as perguntas e, quase no final do

debate, uma senhorinha — algo perua, algo tímida — faz a sua

indagação, visivelmente ensaiada:

— É verdade que o senhor escreveu a maior parte de sua obra

sob o efeito de álcool e de drogas pesadas?

Tensão na platéia, especialmente entre os anfitriões. Mas o

polaco, impassível, fulminou a senhorinha com aquele seu olhar

penetrante:

— Jamais! Eu não bebo. Quando muito aceito uma taça de

vinho na noite de Natal.

Jaime Lechinski

Jornalista e assessor de comunicação do gov. Jaime Lerner.

Leminski. Como um bom “polaco”, era rápido e matreiro; pela

raiz de crioulo, não facilitava, não deixava por pouco. E eu, libriano

duplo, com vivência de quem morou no mato, e fala pelo papel e

lápis, fiz o que Leminski mais gostava: ser provocado com vara curta,

lancei desenhos que puxaram poemas e aí virou um duelo à parte,

chamado winterverno. A cada novo desenho via-se a sobrancelha

direita elevada, provocando um sinal do cérebro para a mão, que

com os dedos armados, me deixava na espectativa no seu direito de

resposta. No dia seguinte se invertia, com o semblante orgulhoso de

quem chegou antes e provocou um novo desafio. Às vezes vindo via

telefone da TV Bandeirantes num intervalo do programa Jornal de

Vanguarda.

Vangloriava-se ao pegar o violão e cantar “Verdura”, dizendo

que letra e música eram suas e que Caetano dificilmente gravava

algo que não tivesse sua intervenção. Citava Caetano com respeito

pela inteligência, dizendo que transformava letras simples em coisas

de valor.

Os fatos, para Leminski, poderiam ter qualquer peso, mas

deveriam conter criação e humor. Imagens eram pescadas pelo poeta

Page 411: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

que vivia o que escrevia, com informação e um domínio

enciclopédico; quem estava ao seu lado, criava ou saía fora. Não

tinha escrúpulos de, num lugar público, afastar com firmeza os

chatos.

À vista da porta da cozinha, na casa da rua Duque de Caxias,

vislumbrava-se um quadro admirado por ele. Um pinheiro araucária

e uma antena parabólica sobrepostos, imagem forte para quem se

considerava como um pinheiro que não se transplanta (citando a

volta de sua estada em São Paulo), e adorava comunicação. Ali,

ainda tinha a sensibilidade de apreciar o quintal, o limoeiro e cuidar

das rosas no jardim.

Enganam-se os ditos “amigos”, que até publicam livros

póstumos, declarando aos jornais à época de sua morte, como se

esta tivesse sido decorrente da sua vivência com drogas. Convivemos

bastante próximos nos seus dois últimos anos de vida, e sei que o

álcool — a vodca, mais precisamente — é que foi o problema, e não

as drogas. Ao menos aqui podemos usar o forte poema de

Maiakovski, “é melhor morrer de vodca, do que de tédio”.

João Virmond (Suplicy Neto)

Arquiteto, artista plástico, parceiro de Leminski no livro Wintervemo.

Paulo Leminski é o poeta mais intenso que já conheci. Jamais

encontrei outro que “respirasse” poesia todo o tempo. Está lá,

inscrito como um obelisco, logo no seu segundo livro: “vai vir o dia/

quando tudo que eu diga/ seja poesia”. Quem o conheceu de perto

sabe que ele transformou esses versos em lema para a sua própria

vida. Talvez por esse motivo ele tinha dificuldade (ou um certo des-

prezo, sabe-se lá!) em lidar com coisas práticas. Bobagens

mundanas, como abrir uma conta bancária (lembram dos versos

“fiquem vocês com a realidade/esse baixo astral/em que tudo entra

pelo cano”?). Então. Quando começou a trabalhar no Jornal de

Vanguarda, da TV Bandeirantes, ele pediu para eu acompanhá-lo a

Page 412: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

uma agência do Banco Nacional, na avenida Angélica. Precisava abrir

uma conta para receber o salário mensal. Foi hilário. A gerente pedia

a carteira de identidade e ele não tinha. O CIC — não tinha.

Comprovante de residência — necas. “Mas como é possível abrir uma

conta, se o senhor não tem identidade?”, dizia a gerente. “Nunca me

interessei por essas bobagens freudianas”, ele se divertia. Passamos

meia hora dentro do banco, Leminski disse alguns poemas para a

gerente e saiu como tinha entrado — sem nenhuma conta. Quem

sabe para se defender da “realidade, esse baixo astral”, ele mantinha

um admirável senso de humor. E possuía o raciocínio mais rápido do

Oeste. Lembro de uma tarde em que estávamos passeando na praça

Buenos Aires, em Higienópolis — bairro paulistano de judeus ricos, e

demos de cara com uma madame levando seu poodle na coleira. Não

sei se devido a algum pó antipulgas, o cachorro estava todo colorido,

com faixas azuis, vermelhas, lilases e verdes no pêlo. Quando vi

aquilo, comentei, quase sem pensar: “Nossa, olha aquele poodle,

parece o Pepeu Gomes.” Leminski soltou uma baita gargalhada. A

madame, imediatamente, colocou seu cachorrinho embaixo do braço

e disse: “Vamos embora que aqui só tem gente ignorante”. Muito

sério, Leminski retrucou: “Mas ele está fazendo um elogio ao seu

cãozinho. A senhora não sabe quem é Pepeu Gomes, não?” Lembro

bem quando, num sábado, cheguei na casa da cantora Fortuna,

onde ele estava hospedado, e vi uma porção de poemas empilhados

no tatami da sala. Ele me disse: “Pin, leia aí e assinale os melhores,

aqueles que baterem fundo.” Era o livro La Vie en Close, finalizado.

Fiquei pasmo com a quantidade de poemas que falavam de dor, que

substituíam o bom humor da fase inicial da sua poesia por um tom

mais grave e, em certo sentido, muito mais denso. Disse isso a ele,

que não me respondeu nada. Um dos poemas, em especial, me

impressionou muito: “Sintonia para pressa e presságio”. O final: “Eis

a voz, eis o deus, eis a fala,/ eis que a luz se acendeu na casa/ e não

cabe mais na sala”. Senti algo estranho na leitura. Alguns meses

Page 413: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

depois eu entendi. “Pressa e presságio”. Leminski estava consciente

de que tinha pouco tempo. E até isso ele transformou em poesia.

Ademir Assunção, o Pinduca

Poeta e jornalista. Autor dos livros LSD Nô (poesia) e

A máquina peludo e Cinemitologias (prosa).

Hospedado em minha casa em Curitiba, no final dos anos 80

(nesta época ele morava em São Paulo, na casa da Fortuna),

Leminski ficou amigo do chinês de uma pastelaria embaixo do

prédio, com quem conversava todas as manhãs ao sair para comprar

pão. Tentava falar com o chinês, que viera de Cantão, em mandarim,

e normalmente chegava atrasado, com o pacote de pão amassado

debaixo do braço, desistindo de tomar café conosco, pois já ficara

freguês de um engordurado bolinho de carne da pastelaria. Foi por

esses tempos que discutimos muito sobre cultura hispano-

americana, literatura e revolução — a propósito de uma tradução de

Guillermo Cabrera Infante que eu estava fazendo para a Cia. das

Letras, e que ele gostava de ler durante as tardes. Ele estava um

pouco over, saía todas as noites e nem víamos quando voltava.

Mesmo arriscando ouvir alguma desconversa aborrecida dele, disse-

lhe que achava que ele precisava parar um pouco, talvez ir para a

chácara de algum amigo, ficar longe da cidade, voltar a escrever,

enfim, tentar frear aquela vertigem suicida. Surpreendentemente, ele

não fez graça nem torceu o nariz fingindo não ter ouvido. Depois de

um tempo em silêncio, disse, com uma calma aterradora, que se

manteria conscientemente nesse mesmo rumo, com “a dignidade

suprema de um navio perdendo a rota”, pois assim se sentia mais

vivo, mais criativo, e que a lucidez da sobriedade agora tornaria o

mundo opaco para ele. Além dos traços mais evidentes de sua

personalidade, como a transbordante criatividade e a generosidade

(típica, aliás, dos grandes artistas), lembro-me de seu bom humor e

de uma paradoxal fragilidade, revelados através de uma poderosa e

Page 414: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

romântica imaginação poética, que lembra a “vivência oblíqua pela

imagem” de que falava Lezama Lima, e de uma atitude muito

particular que ele assumia nos momentos mais adversos.

Josely Viana Batista

Poeta e tradutora. Fazia parte da equipe do jornal Nicolau.

Paulo não usava cuecas. Só vim a saber disso numa entrevista

em 1988, quando, sem que lhe fosse perguntado, disse que soltava a

jeans no corpo em pêlo. Mas, depois, ele queria fazer crer a Alice Ruiz

que eu poderia ter essa informação com conhecimento de causa.

Fofoqueiro? Fanfarrrão? Machista? Não houve oportunidade de

tomar satisfações, restando a Alice e eu, numa mesa de bar, depois

dos pratos limpos, rir das fantasias do nosso amigo. Mal sabia ele

que entre amigas nada é secreto. Mas Alice guardou um segredo, sim

— e aí a história (quem sabe) poderia ser outra: numa outra mesa,

em outro bar, e em tempo bem recente, ela confidenciou-me que o

Paulo era um homem superlativo na cama.

Em 1988, a inexistente cueca até me passou desapercebida na

entrevista. Magro por demais, dentes estragados, apenas um brilho

febril nos olhos denotando vontade de viver, ele retornava de São

Paulo a Curitiba. E uma frase sua, na época, me chamou atenção e

até hoje me emociona: “Pinheiro não se transplanta”, disse a

propósito de nunca ter saído de Curitiba. A força e imponência da

árvore não combinava com aquele Paulo Leminski de então, tão frágil

que precisava fantasiar uma irresistível atração sobre as mulheres.

Contudo, a figura do pinheiro é familiar à imagem do poeta. Os dois

fazem falta e sentido.

Adélia Maria Lopes

Jornalista, ex-colega de Leminski n’O Estado do Paraná.

A convivência com Leminski, naqueles oito meses em que ele

morou em minha casa, me foi muito estimulante. Mais do que isso,

Page 415: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

revolucionária. Eu despertei para a poesia e comecei a compor. Ele

era meu amigo e me fez voltar para dentro de mim. Eu, que renegava

as minhas próprias origens, passei a cantar músicas do meu

universo arquetípico, do mundo árabe-judaico, do Mediterrâneo.

Adotei uma nova linguagem musical, no dialeto ladino, próprio das

comunidades sefaraditas, de raízes medievais. A morte dele

representou o fim de um processo na minha vida. Foi como uma

bênção. Quando percebeu que ia embora, Leminski foi embora

mesmo, suavemente, para Curitiba, com a Berenice.

Fortuna

Cantora e compositora. Diretora artística do Festival Todos os Cantos

do Mundo. Colaboradora da rádio Eldorado FM para assuntos de world music.

Vivi com Paulo Leminski os dois últimos anos de sua vida. Foi

muito pouco tempo para conhecer o homem, o artista e o intelectual,

sobretudo porque nosso relacionamento estava baseado na categoria

de gênero. Fomos apenas um homem e uma mulher completamente

apaixonados no final da década de 80. É claro que pude vislumbrar

seu mundo, as idéias, os amigos, as dores, os sonhos. O que havia,

foi partilhado. Reciprocamente. Mas sua obra, a não ser aquela in

progress, confesso, só vim conhecer após sua morte, durante o longo

período de luto que se abateu sobre mim, ou me abateu, dá na

mesma.

Depois dos poemas, das crônicas, traduções e biografias,

resolvi encarar o Catatau, aquele livro que ele amava feito a um filho.

Livro que lhe consumira uma década de trabalho e que lhe deixara,

segundo dizia, livre, descomprometido. Chamou minha atenção o

fato de a epígrafe do Catatau ser citação da própria obra. Lá está (na

edição original): “... usque consumatio doloris legendi”. Bem que se

diz que o diabo mora nos detalhes. Fui investigar e encontrei na

página 167 a epígrafe como parte de uma frase que por sua vez faz

parte de uma oração, na realidade uma inscrição marmórea. A

Page 416: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

questão é que ela estava em latim e eu, além do parco crédito da

faculdade de direito, não tinha latim para gastar. Por outro lado,

naquele momento, eu tampouco tinha vontade de procurar, falar ou

sequer ver quem quer que fosse gente, mesmo que pudesse me

auxiliar. Mas eu queria entender, mesmo porque, segundo o Aurélio,

epigrafar é denominar; epígrafe é o título que serve de tema ao

assunto, e epigrafia é também a decifração de escrita antiga em

material que é ao mesmo tempo uma inscrição no mármore, com

todo o simbolismo funéreo desta pedra. Tinha que ser uma chave

para a compreensão de alguma coisa.

Lancei-me ao desafio e me vi, por muito tempo, rodeada de

dicionários etimológicos, latinos, franceses e outros quetais. A

inscrição, que contém a epígrafe, é a seguinte:

“HIC FUIT LAPIS. In locum suum se restituebat, ad seipsum

redens. Et quasi peregrinos per pláginas pertransire usque

consumatio doloris jussit, quod invenies intra? Ipse et simul quam

antea: oculum adendis susceptis, sine tirocinare nisi mittere!”

A tradução à qual cheguei foi esta:

“Isto escrevi para a pedra da sepultura. Neste lugar estou e

voltaria, se soubesse voltar. E como um estranho iria além das

páginas que escrevi, até consumar as dores que eternizei. Estou

purificado, acabou-se o tormento! Concluída a solitária obra, o que

fará o rei em sua morte? O mesmo e do mesmo modo que antes; ver

a água e o sangue que correm da ferida, transformaram-se num

hipnótico, delicioso e definitivo pensamento extraordinário, colossal e

poderoso! Segui este caminho sem pensar, apenas segui!”

Irônico, trágico, autoconfiante até as raias da megalomania.

Com certeza, atributos do homem que amei. Valho-me de suas

próprias diretivas — agregadas à segunda edição da obra, em

“Quinze pontos nos iis”, em especial o de nº 7, onde recomenda

atenção para “as passagens do sentido para o nonsense, do suspense

para o pressentimento” — para concluir que, além de outros

Page 417: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

significados, encontrei ali seu epitáfio. Que torno público agora.

Berenice Mendes

Cineasta. Autora do média-metragem Vítimas da vitória.

Page 418: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

APÊNDICES

1.

Anos mais tarde, em fevereiro de 1987, Leminski receberia uma

carta assinada por um dos membros da comissão julgadora do

Concurso, explicando os acontecimentos daquele dia:

Meu caro Paulo Leminski:

Apesar de ter ido inúmeras vezes a Curitiba, a capital brasileira

do conto, nunca tive o prazer de conhecê-lo. (...)

Como membro daquela comissão, conservei o original do conto

“Descartes com lentes” (no caso, uma cópia) comigo durante anos e

deve estar ainda entre meus papéis, porque desejava identificar o

autor.

Votei em “Descartes” para inclusão entre os 5 premiados e

tentei até o último instante que o fosse. Infelizmente a comissão ficou

restrita a 4 nomes, porque o Léo Gilson Ribeiro estava internado. E

no dia da entrega do prêmio, chega um telegrama do Léo votando em

“Descartes” para o 1º lugar. Mas tudo errado: o número estava certo,

mas ele identificava o pseudônimo “Kurt” (havia um Kurt muito

ruim) e não “Kung” (não era esse?).

Ele não indicou o título de nenhum conto, o que teria resolvido.

Só eu tenho certeza de que era o Kung.

Tentei falar pelo telefone com o Léo no hospital, mas foi

impossível. (...)

Era um espinho que estava na minha garganta e eu gostaria de

tirá-lo. O prêmio, é claro, não fez falta a você. Mas o fato é que era

Page 419: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

seu.

Aceite o meu grande abraço.

Fausto Cunha

2.

Poema com aparato persa

uma vespa persa me cobre de flechas

melhoral

combateremos à sombra

e água fresca de mescal

a vespa persa

presa no espaço

o osso exposto

a aranha-niemeyer

com suas brasílias provisórias

carantonha maia

digamos

uma casa branca

poliedro

com uma só janela

olho-vitral

a máscara-nô

cobre a estrelas-vásper

no chafariz-piscina

polvos pulsam

sob a luz de gás-morfina

sim

ou neon?

a fruta-pão

Page 420: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

a flauta-de-pan

furta-cor

e furta-som

a mesa farta e lauta

tecnicolor

no ar de sal de fruta

no ar de som de flauta

férias em hiroshima

totem,

ópio

ego

o coração é uma seda

o olho na labareda

era no anel

o sol — a semprepedra

no canal —

o mesmo cão

o fogo dos outros

queima ao longe

acendo a pira

com um pão em chamas

no desabotoar da manhã

cento e dezoito mil pássaros

entoam juntos

o hino nacional

até dar cãimbra

o deus-ra ri

da nota ré

o homem-rã ri

da letra rô

a porta inteira

era uma chave de si mesma

Page 421: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

um rock

em língua d’oc

a pupila na papoula

o olho madrepérola

o júbilo na esfera

sangue de cristo na ampola

explosão e pavão de primavera

o nervo-polvo

o polvo

rosa

em polvorosa

um polvo no pulmão

a mão

o pulso

a pulsação

o ar tine

viver arde

bichos do pau podre

comem o olho

da estátua grega

na vênus de milo

os mamilos são os olhos

da mona lisa

o seio

é um soco com luva de box

o poder estupendo das ruas

a bomba-câncer

não encrenca

o vento enfuna a mente

como a um galo

de um catavento em chamas

a rua é festa

Page 422: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

a casa dos vivos

está cheia de frutas

cercada de flores

e de um brinquedo incompreensível

de crianças loucas

uma frase numa freqüência

exaure a força perversa dos rádios

os deuses estão aqui

a raça dança

na ampulheta do tempo

escorrem sais de anfetamina

o olho é raio-X

a mente emite seus discos voadores

e nas farmácias feéricas

borbulha o polén dos tóxicos

o coração sob um holofote

derrete em doces frutas brinquedos

um menino cruza a rua

assobiando uma canção hitita

o carro dos bombeiros

em chamas

atravessa a cidade

esvoaçam no vento

múmias de faraós

caranguejos abandonam

suas armaduras danificadas

o nó perfeito das forças

é feito por escoteiros com dentes

de gilete

o dia espirra

de uma fresta

flecha em festa

Page 423: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

na testa dessa fera

ouro incenso e mirra

no nariz da besta

espirra e vomita

a tara das aves

por um sol bom

o belo berro

duma ave magra

oásis é tudo que o neon ilumina

um pão selvagem

na boca que canta

um raio atinge o sol

explode em frutas borboletas

e sombrinhas de verão

foguetes pirilampos e balões

para os meninos de são joão.

(Publicado no Jornal do Escritor em outubro de 1969)

3.

Outros verbetes do Indicionário, que Leminski publicou com a

recomendação: “Atenção para a pronúncia — Pronuncia-se o

malaquês pegando o que ainda resta do português, amolecendo o

meio das frases e endurecendo as pontas. Requer prática. Deve-se

ter o máximo de cuidado de não inverter a equação (amolecer as

pontas e endurecer o final) porque quem fala assim é bicha.”

Aponte. Encontro marcado. O mancão dispensa aponte: é um vacilo

(ver).

Atividade. Manobras estratégicas, exigindo alerta, lucidez e

Page 424: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

discrição.

Bandeira. Dar bandeira = desbandeirar. Abrir o jogo expondo-se a

quem não tem nada a ver. Como remédio recomenda-se

cabreiragem.

Batalha. Forma básica de desempenho.

Bater. Levar ao conhecimento dos interessados.

Bobeira. Zonzeira desgovernada. Vai da desatenção ao descuido e

daí à bandeira.

Bobo. Coração ou/e relógio que trabalha de graça. Tem pegada.

Boca. Mocó caído.

Bom. Da boca. Não se cria. O ruim com o bom da boca é a boca

(vide).

Cabreiro. Morreu de velho.

Cachanga. Também cafifa. Para onde não se leva desaforo. É onde

vagau se joga.

Cair do cavalo. Provincianismo gaúcho, dadas as alusões eqüestres.

No Rio, dizem “sambar”, “dançar”, para essa desagradável

ocorrência. Ser preso.

Cara. Um tempo atrás. O contrário é continuação. Livrá-la é receber

ajuda (ver presença).

Chulé. Não é flor que se cheire. É o pária, o pilantra, vacilão, só

aparecendo onde não é chamado. Em províncias onde se fala o

tupi, Chué.

Chutar e caminhar. “Caminhar” é voz passiva de “chutar”. Te chuto

em dez pedros. Você caminha em igual quantia. Ligados a uma

falsa noção de adiantar o lado (ver).

Colher de chá. Muito pedida. Várias ao dia são o arrego. A sigla é

CC.

Continuação. O que vem depois. Não tem muita importância. Tem

volta (vide).

Crivo. Também giz. Cigarro. No vagau, não dá câncer. Não dá tempo

de dar.

Page 425: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Crocodilagem. Também crocô. Não se faz, é crime — que nem folga e

vacilo.

Cucuia. Aonde tem ido muita gente boa. Não faz parte da ONU nem

dos roteiros turísticos.

Curtir. O português está avacalhando com a palavra. Levar a

bobagem a sério. Dar pra entender. Os outros sempre acharão

que não dá. Não dê muito a entender. Não há muito a entender

ou ser entendido.

Desbaratinar. Fazer de conta que não tem nada que ver.

Descolar. Fazer se criar (ver piar).

Desempenho. Exercício das funções. O maior é o pinote (ver).

Dispensa. Sem essa. Deixar falando sozinho. Rompimento de

relações. Se desfazer.

Em cima. Com a gente, na hora. Babilaca, berro, coisas.

Empapuçar. Encher o saco e outras medidas de capacidade.

Escrache. Qualquer coisa pode ser um tremendo escrache.

Federal. De lascar. “Bode federal” é locução clássica para “morte”.

Finalidade. Estado de quem está a fim.

Folga. Cama, comida e roupa lavada & deitar e rolar. Abuso de

confiança.

Fajuto. De São Paulo. Produto agrícola ou industrial que não dá prá

entender. Também: frajuto, frajute, farjuto ou fajo.

Grupo. Louvável quando tem fins louváveis, por ex., adiantar teu

lado.

Japonês. Tou muito japonês. Zumbi. Louco, com as butucas em luz

baixa.

Lado. Também ladosa. Interesse pessoal. Adiantar-se ou atrasar-se

o lado.

Limpeza. Opõe-se a sujeira. Há cada vez menos sujeira e mais

limpeza.

Máquina. O berro da lei.

Mina. Ganha-se no papo. As que trampam nas bocas são limpeza.

Page 426: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Dependendo da folga, podem apanhar várias vezes ao dia.

Minha. Onde meu lado começa.

Necessa. Quando já faz uma cara. Birita é benéfica aliviando os

sintomas.

Neurose. Estados agudos da necessa. John Lennon — “Cold

Turkey”. A birita, nesse caso, não tem nada que ver. No dizer de

ilustre malaco: “é quando a gente fica na expectativa e não se

define a situação”.

Mocó. A utopia do esconderijo perfeito. Pintou sujeira, cai e vira

boca (ver).

Moringa. O armazém de bobagens, o besteirômetro. É onde se dão

as encucações, as tacanhas e as sugestas.

Peça. Pessoa física, vagau ou alienígena.

Pedido. Marcado para morrer. Locução: pedir pra morrer — perder

o rebolado.

Perigo. Nas últimas. Também periguete.

Peteca. Disposição de ânimo ou desânimo. Baixa ou alta.

Piar. Pintar no lance, aparecer.

Pitanga. Estes que a terra há de comer. Vivem debaixo de colírio

Moura Brasil.

Presença. Livra a cara.

Quebrada. Geografia. O pinote se dá nas quebradas.

Rango. Fome natural ou provocada.

Responsa — bilidade. O que faz do vagau um irresponsável. Refere-

se a apontos.

Revertere. Também rebodosa, rebô. Ressaca; volta. As

conseqüências.

Sacar. É entender, saca? Trouxa diz: entendeu? Mino incrementado

diz: morou? Vagau saca. Frase malaquesa típica começa com

PODE CRER e termina com SACA?

Sugesta — Sugestiva palavra que indica a natureza sugestionável do

vagau. Estado mental sem bases na realidade. Filosofia, ciência,

Page 427: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

História, são sugestas.

Sujeira — Está por fora, o trouxa. Tem ligações (sujas) com

elementos (sujos) não identificados com os interesses da

comunidade malaquesa (limpeza). Sin.: crocô, vacilo, bandeira,

chulé e xarope.

Tacanha. Pensamento negativo. Kafka só entrava em tacanha, saca?

Toque. Impressão momentânea que o mundo acabou e a gente

começa agora. Satori.

Trampo. Fonte de rendas, trabalho não tem nada a ver.

Vacilo. Crocodilagem venial. É mais que folga e menos que

entregação.

Volta. O destino. A vingança. O karma. Vai ter volta.

Xarope. Pra lá de louco, não se entende mais. Sintomas: a) rictus

pervitínicos; b) esquizofrenia anfetamínica; c) demência

canábica. Sempre na dele, só dá a dele.

Xinfra. Ou chinfra. Tremenda xinfra = zoeira.

Zonzeira. Estado natural do vagau. Zoeira. Zazoeira.

4.

Carta a Augusto de Campos, escrita a 30 de dezembro de 1970,

do Rio de Janeiro (respeitando-se grafia e pontuações originais):

“januarius februarius marxius aprilis maius junius julius

augustus Campi,

carta não resolve, distingo: informação — TV cine foto

comunicação — cara a cara a festa o udestoque. hoje: muita

info e pouca comu.

meu diálogo mental com você/vocês é corrente corriqueira.

Noigandres é o único olho que me acompanha criando vê pensando

Page 428: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

me julga sartreanamente. tento praticar uma radicalidade quixotesca

porq me reporto ao armed look arm lock de você. não é pequena

vaidade minha não querer louvores de novatos e amadores. Dos

livros que tenho, trouxe os que não posso passar sem. Dicionário de

Rimas

Analógico

Gramáticas. Prossigo meu trabalho de formiga das letras

treinando para o grande salto: cataqual? Continuo extraindo as

séries estocásti-cas (estoxicásticas, melhor melhorando) da língua,

olho a fala na rua. manejo Sartre, husserl. não durmo um dia sem

massacrar literati.

o jornal do escritor é vaidade das vaidades tudo vaidade,

publico o que eu quero, quero publicar o catatau, louzeiro pode, tem

relações, minha hora chega, e minha hora vai ser nossa hora.

a situação para mim: o momento não permite coisas, certas

coisas me permitem fazer outras coisas, aquelas coisas, me dá uma

coisa aqui, outra ali. a literatura é a luz das estrelas há milenios

fanadas. Mas se não é mais arte ainda é um meio. não é fim mais.

como meio, permite dizer certas coisas para um público limitado e

determinado, os nucléolos de mandarins, os comedores de livros são

seus produtores, coprófagos e lotófagos. uso o canal, você sabe: eu

sou caipira, me assusta a massa media assustadora, no livro, por

pequeno e equívoco que seja, sempre são os vocábulos de uma

consciência individual, ou uma equipe lúcida e não posta a serviço

das grandes estruturas massi-ficantes. época houve em q eu me cri

comunista, hoje acho que pound tem razão contra mussolini.

Mcluhan; artistas, antenas, usam instrumental fora de contexto pois

são os únicos a vir a entender o contexto, o texto é o contracontexto.

o oposto de envolvimento é livro, o desenvolvimento uma oficina e

dois caras editam um livro, o livro é livre, à margem de mallarmé,

viva a malacomargem, dai-me um exílio e eu vos darei um exercício.

nós estamos nos olhando, olha esse olhar,

Page 429: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

olha esse olhar!

um abração de leminski & alice”

5.

Trecho da carta ao irmão Pedro, de 30 de agosto de 1973,

falando da seqüência do filme Kung Fu:

“Imagine: o monge é mandado para o mundo quando está

senhor de todos os truques, SÓ QUE ELE VAI PARAR NO OESTE

AMERICANO DO BANGUEBANGUE!!! Uma cena inesquecível foi

quando ele e uma moça toda perseguida de desgraças são cercados

por uma meia dúzia de índios no matão & os índios não atacam de

noite, vão tirar uma pestana antes do amanhecer confiando nos seus

ouvidos de coiote que ninguém poderia chegar até eles no alto da

colina sem fazer um mínimo barulho, e afinal, só tinha um chinês e

uma mulher lá embaixo, um pouco antes do amanhecer está o

chinês ajoelhado a dois passos da cabeça do índio chefe do bando &

imagine a cara de espanto do bugre, não entendendo nada: como é

que alguém podia chegar até ali, sem ter feito nenhum ruído que

acordasse alguém: o índio deve ter pensado que a segurança nesta

tribo nunca esteve tão ruim! O chinês (que é americano com cara

meio orientalizada, algo como Flint) se põe de costas para o sol

nascente e aparece assim à indiada como um ser sobrenatural & os

6 guerreiros alinham a dez passos, o chinês firme em pé na frente

dos cavalos, um índio investe galopando, lança em riste. o chinês em

postura, meio karatê, meio aikidô, meio de konfu e solta um kiai. em

cima do golpe, desvia, acerta um pontapé de lado no cavalo e estica

um ukemi, caindo de pé e em postura, nova investida: o chinês tira a

lança da mão do cavaleiro numa técnica de bojitsu (luta do bastão)

Page 430: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

que ele treinava no mosteiro, derrubando-o do cavalo & investem

dois agora: usando o bastão como lança e dando ukemis para todos

os lados ele derruba mais dois: os índios caídos avançam de lança e

de faca. e foi uma chuva de maegeris, porradas de bastão e kiais

para todo lado & os índios pararam, ele de pé encarando, o chefe

arrisca ainda atirar uma lança que nosso herói desvia com o corpo e

o bastão, foi demais para a paciência do cheyenne. eles levantam os

companheiros e saem devagar, o chinês lá atrás parado, encarando,

vai haver um episódio da série cada mês. o maior barato que eu já vi

na TV.”

6.

TROTSKI

“Depois da desilusão-decepção do sonho soviético (o suicídio de

Maiakóvski é um buraco de chumbo na cabeça de todos nós), a

realidade internacional da ‘entente’ URSS/USA (Elizabeth Taylor x

Richard Bur-ton), a invasão pura e simples da Tchecoslováquia (e a

morte da primavera em Praga) vale a incursão dos fuzileiros navais

da OEA na Nicarágua, a ação da CIA no Chile de Allende, a disputa

de posições militares no Oriente Médio e no Mediterrâneo.

A programação de ditaduras militares na América Latina (só o

Exército e o Clero sendo castas organizadas, o Clero, logicamente, de

esquerda) para garantir a estabilidade social e institucional, em prol

da segurança dos investimentos privados estrangeiros em nossas

fontes de matéria-prima (folclore e macumba: nós também queremos

fazer rock). Tecnologia de segundo grau, alienação e censura. Nossos

senhores têm poder bastante para mandar pelos ares o terceiro

planeta depois do sol. Estamos em face de um poder planetário,

branco, senhor do Bem e do Mal, patrão das consciências porque

Page 431: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

regente de todas as tecnologias; o bloco URSS-USA.

Cria a lógica para qualquer máfia matar a quem destoa,

discorda ou desafina no “coro dos contentes”.

A hierarquia dos insetos sociais (abelhas, formigas) avança

sobre os acampamentos dos ciclopes.

Se um ser do espaço viesse à terra, chegaria à conclusão que

os terráqueos mais próximos da perfeição, o supra-sumo da perfeição

da vida na terra, seriam os insetos sociais com suas brasílias levy-

straus-sianas de perfeição de organização social.

Somos talvez os últimos a notar. A sermos notados.

Isto é uma garrafa. Isto é, um bilhete dentro de uma garrafa.

p.leminski”

7.

Carta de Leminski a Antonio Risério, 1975:

“Companheiro:

augusto me mandou teu endereço e eu estou te chegando os

últimos produtos da minha atuação neste ralo contexto curitibano.

só consegui me manter incontaminado pela praga de contos

que grassa por aqui (o literatismo de Curitiba só encontra paralelo

em Belo Horizonte) foi graças a uma ponte mágica e epistolar que

mantenho há anos com o pessoal concreto, em particular, augusto, a

quem devo grande parte da formação de meu paladar e

características do meu fazer.

em todos esses anos, poucas publicações brasileiras me deram

tanta alegria quanto o teu CÓDIGO, de radicalidade exemplar, Bahia

com régua e compasso, exercício cartesiano no trópico.

aqui, o frio etílico e anfetamínico retarda as informações,

recolhe os ânimos e gera esse mineiro sem mistério que é o

Page 432: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

curitibano.

a única saída estratégica é um retiro permanente para dentro

do projeto, e é — há oito anos, o que tenho feito, vivendo vida de

avestruz, com a cara metida dentro do meu CATATAU. (...)

Vê se concorda com a minha lista:

São Paulo = anfetamínico

Rio = lisérgico (sujeito a bads)

Bahia = canábica

Curitiba (Belo Horizonte e províncias) = etílica

qual não foi a minha surpresa quando constatei a situação a

que chamei POROROCA (quod vide) = a ponte arco-íris São Paulo-

Bahia.

me interessa muito esse atrito entre visceralidade tropical e

geometria cartesiana. é muito provável que seja esse o PROBLEMA

nacional.

muito interessante, em todo caso, esse processo através do

qual a gente fica sabendo da existência e do trabalho uns dos outros

sem nos cruzarmos. Tenho muito treino no diálogo com ausentes,

chega-se, dessa forma, a criar um super-ego para efeitos de atuação,

eu sabendo que todo mundo está mandando brasa, fazendo pressão

na performance.

muito interessado nisso que parece ser a post-literatura entre

nós: textos/semioses, malditos a todos os títulos.

traços: estruturas concretas + pirações psicodélicas + desvarios

tropicais + sei lá o que. localização: entre São Paulo & Bahia.

característica: música no centro.

o trabalho de gil, caetano, gal, macalé, duda, capinan, wally

(não esquecer o rock Mutantes/Rita Lee, via Duprat, mais um

casamento sul/norte, eletrônica/Amaralina.

Rita: “Serginho e Arnaldo deram dicas de guita para Gil e

aprendemos com os baianos a musicalidade da língua portuguesa”).

o “Troço” do wally — gosto muito. Irregular, cheio de altos e

Page 433: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

baixos, montanha, não russa, mas árabe. Mascate da informação

nova, barra, garra, farra, na marra.

letras de música com os maiores lances de texto.

mas esses produtos de mercado se alimentam em solo rico:

essa proliferação de textos underground (Flor do Mal, Presença,

Bondinho, Rolling Stones, Verbo, que sei mais eu!), que acabaram

vandergrounde, essa síntese digna de figurar nas zoologias

fantásticas de Borges. Centauros, sereias, seres ambíguos e

andróginos, entre Bahia e São Paulo. Quem diria! Quem diria!!! Para

o entusiasmo baiano, talvez essa pontuação seja insuficiente,

lembrando que Castro Alves terminava um verso, pontuando:

!?!...

?!!...

perguntar a gil como se lê/diz uma frase terminando em!?!?...

é muita emoção para quem vive neste frio verde, cercado de

mato.

uma coisa nova, muito grande, está pintando, só não temos

certeza quanto à intensidade: rala em relação ao trabalho já feito?

pedra em direção ao futuro?

como diz o maciel, pelo menos, durante, a gente está curtindo,

não dá para esquecer nada.

quando augusto virou para a Bahia, tive uma crise de

compreensão, não faço charme, acabando por entender.

o esquerdismo dos anos sessenta encalacrou. fica de

background. propriedade coletiva dos bens de produção, da

produção, aí consiste, começa e acaba meu credo político, mas há

muitos outros ingredientes mais. 64 mudou as direções do barato,

viva torquato. a geração tem partes com Rimbaud.

Mallarmé vai mais longe, conduz o trio elétrico (augusto,

haroldo, ronaldo, zé-lino) e sai na corrente sangüínea.

quando brasileiro pensar em rigor, vai ter que olhar para o

Page 434: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

laboratório torre de marfim dos concretos paulistas.

detesto toda forma artificial de contato/comunicação (tipo

carta, telefonema, telex, xerox), mas isto não é uma mensagem, é

uma tangência uma coincidência um atrito e sobretudo um abraço

do

Leminski

8.

O Mestre Ykkyú e o Eremita

“Certa tarde de outono, o Mestre Ikkyú vagueava pelos campos,

levando consigo uma flauta de bambu. Um eremita, ao vê-lo,

perguntou-lhe:

— Quem és tu?

— Sou um peregrino que segue para onde sopra o vento.

Tencionando pô-lo em apuros, o eremita perguntou:

— E quando o vento não sopra?

— Então sopro eu — respondeu Ikkyú, começando a soprar

sua flauta.”

9.

Poemas em parceria com Solda, a partir da técnica “Eu começo, você

termina”:

EU QUERO ME AFOGAR

NA SALMOURA

DORMIR

NA MANGEDOURA

Page 435: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

SER UM MONGE

DE OUTRORA

O DIA INTEIRO

FAZENDO HORA

CORTAR O MAL COM TESOURA

EU QUERO O MAL MAL QUERO

E TUDO ME APAVORA

O POVO

O POLVO

A PÓLVORA

TUDO ENFIM

QUE MEU CAVALO SENTE

QUANDO ME SENTA

ESPORA

(Leminski/Solda 1980)

* * *

POIS QUE ÉS INDIVISÍVEL

ÉS CARNE

CARNE DE TODAS

AS CARNES

CARNE DE CHUVA

CARNE DE SOL

POIS QUE HABITAS

EM TI MESMO

CARNE DO SORRISO

CARNE

DO ESCÁRNIO

CARNE TABELADA

Page 436: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

CARNE CARMIM

CARNE

ESCARLATE

POSTO QUE ÉS CARNE

E PORQUE HOJE É SÁBADO

SERÁS SEMPRE CARNE

CARNE MOÍDA

CARNE

DE PRIMEIRA

CARNE DE PESCOÇO

CARNE DE MIM

(Solda/Leminski 1987)

10.

Em Busca do Templo Perdido

(A gana de durar)

É pura perda de templo tentar explicar por que o Templo das

Sete Musas, sede do Instituto Neo-pitagórico, pegou fogo na noite de

24 de agosto de 1987. A explicação é simples. Em 1907, Dario

Vellozo, poeta, professor de philosophia, tipógrafo, guru da mocidade

curitibana no Gymnasio Paranaense, erigiu o Templo no bairro de

Vila Isabel, então uma floresta de contos dos irmãos Grimm.

Nesse ano, Dario soube da presença na pequena cidade de um

eletricista alemão, Schroeder, que tinha acabado de chegar da

Europa.

Procurou-o e contratou seus serviços para realizar a instalação

de luz elétrica no Templo. Eletricidade era então uma novidade

Page 437: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

absoluta.

Mas encomendou a Schroeder uma tarefa muito especial.

A instalação de luz deveria conter dentro de si um mecanismo

de autodestruição que deveria funcionar dali a 80 exatos anos, a 24

de agosto, Dia de S. Bartolomeu, quando o diabo tem uma hora de

seu.

Dario queria durar. E sabia que viveria na memória dos seus

contemporâneos. Mas estas morreriam. Em 80 anos, a memória do

Templo e de Dario já estaria esmaecida, como uma foto antiga.

Um incêndio devolveria o Templo à notoriedade e à atenção do

público por mais anos. Assim, um templo feito de chamas subiu

pelos ares em 24 de agosto de 1987. Dizem algumas testemunhas do

sinistro que foi possível ver no meio do fogaréu um rosto sorrindo

com um olhar zombeteiro de quem diz:

— Não disse que eu ia durar?

11.

Trechos da gravação feita por Cesar Bond, com Leminski falando:

De sua própria vida:

“Não existe nenhuma experiência — das mais íntimas, eróticas,

emocionais — que eu não tenha transformado em poemas e tornada

pública através da literatura.”

De literatura:

“Fazer literatura para mim — a esta altura do campeonato — é uma

necessidade fisiológica. Quando penso ‘preciso escrever’, penso

‘preciso colocar idéias no papel’. A partir de três ou quatro palavras

eu faço um jogo. Escrever é só uma das coisas que o ser humano

sabe fazer. E eu me sinto mais humano depois de fazer isso.”

Page 438: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

De estratégias:

“A lógica dos militares é a pré-lógica. O macaco-homem se fez pela

guerra, se construiu pela guerra e pode morrer pela guerra. Por que

nós nos matamos? Para mim ainda é um mistério. Perseguir o

mistério da guerra é tentar desvendar todos os mistérios onde a

morte está envolvida. E a estratégia da guerra só está absolutamente

correta quando a vida humana é reduzida apenas às leis físicas. É a

ação mais simples para obter o máximo de efeito: como num haikai.

Não quero dizer com isso que sou a favor da guerra. Sou totalmente

contra. Mas a exatidão do raciocínio me fascina.”

De trabalho:

“Se você não conseguir equacionar a relação vida/trabalho, você está

perdido. Não há força e criatividade que resistam quando você

percebe que o rio mudou de leito.”

De linguagem:

“Nunca me recusei a nada. Tipo: televisão, rádio, publicidade, grafite

de parede... qualquer negócio que trate de aproximar pessoas, via

palavra, é comigo mesmo. É assunto meu. É um desafio e não

considero nada disso alheio a mim. Tudo isso me diz respeito.”

Da crítica:

“Se caísse um raio agora na minha cabeça, não sei qual a imagem

que ficaria de tudo que escrevi. Fiz poesia, prosa, crítica, textos para

publicidade, ficção, traduções, crônicas e muitas outras coisas.

Nesse sentido, aceito a crítica óbvia do Wilson Martins: eu não me

fixo em nada.”

Da morte:

“Quanto à morte, eu sou nipônico. Você tem que superar o medo da

Page 439: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

morte. A morte é alguma coisa que está dentro da vida e não contra

ela. Eu nunca me confrontei com situações limites mas não tenho

medo da morte.”

Da morte e do acaso:

“Sempre achei ligeiramente indecente tratar a morte como um acaso.

Eu coloquei o Mishima em moda no Brasil, quando traduzi Sol e aço.

E o Mishima fez a formulação mais terminal que se pode fazer sobre

a morte. Ele tinha uma visão estética da morte. Para ele, a morte era

um momento de beleza tamanha que só merecia coisas de tal

plenitude. Um momento único. Uma determinação e não um acaso.

Para ele, morte, prazer sexual e beleza sempre tiveram um signo

único.”

12.

A Lua no Cinema

A lua foi ao cinema,

passava um filme engraçado,

a história de uma estrela

que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas

Uma estrela bem pequena,

dessas que, quando apagam,

ninguém vai dizer, que pena!

Page 440: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Era uma estrela sozinha,

ninguém olhava pra ela,

e toda a luz que ela tinha

cabia numa janela.

A lua ficou tão triste

com aquela história de amor,

que até hoje a lua insiste:

— Amanheça, por favor!

13.

São Não

não são

são não

rogai por nós

para que não

sejamos senão

Page 441: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

BIBLIOGRAFIA

Publicações consultadas na elaboração desta biografia

Livros

Beat Culture and the New America — 1950-1965. Whitney Museum of

American Art, 1998.

Boletim Informativo da Casa Romário Martins (temas: Água Verde e

Pilarzinho).

Bonvicino, Régis. Envie meu dicionário — Cartas e alguma critica.

Editora 34, 1999.

Curitiba sem mestre, ed. Fundação Cultural de Curitiba.

de Luna, D. Joaquim G. Os monges beneditinos no Brasil. Edições

Lúmen Christi, 1947.

Escritor na biblioteca, Um, BPP, 1985.

Kerouac, Jack. Selected Letters — 1940-1956. Viking, 1995.

Maciel, Luiz Carlos. Geração em transe. Nova Fronteira, 1996.

Novaes, Adauto (coord.) Os sentidos da paixão. Funarte/Companhia

das Letras, 1999.

Reis, Daniel Aarão e Moraes, Pedro de. 1968 — A paixão de uma

utopia. Espaço e Tempo.

São Gregório Magno, Papa. Vida e milagres de São Bento. Artpress,

1996.

Suzuki, Daisetz Teitaro. Introdução ao zen-budismo. Civilização

Brasileira, 1971.

Jornais e revistas

Correio de Notícias

Page 442: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Diário do Paraná

Folha de Londrina

Folha de S. Paulo

Gazeta do Povo

Jornal do Brasil

Nicolau

O Estado de S. Paulo

O Estado do Paraná

Revista Quem

Série Paranaense nº 2 (Paulo Leminski), ed. Scientia et Labor da

UFPR

Veja

BIBLIOGRAFIA DE PAULO LEMINSKI

Catatau, edição do autor, 1975.

Quarenta clics em Curitiba, Etecetera, 1976.

Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e era quase, ed. ZAP,

1980.

Polonaises, ed. do autor, 1980.

Caprichos e relaxos (incluindo os poemas de Não fosse isso... e

Polonaises), Brasiliense, 1983.

Cruz e Sousa, Brasiliense, 1983.

Matsuó Bashô, Brasiliense, 1983.

Jesus A.C., Brasiliense, 1984.

Agora é que são elas, Brasiliense, 1984.

Trotsky, a paixão segundo a revolução, Brasiliense, 1986.

Anseios crípticos, Criar Edições, 1986.

Distraídos venceremos, Brasiliense, 1987.

Guerra dentro da gente, Scipione, 1988.

Catatau (reedição), Sulinas, 1989.

A lua no cinema, Arte Pau-Brasil, 1989.

La Vie en close, Brasiliense, 1991.

Page 443: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

Metaformose, Iluminuras, 1994.

O ex-estranho, Iluminuras, 1996.

Traduções

Folhas das folhas da relva, de Walt Whitman, Brasiliense, 1983.

Pergunte ao pó, de John Fante, Brasiliense, 1984.

Vida sem fim, de Ferlinghetti, Brasiliense, 1984.

Supermacho, de Alfred Jarry, Brasiliense, 1985.

Satyricon, de Petrônio, Brasiliense, 1985.

Sol e aço, de Yukio Mishima, Brasiliense, 1985

Um atrapalho no trabalho, de John Lennon, Brasiliense, 1985.

Malone morre, de Samuel Beckett, Brasiliense, 1986.

Não estão relacionadas as participações em antologias e esparsos. A

relação da produção musical não está completa (as parcerias

póstumas, a partir de seus poemas, se sucedem).

Page 444: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

DISCOGRAFIA

Gravações com letra e música de Paulo Leminski

“Verdura”, LP Outras Palavras, de Caetano Veloso, 1981. Philips.

“Mudança de estação”, LP Mudança de Estação, de A Cor do Som,

1981. Odeon.

“Valeu”, LP Valeu, de Paulinho Boca de Cantor, JQN Discos, 1981.

“Se houver céu”, LP Prazer de Viver, de Paulinho Boca de Cantor,

Polygram, 1982.

“Razão”, LP Magia Tropical, de A Cor do Som, Odeon, 1983.

EM PARCERIA

Com A Chave

“Me provoque pra ver” e “Buraco no coração”, 1997, GTA (Rede Tupi).

Com Pedro Leminski

“Oração de um suicida”, no LP Blindagem, 1981, Continental.

Com Ivo Rodrigues

“Sou legal eu sei”, “Não posso ver”, “Palavras”, “Hoje”, “Marinheiro”,

“Quanto tempo mais”, LP Blindagem, 1981.

“Legião dos anjos”, Blindagem, CD Dias Incertos, 1998.

“Rapidamente”, Blindagem, CD Dias Incertos, 1998.

Com Guilherme Arantes

“Xixi nas estrelas”, “Circo pirado”, “Milonguera da Serra Pelada”,

Page 445: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

“Cadê vocês?”, “Frevo palhaço”, “O prazer do poder”, “Viva a

vitamina”, “Coração de vidro”, LP Pirlimpimpim 2, com Guilherme

Arantes, 1984, Som Livre.

Com Itamar Assumpção

“Vamos nessa”, LP de Itamar Assumpção Sampa Midnight, 1986.

“Custa nada sonhar”, Itamar Assumpção, disco Bicho 7 Cabeças,

1993.

“Filho de Santa Maria”, gravação de Zizi Possi, disco Mais Simples,

1996.

“Dor elegante”, CD Itamar Assumpção PretoBras, 1999.

Com Moraes Moreira

“Decote pronunciado”, “Pernambuco meu” e “Baile no meu coração”,

LP Coisa Acesa, de Moraes Moreira, 1982, Ariola.

“Promessas demais”, LP de Ney Matogrosso Mato Grosso, 1982,

Ariola.

“Pernambuco meu”, LP do conjunto MPB4 Caminhos Livres, 1983,

Ariola.

“Teu cabelo” e “Oxalá”, LP de Moraes Moreira Pintando o Oito, 1983,

Ariola.

“Mancha de dendê não sai”, LP do mesmo nome de Moraes Moreira,

1984, CBS.

“Sempre Angela”, LP de Ângela Maria Sempre Angela, 1984, Odeon.

“Alma de guitarra”, LP de Moraes Moreira Instrumentos de Deus,

1985, CBS.

“Morena absoluta”, LP de Moraes Moreira Mestiço é Isso, 1986, CBS.

“Lêda”, no disco 50 Carnavais, 1997.

Com José Miguel Wisnik

“Subir mais”, CD José Miguel Wisnik, 1992.

“Polonaises”, trilha sonora do filme Ed Mort, 1994.

Page 446: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

“Rob Digital”, CD Ed Mort, 1994.

Com Edvaldo Santana (Baitola)

“Freguês distinto” e “Mãos ao alto”, no disco Lobo Solitário, 1993.

Com Edvaldo Santana e Ademir Assunção

“O Deus”, disco Tá Assustado!, de Edvaldo Santana, 1995.

Com Celso Pirata (Loch)

“Coisas”, no disco Verfremdungseffekt Blues, 1998.

Com Carlos Careqa

“Alles Plastik”, no disco Todos os Homens São Iguais.

Com Arnaldo Antunes

“UTI”, gravado pelo grupo Clínica, no disco Clínica, 1988.

“Além alma”, CD Um Som, Arnaldo Antunes, 1998.

Com Thadeu, Roberto Prado e Walmor Douglas

“Perdendo tempo”, trilha sonora do filme Bar Babel, da banda Maxixe

Machine, 1999.

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AGRADECIMENTOS

Especiais à Biblioteca Pública do Paraná — pelo arquivo Leminski —

e Casa da Memória de Curitiba; família Zippin; jornalistas Sinval de

Itacarambi Leão e Paulo Vasconcellos; Mosteiro e Colégio de São

Bento; D. Estevão, D. Leandro, José Maria Siviero, Pedro Uzum, José

Maria Costa Vilar (D. Clemente), D. Lucas Torrell. Funcionária Rita

Julieta Ferreira (Colégio Paranaense Internato).

À eterna Helena Kolody, padroeira da poesia paranaense, pelo seu

arquivo “Leminski”.

Especiais também a Augusto de Campos.

Ao empresário Ernani Paciornick, pela cumplicidade.

Para Lucélia Auríquio Newton, que colaborou na primeira parte das

pesquisas.

Para José Vieira, fotógrafo, pelas reproduções do arquivo da família.

Família Pereira Mendes, tias do poeta: Luiza, Luci e Izilite, pelas

memórias.

Elly e Ellinha Leminski pelas fotos e histórias.

À Alice, Áurea e Estrela, pontos de luz e referência desde o início.

Para os amigos de Paulo Leminski que colaboraram com esta história

e este livro, direta ou indiretamente

com sinceridade.

Toninho Martins Vaz

Page 448: Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)

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Este livro foi composto na tipologia Trump Mediaeval, no corpo 10/14,

e impresso em papel offset 75g/m2 no Sistema Cameron da Divisão

Gráfica da Distribuidora Record.

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