Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)
-
Upload
felipemussel -
Category
Documents
-
view
715 -
download
16
Transcript of Paulo Leminski, O Bandido Que Sabia Latim (Toninho Vaz)
Toninho Vaz
PAULO LEMINSKI
O bandido que sabia latim
Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
V497p Vaz, Toninho, 1947-
Paulo Leminski: o bandido que sabia latim / Toninho Vaz. — Rio de Janeiro : Record, 2001.
ISBN 85-01-05963-3
1. Leminski, Paulo, 1944-1989 — Biografia.
2. Escritores brasileiros — Biografia. I. Título.
CDD 928.699 01-0411 CDU 92(LEMINSKI, P.)
hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//ddiiggiittaallssoouurrccee Copyright © Toninho Vaz, 2001 Projeto gráfico: Regina Ferraz Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Direitos exclusivos desta edição reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 — Tel.: 585-2000 Impresso no Brasil ISBN 85-01-05963-3 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ — 20922-970
CCCCCCCCOOOOOOOONNNNNNNNTTTTTTTTRRRRRRRRAAAAAAAA CCCCCCCCAAAAAAAAPPPPPPPPAAAAAAAA
isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
PAULO LEMINSKI
OOOOOOOORRRRRRRREEEEEEEELLLLLLLLHHHHHHHHAAAAAAAASSSSSSSS DDDDDDDDOOOOOOOO LLLLLLLLIIIIIIIIVVVVVVVVRRRRRRRROOOOOOOO
“Rimbaud curitibano com físico de judoca, escandindo versos
homéricos, como se fosse um discípulo zen de Bashô”, escreveu
Haroldo de Campos apresentando seu discípulo. Segundo Caetano
Veloso, “Leminski tem um clima/mistura de concretismo com
beatnik”. Para Augusto de Campos “foi o maior poeta brasileiro de
sua geração”. Em versos se autodefiniu: o pauloleminski/ é um
cachorro louco/ que deve ser morto/ a pau e pedra/ a fogo e a pique/
senão é bem capaz/ o filhodaputa/ de fazer chover/ em nosso
piquenique.
Samurai futurista, pensador selvagem, agitador intelectual,
meio polaco e meio caboclo, provinciano e universal, Paulo Leminski
foi uma inesquecível tempestade na cena cultural brasileira, antes de
morrer aos 44 anos, em 1989, no auge do sucesso, como um mito.
Fabricando fenômenos e sensações com sua poesia
perturbadora, Leminski conjugava a densidade fulminante de haicais
com a loucura da contracultura, o coloquialismo e o humor de nosso
primeiro modernismo com sua profunda erudição. Deixou um
testamento pós-joyciano com a prosa ousada de Catatau, e músicas
nascidas de parcerias com Arnaldo Antunes, Itamar Assumpção,
Moraes Moreira, José Miguel Wisnik e Caetano Veloso.
O poeta marginal de Curitiba aderiu ao mainstream midiático
dos anos 80 fixando sua marca em trabalhos assinados na Veja,
Folha de S. Paulo e na televisão, no Jornal de Vanguarda, enquanto
encantava com suas impecáveis traduções de John Fante, Alfred
Jarry, Yukio Mishima e Samuel Beckett. Suas biografias de Cruz e
Sousa, Bashô, Jesus e Trotski davam a bandeira de sua ligação com
os cavaleiros da paixão e da poesia, e com os limites do perigo
sinalizando: “Existe um paradoxo nos produtos culturais, superiores
frutos do trabalho humano: eles sobre-vivem ao autor, são uma
vingança da vida contra a morte. Por outro lado, só podem fazer isso
porque são morte: suspensão do fluxo do tempo, pompas fúnebres,
pirâmide do Egito.” O bandido que sabia latim resgata a vida deste
artista que foi hippie; professor de judô, História e redação;
publicitário; inveterado conquistador e bebedor de vodca; candidato a
monge beneditino; gênio e doido; ídolo e mestre que deixou poesia e
saudade para gerações de leitores.
Antonio Carlos Martins Vaz
(Toninho Vaz) nasceu a 2 de
outubro de 1947, em
Curitiba. É jornalista e
roteirista de televisão.
Começou escrevendo no
Diário do Paraná, em 1969.
Foi editor e colaborador de
diversos jornais alternativos
nos anos 70 e 80 — Anexo, Raposa, Polo Cultural, Pasquim, Nicolau.
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1974. É casado com Naná Gama
e Silva e tem uma filha, Maria Carolina. Trabalhou como editor de
texto na Rede Globo durante quatorze anos. De 1995 a 1998 viveu
em Nova York. Atualmente mora em São Paulo.
Capa e quarta capa: fotos Dico Kremer
Para Naná, pelo amor
e Alice, pela amizade
Para a tia Bá, que só lia biografias
Este livro vai contar a história de Paulo Leminski Filho, o mais
iluminado e reverenciado poeta curitibano. Esta biografia não
pretende analisar o valor de sua obra e nem discutir a qualidade de
seu trabalho — tarefa esta que deve ser delegada a quem de direito:
os críticos literários. Aqui se pretende fornecer elementos que
possam explicar a existência e a personalidade de um intelectual tão
singular e criativo como Paulo Leminski, poeta responsável pela
insurreição da fantasia, o autodenominado “cachorrolouco”, “a besta
dos pinheirais”, “o ex-estranho”, “o que chegou sem ser notado”.
aqui jaz um grande poeta,
nada deixou escrito,
este silêncio, acredito,
são suas obras completas.
Paulo Leminski
SUMÁRIO
PREFÁCIO O tal das químicas
CAPÍTULO 1 A plenos pulmões
CAPÍTULO 2 Uma luz na cidade
CAPÍTULO 3 A vida no mosteiro e além
CAPÍTULO 4 Curitiba, por trás da neblina
CAPÍTULO 5 Com o diabo no corpo
CAPÍTULO 6 Delírios e noites cariocas
CAPÍTULO 7 O dia da criação
Um capítulo à parte
CAPÍTULO 8 A Cruz do Pilarzinho
Outro capítulo à parte
Último capítulo à parte
CAPÍTULO 9 O poeta descalço
O resto imortal
CAPÍTULO 10 Perhappiness
EPÍLOGO 27 clics de Leminski
Apêndices
Bibliografia
Discografia
Agradecimentos
O TAL DAS QUÍMICAS
A idéia deste livro saiu da cabeça de Alice Ruiz durante um passeio
pelo centro antigo do Rio de Janeiro no Natal de 1998. Ela fez a
sugestão argumentando que com a morte do poeta, dez anos antes, o
culto à sua obra e personalidade — principalmente em Curitiba,
onde foi transformado em mito pelas novas gerações — só fez
aumentar o interesse e a curiosidade por sua vida — vale dizer, tão
extraordinária quanto sua obra (ou o Catatau não é algo
extraordinário?!, um sujeito que passa oito anos escrevendo um livro
que poucas pessoas conseguem ler — e aquelas que o fazem [a
crítica especializada, em grande parte], chamam-no de “obra-
prima”?...).
Ela arrematou: “Eu mesmo preciso conhecer o homem com
quem vivi por 19 anos. Alguém tem que fazer esse trabalho.” Assim
nasceu esta biografia. De um ponto de vista estritamente pessoal,
posso garantir sem medo que Paulo Leminski nunca me ofereceu
alternativas: fui seu fã até o final.
Da mesma forma, sempre acreditei que, independentemente de
seu gênio poético e de sua obra, Paulo Leminski não foi uma pessoa
normal. Não era quando eu o conheci no ano histórico de 1968.
Tinha algo de especial, algo de magnético, algo fora do comum, algo
de louco. Sua profunda erudição e modernidade o transformavam
num intelectual peculiar, brilhante e eloqüente — um “especialista
em generalidades”, como se definia. Quando falava e gesticulava
parecia materializar uma utopia em forma de charme. Num certo
sentido pode-se comparar com a aparição de um disco voador: quem
viu não consegue esquecer.
Lembro-me como se fosse hoje: ao conversar com ele pela
primeira vez (no tempo que a contracultura era uma postura
ideológica e não um produto de consumo) sobre assuntos culturais
diversos, finalmente, a escola e os estudos passaram a fazer sentido
em minha vida. Costumo dizer que me alfabetizei, então. Já
trabalhava como repórter em redação de jornal, cursava o primeiro
ano da faculdade mas não suportava a vida acadêmica — pelo menos
com aquela rotina que me tinha sido apresentada. Paulo Leminski,
neste sentido, desempenhou um papel decisivo na minha vida
profissional, adicionando conteúdo e perspectiva à sopa rala da
minha pobre cultura — ou seria cultura de pobre? Com o passar do
tempo nos tornamos amigos e compadres. (Ele me chamava de
Martins, adotando um dos meus sobrenomes paternos.)
Agora, na virada do ano 2000, subitamente investido no papel
de seu biógrafo, me deparei com a tarefa de traduzir ao leitor quem
realmente foi Paulo Leminski Filho, com todas as suas grandezas e
contradições. Era um convite “de grego” (helênico, ele diria), pois
teria que mergulhar numa personalidade complexa e inquieta, que
viveu cortejando os limites do perigo, irremediavelmente “engajado
no difícil” e tendo alguns pontos obscuros na trajetória de sua vida.
No final, não me restou outra alternativa senão agir, mais uma vez,
como ele recomendava: respirando fundo e abordando o trabalho
“com raça, método e sinceridade”. Eu juro que tentei.
Após um ano de pesquisas e 81 entrevistas realizadas com
parentes, parceiros, alunos, ex-mulheres, professores, amigos e até
desafetos, foi possível reunir histórias, escritos, poemas e fotos
inéditas; rascunhos de textos inacabados e muitas pegadas
espalhadas pelas três cidades onde o poeta viveu: Curitiba, Rio de
Janeiro e São Paulo. O resultado está aqui na medida das minhas
pretensões: o retrato de um poeta brasileiro sem disfarces, o ex-
estranho Paulo Leminski.
Toninho Martins Vaz
Abril, 2000
CAPÍTULO 1
A PLENOS PULMÕES
Ipanema, 17 de dezembro, 1986. O telefone toca logo pela
manhã, fazendo um rrrrring-rriing estridente próximo ao meu ouvido
no momento mais delicioso do sono. Uma esticada de olho no relógio e
a indicação dos ponteiros: 8 horas. Simplesmente madrugada para um
jornalista de hábitos noturnos como eu, amante de bares, blues e lua
cheia. Arrastei um “Aloooô?...” quase inaudível com a intenção de ser
interpretado como um “bom dia”...
— Martins? É você?
Imediatamente reconheci a voz de Paulo Leminski e pulei da
cama.
— Paulo, que surpresa!
(Vamos dizer que um telefonema do Paulo era sempre uma
surpresa.)
Ainda meio tonto, tentei me recompor...
Ele não esperou:
— Mano, o Pedro pediu a conta.
(silêncio)
Parei no meio do caminho, segurando o telefone com uma das
mãos e esticando o fio com a outra...
— Pediu a conta como?...
— Se enforcou, se matou, chamou o garçom, se foi...
(silêncio)
— Porra, Paulo, que história é essa?!
Pedro era o mais novo dos dois irmãos Leminski. No início dos
anos 70, quando o conheci nos bares de Curitiba, tinha 23 anos e
parecia carregar o espírito de Bob Dylan no corpo, fazendo uma
música visceral e combativa, impregnada de verve revolucionária e
contracultural. Nada muito elaborado, nada exatamente profissional,
mas tudo muito criativo e poético. Num certo sentido, o Pedro sempre
foi uma alma conturbada e sofredora que com o passar dos anos se
moldou na solidão e no alcoolismo. No começo, dizia canções
saturadas de amor e raiva, deixando pela madrugada um rastro de
orquídea selvagem de bar em bar. Se não foi quem ensinou o Paulo a
tocar violão, certamente exerceu nele uma forte influência na
descoberta das primeiras harmonias e acordes. Compôs músicas
notáveis e premonitórias como “Oração de um suicida”, escrita nos
anos 70 e que viria a funcionar, no futuro, como um paradigma da
realidade.
Os irmãos Leminski — antes que se possa pensar o contrário —
não eram músicos importantes ou mesmo virtuoses em seus
instrumentos. Para eles, poetas contemporâneos ligados às mais
variadas formas de expressão, a melodia existia para transformar os
versos em canções. Esta era a exigência básica feita ao violão: que ele
pudesse oferecer suporte rítmico a certos poemas... E ponto final. De
qualquer maneira, em curto espaço de tempo, o discípulo superou o
mestre e acabou conquistando um relativo sucesso nas paradas da
MPB. Em 1972, Paulo Leminski trouxe à luz o projeto “Em Prol de um
Português Elétrico”, onde propunha uma pesquisa mais profunda e
direcionada para o ponto fraco do rock brasileiro: as letras. Era fã de
Rita Lee exatamente por ela apresentar estas qualidades musicais.
Mais tarde, suas canções foram gravadas por músicos da importância
de Caetano Veloso, Moraes Moreira, Itamar Assumpção, Ney
Matogrosso, Arnaldo Antunes, Zizi Possi e, uma suprema glória
pessoal, Ângela Maria.
Nos últimos anos, qual dois Karamazov, os irmãos não se
falavam. Ou, quando o faziam, se desentendiam. Tais diatribes
tinham origem em diversos pontos do relacionamento pessoal, mas
eram, sobretudo, motivadas por um certo desprezo que o Paulo sentia
por pessoas que não produziam. O aparente gesto de severidade para
com o irmão era na verdade um mecanismo de autodefesa ou, a
considerar algumas avaliações médicas, uma maneira de mascarar o
medo do próprio destino. Para ele, Paulo Leminski Filho, a simples
idéia de consentir — uma centelha que fosse — com a apatia e o
desânimo representava o fim, o mesmo que desistir do jogo da vida e
da criação. Argumentava como uma metralhadora giratória: “O sujeito
tem que apresentar uma produção qualquer, mínima, mesmo que seja
na área da malandragem.”
Antes de morrer, Pedro Leminski fez tudo direito e se isolou. No
momento do gesto extremo, para conseguir quebrar a coluna cervical
com o golpe do enforcamento, foi obrigado a encolher as pernas,
pendurado a um armário...
A partir deste trágico episódio, segundo observações de Alice
Ruiz, com quem Leminski viveu por 19 anos, as coisas mudaram
também para ele. O poeta assumiria, com a morte do irmão mais novo,
uma postura ainda mais radical diante da vida, resgatando uma
antiga devoção autodestrutiva (self destruction, ele dizia no início dos
anos 70), que contribuiria para acelerar o processo de cirrose hepática
e provocar sua morte em junho de 1989, aos 44 anos. Quando isto
aconteceu, ele já era considerado um dos nomes mais importantes da
literatura brasileira contemporânea.
CAPÍTULO 2
UMA LUZ NA CIDADE
Paulo Leminski Filho nasceu às dezenove horas e dez minutos
do dia 24 de agosto de 1944, em Curitiba, mais precisamente na
Maternidade Vítor do Amaral, no bairro da Água Verde.
Este fato, assim narrado de forma trivial e despretensiosa, não
haveria de suscitar nenhum tipo de discordância ou estranhamento,
não fossem alguns registros publicados na imprensa paranaense
afirmando ter o poeta nascido, na realidade, em Itaiópolis, uma
pequena cidade no interior de Santa Catarina. Segundo estas
versões, a família Leminski teria se mudado para Curitiba logo após
o nascimento do primogênito. Com o passar do tempo, já adulto e
identificado nacionalmente como um poeta curitibano, o próprio
Leminski estaria encobrindo sua verdadeira origem.
Esta é, certamente, uma versão equivocada ou fantasiosa mas
não de todo despropositada, considerando que estaria aí a primeira
surpresa (armadilha, troça, truque, sarro) de uma vida e de uma
obra marcadas pelo uso e abuso do sobressalto e da metalinguagem:
ao nascer, o mais famoso poeta curitibano seria, na realidade,
catarinense. Uma anedota espirituosa, sem dúvida, mas que, pelo
menos desta vez, não pode ser creditada a ele e nem levada a sério
como informação biográfica.*
O dia amanhecera frio e úmido naquela terça-feira. Uma
* O registro de nascimento está arquivado à fl. 12 do livro nº 21, do cartório de Francisco Antonio de Abreu, com data de 26 de agosto de 1944 — Curitiba, Paraná. Signo de Virgem, no horóscopo tradicional, e Macaco no horóscopo chinês.
neblina típica e muito comum nesta época do ano deixava Curitiba
mergulhada numa tonalidade opaca e suave, quase transparente. Os
jornais do dia anterior e os programas matinais de rádio preveniam
que a temperatura deveria cair nas próximas horas. O termômetro
marcava 15 graus, mas por força de suas obrigações com o Exército
Brasileiro, onde ocupava a patente de sargento, Paulo Leminski
pulou cedo da cama. Ele tinha o hábito de “acordar com os pardais e
dormir com as galinhas”, mantendo, mesmo em casa, as normas
disciplinares da caserna. Não que fosse um sujeito agitado nos
movimentos ou mesmo vigoroso nas decisões; nada disso, muito pelo
contrário; mas nestes tempos difíceis de guerra, ele redobrava a
disposição mantendo-se a serviço de uma causa nobre e emergente:
a defesa incondicional das fronteiras do país.
No plano doméstico, 1944 vai representar a data em que o
Brasil comemorou o segundo ano de sua participação na Segunda
Guerra Mundial. No dia 24 de agosto, o presidente Getúlio Vargas
celebrava cerimônia alusiva no Palácio do Catete, no Distrito Federal.
A devoção pública, que levara a nação a viver com um olho no
racionamento e outro na frente de batalha, encontrava no sargento
Leminski um militar convicto e zeloso de suas obrigações. Ele tinha
então 33 anos e nutria um sentimento de admiração e respeito pelo
marechal-presidente, Getúlio Dornelles Vargas.
Paulo Leminski, o pai do poeta, era filho de poloneses de uma
remota província de nome Naráyow — embora isso nunca tenha sido
devidamente comprovado. A família, composta pelo pai Pedro, a mãe
Catharina e o irmão Miguel, veio para o Brasil no fluxo da grande
migração de 1895, quando grupos da Polônia e da Ucrânia deixaram
a Galícia (tudo, então, Império Austro-húngaro) — e as razões pelas
quais estes êxodos aconteceram são históricas: perseguições políticas
e raciais, um surto de cólera que atingiu a Ucrânia e, ainda, o
sempre cultivado sonho de um mundo “novo e produtivo”.
Historicamente, sabe-se que os três fatores agiram simultaneamente
quando os Leminski decidiram encarar a aventura de cruzar o
Atlântico a bordo de um navio. Para quem não tinha nada a perder,
era pegar ou largar. Os Leminski resolveram pegar.
Os documentos oficiais, emitidos por autoridades da Ucrânia,
registram a saída deles pelo porto de Gênova, na Itália, no dia 9 de
julho. A região sul do Brasil, pelo seu clima frio e vocação agrícola,
foi o destino anunciado pela maioria das famílias. Paulo Leminski
nasceria em 1911 em Restinga Seca, interior do Paraná, quando a
família já estava devidamente assentada na região. Ainda
adolescente, mudou-se para Curitiba, onde acontecem as principais
ações desta história.
O avô materno do poeta, Fernando Pereira Mendes, era um
paulista de Itu, descendente de portugueses e capitão do Exército na
comarca de Curitiba, para onde fora ainda jovem, também na
tentativa de encontrar “uma porta aberta para o futuro”. Já militar,
trabalhava na administração da Subsistência, na rua João Negrão,
uma unidade considerada — por sua específica função de
abastecimento — o “supermercado” dos oficiais militares. Nas horas
vagas, Fernando compunha versos pungentes e rebuscados na
linguagem, que publicava em jornais do interior de São Paulo. Eram
manuscritos em caligrafia impecável que iriam denunciar, no futuro,
o fio condutor da linhagem poética da família — ou, mais
especificamente, de Paulo Leminski Filho, seu neto.
Fernando casou-se em primeiras núpcias com Inocência, filha
de Mário e Lia Alves, nativos da região de Paranaguá e Antonina, no
litoral paranaense. Ela, da vertente negra e indígena brasileira, com
remota ascendência carijó. Fernando teve nove filhos de dois
casamentos, sendo que as duas esposas eram irmãs — a outra, com
quem se casaria mais tarde, chamava-se Lucila. A moça Áurea, que
viria a ser a mãe do poeta, era a terceira filha do primeiro
matrimônio, com Inocência.
Paulo Leminski e Áurea Pereira Mendes se conheceram nos
tradicionais footings da rua XV de Novembro, agenda social que
embelezava as tardes românticas de verão nos anos 40. Nesta época,
quando as pessoas andavam mais devagar, as calçadas e vitrines
mais concorridas de Curitiba ficavam entre as ruas Dr. Muricy e
Barão do Rio Branco, um pouco além da “boca maldita”, como seria
chamado um certo trecho da avenida Luiz Xavier. Por ali desfilavam
o charme e a elegância da província, que tinha pouco mais de 140
mil habitantes. O que se seguiu entre os jovens enamorados, depois
dos primeiros olhares, foi um namoro rápido, bastante controlado
pelo conservadorismo do pai, e, em seguida, o noivado. Como
resultado da determinação do sargento Leminski, ficou claro, desde o
início, que ele estava assumindo um compromisso sério com “a filha
do capitão”.
O casamento aconteceu um ano depois, a 7 de outubro de
1943, na casa da noiva, na rua Duque de Caxias, com a presença do
juiz e do padre casamenteiro. Nada de igreja ou desfile de carros
arrastando latas pela cidade, como era costume. Uma cerimônia
simples e íntima selou a união do casal, com o testemunho apenas
das duas famílias.
Depois da festa os pombinhos seguiram para a casa alugada
na rua República Argentina, 1.136, uma região ainda hoje conhecida
como Capelinha, numa referência a um santuário carregado de
significação religiosa e misticismo. O pequeno monumento, onde as
velas ardiam durante a noite, era uma homenagem da família
Moletta — pioneiros da Água Verde — à Imaculada Conceição e seria
adotado pelos fiéis como um lugar público de penitências e orações.
Havia nesta época dois monumentos religiosos bastante populares e
místicos em Curitiba; o outro, que não tinha o formato de uma
capelinha mas sim de uma grande cruz de madeira, ficava no lado
oposto da cidade e era conhecido como a Cruz do Pilarzinho.
Juntos, Paulo e Áurea começaram a descobrir, nestes dias de
guerra, todas as exigências e dificuldades de uma vida provisória e
racionada; ele, trabalhando pesado em unidades operacionais, sob a
jurisdição do 3º Exército; ela, se aprimorando nas tarefas domésticas
e se preparando estoicamente para o lar e a maternidade.
Finalmente, naquela manhã, o sargento Leminski pôde ouvir
no rádio as últimas notícias do front: “Forças aliadas retomam Paris;
as tropas nazistas recuam.” Os boletins noticiosos anunciavam uma
noite de luz e festa em Champs Elysées: “O general Charles De
Gaulle exalta a França; o escritor Jean-Paul Sartre, um ativo
militante da resistência francesa, comemora com amigos intelectuais
o sucesso da ofensiva.” A guerra estava chegando ao fim. Às 11
horas, as contrações começaram.
O nascimento do primogênito dos Leminski aconteceu no início
da noite e foi considerado um “parto normal” pela equipe médica. O
bebê veio ao mundo com três quilos e meio, um razoável volume de
cabelos negros na grande cabeça e muita disposição aeróbica:
chorava alto e em bom tom.
Na opinião de tia Luiza, uma das cinco irmãs a visitar a jovem
mãe e seu bebê na maternidade, “era um guri lindo e saudável.
Nasceu muito forte e logo se tornou uma criança muito querida. Era
mesmo uma graça”, enfatiza, sugerindo uma ligação entre estes
sinais de vivacidade e o carisma que o menino revelaria à família aos
três anos de idade. A partir do seu nascimento, e mesmo quando
adulto, ele seria chamado exatamente assim pelas cinco tias que o
cercariam de mimo: Paulinho.
Os pais mandaram fazer pequenos cartões em cores suaves,
com o desenho de uma criança em fraldas, para anunciar o
nascimento do primeiro filho: “Paulo e Áurea P. Mendes Leminski
têm o prazer de participar o advento de seu primogênito Paulo.
Curitiba, 24 de agosto de 1944”.
Num certo sentido, o que aguardava Paulinho no lado de fora
do aconchego materno era um planeta socialmente virado de ponta-
cabeça. Os anos pós-guerra — estes sim estavam apenas começando
— trariam brisas aromáticas e poeiras radioativas numa mesma
lufada durante as décadas seguintes.
No plano cultural, enquanto o Oriente reunia forças para uma
profunda reestruturação social, o existencialismo francês pontificava
nos salões e cafés europeus. Sartre, que havia lançado no ano
anterior o polêmico O ser e o nada, colhia os frutos deste e de outros
sucessos políticos e intelectuais. Nas estradas da América, a arte e a
cultura do novo mundo — já apresentando sinais de automação —
faziam florescer uma geração espontânea de artistas, poetas,
escritores, viajores que preconizavam uma revolução URGENTE no
comportamento e nos costumes da juventude. A performance e a
prosa do aventureiro Jack Kerouac, que neste mesmo dia (24 de
agosto de 1944) estava preso numa delegacia do Bronx, em Nova
York, representavam uma nova expressão da literatura americana
moderna, aquela por ele batizada de “a geração beat”.*
No Brasil, as conseqüências da Semana de 22 ainda ecoavam
como uma bofetada no rosto da nação. O manifesto antropofágico,
divulgado em 1928, fora considerado ultrajante pelas elites e de mau
gosto pela classe média. Mesmo provocando reações apaixonadas na
platéia (ou contra ou a favor), o fato é que, após a exposição pública
dos nossos talentos e artimanhas, promovida por intelectuais sérios
* Em conversa informal com John Clellon Holmes, em 1948, Kerouac usou pela primeira vez a expressão beat generation, com o propósito declarado de não criar um slogan. Ironia do destino, o que era uma negação [Ah, this is nothing but a beat generation) transformou-se na bandeira de um importante segmento da produção literária americana do século XX. Em 1952, o artigo “This Is the Beat Generation”, assinado por Holmes, seria publicado com pompa e circunstância em The New York Times, referendando o movimento.
e debochados como Oswald de Andrade, Raul Bopp, Mário de
Andrade e Tarsila do Amaral, nossa cultura, do ponto de vista de sua
organicidade, jamais seria a mesma. A partir de 22, criamos — ainda
que à base de doses indigestas de ironia — uma identidade verde-
amarela que viria nos ajudar a desenvolver a capacidade de olharmos
para nós mesmos.
Em 1944 (spotlight neste tema, por favor) teve início uma
maciça fase de produção do cinema brasileiro que entraria para a
história como o “glorioso período das Chanchadas”. Começava a
surgir nas telas os gênios de Oscarito e Grande Otelo, contemplando
em suas temáticas os hábitos e costumes da sociedade carioca. A
reação paulista veio com a criação da Companhia Vera Cruz, um
empreendimento grandioso que na década seguinte produziria seu
maior êxito: O Cangaceiro, de Lima Barreto. Era o cinema brasileiro
gritando “Ação!”, no plano industrial e intelectual. Em Bogotá, onde
servia na Embaixada do Brasil, o pós-moderno Guimarães Rosa
preparava uma coletânea de contos (Sagarana) e apenas iniciava a
gestação do seu romance mais radical, Grande sertão: veredas,
editado pela primeira vez em 1956.
Enquanto isso, no aspecto político e econômico, o Estado Novo,
de Vargas, empurrava o Brasil um pouco mais para perto dos
brasileiros, anunciando medidas que representariam conquistas
inquestionáveis para a classe trabalhadora. Estava criado o salário
mínimo nacional. Em 1944 chegava ao fim, depois de muita
expectativa e ansiedade, as obras de construção do Aeroporto
Internacional Santos Dumont, no Rio de Janeiro, a Capital Federal.
A infância de Paulinho, neste contexto, foi normal e saudável.
No início, o menino manifestava isoladamente alguns dotes
“artísticos”, pendores naturais para a arte e os mistérios da
linguagem infantil. Tia Luiza lembra que certa vez foi abordada pelo
“piá, antes mesmo de ele completar 4 anos”, que lhe mostrou um
papel com um desenho que havia feito usando um lápis preto
comum:
— Era um fogão, muito bem desenhado para uma criança da
idade dele. Sobre o fogão, várias panelas vazias...
Na condição de professora ginasial trabalhando em escola
pública e, portanto, familiarizada com a chamada “pedagogia
infantil”, tia Luiza foi logo incentivando o “artista”, fazendo elogios à
qualidade da “obra”... Mas o garoto surpreendeu:
— Mas isso é muito triste, minha tia!
— Triste por que, Paulinho?
— Este quadro chama-se Miséria e mostra um fogão sem lenha
e panelas sem comida.
Uma idéia de miséria que certamente não refletia a sua própria
condição social. Afinal, era filho de um sargento do exército que vivia
com simplicidade, mas com conforto.
Tia Luiza lembra que desde cedo Paulinho demonstrava
aptidões para encontrar estas informações dentro dos limites de sua
própria casa, em livros, jornais e revistas. O garoto se revelou, com a
mais tenra idade, um escarafunchador de publicações, em todos os
sentidos — no início, com rasgões e safanões desordenados, e logo
depois, como um apaixonado pelos livros.
Quando se preparava para completar quatro anos e a casa
paterna se descortinava como um império sem limites ou fronteiras,
Paulinho ganhou um irmão. No dia 23 de abril de 1948, nascia o
segundo filho do casal Paulo e Áurea, que seria batizado com o nome
do avô paterno: Pedro Leminski. A família aumentava, mas os bons
ventos do pós-guerra anunciavam um período de reconstrução e
prosperidade. Vivia-se em todo o país a febre da procura por bens de
consumo, principalmente de produtos eletrônicos: rádio, geladeira e
chuveiro elétrico. Não era necessário subir em escadas e nem trepar
em árvores para enxergar, logo à frente, despontando no horizonte,
aqueles que seriam chamados de Os Anos Dourados.
Nestes dias, Paulinho adquiriu o estranho hábito de subir no
guarda-roupa. Ele justificava dizendo que ali não seria importunado
pelo irmão caçula, que circulava pela casa engatinhando
freneticamente, “procurando confusão”. Diariamente, Paulinho pedia
ao pai para colocá-lo sobre o enorme móvel de jacarandá, onde
passava horas compenetrado em leituras e divagações...
Em 1949, por força de um ato de transferência interna do
Exército, o sargento Leminski se viu obrigado a reunir a família e
preparar a mudança “de malas e cuia” para Itapetininga, no interior
de São Paulo. A viagem e os transtornos decorrentes dela —
considerando uma família com duas crianças, sendo uma recém-
nascida — foram recompensados com a promoção para subtenente,
agora da 2ª Companhia de Transmissão. Os garotos Paulinho e
Pedrinho tinham então 5 anos e 1 ano, respectivamente, e gostavam
de bater continência sempre que viam o pai fardado.
Na manhã de 3 de março de 1950, através de um telegrama
nefasto e carregado de dramaticidade, eles souberam da morte de
Fernando, o pai de Áurea. Dois dias depois, uma nota seria
publicada no Diário de Itapetininga, anunciando “o passamento, em
Curitiba, de Fernando Pereira Mendes, Membro da Academia de
Letras José de Alencar e sogro do Subtenente Paulo Leminski,
atualmente servindo nesta praça”.
Novas mudanças viriam em seguida. Antes do final do ano eles
estariam de volta ao Sul, indo morar em Itaiópolis, uma pequena
cidade de Santa Catarina. A casa ficava num bairro afastado do
centro urbano, uma vila militar conhecida como “Quilômetro 34”.
Era um ponto estratégico para o Exército, com relação ao que se
imaginava fosse o nosso inimigo em potencial, a Argentina. Foi um
período no qual os Leminski viveram cercados por uma paisagem
bucólica, de inspiração rural, que iria permitir aos meninos travarem
contato direto com a vida simples do interior, um traço que ficaria
indelevelmente marcado em suas personalidades até o fim.
Na lembrança de Tia Luiza, que por duas vezes visitou a irmã
Áurea em Itaiópolis, Paulinho era mesmo um menino esperto e
“superativo”, no sentido moderno da palavra. Iniciou os estudos
oficiais aos cinco anos, quando foi matriculado numa escola pública
perto de casa. Gostava de subir em árvores e dormir no sótão das
casas. Certa vez, dona Áurea foi surpreendida com a visita de um
grupo de índios que vieram entregar peças de artesanato
encomendadas pelo garoto e já pagas com suas próprias economias.
É tia Luiza quem conta:
— Os índios trouxeram arcos, flechas e pequenos utensílios em
madeira e couro. Foi surpreendente, pois o Paulinho era apenas uma
criança, conhecendo novos amigos e fazendo negócios a sério.
Na hora de comer, Paulinho tinha sempre um bom apetite,
fazendo do trivial arroz, feijão e banana o seu prato preferido.
Quando ficava em casa, principalmente nos dias de chuva, gostava
de observar a mãe desenvolvendo as tarefas domésticas, no preparo
do almoço e do jantar, enquanto ouvia no rádio os últimos sucessos
de Agostinho dos Santos, Pedro Vargas ou Dalva de Oliveira, seus
artistas favoritos:
— Lábios que eu beijei, mãos que eu afaguei...
Quando já era um poeta famoso, Paulinho (grafando assim o
nome como uma referência à criança que havia dentro dele)
escreveria poemas onde se percebe com nitidez a inspiração
originada nestas “janelas do tempo”:
lá fora e no alto
o céu fazia
todas as estrelas que podia
na cozinha
debaixo da lâmpada
minha mãe escolhia
feijão e arroz
andrômeda para cá
altair para lá
sirius para cá
estrela dalva para lá
Ou este outro, também fruto da observação do “cotidiano
materno”:
Minha mãe dizia:
— ferve, água!
— frita, ovo!
— pinga, pia!
E tudo obedecia
Quando em muitos aspectos a ordem social e política no Brasil
estava sendo reorganizada, surgem os primeiros problemas trazidos
pelo álcool para dentro da família Leminski. O “sargento”, como ele
ainda era conhecido, vinha transformando o hábito de tomar
“aperitivos sociais” num ritual cada vez mais destemperado na
quantidade e nas conseqüências. Era considerado um bom marido e
um pai zeloso, mas sua imagem naturalmente dolente e calada
ganhava agora a aparência doentia de um homem de pijamas e com
a barba por fazer. Certa vez, quando uma visita entrou na cozinha
para tomar água, foi aconselhada pelo pequeno Paulinho a não usar
determinado copo que estava na cristaleira. O garoto nem falava
direito, mas já se fazia entender:
— Não pode usar “porcoso” que este é o copo que o meu pai
gosta de beber cachaça.
Em seguida, uma nova transferência para outra base militar e
os Leminski estavam agora na pequena Rio Negro, na divisa do
Paraná com Santa Catarina, a 50 km de Itaiópolis. A rigor, eles
apenas mudaram de bairro e foram morar na Vila Paraíso, onde se
concentravam as casas dos oficiais que vinham de outras regiões.
Ali, Paulinho concluiu a última série do curso primário no Colégio
Estadual Dr. Caetano Munhoz da Rocha, onde também prestou o
exame de admissão ao ginásio, em 1955. Nos seis créditos do teste
de admissão, ele foi aprovado com média 7,48, sendo que suas
melhores notas foram em Geografia e História, com as notas 9,5 e
7,2, respectivamente. Mais tarde, ele diria ter produzido, nesta
época, aos 8 anos, seu primeiro poema, “O Sapo”, cuja temática
remetia à vida campesina e bucólica do interior do Brasil.
No dia do seu aniversário, quando completaria dez anos,
Paulinho e toda a nação brasileira foram surpreendidos logo pela
manhã com uma notícia dita bombástica: Getúlio Vargas se
suicidara com um tiro no coração. A crise política no Palácio do
Catete chegava a seu ponto culminante com a divulgação da carta-
testamento assinada de próprio punho pelo presidente. Como
conseqüência deste infausto acontecimento, a festa de aniversário de
Paulinho foi bastante contida e reservada; além do irmão Pedro,
agora com 6 anos, poucos amigos do bairro apareceram para cantar
o “Parabéns pra você”.
Dois anos depois, em agosto de 1956, finalmente os Leminski
arrumariam as malas e voltariam para Curitiba. Foram morar numa
pequena casa de alvenaria na rua Heitor Guimarães, 624, no bairro
Seminário, a poucos metros do tradicional Internato Paranaense. O
aluguel não era caro e as despesas continuavam compatíveis com os
proventos de um oficial militar. Provavelmente teria sido a
proximidade física com o colégio — e não propriamente uma
inclinação religiosa — a razão pela qual Paulinho seria matriculado
na tradicional instituição dos irmãos maristas, um ensino com
prestígio na cidade.
Para se entender o que vai acontecer com Paulo Leminski deste
ponto em diante, é necessário antes avaliar — ainda que
sucintamente — a importância e o significado do ensino religioso na
educação e na formação intelectual de gerações de brasileiros.
Concebidas como pilares vocacionais das ordens missionárias
jesuíticas, as escolas de cunho religioso que se espalhavam pelo país
na virada do século funcionavam como um veículo para arregimentar
e catequizar, muito além de alfabetizar. Apenas flertando com as
elites, as ações sociais da Igreja ampliavam os laços de integração
com as comunidades (fiéis) de base, tornando-se todos, por muitas
vezes e em diferentes circunstâncias, uma grande família. Era o
Brasil das missas, das novenas e das quermesses dominicais. O
Brasil cristão. E dos milagres diários.
Os métodos de ensino e o relacionamento com o mundo
exterior eram diferentes para cada ordem religiosa, e as mais
conhecidas e presentes na vida brasileira eram justamente as dos
maristas, franciscanos, dominicanos, clareteanos (ordem fundada
por Santo Antonio Maria Claret, com hábitos pretos e colarinhos
brancos) e beneditinos. Algumas ordens eram reconhecidamente
mais liberais, outras mais conservadoras. Além de uma certa
pedagogia educacional de elite, os colégios ofereciam, em alguns
casos, outros bens igualmente inestimáveis aos seus alunos: cama,
comida e roupa lavada.
Paulo Leminski Filho foi aceito no Colégio Paranaense — que
continuava, informalmente, sendo chamado apenas de Internato —
em agosto de 1956. Tinha onze anos e foi matriculado na 1ª série,
turma B, turno da manhã, em regime de semi-internato — o que lhe
permitia passar as noites em casa. Ali, ele encontraria pela primeira
vez, entre as nove disciplinas do currículo, o latim e o francês — as
línguas estrangeiras, com as quais ganharia no futuro o status de
“tradutor poliglota”.
Neste primeiro ano entre os maristas, dizem os boletins, o
aluno obteve bom rendimento em geografia, francês, história do
Brasil e latim, nesta ordem. Sua paixão pelos idiomas acabaria
funcionando, também, como um catalisador de seus interesses pelos
estudos clássicos. Foi neste período que Paulo Leminski encontrou e
se fascinou com ensinamentos contidos em dicionários e
enciclopédias. Passou a decorar, por sua própria iniciativa, palavras
em inglês e francês, tentando freneticamente dominar o vocabulário.
Ficava horas debruçado sobre o “Caudas Aulete” e a enciclopédia
Britannica (em inglês, pois apenas nos anos 60 seria editada no
Brasil), suas fontes preferenciais de consulta.
No ano seguinte, 1957, os estudos trariam uma outra
aguardada novidade: o inglês, que finalmente passava a fazer parte
do currículo, completando uma grande área de interesses em torno
dos idiomas. O resultado do boletim da 2ª série, igualmente
significativo, registrava a média final 7,50. Os melhores
aproveitamentos seriam em francês, com nota 8,40; latim, 8,12; e
inglês, 7,40. O desempenho mais fraco seria em matemática, com
4,40 de média. Mas, certamente, não foram estas as únicas
tendências da temporada. A grande surpresa estava no interesse
súbito que o menino passou a demonstrar pela vida religiosa. Foi
apresentado pelos maristas às obras completas de padre Antonio
Vieira e toda a literatura católica. Devorou o que encontrou pela
frente. No final do ano, estava aprovado com média 6,43 — nada
excepcional, mas o suficiente para conseguir uma matrícula na 3ª
série.
Para a mãe, o garoto revelava na intimidade:
— Vou decorar tudo, saber o significado de cada palavra!
Passou o ano inteiro no desenvolvimento desta magistral e
enlouquecida tarefa. Deixou a família preocupada e chamou a
atenção de professores e educadores para o seu comportamento
precoce. Tinha uma espantosa capacidade de memorização,
decorando textos e poemas com extrema facilidade. Era fissurado em
Camões, Homero, Antero de Quental, que faziam parte de sua leitura
diária. O pai militar contribuiu com Euclides da Cunha e o relato
épico de Os sertões. O aluno foi aconselhado a recorrer a estudos
ainda mais rigorosos, seguindo uma possível vocação religiosa e
contrariando o desejo do pai, que sonhava em vê-lo na Academia
Militar. Foi assim que Paulinho, durante um período de pesquisa
autogerenciada e informal, acabou conhecendo o Colégio São Bento,
em São Paulo, uma instituição secular mantida pelos monges
beneditinos.
Descobriu que os monges viviam em mosteiros misteriosos e
lúgubres, concentrados em leituras e análises meticulosas de
palimpsestos e manuscritos da Idade Média. Ficou sabendo que a
Ordem dos Beneditinos fora fundada por São Bento de Núrsia (480-
547), também criador das Regras, uma espécie de “normas para a
vida no Monastério”. Curioso, fez perguntas e obteve respostas
precisas sobre tudo. Ouviu relatos sobre as verdades bíblicas e já se
sentia familiarizado com as diversas teorias da criação, quando sua
imaginação voou... Em poucos dias estava com o endereço do
mosteiro na mão e pôs-se a escrever uma carta para o coordenador
da escola, D. Clemente, pedindo informações sobre como devia
proceder para tornar-se um monge. A mensagem foi escrita de
próprio punho e nela Paulinho se candidatava a uma vaga na 3a série
do curso ginasial, em regime de internato. Anos mais tarde, D.
Clemente recordaria esta troca de correspondência:
— Ele fez tudo sozinho, apesar de sempre consultar a família.
Eu respondi explicando as regras do Colégio, lembrando que por
uma questão de idade, ele deveria vir para o curso dos oblatos, como
são chamados os alunos do ginasial ainda sem idade para o
noviciado. Ele gostou da idéia e prometeu cuidar de tudo.
No âmbito doméstico, a notícia soou como uma bomba. O velho
reagiu demonstrando inicialmente uma certa inquietação com o
futuro do filho, mas no final acabou ajudando a organizar a viagem
— inclusive tirando do colete sua grande coleção de conselhos e
provérbios, com os quais sempre alinhavava as conversas reservadas
com a família. Dona Áurea, que não estava com o espírito preparado
para esta situação, sofreu o impacto da notícia. Tentou fazer o filho
recuar da decisão, mas, nos dias que se seguiram, já sem
argumentos, chorava dia e noite. Na verdade, ela chorou até a hora
da partida de Paulinho, numa manhã de fevereiro de 1958.
Quando entrou num ônibus na rodoviária de Curitiba, em
companhia do pai, o garoto — então com 13 anos — sabia que após
uma viagem de quase oito horas teria pela frente um período difícil,
possivelmente com noites de solidão e saudades de casa. Talvez até
mesmo viesse a estranhar a comida ou o novo colchão... Mas
nenhum obstáculo ou desconforto, por maiores que fossem, parecia
suficiente para afastar dele a idéia de se tornar um monge e atingir,
através de exercícios de meditação e estudos aprofundados, a tão
almejada sabedoria.
CAPÍTULO 3
A VIDA NO MOSTEIRO E ALÉM
O mosteiro de São Bento — uma construção quadrilátera no
estilo normando, de três andares, solidamente edificada no centro da
cidade de São Paulo — lembra, em muitos aspectos, uma fortaleza
impenetrável. O edifício passou por diversas reformas ao longo dos
séculos, mas a iniciativa de construí-lo em grandes proporções deve-
se ao legendário bandeirante Fernão Dias Paes, um devoto de São
Bento e amigo dos beneditinos. A escritura, lavrada em 17 de janeiro
de 1650, denomina a área como aldeia de Piratininga. As obras de
construção da abadia se estenderam por mais de dez anos. O colégio
foi inaugurado somente em 1903, oferecendo vagas para turmas em
regime de internato e externato.
Com o passar dos anos, o Colégio de São Bento colocaria à
disposição dos estudantes, além da cultura secular da ordem
eclesiástica dos beneditinos, uma rica e formidável biblioteca com
cerca de 70 mil volumes, catalogados com rigor e metodologia. Tal
acervo contribuiria para a formação intelectual de alunos ilustres
como Godofredo da Silva Teles, conceituado jurista paulista e
primeiro aluno a se matricular no colégio; Sérgio Buarque de
Hollanda, Guilherme de Almeida, Américo Brasiliense, Francisco
Prestes Maia e... Paulo Leminski Filho.
Quando chegou ao mosteiro de São Bento, Paulinho se fazia
acompanhar do pai e carregava com dificuldade uma mala com
roupas de inverno e um pequeno baú repleto de livros. Eram obras
clássicas de literatura e alguns dicionários, dos quais o aplicado
aluno dava sinais de não querer se separar em momento algum. Pai
e filho foram recebidos na portaria do prédio principal pelo diretor da
Escola Claustral, D. Clemente, que lhes deu as boas-vindas em nome
do mosteiro, e por José Maria Siviero, o “hospedeiro”,* então com 11
anos, representando os novos colegas. O sargento Leminski estava
vestido com elegância naquela tarde, exibindo um terno bem cortado
de casimira e chamando a atenção por manusear um vistoso chapéu
de feltro, em tom escuro. D. Clemente lembra-se do efeito causado
pela impoluta figura:
— Era um homem forte e educado, muito cerimonioso. Ele
estava trazendo o filho, do qual tinha muito orgulho, e aceitou o
convite para passar a noite como nosso hóspede.
Um detalhe ao acaso permite que o hospedeiro José Maria
consiga lembrar com exatidão, quarenta e um anos depois, a hora da
chegada dos Leminski ao mosteiro: 17:15. O jantar no refeitório
coletivo tinha como tradição religiosa ser servido pontualmente às
17:30. No momento em que as malas e o baú estavam sendo
arrastados para dentro do claustro, os outros alunos já se
acomodavam nas mesas. Ele e Leminski tiveram pouco tempo para
largar a bagagem no terceiro andar, na ala dos oblatos, e descer para
se juntar aos demais. Na pressa, Siviero largou o chapéu do pai de
Leminski sobre o baú e correu escada abaixo, excitado:
— Foi engraçado porque após o jantar, quando fui buscar o
chapéu, aconteceu um imprevisto. A sala do terceiro andar estava
escura e eu acabei batendo com o joelho na quina do baú — o que,
além de provocar uma dor terrível, me fez cair sentado sobre o
chapéu. O objeto adquiriu o formato de uma pizza... Nós, os garotos,
rimos muito desta cena, enquanto o pai dele tentava consertar o
estrago.
* Como era chamado o aluno escolhido para fazer o contato entre o claustro e o mundo exterior, na função de “hospedar” novos companheiros ou receber visitas oficiais. O cargo não era vitalício.
A escola de oblatos tinha nesta época vinte e dois alunos, que
ocupavam quase todo o terceiro andar da ala dos fundos do edifício.
Um elevador “antigo”, com estrutura de ferro e chave privativa, servia
de acesso exclusivo para monges e professores. Os meninos faziam
uso da escada que começa ao lado da piscina interna, passa pelas
salas de aula do segundo andar e vai terminar em frente à porta que
dá acesso aos dormitórios, no topo do edifício. No total, são dez
cubículos (aposentos individuais) fechados por cortinas de pano,
formando um semicírculo no salão. No centro, uma mesa e duas
cadeiras.
Todos os cubículos, como é próprio de um monastério,
ostentavam o máximo em despojamento material: uma cama, uma
mesa e uma cadeira. (Estava sendo criada a ambivalência estética
que ele adotaria para o resto da vida.) Do outro lado, seguindo pela
porta da esquerda, chega-se ao aposento coletivo — onde dormiam
os alunos menores —, um grande salão com capacidade para outras
dez ou doze camas. E, finalmente, bem à direita, a porta que conduz
ao aposento de D. Clemente, o supervisor, hoje transformado em
capela.
Os noviços — alunos mais velhos, que usam hábitos de monge
— ocupavam as clausuras da ala frontal do mosteiro, ou seja, no
lado oposto aos aposentos dos oblatos, que usam hábitos brancos
em dias de cerimônia. Em ambos os casos, as janelas laterais
voltadas para o pátio interno — o claustro — oferecem uma visão
completa e aérea do vistoso jardim, onde se destacam a árvore
símbolo pau-brasil e um pequeno lago com água corrente e peixes
ornamentais. É um lugar onde se respira paz e tranqüilidade, e o
silêncio é sagrado. Conservando uma tradição que se mantém até
hoje inabalável, mulheres não podem entrar neste ambiente.
Sabe-se que Paulinho não teve nenhuma dificuldade de
adaptação na escola. Após uma semana, exatamente no dia 4 de
março, ele escreveu a primeira carta para a mãe, saudando-a —
como faria regularmente, a partir de agora — com a palavra latina
Pax! Falava da rotina no mosteiro e anunciava que tinha visitado o
órgão de tubos e os sinos da basílica. E concluía:
Aqui temos futebol (eu não gosto e não jogo), piscina e
cinema. D. Clemente, os monges e os meninos são
muito bons para mim. As aulas já começaram. Despede-
se o Paulo com um beijo e um abraço; ao Pedro minhas
lembranças.
Entre seus novos companheiros, Paulo Leminski (que
começava a abandonar a identidade de Paulinho para ser chamado
apenas de Leminski) foi encontrar um verdadeiro time de futebol já
armado. Sinval de Itacarambi Leão, um paulista de Araçatuba, era o
centro-avante deste time. Mesmo sendo de uma turma mais velha,
Sinval lembra-se vivamente de quando o jovem curitibano,
matriculado com o número 277, passou a fazer parte da vida do
mosteiro:
— O Leminski apareceu provocando um impacto na turma com
a sua inteligência e sagacidade. Era, sem nenhuma dúvida, o mais
culto entre nós. Possuía uma inquietação cultural e existencial muito
grande. Com apenas 13 anos tinha carisma e, talvez o mais
importante, era generoso e não nos ofendia com sua inteligência.
Para Sinval — que no futuro seria jornalista e editor da revista
Imprensa — o curto período que Leminski passou no mosteiro — um
pouco mais de um ano — parece ter sido multiplicado por dois, tal a
intensidade da relação entre o novo aluno, os colegas e a instituição.
(No futuro, Leminski iria valorizar esta passagem, dizendo ter ficado
“dois, três anos no São Bento”.) Sinval recorda-se que logo nas
primeiras semanas Leminski consolidara grandes amizades no novo
ambiente, inclusive com os monges mais eruditos do mosteiro. Entre
eles, um em particular acabaria exercendo forte influência em sua
vida: D. João Mehlmann, um exegeta igualmente inquieto que, além
de ser considerado um intelectual sofisticado e sério, ocupava a
função técnica de organista da Basílica. D. João, que passava o dia
lendo e fumando charutos, reagiria com surpresa ao saber que um
certo aluno, oriundo da turma dos oblatos, se vangloriava de ter lido,
aos doze anos, uma enciclopédia inteira, de A a Z. Até então, ele
acreditava ser o único a ter realizado tal façanha. Ato contínuo, deu
duas baforadas e cruzou os corredores do mosteiro; entrou no
elevador e subiu até a ala dos obtatos no terceiro andar; queria
conhecer pessoalmente Paulo Leminski. A partir do primeiro
encontro, que aconteceu sob o signo dos estudos e do conhecimento,
os dois ficaram bons amigos.
Foi D. João Mehlmann, um doutor na Sagrada Escritura, cuja
especialidade era estudar os autores gregos no original, quem
apresentou a Leminski a biblioteca do mosteiro, no segundo andar.
Ali, o garoto encontrou o que procurava: obras de autores clássicos
servidas de bandeja por um orientador (tradutor) ideal para a tarefa.
Interessou-se por latim e grego, tendo se aprofundado no estudo do
Panteão, onde se perfilam os deuses sagrados da mitologia. Atualizou
estes estudos religiosos através de Spinoza (Baruch), um expoente do
panteísmo moderno, que organizou e catalogou as religiões,
conferindo-lhes definições, axiomas e postulados.
A partir deste encontro, Leminski receberia informações
místicas e se deixaria fascinar pela cultura religiosa. Conheceu e se
dedicou a entender a semiologia musical do Canto Gregoriano, um
gênero difundido entre os monges e freqüentemente entoado pelo
coral durante as cerimônias oficiais. É fato, também, que ficou
visivelmente impressionado quando soube que na Idade Média os
monges compuseram os Cantos Gregorianos acreditando ser a
música cantada por anjos e santos, no Céu, diante do Senhor. Na
terra, os monges “recebiam” uma graça momentânea e compunham
estes cantos, identificados por Leminski como “o verdadeiro som
celestial”:
Dominas dixit ad me: Fillius meus es tu, ego hodie genui te.
Quare fremuerimt gentes: et populi meditati sunt inania?*
O depoimento de D. Clemente, concedido anos mais tarde,
quando se encontrava afastado do monastério, pode ajudar a
elucidar o relacionamento entre Leminski e D. João Mehlmann:
— Os dois passaram a estudar juntos e discutir temas de
grande profundidade. D. João transferiu para o Leminski uma carga
muito grande de conhecimento, o caminho das pedras para o
aprendizado das línguas clássicas. Eles gostavam de discutir as
“obras-mães”, como diziam.
O resultado desta convivência se traduziria nas primeiras
notas do ano letivo de 1958, as chamadas “argüições” do boletim,
onde se pode ver um 10 em história geral, dois 9, em latim e religião,
e um 8 em francês. As piores notas do primeiro semestre, dois zeros
categóricos, foram em matemática, nos meses de abril e maio. O
comportamento do aluno, neste sentido, revelava uma forte
inclinação pedagógica: as coisas que ele amava, amava muito e se
esforçava para entender; as que não gostava, sequer tomava
conhecimento... Desde cedo seus professores perceberam que o
melhor seria investir nos estudos em que ele demonstrasse interesse
e aptidão, para não dizer voracidade intelectual. Assim foi feito com
as línguas — incluindo o português — e história universal, cátedras
com as quais Leminski criaria uma estreita relação no futuro.
O gosto pela poesia o aproximaria também de Luís de Camões
* O Senhor me disse: “Tu és meu filho, eu hoje te gerei.” Por que as nações se amotinam e os povos meditam coisas vãs? Ad missam innocte (A missa da noite), cânticos de Natal.
— foi visto várias vezes com Os Lusíadas debaixo do braço — e,
assim que se estabeleceu, juntou-se a Sinval de Itacarambi para
fundar, informalmente, a Academia de Letras Miguel Kruse, em
homenagem ao abade que construiu o Colégio de São Bento, no
início do século. Eles fizeram uma réplica da ABL, constituindo
estatutos, regulamentos éticos e cadeiras, sendo que a de número 1
seria destinada a Carlos Francisco Berardo, que se recorda da
homenagem:
— A academia foi fundada sob a inspiração de D. Clemente,
mas Leminski e Sinval eram seus maiores entusiastas. Acredito que
o Leminski, nesta época, já se correspondia com escritores famosos.
Notava-se nele, então, alguns traços de boemia, não com relação às
bebidas, evidentemente, mas com relação ao romantismo.
Ao mesmo tempo, o ritual secular do mosteiro, que começava
diariamente às 5:30, era forte componente disciplinar na vida dos
oblatos. O grupo mantinha a rotina de assistir à missa das 6 horas,
mesmo no inverno mais rigoroso, para só depois fazer o desjejum no
refeitório. As aulas começavam invariavelmente às 7:05, com todos já
sentados à espera do professor. Revelando uma memória prodigiosa,
Leminski em poucas semanas já tinha decorado vários salmos de
Davi e demonstrava preferência pelo de nº 105, cujo canto 34 faz um
resumo do Êxodo, referindo-se especialmente às “nuvens de
mosquitos e gafanhotos”. Uma imagem cinematográfica para uma
literatura transcendental.
Segundo o depoimento de Sinval de Itacarambi, Leminski
passou o ano inteiro estudando com empenho, sem trégua e sem
hora de recreio:
— Apesar de ficar a maior parte do tempo sobre os livros, ele
não era visto como um aluno “caxias”; pelo contrário, era
considerado mais um anarquista com idéias próprias e originais.
Gostava de nos envolver com questões que ele mesmo definia como
“fundamentais”. Sabia conversar e tinha orgulho do próprio
discernimento. Assim que o conhecemos ficamos fascinados por ele.
Outro monge, D. José Leandro, um paranaense de
Guaraqueçaba — que também havia sido aluno do Internato, em
Curitiba —, não esconde um sorriso ao lembrar de Leminski
circulando “garboso” pelos corredores, falando para os colegas que se
preparavam para jogar futebol, em tom de brincadeira:
— Vamos, existem coisas mais importantes do que futebol.
Façam consultas — ele dizia, levando o dedo indicador à cabeça —,
aqui dentro tem uma enciclopédia. É grátis...
D. Leandro se emociona ao falar do carisma do jovem
estudante que, segundo ele, se destacava por apresentar um nível
cultural “bastante” acima dos demais:
— Apesar disso ele era muito bagunceiro e esperto. Participava
das festividades da escola e era querido por todos.
O decano desta turma, a quem cabia, na estrutura social da
escola, organizar e disciplinar seus próprios colegas, era Osvaldo
Torrell de Almeida Costa, escolhido para o cargo exatamente por ser
um dos mais velhos do elenco. Torrell tinha muito trabalho com
Leminski na questão disciplinar:
— Ele costumava desaparecer com muita freqüência. Certa vez,
ao fazer a conferência na hora de dormir, percebi que ele não estava
em sua cama. Já era tarde e, depois de muito procurar na vastidão
daqueles aposentos, fui encontrá-lo dormindo atrás do piano, com
um travesseiro no rosto e um ar angelical.
É possível que um pouco da tolerância encontrada junto aos
novos colegas deva-se ao fato de que Leminski, ao contrário da
maioria dos garotos, não “sabia” jogar futebol, o que poderia ser
considerado “algo de menos” neste pequeno universo lúdico. (Em
matéria de futebol, o máximo a que Leminski arriscou foi ser
torcedor do Atlético.) De qualquer maneira, tal “deficiência” era
amplamente compensada pelo estilo e personalidade do rapaz. Para o
hospedeiro José Siviero, suas qualidades eram marcantes:
— O Leminski tinha um físico avantajado, um corpo de atleta
emoldurando uma personalidade forte. O fato de não jogar futebol,
como mandava um certo figurino, não fazia dele um molengão. Ele se
impunha numa conversa, falava alto e com determinação. Discutia
com os professores, criava clima para o debate... Isto, na idade dele,
era uma coisa fora do comum.
No início, ele ocuparia uma cama no dormitório coletivo, junto
aos alunos menores. Mais tarde, devido ao seu tamanho, seria
separado dos infantes e transferido para um cubículo individual,
indo se juntar aos garotos de 14 e 15 anos. Nesta época, o que já era
uma tendência no seu comportamento acabou se transformando em
atitude: definitivamente, não gostava de tomar banho. Participava
das brincadeiras no sítio “dos padres”, em Itapecerica da Serra,
exercitando salto em altura ou jogando futebol (era desajeitado e
algumas vezes foi visto atuando na defesa), mas na hora de ir para o
chuveiro procurava desconversar: “Tenho mais o que fazer”, dizia,
referindo-se às jornadas de estudos com as quais vinha
conquistando a fama • de aluno excepcional. Era vaidoso com o físico
e gostava de andar sem camisa, sempre que o clima e as ocasiões
permitiam.
Quase na metade do ano, mais precisamente no feriado do Dia
do Trabalho (1º de maio), os monges programaram um passeio dos
oblatos a Santo Amaro, naquela época um bairro “afastado” do
centro de São Paulo. Era a chácara dos padres, uma espécie de clube
de campo do noviçado. Para os garotos, seria uma trégua nos
estudos, um merecido e aguardado dia de recreação ao ar livre.
“Afinal, ninguém é de ferro!”, diziam. Todos se prepararam com
antecedência com grande expectativa, o que acabou gerando uma
ansiedade maior que se arrastou por intermináveis dias da semana
anterior... Finalmente, a viagem foi feita numa “jardineira” ou
“lotação”, como eram chamados os microônibus de então.
Fazia uma tarde agradável, com céu azul e sol forte. Na
lembrança de alguns ex-colegas — e no registro de várias fotografias
— Leminski foi o único que não entrou no lago, preferindo brincar
longe da água. Mesmo sendo alvo de zombarias, não se intimidava e
mantinha uma franca estratégia de contra-ataque ao promover um
desfile in vitro de suas qualidades físicas, desafiando qualquer um
para os chamados esportes olímpicos: salto em distância, corrida
livre... Nestas horas, podiam-se ouvir músicas no rádio transistor e
cantar junto os grandes sucessos do momento, a italiana “Nel blu
dipinto di blu”, com Domenico Modugno, e “Chega de saudade”, com
João Gilberto:
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca...
Certa vez, Leminski tornou-se o centro das atenções dos
colegas ao participar, involuntariamente, de uma cena curiosa. Ao
ser descoberto um rato no dormitório dos menores, imediatamente os
alunos deram início a uma verdadeira caçada ao animal. A correria e
a algazarra se instalaram por alguns minutos no 3º andar do
mosteiro. Em flagrante desespero, o indesejado roedor corria de um
lado para o outro, passava zunindo, ora em ziguezague, ora por
debaixo das camas, arrastando uma horda de garotos atrás dele.
Leminski estava parado, assistindo a tudo encostado num pilar,
quando o rato passou-lhe pela frente. Num gesto rápido e certeiro ele
desferiu um chute fatal no animal, que subiu e foi bater na parede
oposta, antes de cair estatelado no assoalho. Foi uma cena
surpreendente... Em seguida, saiu dizendo num jeito muito
particular dele:
— Tem certas coisas que é melhor fazer sem suar a camisa...
O fascínio e o interesse pela secular tradição dos beneditinos,
sua história e personagens, teriam levado Leminski a escrever,
nestes dias, aquele que seria o seu primeiro (esboço de) livro: as
biografias dos principais santos da Ordem. Estudou a vida do
patriarca, o venerável São Bento de Núrsia, a partir de uma obra
escrita no ano 593 pelo papa Gregório Magno, em latim. Suas
anotações o teriam levado, ao longo de várias semanas, a
esquematizar e ordenar esta curiosa árvore genealógica dos
beneditinos. O resultado da empreitada parece ter sido um pequeno
caderno escolar com dezenas de folhas preenchidas, das quais não
se conhece nenhum vestígio.
É provável, também, que Leminski tenha estabelecido nesta
mesma época os primeiros contatos com os fundamentos filosóficos
de outras religiões, notadamente o budismo e o zen-budismo. De
qualquer forma, sabe-se que através de D. João Mehlmann ele ficaria
conhecendo o “outro lado” da religião, as chamadas “filosofias
orientais”. Dizia-se atraído por um pensamento que pudesse
estabelecer uma unidade harmônica entre o indivíduo e o Universo,
“sem intermediários”. Seguindo o pensamento de Santo Agostinho,
porém sem as amarras da ortodoxia. No futuro, estas descobertas e
influências seriam marcantes em sua vida intelectual — e
devidamente utilizadas como temática de alguns ensaios e inspiração
para muitos poemas.
Assim que se sentiu à vontade no novo ambiente, Leminski
adquiriu um outro hábito que no futuro lhe acarretaria alguns
aborrecimentos junto à direção do mosteiro: passou a colecionar
fotos de mulheres (vedetes) em trajes sumários, publicadas na última
página do jornal A Gazeta Esportiva. Ele aproveitava as eventuais
saídas — normalmente para ir às aulas de canto orfeônico, com a
turma do coral — e, de uma forma dissimulada e sorrateira,
comprava o jornal numa banca das redondezas. Na época, A Gazeta
era uma publicação bastante popular entre os torcedores de futebol,
fanáticos por jogos e mulheres — ao que tudo indica, nesta ordem —
que, a bem da verdade, faziam exatamente como ele: recortavam as
fotos e as penduravam em paredes de oficinas ou em murais de
escritórios. No caso dele, num álbum secreto escondido sob o
colchão.
A título de ilustração, sabe-se que a favorita entre as starlets,
aquela que ocupava o lugar de destaque na imaginação e no álbum
do adolescente, era nada mais e nada menos do que a incomparável
(dizia-se “a coqueluche do momento”) atriz francesa Brigitte Bardot.
O sucesso nas telas em ... E Deus criou a mulher (o título é uma
sagrada coincidência), filme dirigido pelo marido Roger Vadim dois
anos antes, confirmava a preferência da torcida brasileira pelo
sotaque francês de BB. Os lábios carnudos e a pose lânguida
estampada no álbum certamente embalaram algumas “homenagens”
do garoto à bela musa, na solidão dos cubículos.
Foi com a cumplicidade de alguns monges ditos “progressistas”
que Leminski e Clemens Schrage, um dos craques do time dos
oblatos, tiveram acesso — aos 14 anos — a La Putaine Respectueuse,
de Sartre. Clemens lembraria mais tarde:
— Eu e o Leminski tínhamos a mesma idade e fizemos muitas
sabotagens juntos. Andávamos sobre o telhado do mosteiro e
acabamos delatados pelos moradores dos edifícios próximos. Para
contra-atacar, arrombamos algumas salas eternamente fechadas,
que continham o inventário da elite do colégio.
Em uma destas salas, a dupla dinâmica encontraria trinta
pianos e uma coleção inacreditável de penicos coloridos de porcelana
francesa. Era uma visão fantástica, que eles se permitiriam vivenciar
repetidas vezes:
— Nossas ações neste setor do edifício nunca foram
descobertas e nem reveladas.
Para compensar alguma possível tendência para o relaxo,
cortejado quase sempre nas esferas dedicadas a Eros, o deus da
sensualidade, havia os momentos de extremo rigor, que continuavam
permeando de informação e conhecimento os dias de Leminski no
mosteiro. As cerimônias pomposas na basílica, em datas especiais,
lhe mostrariam a magnitude do ritual litúrgico. Como a missa
celebrada no Sábado de Aleluia, por exemplo. Era sempre um dia de
grande excitação no mosteiro. Durante a cerimônia, na condição de
acólitos,* os garotos entravam na basílica vestidos com paramentos
roxos — assim como todas as estátuas dos santos, que permaneciam
cobertas desde o início da Quaresma. Havia um momento, durante o
ofertório, em que um dos coroinhas aparecia na entrada principal da
igreja carregando um cordeiro; era o Agnus Dei, o “cordeiro de Deus
que tirais os pecados do mundo”. Numa outra passagem, todos
trocavam de roupa na sacristia, rapidamente, para voltar com
vistosas e alegres batinas amarelas. Era um momento mágico. Os
panos roxos das estátuas caíam e o abade D. Afonso entoava “Gloria
in Excelsis Deo”, com uma voz soberba e poderosa. No órgão de
tubos, profundamente compenetrado, D. João Mehlmann.
— Era um jogo de cena incrível, uma metamorfose que
encantava a todos — lembra Siviero, ele mesmo o encarregado,
durante três anos seguidos, de conduzir o cordeiro ao altar.
Nestas ocasiões, os sinos monumentais eram acionados,
aumentando o tom solene da cerimônia. O Cantabola, o maior e mais
pesado de todos os sinos, com 4,5 toneladas, badalava com alegria e
majestade, fazendo-se ouvir por todo o extenso vale do Anhangabaú.
A basílica impregnada de incenso, as pessoas tossindo
baixinho, o bruxulear das velas, tudo remetia a uma atmosfera de
meditação e recolhimento. O refinamento e a beleza — observados
nos vitrais da basílica, nos tecidos de linho branco e nas obras de
* Como são chamados os coroinhas que ajudam o padre a celebrar a missa.
arte sacra — eram oferecidos como uma espécie de recompensa para
aqueles que escolheram a abstinência e a fé como o Caminho da
Verdade. Paulo Leminski viveu intensamente este clima, deixando-se
tocar pelos dogmas da religião, tornando-se para sempre uma pessoa
de vida simples e hábitos despojados.
Logo depois da Páscoa, a primeira data especial no mosteiro
era o Corpus Christi, no início de junho, quando voltavam as
cerimônias pomposas e os oblatos podiam novamente vestir seus
hábitos brancos. Para confirmar as boas notícias em âmbito
nacional, antes mesmo do final do mês, no dia 29, o Brasil ganharia
a Copa do Mundo, vencendo a Suécia na decisão, em Estocolmo, por
4 x 0, com um show de Pelé, agora o rei do futebol.
Foi assim, em meio ao furor das comemorações, que seria
acertado entre seu pai e D. Clemente, através de uma troca de
cartas, um período de férias em Curitiba. Foi uma visita rápida, que
ajudou a matar as saudades de todos em casa. Em carta
encaminhada a D. Clemente, pelas mãos do próprio filho, o
subtenente Leminski agradecia a atenção e a gentileza da direção do
mosteiro pelo “financiamento antecipado”, que permitiu pagar a
passagem do garoto sem muita burocracia.
O boletim com as notas do segundo semestre veio confirmar a
tendência do aluno para as línguas, com as médias 8,24 em latim,
6,50 em francês e 9,62 em história geral (nota final). Apesar disso, a
média global não passou de 5,79, o suficiente para ser “promovido” à
4a série. Além de matemática, o aluno apresentava deficiência de
aprendizado também em desenho e canto orfeônico. E, mesmo
estudando em regime de internato, o boletim registra onze faltas em
aulas normais e outras cinco em educação física.
Quando setembro chegou, dando um refresco no inverno de
São Paulo, trouxe junto o escândalo da temporada. Foi um
burburinho no colégio, que se espalhou rapidamente por todos os
andares e corredores. Não se sabe como, o álbum de vedetes de
Leminski, escondido durante várias semanas sob o colchão de sua
cama, havia sido descoberto por um monge bisbilhoteiro. O fato foi
notificado imediatamente à direção da escola. A partir deste episódio,
lembram os ex-colegas, as coisas começaram a mudar para ele. O
desconforto tornou-se evidente e, como conseqüência, ele se sentia
como um “estranho no ninho”. Sinval de Itacarambi, testemunha
ocular destes acontecimentos, reconhece que o álbum foi apenas a
gota d’água:
— Já havia uma certa disposição da direção do mosteiro em
sugerir a volta de Leminski para Curitiba. Na verdade, ele começava
a dar sinais de inquietação e impaciência no claustro. Estava
ultrapassando os limites físicos e intelectuais da escola.
O colega de carteira, Armando Loreto Júnior, lembra que seu
comportamento era considerado meio “amalucado”. Ele andava,
falava e pensava mais rápido que qualquer outro garoto da sala. Um
dia, obedecendo ao ritual de levantar-se diante da chegada do
professor à sala de aula, como era de praxe, Leminski o fez de forma
exagerada, provocando um forte barulho com o assento da carteira.
O gesto irritou o professor Paulo Cechetto, de português, que depois
de um breve sermão de reprovação, determinou:
— Ou você vem aqui na frente e bate três vezes com a cabeça
no chão ou será colocado para fora da sala! Você escolhe.
Ser colocado para fora da sala significava uma punição
extremamente grave neste contexto, uma mancha na ficha pessoal
do aluno. Como regra básica, qualquer garoto deveria evitar este tipo
de referência. Diz Armando:
— O Leminski não teve qualquer escrúpulo e, para surpresa da
turma e mais ainda do professor, foi à frente e bateu com a cabeça
no chão três vezes. E o fez com tal vigor que o barulho foi ainda
maior do que quando bateu no assento da carteira.
Diante de tantos registros relacionados com a disciplina, a
família foi aconselhada, em tom cordial e amigável, a requerer a
transferência do aluno para outro colégio. Todos concordaram,
entretanto, que o ano letivo deveria ser cumprido normalmente, até o
final — e que qualquer mudança ficaria para o ano seguinte. Em
novembro, com o boletim nas mãos e tendo conhecimento prévio do
seu destino, os alunos entrariam em férias. Alguns vinham de longe
— a maioria do interior de São Paulo — enquanto outros se
reconheceriam exilados na rua principal — e simplesmente
mudariam de bairro. Ele, Paulo Leminski Filho, esperou o pai ir
buscá-lo e, juntos, tomaram o ônibus de volta para casa.
Em entrevista publicada vinte e quatro anos depois (a 29 de
outubro de 1982), no jornal O Estado do Paraná, ele deixaria
registrado:
— Acontece que eu descobri a mulher. No mosteiro eu sentia
umas coisas, uns arrepios que me faziam pensar: ou é o arcebispo
ou é alguém. Era a mulher. Então, tinha coisa melhor que Deus.
Depois, discretamente, revelaria ter boas razões para suspeitar
que a descoberta do “álbum secreto da Brigitte” era resultado de uma
trama urdida a partir das revelações feitas no confessionário, onde
acumulava penitências pelas rotineiras “homenagens” às belas e
sensuais vedetes — aludindo-se à mitologia, uma referência a Onan.
Com o passar do tempo e com a repetição sistemática destas
penitências, os monges teriam identificado em sua personalidade
(ainda em formação) pontos visíveis de soberba, vaidade e
sensualidade, elementos considerados incompatíveis com a vida
monástica. Ou, analisando de outra forma, havia evidências
suficientes de que faltava ao aluno “vocação espiritual para a vida
religiosa”.
O pedido de transferência do mosteiro, datado de 20 de janeiro
de 1959, foi assinado de próprio punho por Paulo Leminski Filho,
com a autorização do pai estampada logo abaixo, no canto direito.
Chegava ao fim um período de intensa convivência com os
beneditinos cujo significado, para ele, no futuro, seria mais profundo
do que uma simples “passagem” pela escola dos oblatos.
Logo após a partida e nos meses seguintes, Leminski escreveria
várias cartas para D. Clemente, a primeira delas em latim, a 28 de
março de 1959, assinada por Paulus L. Junior. Em maio, uma nova
correspondência e uma confissão: “Das infinitas coisas que sinto
falta, do Mosteiro, as principais são o silêncio (que eu contribuí para
diminuí-lo), a capela e os sombrios corredores.”
Em outubro, D. Clemente receberia um bilhete de apenas dez
linhas onde Leminski reconhecia, em tom de serenidade: “Mudei um
pouco e tenho mais ordem externa e interna. Continuo tendo por
lema AUT EGO — AUT NIHIL” (Ou eu ou nada).
No dia 2 de fevereiro de 1960, mais uma carta com dois
motivos aparentes: lembrar a D. Clemente que o Congresso
Eucarístico Nacional seria celebrado em Curitiba e perguntar, “as
obras do dominicano Giordano Bruno estão no Index?”.
Em julho, numa carta recheada por questões, digamos,
“profundas”, ele se mostraria frustrado por não constatar progresso
no estudo da língua grega:
Nestas férias estudei latim, história antiga, francês (leio
Telêmaco e o gênio do Cristianismo, Chateaubriand),
hebraico (tenho um amigo que me cedeu uma
gramática) e procurei mais santos e vultos beneditinos
para minha lista, numa enciclopédia católica italiana;
grego com uma gramática me consumiu boas horas,
porém acho ainda estar imaturo para me embeber do
espírito da língua de Xenofonte (emprestei da Biblioteca
a Análise. Nada consegui. Bem, disse com meus botões,
deve ser o dialeto que Xenofonte usa que não é ático,
mas mescla de jônio. Empresto então Diálogos, de
Platão, um dos mais puros escrevinhadores. Nada!).
Aproveitava para fazer uma série de consultas técnicas a D.
Clemente, sobre regras gramaticais, e se despedia pedindo a “bênção
para o Leminski”.
Dois meses depois, uma nova correspondência, iniciada “após
ouvir a missa vespertina pelo rádio”, trazia mais informações sobre
seus progressos nos estudos:
Me aprofundo agora na literatura latina. Traduzi alguma
coisa de Virgílio e Salústrio que é meu prosador
predileto e leio também as cartas de S. Jerônimo no
original latino. Se souberes de algum livro que traga a
biografia de Champollion, seria favor informar-me.
A última correspondência entre eles, datada de 19 de dezembro
de 1960, tem como motivo
algo que me alegra deveras: após meses de estudo do
hebraico, já estou em condições de estudar as Sagradas
Escrituras (é algo que não me larga!) no original. Vou
até às cinco da manhã estudando os salmos. A alegria
de poder lê-los no original é imensa. Todas as formas
características do hebraico me são conhecidas.
Ele voltaria algumas vezes ao São Bento, nos anos seguintes,
sem jamais passar da recepção, pois sempre se faria acompanhar da
mulher e da filha Áurea. O colega Sinval de Itacarambi, por sua vez,
estima que esteve com Leminski pelo menos oito vezes, nos anos
seguintes, sendo a última em 1986, em Curitiba. Os outros colegas,
personagens deste pequeno capítulo do mosteiro, jamais o viram
novamente, embora tivessem notícias suas pela imprensa. Alguns
compraram seus livros e conhecem sua obra. Brigitte Bardot, já
afastada do cinema, se tornaria uma incansável ativista em defesa
dos animais, e, acredita-se, nunca mais voltou a ser capa em álbum
secreto de adolescente.
Várias experiências vividas nesta época foram registradas por
Leminski em folhas de papel e, posteriormente, em livros, tornando-
se verdadeiras pegadas autobiográficas lavradas no bojo de sua obra.
Num poema escrito em agosto de 1984, quando completou 40 anos,
ele diria:
IN HONORE ORDINIS SANCTI BENEDICTI
à ordem de são bento
a ordem que sabe
que o fogo é lento
e está aqui fora
a ordem que vai dentro
a ordem sabe
que tudo é santo
a hora a cor a água
o canto o incenso o silêncio
e no interior do mais pequeno
abre-se profundo
a flor do espaço mais imenso
Na mesma entrevista, Leminski diria que “aos 40 anos ainda
me sinto um Beneditino — e vai ser assim para sempre...” Mais
tarde, no início dos anos 90, foi encontrado entre seus alfarrábios —
cuidadosamente programado para ser editado — este poema que ele
decidiu chamar de
SACRO LAVORO
as mãos que escrevem isto
um dia iam ser de sacerdote
transformando o pão e o vinho forte
na carne e sangue de cristo . . .
hoje transformam palavras
num misto entre o óbvio e o nunca visto
Em junho de 1968, a Escola Claustral do Colégio de São Bento
foi fechada por decisão da abadia, como conseqüência de uma crise
financeira e de uma onda de escândalos envolvendo denúncias de
homossexualismo entre monges e alunos. A notícia foi mantida longe
dos foros da imprensa diária, mas mesmo assim D. Clemente
abandonou o mosteiro e voltou à vida civil com o nome de batismo:
José Maria da Costa Vilar.
D. João Mehlman faleceu nos anos 70 em decorrência de
problemas com alcoolismo. O oblato Pedro Uzum também se afastou
da vida religiosa — por outros motivos — e foi trabalhar como
psicólogo na cidade de São Paulo. D. José Leandro e D. Estevão
continuam no mosteiro ainda hoje, onde são monges professores; o
“decano” Oswaldo Torrell, com a identidade religiosa de D. Lucas,
exerce a função de prior do mosteiro de São Bento, em Vinhedo,
interior de São Paulo. Armando Loreto Júnior, colega de carteira de
Leminski, formou-se em engenharia eletrônica e leciona matemática
e religião numa universidade em São Paulo. Carlos Francisco
Berardo, o ocupante da cadeira nº 1 da Academia de Letras Miguel
Kruse, formou-se em direito e, na virada do ano 2000, era juiz do
Trabalho.
Posteriormente, fazendo um breve resumo sentimental deste
período, Leminski criaria este emblemático e despojado poema sem
título:
nunca sei ao certo
se sou um menino de dúvidas
ou um homem de fé
certezas o vento leva
só duvidas continuam em pé
CAPÍTULO 4
CURITIBA, POR TRÁS DA NEBLINA
Certa vez, durante uma entrevista a um grupo de jornalistas,*
ao analisar aspectos culturais da cidade de Curitiba, Paulo Leminski
diria:
— Primeiro: esta é uma cidade em que a sexualidade, o Eros da
vida, é reprimido. E Eros coincide com a criatividade. Então, a
repressão de Eros é a repressão da criatividade. Não criamos nada
no setor primário e secundário, ou seja, nem agricultura e nem
indústria. Curitiba é, portanto, uma cidade de administração e
tabelionatos, onde se vive a plenitude do determinismo econômico da
classe média. Segundo: em Curitiba (como em todo o Paraná) existe o
que se pode entender como a “mística do trabalho”, herança
equivocada dos imigrantes alemães, italianos e polacos, empenhados
em se convencer de que o trabalho dignifica a vida. Uma idéia
certamente criada por aqueles que se consideravam
irremediavelmente “por baixo”, na escala social.
As análises sobre a cidade onde nasceu e viveu a maioria dos
seus 44 anos tinham para Leminski, invariavelmente, este tom
dramático e visceral. Suas teses incluíam, como elementos inerentes
ao discurso, a polêmica e a provocação. Neste sentido, ele foi um dos
mais mordazes e agudos críticos que a cidade já conheceu. Não
necessariamente em tom depreciativo — que fique bem claro isso —,
mas quase sempre irônico — até porque ele se considerava,
sobretudo, um curitibano:
* Revista Quem, Curitiba, maio 1980.
— Eu jamais consegui morar em outro lugar por muito tempo.
Agora, aos 40 anos, estou mais tranqüilo, pois descobri que sou
como o pinheiro, que não se pode transplantar.
A cidade de Curitiba, assim como todo o universo que o
cercava, vai aparecer em vários momentos de sua obra, seja em
forma de poemas, ensaios ou — o que aconteceria com mais
freqüência — entrevistas publicadas em jornais e revistas.
No final dos anos 80, produziria o poema “Curitibas”, no plural,
para dizer:
Conheço esta cidade
como a palma da minha pica.
Sei onde o palácio
Sei onde a fonte fica
Só não sei da saudade
A fina flor que fabrica.
Ser, eu sei. Quem sabe,
esta cidade me significa.
Para se conhecer a Curitiba que Paulo Leminski cantou em
prosa e verso, com suas características e idiossincrasias, recomenda-
se antes estabelecer uma conexão, através do tempo, com as
correntes migratórias que ocuparam o Sul do Brasil em diferentes
épocas. Afinal, até o século XVIII o planalto curitibano também era
uma terra de índios — no bom sentido, é claro —, onde viviam as
tribos jê, tingüi (da grande nação guarani) e tupi, das quais existem
hoje poucos vestígios e quase nenhuma narrativa oral. Algumas
pegadas indígenas ainda podem ser encontradas na nomenclatura
dos bairros: Capanema, Atuba, Juvevê, Guabirotuba. A palavra
Curitiba seria grafada, segundo o idioma guarani, algo como Kur ity
ba.*
Os colonizadores que se estabeleceram no planalto da Serra do
Mar, após o pioneirismo do povoador Mateus Leme, chegaram
atraídos sobretudo pelo garimpo do escasso ouro da região (quase
nada, se comparado ao das Minas Gerais). A Vila de Nossa Senhora
da Luz dos Pinhais, primeiro nome do povoamento, situada a 900
metros acima do nível do mar, demorou a se desenvolver
economicamente justamente por não ter muito a oferecer, além de
um frio rigoroso e temperaturas não raro inferiores a zero grau. Até
então, a vila∗∗ era usada como pernoite pelos tropeiros que faziam o
trânsito de gado para São Paulo (o famoso corredor Viamão-
Sorocaba) — e exportação de erva-mate, via porto de Paranaguá, a
partir de 1820.
Mesmo com as evidentes dificuldades climáticas, a região
atraiu a primeira leva de imigrantes alemães (na verdade, um
movimento de reimigração) vindos de Rio Negro para se estabelecer
em terras cedidas pelo Império como parte do plano de ocupação
territorial, em 1833. Paradoxalmente, o clima da região ajudou os
negócios de Michael Müller e Anna Krantz, pioneiros na exploração
deste solo, que trouxeram inovações técnicas no cultivo de frutas
européias e batatas inglesas.
Os poloneses (incluindo os ucranianos) chegariam a partir de
1871, assentando-se no anel periférico da cidade, onde criariam as
colônias Tomás Coelho, Muricy, Santa Cândida, Orleans, Lamenha e
Pilarzinho. Em seguida, os holandeses se estabeleceram numa área
mais central do Paraná, a região de Castro, onde construiriam uma
cidade industrial, Castrolândia, cuja principal atividade econômica
* Mais tarde, já no século XX, o humorista Millôr Fernandes criaria uma piada denunciando que, etimologicamente, o sufixo “ritiba” quer dizer “do mundo”.
∗∗ Em 1820, segundo relato do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, “existem 22 cazas, pequenas e cobertas de telhas...”.
seria a produção de laticínios da fábrica Batavo. Por último,
chegaram os italianos, tricolores e festivos, dispostos a manter a
tradição gastronômica da pátria amada — e, para isso, criaram de
imediato um bairro, Santa Felicidade, que se tornaria famoso pelas
inúmeras cantinas e vinícolas. Entre os vários grupos italianos, um
em particular faria história ao se deslocar para Palmeira e fundar a
Colônia Cecília, uma experiência anarquista de resultados
transcendentais: depois de dissolvida a comunidade, seus
integrantes se espalhariam pelo sul do país e fundariam, em Porto
Alegre e Curitiba, os primeiros sindicatos brasileiros. É a herança
politizada do nosso povo.
O desenvolvimento cultural e urbano da cidade, portanto, vem
se consolidar com a participação de diferentes e variadas etnias
européias. Fisicamente, vista do alto, a área se assemelha a uma
colcha de retalhos onde cada forma geométrica representa uma
colônia. Enquanto muitos analistas (sociólogos, sobretudo) viam
nesta conformação múltipla uma “virtude” trazida pela união de
diversas raças — o que proporcionaria uma certa democracia de
cores —, Leminski entendia o mesmo fenômeno como uma “poda de
raízes”:
— Nossos pais, num passado recente, tiveram suas culturas
decapitadas pela mudança brusca de contexto, de realidade. Eles
perderam a cultura deles e não encontraram outra. Até muito além
do ano 2000 ainda vamos estar trabalhando para construir a nossa
identidade. Além disso, o imigrante trouxe também o puritanismo
calvinista e o ascetismo próprio de quem vive para o trabalho.
Esta biografia não pretende apresentar um tratado sociológico
sobre a cidade de Curitiba e nem se desviar do assunto a que se
propõe, fazendo um guia histórico e cultural (pior ainda seria o
marketing) da cidade onde Leminski viveu. O que se acredita
conveniente e oportuno, neste ponto da narrativa, é fornecer
elementos para que se possa entender o contexto que favoreceu o
surgimento de um poeta da estirpe de Paulo Leminski, cuja “ligação”
com a cidade e suas raízes sempre foi de “alta voltagem” e
determinante em sua obra. Num certo sentido, Leminski e Curitiba
se parecem em suas modernidades e formação genética, não fosse ele
descendente de poloneses e brasileiros (com forte traço de negro e
índio), um arquétipo desta mesma miscigenação cultural. Ele
analisava esta condição social:
— Meus avós vieram para cá na tentativa de construir algo e
descobriram que ser imigrante é barra pesada! O imigrante não é o
estrangeiro que viajou! É um tipo de gente especial, com um
conjunto de dotes psíquicos que lhe permitem dizer: “Vou-me embora
da minha terra, vou para o outro lado do oceano, construir alguma
coisa lá!” E para isso trabalharam de sol a sol.
Leminski foi certamente um herdeiro da força de trabalho de
seus antepassados. Era incansável naquilo que chamava de “labor
braçal do escriba”, sentindo-se confortável diante de uma máquina
de escrever e um calhamaço de papel em branco — ou de uma
montanha de livros a serem lidos e resenhados. Era dotado de “raça”,
no sentido usado para significar determinação e brio, uma certa
disposição férrea de encarar o trabalho e a vida. Atravessava as
noites estudando e escrevendo.
Do ponto de vista intelectual, Curitiba ofereceu a Paulo
Leminski, segundo sua próprias palavras, “muito pouco além do
movimento simbolista de Dario Vellozo e o Instituto Neo-pitagórico”.
Tornou-se freqüentador do templo Neo-pitagórico, no bairro de Vila
Isabel, onde se professava, como o próprio nome sugere, uma volta à
filosofia de Pitágoras. Havia ainda um estranho altar com terra
retirada do túmulo do ilustre helênico, na Grécia. Dario Vellozo e os
simbolistas ainda dominavam o cenário cultural da província, por
volta de 1930, quando no resto do país já trafegavam informações
que permitiam avaliar, por exemplo, o significado e a importância do
Movimento Modernista. Leminski mostrava-se fã e crítico impiedoso
deste particular episódio da cultura local:
— O Dario Vellozo foi a figura mais curiosa que Curitiba
produziu no início do século, mas o simbolismo que ele representava
existiu durante anos como uma espécie de elefante nos nossos
horizontes, impedindo o nosso progresso. Os intelectuais da
província continuavam inebriados pelo prestígio de um movimento
que já estava moribundo.
— Poucos e bons!
Era assim que ele definia a “sopa rala” da cultura curitibana a
partir dos anos 50 e 60, quando os meios de comunicação
permitiriam o acesso às produções de massa. Leminski acompanhou
o nascimento das rádios, que explodiam com o sucesso dos
programas de auditório; viveu plenamente o surgimento dos grandes
jornais da cidade: Última Hora, Diário do Paraná, Gazeta do Povo e
Estado do Paraná, com os quais estreitaria relacionamento desde
cedo. Aos 17 anos publicava crônicas e poesias no boletim do Colégio
Estadual do Paraná.
A cultura popular da cidade se manifestava com naturalidade
diante de seus olhos, revelando talentos que atravessariam décadas
como entidades-símbolo de vários segmentos de criação; a dupla
sertaneja Nhô Belarmino e Nhá Gabriela, além de pioneira, tinha
identidade local e perpetuou um estilo; o Circo Irmãos Queirolo, com
o legendário palhaço Chic-Chic, contava com a herança da tradição
circense do uruguaio Otelo Queirolo, mas podia ser considerado um
“produto” de Curitiba, onde divertiu gerações, criou raízes... e nunca
mais saiu. Chic-Chic foi certamente um dos últimos nobres da
profissão de palhaço. Fora do picadeiro era elegante e refinado, um
gentleman, com um acentuado sotaque portenho. Seus descendentes
diretos, a cadela de pano Violeta e o palhaço Gabiroba, estes com
certeza nasceram em Curitiba. Com todos estes personagens, Paulo
Leminski fez história.
A cidade cresceu e os fenômenos se multiplicaram. A fé
popular, capaz de “remover montanhas”, faria surgir a força mística
de Maria Polenta (Maria Trevisan Tortato), a benzedeira milagrosa
que mobilizou multidões em busca de alívio e conforto para o corpo.
Era a versão curitibana para as curandeiras do candomblé. Em
oposição ao ritual cromático dos trópicos e das correntes africanas, a
“manifestação” de Maria Polenta era conhecida popularmente como
“espiritismo branco”.
Como um apaixonado pela lingüística em seus múltiplos
aspectos, Leminski “ouviu” e “pensou” a linguagem do seu povo,
estudou o jeito de ser do curitibano e acabou tirando algumas
conclusões:
— A fala curitibana é desornada de aparatos musicais
berrantes. É seca e concisa, como o conjunto de pertences de um
tropeiro, como a araucária imóvel ao vento, como o gosto do pinhão,
nossa fruta totêmica. O curitibano não fala bonito. Fala exato. Ou,
como diz o orgulho local da cidade que teve a primeira Universidade
do país: a gente fala como se escreve.
Certa vez, levado a citar valores de “expressão” em Curitiba,
pessoas que admirava nas artes, Leminski destacaria o prestígio da
música erudita, com a existência de boas sinfônicas e uma Camerata
Antiqua “de respeito”, além de compositores como Bento Mossurunga
(“um injustiçado, pelo que sua obra tem de inédito”) e os irmãos
Henrique e Norton Morozowicz, regentes. Ao mesmo tempo,
aproximou-se dos músicos populares, tornando-se um admirador da
obra e amigo pessoal dos compositores Lápis (Palminor Fernandes) e
Waltel Branco, “o lado negro da música dos polacos”:
— Nós, os curitibanos, não temos tradição, nascemos com o
gás néon, somos o futuro. O nosso karma é a nossa liberdade —
dizia.
Paulo Leminski considerava que Curitiba produzira, desde o
início do século, grandes talentos isolados em diversas áreas. A verve
e as patuscadas de salão de Emílio de Menezes faziam sucesso nas
elites cariocas e, segundo ele, “seriam as primeiras a serem levadas a
sério como produção intelectual”. Nossa escola de artes plásticas
revelava o talento de Guido Viaro, Potty Lazarotto e Bakunin, todos
nomes consagrados no panteão dos imortais curitibanos (mais uma
vez, nomes europeus, é bem verdade, mas isto é Curitiba). No
cinema, os pioneiros Anibal Requião e João Batista Groff, registrando
imagens das Cataratas do Iguaçu e cenas urbanas de Curitiba,
ganharam de Leminski o título de “desbravadores”.
No campo específico da literatura, dizia encontrar no Paraná
apenas “manifestações literárias”, não exatamente uma “literatura
paranaense”:
— O Paraná é um estado em alta ebulição. Está tudo em fase
de começar. Qualquer coisa que você fizer aqui é inaugural.
Analisando outra particularidade deste mesmo caráter, ele
diria estar convencido de que, em Curitiba, produz-se socialmente
um tipo estranho e perverso de comportamento coletivo:
— Aqui não se perdoa o fracasso e nem o sucesso. Por isso esta
é uma cidade mediana. De uma maneira geral, consumimos mas não
produzimos cultura.
Em texto intitulado “Sem Sexo, Neca de Criação”, lembraria o
lado conservador da cidade, que em 1837 proibiu a execução do
fandango dentro de sua povoação, por considerá-lo um ritmo lascivo,
se não obsceno. “Essa lei provavelmente matou o nosso carnaval”,
denunciava. Como resposta ao comportamento conservador do
curitibano, Leminski se autoproclamaria “a ovelha negra do
rebanho”, nos conturbados anos 60:
— Fui dos primeiros em Curitiba a usar blusão vermelho e
deixar o cabelo crescer. Em verdade, em verdade vos digo, o ideal do
curitibano é ser invisível.
Traçando um perfil vertical ainda mais contundente da
incipiente “alma” curitibana, Leminski conseguia se superar em
provocação e originalidade compondo um dos seus mais irreverentes
comentários:
— O pecado capital de Curitiba é a avareza. Esta avareza está
ligada à mística imigrante do trabalho, que se traduz na idéia de
poupança. Inteligente é poupar, não desfrutar. Então,
freudianamente, Curitiba é a retenção das fezes.
De acordo com sua tese, a avareza dos curitibanos — “um povo
acostumado a comer três vezes ao dia” — pode se manifestar de
várias formas:
— A mais curiosa delas é a modéstia. A modéstia é uma virtude
artesanal e nós vivemos num mundo industrial. Para o curitibano a
modéstia é um valor artístico, uma forma de avareza.
Por outro lado, evidenciando uma flagrante e assumida
contradição, ele iria protagonizar um episódio exemplar na redação
da revista ISTO É, em São Paulo, nos anos 70, que revelaria seu
orgulho pelos ditos “valores genuinamente curitibanos”. Durante
uma mesa redonda promovida para discutir questões relativas a
poesia e literatura, quando já se sentia visivelmente abatido pelo que
vinha considerando “um debate de baixo nível”, levantou-se
bruscamente, fez um movimento de mão com a papelada que
carregava e disparou, olhando para o poeta Cacaso:
— Olha, brother, qualquer bar em Curitiba, numa sexta-feira à
noite, tem um nível de discussão mais alto do que o desta mesa.* Vou
tentar pegar o Bife Sujo aberto...
E saiu da sala — no que foi acompanhado por Bonvicino —,
* Na mesa, além de Cacaso, estavam os amigos Arrigo Barnabé, Régis Bonvicino e jovens poetas desconhecidos, que ele chamava de “meninas da USP”.
deixando uma grande confusão atrás de si.
(Na primeira oportunidade Leminski arredondaria esta
anedota, ironicamente, sentenciando que “nenhum lance de dados
abolirá o Cacaso”, numa citação a Mallarmé.)
No contexto curitibano, Leminski costumava polemizar em
torno de assuntos literários ou não criando muitas vezes desconforto
e mal-estar nos ambientes. Abriria fogo contra os intelectuais da
Boca Maldita, “que se casam com donas-de-casa e usam galochas”;
apontou sua artilharia para o crítico Wilson Martins, que nunca o
engoliu, chamando-o de “o Ney Braga da cultura paranaense, o
primeiro a divulgar notícias velhas”. E arrematava: “Um sujeito tão
ancestral quanto a medicina que receitava sanguessugas.”
Considerava Dalton Trevisan um grande artesão das letras, mas
avaliava que sua importância — por falta de participação na vida
cultural da cidade — não passava disso. Este comportamento
irreverente permitiu que ele mesmo se considerasse — e fosse
considerado — o “louco da aldeia”. Uma aldeia — ou megaprovíncia,
como querem alguns — que ele cantava com paixão e orgulho,
mesmo quando não a citava explicitamente, como neste poema no
qual sugere a vitória da filosofia e das raízes sobre o turismo
cultural:
pariso
novayorquizo
moscoviteio
sem sair do bar
só não levanto e vou embora
porque tem países
que eu nem chego a madagascar
Da mesma forma, mas num sentido inverso, a cidade
responderia a esta paixão cantando sua obra e assobiando suas
músicas... E, orgulhosa, veria o nome do seu poeta brilhar nas
manchetes dos grandes jornais brasileiros e nas redes de televisão.
Mas esta é uma outra história que será contada a seu tempo. No
momento, Paulo Leminski está voltando para Curitiba, no outono de
1959, depois de um ano no Mosteiro — e encontra, para sua
surpresa e espanto, o irmão Pedro, agora com 11 anos, prestes a se
tornar o “senhor do castelo”.
CAPÍTULO 5
COM O DIABO NO CORPO
Se havia uma certeza na cabeça de Paulo Leminski, quando de
sua volta a Curitiba, era com relação aos estudos. A passagem pelo
Colégio São Bento deixara o garoto — agora com 15 anos — em
contato direto com as obras de Homero, Virgílio, Dante, a poesia
clássica, enfim. Através desta iniciação verdadeiramente sofisticada e
precoce, ele iria adquirir uma metodologia de trabalho que lhe
proporcionaria importantes conquistas no futuro. Leminski foi
matriculado na 4a série ginasial do Colégio Senhor Bom Jesus, um
estabelecimento administrado por freis franciscanos e, segundo o
conceito da época, com menos rigor que os irmãos maristas. Era o nº
52 da turma. Ao final do primeiro semestre, mais uma vez as
melhores notas seriam nas disciplinas de história geral (9,5), francês
(8,5) e latim (8,0). A pior nota, como sempre, em matemática: 2. Um
detalhe revela que o boletim escolar foi assinado pelo diretor, frei
João Crisóstomo Arns, e pela inspetora pública do Ministério da
Educação, Helena Kolody, na época ainda não devidamente
reconhecida como a padroeira da poesia em Curitiba.
A distância entre a casa e o colégio, algo em torno de 15
quarteirões — ou quadras, como dizem os curitibanos —, teria sido a
principal razão da volta do aluno, na metade do ano, para o antigo
Colégio Paranaense, ainda conhecido como Internato. Nem tanto pela
média (5,41, sofrível), mas sobretudo pelo esforço desprendido nas
provas finais, para compensar a quantidade de aulas perdidas — 64
nos dois semestres —, as notas das provas finais seriam
consideradas “brilhantes” por uma anotação feita a lápis, na margem
do documento: 10 em história geral; 9 em francês, inglês e geografia;
8 em latim e ciências humanas. A pior nota, mais uma vez, em
matemática: 4.
Durante o tempo que esteve fora, a situação familiar tinha
sofrido algumas alterações que se mostrariam incômodas para ele:
reformado do Exército, o velho agora passava horas de pijamas,
bebericando, lendo Euclides da Cunha e consultando os dicionários;
o irmão Pedro, já “um homenzinho”, exigia cada vez mais espaço e se
mostrava ainda mais irrequieto. Seu pai costumava dizer que “o
caçula veio ao mundo furioso e destemperado como o tio Miguel”.
A casa em que viviam agora, na rua Bispo Dom José, nº 2.459,
no mesmo bairro Seminário, era acanhada e os dois irmãos dividiam
um quarto nas mesmas proporções — o que não seria nada
extraordinário para quem vinha de uma temporada num monastério.
Mesmo assim, Leminski decidiria ficar a maior parte do tempo na
biblioteca da escola, ou num lugar qualquer onde pudesse estudar
com tranqüilidade. Começaria a usar óculos com aros grossos e
escuros, para corrigir uma miopia precoce, resultado das incontáveis
horas de leitura.
Nesta época, quando circulava com uma camiseta de mangas
compridas com o nome Colégio São Bento estampado no peito,
Leminski conheceria Sérgio Zippin, vizinho de bairro, com o qual
construiria uma sólida amizade e formaria uma dupla impagável.
Durante anos eles estudariam juntos — mesmo quando
matriculados em colégios diferentes —, sempre conquistando a
reputação de estarem entre os melhores alunos da turma. Sérgio, um
neto de judeus russos, tinha a mesma idade e era filho da “classe
média alta”, morando numa chácara com 10 mil m2 de terreno. Os
dois passaram a usufruir a bem forrada biblioteca da família Zippin,
onde Leminski encontrou a edição de uma gramática hebraica (a que
ele se referiu na carta a D. Clemente). O irmão de Sérgio, o advogado
Dálio Zippin, na época com 19 anos, recorda-se do episódio:
— O Leminski ficou fascinado pela gramática e poucas
semanas depois estava lendo, escrevendo e discutindo seu conteúdo.
Tinha uma memória fotográfica e conversava com o meu irmão em
latim. Quando queriam deixar bilhetes um para o outro, o faziam em
grego para manter os curiosos à distância.
Acompanhando com satisfação tanta dedicação aos estudos,
dona Lili, mãe de Sérgio, decidiu construir uma “meia-água” nos
fundos do terreno arborizado, uma pequena casa com grandes
janelões para onde a biblioteca foi transferida. Era o território livre
com que eles sonhavam. Ali, entre montes de livros e maços de
cigarros fumados escondido, eles passavam as noites estudando,
traduzindo e se preparando desde cedo para o tão famoso e temido
vestibular.
Ao que tudo indica, teria acontecido nesta época o primeiro
contato físico de Leminski com uma mulher, no sentido “profano” da
palavra, segundo seu próprio depoimento:
— Eu tinha 16 anos e “arrochei” uma empregada doméstica no
portão da casa dela. Foi um momento inesquecível. Não chegamos às
vias de fato, mas para quem quase tinha se tornado monge, o avanço
era notável...
Concluído o ginásio no Colégio Paranaense, Leminski se
transferia agora para o Colégio Estadual do Paraná, outra instituição
com excelente conceito educacional, onde seria matriculado no curso
clássico. Ao mudar de colégio ele ganhava, como conseqüência
natural, o direito de circular pelo centro da cidade. Aliás, para chegar
ao novo colégio, saindo do Seminário, ele tinha necessariamente que
atravessar a cidade, no sentido sul-norte, percorrendo um longo
caminho todas as manhãs. E costumava fazê-lo de ônibus. Sérgio
Zippin era agora seu colega de turma e fazia parte da diretoria da
União Curitibana dos Estudantes Secundários — UCES — à frente
do Departamento de Arte e Cultura. Os dois liam diariamente o
Curso de grego e a Gramática grega de Madre Maria da Eucaristia
Daniellou e tentavam decorar na íntegra o Novíssimo dicionário
latino, da editora Saraiva. No jornalzinho da escola — uma única
folha de papel impressa em mimeógrafo — o redator T. A. Garro
revela na coluna de fofocas que o apelido de Leminski, entre os
colegas de turma, era Medusa — muito provavelmente graças aos
cabelos em constante desalinho.
Entre seus novos colegas estava João Casillo, um paulista do
interior que um ano antes se mudara com a família para Curitiba.
Casillo lembra-se de que certa vez Leminski foi abordado na sala de
aula pelo professor Leopoldo Scherer, no momento em que
consultava uma gramática grega, enquanto o assunto em pauta era
outro. O professor — que era considerado um sujeito tolerante e
amigo dos alunos — pegou o livro de suas mãos e, conhecendo a
fama de Leminski, fez uma leitura pausada de um pequeno trecho
escolhido ao acaso. Era possivelmente um capítulo da Ilíada, de
Homero. Em seguida, Scherer teve a preocupação de perguntar se a
leitura estava satisfatória. Na opinião de Casillo, o episódio foi
exemplar:
— O Leminski disse: “Não, senhor!, eu vou lhe mostrar com são
as inflexões, professor.” E fez uma leitura maravilhosa de um trecho
clássico: Pararapara... pararaparara... pararapara... Ele fez isso de
uma maneira muito humilde e até o professor aplaudiu.
Casillo ficou amigo de Leminski, que se sentava no canto dos
fundos da sala, entretido com livros e anotações:
— Eu não tenho dúvidas de que, do ponto de vista de uma
cultura humanística, o Leminski foi a pessoa que eu conheci com o
maior grau de conhecimento. Ele lia muito e sabia fazer as
articulações entre os temas. Ao mesmo tempo era uma pessoa muito
ingênua, deixando-nos a impressão de que, ao lado daquela cultura
monumental, não existia uma vivência correspondente. Tanto que
logo que conseguiu a primeira namorada, ele não sabia o que fazer e
veio nos pedir conselhos.
Nesta época, Leminski participaria eventualmente de reuniões
clandestinas onde se discutia a emergente política estudantil. Foi
visto em congressos da UPES e, na opinião de Casillo, “já se notava
claramente que ele não era apenas um erudito, mas um humanista
que nos ensinava a pensar”.
Houve uma reunião entre lideranças estudantis, onde ele
defendeu uma posição polêmica e desconfortável: a de que um
ditador, como Getúlio Vargas, podia ser também um estadista.
— Estava difícil concordar com esta tese do Leminski — lembra
Casillo —, mas ele nos provou que era possível. Falava que Salazar
era um medíocre e Franco, um estadista, embora ambos fossem
ditadores. Era uma colocação antipática mas inteligente.
Em março de 1962, tendo se aproximado do pessoal do centro
acadêmico, Leminski publicaria no boletim do Colégio Estadual a
crônica “Inverno”, como um prenúncio do estreito relacionamento
temático que manteria com a cidade e seu famigerado clima. O texto,
com cerca de trinta linhas, um tanto rebuscado e aparentemente
influenciado pela visão e maneirismos estilísticos do pai, termina
dizendo:
Tão cedo vejo que o outono se retira e o inverno dá os
primeiros sinais de vida. Parece-me que a cidade passou
por uma longa provação, cruel e opressiva, e, de súbito,
tudo volta ao sossego. Paz de inverno. As linhas todas
que distinguem Curitiba — o traçado de suas moradias
e o semblante de seus habitantes — permanecem
irrealizadas e estrangeiras enquanto as cerquem halos
de calor. O inverno, enfim, já expulsa o sol e a canícula
para plagas mais próprias de seu brilho. Alegremo-nos,
curitibanos, com o amigo inverno ao nosso lado.
Ao freqüentar a Biblioteca Pública do Paraná, no centro da
cidade, Leminski entraria para o Clube Literário Juvenil Dario
Vellozo, onde conheceria Luiz Felipe Ribeiro, quatro anos mais velho
e calouro da Faculdade de Direito. Eles ficaram amigos e se
encontrariam anos depois nos bancos da mesma faculdade. Foi
também na Biblioteca, onde passava horas do dia, que Leminski
conheceria Nevair Maria de Souza, uma curitibana do subúrbio e
aluna do professor Guido Viaro, um artista de renome na cidade.
Neiva — como era conhecida — costumava passear nas horas vagas
pelo centro da cidade, como qualquer menina-moça desocupada. Ela
se lembra do primeiro encontro com Leminski:
— Era um sábado pela manhã. Eu estava com uma amiga e ele
parou para conversar. Falou alguma coisa rapidamente e nos
convidou para assistir a uma aula que daria na biblioteca, na
segunda-feira. Ele era muito jovem para isso! Eu fui, mas não havia
aula nenhuma. Ele estava pesquisando e fazendo anotações em
grego num bloquinho enquanto consultava diversos livros. O rapaz
era um poeta e, nesta época, eu tinha 14 e ele 17 anos.
O incipiente “namoro” continuou firme nos dias seguintes,
sempre nas salas da biblioteca, com direito a uma fuga rápida para o
cinema. Nesta semana foram assistir A face oculta, com Marlon
Brando. No momento do encontro, na porta do Cine Marajó, uma
surpresa: Leminski apareceu com o amigo Sérgio Zippin e com outra
garota, a tiracolo. Neiva explica:
— Ele tentou uma jogada de mestre e se deu mal. A moça não
facilitou a vida dele e se mostrou desinteressada, enquanto eu peguei
na mão do Sérgio durante todo o filme. Na próxima vez ele apareceria
sozinho no cinema.
Só então Neiva saberia que Paulo era irmão de Pedro, de quem
fora colega de escola durante anos, do primário ao ginásio.
Ao chegar em casa, nesta mesma noite, Leminski tratou de
contar imediatamente a novidade ao irmão, construindo o seguinte
diálogo:
— Pedro, é com imenso prazer que lhe comunico que estou
namorando uma guria da sua turma.
— Verdade? Como é o nome dela?
— Neivair, que vocês chamam de Neiva.
— Sei. Mas ela é feia, Paulo!
— Era!
Tudo ficaria mais fácil entre eles, que iniciaram um namoro
cada vez mais ardoroso e inevitável. Tão ardoroso que dona Marina, a
mãe de Neiva, meses depois, passou a considerá-lo igualmente
“comprometedor”, exigindo que o casamento fosse marcado o mais
breve possível. Ainda hoje Neiva considera que tudo foi um exagero
de sua mãe, pois eles não tinham, “até então”, avançado nenhum
sinal. O pai de Leminski reagiria tentando adiar qualquer decisão,
argumentando que o filho devia terminar os estudos na universidade
antes de assumir um compromisso dessa “envergadura”.
Mesmo assim, a cerimônia seria marcada para a manhã do dia
9 de fevereiro de 1963, num cartório do Centro Cívico. Como
testemunhas, apenas as duas famílias. Em seguida, Paulo e Neiva
foram morar na casa de dona Marina, no bairro de Vila Isabel, onde
ficariam por pouco tempo. Neiva lembra-se de que nesta época
Leminski gostava de ler gibis, dando atenção especial ao popular
“Terror Negro”, enquanto estudava para o vestibular:
— Ele tinha esta particularidade: ou se interessava por temas
muito populares ou muito eruditos.
O vestibular não seria nenhum mistério. Durante o período de
preparação, ele e Zippin ostentaram um certo ar de arrogância,
fazendo apostas sobre qual deles chegaria em primeiro ou segundo
colocado na classificação geral; tentavam, desta forma, estabelecer
psicologicamente o nível de disputa para o qual estavam gabaritados.
Decidiram de comum acordo fazer as provas para direito na
Universidade Federal e filosofia (letras), na Católica. Num certo
sentido, começava a nascer, neste momento, o mito do sujeito
competente e culto, “um verdadeiro fenômeno”, que acompanharia
Leminski ao longo de sua vida. Resultado: ele foi classificado em
primeiro lugar para o curso de letras, com Sérgio ficando em
segundo. No vestibular para direito, Leminski ficou em segundo e
Sérgio em terceiro lugar. Eles se mostraram surpresos, para não
dizer atônitos, com o nome de Odília Ferreira da Luz, uma aluna do
Colégio Nossa Senhora de Lourdes, aparecendo em primeiro lugar.
Conferindo a lista na parede repetidas vezes, eles se olharam e
tiveram que reconhecer: havia uma mulher no meio do caminho.
Em décimo lugar na lista dos classificados em direito, estava
Carlos Alberto Sanches, de origem portuguesa, que anos depois se
tornaria um grande empresário na área de educação ao fundar o
Curso Camões, um preparatório para o vestibular. Sanches
conheceu Leminski na sala de aula da faculdade, onde iniciaram
uma amizade que duraria por muitos anos. Como filho dileto da
linhagem lusitana de poesia, Sanches reconhece que suas pretensões
literárias, naquela época, podiam “passar pelo simbolismo e até
chegar em um Garcia Lorca, no máximo”, enquanto o colega “já
estava lendo Maiakovski, Walt Whitman e Pound”:
— O Leminski não conseguia assistir as aulas. Era um
aborrecimento para ele. Depois passou a se desentender
intelectualmente com os professores, que além de acadêmicos eram
também conservadores. Certa vez terminou uma prova escrita de
português — uma redação — com tanta rapidez que muitos alunos
pensaram que ele tinha entregado a folha em branco.
Neiva tem a vaga lembrança de que era uma tarde de inverno
de 1963, quando Leminski leu num jornal a notícia sobre um
encontro de poesia marcado para Minas Gerais. Era a Semana
Nacional de Poesia de Vanguarda, que prometia reunir em Belo
Horizonte a fina flor da intelligentsia brasileira. Ele decidiu ir para
conhecer de perto o grupo paulista de Poesia Concreta, editores da
revista Noigandres, com os quais tinha profundas afinidades —
sobretudo pelos poemas e as traduções dos Cantos, de Ezra Pound,
feitas por Haroldo de Campos. Falava da produção poética dos
“irmãos Campos” como a descoberta do “fio da meada”.
Influenciado pelo repertório do grupo, seu livro de cabeceira era
ABC of Reading, de Pound, considerado o manual das “antenas da
raça”, ou seja, de artistas e intelectuais.
Depois de uma manobra na qual foi orientado pelo amigo Luiz
Felipe Ribeiro, agora um membro do Diretório Acadêmico, ele
conseguiu a liberação de uma verba para a passagem. Ribeiro redigiu
de próprio punho uma carta de apresentação nomeando-o
representante da faculdade no referido encontro. “Era chegar e
desempenhar”, como ele dizia. Ribeiro, que logo depois seria exilado
no Chile e ficaria anos sem voltar ao Brasil, recorda-se de que este
foi um dos seus últimos atos como representante do diretório:
— Conseguimos embarcá-lo sem dificuldades, mas somente
anos depois eu fui saber da importância desta viagem na vida dele.
Leminski embarcou às 8 horas da noite num ônibus na
rodoviária de Curitiba, com a previsão de chegar na manhã do dia
seguinte em Belo Horizonte. Estava empolgado e apresentava em voz
alta o que pretendia argumentar com os mestres. O evento literário,
que não era aberto ao público, estava sendo organizado pelos poetas
Affonso Ávila e Affonso Romano de Sant’anna, a quem Leminski
procurou no hotel para ter a sua participação garantida. Depois de
explicar que estava sem dinheiro e de contar a longa aventura vivida
até chegar a Belo Horizonte, ele seria liberado do pagamento da taxa
de inscrição.
O que aconteceria nesta semana de tertúlias aos pés das
Alterosas seria decisivo em sua vida. Além do grupo de poesia
concreta — incluindo o professor Décio Pignatari, um especialista na
nova linguagem dos signos, a semiótica, e sua mulher Lila —, ele
conheceria o poeta Pedro Xisto, o artista plástico Waldemar Cordeiro
e os críticos Roberto Pontual, do Jornal do Brasil, e Luiz Costa Lima.
Sobre este encontro, Haroldo de Campos escreveria mais tarde:∗
O Leminski nos apareceu aos 18 anos, Rimbaud
curitibano com físico de judoca, escandindo versos
homéricos, como se fosse um discípulo zen de Bashô, o
Senhor Bananeira, recém-egresso do Templo Neo-
pitagórico do simbolista filelênico Dario Vellozo.
Noigandres, com faro poundiano, o acolheu na
plataforma de lançamento de Invenção, lampiro-mais-
que-vampiro de Curitiba, faiscante de poesia e vida. Aí
começou tudo. (...) Esse polaco-paranaense soube,
muito precocemente, deglutir o pau-brasil oswaldiano e
educar-se na pedra filosofal da poesia concreta (até hoje
no caminho da poesia brasileira), pedra de fundação e
de toque, magneto de poetas-poetas.
Terminado o encontro, Leminski aceitou o convite de Augusto
de Campos, e sua esposa Lygia, e decidiu fazer uma escala em São
Paulo, por uma noite, antes de voltar a Curitiba. Os três viajaram de
ônibus durante o dia, conversando sobre vários assuntos,
especialmente sobre uma edição dos Cantos, de Pound,∗∗ que
∗ Texto escrito em 1983 e publicado na abertura de Caprichos e relaxos, Paulo Leminski, editora Brasiliense.
∗∗ Em Ezra Loomis Pound (1885-1972), Leminski encontraria diversos elementos para a estruturação de sua poética. Como o rompimento com as tradições literárias — inclusive com a idéia de que a poesia deve falar de sentimentos. Aprendeu também o conceito de “tradução criativa”, que ele chamaria de “transcriação”.
Augusto tinha em São Paulo. Augusto lembra-se de que ele ficou
muito excitado em poder consultar a obra no original inglês:
— Quando chegamos em casa, ele não dormiu, ficou lendo os
Cantos até amanhecer. Eu fiquei impressionado. Ele era muito novo
e tinha um entendimento e uma identificação com o nosso trabalho
como nenhum outro poeta naqueles anos.
Para quem já tinha predisposição para adotar uma postura de
vanguarda diante das artes e da literatura, este encontro consolidou
esta tendência. Foi convidado por Augusto de Campos a participar
da revista Invenção, o bólido da vanguarda nos anos 60, na qual
apresentou quatro poemas ligeiros, com a marca da surpresa e com
grande aproveitamento espacial. Um deles:
PARKER
TEXACO
ESSO
FORD ADAMS
FABER
MELHORAL
SONRISAL
RINSO
LEVER
GESSY
RCE
GE MOBILOIL
KOLYNOS
ELETRIC
COLGATE
MOTORS GENERAL
casas pernambucanas
Depois disso, passou a ser considerado uma espécie de
mascote do time. Foi apresentado ao poeta José Lino Grünewald e ao
professor Boris Schneiderman, tradutor de Maiakovski e especialista
em literatura russa; por influência direta dos mestres, conheceu a
obra e o pensamento de Marcel Duchamps, o homem que aprisionou
num pequeno frasco “l’air de Paris”; Anton Webern, músico
“concreto” morto prematuramente e cuja obra cabe em quatro LPs; o
cubano Lezama Lima; e, por último mas não finalmente, Stéphane
Mallarmé, o poeta francês de “Lance de dados”, em tradução de
Haroldo de Campos para “Un coup de dés”. Passou a ter uma
admiração especial por obras e autores considerados “exagerados” ou
“difíceis”.
Com relação à literatura brasileira — concretismo à parte —
Leminski vasculhou a obra de Sousândrade, Cruz e Sousa,
Guimarães Rosa e decorou todas as dentições da Revista de
Antropofagia, uma criação do Movimento Modernista. Gostava de
citar um versinho de autoria de Oswald de Andrade, a respeito de
uma intriga adolescente em colégios paulistanos:
Indalécio Randolfo Ferreira de Aguiar
passou na prova escrita
rodou na prova orar
Na volta a Curitiba, Leminski se mostrava envaidecido com a
atenção dispensada pelos mestres. Contou as histórias para Neiva,
falou das fotos feitas por Augusto, uma delas no alto das Alterosas,
ele “garboso” segurando na mão direita um exemplar da revista
Noigandres 5, a antologia. No final, estava convencido de ter
conquistado a admiração e o respeito (nihil obstat, dizia-se) de todos.
Na verdade, ele tinha causado forte impressão no ambiente, pois era
capaz de discorrer sobre pequenos detalhes da obra de cada um e de
citar poemas sem consultar anotações.
Logo que foi possível, Leminski escreveu aquela que seria a
primeira de uma longa série de cartas a Augusto de Campos, a 23 de
agosto de 1963, um dia antes de completar 19 anos. Ele dizia (como
de costume, iniciando as frases com letras minúsculas):
Amigo Augusto
são e salvo, cheguei sem mais, 10 da noite — Neiva e
sogra esperavam na rodoviária, turma aqui toda
entusiasmada com a coisa, ontem mesmo relatei as
ocorrências da semana na aula de literatura
portuguesa, levei todo o material — noigandres,
invenção, apresentei à classe que está no momento
lendo Garret, imagine.
surpreendente, ninguém por aqui conhece o
cavalheiro de nome Sousândrade. providenciarei,
conferências na biblioteca, talvez já na semana próxima,
ótimas possibilidades de aceitação, o ar fresco é sempre
bem recebido na estufa, bons elementos não falta, em
especial meu amigo Sérgio Zippin, bom latinista,
conhecedor do inglês, o dono da antologia grega,
lembra-se? parece-me que Sérgio gostaria de ter em
particular a antologia noigandres. ainda não pude
conversar mais longamente com ele e, mesmo, ele não
viu ainda o material que trouxe daí. na próxima direi
mais do assunto.
tua cubasgrama está sendo um sucesso, assim
como a esteia do Décio. do Haroldo em particular “a
servidão”.
(...)
pouco antes de epistolar, trabalhava no “ôvo de
Símias”, vi também Marcial que tem coisas ótimas: o
epigrama para Marcial obedece a um programa muito
eficiente, e era sátira. e a sátira é a arma de todas as
épocas.
comprei também a “Atlântida” do nosso Dario
Vellozo. Não é bem o que eu esperava. Em todo caso, te
mandarei um exemplar.
que coisa notável que é Gôngora!
o final de um seu soneto sobre la brevedad
enganosa de la vida:
mal te perdonarán a ti las horas,
las horas que limando están los días,
los días que royendo están los anos
e ainda houve gente que falou mal dele...
bem, por aqui vou ficando.
como vão teus dois guerreiros? tenho falado muito
do Cid aqui em casa: o fato de ele te chamar de
“Augushtu” e sua inclinação para a pintura, lembrança
ao Cid, ao Rolland e à Lygia. A Neiva está bastante
animada com a idéia de ir aí a S. Paulo conhecer vocês
todos. Envie a fotografia na Rola-Môça assim que possa.
Vou mandar-te algumas fotos, minhas com a Neiva, em
poses maiakoviskianas.
é esperando logo tua resposta
que te manda um abraço
o Paulo Leminski .
Ps: campo a estudar é a Pleiade francesa do
renascimento em especial o grande Joachim du Bellay,
poeta muito preciso e enxuto.
Dentro do envelope havia três fotos; duas mostrando-o com
Neiva e uma dele sozinho, estudando, e a dedicatória carregada de
vaidade:
Numa cena displicente, cigarro. Pena. Cinzeiro, restos
de batalha, mas logo a cena se aclara simples: Leminski,
poeta-mais, trabalha. Ao Augusto e sua equipe do amigo
Leminski
Na seqüência, ele fundaria informalmente, tendo como sede
sua própria casa, o Núcleo Experimental de Poesia Concreta de
Curitiba, do qual Carlos Alberto Sanches se faria membro na
primeira hora:
— Traduzimos John Donne, Mallarmé, Robert Browning, Poe e
todos os malditos “noirs” com os quais o Paulo se identificava.
Mergulhamos a fundo na tradução/transcriação, essa aventura
mágica que é a passagem de um código para outro. Não se falava em
outra coisa...
Semanas depois, Leminski escreveria de próprio punho uma
carta ao poeta Affonso Ávila agradecendo o convite e as gentilezas
dispensadas no encontro em Minas. A carta foi postada em Curitiba
no dia 1º de novembro de 1963 e era, na verdade, uma resposta ao
“puxão de orelha” que recebera por não ter escrito antes, como
prometera:
(...)
mas cadê tempo? leciono o dia inteiro e as horas
que tenho vagas lá vão estudando.
foi preciso uma carta sua para me dar vergonha.
por aqui:
fiz na biblioteca pública uma conferência sobre
poesia de vanguarda.
tenho estudado um bocado: traduzo Maiakovski,
haikais japoneses, leio uma infinidade de poetas, escrevo
muito também, prosa e poesia de vanguarda.
surpresa foi a qualidade (e a quantidade) do
suplemento aí do “estado de minas”, notável. (...)
agradeço também a gentileza de publicar-me um
fragmento de poema. (...)
tenho feito por aqui um bom movimento pró poesia
de vanguarda, entrevistas, palestras de esquina. (...)
li teu artigo sobre Mário de Andrade no Estadão-SP
algumas semanas atrás: realmente o MA merecia, e bem,
uma apreciação mais justa da geração que hoje ara as
vastas searas (se ara!) da literatura desse Brasil que
merece tanto e tem tão pouco.
um abração grato do amigo leminski
A excitação naquele momento foi tamanha que em poucos dias
ele estava marcando uma nova viagem, agora para São Paulo, com
Neiva embarcando junto num ônibus noturno. Ficariam hospedados
na casa de Augusto, no bairro de Perdizes, onde passaram o Ano-
Novo de 63/64. A festa de reveillon, na verdade, teve como cenário a
casa do pintor Volpi, no Brás, onde todos assistiam pela televisão a
corrida de São Silvestre. Refugiado no ateliê do artista, Leminski
conheceria o poeta José Carlos Paes e reencontraria Waldemar
Cordeiro e Pedro Xisto, que havia conhecido em Belo Horizonte.
Circulando entre todos os “figurões”, ele seria visto falando e
gesticulando com muita disposição, “apresentando armas”, como
costumava dizer. Tinha então 19 anos.
A volta para casa, mais uma vez, foi marcada por uma série de
desavenças, já devidamente anunciadas, entre Leminski e dona
Marina, a mãe de Neiva — e o casal decide, então, morar na casa dos
pais dele, no Seminário. A esta altura, poucas mudanças estariam
reservadas no quadro familiar, não fosse a presença de um cachorro
“pêlo-de-arame”, o Fumaça, a nova “criança” da casa. O pai, um
pouco mais sombrio, apesar de manter a calma e o carinho com a
família, bebia agora compulsivamente (meio litro de conhaque pela
manhã) e passava horas cozinhando para os outros, sem se
alimentar necessariamente. Dona Áurea, como sempre estóica e
atenciosa com todos, apenas trabalhava para manter a casa limpa. O
irmão Pedro seria o mais incomodado com a nova divisão de espaço,
apesar de continuar sozinho em seu quarto. Pedro sentia ciúmes
explícitos da cunhada, tornando ainda mais difícil o relacionamento
entre eles. De qualquer maneira, a casa era mesmo pequena e a
situação precária; e ele teria mesmo que arrumar um trabalho
urgentemente.
E arrumou. Seu primeiro emprego foi na filial da livraria
Ghignone, na rua Dr. Muricy, no centro da cidade, exercendo a
função de vendedor de balcão. Foi uma experiência curta e mal
remunerada, que nada lhe acrescentaria na vida além de algumas
horas de consulta grátis em livros e revistas. Era um leitor freqüente
do “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, publicado
aos sábados, embora demonstrasse interesse por tudo que se editava
na área de poesia e literatura. Algumas semanas depois, estava
novamente à procura de emprego.
Paulo Leminski nunca seria um aluno regular em nenhuma
das faculdades nas quais estava matriculado. Nos dois cursos,
chegou a freqüentar o primeiro ano mas foi se afastando aos poucos
para continuar investindo nos estudos de outra maneira — num
certo sentido, mais revolucionária. Sabe-se que ele tinha dois bons
motivos para deixar de lado as aulas, em meados de 1964: o
principal era o Golpe de Estado de 31 de março, que destituiu o
presidente da República, João Goulart, e inaugurou uma ditadura
que se sustentaria por vinte anos, provocando o desmantelamento da
vida universitária brasileira. O segundo motivo seria um convite para
dar aulas no Curso Dr. Abreu para alunos em fase pré-vestibular,
onde lhe ofereciam as disciplinas de literatura e história. O salário
era bom e juntava “a fome com a vontade de comer” — e ele aceitou
no ato.
Como professor de cursinho, Leminski teve uma atuação
marcante e histórica em Curitiba. Foi o pioneiro de um estilo
moderno de ensinar, onde a didática se confundia com os atrativos
de um espetáculo; imagem, texto e som compunham a nova
linguagem dos jovens dos anos 60. Vivia-se a plenitude da era
Beatles, com as rádios e radiolas mandando ver “I wanna hold your
hand” e “She loves you”, no compacto simples. Um disco de Bob
Dylan na radiola e uma aula destinada a explicar os movimentos
cíclicos da humanidade em torno de sua própria História: “How
many roads must a man walk down, before...” A fórmula deu certo.
Os cursinhos passaram a viver um momento de grande euforia e
visível prosperidade: derrubavam-se paredes para ampliar as
instalações, alugava-se o andar de cima para acomodar novas
turmas... Dizia-se: “É um ensino caro mas eficiente.” A atriz de teatro
e advogada Esmeralda Barros, hoje aposentada, foi aluna de
Leminski:
— Eu era fascinada pelo Paulo, achava ele o máximo como
professor. Em suas aulas ele usava recursos absolutamente
charmosos para se fazer entender... O aluno percebia que havia
erudição, não era apenas uma encenação.
O estudante Carlos João, que viria a ser amigo e parceiro do
poeta, lembra ter assistido algumas dessas aulas, mesmo não sendo
aluno do cursinho:
— Era qualquer coisa de extraordinário. Ele falava
praticamente durante três horas seguidas, fazia um arrasa-
quarteirão sobre Grécia e Roma, aliava o prazer de ensinar ao de
falar sobre coisas que tinha paixão e conhecimento. Se empolgava,
dava conselhos, fazia observações bem-humoradas, acendia o cigarro
pelo filtro, dava um show...
Outra aluna, Peggy Pacionick, tornou-se amiga e “fã
incondicional do professor”. Ela tem boas lembrança das vezes em
que esteve com ele na casa do Seminário:
— Eu achava o pai do Paulo uma figuraça, sempre de pijamas,
usando um linguajar rebuscado, todo empolado. Certa vez, o velho
olhou-me atentamente, fez um gesto com a mão e disse: “A senhorita
me parece muito ensimesmada hoje.”
Peggy freqüentava as aulas do cursinho como quem vai a um
show de rock, aproveitando a tarde para convidar algumas amigas,
falando com entusiasmo da experiência que era assistir a uma aula
de Paulo Leminski. Contrariando um certa tendência entre as moças,
que preferiam suspirar por artistas de cinema e cantores populares,
seu ídolo era o professor, o sujeito mais esperto do quarteirão:
— Mesmo nas brincadeiras ele tinha um papo “cabeça”, fora do
normal; me enchia o saco dizendo: “Peggy, você é da classe
dominante...”
Outro aluno do cursinho, Ernani Buchmann, mais tarde um
conhecido publicitário curitibano, lembra-se de que a partir da
metade do ano Leminski passou a dar aulas em três matérias:
literatura, redação e história.
— Ele era o professor mais presente na escola. Estava sempre
disponível para qualquer assunto. Era o nosso mentor intelectual,
empenhado em nos passar o gosto pelos estudos e pela vida criativa.
Um dos seus discursos favoritos em sala de aula — mesmo não
constando especificamente do currículo — tinha como tema os
macacos babuínos, cuja estrutura social ele estudava e admirava.
Gostava de dizer que os babuínos “vivem em bandos de 70 a 80
vagando pelos desertos da Etiópia, Abissínia e sul do Egito. Como os
humanos, eles são monógamos. O gorila morre de dor se perder a
fêmea.” Defendia a tese de que os babuínos carregam seus velhos
nas costas para que possam ensinar para o grupo o caminho mais
seguro, de acordo com as mutações temporais e climáticas:
— Os exemplares mais fortes e nobres, entre os babuínos, são
os macacos-alfa; os outros são a plebe. Quando no cio, as fêmeas
cruzam com eles, preferencialmente, que ficam ferocíssimos. Depois
que as engravidam, eles se desinteressam pelo assunto e elas podem,
então, transar com qualquer outro. Assim fica garantida a
descendência dos macacos-alfa. Surge também aí — em forma de
embrião — a idéia de herança, da propriedade, do germe da
aristocracia.
Em 1965, uma nova mudança de endereço, desta vez para o
edifício São Bernardo, na rua Dr. Muricy, um ponto nobre no centro
da cidade. Dona Marina alugou um apartamento amplo, de três
quartos, onde todos foram morar em aparente harmonia. A sala foi
decorada com peças de artesanato em ferro, penduradas pelas
paredes como esculturas, e num dos quartos ficava a biblioteca e o
gabinete de trabalho. Havia a promessa — finalmente concretizada —
de uma certa estabilidade no emprego e então eles poderiam ficar
neste apartamento por muito tempo. Foi também nesta época que
conheceu pessoalmente a poeta Helena Kolody, uma filha de
ucranianos bem mais velha, que morava no andar de cima — e desde
os anos 40 fazia poemas em forma de hai-kais. Hoje, aos 92 anos,
Helena Kolody ainda guarda viva a lembrança do primeiro encontro:
— O Leminski apareceu logo nos primeiros dias. Tinha um livro
meu nas mãos, onde eu explicava que minha concepção de hai-kai
vinha de Guilherme de Almeida. Ele estava estudando japonês e se
interessou pelo assunto. Era extremamente jovem e brilhante, e vivia
em estado permanente de inspiração.
Nova vida, nova casa, novos bens de consumo... Com o
dinheiro do primeiro salário, o casal comprou um aparelho de som
(ainda vinil) e muitos discos: no início, músicas medievais e cantos
gregorianos; logo depois Elvis, Beatles, The Mamas and the Papas,
Donovan liberando a libido da rapaziada:
— Música brasileira a gente ouve no rádio! — eles diziam.
Com freqüência, o prédio inteiro sintonizava cantorias do tipo:
— Alleeeeluuuuuiaaaaaa.......aleluia.
Ou, então:
— Ie-ie-ie-ie-ie...
Alegria de uns, tristeza de outros. Ao final de dois meses, dona
Marina, exaurida pelo ritmo frenético da casa, decidiu comprar um
apartamento no mesmo edifício, no terceiro andar, para onde se
mudaria. A filha e o genro ficariam sozinhos no primeiro andar. A
liberdade foi comemorada com uma grande festa na qual seriam
registrados muitos convidados exóticos, alto consumo de bebidas,
cigarros e “bolinhas”, o aditivo da ocasião. Segundo o depoimento de
Neiva, seu marido não se comportou bem aquela noite:
— O Paulo estava flertando na sala, fazendo charme para uma
aluna. Foi o primeiro sinal de distúrbio entre nós. Dias depois eu o vi
na rua, caminhando e falando, todo interessado, ao lado de uma
outra aluna, a Ernestina.
Não se conhece nenhum progresso no relacionamento dele com
Ernestina, mas sabe-se que o episódio foi suficiente para virar a
cabeça de Neiva. A partir destes dois “flagrantes” revelando as
segundas intenções do marido, tudo indica que ela ficou apenas
esperando por uma oportunidade. E a oportunidade apareceu:
chamava-se Ivan da Costa, era magro e tinha 17 anos. À primeira
vista, devido ao nariz anguloso e à pele morena, podia lembrar um
jovem índio guarani, mas na verdade era um catarinense de
Joinville, que aos 10 anos se mudara com a família para Curitiba.
Neiva recorda-se de que naquele momento uma rádio qualquer
tocava “Quero que vá tudo pro inferno”, com Roberto Carlos, quando
Ivan entrou com Leminski. Chegou falando de seus interesses
específicos sobre música: jazz, blues, som progressivo. Trazia discos
de John Coltrane embaixo do braço. Eles se conheceram dias antes
quando caminhavam pela rua XV e agora tinham se encontrado num
cineclube durante o Festival Eisenstein, promovido pelo jornalista
Aramis Millarch, que será identificado, a partir deste momento, como
o aglutinador do grupo que se tornaria uma importante fonte de
renovação da cultura local.
Junto com eles, nesta noite estava o jovem crítico Lélio
Sottomaior Jr., 18 anos, um homossexual assumido e
reconhecidamente talentoso, atrevido no comportamento e com
idéias de vanguarda. Lélio era apaixonado pela nouvelle vague e leitor
fiel dos Cahiers du Cinéma, a bíblia do cinema. Fazia o gênero
debochado e tinha, digamos assim, bases teóricas para explicar sua
opção sexual. A palavra mágica para ele, nestes dias, era Godard.
Através de Lélio, Leminski conheceria o cinema e se aprofundaria
nesta forma de expressão artística chamada de “Sétima arte”.
Motivado pelas conversas e projetos com os novos parceiros,
Leminski decide participar do II Concurso Popular de Poesia
Moderna de 1966, promovido pelo jornal O Estado do Paraná em
parceria com a Academia de Letras José de Alencar e o comendador
Umberto Scarpa, que ofereciam prêmios em dinheiro para os
vencedores. Por força do regulamento deste ano, os trabalhos
deveriam abordar o tema Imprensa. Leminski escreveu e selecionou
um conjunto de sete poemas curtos, sem títulos, apenas com
numeração, todos formatados em caixa baixa e sem muita pontuação
(que ele considerava uma prática “parnasiana”). Num dos poemas —
nunca publicados em livro —, o de número 3, ele dizia:
jornal planta de letras
canetas de plantão
entre planetas/ e pernas da multidão
(na via láctea
escolha uma constelação)
plantada na noite
a árvore voraz dos linotipos
a boca dentes teclados triplos
planta carnívora devora vida viva:
esqueletos letras no papel em
manchete
(letras letras a mancheias)
marchetado de manchetes
O poema de número 7 trazia a semente de um estilo sucinto e
ligeiro, que seria para sempre a sua marca registrada:
quem me lerá
amanhã
quando for
amanhã
amanhecerá
a flor
& a letra
que agora é minha
e linha?
quem te lerá
notícia adventícia
nesta superfície?
Ele ficaria com o primeiro prêmio, entre os 23 trabalhos
apresentados, embolsando a razoável quantia de Cr$ 80.000. O
segundo lugar premiou Antenor de Barros Leite, um fiscal aduaneiro,
e o terceiro, a jornalista Rosy de Sá Cardoso, uma das dez mulheres
participantes. Na festa de premiação, na noite de 30 de junho de
1966, Leminski surgiria da platéia com ar de menino, vestindo uma
camisa de gola rolê, para receber o diploma das mãos de João Feder,
diretor-presidente do jornal.
Nesta mesma época, começaria a treinar judô numa academia
no centro da cidade, no Edifício Garcês, onde tinha como professor
(sensei) o italiano Aldo Lubes, recém-chegado de Turim. Leminski
fora levado à academia pelo irmão Pedro, que vinha recebendo aulas
há várias semanas. Nos dias seguintes, sentindo mais uma vez o
gosto amargo da rivalidade, Pedro se afastaria do judô, ainda como
faixa branca, enquanto o irmão, ao final de quatro anos, seria
graduado no primeiro grau, ou dan, conquistando a tão almejada
faixa preta.
Como atleta, Leminski participou de diversos torneios e
campeonatos de judô, algumas vezes representando a seleção
paranaense, outras competindo no circuito universitário. Foi
campeão com o quimono da Academia Kodokan numa disputa direta
com atletas das Forças Armadas, durante uma competição realizada
no ginásio da Sociedade Thalia.
Um dos colegas de academia, José Carlos Miceli, lembra-se de
uma competição em Apucarana, quando a equipe conquistou o vice-
campeonato, graças à vitalidade de Leminski:
— Seu princípio tático não era a cautela, mas o ímpeto, que,
associado ao vigor físico, fez dele um grande atleta.
O mestre Aldo Lubes confirma que Leminski foi um aluno
especial:
— Trabalhamos juntos durante quase dez anos. Eu era o
mestre, mas com ele aprendi a não ver a vida de uma maneira
complicada e tão material. Ele era a pessoa mais natural do mundo.
Do ponto de vista intelectual, a cultura oriental se configurou
para Leminski num único movimento: conhecendo os princípios
filosóficos das lutas marciais, que lhe foram apresentados através da
“grande aventura dos samurais”, e decodificando a linguagem
totêmica, os ideogramas do idioma japonês. Ficou fascinado pelo
poder de síntese dos ícones. Costumava dizer que o judô foi
importante para a sua poesia na medida em que lhe ensinou a
confiar na intuição:
— Qualquer hesitação, seja diante de um golpe ou de um
poema, pode ser fatal. Pensar pode ser fatal.
Entre suas anedotas favoritas — anedotas, aqui, no sentido
dos koans —, uma dizia que o “verdadeiro” princípio das lutas
marciais fora “assimilado” por um monge após um longo período de
meditação diante de uma parede branca:
— Ou seja, diante do nada. Assim, na sua essência mais
profunda, as lutas marciais não pressupõem a agressão e nem o
revide, mas sim evitar receber o golpe, oferecendo ao oponente o
vazio.
Ao mesmo tempo que se exercitava com disposição no tatame,
Leminski fazia descer das prateleiras livros e mais livros de poesia
oriental, hai-kais, biografias e até uma bíblia escrita em japonês —
roubada dos arquivos da Biblioteca Pública. Pôs-se a ler com
voracidade Alan Watts, Teitaro Suzuki e Thomas Merton, todos
estudiosos do zen-budismo, o lado transcendental da filosofia
budista. Ele gostava de citar Watts, que dizia: “O Zen nunca explica,
apenas oferece sugestões. Tentar explicá-lo é como tentar prender o
vento numa caixa. No momento em que se feche a tampa, perde-se o
vento e obtém-se ar estagnado...”
Era um experimentalista em campo, convencido de que todos
os seres humanos eram dotados de potencial para alcançar, através
da superação da ignorância, o que se poderia chamar de iluminação
repentina, também denominada de satori — que se atinge sob a
orientação de um mestre. Tentar a perfeição, tanto como aluno
quanto como professor, era um preceito dogmático para ele, que
gostava de aprender e ensinar.
Aos poucos, moldava-se nele um tipo absolutamente singular e
magnético, uma mistura de atleta com intelectual, onde o físico e a
mente recebiam igual tratamento de saúde. Para ele, o judô, em si, já
era um esporte intelectual: “Mens sana in corpore sano”, dizia-se.
Na parede da academia Kodokan, Aldo Lubes mantém ainda
hoje um recorte de jornal com o autógrafo do poeta e a dedicatória:
Discípulo, aprendi com sensei Aldo não apenas golpes,
mas toda a grandeza humana que se oculta por trás da
prática de uma arte marcial. A serenidade alerta. A
paciência diante da derrota. A humildade diante da
vitória. A relatividade das derrotas e vitórias.
Ao mesmo tempo, continuava sua atividade literária,
produzindo e publicando poemas em larga escala, enquanto
conquistava um novo e regular hábito para fazer parceria com o
cigarro: o de beber cerveja. Na lembrança de Neiva, o álcool surge na
vida dele, sorrateiramente, como um ritual de lazer merecido após
uma exaustiva aula de judô, entre colegas de academia:
— O Paulo bebia mesmo em casa. Mas a cada dia ele ficava
mais tempo no bar. O passo seguinte foi trocar a cerveja pelo
martíni, com o qual realmente se iniciaria na bebida...
Com a chegada de novos amigos, a vida no edifício São
Bernardo foi se tornando uma mistura de farras e atividades
culturais, num equilíbrio tênue entre o relaxo e o rigor. Mais tarde,
ele reconheceria que foi nesta fase que descobriu que a única coisa
que poderia fazer na vida era escrever, ser um poeta. Passou a
ministrar palestras em universidades e a realizar performances em
livrarias, sempre provocando fortes reações na platéia.
Em casa, Neiva sentia-se muito solitária e angustiada,
enquanto o marido “curtia” uma boa, cercado de amigos e garotas.
Ela passava as tardes na biblioteca, a poucos metros do edifício São
Bernardo, fazendo consultas e freqüentando os cursos de arte. Certa
vez, encontrando Ivan na rua, Leminski sugeriu:
— Vai lá em casa e faz companhia pra Neiva que eu vou
encontrar uma amiga. Me quebra essa...
Ivan foi, Neiva estava sozinha no apartamento e o namoro
começou. No início eles cuidaram para não deixar pistas muito
evidentes e nem permitir que o relacionamento ultrapassasse os
limites do São Bernardo. Discretamente, porém, começaram a
participar do coral do padre Penalva, no Conservatório, uma maneira
que encontraram de passar as tardes juntos. Logo se descobriram
apaixonados. Entretido com as aulas do cursinho e com um novo
projeto literário, Leminski não perceberia o movimento das peças.
Sua atenção estava voltada exclusivamente para o Concurso de
Contos do Paraná, o mais conceituado troféu literário no Brasil nos
anos 60.
A idéia do conto, com o qual decidira participar do concurso,
era original e surgiu durante uma aula de história no cursinho:
imaginar René Descartes no Nordeste brasileiro — como parte da
expedição holandesa do príncipe Maurício de Nassau — em confronto
direto com a realidade e o calor dos trópicos. Sentado na areia da
praia, em Olinda (que os holandeses chamavam de Vrijburg), o
filósofo do racionalismo aguarda ansiosamente ser “resgatado” por
Krzystof Arciszewski, o comandante polonês da expedição, enquanto
vislumbra aterrorizado jibóias, tamanduás, plantas carnívoras, “o
escambau”. O resultado se traduziria num delírio da mente
cartesiana, o “derretimento” das idéias numa deformação consentida
e proposital do texto. Em alguns momentos, Descartes aparece
fumando um cachimbo preparado com ervas nativas e de efeitos
alucinógenos. A história ganhou o nome de “Descartes com lentes” e
foi assinada com o pseudônimo “Kung”.
Leminski não ganharia o concurso e, pior, depois de uma
decisão polêmica e confusa da comissão julgadora, dizia-se
convencido de que “a banca não tem metodologia classificatória para
enquadrar o meu trabalho”. Apesar de aborrecido com o resultado,
ele continuaria apaixonado pelo tema a ponto de anunciar a
adaptação da obra para um romance, construindo o que seria, de
acordo com suas pretensões, não mais um conto, mas sim um texto,
um romance-idéia com o perfil de “objeto revolucionário no universo
da prosa”. E pôs-se a executar a tarefa. O começo era assim (em
minúscula):
ergo sum, aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido,
aqui presente, neste labirinto de enganos deleitáveis, —
vejo o mar, vejo a baía e vejo as naus. Vejo mais. Já lá
vão anos III, me destaquei de Europa e a gente civil, lá
morituro. Isso de “barbaras — non intellegor ulli” — dos
exercícios de exílio de Ovídio é comigo. Do parque do
príncipe, a lentes de luneta, CONTEMPLO A
CONSIDERAR O CAIS, O MAR, AS NUVENS, OS
INIGMAS E OS PRODÍGIOS DE BRASÍLIA.
Ele havia decidido que as palavras deveriam CRESCER sempre
que Descartes, na história, usasse a luneta para procurar a nau de
Artichevski no horizonte, ou para sondar as tenebrosas alucinações
da mata virgem, uma alusão ao jardim botânico criado por Nassau,
em Olinda. O nome Artyschewski, não por acaso, aparece com
diferentes grafias durante a narrativa. Também decidiu que o texto
seria cíclico, ou seja, a primeira frase poderia ser um complemento
da última. E as palavras, muitas delas formatadas como port
manteaux (brincadeiras verbais popularizadas por Lewis Carrol),
deveriam traduzir dois ou mais significados, assim como
miravínculos, abstratagema ou mongoluscofuga. Tudo — do
começo ao fim — num único parágrafo. Seria uma homenagem, uma
citação explícita de Grande sertão: veredas, de Rosa, Finnegan’s
Wake, de Joyce, e O livro das galáxias, de Haroldo de Campos, suas
grandes influências na prosa.
A primavera de 1967 trouxe consigo duas notícias “quentes”
para agitar a temporada no São Bernardo. A primeira foi o Festival
de Música Pop, realizado em Monterey, EUA, onde dois “astros”
desconhecidos, Jimi Hendrix e Janis Joplin, chamaram a atenção
com performances consideradas “chocantes” pela imprensa
internacional. Leminski ficou impressionado ao saber que Hendrix
queimara a guitarra no palco e que tudo acontecera no embalo da
marijuana e do LSD. A segunda notícia, de âmbito doméstico, foi
ainda mais impactante: Neiva estava grávida e, como elemento
complicador, continuava mantendo, aparentemente, relacionamento
com os dois rapazes. Ela estava grávida há um mês e 10 dias,
enquanto as relações amorosas com Leminski, ela garante, “haviam
terminado três meses antes, quando começou o namoro com Ivan”.
Alguns dias antes, Leminski descobrira, através de um poema
escrito por ela, o romance secreto de Neiva com o seu melhor amigo.
No primeiro momento mostrou-se um pouco aborrecido e frustrado,
mas nunca ofendido moralmente. Havia um clima de liberação
sexual da mulher permeando as “novas relações”, o que atenuava a
gravidade da ocorrência. Ele propôs uma conversa a três, onde ficou
decidido que iriam evitar especulações e aborrecimentos,
principalmente com a família e os vizinhos, mantendo as aparências
por mais algum tempo. (Lélio diria mais tarde: “Jules e Jim”, numa
referência ao filme de François Truffaut sobre o romance entre três
amigos.) Para “desbaratinar”, Ivan continuaria morando na casa dos
pais, oficialmente. Semanas depois, porém, quando a barriga de
Neiva já mostrava sinais de vida e a gravidez seria oficialmente
anunciada, havia uma pergunta que não queria calar: quem era o pai
da criança?
— Era o Ivan e nós três sabíamos disso — garante Neiva.
Apesar da alegada certeza da paternidade, ela preferiu manter
as aparências, enquanto aguardava uma definição das
circunstâncias. Estava insegura quanto às conseqüências que a
revelação poderia trazer e ficou por algum tempo engendrando uma
estratégia. Semanas depois, sentindo-se mais à vontade, comunicou
a gravidez às famílias sem dizer que isto vinha acontecendo há
alguns meses e sem dar maiores explicações. Ela lembra da reação
de Leminski diante de todos:
— Está grávida? Isto é comigo. Você quer tirar ou quer ter o
filho?
Neiva decidiu sem vacilar:
— Quero ter a criança.
A vida continuaria “normal” para eles no São Bernardo: a
barriga de Neiva crescendo e as aparências sendo mantidas com
muito fair-play. Para Leminski, as aulas no cursinho Abreu seguiam
fazendo sucesso e o dinheiro do salário agora permitia um conforto
razoável, ao mesmo tempo que o consumo de álcool aumentava para
meia garrafa de rum a cada noite. Era o cuba-libre. Neiva tentava
administrar a situação:
— O Paulo acordava pela manhã e saía para dar aulas sem
pentear os cabelos. Muitas vezes eu tive que sair atrás, retocando,
até ele escapulir pela porta. Eu nem tinha filho e já era mãe.
Certa vez, durante uma aula, ao fazer um movimento brusco
com a perna, tentando sentar na mesa, suas calças rasgaram na
altura dos fundilhos, deixando um grande buraco negro e um pedaço
de pano pendurado na virilha. Leminski continuaria a aula
impassível, lembrando um personagem chapliniano, uma figura
absolutamente improvável como professor.
A frustração pela perda do Concurso de Contos já era assunto
do passado (ver Apêndice 1) para ele, que se mantinha firme na
tarefa de escrever o tal romance, enquanto procurava desenvolver
projetos e discutir novas idéias sobre arte. Afinal, tinha encontrado
em Lélio e Ivan dois afinados interlocutores, ambos, como ele,
comprometidos com o “novo”. Como elemento comum e aglutinador,
os três apresentavam em seus discursos e comportamento um certo
tom de revolta que acabaria por se transformar no leitmotiv da
juventude dos anos 60. Deste encontro sairia muita faísca, ou
melhor, a criação de um grupo que seria batizado de Áporo, uma
referência a um poema de Carlos Drummond de Andrade. A idéia era
concentrar a atividade intelectual nas três áreas — literatura, cinema
e música — e partir para a publicação e editoração de artigos em
jornais e revistas. Planejavam “cerrar fogo na produção intelectual
para afastar a pasmaceira que reina na cidade”. Tinham também a
intenção de produzir e apresentar programas de rádio e televisão.
Curiosamente, não havia no grupo nenhum especialista em teatro,
embora Curitiba estivesse cheia deles — no bom sentido, é claro.
Neste mesmo ano, Denise Stocklos estreava como autora, diretora e
atriz da peça Círculo na lua, lama na rua, em temporada polêmica no
Teatro de Bolso.
Enquanto intensificavam-se as doses diárias de “birita”,
Leminski deixava o cabelo e a barba crescerem e mostrava-se cada
vez mais relaxado com as roupas, perdendo o aspecto bem-
comportado de seminarista. Continuava evitando tomar banho e,
como novidade, passaria a cometer o mesmo desleixo com os dentes,
escovando-os apenas esporadicamente. Usava óculos escuros
redondos e segurava constantemente um cigarro entre os dedos. O
apartamento do São Bernardo transformara-se em ponto de encontro
de alunos e intelectuais que chegavam atraídos pelo magnetismo do
jovem poeta, que segundo os jornais “já tinha reconhecimento
nacional”.
Outro visitante do São Bernardo, o estudante Paulo Vítola,
chegaria declaradamente atraído por interesses literários e
intelectuais. Tinha assistido a algumas palestras de Leminski,
quando foram apresentados por amigos comuns, e logo encontraram
muitos pontos de interesse que sustentariam uma sólida amizade.
Vítola, três anos mais jovem, ainda guarda viva na memória a visita
que fez a Leminski, quando passaram a tarde ouvindo música
chinesa em meio a uma cena insólita:
— Chegaram os carregadores para fazer uma troca de colchão e
tudo aconteceu como numa seqüência de cinema. Os caras passando
pela sala com o colchão, uma música absurda, o Leminski com
aquela barba e os cabelos compridos... Algo de muito moderno
pairava no ar.
Para dar continuidade às aulas de judô, ele teria que
submeter-se a uma cirurgia para extração de uma hérnia, que vinha
lhe provocando dores e atrapalhando o desempenho. A operação
aconteceu no centro cirúrgico do Hospital Militar, onde ele ficaria
internado por alguns dias. Como sempre reagia nas situações
adversas, o bom humor o acompanhou durante o período de
tratamento. Vítola apareceu no horário das visitas e o encontrou
risonho, lendo “pela enésima vez” Grande sertão: veredas:
— Quando a gente chegou, o Paulo estava se divertindo,
tentando imitar Guimarães Rosa, meio bichona, falando aquele texto
do Diadorim. Era engraçado porque não combinam: Grande sertão é
um texto para macho.
Neiva atesta que nesta época crescia a comunidade do
patchouli. E abre um enorme sorriso ao falar de alguns nomes que
freqüentavam as “noturnas” do São Bernardo: Paquito, amigo de
Lélio; Christo Dikoff, crítico de cinema, Peggy, Julinho Karatê (como
o próprio nome diz, um praticante de lutas marciais e adepto da
violência), o irmão Pedro — agora com um violão embaixo do braço —
e meia dúzia de ilustres desconhecidos. Um deles, Brodão, um
curitibano que morava no Rio de Janeiro, foi quem colocou na roda
pela primeira vez um cigarro de maconha, o “baseado” — atitude que
foi logo considerada de vanguarda por todos. A comunidade se
formava, espontaneamente, sob a égide do movimento hippie que
eclodia nos EUA e na Europa pedindo paz e amor — uma resposta
pacifista ao genocídio do Vietnã.
Certa vez, Leminski recebeu a visita de outro talentoso
intelectual, como ele também jovem, de nome Eduardo Portela, que
anos depois seria ministro da Cultura e imortal da Academia
Brasileira de Letras. Não há registro e nem testemunho se o futuro
ministro, nas horas que passou no São Bernardo, teria fumado mas
não tragado ou se nem sequer fumou. Como muitos outros, Portela
manifestara o desejo de conhecer Leminski, “o jovem gênio” que
falava várias línguas e preconizava o avanço de novas idéias na
construção de um mundo “libertário em sua essência, a linguagem”.
Havia sinais evidentes de que dentro dele estava sendo construído,
aceleradamente, o alter-ego de Vladimir Maiakovski.
Em julho de 1967, em pleno inverno, Leminski ainda
encontraria tempo e disposição para participar de uma competição
de judô fora do Paraná. Fora convidado e aceitou fazer parte de uma
equipe universitária na disputa de um torneio interestadual, em
Piracicaba. Nesta mesma semana, nadando contra a correnteza, o
irmão Pedro é convocado para o serviço militar. Estimulado pelo pai
e contrariando a dissidência coletiva, Pedro decide fazer o curso para
a Escola de Formação de Sargentos, o vestibular da caserna.
Enquanto aguardava o resultado dos exames, entretanto, tomou
uma carraspana nas proximidades do quartel e, ao ser pilhado em
flagrante por uma patrulha militar, seria expulso do exército na
semana seguinte.
Quando o estudante Carlos João chegou ao São Bernardo, em
meados de 1967, seria para ficar. Interessado em música popular
brasileira, ouvinte de primeira hora de João Gilberto e da Bossa
Nova, queria ser jornalista e trazia um disco do Babulina (Jorge Ben)
embaixo do braço. Seus interesses apontavam neste sentido e ele
passaria a fazer parte do grupo como amigo de Ivan, que conhecera
num curso de estética cinematográfica, no Riviera. O escritor Wilson
Bueno, que anos depois seria editor do jornal de cultura Nicolau,
também freqüentava o São Bernardo nesta época. Bueno era
curitibano mas tinha livre trânsito entre os poetas cariocas e até
mesmo planejava morar no Rio. Como parte integrante dos
“homossexuais do grupo”, ele estava equipado com um sistema de
defesa social que, segundo sua própria avaliação, “beirava a
belicosidade”, uma atitude típica daqueles dias:
— Em Curitiba, como em poucos lugares no Brasil, você tinha
a figura do “dedo-duro”, que costumava apontar na rua: “Aquela é
desquitada... Aquele é viado...” etc.... O reduto liberal da cidade era o
São Bernardo e o seu mentor Paulo Leminski, que ficava deitado nas
almofadas lendo Spengler, A decadência do Ocidente, enquanto eu
namorava o Darci.
A radiola agora tocava John Cage e Caetano Veloso, a esta
altura o grande “estouro” nacional, surgido na ebulição dos festivais
de música. E, num certo sentido, parecia que tudo tinha entrado em
torvelinho. Ivan lembra-se deste momento:
— A droga naqueles dias foi um componente de revolta, com
um significado especial para cada um de nós. Não fumávamos
apenas porque era bacana ou para alterar o sentido da percepção —
que era o “barato” —, mas para quebrar toda uma estrutura política.
A postura iconoclasta seria um fenômeno mundial, uma atitude de
contracultura diante de um país vivendo os “anos de aço” da
ditadura militar. Éramos rebeldes com boas causas. Na França os
motivos eram outros, mas a reação foi a mesma.
O Grupo Áporo, com Leminski exercendo sua plena liderança,
tomou partido da situação colocando em xeque os valores do
passado. Dizendo-se arautos das novas tendências das artes, eles
adotaram uma postura crítica bastante agressiva ao divulgar um
Manifesto de 30 laudas, datilografadas em espaço 3, onde investiam
contra os intelectuais locais. O alvo principal era o escritor — a esta
altura consagrado — Dalton Trevisan, apresentado como um contista
seguido por uma legião de “daltônicos”, seus leitores. “O conto é uma
forma fácil de literatura; precisamos avançar nas formas”, brandiam.
O mesmo acontecia em outras áreas: “Na questão da música”,
dizia o manifesto, “o intelectual curitibano ainda continua no bel
canto, e em matéria de cinema prefere Ben-Hur e Marcelino Pão e
Vinho”.
Agora “apadrinhados” pelo jornalista Aroldo Murá Haygert, que
dispunha de amplos poderes no Diário do Paraná, eles conseguiram
um espaço no caderno de cultura, onde a divulgação do manifesto
ganharia destaque na primeira página:
ÁPORO NASCE CONTRA O DILETANTISMO
(...)
O grupo de jovens se propõe a trabalhar contra o
“provincianismo cultural de Curitiba, uma cidade de
anti-radicais, onde ninguém parte para a pesada em
termos de engajamento intelectual”.
Dando uma boa mostra da agressividade do
movimento, Leminski responde à pergunta sobre as
razões que levaram ao surgimento do Áporo:
— Curitiba é a capital do segundo Estado da
Federação em potencial econômico, mas sob o ponto de
vista cultural é uma aldeia. O intelectual curitibano típico
é um aventureiro que passeia de galochas entre a
literatura, o cinema e a música, sem se preocupar com a
especialização. O que está superado na Europa ou no Rio
e São Paulo, passa aqui como vanguarda. Falta de
curiosidade, falta de dedicação, falta de fé, de
radicalidade.
O manifesto seria recebido com azedume no reduto
conservador da cidade, a Boca Maldita, onde alguns intelectuais
(inclusive Dalton Trevisan) costumavam se reunir em torno de
cafezinhos e bate-papos. Alguns tentaram reagir à altura, escrevendo
e publicando artigos de repúdio e contestação nos jornais locais;
outros simplesmente ignoraram ou partiram para a galhofa (uma das
características da Boca Maldita), avaliando: “São um bando de porra-
loucas, desequilibrados.” Na opinião de Ivan, a questão era
basicamente política:
— O Paulo lia poesias de Allen Ginsberg, um intelectual judeu
de esquerda; lia Sartre, Maiakovski e se considerava trotskista, mas
as patrulhas exigiam militância partidária e ele nunca foi disso. Na
verdade, ele nunca se submeteu a nenhuma escola, nem mesmo ao
concretismo.
Ivan reconhece que a grande fonte de idéias do grupo Áporo era
Leminski:
— O Paulo era “antenado” em todas as tendências. Ainda por
cima era considerado de direita, num momento em que os
intelectuais da província ainda questionavam se Beatles era arte ou
não. O rompimento haveria de ser na porrada. Ele pensava — assim
como Maiakovski — que não poderia haver arte revolucionária sem
forma revolucionária.
Para Leminski, politicamente, a forma sempre foi uma
admirável manifestação de poder e a vanguarda um modo de ser
essencialmente subversivo. A subversão da linguagem. Seu
pensamento era expresso dessa forma:
Não é apenas no terreno do conteúdo que se deve ser
subversivo e se opor ao sistema. É sobretudo no terreno
das formas que esse trabalho deve ser feito. A forma é
realmente revolucionária. Eu estou empenhado numa
luta de guerrilha cultural contra um parque de formas
estanques, reconhecidas pelo sistema e premiadas com
cheques, com favores de toda sorte. As formas
tradicionais vendem. A hostilidade ao experimento tem
origem neste ponto. Contestando as formas que estão no
poder, você está contestando o poder na única maneira
realmente eficaz. Eu luto para denunciar a impostura
destas formas e não praticá-las. Procurar superá-las,
arrebentá-las por baixo, por cima, pelo lado...
O Ano do Macaco no horóscopo chinês, 1968, foi também “um
ano do cão” para muita gente. No dia 31 de janeiro, depois de uma
saudável gestação, nascia de parto natural o bebê de Neiva: era um
menino. Naturalmente, nas felicitações das famílias e dos amigos, na
maternidade, Leminski era saudado como o pai da criança. Para
continuar mantendo as aparências, Ivan se afastaria da cena
enquanto fosse necessário. Mas logo reapareceria para se revelar um
“tio” muito atencioso, superando em muitos momentos a ausência do
suposto pai, que continuava ocupado com aulas e palestras. Para
agravar a situação, a mãe de Neiva, sabendo da verdade, deu ordens
na portaria para que não permitissem o acesso de Ivan ao
apartamento. O bebê foi registrado em cartório quinze dias depois do
nascimento com o nome de Paulo Leminski Neto, tendo como
declarante “o pai”, ou seja, Paulo Leminski Filho, o que só fez
aumentar a confusão (confusão que, a rigor, continua até hoje, pois
oficialmente vale o que está escrito). Em seu depoimento a esta
biografia, Neiva alega que Leminski, durante um porre fenomenal,
planejou dar uma satisfação para a família e, à revelia dela, teria
“forjado” a certidão de nascimento. Alguns amigos íntimos, no
entanto, referem-se ainda hoje discretamente “ao filho do Leminski
que mora no Rio”.
Nesta época, o São Bernardo começaria a receber uma
população, digamos, mais heterogênea e menos qualificada, que
vinha perturbando a ordem do ambiente. Era o folclore do “mocó”
atraindo os “maluquinhos” da cidade, ansiosos por um “baseado” e
um guru. (Leminski dizia: “em matéria de doutrinação, tem gente que
prefere ir às faculdades para ouvir o professor”.) Este não era o caso
de Peggy Paciornick, que era sempre bem recebida e fazia parte da
família.
Aliás, no dia do aniversário de Leminski, 24 agosto de 1968,
um sábado, foi programada uma festinha para comemorar a data,
quando o melhor presente da noite lhe seria oferecido por Peggy —
ele diria depois. Havia um show na cidade com o conjunto Os
Incríveis — aqueles que cantavam “Era um garoto que como eu
amava Beatles e Rolling Stones... Ratatata Ratatata... tata...” — e a
festa foi marcada para começar depois das onze. Peggy chegaria na
hora da animação, tipo meia-noite, acompanhada de uma amiga, e
promoveria rapidamente as apresentações:
— Este é o Paulo Leminski, meu professor... Paulo, esta é
minha amiga Alice Ruiz.
Os dois se olharam, fizeram os meneios triviais com a cabeça,
um aperto de mão, um beijinho no rosto e se afastaram. Alice
recorda-se de que, minutos depois, estava fascinada por aquele
sujeito, pela maneira como ele se movia pela sala, o tom de voz.
Discretamente, ela prestaria atenção no tipo: os cabelos compridos
caindo nos ombros, a roupa, uma verdadeira obra-prima de
engenharia: a camisa muito curta terminava na cintura, depois
vinha uns cinco centímetros de barriga, três centímetros de cueca e
só então começava a calça.
Subitamente ele reapareceu para perguntar:
— Uísque ou martíni?
— Uísque — ela respondeu.
Ele voltou com o copo cheio de martíni, o que ela considerou
um gesto desajeitado de um rapaz fazendo a corte a uma moça.
Leminski, por sua vez, estava igualmente perturbado por aquela
garota charmosa e bem-informada, que demonstrava interesse em
literatura e poesia. Alice pegou o copo, abriu um sorriso atrevido e
voltou a conversar com os amigos. Sabe-se que esta foi uma festa de
arromba, que agitou o São Bernardo até o amanhecer. Havia algo de
psicodélico no salão, onde se misturavam os pais de Leminski — no
começo da noite —, o diretor de teatro Antonio Carlos Kraide,
Esmeralda, outras alunas do cursinho, Lélio, Ivan (porque era um
dia especial), Brodão, Carlos João e uma dúzia de desconhecidos. A
principal ausência da noite era a do irmão Pedro, que estava preso
numa delegacia por roubo de carro. Nesta noite, eles ouviram
repetidas vezes o disco Ttopicália ou Panis et Circensis, que tinha sido
lançado semanas antes numa grande festa no Dancig Avenida, em
São Paulo. O vinil reunia os talentos de Gil, Mutantes, Nara Leão,
Tom Zé, Gal Costa, Caetano Veloso, Capinam, maestro Rogério
Duprat e consolidava o movimento que vinha sendo chamado de
Tropicalismo:
Na mão direita tem uma roseira
autenticando eterna primavera
e nos jardins os urubus passeiam a tarde toda
entre os girassóis
Leminski veio se chegando ao grupo onde Alice estava,
cantando junto, estalando os dedos e fazendo charme, até conseguir
atraí-la para um canto da sala. Os dois passaram a noite em
conversas sobre temas variados e atuais. Alice falou de suas poesias
e contou que estava morando no Rio de Janeiro, onde fora procurar
“um mundo mais arejado e menos machista”. Vaidoso, ele se exibiu o
quanto pôde, apresentando sua biblioteca de obras clássicas e
declarando seus autores preferidos. Foi como se as outras pessoas
tivessem desaparecido da sala e os dois permanecessem envolvidos
por uma nuvem de gelo seco. Leminski abriu uma pasta, tirou uma
folha de papel e mostrou um poema que tinha feito naqueles dias —
e que vinha chamando de Esplêndido Corcel. Eis um trecho:
o esplêndido corcel
vê a sombra do chicote
e corre, esplendores do cavalo
em labirintos de crina
incentivado pelo vento
cancela espaços de quimera
consumindo o tempo
pira que heróis incinera
(...)
Mais tarde Alice diria:
— Fiquei aquela noite com ele, saí no dia seguinte para voltar
logo em seguida e ouvi-lo dizer: “Estou vidrado em você, guria.” Não
saí mais. Foi uma coisa absurda, uma paixão alucinada.
Alice sempre considerou este encontro uma “obra-prima do
destino”, pois ela teria ido à festa muito a contragosto. Primeiro, por
não ter sido convidada; e, segundo, por ter informações que
desabonavam Leminski. Nada contra sua honestidade ou honradez,
apenas contra a sua imagem:
— Eu namorava um escritor, o Jamil Snege, que falava muito
mal dele. Dizia que ele era arrogante, metido, pretensioso, o dono da
verdade etc. etc.... De fato ele era, depois pudemos comprovar, mas
em absoluta justa causa.
Na manhã do dia seguinte, ao voltar para o apartamento onde
planejava encontrar-se com ele, Alice estava com o coração aos pulos
e caminhava em direção oposta ao desfile militar de 25 de agosto, o
Dia do Soldado. Foi um momento poético, um signo dizendo que se
houvesse bom senso ela daria meia-volta e seguiria a parada. Mas
ela foi em frente, no sentido contrário ao da correnteza, para nunca
mais voltar.
A presença de Alice no São Bernardo, na condição de
namorada de Leminski, iria tornar ainda mais difícil — se não
impossível — a tarefa de manter as aparências. Agora, moravam no
mesmo “apê” os dois casais e o pequeno Kiko, como vinha sendo
chamado o mascote da turma. Na sala, os convidados eventuais se
esparramavam pelas almofadas. Os mais constantes eram: Carlos
João e Fredinho (filho da dona do cursinho Dr. Abreu); ainda Julinho
Karatê (que tempos depois seria encontrado morto ao lado da
amante, vítima de asfixia por gás e envenenamento por cianureto) e o
artista plástico Franklin Horilka. Alice lembra-se com bom humor da
primeira conversa para racionalizar as tarefas domésticas: quem
lavaria as meias de Leminski? Seria a empregada, que já vinha
lavando? Ou a nova namorada? Ou, ainda, Neiva, que para todos os
efeitos era a esposa oficial? A situação continuava confusa entre os
quatro e, na verdade, à luz de uma avaliação jurídica, acontecia ali
um caso explícito de adultério.
A rotina passou a ser mais ou menos assim: ele dava aulas
pela manhã, folgava à tarde e voltava para o cursinho à noite. A vida
social no São Bernardo, portanto, começava depois das 11 e
terminava por volta das 4 horas da madrugada. Ele continuava
freqüentando apenas ocasionalmente as aulas de judô na Kodokan,
mas, para compensar a falta de exercícios, treinava em casa
amarrando a faixa preta na porta do quarto — como se fosse um
adversário —, contra a qual deferia um elenco impressionante de
gritos e golpes. Como num contragolpe, a vizinhança começaria a se
manifestar.
Para complicar o quadro, um novo e intrigante personagem
surgiria no São Bernardo. Seu nome era Olavo, tinha 22 anos e dizia
estar chegando da Califórnia, “onde todos falam da nova onda, a Era
de Aquarius”. Não era músico, poeta, muito menos intelectual, e não
tinha uma obra ou projeto artístico para apresentar. Era bonito e
gostava de fazer reverências ao sol e falar de horóscopo. Não morava
em nenhum lugar, especificamente. Era um hippie com
comportamento bissexual, o primeiro a surgir no “pedaço”. Chegou
como amigo de Brodão, que conhecera no Rio de Janeiro, onde ouviu
falar da turma de Curitiba. Sua presença no São Bernardo faria Lélio
citar o filme Teorema, de Pasolini, no qual o personagem de Terence
Stamp faz amor com toda a família. Leminski escreveria um poema
para Olavo, fazendo brincadeiras verbais com a frase Lavar o Olavo.
Fez uma dedicatória onde dizia: “do beatnik para o hippie”. Apesar
das evidências, não se conhece nenhum envolvimento homossexual
de Olavo com qualquer membro do grupo. Mas, a se considerar as
declarações de alguns amigos, “ninguém deve colocar a mão no fogo
por isso”.
Para Carlos João, porém, aquelas noitadas tinham uma
conotação estritamente cultural:
— O nosso maior contentamento era quando o Paulo chegava
em casa, depois das aulas. Os papos se estendiam muita vezes até o
raiar do dia. Os temas eram variados: de Glauber Rocha a Euclides
da Cunha, passando por análises do Brasil arcaico e conversas sobre
estética, de um modo geral. Hélio Oiticica tinha lançado as bases de
uma exposição chamada Tropicália, que Caetano Veloso
transformara em música e em movimento cultural. Falávamos disso.
Uma noite de inverno, em 68, Leminski foi visto bebendo sozinho
no La Fontana de Trevi, o bar que agora freqüentava com o pessoal da
academia, no andar térreo do mesmo edifício. Tinha os cabelos na
altura dos ombros, usava barba também comprida e um sobretudo
escuro que terminava bem abaixo do joelho. Passou boa parte do
tempo lendo e fazendo anotações em guardanapos. Carregava um
calhamaço de papéis e revistas que consultava a todo instante. Era
uma figura única no ambiente, lembrando em muitos aspectos um
poeta maldito do século XIX. Eu estava na mesa ao lado, com um
grupo de amigos, todos estudantes, discutindo calorosamente um
tema polêmico e de ocasião: o festival de música da Record, que
contrapunha de um lado os defensores da estética musical de “Roda
Viva”, de Chico Buarque, e, do outro, a modernidade preconizada por
“Alegria Alegria”, de Caetano Veloso. O festival tinha acontecido em
outubro do ano anterior, mas as músicas continuavam nas paradas de
sucesso. A certa altura, Leminski pagou a conta, colocou os alfarrábios
embaixo do braço e falou, dirigindo-se à nossa mesa:
— Nesta polêmica eu sou mais o Caetano, colocando o Brasil no
mundo eletrônico. Adeus, cavaquinho — e saiu.
14 de outubro de 1968. Alice está esperando Leminski chegar
do trabalho no cursinho Abreu, o que aconteceria exatamente às
22:30 horas. Eles namoram e fazem amor como todas as noites, mas,
por um motivo qualquer, nesse dia foi diferente para ela:
— Minutos depois eu sabia, de alguma forma misteriosa, que
tínhamos feito um filho.
A intuição feminina funcionou. Alice engravidara e, assim que
a barriga começou a aparecer, surgiriam também novos problemas
no edifício, onde alguns moradores cogitavam passar um abaixo-
assinado para afastá-los do condomínio. A situação estava cada vez
mais delicada:
— A notícia chegaria ao ouvido de dona Ruth, a proprietária do
cursinho Dr. Abreu e fiadora do apartamento. Ela considerou que
não podia ter em seus quadros um professor de vida dupla. O Paulo
dependia do aval dela para alugar um outro apartamento. Assim, eu
tive que ser literalmente oculta.
A situação financeira da casa passava subitamente por um
período de dificuldades. Fazendo cálculos na ponta do lápis, chegou-
se à conclusão de que o valor do aluguel estava muito alto e seria
conveniente encontrar um novo endereço mais afastado do centro e,
portanto, mais barato.
Jurando que estava “tudo acabado” entre ele e Alice, que a
relação tinha sido apenas “uma loucura momentânea”, Leminski
conseguiria o aval desejado com dona Ruth. Ato contínuo, um novo
apartamento foi alugado na rua Paula Gomes, próximo ao Cemitério
Municipal, para onde foram também Ivan, Neiva e Kiko. Agora, era
Alice quem não podia ser vista, principalmente por dona Ruth, que
costumava se materializar a qualquer hora, com o dedo na
campainha, pois não havia telefone na casa:
— Certa vez fiquei escondida na despensa, um quartinho
escuro e frio. Foi humilhante. Eu estava grávida e não tinha espaço
nem para uma cadeira. Fiquei assim parada, esperando até a velha ir
embora. É como diz a canção: o que a gente não faz por amor?!...
Com as finanças equilibradas, o sinal vermelho começou a
piscar em “outro departamento”, que progressivamente ganhava
mais espaço na vida da comunidade: as drogas. (É claro que este
“problema”, amigo leitor, pode existir apenas na minha e na sua
cabeça, já que tudo o que eles procuravam era mesmo o “nirvana”.)
Foi assim que apareceu uma turma “barra pesada” no “guruato” do
Leminski, que agora recebia aulas de violão do irmão Pedro. A nova
rotina consistia em comprar um “galo” ou uma “perna” — o
equivalente a 50 e 100 cruzeiros — de maconha por semana, para
consumo coletivo. Alguns foram abandonando o hábito —
subitamente ingênuo — de tomar o xarope Romilar (um expectorante
que, quando ingerido em quantidade acima do normal, faz o sujeito
falar com eloqüência, funcionando como anfetamina) e trocavam-no
por “picadas nos canos” — ou nos “barbantes”, como diziam alguns.
O depoimento é de Carlos João:
— Uma tarde eu estava lendo no escritório quando o Pedro
entrou esbaforido e agitado. Mal me cumprimentou, praguejando
algumas coisas. Achei por bem voltar às costas e continuar a leitura.
Ouvi então ruídos estranhos. Quando me voltei o Pedro estava
colocando uma seringa sobre a estante e tirando um elástico do
braço. Parecia mais tranqüilo. Neste dia eu percebi que as coisas
estavam ficando pesadas por ali.
O ex-aluno Ernani Buchmann lembra-se de ter visto Leminski
no cursinho, durante um semestre inteiro, usando um indefectível
suéter cor-de-rosa, mesmo em dias de forte calor. Por uma
casualidade, descobriria logo depois que a manga comprida era para
esconder as marcas de picadas no braço esquerdo.
Eles se aplicavam com anfetaminas destiladas e injetadas com
uma seringa, ou “arpão”, quase sempre em péssimas condições de
higiene e segurança. Pedro costumava dizer que canabis (maconha)
era brincadeira de “estudante em férias”. Alice recorda-se:
— Por estar grávida, fiquei de fora dessa. Para compensar, fui
fazer um curso de teatro, no Guaíra. Mesmo assim, meu diretor na
escola, o Otávio, me pediu delicadamente para eu sair do grupo. Ele
alegava que as atrizes já eram muito mal faladas e ter entre elas uma
grávida solteira só poderia piorar a situação.
O resultado foi um abaixo-assinado de alunos e professores do
curso de teatro tentando evitar a discriminação, posicionando-se
contra o afastamento dela. Um conhecido ator, Sale Wolokita,
professor de interpretação, assinou o documento em solidariedade,
mas sua mulher, Flora, secretária de Otávio, recusou-se. Houve
polêmica e muito desconforto durante o episódio, mas Alice acabou
saindo da escola.
Para ela, então com 21 anos, o período de gravidez não seria
nenhum convescote. Todos ainda viviam com o dinheiro que
Leminski ganhava dando aulas, sendo esta a única fonte de renda do
grupo. Em contrapartida, ele se sentia no direito de aproveitar
intensamente todas as horas livres de que dispunha. Mas, longe da
mulher grávida, é claro. Um dia, Alice acordou com febre, fome e um
profundo mal-estar:
— Decidi arrumar minhas coisas e ir para a casa de uma tia.
Um exame médico constatou anemia e inflamação nos rins. Fiquei lá
para fazer o tratamento. Eu não podia voltar à vida desregrada sem
colocar em risco a gravidez...
A saída dela da Paula Gomes não foi exatamente uma
separação, apenas uma fuga estratégica. Depois de recuperar as
energias — o que exigiu um retiro de pelo menos duas semanas —
ela reapareceria para uma rápida visita. Encontraria Leminski sem
barba e de cabelos curtos. Mas, antes, quando ele a viu chegar, saiu
correndo para o banheiro e fechou a porta. Ela ainda pensou:
— Ele não pode ser tão covarde assim!
Certamente não era. Estava apenas querendo aparecer mais
bonito e foi terminar de escanhoar a barba. Ele se comportava como
se fosse o namorado e não o pai do filho que ela carregava na
barriga. Neste momento, Alice percebeu que estava inexoravelmente
se transformando em mãe e que Leminski parecia cada vez mais
longe de ser um pai...
Eles passaram o dia juntos e decidiram que Alice continuaria
na casa da tia até o nascimento da criança. Lá ela teria roupa lavada
e boa alimentação, conforto que o apartamento da Paula Gomes não
podia oferecer. E assim foi feito.
Houve um momento em que todos estavam produzindo e
escrevendo regularmente para o caderno de cultura do Diário do
Paraná, o “DP Domingo”. Eles cobriam as quatro áreas com
desenvoltura (Carlos João agora fazia parte do grupo, escrevendo
sobre MPB), sempre escoltados por Aroldo Murá, que continuava
“alimentando as feras”:
— Eles eram estranhos, criativos e tinham gestos rebeldes que
perturbavam a redação, mas pareciam ser a representação
curitibana daquele processo de renovação que acontecia no mundo.
Havia uma relação de sincronicidade entre as experiências sociais e
pessoais que eles estavam personificando naquele momento, e o
resto do planeta.
Num certo sentido, Murá estava certo. Ivan passou a comandar
um programa na Rádio Colégio Estadual (depois Cultura), chamado
Clube do Jazz, e se orgulha de ter colocado no ar, “pela primeira vez
em Curitiba”, John Coltrane e John Cage. Ele abordava o jazz da
linha modal como um assunto de vanguarda. Tinha um amigo,
chamado Ney Macedo, rico e de bom gosto, que possuía uma
maravilhosa discoteca de importados, “a melhor da cidade”. Foi
estudar teoria musical e começou a desenvolver um projeto que
chamava de “Pragmasom”, para música de vanguarda, com
gravações de ruídos num túnel de Copacabana. Imaginou um
concerto de piano dentro do túnel Novo, com carros e ônibus
andando em apenas uma das pistas.
Ao mesmo tempo, passou a trabalhar no setor de música da
Biblioteca Pública, onde um conjunto de quatro cadeiras (como
cadeiras elétricas) acopladas a gravadores do tipo Akai, de rolo,
forneciam uma programação revolucionária, despejando decibéis nos
ouvidos dos “bichos”. O ambiente era progressivo e civilizado nas
relações. Podia-se ouvir Lalo Schifrin, música dodecafônica e coisas
assim... Este autor freqüentava a sala no terceiro andar — sem
nunca ter se relacionado com Ivan — principalmente para ouvir a
programação de jazz, de um modo geral, e a música “A Whiter Shade
of Pale”, com Procol Harum, em particular:
We skipped the light fandango
Turned cart wheels ‘cross the floor
I was feeling kind of sea sick
The crowd called out for more
Lélio Sottomaior cuidava da crítica de cinema e movimentava a
programação dos cineclubes da cidade. A concentração dos cinéfilos
acontecia no Cine de Arte Riviera, do Colégio Santa Maria (apenas
uma referência, já que a sala de projeção era um anexo ao colégio).
Sylvio Back, Valêncio Xavier, Manoel Karam e Dico Kremer estavam
sempre na platéia participando dos debates. Eram todos jovens e
brilhantes. Back, que já tinha realizado quatro curtas-metragens,
preparava seu primeiro longa, Lance maior, com Reginaldo Farias e
Irene Stephania no elenco. Leminski passou a freqüentar o cineclube
atraído pelos eflúvios desta efervescência. Lélio, o agitador, falava
entusiasmado sobre Oito e meio, de Fellini, os últimos filmes de
Antonioni e Hitchcock; escrevia ensaios sobre o cinema industrial
americano e, claro, divulgava à exaustão “as obras completas de
mestre Godard”. Ao mesmo tempo, radicalizava na postura e nos
trejeitos, descendo a rua XV de mãos dadas com o amigo Paquito e
os lábios pintados de batom vermelho. Eram ameaçados, ofendidos e
muitas vezes foram molestados fisicamente. Lélio recorda-se destes
dias:
— Nós vivíamos na zona franca dos malucos, onde estavam os
intelectuais, artistas e pessoas ligadas ao futuro. Ou, muito pelo
contrário. Desafiamos tudo e todos.
Uma reportagem publicada no Diário do Paraná, a 19 de janeiro
de 1969, aborda a produção cultural do Grupo Áporo, mostrando
uma foto com o time completo: Leminski, Ivan, Lélio, Alice, Pedro,
Carlos João e Neiva, sentados nas escadarias internas do Diário do
Paraná. A legenda esclarece que o grupo nascera “para fazer de
Curitiba uma cidade de homens que, face às coisas da cultura,
tomem partido em termos agressivos”.
Levando ao pé da letra este item do manifesto, durante o II
Seminário Nacional de Literatura, em sua versão 69, Leminski iria
protagonizar um episódio que resultaria em trauma psicológico para
alguns participantes do evento, que se realizava paralelamente ao
Concurso Nacional de Contos — este ano premiando o escritor
Rubem Fonseca, com a trilogia “Desempenho”, “Lúcia” e “O caso de
F. A.”. As palestras do Seminário, intermediadas pelo acadêmico
Adonias Filho, no auditório da biblioteca, aconteciam durante as
tardes e recebiam ampla divulgação da imprensa. Na mesa, entre os
palestrantes do dia, estavam o escritor José Louzeiro, o poeta
Wlademir Dias Pino e a poeta Lupe Cotrim, professora de estética da
USP. A certa altura de sua preleção, Cotrim fez uma citação de
James Joyce em trecho, segundo ela, “extraído do polêmico livro
Finnegan’s Wake”... Leminski, que estava na platéia com um grupo
de amigos, reagiu imediatamente:
— Um momento! Joyce nunca disse isso em Finnegan’s Wake.
Deve haver algum engano.
A professora reagiu com surpresa, um tanto assustada, mas
confirmou a informação. Leminski insistiu:
— Eu continuo afirmando que o trecho citado pela senhora não
existe na obra mencionada.
O mal-estar foi crescendo e o bate-boca também. Agora em pé,
Leminski dirigia-se para a platéia, desafiador:
— Ela não está falando coisa com coisa!
Ao tentar interferir, na condição de presidente da mesa, o
acadêmico Adonias Filho se mostraria ainda mais descontrolado:
— O senhor é um imprudente! Está tumultuando os trabalhos
e desdenhando da capacidade da professora Cotrim.
— Eu não sou imprudente, senhor, sou apenas um provinciano
que já leu muito e adora James Joyce. E não posso admitir que
intelectuais de grande centros, como os senhores, venham aqui
contar falsas histórias.
O depoimento de Louzeiro:
— A professora Cotrim começou a chorar. O Wlademir Dias
acabou se envolvendo mas apenas gaguejava, e a confusão
aumentou. Na platéia, Leminski agora falava coisas ininteligíveis.
No dia seguinte, quando Leminski reapareceu no Seminário
abraçado a vários livros e cercado por um grupo maior de amigos,
todos estremeceram. Assim que a sessão foi aberta, levantou-se e,
dirigindo-se à professora Cotrim, falou com voz forte e poderosa: “Eu
voltei para dizer que o trecho que a senhora citou ontem, professora,
é de Ulisses e não de Finnegan’s Wake.” Um novo tumulto teve início,
que só terminou minutos depois com a interferência de outros
palestrantes, inclusive dos escritores locais que estavam à mesa.
Louzeiro, um maranhense radicado no Rio de Janeiro, onde
atuava como contista e repórter policial, recorda-se de que sua
admiração por Leminski começou neste momento. Ele consideraria o
episódio, apesar do desconforto provocado, um ato de coragem e
competência do jovem intelectual. Após o encerramento da
tumultuada sessão, Louzeiro saiu com o grupo de Leminski pelos
bares da cidade:
— Falamos de literatura, bebemos e comemos pinhão a noite
inteira. Logo pude perceber que ele tinha muito conhecimento. Eu o
convidei para aparecer no Rio, num próximo evento literário
qualquer. Ele prometeu pensar no assunto.
Quer seja pela competência ou pela excentricidade, a partir
deste episódio o poeta começou a ser notícia na imprensa local. Em
14 de novembro de 1968, o jornal O Estado do Paraná, na seção
“Seis colunas”, assinada por Aramis Millarch, abordava o “Perfil de
um homem: Paulo Leminski”:
Professor, poeta e judoca. Com seus longos cabelos e
barba negra, jeito de atleta (que é) e sempre em
companhia da jovem esposa, a pintora Neiva, Paulo
pode parecer à primeira vista um “hippie”
subdesenvolvido. Mas bastam cinco minutos de
conversa com o moço para surgir uma nova imagem.
Afinal, são poucos os barbudos na idade dele que
dominam oito idiomas.
(...)
A notícia com Paulo: está escrevendo seu primeiro
romance, de uma idéia originalmente aproveitada num
trabalho para o concurso da Fundepar. Trata-se de uma
ficção elaborada em linguagem de vanguarda onde o
personagem central é o filósofo francês René Descartes.
(...)
Certo dia, alguém surgiu na Paula Gomes com uma idéia
fabulosa e perturbadora: ir embora para o Rio de Janeiro. Arrumar
as malas e zarpar pela rodoviária que, como dizem os curitibanos, é
“a segunda estação da cidade” — a outra é o inverno. O apartamento
se tornara inviável e a paranóia tomava conta dos verdadeiros
moradores. Eles tinham perdido o controle da situação e viviam em
estado permanente de “grilo”, expressão usada para designar uma
“preocupação aguda de origem interna ou externa”. Leminski estava
particularmente “grilado” com a informação que lhe fora passada no
cursinho de que eles estavam sendo vigiados pela polícia (no caso,
diziam, a Polícia Política). Os visitantes eram passageiros, mas
deixavam rastros... Começaram a desaparecer objetos da casa. Umas
peças de artesanato foram roubadas da parede. As relações de
Leminski com o trabalho estavam em crise — ele vinha sendo
descontado em seus salários pelas faltas constantes... Neiva não
suportava mais:
— Eu entrei em depressão, cortei os cabelos bem curtos e
esperei por uma mudança.
Pode-se dizer que, grosso modo, em termos de projeto outsider,
os curitibanos se dividem em dois grupos: aqueles que planejam
ganhar dinheiro em São Paulo e os que sonham com as praias, os
bares e a paisagem carioca; o lado lúdico da vida, enfim. Eles faziam
parte deste segundo grupo e começaram a criar as condições para
“cair na estrada”. Nestes dias de ditadura militar, o Rio de Janeiro
oferecia como opção de sobrevivência o “desbunde espetacular”, uma
prerrogativa da geração “sem lenço e sem documento” — para usar
uma expressão celebrizada por Caetano Veloso. As dunas da Gal —
ou “o píer do barato” — na praia de Ipanema, e o tablóide O Pasquim,
reunindo a fina flor do humor e da inteligência brasileira,
concentravam o que havia de mais criativo no país naquele
momento. Eles se imaginavam neste cenário tropical, trabalhando e
curtindo a vida como mereciam.
O assunto era abordado a todo instante, sempre com grande
empolgação. Tinham restabelecido contato com José Louzeiro, que os
incentivou de maneira decisiva. O velho amigo Brodão tinha
oferecido um apartamento na Zona Sul para que pudessem se
acomodar na hora crucial da chegada — e eles decidiram aceitar.
Carlos João estava entusiasmado e prometeu partir o mais breve
possível. Leminski e Alice teriam que conversar e decidir a vida deles.
Lélio resolveu continuar em Curitiba e estava fora dos planos. Havia
um frêmito entre as relações neste momento. O país vivia um período
conturbado politicamente. Tudo estava conturbado.
11 de julho de 1969. No dia mais frio do ano nascia o
primogênito dos Leminski. Alice estava sozinha em casa e assim que
sentiu as primeiras contrações seguiu, às pressas, para o hospital.
Antes, pediu para a tia avisar Leminski (o que significava ir à casa
dele) e saiu de casa segurando a barriga. Curitiba era uma cidade de
trânsito fácil nesta época e o caminho até o Hospital São Vicente foi
percorrido em poucos minutos. Levada para a sala de parto, ouviu da
médica de plantão que a criança estava com “apresentação de face”,
ou seja, tinha o rosto para fora e não a cabeça, complicando o parto.
Apesar de toda a dilatação, o bebê não saía. Foram feitas muitas
tentativas, todas frustradas. A solução seria uma operação
“cesariana” de emergência. Antes, porém, a médica quis saber:
— Existe alguém aqui que possa ficar responsável por você?
— Ninguém. Eles devem estar a caminho...
— Existe um risco de vida. Alguém precisa estar ciente disso. A
questão é: se for feita a cesariana, o risco é seu; caso contrário, se
formos pelo método convencional, o risco é da criança.
Ela decidiu no ato e assinou o documento autorizando a
cesariana. Foi um momento de extrema solidão, que ela jamais
esqueceria, apesar do sucesso da intervenção.
A tia chegou logo depois do parto e Alice pediu para ver a
criança. Era um menino saudável, com muita tranqüilidade na face
morena e rechonchuda. Ela olhou emocionada a criança e
considerou que não se parecia com ela e nem com ele, mas com sua
mãe Ângela.
Leminski chegaria ao hospital tarde da noite, bêbado, mas sem
criar tumulto e problemas aparentes. Afinal, tinha um bom álibi,
pois estivera com os amigos comemorando o nascimento do filho.
— Ele ficou muito transtornado no hospital — diz Alice. —
Passou a noite inquieto, sem poder dormir, e eu mesma fiquei
incomodada com isso. Mas o bom é que ele estava lá.
Assim que recebeu alta, Alice voltou para a casa da tia e
esperou.
Uma semana depois ele reapareceu para irem juntos registrar o
filho num cartório. Ela se lembra da cena:
— Ele passou a mão na minha cintura e falou que estava
sentindo falta da curva, referindo-se às minhas formas antes da
gravidez. Era um galanteador desajeitado.
O garoto foi registrado como Miguel Angelo Leminski, do signo
de Leão. Alice escolheu o nome Angelo. Leminski preferia Miguel,
nome do tio. Mas o garoto ficaria conhecido como Guegué.
Neste mesmo dia, Alice seria informada de que Leminski
deveria partir. A decisão tinha sido tomada. Carlos João estava no
Rio há uma semana — foi o primeiro a viajar — e tudo estava
programado com Ivan e Neiva, que deixariam o pequeno Kiko
temporariamente com os pais dela. Leminski seguiria na frente, uma
espécie de batedor à procura de emprego e acomodação, e voltaria
para buscá-la, juntamente com o filho. Levava alguns números de
telefones anotados, referências de jornalistas para jornalistas, e
muita esperança de “pintar uma legal na Guanabara”. Três dias
depois eles embarcaram.
CAPÍTULO 6
DELÍRIOS E NOITES CARIOCAS
Quando chegaram ao Rio de Janeiro, a 30 de julho de 1969, os
três curitibanos sentiam-se como se estivessem pisando na Lua,
repetindo o que fizera Neil Armstrong, o astronauta, duas semanas
antes. Eles desembarcaram na rodoviária, respiraram fundo e
seguiram direto para o Solar da Fossa, um casarão em Botafogo,
quase ao pé do morro do Pasmado. Era uma antiga mansão de dois
andares, com um pátio central e dezenas de apartamentos — 84,
para ser exato — ocupados por artistas, músicos, poetas e pessoas
excêntricas de um modo geral. O amigo Brodão era apenas um deles.
O imóvel estava com os dias contados, aguardando uma decisão
judicial para, finalmente, ser demolido e dar lugar ao primeiro
shopping center da cidade, o Rio Sul. Eles bateram no apartamento
de Brodão e esperaram eternos segundos até a porta se abrir. Ivan
lembra-se da cena:
— O Brodão apareceu e tomou um susto, ficou pálido. Muito
provavelmente porque tinha nos convidado sem esperar que
aceitássemos o convite. Em Curitiba ele deu uma de bacana, mas na
hora se borrou.
O problema estava criado. No Solar havia três tipos de
apartamentos: os com dois quartos, os de quarto e sala e aqueles
com apenas um cômodo. O apartamento de Brodão era dos menores
— pela fresta da porta Neiva viu uma mulher cozinhando no
banheiro — e a situação exigia uma solução rápida. Brodão teve a
idéia de alojá-los no apartamento ao lado, onde moravam Olavo, o
hippie, e um amigo de nome Serginho, que estavam viajando. Eles
dormiriam ali aquela noite, apesar de estarem se sentindo “intrusos e
invasores”. No dia seguinte não tiveram tempo para tomar fôlego: os
donos do apartamento chegaram e um novo constrangimento estava
criado.
Apesar do mal-estar, a questão foi discutida civilizadamente e
chegou-se à conclusão de que eles continuariam acampados por ali
até a situação melhorar. E que fossem rápidos os movimentos. Todos
os mecanismos foram acionados, todos os contatos estabelecidos e
toda sugestão era bem-vinda.
Dias depois, Carlos João apareceu dizendo que estava na
cidade há um mês e ainda “batalhava” por um emprego. Estava
dormindo em Jacarepaguá, mas vinha ao centro diariamente para
visitas-relâmpago às redações:
— No meio daquele tiroteio, foi um grande contentamento rever
os velhos camaradas. Havia muito o que conversar. Traçamos
estratégias e decidimos colocá-las imediatamente em prática.
Carlos João, que também estava sendo desalojado da casa de
um amigo, iria morar provisoriamente no Solar, num outro
apartamento — e, de repente, eles estavam novamente juntos. Aos
poucos, foram se relacionando com os moradores daquela inusitada
“república dos prazeres”. Os dias se passavam e seus corpos se
acomodavam como água num recipiente. Carlos lembra-se com
delicadeza da Baiana, uma mulata que mantinha uma espécie de
pensão, servindo um PF (prato feito) barato e substancioso; havia um
roqueiro, Flávio Spírito Santo, que dava aulas de inglês nas horas
vagas; um jornalista da revista Manchete, que eles chamavam de
Moura. Tim Maia, Cassiano, Hildon formavam a brigada da soul
music. Os mais agitados eram os rapazes da banda Os Brasas, que
acompanhava o pessoal da Jovem Guarda fazendo um “trabalho fixo”
no programa de Carlos Imperial na tevê. Mas o folclore do lugar era
maior: falava-se que por ali passaram Caetano Veloso, Gilberto Gil e
Paulinho da Viola. Carlos João encontrou certa vez a atriz Darlene
Glória pelos corredores, loura e espetacular — tendo ao lado um
sujeito forte e bronzeado:
— É o Mariel Mariscot, que algumas vezes aparece por aqui
cheirando a cadáver. Ele está namorando a Darlene — comentou um
morador.
O temido policial fazia parte de um grupo especial de xerifes
cariocas. Dizia-se, à boca pequeníssima, que era um dos homens
mais cruéis do Esquadrão da Morte. Quando ele passava pelos
corredores do Solar todos batiam três vezes na madeira.
Uma tarde, Carlos atravessou o túnel do Pasmado para tomar
cerveja com Leminski num botequim do Leme. Eles tinham umas
conversas pra levar:
— Eu chamei a atenção do Paulo, que estava desconectado do
mundo, para duas músicas que se apresentavam naqueles dias
conturbados: “Aquele abraço”, de Gilberto Gil, e “Irene”, de Caetano
Veloso. Comentei que elas significavam uma despedida do Brasil e fiz
um relato do que vinha acontecendo.
Em conversa com amigos jornalistas, no botequim em frente ao
Correio da Manhã, Carlos João ficara sabendo que os músicos
baianos tinham sido presos e detidos durante três meses na Vila
Militar, em Realengo. Agora estavam finalmente liberados, mas o
episódio fora considerado suficientemente grave e eles decidiram se
mudar para Londres. Até já tinham partido. A reação de Leminski
teria sido de desconsolo; ele ficou pensativo, mas logo tratou de
mudar de assunto. Como sempre acontecia nestas horas, ele reagiria
com o silêncio. Viviam-se os tempos do AI-5, o ato que suspendia as
garantias constitucionais e elevava à categoria de guerrilha o
confronto do aparato policial com as organizações de esquerda, em
todo o país. Como ficaria registrado nos escaninhos da boa memória,
1968 conquistou a fama (pela sincronicidade planetária), mas foi em
1969 que o pau comeu solto nos porões da ditadura. As rádios de
todo o país colocavam no ar o último sucesso de Caetano Veloso:
Eu digo sim
Eu digo não ao não
Eu digo é proibido proibir...
Nestes dias de Solar da Fossa, um fato curioso se repetiria.
Sempre que Leminski surgia nos corredores, abraçado aos seus
alfarrábios — antologias de guardanapos, rótulos de cerveja com
anotações, folhas avulsas com textos originais —, as pessoas
sentadas nas varandas saudavam-no em voz alta:
— Lá vem o Leminski com aquele catatau embaixo do braço!
A repetição do refrão faria o monge: ele passou a chamar o livro
de Catatau. Até então o título mais provável era Zagadka, que
significa “enigma”, em russo-polonês.
Em carta a Augusto de Campos, escrita três meses depois da
chegada ao Rio, ele mandava notícias dizendo que “Descartes está no
trópico”, citando Panis et Circenses:
O nome da Obra vai ser (quase certo) CATATAU. Estou
morando no Solar da Fossa onde morou Caetano.
“Mandei plantar/folhas de sonho no jardim do solar...”.
Caetano plantou, Leminski colhe. A minha hora vai
chegar, está chegando.
Chegou o verão e com ele uma surpresa: Wilson Bueno aparece
no Solar para dividir temporariamente uma kitchnet com um amigo.
Como todos os outros, Bueno sonhava arrumar um emprego e
estabilizar a situação, alugar um apartamento na Zona Sul ou algo
assim. Enquanto o sonho não acontecia, canalizava sua libido para
os prazeres de Ipanema e seus jovens poetas da geração “desbunde”.
Certa madrugada, tipo quatro horas da manhã, ele e Leminski
encontraram-se por acaso no jardim interno do Solar:
— O Paulo queria drogas e eu sexo. Estávamos os dois
tresloucados. Fazia uma noite quente e decidimos garimpar em
Copacabana.
Os dois saíram caminhando pelo Leme, passaram pelo Beco
das Garrafas, onde tomaram uma cerveja no balcão e,
disfarçadamente, sussurraram coisas no ouvido de alguns
noctívagos. Nada conseguiram. Continuaram caminhando sem
destino, mas a emenda mostrou-se pior do que o soneto. O dia
amanheceu, o sol explodiu em cores nas bancas de jornais e eles
sentiram um profundo desconforto com o calor. Era como se — de
repente — começassem a derreter no asfalto:
— O Paulo tinha uma caneta e um caderninho, onde fazia
anotações para o livro que estava escrevendo. Desanimados,
sentamos no calçadão e contemplamos inertes o oceano. Foi quando
ele resumiu o nosso drama: “Wilson, quer saber? É muito tarde para
as drogas e muito cedo para o amor.”
Em Curitiba, onde cuidava do pequeno Miguel e vivia uma
grande expectativa com relação ao futuro, Alice esperava. Em agosto
de 1969, Leminski escreveria uma carta onde, entre outras coisas,
confirmava que o livro deveria mesmo se chamar Catatau. E
terminava fazendo pose de galã juvenil:
— Menina, quem te deixou prenhe foi um poeta que passou por
aqui procurando uma etimologia.
Nestes dias, Leminski conheceria o músico Paulo Diniz, um
pernambucano de Pesquera, que se tornaria famoso ao colocar nas
paradas de sucesso uma música cujo refrão dizia:
“I don’t want stay here, I wanna to go back to Bahia”. (Leminski
tentou corrigir, “Está errado, tem um verbo auxiliar em excesso, o
certo é “I wanna go back to Bahia”. No fim, foi gravado “errado”
propositadamente.)
A música chamava-se “Quero voltar pra Bahia” e falava do
exílio de Caetano Veloso, na Inglaterra — e este seria mais um ponto
de identificação entre os dois Paulos.
Diniz também morava no Solar — seu companheiro de
apartamento era o locutor de rádio Adelzon Alves — e nos dias
seguintes os dois passaram a se encontrar para tocar violão. Ficavam
horas fumando baseado e conversando sobre música e poesia, tendo
os jardins internos do solar como cenário. O curitibano ganhou
algumas aulas de música e retribuiu a gentileza com um baú de
informações e jogadas textuais. Foi a partir de uma frase pinçada
nas páginas do Catatau que surgiria o título de um novo sucesso
musical de Diniz: “Ponha um arco-íris na sua moringa.” (Depois que
a música foi gravada, Leminski retirou a frase do livro, em
homenagem.)
A situação no Solar da Fossa, que já estava difícil, subitamente
ficou impossível. Uma manhã, os quatro — Carlos João agora fazia
parte da trupe — tiveram que deixar o apartamento de Olavo.
Perambularam pela cidade o dia inteiro, sem ter onde ir. Quando a
noite chegou, aproximaram-se de um circo armado nas redondezas,
explicaram a situação para o domador e foram autorizados a ocupar
o picadeiro. Era uma segunda-feira e não haveria espetáculo à noite,
o que facilitou as coisas.
No dia seguinte, após uma rápida reunião matinal, eles
decidiram em regime de urgência procurar José Louzeiro, que
morava com a mulher e quatro filhos no Beco da Lagoinha, em Santa
Teresa. E para fazer qualquer contato, não havia como recorrer ao
telefone. A única maneira era subir de ônibus ou bonde — neste
caso, atravessando os Arcos da Lapa — e caminhar até a parte
posterior do morro. Eles preferiram o bonde. A casa ficava atrás da
mansão da Nunciatura Apostólica, a representação do Vaticano no
Brasil.
O encontro com Louzeiro finalmente se revelaria uma dádiva.
Ele trabalhava como repórter policial no Correio da Manhã e na
Última Hora, e editava, “em regime de resistência”, o Jornal do
Escritor, um tablóide especializado em resenhas e notícias sobre o
mercado editorial. O jornal havia sido criado com objetivos políticos,
para fortalecer a existência do Sindicato dos Escritores. Louzeiro
conta como tudo aconteceu:
— Eu estava deitado, conversando com minha mulher, quando
alguém tocou a campainha. Fui olhar da janela de cima e ele gritou:
“Oi, Louzeiro, é o Leminski.” Eles entraram e explicaram o drama
que estavam vivendo. Minha mulher reclamou bastante, mas no final
eu os deixei ficar.
O depoimento de Carlos João confirma a ousadia desta
decisão:
— Foi um ato de coragem do Louzeiro hospedar aquele bando.
Eu conhecia um livro de contos dele, mas não o conhecia
pessoalmente.
De imediato, ficou decidido que o grupo ocuparia um quarto no
andar de cima até as coisas de acalmarem. Louzeiro lembra-se de
que, apesar do despojamento, às vezes exagerado, havia um clima de
respeito e ousadia entre eles:
— Eu não entendia muito bem quem formava o casal básico.
Porque não havia um casal básico. Eles estavam colocando em
prática um conceito teórico anarquista de primeira linha, sem
nenhum preconceito, sem nenhum peso.
Na opinião de Ivan, no plano afetivo o momento representava
para Leminski um compasso de espera, um tempo de observação:
— Parecia que o Paulo estava testando a firmeza do meu
relacionamento com a Neiva para tomar uma decisão na vida. Em
público, ainda se comportava como o marido dela, pois eles não
estavam separados legalmente e ela ainda usava o sobrenome
Leminski.
Carlos João recorda-se de que naquele momento todos
pensavam apenas em conseguir um emprego, o que só iria acontecer
como resultado de muito trabalho:
— Na primeira noite, o Louzeiro deu um curso superintensivo
de jornalismo para nós. Ele jogou alguns jornais sobre a mesa e
começou a explicar como fazer um lead, o sub-lead etc.... Apesar de
colaborar com os jornais curitibanos, nós não sabíamos fazer jornal.
Era recomendável que eles tivessem pelo menos as noções
básicas do jornalismo de redação, para fortalecer a missão marcada
para começar na manhã do dia seguinte. Neste sentido, a
cumplicidade de Louzeiro seria fundamental:
— Falamos e tomamos vinho até às 4 horas da manhã, quando
fui para o meu quarto. O Leminski não dormiu. Ficou batendo na
máquina até amanhecer, fazendo exercícios de redação. Minha
mulher ficou uma fera. Logo pela manhã, eles tomaram café no
andar de cima e saíram.
A missão foi bem-sucedida. Leminski conseguiria trabalho
como copydesk n’O Globo e redator da Revista Geográfica, da editora
Bloch. Dois dias depois começaria a trabalhar também como
tradutor da agência Reuters. Tinha — em menos de uma semana —
três empregos. Em seguida, Ivan seria contratado pelo Correio da
Manhã para a função de redator, e Carlos João, repórter. Eles
agarraram as oportunidades com “unhas e dentes”. Diz a lenda — ou
a história, nunca se sabe — que ao negociar um longo trabalho com
a revista Manchete, algo como a História da Humanidade em
capítulos, o editor perguntou quanto tempo Leminski precisava para
entregar o primeiro; ele teria respondido, olhando para o relógio na
parede, que precisava apenas de uma máquina de escrever e uma
xícara de café. O jornalista sorriu argumentando que não havia tanta
pressa, mas que era admirável aquela determinação etc.... Era mais
uma jogada de estilo, com a qual ele gostava de alimentar o mito da
própria competência.
Como parte da estratégia de chegada ao Rio, os curitibanos
passaram a escrever regularmente para o Jornal do Escritor, onde
exibiam suas habilidades profissionais e falavam de suas obras. A
presença e o trabalho do grupo no jornal seria marcante e ganharia
uma chamada na primeira página, onde Louzeiro anunciava “para a
próxima edição” o início da série “Vanguardas em Debate”, “com
reportagens que pretendem ser, ao mesmo tempo, didáticas e
polêmicas”.
Na edição de agosto, Ivan faria sua estréia com o ensaio “Atlas
Eclipticalis de John Cage”, onde argumentava: “Se você quer saber a
verdade, a música de Cage é aquela que ouvimos quando tudo está
quieto. Tudo aquilo que fazemos é música.” Na edição de setembro,
Ivan e Carlos João assinariam em parceria uma entrevista com Décio
Pignatari, sobre semiótica e comunicação, na qual o professor
anunciava a importância do computador “como linguagem comum
universal do fim do século”. Na mesma edição, Leminski apresentaria
dois trabalhos de sua lavra: um ensaio sobre o concretismo,
lançando luzes no movimento de poesia que se iniciara no Brasil nos
anos 50, e um longo texto intitulado “Poema com aparato persa” (ver
Apêndice 2), até agora inédito em livros.
Ficou decidido, ainda, que fariam uma abordagem sobre o
Catatau, com direito a entrevista de Leminski e amostragem de
fragmentos. Ivan foi destacado para escrever o artigo e encaminhar a
entrevista.
O material seria publicado na edição de novembro, com direito
a chamada na primeira página: “Paulo Leminski e Catatau: dois
nomes que vão dar o que falar.” Na página 6, o artigo de Ivan ganhou
o título “Descartes no Brasil Psicodélico & Tropical”. No centro da
página, uma foto de Leminski, de perfil, deixava transparecer uma
barba rala e os óculos de aros escuros. O livro foi apresentado como
um texto de pensamento alto, ou seja, “recomenda-se a leitura em
voz alta”. O tradicional tom de polêmica com os grupos de poesia
engajada continuava em pauta:
— Os praxistas são ótimos rapazes, mas sem ira nem brilho.
São obras que não têm pegadas.
Ao lado da entrevista, quatro trechos do livro. Era a primeira
vez que se mostrava publicamente a prosa considerada
revolucionária do Catatau. Eis um trecho apresentado:
Disfarce, falésias de facécias... Meu falar é maior que eu:
o apaga-eu, o apogeu, apage! Vivo para falar ou falo
para viver? Falo mor de falir, falecer, o falecer maior e
disfalando, afalego e disafaleço. Ah, estarrecer de meu
estar e ser! Falo o que se falar; nem mars nem vênus; o
que se diz por aí, o que se diz aí; o que se fala, acaso,
nestas paragens é melhor falagem? (...)
Enquanto trabalhava nas diversas redações, Leminski jamais
deixaria de escrever o Catatau. Estudava e lia com a mesma
tenacidade de sempre. Passou a se aprofundar na obra de Charles
Peirce e traduzir trechos de Joyce. Num determinado período,
trabalhou no plantão da madrugada de O Globo. Neiva recorda-se
destes tempos:
— Ele acordava às quatro horas da madrugada para ir à rua
Irineu Marinho. Era um massacre... Depois passava em todas as
outras redações onde fazia trabalhos esporádicos.
Após um mês de rotina pesada, tinha chegado para ele,
finalmente, o dia de receber o primeiro salário. Louzeiro lembra das
conseqüências:
— Ele apareceu em casa com um bolo de dinheiro no bolso,
referente aos três salários. Fomos para um botequim em Santa
Teresa onde bebemos quase a metade do que ele tinha recebido. No
dia seguinte ele não foi trabalhar em nenhum dos empregos.
Ao mesmo tempo, todos continuavam colaborando com o
Jornal do Escritor, onde Ivan publicaria um novo ensaio, desta vez
sobre “Marshall McLuhan e a teoria da comunicação”. Fez entrevista
update com Quentin Fiori, o designer de McLuhan, que estava
hospedado num hotel da cidade. Carlos João escrevia resenhas e
secretariava a redação. A rapaziada se mexia e conquistava espaços.
Quer pelas relações de Louzeiro com a cidade, quer por
influência do grupo de poesia concreta, o fato é que eles ampliaram a
rede de contatos com os escritores cariocas. Ficaram amigos de José
Lino Grünewald, em cujo apartamento, no Corte do Cantagalo,
aconteceria uma reunião informal com Quentin Fiori, recepcionado
por intelectuais e artistas brasileiros. Em meio à tertúlia, Leminski
criaria um certo constrangimento no ambiente ao acender um
baseado, aplicado numa “marica” de caixa de fósforo, que oferecia
aos presentes como se fosse um cachimbo da paz. Foi interpelado
discretamente por Décio Pignatari que recusou o convite e lhe lançou
um olhar de censura, acompanhado de uma advertência:
— Eu não preciso de incentivo para fumar maconha, Leminski!
Já tenho idade suficiente para decidir sozinho o que fazer.
Para “engrossar o caldo” de suas atividades, Louzeiro
escreveria um artigo chamado “Os hippies que vieram em busca do
sol”. Falava-se neles como “os curitibanos”. Louzeiro admite que o
cotidiano da casa podia ser tenso em alguns momentos, devido ao
excesso de contingente, mas foi sempre criativo. Ele acredita ter
assimilado um conceito novo sobre a posse de livros e os cuidados
com eles. Sua vasta e bem conservada biblioteca compunha o
cenário de um dos cômodos da casa:
— Até conhecer o Leminski eu tinha ciúmes de livros, não os
emprestava com medo de não serem devolvidos. Ele, ao contrário,
dizia que livros eram para ser lidos e não guardados em prateleiras
como objetos decorativos. Escrevia poemas em papel higiênico, nas
revistas, nos meus livros, em qualquer superfície... Eu aprendi com
ele que o importante não é o papel, mas o que está impresso nele.
O comportamento anticonvencional e a aparência de poeta
maldito podiam dar uma falsa impressão de Leminski, atestam seus
amigos desta época. Na verdade, ele poderia sem muito esforço ser
confundido com um mendigo (hippie) andarilho. Louzeiro lembra-se
de que levantavam-se suspeitas nos meios intelectuais sobre sua
competência com as línguas estrangeiras. Alguém teria perguntado:
“Afinal, quem já viu o Leminski falando inglês ou francês?”
— Eu vi — garante Louzeiro. — Foi na Embaixada da Índia, no
Rio de Janeiro. Era um evento cultural e o Leminski circulava pelas
rodas falando ora em inglês, ora em francês, com grande
desenvoltura. Esteve entre os alemães, falando obviamente em
alemão. Ele era uma pessoa muito pura e sem maldade.
Foi Louzeiro quem programou o encontro de Leminski com o
professor Antonio Houaiss, seu compadre. O que aconteceu naquela
noite foi um choque de gerações unidas pelo mesmo interesse: a
linguagem. Logo após as apresentações, Leminski mostrou um
poema de sua lavra para mestre Houaiss, que na condição de filólogo
obediente às normas gramaticais resolveu implicar com as
contrações pra e pro que apareciam no texto. Houaiss contestou.
Leminski explicou que a liberdade de poder escrever à maneira que
se fala era a alma da sua poesia. A discussão se prolongou noite
adentro e só ter-minou quando Leminski, decidido, anunciou:
— Pois bem, professor Houaiss, eu vou retirá-las agora em
consideração ao senhor, mas quando chegar em casa eu as coloco
novamente.
Foi também através de Louzeiro que ele e Ivan conseguiram
agendar um encontro com o crítico e escritor Otto Maria Carpeaux,
em seu apartamento de Copacabana. Eles conheciam e admiravam
Carpeaux pela História da literatura ocidental, no caso de Leminski, e
Uma nova história da música, no caso de Ivan, que relembra o
episódio:
— O Paulo tinha preparado um texto curto e grosso, de uma
lauda, sobre o tema “O Que é Poesia?”, onde defendia que a poesia
era o nada. O Carpeaux leu, colocou o papel de lado e não fez
nenhum comentário. Nós chegamos com alguma expectativa e
descobrimos que o professor era gago. Foi uma frustração, pois o
Paulo gostava de conversas rápidas, raciocínios fulminantes... aquele
pique!
Eles saíram do apartamento do professor mais irreverentes do
que nunca, sugerindo que o episódio tinha sido muito engraçado.
Riram desbragadamente “com todo o respeito” e decidiram tomar
uma cerveja num botequim para arrematar a conversa e baixar a
pressão.
Para Alice, a espera em Curitiba representava um momento de
dúvidas. Tinha sido combinado que Leminski mandaria as cartas
para o endereço dos pais dele, no Seminário; seria uma forma de,
esporadicamente, Alice poder levar Miguelzinho para visitar os avós.
De fato, isto aconteceu algumas vezes, mas ela nunca encontrou
uma carta especialmente para ela, apenas recados dentro de uma
carta; algo do tipo “diga para a Alice que já estou preparando etc....”.
Depois de seis meses, ela tomou uma decisão: arrumou as malas e
viajou para o Rio. Antes, deixou o cunhado Pedro, com quem vinha
mantendo uma boa relação de amizade, saber disso. Ficou três dias
na cidade e, surpreendentemente, não procurou por ele. Na segunda-
feira estava de volta a Curitiba. A estratégia funcionou. Assim que
soube, Leminski mandou uma carta urgente:
— O que está acontecendo?? Está tudo bem?!...
Alice respondeu com outra carta dizendo que nada estava bem,
que, após seis meses de silêncio, o vazio de notícias tinha um
significado claro para ela. Cinco dias depois ele voltou. Alice descreve
a cena:
— Eu estava trabalhando numa loja de acessórios de
automóveis, quando ele me apareceu encostado na porta, fazendo
pose ao lado do irmão. Minhas pernas amoleceram, mas eu disfarcei.
Ele falou: “E aí, boneca?”
Após uma história intensa de amor, um filho recém-nascido e
seis meses de silêncio, Leminski continuava fazendo o jogo da
sedução, chamando-a de boneca.
Neste momento — e cercada por essas circunstâncias — Alice
faria uma descoberta importante, fruto de suas próprias suspeitas: a
de que a “genialidade” de Leminski e suas excepcionais qualidades
intelectuais — e mesmo de personalidade — haveriam de existir em
detrimento de algum outro aspecto de seu caráter — e logo ela
descobriu que era do emocional. Ele era capaz de fazer gestos
intelectualmente grandiosos e arriscados mas, ao mesmo tempo,
mostrar-se inepto para pequenas tarefas, como trocar lâmpadas,
tirar documentos ou, simplesmente, demonstrar afeto consigo
mesmo. Alice percebeu que o lado “responsável” da vida era uma
violência para ele, que estava profundamente envolvido com o mundo
das idéias e dos pensamentos.
24 de dezembro de 1969. O casal passa as festas de final de
ano separados. Alice e Miguel na casa dos pais dela e Leminski no
Seminário. Eles se encontravam diariamente para namorar e fazer
planos para o futuro. Neste dia, Leminski apareceria dizendo ter
composto uma música enquanto tocava violão com Pedro — aquela
que seria a sua primeira canção, “Flor de cheiro”:
Você tem o cheiro de uma flor
eu não me lembro mais
lilás, jasmim, incenso
amor-perfeito e sassafraz
flores de há muito tempo atrás
Nesta época, teria início, informalmente, uma intensa parceria
musical entre os irmãos, desenvolvida à custa de muitas talagadas
de conhaque ou qualquer outra bebida forte e barata. Certas vez,
Pedro surgiu com a primeira parte de uma música (inclusive a
melodia) que vinha chamando de “Oração de um suicida”:
Vejo nos teus olhos tão profundo
as durezas que este mundo
te deu pra carregar
E vejo também
que sentes que tem
amor para dar
Perdi-me na vida, achei-me num sonho
A vida que levo não é a que quero
Não quero mais nada...
Pedro mostrou para o irmão observando que estava faltando
uma segunda parte, que eles poderiam criar juntos. Leminski, então,
apresentou uma sugestão de letra e melodia — que acabou sendo a
definitiva — na qual alterou o sentido original do “suicídio”,
transformando-o em ameaça física ao planeta:
Quando a terra se acabar
Você vai chorar
Não adianta mais
Vendo esta terra não compensa
Rezando na presença
De um gigante cogumelo
Teu retrato é poeira
Luminosa nebulosa
Brilha tanto e ninguém vê
Era um mundo tão bonito
Caprichado de milagres
Deus gostava de florir
A música “Oração de um suicida” passou a ser o “carro-chefe”
da produção doméstica. Pedro era o intérprete e tinha encontrado
uma dicção misteriosa para cantá-la, como sugerindo uma referência
autobiográfica. Era o que ele chamava de “punch”. Pedro era visto
freqüentemente entre os alpinistas que escalavam o pico do
Marumbi, na Serra do Mar, onde era conhecido como Escoteiro. Suas
escaladas e porres acompanhados do violão — e com uma turma
divertida — acabaram influenciando o irmão que decidiu conhecer a
cabana na montanha. No dia 4 de janeiro de 1970, o Diário do
Paraná publicaria uma pequena nota com o título “No Marumbi
Leminski Terminará o Catatau”. A nota seguia dizendo que “o erudito
Paulo Leminski pretende passar dois meses vivendo numa cabana na
Serra do Mar, se dedicando totalmente à parte final de sua obra,
aguardada com vivo interesse nos meios literários do país”. A
intenção de passar uma temporada na serra revelou-se, no final,
muito remota. Nos dias seguintes Leminski e Alice decidiriam o rumo
de suas vidas de uma forma completamente diferente.
Foram horas de conversa sobre o que representaria para a
estabilidade da relação uma nova separação física. Alice estava
exigindo uma decisão e deixou isso claro. Leminski tentou
tranqüilizá-la, garantindo que voltariam juntos para o Rio, onde já se
considerava “estabelecido”. Por influência das duas famílias,
entretanto, ficou decidido que o pequeno Guegué ficaria em Curitiba
sob a guarda de uma tia de Alice e de Dona Áurea, que dividiriam
esta responsabilidade. Foi um momento de amargura para Alice:
— Na ausência do Paulo, eu tinha centralizado toda minha
afetividade no Miguel. Sair de perto dele representou me dilacerar.
Mas nós fomos, apesar de tudo...
Quando colocou o pé no Rio, em março de 1970, Alice não quis
viver em comunidade. Alegando que não teria condições de acomodar
o filho sequer razoavelmente, propôs que se pensasse num local
definitivo para “erguer acampamento”. Neiva concordou
prontamente, pois vivia a mesma ansiedade com o pequeno Kiko —
e, assim, a temporada na casa de Louzeiro, que já durava quase dois
meses, chegou ao fim.
Eles alugaram dois quartos vizinhos numa pensão da rua
Hermenegildo de Barros, na Glória. Era uma casa de cômodos
tipicamente portuguesa que, na definição de Louzeiro, tinha a
qualidade de ser uma “cabeça-de-porco bem-comportada”. A pensão
ficava a poucos metros da casa de Paschoal Carlos Magno, um
benemérito da cultura que tinha vivido em Curitiba, onde ajudara a
fundar o Teatro do Estudante, em 1948. Alice arranjaria um emprego
como secretária num escritório de advocacia, no centro da cidade.
Leminski, com 12 quilos a menos, escrevia regularmente para as
revistas da editora Bloch. Eram tempos difíceis mas aguerridos, pois
da janela via-se o Corcovado, o Redentor, que lindo...
Houve um período em que tanto Leminski quanto Ivan e Carlos
João trabalharam juntos no Correio da Manhã, em diferentes setores.
Ivan na editoria de economia, Carlos no caderno de cultura — na
época editado por Celso Itiberê — e Leminski na chamada editoria
geral, cobrindo crimes e problemas de bairro. Fizeram amizades que
se mostrariam sólidas ao longo dos anos. Conheceram Reinaldo
Jardim, responsável pelo projeto gráfico do jornal, e Ruy Castro, na
época deixando de ser “apenas” um repórter promissor para escrever
artigo “de fundo” para a revista Playboy e outros upgrades. Em seu
depoimento, Carlos João — que fora morar com um amigo em
Ipanema — reconhece que o Jornal do Escritor também tinha se
tornado um ponto de referência em suas vidas:
— O Wlademir Dias Pino, do poema-processo, e a turma de
jovens poetas, como Kátia Bento, costumavam aparecer. O Paschoal
Carlos Magno chegava oferecendo um livro e um dinheirinho para o
meu almoço.
Leminski foi convidado a participar de um ciclo de debates
sobre literatura no Museu de Arte Moderna, o MAM. Ele seria visto
circulando no auditório com os rascunhos do Catatau embaixo do
braço, distribuindo cópias para os participantes. Em seguida, houve
uma confusão com a polícia que quase terminou mal para o seu
currículo. Alguém falava ao microfone, quando agentes do DOPS
infiltrados na platéia se aproximaram e lhe deram voz de prisão.
Carlos João estava por perto e ficou atento. Eram tempos difíceis e
todos sabiam que qualquer mal-entendido poderia resultar em
prisão, tortura e, até mesmo, desaparecimento e morte dos
suspeitos. Quando vislumbrou o poeta Décio Pignatari no saguão,
Carlos correu para informá-lo, pensando que, talvez, quem sabe, o
professor pudesse interferir em favor de Leminski. O tiro saiu pela
culatra:
— O Décio reagiu com irritação. Ele deve ter pensado que o
Paulo estava tendo problemas com drogas ou coisa assim. Na
verdade, os agentes suspeitavam que os rascunhos eram manifestos
subversivos. Algumas pessoas interferiram dizendo serem textos de
teoria literária. Os “homens” olharam os originais e liberaram o Paulo
que, como os policiais — mas por outro motivo —, sairia meio zonzo
da confusão.
Os tempos difíceis trouxeram problemas incontornáveis para o
casal, no ano do Milagre Econômico e do tricampeonato mundial de
futebol:
— O dinheiro começou a ficar curto — lembra Alice. — O Paulo
trabalhava muito mas a grana entrava de forma irregular, pois ele
continuava sem documentos e sem carteira assinada. Nós não
tínhamos o menor talento para administrar finanças. Para
sobreviver, passamos a almoçar no bandejão do Correio da Manhã.
Em meados do ano, Alice ficaria novamente grávida. A notícia,
paradoxalmente, trouxe alegria e apreensão para o casal. Assim que
sua barriga mostrou-se saliente, ela seria demitida do emprego.
Leminski adotaria um expediente inusitado para voltar para casa, no
final do dia, com alguns trocados: guardava o dinheiro que lhe
davam para o táxi e circulava de ônibus pela cidade.
Certa vez, ao voltar da cobertura de um crime no subúrbio, ele
criaria a sua primeira música espontânea, sem o auxílio de violão e
sem parceria, batendo o ritmo com as mãos:
Mãos ao alto
isto é um assalto
um insulto um sinal
O senhor me parece um homem de bem
Eu prefiro o caminho do mal
Não discuto
Eu chuto tudo pra escanteio (repete)
Sou lobisomem na lua cheia
Criança domingo no futebol
Eu tenho um Exu atrás da orelha (repete)
Procurando a navalha vermelha
O estanho jorrando à bangu
O entusiasmo com a experiência foi de tal ordem que o amigo
Louzeiro decidiu lhe dar um violão de presente. Sua primeira
providência foi comprar o método “Paulinho Nogueira”, com o qual
ensaiava diariamente, confirmando sua vocação para o aprendizado
autodidático. Trabalhava exaustivamente para tirar no violão as
músicas de que mais gostava. E tirou. Logo se faria acompanhar em
qualquer clássico da bossa-nova ou em suas próprias canções. Seu
desempenho durante os ensaios era simplesmente infernal. Ficava
horas tocando a mesma nota musical, batendo com tal força nas
cordas que os dedos começavam a sangrar. Mas ele não parava e o
sangue esguichava pelo quarto. À custa do sofrimento de todos,
incluindo os vizinhos, ele aprenderia a tocar violão em poucos meses.
Ou, como preferia, “o suficiente para me acompanhar”.
Em julho de 1970 aconteceria o meu segundo encontro com
Leminski, que eu aprenderia a chamar de Paulo, desta vez num
botequim da rua Cândido Mendes, na Glória, a poucos metros da
pensão. Eu fora levado por Carlos João, meu conhecido dos tempos de
estudante, que naqueles dias praticamente morava na redação do
Jornal do Escritor. Carlos promoveu as apresentações formais como
se o encontro de dois anos antes, no La Fontana de Trevi, não tivesse
existido — e assim deveria ser. Em seguida, Leminski abriu um sorriso
maroto e disparou, com o dedo em riste:
— Curitibano em férias no Rio está sempre com dinheiro. Paga
um mel?
Eu não estava em férias (participava como repórter de um
encontro internacional da Columbia Pictures), mas lhe ofereci várias
rodadas de uma batida de mel extremamente açucarada e com efeito
devastador, como pudemos comprovar. Falamos de vários assuntos,
mas o que mais me impressionou foi a sua eloqüência, construída a
partir de uma mistura equilibrada de gírias e expressões sofisticadas.
Vestia um sobretudo escuro — apesar do calor —, tinha os cabelos
compridos e as unhas sujas e quebradiças. Mas sua conversa
mantinha-se inteira: explicou as bases temáticas do Catatau,
demonstrou erudição ao falar da história do Brasil, do movimento
hippie na Califórnia e da modernidade na qual a MPB estava
entrando pelas mãos de Caetano Veloso. Ilustrou a conversa
confessando que não gostava de praia, que seria impossível para
qualquer “pensador” viver no Rio de Janeiro durante o verão: “É como
Descartes na Olinda do Catatau, o sujeito entra em parafuso.” Fez
algumas piadas de fino humor e, num determinado momento, me
pareceu um mascate da cultura: a cada efeito causado na platéia,
pedia um “mel” para o garçom.
Depois, me convidou para conhecer a pensão e o “resto do
pessoal”. Lá estavam Alice, Neiva e Kiko, então com dois anos. Ivan
estava trabalhando. Era um quarto pequeno mas aconchegante, onde
o pé-direito do casarão fazia a diferença. Um janelão, com a boca
escancarada, transformava em brisa de fim de tarde as rajadas de
vento que desciam pelas escadarias de Santa Teresa. Sem dar trégua
para a conversa, sentamo-nos no chão em formação indígena e
fumamos dois baseados, que circulavam em sentido contrário:
— Ssshhh...
Num determinado momento, ele abriu a gaveta da escrivaninha,
tirou uma caixa de fósforos e fez um sinal misterioso me pedindo para
olhar o conteúdo. Havia duas pílulas brancas:
— Dois ácidos — murmurou. — Dois LSDs dos bons. Estou
guardando para tomar no campo.
— Você sabe a procedência? — perguntei.
— Vem da Califórnia, é claro!
Ele aproveitou para traçar o perfil de Timothy Leary, o guru da
geração lisérgica, “certamente uma das figuras mais inquietantes
nesta virada de década”, arriscou. Falou o que sabia (e ele sabia
alguma coisa) sobre o Lisergic acid diethylamide, o semi-sintético que
estava se tornando o protótipo da droga alucinógena. Mais tarde fiquei
sabendo que ele jamais tomou estes ácidos, que foram surrupiados
por Paquito, o amigo de hélio, durante uma visita de fim de semana. A
reação do Paulo, quando descobriu o prejuízo, teria sido explosiva:
“Vou matar o vagou do Paquito.” Os outros consideraram o episódio
“uma obra do destino”, um castigo merecido pelo egoísmo de não
querer dividir os ácidos em quatro e proporcionar uma “viagem
coletiva”.
José Louzeiro era um dos poucos amigos a visitá-los na pensão
da Hermenegildo de Barros. Até por uma questão de espaço, eles não
costumavam “receber” em casa. Quando isso acontecia, compravam
um garrafão de vinho Sangue de Boi, colocavam no centro da roda e
a conversa se prolongava por várias horas. Carlos João chegava no
meio da noite. Segundo Louzeiro, tudo era muito estimulante:
— O Leminski falava horas seguidas sem nenhuma
contestação. Não era submissão, mas o prazer de ouvi-lo falar. Ele
era um sonhador e eu sempre gostei de sonhar. Ele gostava de ler
trechos do Catatau e nós gostávamos de ouvir. Estas noitadas eram
uma delícia.
Em agosto, Alice e Leminski decidiram que era hora de buscar
o filho em Curitiba — que já tinha um ano e começava a dar os
primeiros passos. Eles foram, mas encontram uma série de
dificuldades para separar o neto dos avós. Os pais de Leminski
tentaram dissuadi-los a não voltar para o Rio, uma vez que Alice
estava grávida e as dificuldades financeiras podiam continuar.
Depois de muita conversa, a decisão final seria ainda mais
surpreendente: a mãe de Alice, dona Ângela, seguiria junto para
garantir os cuidados da criança, e o irmão Pedro os acompanharia
como uma espécie de “enviado especial” dos pais dele. Na verdade,
Pedro queria participar da “festa” que, supunha, estava acontecendo.
Gravou uma fita com suas canções e foi para a rodoviária, com o
coração cheio de esperança. Sonhava em esbarrar “por acaso” com
Caetano, Gil, ou alguém que demonstrasse interesse por suas
músicas.
A despeito de todas as atribulações e do excesso de contingente
no quarto de pensão — agora eram quatro adultos e uma criança —,
Leminski continuava levando com disciplina espartana seus estudos.
Lia vorazmente Laforgue — que considerava “romântico no bom
sentido” e do qual traduziria alguns poemas curtos. Preparou um
artigo para a revista Ele e Ela com o título “A mulher é a mensagem”,
onde sustentava que McLuhan nascera obsoleto, pois o sentido de
“Medium is Message”, sua obra-referência, estava em Santo Tomás.
Ao mesmo tempo, relia com sofreguidão Les Paradis Artificieis, de
Baudelaire, livro que considerava “tremendo” por vincular-se às
experiências psicodélicas modernas. Ao mesmo tempo, decidiu
apresentar algumas pautas aos editores do Pasquim, elaboradas a
partir de um enfoque sobre a nova cultura underground.
Alice começaria a fazer seus primeiros poemas nesta época,
sem mostrar para ninguém, só para Leminski. Era o início de uma
parceria também profissional entre eles.
Em seu depoimento, ela não deixa dúvidas sobre o que
representaram estes três meses vivendo no quarto superlotado:
— Foi uma barra! Os dois irmãos bebiam alucinadamente,
tocavam violão até não poder mais e no final brigavam.
Logo depois, um tanto quanto frustrado, Pedro decidiria
abandonar o sonho e voltar a Curitiba. A mãe de Alice, dona Ângela,
aos 64 anos, faria o mesmo.
Os melhores momentos deste período, sem dúvida, seriam as
visitas ao Pasquim, na rua Clarice Índio do Brasil, em Botafogo. Eles
costumavam parar no botequim da esquina para bater papo e tomar
cerveja com os novos amigos. Um deles, o jornalista Luiz Carlos
Maciel, editava uma coluna de duas páginas com o título
“Underground” e seria contemplado, mesmo à revelia, com a fama de
um dos mais importantes gurus da imprensa brasileira. A tribuna
“alternativa” comandada por ele abordava uma extensa pauta de
assuntos pertinentes àqueles conturbados anos, desde as teorias de
Marcuse, passando pelas experiências lisérgicas dos pioneiros, até o
novo comportamento da juventude pós-68, com seus cabelos
compridos e o símbolo da paz. Aliás, “Cabelo” era o título de um
manifesto assinado por Jorge Mautner — que freqüentava as
paradas de sucesso com a música “Eu queria ser uma locomotiva” —
traduzindo para o “brasileiro” a onda internacional da peça Hair. Foi
uma receita de sucesso para um público específico, aquele unido
pelos mandamentos da contracultura. Maciel lembra-se do primeiro
encontro com Leminski, na redação do Pasquim:
— No início achei que se tratava de mais um maluco que
aparecia me procurando para discutir temas transcendentais. Eu
demorei um certo tempo para perceber que se tratava de um
intelectual, até porque ele não se comportava como tal. O Leminski
era o espírito ambulante da contracultura.
Pelas mãos de Maciel, Leminski publicaria no Pasquim o
“Indicionário”, uma seleta de gírias da época, analisadas sob o ponto
de vista das necessidades de fuga, como um código secreto de
linguagem. Era o sinal dos tempos. Em sua apresentação, Maciel
destacaria o caráter de vanguarda do trabalho:
— Tanto quanto sei, este Indicionário é a primeira tentativa de
codificação do dialeto mais falado no underground brasileiro, o
malaquês, o idioma do malaco ou vagau. O Leminski é um purista,
interessado na preservação da integridade do malaquês.
Alguns dos 70 verbetes apresentados tinham suas explicações
tão misteriosas quanto os próprios substantivos: mocó, necessa,
babilaca, pinote, birita, sujeira etc.... Este era, em resumo, o
vocabulário do fumador de maconha. Muitas dessas expressões
acabariam assimiladas pela cultura popular e hoje fazem parte do
cotidiano da classe média, mas foram forjadas no lado marginal
daquela sociedade. Assim:
Babilaca. Por dentro. Bom tê-las à mão. Também se diz
“do-cuma”.
Birita. Tem sobre a água a vantagem de levantar a
peteca. Vagau não é biritão. Etil não facilita a ação, o
vagau é prático. “Birita só pega bem na continuação”
(Provérbio Malaquês).
Berro. Mantém o próximo à distância. Carregar é
sujeira. Dá tecos.
Bode. Variedade de dormir, caindo na cama para
acordar 18 horas depois. Sem sonho.
Pinote. O lance maior. Modalidade esportiva favorita do
vagau. Distingue-se da corrida olímpica de fundos
porque nesta o monitor dá um tiro para o ar. No
pinote, o vagau se ganha levando tecos sem conta
pelas costas.
(Ver Apêndice 3.)
Em contato com Maciel, Leminski teria notícias dos
movimentos de vanguarda no mundo (eles falavam muito em Jimi
Hendrix e Janis Joplin, tentando adivinhar quem seria o próximo a
morrer de overdose; elegeram Joe Cocker como barbada) e de
Caetano Veloso, em particular. Ele e o irmão Pedro gravaram uma
fita com várias músicas, que tentariam, através de Maciel, fazer
chegar aos ouvidos de Capinam ou Gal Costa. Tudo deveria ser feito
no melhor estilo maçom, por baixo dos panos. A grande imprensa
vivia uma rotina de censura — e as notícias do calabouço e dos
confrontos urbanos ou rurais eram constantemente confundidas com
boatos. Nada se confirmava, tudo ficava resumido a insinuações.
Esta situação de silêncio e medo acabou favorecendo o surgimento
de uma “imprensa alternativa”, a guerrilha da informação. Maciel
fora destacado pelo editor Tarso de Castro para conseguir uma
colaboração regular de Caetano para o Pasquim, diretamente de
Londres, o que acabaria acontecendo.
Na redação do Pasquim, os Leminski conheceriam também a
jornalista Martha Alencar, recém-casada com o ator Hugo Carvana, e
durante algum tempo a única mulher na redação do jornal. Para
Alice, identificada com Martha inclusive pelo que havia de feminista
na sua atitude, a jornalista foi uma espécie de “anjo da guarda” do
cotidiano:
— Ela nos emprestaria dinheiro algumas vezes, para suprirmos
as necessidades básicas. Era uma pessoa doce e corajosa. O dinheiro
era pouco, mas o significado, grandioso.
No final de 1970, apesar de todo o esforço desprendido,
Leminski continuava produzindo muito e recebendo pouco. Tomava
várias “bolinhas” por dia, para se agitar e perder o apetite. Em carta
a Augusto de Campos, de 30 de dezembro, ele diria:
Prossigo meu trabalho de formiga das letras treinando
para o grande salto: cataqual? Continuo extraindo as
séries estocásticas (estoxicásticas, melhor melhorando)
da língua. Ouço as pessoas (do povo prefiro,
ascensoristas, flamenguistas, crioulos, que manejam
maravilhosamente o código oral do português)... (Ver
Apêndice 4.)
Essa extraordinária fertilidade criativa e intelectual era o
sintoma de uma época rica em contradições, conflitos e hipertensões.
Houve um momento — quando a gravidez de Alice e as dificuldades
financeiras estavam bastante acentuadas — em que havia chegado
para eles a hora de se haver com todas as crenças da contracultura e
adequá-las à responsabilidade de colocar gente no mundo. Os dois
caminhos, que sempre lhes pareceram opostos, se encontravam
finalmente. A questão era séria e algo tinha que ser feito:
— O Paulo não podia ser contratado na Enciclopédia por falta
de documentos. O dinheiro do primeiro salário ainda estava retido no
banco. Eu já estava entrando no último mês de gravidez quando
decidimos voltar a Curitiba.
A retirada estratégica foi feita em duas etapas, para evitar
desgastes com uma viagem de quase doze horas na poltrona de um
ônibus. Eles pararam em São Paulo por uma noite, e ficaram
hospedados na casa de Augusto de Campos. Alice recorda-se de que
o filho de Augusto, Cid, então com 13 anos, mostrou-se fascinado
pela sua enorme barriga:
— Ele pediu para passar a mão, sem saber que ali estava
Áurea, que no futuro seria sua amiga.
Esta noite eles não saíram de casa. Ficaram bebendo vinho e
conversando. Falaram sobre a volta a Curitiba e do filho que estava
para nascer. Atualizaram as conversas sobre literatura e a nova
roupagem da poesia, a música popular. Augusto estava em contato
com várias experimentações na área, estudando e se aproximando de
músicos como Anton Weber, Caetano Veloso e outros poetas do
gênero. A certa altura, percebendo que a camisa de Leminski estava
rasgada, Augusto lhe ofereceu uma do seu guarda-roupa, o que foi
prontamente aceito. Eles foram dormir cedo esta noite, pois no dia
seguinte teriam um longo trecho da viagem para percorrer. Ao deitar-
se, Alice experimentou a sensação de que a criança poderia nascer a
qualquer momento.
CAPÍTULO 7
O DIA DA CRIAÇÃO
A Curitiba dos anos 70 é uma cidade muito diferente daquela
arquitetada pelos pioneiros, movida a carroças e rodas d’água, e
onde — até meados dos anos 60 — ainda se podia contar com a
entrega diária de pão e leite na porta de casa. A cidade entrou na
nova década passando por uma mudança radical em sua fisionomia,
acompanhada de um crescimento populacional fulminante,* depois
de ser tratada no século XVIII como “localidade quase esquecida e
praticamente isolada”, segundo o historiador Ruy Wachowicz, em
sua História do Paraná. O ano de 1971, portanto, vai aparecer neste
contexto como o divisor de águas em matéria de modernização
urbanística da cidade.
Foi por um ato de decreto, assinado pelo então governador
Haroldo Leon Peres, em plena ditadura militar, que o arquiteto Jaime
Lerner tornou-se prefeito de Curitiba pela primeira vez. Este teria
sido um dos poucos atos administrativos de Peres, que ocupou o
governo por apenas oito meses, antes de ter seu mandato cassado
por corrupção, numa denúncia inédita envolvendo espionagem,
empreiteiros e propinas. Lerner sobreviveu à crise política e exerceu
até o final o seu mandato. Fez uma administração de impacto,
promovendo profundas mudanças na cidade, que ganharia novos
espaços para os pedestres e um conceito cívico de participação
comunitária. Nos anos seguintes, como um exemplo de postura
politicamente correta, seriam criados parques e locais públicos
* Em 1944, quando Leminski nasceu, Curitiba tinha 140 mil habitantes; em 1970, o
arborizados, elevando de meio metro a 50 metros quadrados as áreas
verdes por habitante, ou seja, quatro vezes mais que o padrão
mínimo — de 12 metros — recomendado pela ONU e pela
Organização Mundial de Saúde.
O centro da cidade se transfiguraria num piscar de olhos. Os
bares e cafés, beneficiando-se das obras de circulação, ampliavam
seus domínios, instalando mesinhas e canteiros nas calçadas. Foram
colocados bancos de praça, cabines de telefone — em acrílico azul —
e bancas de jornais — também em acrílico — ao longo da avenida
central, a Rua das Flores (flores que, felizmente, não eram de
acrílico). No outro lado da cidade, um velho paiol de pólvora seria
desativado e remodelado para dar lugar a um teatro de arena, o
Teatro Paiol. O curitibano fazia parte da paisagem urbana e parecia
gostar disso. A Boca Maldita, reduto popular e ponto de encontro de
pessoas influentes na cidade, ganhava fama nacional como
“formadora de opinião” por sua capacidade extraordinária de
espalhar boatos, erguer e destruir reputações.
Neste sentido, a popularidade do prefeito Lerner acompanharia
o ritmo das obras. Ele se tornava o darling da classe média
curitibana ao ser identificado como símbolo de administrador
eficiente e desenvolvido. Criou um marca de modernidade
administrativa com a qual apoiaria o marketing de suas futuras
campanhas políticas.
As forças de oposição a Lerner, entretanto, contra-atacavam
acusando o prefeito de promover sessões de “maquiagem” no centro
da cidade, deixando de lado as obras de saneamento básico na
periferia. Apontavam estatísticas indicando o surgimento de bolsões
de miséria ao redor de Curitiba (que se consolidariam nos anos
seguintes, formando as primeiras favelas da cidade), enquanto os
bairros privilegiados continuavam cada vez mais privilegiados. Anos
mais tarde — como se isso pudesse ser considerado um ajuizamento
censo apontava 650 mil.
— Lerner ocuparia novamente o cargo de prefeito por mais duas
ocasiões, uma delas escolhido pelo voto direto nas urnas. A partir
dos anos 80, com a normalização do processo democrático, ele seria
escolhido duas vezes governador e elegeria seu sucessor na
Prefeitura — o engenheiro Rafael Greca de Macedo — perpetuando
um estilo e uma marca de administração.
Quando chegaram a Curitiba, a 28 de fevereiro de 1971,
Leminski, Alice e Miguelzinho foram para uma pensão na rua
Ermelino de Leão, no centro da cidade. Era um casarão antigo, com
vários quartos e um corredor comprido interligando todos os
aposentos. O quarto deles era o último. O dono da pensão, um
homem gordo, careca e baixinho, tinha o costume de aparecer
sempre de forma inesperada, como se estivesse permanentemente à
espreita. Leminski o apelidaria de Minotauro. A pensão era chamada,
então, O Labirinto do Minotauro.
A volta a casa revelou-se providencial: na madrugada do dia
seguinte, Alice começou a sentir fortes contrações. Miguelzinho,
então com um ano e oito meses, ficou assustado com a
movimentação noturna, vendo sua mãe sendo levada às pressas para
um hospital. Ele foi junto no táxi, pois não havia como deixá-lo em
casa sozinho.
Áurea Alice Leminski nasceu de parto normal a 2 de março, ao
meio-dia; signo de Peixes. O nome fora escolhido dias antes e era
uma homenagem “às duas mulheres” da vida dele. Leminski chegou
ao Hospital São Vicente novamente atrasado, já no final da tarde,
mas sem provocar mal-estar. Estava apenas atrapalhado. Para Alice,
o mais desesperador seria receber alta e ter que voltar para a
realidade do Labirinto:
— Morávamos todos num quarto e agora tinha um bebê que
trocava o dia pela noite, chorando de madrugada. Era uma cama de
casal para os quatro. O Paulo, para se aliviar desta tensão,
encontrou a saída da rua e passou a freqüentar novamente os bares
da cidade.
Nestas circunstâncias aconteceria o meu terceiro encontro com
Leminski, numa noite agitada no bar Cachorro Quente, entre cervejas
e doses de conhaque. Faziam parte da roda o irmão Pedro — sempre
com o violão —, o fotógrafo Haraton Maravalhas e o crítico Lélio
Sottomaior, que reapareceria, surpreendentemente, com uma
namorada. Na condição de colaborador do suplemento “DP Domingo”,
do Diário do Paraná, editado por Aroldo Murá — o que me fazia,
portanto, um herdeiro do grupo Áporo, ou algo assim —, propus a
Leminski uma entrevista onde poderíamos atualizar seus conceitos
sobre arte, literatura e vida. Ele concordou e passamos a noite
conversando sobre os temas que seriam abordados na reportagem —
que eu apresentaria depois para Murá como “a polêmica do próximo
fim de semana”. Falamos de McLuhan, poesia concreta,
megaprovíncia, Woodstock — valorizando a performance de Joe
Cocker e a consolidação do rock como expressão musical e agora,
mais do que nunca, também de mercado.
Sua aparência física tinha se alterado um pouco desde aquele
encontro no Rio, meses atrás. Agora ele usava os cabelos mais curtos
e o rosto estava mais limpo, embora os dentes estivessem mais
estragados e os óculos continuassem sujos. Como sempre, tinha
planos para amanhã e para algumas semanas depois, sempre
envolvendo atividades intelectuais. O máximo de lazer programado,
por sugestão do irmão Pedro, eram as excursões ao pico do Marumbi
com os alpinistas.
A certa altura, atravessamos a rua e fomos à farmácia Minerva
comprar alguns frascos de xarope Romilar, com o qual garantimos o
bom ritmo da conversa até o dia clarear... Ele não falava mais em
“tomar picos”, apenas em conseguir alguns ácidos para “agitar os
macaquinhos do sótão”, expressão que usava para dizer “fazer uso da
parte de cima do casarão, ou seja, o cérebro”. Nesta noite, Pedro
apresentou uma música nova, em ritmo de balada, que funcionaria
como um hino da turma, por alguns meses:
Quando a noite cai
Sobre a cidade
Não vou ficar
De novo na saudade
Junto uma grana e vou buscar
Maria Joana,
Junto uma grana e vou buscar
Maria Joana
Maria Joana já passou minha paz pra trás
Há muito tempo eu não sou o mesmo rapaz
Como sempre acontecia, bebemos, rimos, cantamos e fomos para
nossas casas com o dia amanhecendo.
Alice relata que após uma dessas madrugadas boêmias, em
março de 1971, Leminski chegaria em casa cantarolando a música
“Luzes”, que tinha acabado de compor:
Acenda a lâmpada às seis horas da tarde
Acenda a luz dos lampiões
Inflame a chama dos salões
Fogos de línguas de dragões
Vagalumes
Numa nuvem de poeira de neon
Tudo claro, tudo claro
A noite assim que é bom
A luz acesa na janela lá de casa
O fogo, o foco lá no beco e o farol
Esta noite, esta noite
Vai ter sol
Eles ficaram quase dois meses morando na pensão do
Minotauro e fazendo as refeições na casa dos pais dele, no
Seminário. Os cursinhos pré-vestibular passaram a assediá-lo com
propostas tentadoras, melhorando sensivelmente o astral da família.
O ex-colega Sanches, agora à frente do Curso Camões, fez uma
primeira proposta salarial de balançar o coreto. O concorrente, Dr.
Bardhal, ofereceu mais e acabou levando seu passe por um salário
de primeiro time. Com boas perspectivas de trabalho e duas crianças
para criar, eles decidiram alugar uma nova casa e foram morar na
rua Brasílio Itiberê, na Água Verde, a poucos metros do estádio do
Atlético Paranaense, a Baixada. Era um casarão pintado de amarelo,
com fogão a lenha, amplos quartos e janelões de madeira. O bairro
era residencial e agradável. Para ajudar Alice na tarefa de casa e nos
cuidados com as crianças, foi contratada uma empregada doméstica,
a Mary, uma “polaquinha por excelência”. Alice escreveria mais tarde
em suas memórias:
— Nossa primeira casa, de verdade. Velhos e novos amigos.
Marinho Galera, Getúlio Tovar, Paulo Bahr e o mano Pedro, todos
parceiros.
Na lembrança do amigo Marinho Galera, um paulista de
Araraquara e exímio tocador de viola, convivem ainda hoje,
claramente, a imagem de uma casa espaçosa e uma criança recém-
nascida — Áurea —, sendo ela objeto de todas as preocupações
durante as estridentes noitadas de música:
— Como não havia telefone, a solução era passar de carro pela
casa dos Leminski. Era comum encontrarmos as janelas abertas e as
luzes acesas mesmo depois de três horas da madrugada. Nos fins de
semana, quando todos apareciam com seus instrumentos, ele
aproveitava para aprender um pouco de violão. Era de uma
tenacidade incrível.
Das cantorias no casarão surgiria a primeira formação musical
entre eles, um esboço de conjunto, com o irmão Pedro e o estudante
de medicina Paulo Bahr no segundo violão: estava criado o trio Duas
Pauladas e Uma Pedrada. Para animar a festa, eles passaram a
freqüentar o bar da moda, o Bactuc, uma cave no alto da Alameda
Cabral, onde um pequeno palco e as luzes dos refletores estavam
sempre à disposição de fregueses talentosos. O lugar, decorado com
simplicidade e modernidade gótica — sacos de estopa colados nas
paredes —, era administrado pelos gêmeos Luiz e Toninho Stinghen,
que costumavam estimular sessões improvisadas ao convidar para
um drinque de fim de noite os músicos eventualmente em temporada
na cidade. Houve uma jam inesquecível com Vinícius de Moraes e
Toquinho, na qual a grande atração foi Marinho Galera, com sua
viola. No final, Vinícius estimulou: “Rapaz, você toca muito bem,
pode viver disso se quiser.” Outra vez, Fafá de Belém agitou os
porões do Bactuc, escandalosa, até o dia amanhecer. Ou, ainda, uma
noite em que os músicos da banda Expresso 2222, de Gilberto Gil,
criaram um verdadeiro happening fazendo um som acústico
descontraído e informal. Rita Lee e os Mutantes também apareceram
provocando frísson na madrugada.
Resumindo, o Bactuc fervia depois de meia-noite e apenas
conseguiam entrar no recinto aqueles que cumprissem as exigências
da casa: ter uma boa recomendação ou um sobrenome ilustre no
mundo artístico. A gerência não fazia questão do freguês comum,
aquele de fim de semana, até porque não havia espaço físico para ele.
O trio Duas Pauladas e um Pedrada faria ali algumas apresentações
informais à guisa de ensaio. Cantavam coisas do tipo:
Esta voz está sendo ouvida em Marte
Esta voz está sendo ouvida em Marte
Esta voz está sendo ouvida em Marte...
Ou em qualquer parte além da morte
Desta vez deu sorte
Ou talvez nem volte
É uma pena
É uma pena que um rapaz
Tão moço, tão magro e tão profundo
Não fique pro almoço
Não fique pro jejum
Este rapaz não vai dar um quilo certo, mamãe
Este rapaz não vai ser muito certo, papai
Este rapaz não vai dar nada certo, não, de jeito nenhum
Esta voz está sendo ouvida em Marte
(letra e música de Paulo Leminski)
Logo surgiu uma oportunidade para o trio participar de um
programa de televisão, no Canal 4, TV Iguaçu. Era uma apresentação
em um programa vespertino. O produtor destacado para acompanhá-
los era o conhecido Paulo Vítola, agora um homem de televisão, que
marcou hora no estúdio e cuidou pessoalmente dos detalhes. Ficou
combinado que a gravação aconteceria pela manhã e o programa
entraria no ar, em vídeo tape, na tarde do mesmo dia. Eles decidiram
apresentar um repertório à base de músicas próprias, escolhendo
temas com leve sotaque caipira, ou “country”, como dizia o Pedro.
Haveria muita expectativa em torno do evento. Mais do que
expectativa, ansiedade.
No dia marcado, Pedro não resistiu à pressão psicológica e
anunciou a decisão de tomar um ácido momentos antes da
apresentação. Leminski e o outro Paulo — que seria chamado de
Psicopaulo, devido à sua especialidade na medicina — não
concordaram; mas, digamos, nesta época ninguém era muito contra
nada — até porque de contra já bastavam as leis — e Pedro tomou o
ácido. Uma hora depois estávamos todos — incluindo o autor desta
biografia — dentro do carro do Psicopaulo seguindo para os estúdios
da TV Iguaçu, propriedade do então governador Paulo Pimentel. A
gravação, com Vítola no comando, aconteceu sem nenhum
contratempo, apesar do sorriso enigmático e um certo olhar perdido
do Pedro, enfocando um ponto qualquer entre as duas câmeras.
Eles encerraram a apresentação com um original de Paulo e
Pedro Leminski:
foi sendo
cada vez mais difícil
ser feliz
este mundo
um hospício
fugi pelos furos do vício
entrei por um cano furado
uma cidade quadrada
é o fim da picada
Depois da gravação, seguimos todos — menos o Psicopaulo, que
foi encontrar a namorada — para um boteco na rua Cruz Machado,
zona de inferninho urbano em Curitiba, também conhecido como
Fumacinha. Sentamos numa mesa de fundos e pedimos cerveja,
conhaque e um aperitivo qualquer. A conversa estava exaltada e isso
era compreensível, pois algo de muito importante tinha acontecido
para eles. O Pedro viajava. A certa altura, houve uma explosão de
ânimos. O Paulo considerou que eu estava de conversa fiada com Alice
e criou uma espetacular cena de ciúme, levantando bruscamente uma
cadeira com a qual tentaria me acertar:
— Pára de conversa fiada com a minha mulher — ele berrou,
ameaçador.
O Pedro segurou a cadeira no ar, mas eu já estava três passos
atrás, dizendo:
— Porra, Paulo, o que é isso?
A Alice, com aquela expressão de quem está sendo alvo da
disputa — ou, melhor dizendo, da proteção extremada do seu homem
—, olhava a cena com uma certa distância, como quem deixa
acontecer... Olhei bem nos olhos dele quando voltamos a nos sentar:
— Porra, você não percebe que estou viajando de ácido??? Alice
pra mim é um sargento. Estou olhando os apliques no jeans dela...
Ele me olhou sério por trás dos óculos:
— Ah, é?
Tudo se acalmou. Quer dizer, por alguns minutos, já que
decidimos ir para a casa do Seminário, onde havia um aparelho de
televisão disponível. Alguém comprou mais cervejas, uma garrafa de
conhaque e fomos todos para o quarto do Pedro, esperar. Os velhos
(dona Áurea e seu Paulo) acompanhavam com cautela toda aquela
movimentação. Na hora prevista, uma decepção: o programa saiu do
ar sem mostrar a apresentação deles. A cada encerramento de bloco,
na entrada dos comerciais, Pedro levantava o copo e exclamava,
otimista:
— Agora vem!
Quando ficou evidente que o programa tinha se encerrado sem
mostrar o Duas Pauladas e Uma Pedrada, ele já estava visivelmente
descontrolado e passou a disparar impropérios contra “esta televisão
de merda”. Num gesto rápido e inesperado, saiu do pequeno quarto e
voltou em seguida com um revólver na mão, um Taurus calibre 38.
Abriu o tambor para colocar algumas balas na agulha. Alice se afastou
da cena discretamente. Ficamos no quarto, eu e os irmãos, quando
houve um princípio de tumulto. Pedro ameaçava:
— Vou dar um teco neste Vítola. Uma azeitona para ele entender
com quem está lidando.
Paulo falou sério:
— Pedro, me dê essa arma...
Dona Áurea entrou no quarto e se escandalizou com a cena, no
momento exato em que ele tentava tirar o revólver do irmão, os braços
erguidos e a arma apontada para o teto. Ela colocou as duas mãos na
boca:
— Meu Deus!
Eu dei dois passos em direção à janela, como que preparando
uma fuga estratégica, caso fosse necessário. Mas logo tudo voltou ao
normal. Ou quase.
Anos mais tarde, mesmo sem saber deste incidente, Vítola
deixaria registrado em seu depoimento:
— O programa foi ao ar no dia seguinte e obteve uma grande
repercussão. Foi uma ousadia e um sucesso a apresentação deles.
Certa vez, Leminski resolveu aceitar o convite de um aluno (por
acaso, irmão de Ernani Buchmann, seu ex-aluno) e, em nome dos
companheiros, combinou uma apresentação informal durante uma
festa no apartamento dos pais do rapaz. Leminski chegou com a
formação completa do Duas Pauladas e Uma Pedrada, mais os dois
violões e Alice. Ernani lembra-se das conseqüências:
— Foi uma confusão no bairro. Eles fizeram um show
fantástico, mas o violão do Paulo era um absurdo aquela hora. Ele
dava porradas nas cordas e o som saía pelas janelas, ecoando entre
os prédios e despertando a vizinhança. Eles tocaram a noite inteira e,
no final, quando foi encerrar uma música, o Paulo quebrou uma
cadeira de estilo que a minha mãe tinha na sala.
Nesta mesma época, nascida nos bailes moderninhos da
cidade, surgia uma banda de rock que rapidamente ganharia fama e
notoriedade como a pioneira na tentativa de se afastar dos covers e
apresentar sua própria produção musical. A Chave tinha sido criada
em 1969 pelo baterista Orlando Azevedo, um português dos Açores, e
pelo guitarrista Paulo Teixeira, o Paulinho, “o maestro”, aquele a
quem cabiam os arranjos e a condução musical do grupo. No vocal,
outro grande talento, Ivo Rodrigues, ou simplesmente Ivo, com voz
poderosa e feeling de ator de teatro. Carlão Gaertner cuidava da
iluminação e do equipamento, era o produtor, além de ser o amigo
inseparável de Orlando. Havia também o “saca-trapo” (mais tarde, a
função ganharia um novo conceito e seria chamada de roadie), nesse
caso Helder, irmão mais novo de Paulinho, também conhecido como
o Arcanjo dos Fios e das Ligações. Eram todos bonitos, cabeludos e
tinham bom gosto para se vestir — acentuando uma preferência por
tecidos de veludo e cetim. Na início, pontificavam nos guetos do rock
tradicional que se formavam no clube Sírio e Libanês, onde os
embalos de sábado à noite viraram um tormento na vida dos
seguranças. Era comum a plaqueta pendurada na grade da
bilheteria: “Lotação esgotada”. Os garotos, então, tentavam entrar
pelos basculantes dos banheiros.
Lá dentro, a insopitável turba pulava e urrava ao som de
Rolling Stones, Procol Harum, The Animais, Iron Batterfly e
Mutantes, os standards da época. Ivo fazia pose de cantor de rock
internacional se exibindo para uma multidão (no imaginário de
todos, Woodstock) e conseguia levar ao delírio uma platéia formada
não mais por adolescentes. Houve um momento — e isto aconteceu
exatamente em 1971 — que A Chave era o conjunto musical de
maior sucesso na cidade. Deu-se ao luxo de criar um espetáculo
para um público seletivo, convidados especiais para uma
performance-concerto na Fundição Müeller, batizada de “O Sangue
das Máquinas”. Durante o show, máquinas e caldeiras funcionavam
a todo vapor enquanto a banda improvisava melodias de acordo com
os compassos criados mecanicamente. Tudo sob a bênção de John
Cage, diziam os cartazes afixados nas paredes: “O som contra o
silêncio”. “O silêncio é um absurdo”.
A Chave, segundo o conceito assimilado por Orlando, não
deveria ser apenas um conjunto de rock para animar bailes de fins de
semana. Em torno do grupo gravitava uma série de manifestações
artísticas e culturais que se propunham interligadas, fazendo parte
de um verdadeiro “laboratório de criatividade”. Orlando e Carlão
tinham conhecido em São Paulo um projeto similar desenvolvido pelo
professor de comunicação da USP, José de Jesus Patriani, do qual
herdaram os atos de fundação e a fórmula jurídica para a montagem
do laboratório. O primeiro passo foi alugar uma casa em Curitiba,
onde pelo menos cinco pessoas e seus respectivos projetos pudessem
se instalar.
A mansão escolhida ficava num trecho aprazível e arborizado
da rua Padre Anchieta, nas Mercês, a poucos metros do Bactuc.
Tinha dois andares e seria inteiramente pintada de branco, inclusive
o telhado: era a Casa Branca da Chave. No porão, revestido com
placas de isolamento, obtinha-se uma acústica perfeita para um
estúdio de gravações, equipado com uma bateria, amplificadores,
cabines e uma vasta discoteca de rock. Não era exatamente um
estúdio profissional, pois faltava uma mesa para a equalização dos
canais, mas prestava-se muito bem para os ensaios e gravações em
rolos. Para compensar, no quintal havia árvores frutíferas e muito
capim variado ou, como dizia o Ivo, “de crescimento selvagem e
natural”.
No andar de cima, onde ficavam os três quartos e a grande
sala, moravam, além de Orlando e Carlão — mais tarde o baixista da
banda —, os artistas plásticos Toninho Stinghen — o mesmo do
Bactuc — e sua mulher Marília Guasque, além do jovem empresário
Meningite, também identificado pelo nome verdadeiro de Ricardo
Voigh, e um estudante conhecido como Jacaré, que logo partiu.
Havia ainda a cadela Modesty Blase, um galgo russo de porte
magnífico. O grupo produzia trabalhos com música, ilustrações e
textos. O autor desta biografia, então colunista de espetáculos do
Diário da Tarde, passaria a fazer parte do grupo, cuidando dos
releases para a imprensa ou redigindo qualquer texto de apoio às
idéias em produção. O artista Rones Dunke, com traços surrealistas
e espetaculares, era o ilustrador de plantão e autor dos principais
trabalhos gráficos da banda. Conhecia a linguagem das capas de
disco — gostava particularmente de Roger Dean, designer da banda
inglesa Yes — e era fã de Jethro Tull, que ouvia enquanto pintava. O
encontro do poeta Paulo Leminski com o grupo A Chave parecia
inevitável.
— Foi um momento de grande efervescência — recorda
Orlando. — Nós já tínhamos feito teatro com a Denise Stocklos, onde
estavam também o Ariel Coelho e o Ari Pára-raios, ou seja, tínhamos
uma experiência diversificada nas artes. Quando encontramos o
Leminski, havia um clima perfeito para a criação.
Passava das três horas da madrugada quando alguém bateu na
janela frontal da Casa Branca, gritando: “Ô, de casa!” Era o fotógrafo
Haraton Maravalhas trazendo Leminski para promover as
apresentações formais. Junto com eles estava Paulo Bahr — a outra
paulada do trio. Foi uma agitação. Quem estava dormindo acordou e
quem estava “viajando” apenas continuou. Apertaram-se alguns
baseados, alguém apareceu com copos e garrafas e a noite continuou
rolando. Carlão ligou a aparelhagem e colocou som nas caixas: Bob
Dylan, Genesis, o que pediam. Lia-se pelos cantos o jornal Rolling
Stones, em sua versão brasileira, lançado em novembro de 1971 com
Gal Costa na capa (a foto com os pelinhos aparecendo). Não havia
drogas reconhecidamente pesadas esta noite; o máximo em potência
destrutiva que se consumia no ambiente, além da canabis, era a
cachaça Velho Barreiro.
— Começava assim um período muito louco, que foi a nossa
convivência com o Leminski — diz Carlão. — Acredito que tenha sido
fantástico para ambas as partes. Ele chegou com uma informação de
última hora e muito ágil. Era um agregador e se desbundou com a
nossa banda. Fomos os primeiros a gravar parcerias com ele.
De imediato, Leminski apresentaria o projeto “Em Prol de um
Português Elétrico”, onde propunha uma pesquisa mais aprofundada
no sentido de adequar o idioma à sonoridade específica do rock’nd
roll, “um ritmo feito para inglês ouvir, certo, Johnny?”. (Ele brincava
dizendo que o título remetia à nacionalidade do Orlando, “o
português elétrico”.) A parceria com a banda começava no exato
momento em que o trio Duas Pauladas e Uma Pedrada chegava ao
fim, com a mudança de Psicopaulo para os Estados Unidos, onde
daria continuidade aos estudos. Diante da porta e com A Chave na
mão, Leminski entrou de corpo e alma no mundo da música.
Paulinho Teixeira, o guitarrista, lembra-se de ter visto Leminski e
Alice chegarem ao estúdio como verdadeiros beduínos, “os nômades
do deserto curitibano”:
— Traziam as crianças, penicos, sacolas com fraldas, garrafas
de vodca e muita disposição. Ficávamos a noite inteira compondo e
tocando. O Leminski, claro, sempre com um monte de papel embaixo
do braço. Eram as páginas do Catatau.
Em artigo publicado n’O Estado do Paraná, ainda com o
apadrinhamento de Millarch, Leminski definia o projeto: “A meta é
atingir uma estética através de uma tecnologia. Assim, o projeto visa
a: (a) libertar a música pop da imagem do inglês, reputado como
veículo ideal para esse som; (b) contribuir para a criação de uma
música BRASILEIRA (ao contrário dos reacionários folclóricos e
saudosistas que tentam em vão incompatibilizar a cultura brasileira
com a nova realidade industrial e eletrônica, que veio para ficar),
ELÉTRICA E INDUSTRIAL.”
Ele escreveria as letras de várias músicas que entrariam para o
catálogo da banda: “Blues Satanás”, “Povo desenvolvido é povo
limpeza”, “Vai à luta”, “Mulher interessante”, “Luva de pelica”, “Me
provoque pra ver” e “Buraco no coração”, a primeira a ser gravada
em compacto simples:
você vive só pichando
a minha indisposição
meu humor não vale nada
então pra que me alegrar?
não quero mais nada
daquela condenada
que me deixou
com um buraco
dentro do... coração
hoje eu vivo só lembrando
tapeando o meu coração
nada mais me importa
se não o meu rock’nd roll
(não quero mais nada...)
Sobre estes trabalhos, Leminski costumava dizer:
— Quem já teve contato com os resultados obtidos até agora,
pode perfeitamente pensar que, em Curitiba, se a percussão de
Orlando, a voz de Ivo, a guitarra de Paulinho, o baixo de Carlão e os
teclados do Eli, não conseguirem essa ligação da nossa fala, é porque
ninguém mais vai conseguir.
Seu parceiro mais constante na banda era o cantor e
guitarrista Ivo, um cabeludo, cinco anos mais novo, com quem os
Leminski — inclusive as crianças — manteriam uma saudável
relação de amizade por muitos anos. Leminski era fã do parceiro, que
considerava “um dos melhores vocalistas do Brasil, o rock’n roll em
pessoa”. A Casa Branca transformava-se, definitivamente, num
centro de agitação contracultural. Por ali passaram, em diferentes
épocas, atraídos pelo trabalho do grupo, Gilberto Gil e a banda
Expresso 2222, com Perna, Bruce, Lanny (que deixou de presente
um pedal de guitarra para o Ivo) e Tutti Moreno; Rita Lee e os
Mutantes, o cantor Antonio Marcos e parte do elenco da peça Hair
(com Sônia Braga e Altair Lima). Quando entrou no estúdio, pelo
porão, Gil exclamou:
— Parece que estou em Londres!
Nesta mesma época surgiria na cena curitibana uma loura
misteriosa, personagem que pode ser identificada como uma carioca
de Ipanema aparentando 30 anos (portanto, mais velha que todos do
grupo) e conhecida apenas pelas iniciais M. L. Era casada com um
diplomata brasileiro e vivia no exterior, Londres, de onde acabara de
chegar. Desembarcou no Brasil com 10 mil ácidos lisérgicos (LSD)
embutidos em casacos de pele e outras miçangas — e, destes, pelo
menos 1.000 estavam com ela em Curitiba. Chegou na cidade
procurando por Paulo Leminski, do qual tinha ouvido falar como
“uma pessoa interessante, o melhor representante da nova tribo
psicodélica”. Era também jornalista e conhecia os curitibanos que
trabalhavam nas redações cariocas.
O encontro com a loura aconteceu num fim de tarde na casa da
Água Verde. Eles estavam sentados no chão da sala, fazendo a
transação num tête-à-tête fabuloso, quando eu cheguei pela porta
lateral. Logo pude perceber a cena: o Paulo mostrava-se bastante
excitado com tudo mas, particularmente, com a presença da loura, que
estava vestida com roupas longas, estampadas e adornada por um
colete de cetim — bastante descontraída em sua elegância hippie. E
era também corajosa, podia-se perceber. Quando exibiu o “produto”
dentro de uma caixinha, pude vislumbrar dezenas de cilindros com a
cor e a forma de pequenos grafites, que ela chamava simplesmente de
“micro”. Confidenciou ter tido várias experiências com eles sempre em
perfeita harmonia com as novas percepções. “Sem bad trip”, garantia.
O negócio foi fechado, como se diz, “em consignação”. Ficou
combinado que M.L. deixaria 300 ácidos, que deveriam ser pagos em
três etapas, através de depósitos em conta bancária. Leminski
comemorou o acordo tomando o primeiro ácido àquela mesma noite,
enquanto desfilava uma extensa literatura sobre o assunto, fazendo
citações magníficas de Aldous Huxley, Timothy Leary e toda a geração
francesa do absinto. Suas “viagens” eram projetadas para o mundo
intelectual e perceptivo; fazia referências lúcidas sobre o imaginário e
o concreto; voava na criação de novas fórmulas, mas tinha o pé no
chão com a realidade. Neste sentido, como apoio logístico, recorria ao
que de melhor havia na literatura e no pensamento místico e esotérico.
Dizia: “Vamos aos extremos da mente porque, no final, quem tem boa
cabeça vai se salvar: ‘just the strong survive’.” A paisagem para ele,
então, estava ficando novamente colorida.
A quem interessar possa: dois dias depois de deixar Curitiba,
M.L. seria presa pela polícia num quarto de hotel em São Paulo com
mais de 5 mil “micros” de LSD. Ela fora se encontrar com o marido, o
diplomata, que também tinha participação na operação. Na verdade,
era mais uma curtição do que um tráfico, embora à luz de qualquer
jurisprudência este argumento seja considerado irrelevante. Na
prisão, envolvida numa manobra arquitetada pelos advogados do
marido, M.L. foi convencida a assumir a culpa integral pelo flagrante,
como estratégia para negociar a própria liberdade. No final, acabou
ficando com o papel sujo da história: foi julgada e condenada a um
ano de prisão, pena que cumpriu num dos presídios mais violentos
do Brasil, o Carandiru. O companheiro ficou em liberdade e foi
deslocado para uma embaixada na África, onde continuaria a
carreira diplomática até virar uma zebra nas pradarias do Quênia. O
episódio contribuiu para que o acordo entre M.L. e Leminski jamais
fosse cumprido, pela parte dele. Quando informado da prisão da
“sócia”, Leminski teve um sobressalto e mostrou-se paranóico,
repetindo a todo instante: “Alice, se ela abrir o bico os homens vão
bater aqui.” Nunca aconteceria. Como conseqüência, estima-se que
ele tenha tomado pelo menos 40 ácidos, vendido outros tantos e
distribuído o restante entre os amigos, nos dias seguintes. E advertia
secamente:
— Cuidado para não pirar!
Esta foi a onda lisérgica que varreu Curitiba no início dos anos
70. Até hoje não se conhece com exatidão as conseqüências deste
episódio, em plena era Garrastazu Médici — mas sabe-se que
algumas frentes de criação (comportamental e cultural) surgiram
como manifestações espontâneas em várias áreas: música, teatro e
ócio explícito. A reação da sociedade foi imediata: os órgãos de
repressão criaram uma entidade civil chamada Licopar (Liga de
Combate ao Tóxico no Paraná), sustentada por doações de pais
aflitos e indefesos. Tal instituição representaria o inferno astral da
rapaziada durante algumas temporadas. A Licopar existia para
alertar a família curitibana sobre as ameaças que pairavam “em
nossa cidade”, colocando à disposição dos interessados um
dicionário com palavras usadas por viciados, as gírias da ocasião,
uma espécie de Indicionário às avessas — e com segundas intenções.
O pior de tudo: a entidade, depois de concebida ideológica e
estatutariamente, foi instalada a quatro quarteirões da Casa Branca.
Leminski nunca teve problemas com a polícia, mas os rapazes
d’A Chave receberam certa vez a visita inesperada “e cordial” do
coronel Polido, o mentor intelectual da Licopar. Ele estacionou o
carro policial na porta, acompanhado de um paisano, e foi
entrando... Encontrou Carlão e Ivo na sala principal, conversando.
Olhou para todos os lados, desceu aos estúdios — falou pouco e
perguntou bastante — para, finalmente, pedir a colaboração do
conjunto na missão de “bem conduzir os destinos da nossa
juventude”. Carlão, que fez o papel de anfitrião, registraria o
constrangimento:
— O Ivo ficou um pouco apavorado e saiu de perto... Eu fiquei
tranqüilo porque o pior — que seria alguém estar fumando um
baseado naquela hora — não aconteceu. Pelo contrário, o coroa ficou
impressionado com o que viu, com a organização do grupo. E com
isso ganhamos um certo tempo de imunidade.
A vida continuaria sem mistério para os Leminski, com todos
perfeitamente adaptados ao casarão da Água Verde, ele
desenvolvendo a atividade de professor e Alice a de mãe. Leminski
passava boa parte do tempo no sótão da casa, para onde tinha
transferido alguns livros — incluindo uma coleção de revistinhas
eróticas (tipo sueca, de sacanagem) — e montado um pequeno
escritório, com mesa, cadeira e máquina de escrever. Algumas vezes,
porém, o lugar seria usado como cenário para as fantasias eróticas
do casal, quando Alice personificava uma dama da sociedade e ele
um escritor pobre morando numa “água furtada”. No meio da noite,
quando o poeta estava trabalhando e as crianças dormindo, Alice
aparecia de surpresa vestindo sua melhor camisola para provocar
um romance proibido, digno de um Flaubert:
— O Paulo gostava de sexo com fetiche, embora não tivesse
nenhuma tara inconveniente. Eu diria mesmo que, como amante, ele
estava no ponto certo.
Mesmo trabalhando no cursinho, Leminski aceitaria uma
proposta para voltar ao jornalismo. A revista chamava-se Joy —
Indústria e Comércio e era editada pelo colunista Carlos Jung para
divulgar arte, negócios e sociedade — não necessariamente nesta
ordem. Era uma publicação financiada extra-oficialmente pelo
extinto Banco Bamerindus, “o banco da nossa terra”. Ele e Alice
eram os redatores e, além de cuidar dos textos dos colaboradores,
ainda criavam oportunidades para publicar suas próprias produções.
Na redação, o casal conheceria os artistas plásticos Retamozo, Solda
e Rogério Dias, responsáveis pelas ilustrações e diagramação da
revista. Rogério era discípulo bem aplicado de Guido Viaro e tinha
uma sólida formação acadêmica, mas estava progressivamente se
afastando das telas para trabalhar com objetos. Era um performático
e tinha participado como ator na peça A semana, de Denise Stocklos.
Na parceria com os novos amigos do texto, Rogério daria soluções
plásticas e gráficas para diversos trabalhos da dupla durante muitos
anos. O primeiro deles foi o cartaz da 1ª Noite de Poesia Paranaense,
onde Leminski era um dos organizadores e apresentador oficial da
cerimônia. Rogério recorda-se:
— Na noite do evento, o Leminski subiu ao palco para fazer
uma bela homenagem a Helena Kolody, que ele chamava de
“Padroeira da poesia paranaense”. Destacou a leveza e o aspecto
ingênuo de sua poesia, fazendo uma defesa, inédita na província,
com relação ao trabalho de uma mulher. Disse que Helena era “o
Mário Quintana de saias”. Leu alguns poemas dela e mandou “aquele
abraço pra minha mãe Helena”.
Com Retamozo e Solda, Leminski conheceria o humor e, do
ponto de vista operacional, aprenderia um truque que lhe seria útil
num futuro próximo: eles publicavam seus trabalhos
meticulosamente editados, em qualquer jornal ou revista — sem se
preocupar com a qualidade da publicação —, apenas de olho no
fotolito, que recolhiam da gráfica e guardavam numa gaveta. No final
de alguns meses tinham material suficiente para editar um livro —
ou algo assim — com pelo menos 60% de redução no preço de custo.
Com isso, os artistas curitibanos obtinham um padrão gráfico
sofisticado, em relação à “geração mimeógrafo”, ao incorporar a
melhor tecnologia para participar da guerrilha de informação que
envolvia a imprensa naqueles anos. Debochados, adotavam uma
atitude rock para se explicar aos visitantes:
— Aqui a fome é loura!
1972. No ano da morte de Leila Diniz e Torquato Neto, os seres
marginais — jornalistas, economistas de esquerda, professores, tiras
e desempregados de um modo geral — se reúnem no bar Elle e Ella,
que vai entrar nesta história com o codinome de Bife Sujo. Era um
bar comum, ordinário mesmo, com uma dúzia de mesas espalhadas
no andar térreo e outro tanto no mezanino. Parecia, mas não era um
lugar violento. O dono, um chinês-moçambicano, Eduardo How, era
constantemente criticado pela freguesia, que o acusava de “desertor”.
O garçom Pedro resolvia diplomaticamente estas questões. Podia-se
tomar cerveja e jogar no bicho sem se afastar do salão. As estrelas do
lugar, nas noites de agitação, eram o cantor Ivo e um quibe frito
inteiramente falso em sua tradição culinária, ao incorporar um
surpreendente e abominável ovo cozido como recheio.
Foi ali, num final de noite, que Alice e Leminski sentaram-se
para tomar cerveja e começaram a brincar, sem nenhum
compromisso, com um mote caipira que estavam investigando. No
final, estava concebida uma canção que seria adotada como hino
pelos alpinistas do pico do Marumbi, para onde iam quase todo fim
de semana. Esta seria a única parceria musical do casal ao longo da
vida. Leminski diria depois: “É uma música feita para excursão, que
deve ser cantada como uma forma de repetição à manivela, um
realejo.” O resultado era engraçado e provocava boas reações no
trem:
Nós fumo cantá numa festa
na festa dum batizado
o anjo não tinha nascido
só tinha bebida
eu não tinha jantado
Então fumo cantá noutra festa
na festa d’aniversário
o vento soprava as velinha
e o dono da festa
já estava apagado
Então fumo cantá noutra festa
na festa dum casamento
os noivo já tinha três filho
e o mais crescidinho
já era sargento
Então fumo acabá num velório
dum cara chamado Gregório
o morto não tava bem duro
e o vivo do padre
cantava a comadre
(repete indefinidamente)
Foi numa destas excursões ao pico do Marumbi, onde fazia
parte do Círculo de Marumbinistas de Curitiba, que Pedro
conheceria Elly Maria Trymtje Bertomeu Y Zuidhoff, uma filha de
holandeses e espanhóis, de 17 anos. Elly era ruiva, sardenta,
graciosa e, além de tudo, pára-quedista. Eles casaram rapidamente e
foram morar num edifício no centro da cidade, na praça Carlos
Gomes, onde teriam dificuldades de ordem “moral” com o síndico. O
homem se mostrava irredutível em sua posição conservadora e não
admitia relações informais no prédio, exigindo deles uma certidão de
casamento. Elly usava uma aliança na mão direita durante a tarde,
no trabalho, e ao entrar no prédio, à noite, passava para a esquerda,
com a intenção de confundir a vigilância. A curta temporada no
edifício chegou ao fim depois que Pedro deu dois tiros na parede do
apartamento, como um aviso para a vizinhança. Em seguida, como
que impelidos pelas circunstâncias, foram morar na casa dos pais
dele, no Seminário.
A publicidade surge na vida de Paulo Leminski em meados de
1972 e coincide com o fim das aulas no Curso Dr. Bardhal, quando
estaria encerrando a carreira de professor, no sentido clássico da
palavra. Mais tarde, ao avaliar a importância do magistério em sua
vida, ele diria:
— Eu sou um professor frustrado. Acho que sou um professor
na medida em que consigo transmitir clareza, porque procuro clareza
para mim, para as coisas que me interessam. Mas acontece que na
mecânica de transmissão do saber há um ponto incompatível com o
meu lado contracultural, meio hippie, meio bandido. Acordar às 8
horas, em plena segunda-feira, para dar aula é incompatível comigo.
Peguei toda uma banditice meio boêmia, que é um dado fundamental
meu. Sou um bandido que sabe latim.
Assim, a primeira agência onde Leminski trabalharia como
redator se chamava Lema Publicidade e era administrada por um
carioca de nome Carlos Augusto. Ali, ele reencontraria o time de
artistas plásticos (ou gráficos, dependendo da função no momento)
que havia conhecido na revista Joy: Rogério Dias, Retamozo e Solda,
que seriam companheiros de bar e prancheta. O fotógrafo Dico
Kremer, que freqüentara o cineclube anos antes, fazia parte da
equipe. A curta experiência na Lema, entretanto, teria na sua
história apenas a função de trampolim para o futuro, ou, como ele
mesmo dizia, “um estágio remunerado” para o que viria a seguir,
quando, aí sim, se tornaria um dos principais nomes do texto
publicitário curitibano.
Em outubro, Carlos João voltaria a Curitiba, mas apenas de
passagem. Usava os cabelos até os ombros e se fazia acompanhar de
amigos cariocas, um casal, o jornalista Luís Augusto Gollo, que tinha
deixado um emprego n’O Globo para “cair na estrada”, e sua
namorada Dalva. Estavam partindo para uma viagem pela América
Latina, que percorreriam de ponta a ponta, durante os dois anos
seguintes. Era o êxodo de uma geração ameaçada pela repressão,
sem oferta de trabalho e sem perspectiva de vida nas grandes
cidades. Os jornais mais influentes do país estavam com suas
redações tomadas pelos censores; o Correio da Manhã, com postura
reconhecidamente de oposição, capitulava diante das pressões
políticas e econômicas. O mesmo acontecia com O Estado de S.
Paulo, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa (o jornal mais censurado
durante a ditadura) e quem mais se atrevesse a encarar o AI-5. Sair
para os Andes, andar com os nativos nas alturas de Matchupichu ou
catar cogumelos nos bosques da Bolívia era, para eles, uma
perspectiva de vida bastante considerável.
O reencontro de Carlos João com Leminski e Alice seria
emocionante. Eles se abraçaram e colocaram a vida “em dia”,
retomando a conversa interrompida numa tarde carioca. Em
seguida, todos foram levados à Casa Branca, onde Ivo cantou
durante o ensaio da banda como se fosse um show ao vivo no
Madison Square Garden. Foi de arrepiar. Quando o dia estava
amanhecendo, eles decidiram passar o fim de semana juntos,
escalando o pico do Marumbi, numa grande excursão organizada por
Pedro. Carlos João recorda-se:
— Viajamos de trem na manhã de sábado com destino ao alto
da serra. À noite, em volta da fogueira, alguém jogava cachaça para
levantar labaredas e aquecer o ambiente. O frio era de rachar e tudo
se concentrava no violão e nas músicas. Desde os dias da pensão, no
Rio, o Paulo tinha aumentado o repertório de canções e agora se
exibia também como um músico.
O porre desta noite foi memorável. A certa altura, no meio da
neblina mais insondável, Leminski aplicou um golpe de judô no
irmão Pedro, que foi lançado ao chão, resultando numa clavícula
quebrada. Ele se mostraria preocupado e sério com as conseqüências
da brincadeira, repetindo que “não tinha sido para machucar”. O
carioca Gollo, que faria algumas fotografias deles nestes dias, atesta
que, apesar do incidente, tudo acabou bem:
— Eles fumaram um baseado, que funcionou como um
cachimbo da paz. No dia seguinte, logo cedo, encontrei o Paulo junto
ao que sobrara da fogueira, ainda cheio de energia, com uma caneca
de cachaça e suco de laranja na mão. O porre dissipava-se como a
névoa da manhã para todos nós, menos para o Polaco, que
continuava a desferir golpes e frases no ar.
Mas a confusão não acabaria aí. Durante a viagem de volta
houve um princípio de tumulto num dos vagões, envolvendo apenas
as mulheres. Alice e Elly entraram em atrito com as garotas de um
outro grupo, por motivos absolutamente pueris. Foi uma cena de
ciúmes, onde Leminski era o alvo da discórdia. Logo depois, quando
as duas se preparavam para uma confrontação física em praça
pública, na estação ferroviária, outra confusão, mais séria e violenta,
teve início envolvendo os dois irmãos e um grupo de rapazes. A
polícia chegou com a sirene ligada e ameaçou prendê-los. Num
movimento rápido e preciso, Alice ergueu Miguelzinho no colo e se
colocou entre os policiais e o camburão, implorando para que
libertassem seu marido, fazendo uma encenação formidável. Elly se
comportaria da mesma forma. Diziam aos policiais, enfaticamente,
que a prisão dos rapazes seria uma punição para elas e para as
crianças — não para eles. Mantiveram a ladainha até conseguir o
que queriam. Anos depois, Alice resumiria o episódio reconhecendo
que havia amor e cumplicidade entre os irmãos, mas era uma
relação perturbada por muita competição pessoal.
1973. O ano começa com a morte de Paulo Leminski, o Velho,
vítima de um ataque cardíaco fulminante. Ele tinha se afastado da
bebida havia alguns anos, mas sofria de complicações renais e
faleceu durante uma crise aguda. O inesperado acontecimento
abalou profundamente a estrutura da família. Pedro mostrou-se
bastante descontrolado e, para surpresa de todos, pôs-se a dividir a
herança (algo como um revólver calibre 38 e um sabre do Exército
Brasileiro) mesmo antes do anúncio oficial do óbito. Ele estava de
olho na arma que já conhecia e manuseava como se fosse sua.
Leminski mostrou-se revoltado com a atitude do irmão e decidiu,
com toda a autoridade que o momento lhe conferia, que o revólver
ficaria com ele. Houve uma violenta discussão. Durante todos os
momentos da crise — e mesmo durante o velório — o álcool seria
consumido em quantidade exacerbada.
Nestes dias, para complicar o quadro de desentendimentos
familiares, após uma briga com Pedro, Elly decide viajar para a casa
da mãe, em Buenos Aires. Estava grávida, mas, magoada com as
cenas de ciúmes do marido, nada revelaria em casa. Pensava apenas
em ficar sozinha e “dar um tempo”. Pedro suportaria por três meses
esta situação. Logo conseguiu o dinheiro da passagem com dona
Áurea e estava também seguindo para a capital argentina. Ele e Elly
foram felizes por algum tempo. Pedro recebeu a notícia da gravidez
com orgulho e alegria — e imediatamente escreveria uma carta para
o irmão, contando a novidade. Falava de planos para o futuro e do
começo de uma nova fase. Era como um pedido de reconciliação com
todos. Leminski responderia com outra carta postada para Buenos
Aires. Esta troca de correspondência entre os irmãos oferece uma
rara oportunidade para se conhecer, sem censura, o universo afetivo
que os cercava. Leminski escreveu (sempre em minúsculas):
oi, brother!
depois de alguns dias de expectativa (para saber como
você estava se saindo nas américas latinas), tua carta
pintou debaixo da minha porta (a mãe estava aqui, foi
ela que viu primeiro), eu não podia ficar mais contente
do que fiquei quando soube que tudo tinha corrido bem,
que você aterrisou sem incidentes, que a elly está bem,
que vocês voltaram a se entender e, mais do que tudo,
saber que vou ser tio (alivia um pouco a dor da perda do
maior leminski de todos saber que mais um leminski vai
nascer) & aqui a gente vai se refazendo aos poucos deste
ano de pesadelos & a mãe está mais animada e reage
com uma força incrível (mulher de samurai é assim) &
está até saindo sozinha para fazer pagamentos.
A carta segue com outros comentários descontraídos, agora
sobre uma série nova da Tv, Kung Fu,
um monge zen chinês, desde pequeno recebendo um
treinamento espiritual e físico incrível, daqueles de
deixar o julinho se babando, karatê, desviar de lanças,
ukemis sensacionais, andar sem fazer ruído, provas zen
para entender e dominar o medo, a dor e a dúvida (um
misto de ninja com iluminado).
A seguir, Leminski descreve com riqueza de detalhes uma
seqüência espetacular da luta entre o monge e um grupo de índios
do Oeste americano, com direito a nomenclatura dos golpes
aplicados pelo ator David Carradine (ver Apêndice 5).
A certa altura, Leminski notificava o irmão de um trabalho que
encomendara a um artesão amigo:
O primo da Alice vai fazer minha placa para pôr no
jardim: LEMINSKI, PROFESSOR DE LÍNGUAS MORTAS,
CIÊNCIAS OCULTAS E ASSUNTOS ENCERRADOS.
Terminava falando de uma terrível dor de dente e da remessa
de dinheiro pelo National City Bank: “Foram 500,00, mas o problema
é que vai levar quinze dias para chegar.”
No PS, aconselhava o caçula a não ter preguiça de escrever:
“Comunique-se. Não nos deixe imaginando tuas dificuldades sem ter
meios de te socorrer quando preciso.”
A morte do companheiro acentuaria em dona Áurea, então com
63 anos, uma melancolia que já lhe era notável por natureza. Mesmo
com toda a sua apreciável aceitação da realidade, a situação com a
viuvez apenas se agravou, e ela, subitamente, deixou de se
alimentar. Sua profunda apatia ficou sendo motivo de preocupação
para todos. Na verdade, ela e o marido, apesar da superfície
turbulenta do cotidiano, tinham vivido como dois apaixonados e não
seria exagero dizer que mantiveram-se numa bolha de paz e
harmonia durante todos estes anos. Nunca foram vistos brigando e
acredita-se mesmo que isto nunca tenha acontecido. Na opinião de
Alice, “eram dois pombinhos que se bastavam”. Como solução de
emergência, para manter o fio de vida que a sustentava, ficou
decidido que dona Áurea iria morar com o filho mais velho — e numa
casa que deveria ser alugada imediatamente. Assim, Pedro e Elly
ficariam morando na casa do Seminário e tudo estaria
(aparentemente) resolvido.
A nova casa tinha como principal característica a pintura cor
de vinho nas paredes externas e ficava na esquina da travessa
Amando Mann, no bairro das Mercês. Era de madeira, cercada por
um muro estreito de concreto armado e tinha três quartos mas não
tinha sótão; era, portanto, menor do que a anterior. Dona Áurea,
depois de passar algumas semanas com as irmãs (todas solteiras,
morando na mesma casa paterna), chegaria para ocupar um quarto
com as crianças, enquanto o terceiro aposento seria transformado
em escritório e biblioteca. Na parede havia um quadro-negro onde
Leminski fazia anotações de momento, frases ou palavras quase
sempre relacionadas com os trabalhos em progresso. Ele continuava
escrevendo o Catatau, que já tinha quase 200 páginas.
Neste mesmo ano, um novo desemprego e uma nova crise
financeira, desta vez atenuada pelo fato de poderem contar com a
pensão de Dona Áurea, que ajudou a “segurar a barra” das despesas
do cotidiano. Enquanto isso, a parceria musical com Ivo — que
sempre chegava com a namorada Ju e o violão embaixo do braço —
ganhava força e intensidade. Dedicado somente à música e às
cervejas, Ivo dispunha das tardes livres e de energia suficiente para
cantar como se hoje fosse o último dia de rock. (Entre os covers
gostava de “Eve of Destruction” e “Georgia on my mind”, com os
quais botava os botequins abaixo). Leminski e Ivo fizeram história na
cidade. Qualquer motivo, por mais prosaico que fosse, era suficiente
para um churrasco improvisado, mesmo durante a semana, com
muita música, baseados e crianças. (Algo que lembraria o sítio dos
Novos Baianos, em Jacarepaguá, também conhecido como o
“mosqueiro do Galvão”). Ivo chegava cantando a música dos
Mutantes que fala em curtir a vida “enquanto a turma da cidade dá
um duro até às 6”:
— Era comum colocarmos as poltronas no quintal, para
aproveitarmos o sol. Depois, todos dormiam e podia chover que as
poltronas ficavam lá. Eu passava de carro no dia seguinte e as
poltronas continuavam lá...
A parceria Leminski-Ivo (e, por extensão, com a banda A
Chave) renderia dezenas de músicas, inclusive o reggae “Sou legal”,
cantado com batidas jamaicanas:
sou legal eu sei
agora só falta convencer a lei
que eu sou real eu sei
agora só falta convencer o rei
eu sei que sou real
mas isso não sei se vão deixar dizer
eu sei que tudo mais vai pro beleléu
a terra, o mar, o céu
mas nesta hora eu quero mais é estar
com a turma do pinel
(gritando:) com a turma do pinel
O trabalho com música era apenas mais uma de suas
atividades, digamos, artísticas. Ele continuava produzindo poemas e
trabalhando desesperadamente no Catatau. No dia 30 de julho, o
jornal O Estado do Paraná publicaria um grande artigo intitulado “O
Catatau: um calhamaço grilante”, assinado por Diogo Bello,
advogado e diretor de teatro. Nele, Leminski é apresentado como um
ex-universitário que “polemizava com os mestres, acabando com as
aulas e que, numa certa ocasião, conseguiu mencionar 116 objeções
ao professor palestrante, Osvaldo Arns, enquanto este discorria
sobre Introdução Artística”. Na entrevista que se seguia, Bello
perguntava:
— O Catatau é uma transa cabalística só comunicável aos
iniciados ou terá acesso à massa?
A resposta:
— O Catatau verifica uma categoria de ilegibilidade. Os
estatutos dessa categoria não estão elaborados teórica e nem
pragmaticamente: só depois de muitas Galáxias e Catataus é que se
vai saber o que fazer com textos ilegíveis porém procedentes. Eu não
sei para que servem. Só sei fazer.
Em agosto, quando completaria 29 anos, Leminski estava com
a agenda cheia, começando com duas palestras na Escola de Belas
Artes, pelas quais receberia 600 cruzeiros. Conseguiu comprar um
tênis quédis, uma calça USTop e pagar a metade dos “50 contos”
cobrados por um método de violão; a outra metade foi um presente
de aniversário de dona Áurea. Aproveitando a boa maré, ele e Alice
embarcaram numa viagem com A Chave para Londrina, onde a
banda se apresentaria sábado à noite num clube local. Foram todos
de Kombi, levando alguns equipamentos e fazendo uma boa
brincadeira pelo caminho. Ivo estava com a namorada Ju, alguns
baseados na bota e o violão em punho, equipamento adequado para
suportar sete horas na estrada. Leminski e Alice ficaram hospedados
na casa de Marília e Toninho Stinghen — que tinham deixado a Casa
Branca e o Bactuc e agora trabalhavam numa agência de publicidade
como arte-finalistas. Londrina, então no auge de sua impressionante
ocupação territorial, era conhecida como “a capital do café”.
A imprensa local repercutiria a passagem de Leminski e da
banda pela cidade. No dia 5 de agosto, a Folha de Londrina
publicaria um ensaio assinado por Leminski sobre Maiakóvski,
intitulado “O suicídio da vanguarda”, ocupando uma página inteira
do suplemento “Rascunho”. Ele escrevera, na verdade, “O suicídio
como vanguarda”, mas, vítima de um erro de revisão, o sentido foi
modificado. No texto de apresentação, ilustrado por uma fotografia
do carioca Gollo feita no pico do Marumbi, ele é apresentado como “o
único paranaense incluído no compêndio sobre poesia concreta no
Brasil e agora fazendo músicas com o conjunto A Chave”. Gostava de
definir o rock, sem nenhum sentido pejorativo, como “uma música
feita pelos incompetentes para os inconformados”, num casamento
perfeito entre as partes.
Em dezembro, uma notícia para abrandar o espírito de toda a
família: no dia 9, nascia Elly Tryntje Leminski, primeira e única filha
de Pedro, que agora passava uma boa parte do tempo em casa
lambendo a cria e aproveitando para “dar um tempo” na boemia. Ele
tinha feito um acordo com a mulher: se fosse menino, ela escolheria
o nome; se fosse menina, a escolha seria dele — e foi o que
aconteceu: Pedro decidiu multiplicar a Elly. Eles moravam na casa
do Seminário e dona Áurea acompanhou tudo de perto, ajudando a
nora na hora do parto. Ellinha veio ao mundo com cabelos louros,
diferente da mãe (ruiva) e do pai, que tinha cabelos castanhos. A
paternidade viria abrandar um pouco os ânimos de Pedro, que
sempre se mostrou afetuoso com a menina.
Nesta época, surgem os primeiros sintomas da doença que
abalaria a saúde de Miguelzinho por vários meses. Brincando
sozinho numa escada de três degraus, ele teria, aparentemente,
torcido o pé direito, que inchou na altura do tornozelo. Alice não
gostou do que viu, colocou o garoto num táxi e seguiu para o
massagista, que recomendou uma chapa de raio X. Nenhuma fratura
foi constatada. Dias depois, Miguelzinho passaria a mancar com o
outro pé, que também foi inchando lentamente. Eles voltaram ao
médico, fizeram novos exames, mas o problema não foi
diagnosticado; e, para desespero de Alice, novos inchaços
apareceram em outras articulações. A doença se manifestava com
dores e dificuldades de locomoção. O garoto, nestes dias, adquiriu o
hábito de desenhar, ler e escrever. Tinha — todos diziam — o jeito do
pai, cerebral, analítico, embora se diferenciasse dele na fragilidade
física. O pouco dinheiro de que dispunham, os Leminski o usavam
agora com médicos e remédios. A única exceção foi a compra de uma
televisão, um eletrodoméstico considerado agora artigo de primeira
necessidade.
Para escapar da pressão do cotidiano, Leminski começou a
reescrever o Catatau, ou melhor, a datilografar as páginas, passando
a limpo e corrigindo os originais com a ajuda de Alice. Era o “ataque
final”. Eles ficavam em casa à noite, trabalhando e conversando com
os amigos, que continuavam aparecendo com freqüência. O escritório
era uma babel de livros e papéis, onde a grande estrela do palco era
uma máquina de escrever Remington, com estrutura de ferro, típica
de colecionadores. Nas horas vagas, mais churrasco e cerveja.
Um dos mais jovens freqüentadores da casa era um garoto
chamado Helinho Pimentel, de apenas 16 anos, que aparecia sempre
com carros enormes e belas amigas — uma delas de nome
Sandrinha, era a namorada secreta de Caetano Veloso (ao que tudo
indica, secreta para os outros, menos para sua mulher Dedé).
Helinho tinha os cabelos compridos encaracolados e uma
semelhança física com Carmen Miranda, de quem herdara a boca e
os trejeitos. Era também um representante da “classe dominante”,
mas não tinha veleidades intelectuais e nem se deixava atrair por
teorias literárias ou afins:
— O Paulo Leminski foi uma bomba atômica na minha cabeça,
mas não pelo que representava como escritor ou poeta. Eu tinha 16
anos e não fazia a menor idéia deste universo intelectual. Fui atraído
pela visão genial e contemporânea que ele tinha da vida, sempre
sintonizado com o mundo e dividindo esta sabedoria com a gente.
Para nós, pivetes, era um fator de segurança saber que um sujeito
daqueles também tomava ácido. Era o meu guru. Com ele aprendi
que as brincadeiras (como as drogas, o rock, o sexo e as artes) são
coisas sérias. Ou vice-versa: se você as tiver levando a sério demais,
são apenas brincadeiras.
Uma tarde, chegando na casa das Mercês, encontrei o Paulo
aproveitando o violão e o talento do Ivo para fazer um revival musical.
E entrei na brincadeira. A partir de uma série de canções
consideradas clássicas de Roberto Carlos, tentávamos escolher o
verso mais romântico e apaixonado, numa forma de explicitar uma das
melhores qualidades musicais do Rei. Cantamos o repertório inteiro da
Jovem Guarda: “Namoradinha de um amigo meu”, “Pensando bem”,
“Quero que vá tudo pro inferno”, “As curvas da estrada de Santos”,
“Como é grande o meu amor por você” e todas as outras. Estávamos
esparramados na cozinha, de onde se podia avistar, através da porta
dos fundos, dezenas de garrafas vazias — a maioria de conhaque
Dreher e cervejas — empilhadas junto à cerca. No final, o verso
escolhido pelo Paulo como the best of the King (na verdade, de autoria
de Antonio Marcos) foi:
... peço a alguém pra me contar sobre os teus dias
anoiteceu e eu preciso só saber
como vai você
que já modificou a minha vida...
Ele argumentava:
— Não é demais? A garota não quer mais ver o sujeito que, sem
saída, pede para alguém “me contar sobre os teus dias”...
Nos dias seguintes, como treinamento de base e harmonia no
violão, ele escreveria uma balada romântica no mesmo estilo que,
dizia, deveria ser gravada por Wanderléia, a Ternurinha:
Não dei pra ninguém
Aquilo que você mandou eu não dar
Deixei meu amor
Ficar na solidão
Filhinhas da mamãe como eu
não dá
não dão
não deu
Houve uma noite memorável na casa das Mercês, quando eles
receberam a visita da escritora e líder feminista Rose Marie Muraro,
e, por coincidência, da loura M.L., a moça dos ácidos, agora
completamente reintegrada à vida civil. Alice defendeu as honras da
casa desfraldando a bandeira do feminismo, mas havia outras
pessoas na sala, presenciando o que ficou conhecido como “A noite
das mães”, uma longa discussão sobre trabalho, socialismo e
maternidade. Rose Marie, no auge da fama como ativista, gozava de
um conceito além do trivial, na condição de executiva da Editora
Vozes e intelectual de opiniões lúcidas e corajosas. A Editora Vozes,
com frei Ludovico e Rose Marie Muraro à frente, se posicionava
naquele momento histórico, com um regime autoritário no poder,
ligeiramente à esquerda da intelectualidade brasileira. O dia
amanheceu e a conversa ainda se desenrolava. Os homens na sala,
depois de um certo momento, apenas ouviam. Sobre este encontro,
Alice diria:
— Trouxeram a papisa que motivou discussões fundamentais,
mas havia no ambiente M. L. e uma garota, a Verinha, que tinham
um desempenho prático do feminismo. As duas, como mulheres
liberadas que eram, viajavam livremente no circuito do sol: Ipanema,
Arembepe, Bombinhas... Foi uma noite muito interessante, movida a
não sei que substância.
No dia seguinte, num táxi, Rose disse à Alice que achava muito
legal a sua teoria, mas que não podia levá-la a sério como feminista.
Tudo por causa de Leminski, na sua opinião, um absolutista.
Alice retrucou:
— Bem, não se deve ser absolutista no sentido contrário. Que
tal imaginar que eu e o meu homem vamos crescer e melhorar
juntos?
Rose Marie insistiu:
— Isto é possível em tese, mas como conviver com alguém que
fala com esse volume de voz?
Neste momento alguém colocou o dedo no ponto mais sensível
da relação dela com Leminski, já que o objetivo, neste caso, não era
quebrar a supremacia masculina vigente e nem desenvolver uma
disputa de valores com o parceiro. Como num passe de mágica Alice
percebeu, conversando com Rose num táxi, que ele era
absolutamente centralizador; pior, não era igual aos outros homens,
pois falava mais alto do que qualquer outro homem.
Em julho de 1974, motivado por um fato qualquer do cotidiano,
Leminski escreveria um pequeno artigo (ele não gostava desta pa-
lavra, preferia “texto-ninja”), anotação em apenas uma lauda da-
tilografada — que jamais seria publicada — com um título sucinto:
“Trotsky”. De resto, não havia nenhuma citação explícita ao líder
político russo no corpo do texto, no qual ele comparava a guerra fria
URSS x USA, ao casamento eternamente litigioso entre Elizabeth
Taylor e Richard Burton (ver Apêndice 6).
No final do ano, para compensar as vicissitudes de um período
de baixo astral financeiro, surgiria um episódio capaz de alegrar a
vida de qualquer um, principalmente de Paulo Leminski, um
tropicalista de primeira hora. Aconteceu numa tarde de sábado,
quando ele andava sobre o muro lateral da casa, fazendo um
exercício rotineiro de equilíbrio. Alice estava no quarto lendo, quando
um carro parou em frente ao portão. Leminski falou “tem gente aí,
benzinho”, pulou do muro e foi conferir quem chegava — e quase
perdeu a voz. Eram Caetano Veloso e Gal Costa, esvoaçantes,
descendo de um carro enorme. Ele não acreditou no que viu. Ficou
nervoso e resolveu fazer uma surpresa para Alice, que já perguntava,
curiosa:
— Quem é, Paulo?
Alguém bateu na porta, Alice foi atender e deu de cara com
Caetano e Gal. Leminski vinha por último, tentando se controlar. Ele
ficaria particularmente perturbado com Gal, muito mais do que com
Caetano, diria mais tarde Alice. Depois das primeiras conversas,
todos foram para o quarto, onde os músicos sentaram-se na cama e
o casal no chão. Caetano contou que tinha ouvido falar de Paulo
Leminski na casa de Augusto de Campos, que lhe mostrara alguns
trechos do Catatau. Leminski, por sua vez, começou a tirar poemas
das pastas e a falar sem parar, tentando deixar claro que conhecia o
trabalho de todos os poetas de Salvador. Falou dos poemas de
Augusto gravados por Caetano no ano anterior, como parte da obra
chamada Caixa preta. Falaram de música, poesia e literatura — e,
como num passe de mágica, os códigos se interagiam. Ele estava
finalmente conhecendo o homem que musicava poemas. A conversa
durou horas e nela houve espaço para o trivial, comentários sobre
afinidades recíprocas de um Brasil rico e diversificado culturalmente.
Este seria o primeiro de uma série de encontros entres eles. No
dia seguinte Leminski e Alice foram assisti-los no Teatro Guaíra e, no
final do espetáculo, depois de uma conversa rápida nos camarins,
todos saíram pela noite. Definindo este primeiro encontro, Leminski
diria:
— Foi um traumatismo na minha vida. O Caetano era o meu
ídolo e chegou sem avisar, de surpresa. E, para não deixar barato,
veio com a Gal, divina-maravilhosa, simplesmente fatal.
As conseqüências deste encontro em sua vida se fariam
notáveis não apenas na seleção de camisas mais coloridas e roupas
tropicais, como na própria essência de sua sensualidade. Ele passou
a tirar, com mais facilidade, a roupa que cobria a sua nudez mais
atávica. O polaco encontrava os embaixadores dos trópicos e suas
doutrinas de prazer, capazes de derreter qualquer puritanismo ou
ascetismo de imigrante. Leminski planejou com Alice viagens futuras
para o Rio e Salvador. Começou a esboçar, do ponto de vista
intelectual, a tese que chamaria de Pororoca, “a ponte arco-íris”, o
encontro das correntes paulista e baiana. O Yin e o Yang. Ele
advertia:
— Sempre tive medo da Bahia, da alegria da Bahia, das
tentações do calor, de Dionísio — esse verdadeiro patrono da Bahia,
que o Senhor do Bom Fim tenta em vão catequizar e exorcizar:
Senhor do Bom Começo e dos sete pecados. Tenho medo que o
termômetro a 40 graus e o azul das praias me dissolvam.
UM CAPÍTULO À PARTE
O ano de 1975 começa com a volta à publicidade e termina
com o lançamento do Catatau, uma obra que merece um capítulo à
parte na vida de Paulo Leminski. Nesta época, Vítola tinha deixado a
televisão e estava abrindo a agência P.A.Z., em sociedade com alguns
amigos publicitários. Logo nos primeiros meses ele receberia a visita
de Leminski, que foi objetivo:
— Acabei de escrever meu livro e estou com o potencial
redacional livre pra trabalhar. Tem vaga aí?
Eles formaram um time de criação muito conceituado no
mercado publicitário. A eles viriam se juntar os ex-companheiros da
Lema: Solda, Retamozo e o fotógrafo Dico Kremer. Cada um, em sua
especialidade, podia ser considerado “craque” na comunicação. Eram
profissionais que recebiam os melhores salários e viviam num
ambiente franco e criativo. Como Vítola mesmo reconhece, eles não
tinham suporte teórico e trabalhavam basicamente com a intuição:
— Todos éramos iniciantes. O papel do Leminski, neste
contexto, foi muito importante. Ele nos fez entender que havia uma
linguagem própria para cada veículo, o rádio, a TV, o jornal... Ele
apresentava algumas teorias e esperava para ver os artistas
resolverem na prática... Era um animador cultural.
Como redator de publicidade, Leminski orgulhava-se
particularmente da campanha criada para a Imobiliária Galvão, na
qual estruturara a mensagem central a partir do texto base:
A Galvão acha fácil
O imóvel que você acha difícil
O cartunista Solda, o mascote da equipe, revela que Leminski
tinha outra função além de animador e redator. Era também a
antena do rádio:
— Quando ele se levantava da cadeira e se afastava da mesa, o
rádio parava de tocar. Todos gritavam: “Volta Leminski, deixa esta
música terminar...” Ele então corria para a posição e o rádio voltava
a funcionar. Ele dizia: “É duro este papel de antena da raça.”
O gaúcho Retamozo, que também dividia o espaço e a conversa
com eles, observa que Leminski tinha uma peculiaridade notável:
— Ele não reclamava de nada. Era um sujeito zen, sempre de
bom humor, uma característica rara no curitibano. Aqui é o muro da
lamentação do universo, todos reclamam de tudo. Um baiano tem
orgulho do outro, mas o curitibano, não. O Leminski era o oposto;
qualquer um na sala apresentava uma idéia e ele reagia: “Gênio!” E
normalmente era mesmo.
Foi neste clima e nestas condições que se viabilizaria a
primeira edição do Catatau. Em nenhum momento Leminski
considerou procurar os órgãos oficiais ou uma editora estabelecida
no mercado. Queria a obra marginal, maldita, no sentido da
contracultura, da independência dos próprios movimentos. Na P.A.Z.
ele encontraria soluções técnicas e parceiros para o livro, que foi
sendo montado dentro da agência, utilizando-se as facilidades e o
relacionamento comercial com as gráficas da cidade. O sonho estava
se realizando.
A capa do Catatau, escolhida por ele e montada pelo cartunista
Miran, mostrava uma seqüência de pequenos desenhos primitivos,
cenas de luta na sala de uma tumba em Beni Hasan, no Egito antigo.
Tudo em preto e branco como num fotograma; apenas o nome
Catatau em vermelho. Na contracapa, uma foto com os esqueletos de
uma dupla sepultura descoberta em Grimaldi, em 1895, identificada
como da espécie Homo sapiens do tipo negróide. As fotos receberam
tratamento em laboratório para fortalecer o contraste, antes de
serem encaminhadas ao fotolito. O livro foi diagramado com 218
páginas e uma advertência do autor: “Repugnado Benevolentiae —
Me nego a ministrar clareiras para a inteligência deste catatau que,
por oito anos, agora, passou muito bem sem mapas. Virem-se.” No
final da história — ou do texto — ficou assim o discurso cartesiano:
Este pensamento sem bússola é meu tormento. Quando
verei meu pensar e meu entender voltarem das cinzas
deste fio de ervas? Novamente: a maré de desvairados
pensamentos me sobe vômitos ao pomo adâmico. É essa
terra: é um descuido, um acerca, um engano de natura,
um desvario, um desvio que só não vendo. Doença do
mundo! E a doença doendo, eu aqui com lentes,
esperando e aspirando. Vai me ver com outros olhos ou
com os olhos dos outros? AUMENTO o telescópio: na
subida, lá vem ARTYCHEWSKY. E como!
Sãojoãobatavista! Vem bêbado, Artyschevisky bêbado...
Bêbado como polaco que é. Bêbado quem me
compreenderá?
Por isso, eles acharam graça quando as equipes de revisão e
past-up botaram o olho no texto e ficaram sem entender o que estava
certo ou errado e sem acreditar no que lhes diziam: que era assim
mesmo. Alice foi obrigada a pegar a tarefa e transformou-se na
revisora e montadora do Catatau, com o que se ocuparia durante
várias semanas neste inverno. Um inverno, aliás, que entraria para a
história da cidade.
17 de julho de 1975. Eles estavam dormindo, cedo pela manhã,
quando alguém bateu na janela do quarto, freneticamente. Alice
acordou e ouviu uma voz estranha gritando coisas ininteligíveis.
Leminski continuava dormindo. Estava frio. Ela se levantou, abriu a
janela e reconheceu Orlando, o baterista da Chave. Ele anunciava
em estado de euforia a boa nova: estava nevando em Curitiba.
— Venham todos ver — gritava.
Alice acordou Leminski e as crianças. Eles abriram a porta e
viram que estava tudo branco — e fizeram uma festa também.
Orlando levou os pequenos para o quintal onde, juntos, tentaram
construir um boneco de neve, com cenoura no nariz e cachecol. (Não
havia neve para tanto, mas, enfim, eles tentaram.) Alice saiu para
comprar conhaque no botequim da esquina enquanto desfrutava
esses momentos mágicos:
— Eu empurrava um guarda-chuva contra o vento, quando ele
foi deslocado para trás e eu recebi uma golfada de neve no rosto.
Continuei caminhando de boca aberta, comendo e sentindo o gosto
da neve. Neste dia o Paulo só foi trabalhar à tarde. Pela manhã, nós
três derrubamos uma garrafa de conhaque.
A neve entraria para o folclore da cidade como o dia em que a
frieza do curitibano derreteu. Foi registrada uma catarse coletiva em
vários bairros durante boa parte da manhã. Muitas pessoas se
abraçaram e se cumprimentaram nas ruas, falando umas com as
outras, eufóricas. Era a terceira vez que nevava em Curitiba, mas a
última tinha acontecido em 1928 e ninguém lembrava mais. Agora
estava nevando bastante, “como na terra dos nossos avós”, e todos
eram testemunhas disso. No dia seguinte, o jornal O Estado do
Paraná estampava em manchete de primeira página, ilustrada por
uma foto aparentemente clonada de uma paisagem européia:
CURITIBA BRANCA DE NEVE
A neve se dissiparia em algumas horas, mas seus efeitos
continuariam fazendo a fama e a alegria da cidade durante muito
tempo. Imediatamente foram lançados concursos de música, poesia e
fotografia sobre a neve. As imagens seriam congeladas e
reproduzidas como uma lembrança eterna do grande happening.
No dia 28 de setembro, em entrevista ao Diário do Paraná,
Leminski esquentaria a temperatura cultural ao refletir publicamente
sobre aquele que era, na sua opinião, o grande dilema da
intelectualidade brasileira:
— Como dizem os poetas concretos, a cultura brasileira é
periférica pois é um setor da cultura latino-americana que, por sua
vez, é um pequeno setor da cultura do Terceiro Mundo. Então, ou
você está colonizado ou você está atrasado, se recusar as
informações de fora. Um dos nossos intelectuais da Boca Maldita,
dito engajado, se recusa a aprender o idioma inglês porque, se assim
o fizer, acredita, ficará à mercê de revistas como Playboy, Newsweek,
Times etc.... Ele escolheu o atraso, preferindo ser topeira. Eu optei,
estrategicamente, por ser colonizado. Falo várias línguas,
principalmente o inglês. Ou seja, eu sou antropofágico.
Foi estimulado por esta inclinação que ele lambeu os beiços
quando recebeu de presente dois exemplares de uma edição
sofisticada da Revista de Antropofagia que Augusto de Campos criara
como brinde de aniversário para a empresa paulista Metal Leve S/A.
A edição, com apenas 100 exemplares, trazia em tamanho natural as
1a e 2a Dentições, referente aos anos 1928-1929.
Ele ficaria com um exemplar e me daria o outro de presente (de
Natal), com o seguinte comentário:
— Este é o melhor exemplo de imprensa alternativa, no
segmento cultural. A vanguarda fazendo o Brasil existir com
soberania, mesmo que isso tenha custado a violabilidade do bispo
Sardinha, atazanado em seu Sarcófago histórico.
Um movimento musical liderado por Vítola e Marinho Galera,
reunindo músicos e compositores locais, vinha crescendo dentro da
agência P.A.Z. Leminski fazia parte do grupo que ajudou a batizar de
MAPA — Movimento de Atuação Paiol. Eles se apresentariam
regularmente no Teatro Paiol, durante os três anos de existência do
movimento. Assim aconteceria a primeira apresentação de Leminski
diante de uma platéia — num show com banquinho, violão e
microfone — com músicas de seu repertório. Era a porção MPB
convivendo com a verve de roqueiro radical, em mais uma de suas
contradições explícitas. Surgiriam a partir de agora as parcerias
musicais com Marinho Galera e outros músicos desta praia, entre
eles José Oliva e Celso Pirata, para quem ele escreveria a letra de
“Estratégia”:
Dia vai vir
Você vai ter que travar
Batalhas de verdade
Ai da tua estratégia
Ai da tua tática
Ai da tua defesa
Ai do teu ataque
Se você não fez bom uso
Do tempo da sua paz
Pense nisto, rapaz
E nunca, nunca, nunca mais
Olhe pra frente
Sem antes olhar pra trás
A música o aproximaria também de Jorge Mautner, um artista
multimídia, militante de primeira hora da contracultura, poeta,
violinista e autor do sucesso “Maracatu atômico”, na interpretação de
Gilberto Gil. Mautner e seu fiel escudeiro, o violonista Nelson
Jacobina, procuraram por Leminski assim que chegaram em
Curitiba para cumprir uma curta temporada. Mautner tinha ouvido
falar do poeta na casa de Gil e conhecia as histórias (ou lendas,
nunca se sabe) que circulavam sobre ele:
— Como eu sou judeu, falávamos muito sobre o tema. O
Leminski tinha um senso de humor incrível. Ele contou uma piada
que falava do êxodo do judaísmo, quando havia um rabino que tinha
chegado ao máximo em sofisticação: elevado a níveis desconhecidos
a arte da lamúria. Ou, então, aquela do rabino famoso à beira da
morte, cercado por um séquito de discípulos, que balbuciou no
ouvido do mais próximo: “A vida é como uma xícara de chá.” A frase
foi se espalhando entre as centenas de pessoas que se enfileiravam
nas condolências: “Ele disse que a vida é como uma xícara de chá.”
O último da fila ouviu e perguntou: “Afinal, por que a vida é uma
xícara de chá?” A pergunta fez o caminho de volta até o primeiro da
fila, que a devolveu ao rabino: “Afinal, por que a vida é como uma
xícara de chá?” O rabino, surpreso, respondeu: “Ora, então, a vida
NÃO é como uma xícara de chá.”
O entendimento entre ele e Mautner foi instantâneo. A partir
do primeiro encontro, na Cruz do Pilarzinho, eles se viram
aproximados por uma série de afinidades. Ambos gostavam de
drogas, sexo, rock’n roll e lutas marciais — Mautner praticava aikidô,
era comunista, místico e leitor de Ezra Pound. No segundo dia de
espetáculo, Leminski foi convidado a subir no palco para abrir suas
apresentações cantando músicas de sua fase mais madura: “Valeu”,
“Luzes” e “Mudança de estação” — que apresentava de forma visceral
e pungente, dando verdadeiras “porradas” no violão. O resultado se
traduzia num show bastante descontraído e afinado com o espírito
da contracultura. Estas experiências se repetiriam sempre que
Mautner voltasse a Curitiba:
— Eu fiz o convite para o Leminski participar da Revolução
Caótica Permanente e ele aceitou na hora. Alice Ruiz foi convidada e
concordou em participar como comissária de todas as mulheres. Nós
queríamos que o povo brasileiro pudesse ler e escrever. O Leminski
citava o economista e pensador Adam Smith: “A riqueza das nações é
a cultura dos seus povos.” Ao contrário do que muita gente pensa, o
Leminski era um sujeito muito sério.
Com a chegada da primavera, começariam os arranjos finais do
Catatau, em termos de revisão e composição. A gráfica apresentara
um custo pelo trabalho de impressão que, segundo ficou acertado
com a agência P.A.Z. — contra a qual seria emitida a fatura —, ele
pagaria mensalmente, em suaves parcelas e, caso não o fizesse, seria
descontado do salário. Leminski concordou e decidiu finalizar a obra,
dedicando-a “à glória de Paulo Leminski o Velho, pelas mensagens
em código, pelo sangue de Kzysztof Arciszewski. Para Alice pelo
saber, querer, ousar e calar. Para Augusto de Campos, Décio
Pignatari e Haroldo de Campos”. Decidiu também que não teria texto
de orelha e nem prefácio assinado por qualquer “notável”, uma vez
que não se pretendia que a obra viesse decifrada ou mesmo
recomendada. O livro era para ser um enigma e assim seria até o
final.
Não fossem eles todos publicitários, trabalhando na P.A.Z., a
idéia do cartaz talvez não tivesse existido. O fato é que alguém
sugeriu uma peça promocional, em forma de cartaz, lembrando que
poderia ser aproveitada em futuros lançamentos. O objetivo, como
sempre, era chamar atenção através do impacto da mensagem.
Leminski conversou com o fotógrafo Dico Kremer e, juntos, decidiram
fazer uma foto do autor nu, como John Lennon e Caetano Veloso,
num fundo infinito. E foram para o estúdio. No cartaz, ele aparece
encobrindo o sexo com as pernas cruzadas em posição de lótus.
Estava de barba e cabelos compridos profundamente negros. Sobre
sua cabeça, um título sucinto:
CATATAU
O cartaz foi impresso e posteriormente colado em murais de
bares, cafés e livrarias, para anunciar o lançamento do livro. Era
uma propaganda esquisita para um produto cultural, mas ao mesmo
tempo se mostrava eficiente, pois conseguia chamar a atenção das
pessoas.
O cineasta Sylvio Back lembra-se de que encontrou Leminski
fazendo a entrega das páginas do livro, já compostas e finalizadas,
para a Grafipar, onde seriam finalmente impressas:
— Ele fez uma piada dizendo que o encarregado da
composição, ao tentar corrigir alguns trechos, criou palavras mais
interessantes que as dele e que, portanto, seriam mantidas no texto.
Chamava o funcionário de co-autor. Ele se despediu do calhamaço
de papel beijando as folhas, dizendo pra elas: “até já”.
Finalmente, em dezembro de 1975, o livro ficaria pronto.
Foram impressos 2 mil exemplares, sendo que mil seriam enviados
diretamente para a livraria Ghignone, onde aconteceria a noite de
autógrafos e seria feita a distribuição. A outra metade seguiu para a
casa das Mercês, onde ficaria amontoada no sótão. A festa aconteceu
na calçada da livraria, na Rua das Flores, exatamente em frente ao
bar Cometa, um dos pontos favoritos da boemia intelectualizada.
Leminski receberia uma pequena e ruidosa multidão de amigos e
assinaria vários livros. Assinaria não, colocaria as impressões
digitais com tinta vermelha de carimbo, usando para isso o polegar
esquerdo. Lá estava o pessoal do Bife Sujo, jornalistas amigos e
estudantes. O sonho tinha se tornado realidade.
Depois do lançamento do Catatau, quando, sem dúvida, ele
colheu os louros do sucesso, era hora de trabalhar. Arregaçou as
mangas e colocou em prática o que chamava de “distribuição
qualitativa do produto”, uma estratégia criada para superar o
aspecto artesanal da distribuição. Envelopou e despachou pelo
correio dezenas de livros com endereços certos: os influenciadores de
opinião. O que o afetava, e muito, era ser ignorado pelos “criadores”.
Assim, ele contabilizava:
— Pessoas básicas no Brasil e até mesmo fora do Brasil têm o
Catatau. O Octavio Paz, no México, tem o Catatau, Julián Rios, na
Espanha, tem o Catatau. No Brasil, Décio Pignatari, Caetano Veloso,
Darcy Ribeiro e até Mário Shöemberg têm o Catatau. Eu fiz uma
escolha para um público em condições de impactar.
Nesta época, já morando no Rio de Janeiro, fui encarregado de
levar dois exemplares autografados do Catatau para Nelson Motta e
Gláuber Rocha. Apenas Nelson receberia o dele; Glauber jamais seria
encontrado. Quando ele me passou um dos livros, fez questão de
mostrar o que escrevera: “Para Gláuber, o criador do anti-cinema, uma
pequena amostra da anti-literatura (e logo abaixo, como uma
assinatura:) Do Leminski”. Ele me entregaria ainda outros vinte
exemplares para serem distribuídos, segundo os meus critérios, entre
os vários amigos que tínhamos no Rio: “Você sabe para quem entregar,
compadre.” Devo informar que semanas depois, ao ser despejado da
pensão onde morava, na Lapa, fui obrigado a deixar para trás metade
destes livros como forma de pagamento para o meu senhorio. Não que
a velha Beatriz manifestasse interesse pela obra, muito pelo contrário,
mas jamais me seria permitido voltar aos meus aposentos, mesmo
para resgatar objetos pessoais. Um amigo que morava em Santa
Teresa garante ter visto, dias depois, uma pilha de livros —
aparentemente com as feições do Catatau — em frente do casarão,
esperando o caminhão do lixo. Ele estava no ônibus e nada pôde
fazer.
O resultado da estratégia de lançamento do Catatau se
revelaria compensador. O livro chamaria a atenção da crítica
especializada e, mesmo sendo editado fora do eixo Rio-São Paulo,
sem a chancela de editora importante, ocuparia um bom espaço na
mídia nacional. A revista Veja não apresentaria, de imediato,
exatamente uma resenha, mas daria a notícia em mais de uma
página, tratando o Catatau como um evento que estava sendo
esperado — um objeto cult com trâmite num certo substrato da
inteligência brasileira. A resenha seria feita logo depois pelo cronista
e poeta Afonso Romano de Sant’anna, que não elogiaria e nem
picharia a obra, mas dedicaria uma coluna inteira com o título “Porre
Verbal”. O poeta Geraldo Carneiro escreveu um artigo elucidativo
sobre o Catatau nas páginas do jornal Opinião. O crítico Léo Gilson
Ribeiro foi mais longe, saudando o Catatau como “o livro do ano” nas
páginas do Jornal da Tarde, onde advertia:
Décadas se passarão até que o Brasil reconheça neste
esplêndido, profundo, perene Catatau, uma de suas
imagens mais radicais e tão perfeitas quanto as
transmitidas por Os sertões, Grande sertão: veredas,
Fluxofloema, Serafim Ponte Grande e pouquíssimos
outros trechos de prosa poética e revolucionária
criatividade, equivalentes, em suas devidas proporções,
à fundamental tomada de posição de um Joyce, de uma
Virginia Woolf, de um Raymond Queneau, de um Céline,
a uma forma de ser e de dizer já pretéritas e que só se
enfrentam com o “Não” rebelde de uma nova forma,
insólita, ousada de dizer esse ser. Catatau já é uma das
obras-primas da língua portuguesa, é uma espécie de
Pedra de Roseta à espera de pacientes Champollions.
Alice lembra-se de que estas palavras — e outras tantas do
longo artigo, todas elogiosas — deixaram Leminski mais do que
eufórico, histérico. Enquanto ele se agitava de um lado para outro,
ela continuaria imperturbável, apenas olhando... Ele reagiu:
— Você não vai vibrar?
Ela respondeu que não estava surpresa, pois afinal este era o
reconhecimento esperado para o talento dele etc.... Mas Leminski
gritava, exclamava “genial!”, relendo o jornal a todo instante. Alice
percebeu que ele estava acumulando problemas de reconhecimento,
ou seja, o não-reconhecimento o deixava desequilibrado. Ao mesmo
tempo — era fator considerável que ele estava esperando mais de oito
anos por este momento. Era uma celebração justa.
Semanas depois a revista José, editada por um grupo de poetas
cariocas, publicaria um longo artigo do crítico baiano Antonio
Risério, com o título “Catatau: Cartesanato”. Risério não conhecia
pessoalmente Leminski mas era amigo de Augusto de Campos, que
lhe presenteara com um exemplar do livro. Incentivado por Augusto,
Leminski escreveria uma longa carta (ver Apêndice 7) a Risério, na
qual revelava a disposição de estabelecer “uma ponte mágica e
epistolar” com a Bahia. Risério tomou a iniciativa e escreveu um
texto-roteiro para a leitura do Catatau, onde, no final, se
descortinava outra apoteose:
Para encerrar, digamos que o Catatau ocupa um lugar
raro na prosa literária brasileira. O que pintou depois
das aventuras textuais de Guimarães Rosa? Quase
nada. Uma exceção, sem dúvida, é o livro-viagem
Galáxias, de Haroldo de Campos. Por tudo isso, o
Catatau é uma surpresa e uma alegria. Não só em
termos brasileiros. O livro de Leminski deve, sem
esforço, ser colocado ao lado do que há de melhor na
produção literária do continente. Ao lado de Cortázar, do
melhor Cortázar, aquele da Prosa del Observatorio, e do
cubano Cabrera Infante, por exemplo.
E as reações não pararam aí. O poeta uruguaio Eduardo Milán,
secretário pessoal de Octavio Paz, escreveu:
A más de diez años que Paz dijera que la vanguardia
poética estaba en Brasil, hoy, y sin hablar de
Vanguardia, se sigue produciendo la poesia más
creativa. Sigue sendo dificil encontrar, en lengua
española, niveles poéticos igualables a los de Augusto-
Décio-Haroldo; la sintesis teórica era inmensa. Y al nivel
de los más jovenes: raro encontrar experimentos de
formulación teórica tan precisa como Catatau.
E, para finalizar, o professor e crítico Bóris Schnaiderman, que
Leminski tanto admirava como tradutor de poetas russos, fez o
seguinte comentário, inserido num ensaio para a editora Perspectiva,
de âmbito nacional:
Aliás, toda esta problemática da relação prosa/poesia
passou a apresentar-se de modo completamente novo,
depois de obras como as de Joyce e a prosa de
Khlébnikov ou, em nosso meio, o Catatau de Paulo
Leminski. Temos, modernamente, ora a fusão de prosa e
poesia, a explosão dos seus limites, ora justamente o
contrário, um sublinhamento da relação entre ambas,
cada uma com sua especificidade.
No plano doméstico, a reação ao Catatau foi lenta e nada
efusiva. O ponto principal — e que ninguém podia ignorar — era que
o livro tinha saído, estava nas livrarias e deixava de ser uma “lenda
do Leminski”. Uma lenda de oito anos. Ele, por sua vez, provocava “a
onça com vara curta”:
— Que apareçam os críticos!
Meses depois foram publicadas algumas críticas em jornais
locais, sendo que duas delas vinham assinadas pelos poetas e
escritores Jamil Snege e Jaques Brand. Sobre o primeiro — que
tinha sido namorado de Alice em tempos idos — Leminski diria, sem
alimentar maiores polêmicas: “Fez um artigo que honra a inteligência
local, pela finura das observações, pela perspicácia de leitura que
revela, pelo respeito a um trabalho honesto.”
Quanto a Brand, que na verdade escreveu o artigo “Do
Bigorrilho para o Mundo” antes mesmo do lançamento do livro,
destacando o ego do autor e sua “jogada publicitária” ao posar nu
para um cartaz, mereceu dele mais do que um comentário. Ele foi
para a máquina e escreveu uma resposta que foi publicada no
mesmo jornal, dias depois, com o título “Do mundo para o
bigorrilho”:
O que irrita Brand é que eu usei técnicas de propaganda
para lançar um livro de literatura. Como se a literatura
— numa sociedade de mercado e consumo — fosse algo
de santo ou pátrio. Décio Pignatari ficou surpreso
quando expus a promoção do Catatau. Publicitário,
Pignatari disse que o Catatau era o primeiro livro que
aparecia dentro de uma perspectiva inovadora de
promoção e marketing. Eu tenho o defeito de acreditar
em evolução, em progresso e em saltos qualitativos.
Isso, literariamente, faz de mim um monstro e Brand me
aponta com o dedo.
E, como epílogo, algumas semanas depois do lançamento do
“bumerangue”, ele mesmo se permitiria emitir uma opinião sobre o
Catatau, oferecendo algumas chaves de entendimento, como sempre
de escritor para escritor:
O Catatau procura gerar a informação absoluta, de frase
para frase, de palavra para palavra: o inesperado é sua
norma máxima. A seqüência das frases de um texto
coloca uma lógica. Mas nessa busca da informação
absoluta, sempre novidade, novidade sempre, por uma
reversão de expectativa, ele produz a informação nula: a
redundância. Se você sabe que só vem novidade,
novidades vêm, e deixa de ser novidade. O Catatau é, ao
mesmo tempo, o texto mais informativo e, por isso
mesmo, o texto de maior redundância. Tese de base da
Teoria da Informação. O Catatau não diz isso. Ele é
exatamente isso.
Depois, divertia-se quando alguém conseguia superar o
constrangimento e dizer: “Sinto muito, Leminski, mas este texto é
ilegível.” Ele retrucava, cofiando o bigode:
— Estas palavras falam mais de você do que do livro. Tenho
acumulado elogios dos mais conceituados críticos literários do país.
Assim, entre você e o Haroldo de Campos, eu fico com o Haroldo.
Com algumas peças de roupa e vários livros na mochila,
Leminski e Alice embarcaram para São Paulo com a intenção de levar
o Catatau pessoalmente para os amigos e mestres — e, é claro,
aproveitar para deixar alguns exemplares nas redações dos jornais.
Nestes dias, na chamada Paulicéia Desvairada, finalmente, eles
conheceriam Risério e Régis Bonvicino, sendo que deste último eles
tinham recebido pelo correio o livro de estréia, Bicho Papel, meses
antes. O encontro aconteceu na casa de Augusto de Campos e,
segundo Alice:
— Estavam o Régis e os dois irmãos Nepomuceno, o Guto e o
Marcelo. Eles tinham em média 18 anos e nos foram apresentados
como representantes da novíssima geração. Num certo sentido, a
minha dificuldade de relacionamento com o Régis começou aí,
quando ele comentou, em particular, que um dos irmãos não
merecia atenção por ter tido meningite na infância. Achei muito
estranha esta discriminação. Ele e o Paulo se tornariam amigos.
No dia seguinte, Leminski e Alice foram levados por Lygia e
Augusto de Campos para um encontro com Antonio Risério, que
estava hospedado com a mulher, Mônica, na casa de Pedro Tavares
de Lima, em Vila Madalena (por acaso, na rua Purpurina, onde eles
ficariam algumas vezes no futuro). Surpreendentemente, dez
minutos após as apresentações, Leminski se aproximou, deu um
forte abraço em Risério, seguido de um inesperado golpe de judô e
uma explicação:
— Não sejamos formais um com o outro...
Eles fumaram alguns baseados e beberam algumas cervejas
naquela noite. Mônica e Alice se entenderam bem, enquanto os dois
firmavam pactos de cumplicidade, principalmente tendo em vista a
esquerda literária. Leminski dizia, brincando:
— Nós temos em comum o fato de que gostamos de bater pra
tirar sangue do nariz.
Ele e Alice curtiram dias animados e produtivos em São Paulo.
Na volta, aproveitaram para dar uma parada no Rio de Janeiro, onde
havia um encontro marcado com Neiva e Ivan num cartório do
centro. Eles iriam formalizar a ação de desquite — o que permitiria
aos casais, num futuro imediato, legalizar suas situações jurídicas.
Uma carta precatória emitida pela 1ª Vara de Família desfazia o
casamento que os unira durante os últimos treze anos. Neiva voltaria
a usar seu sobrenome de solteira, Maria de Souza. Menos de um mês
depois, a 17 de fevereiro de 1976, o pequeno Kiko (na verdade, Paulo
Leminski Neto), agora com 8 anos, surpreendentemente ganharia um
novo registro civil, com o nome de Luciano da Costa, filho de Neiva e
Ivan. Estava para sempre sepultada a identidade de Kiko, que jamais
seria chamado assim novamente.
De volta a Curitiba, eles se defrontariam com a doença de
Miguelzinho, que continuava misteriosa e perversa. Alice chegaria ao
limite máximo de tolerância, decidindo entrar na fila do Hospital de
Clínicas, onde conseguiria tratamento gratuito e especializado.
Miguelzinho seria atendido pelo dr. Orival Costa, que após várias
baterias de exames e uma investigação no passado clínico da família
chegaria ao diagnóstico de artrite reumatóide, uma doença
hereditária mas de tratamento possível. O médico teria encontrado
sintomas idênticos no histórico clínico da avó Áurea. Diagnosticar a
doença seria meio caminho andado para resolver o problema.
A cura de Miguel, portanto, acontece no exato momento em
que a situação financeira do casal voltava a se complicar. As relações
profissionais de Leminski com a P.A.Z. tinham se deteriorado nas
últimas semanas, como uma conseqüência natural da vida paralela
que ele levava como escritor. O Catatau ainda ocuparia a sua força
de trabalho mais produtiva por diversos meses, com constantes
viagens ao Rio, São Paulo e onde quer que fosse possível lançar e
divulgar o livro. Enquanto isso, eles continuavam vivendo de
trabalhos esporádicos — free-lancer — em redações de publicidade.
Tinham agora mais duas agências para onde produzir: Múltipla e
Exclam. Para o lugar dele, na P.A.Z., foi contratado o ex-aluno
Ernani Buchmann:
— Não havia compatibilidade de horários entre Leminski e a
agência. Eles me chamaram para cobrir uma ausência crônica dele.
O Vítola estava morando no Rio e, com isso, o Leminski tinha
perdido um pouco de sua imunidade. Os diretores diziam que não
podiam contratá-lo, pois ele não existia como cidadão e continuava
sem carteira de identidade.
A visita de Caetano e Gal foi o último acontecimento marcante
na casa das Mercês. Houve um momento em que o edifício entrou em
colapso físico, tornando-se inviável qualquer pretensão de se
continuar vivendo nele. Um buraco de quase meio metro no
assoalho, próximo à porta da cozinha, impedia o trânsito por aquela
área, mas a madeira se mostrava podre em todos os aposentos. Eles
decidiram ir embora e Alice passou a consultar os classificados dos
jornais à procura de ofertas de imóveis. Em poucos dias o problema
estava resolvido. A nova casa, também de madeira, com fogão a
lenha e sótão, ficava num bairro tradicional da periferia, numa das
mais antigas colônias de imigrantes poloneses da cidade.
CAPÍTULO 8
A CRUZ DO PILARZINHO
Assim que colocou o pé na nova casa pela primeira vez,
Miguelzinho falou sem hesitar:
— Eu não quero morar aqui! Esta casa é mal-assombrada.
Houve um momento de perplexidade e silêncio entre eles. Só
depois de respirar fundo Alice falaria calmamente sobre as vantagens
de se viver naquele grande espaço, cada um com seu quarto e um
sótão para todos. Era noite e ela argumentou que durante o dia
certamente ele teria uma visão menos tenebrosa do lugar. O garoto
tinha apenas 8 anos, mas ficou analisando tudo, por todos os
ângulos. Andou pelo quintal, onde descobriu um poço de água e uma
grande (para ele) árvore carregada de folhas, uma laranjeira. Alice
ficou por perto mostrando o quintal amplo que — ela sugeria —
deveria ser bem aproveitado. Tentou construir em palavras um
futuro possível para a família naquele novo ninho.
Leminski foi para o sótão reconhecer o terreno onde os 1.000
exemplares do Catatau ficariam estocados até serem totalmente
distribuídos. A casa, na rua Jorge Khoury Bhraim, 874, tinha quatro
cômodos em baixo, além da cozinha equipada com dois fogões, sendo
um a lenha. No escritório, o quadro-negro estava de volta à parede
com as habituais anotações em giz. Na sala, um velho baú de
madeira e várias almofadas espalhadas acomodavam os visitantes.
Cadeiras apenas na mesa da cozinha.
Logo nos primeiros dias, Alice e Miguel se impuseram a tarefa
de construir uma pequena horta no jardim ao lado da casa — e
assim foi feito. Salsa, cebolinha e algumas verduras foram as
primeiras mudas que vingaram. Em pouco tempo eles passaram a
colher os temperos com as próprias mãos. E sentiam prazer nisso.
Num certo sentido, tudo voltava a ser poesia para eles. Inclusive para
Miguel, que fazia seus primeiros poemas projetados para compor um
livro sobre os bichos, sua grande paixão. Ele adorava tigres, ursos,
águias, animais selvagens. Também gostava de escaravelhos,
besouros; onde eles estivessem, embaixo dos postes de luz ou na
porta da cozinha, Miguelzinho estava por perto, investigando. Ele
mesmo, se ícone fosse, poderia ser considerado um passarinho frágil
e sensível.
O bairro do Pilarzinho é um dos mais antigos de Curitiba e sua
história remonta ao final do século XVIII. Seus primeiros habitantes
foram os colonizadores portugueses, seguidos de imigrantes alemães
e poloneses, que se estabeleceram na região a partir de 1858. O
nome se refere à Capela de Nossa Senhora do Pilar, uma das mais
antigas da cidade, construída em 1782. Diz a lenda — ou a História,
como se queira — que a chegada dos poloneses foi saudada com
gritaria e protestos contra os indesejados “arruaceiros e
vagabundos”. Na verdade, sabe-se que estas eram ameaças dos
colonos alemães, fornecedores de produtos granjeiros, lenha e
verduras aos moradores de Curitiba. Em 1872, acusam os registros
históricos, havia 150 pessoas vivendo no Pilarzinho, “em 30 lotes
divididos em 5 hectares cada lote”. Por ali, na virada do século, se
estabeleceram os Prudlik, Grzybowski e Kowalski. E, agora, em
meados de 1976, os Leminski, frutos da mesma árvore.
A repercussão da publicação do Catatau e a visita-surpresa de
Caetano Veloso representariam para Paulo Leminski um acúmulo de
energia nesta virada de página. Energia que se faria acompanhar de
uma certa notoriedade, agora também em escala nacional. (É bom
que se diga que este processo, em nível local, demorou pelo menos
três anos, tempo exigido para se consolidar a lenda de que “Caetano
apareceu sem avisar na casa do Leminski”.) O poeta continuava
adotando um layout maldito e armazenando idéias radicais na
cabeça, como um samurai das letras. Acentuavam-se-lhes, nesta
época, as contradições: era erudito e popular, arrogante e humilde,
carinhoso e mordaz, trabalhador e preguiçoso, preto e branco. Tinha
os dentes mais estragados, mas isto não importava, pois planejava
mergulhar numa grande safra de produção poética para criar um
volume capaz de ser chamado de livro; seria a primeira reunião de
suas poesias. Alice já armazenava também uma significativa safra de
poemas, que vinham sendo publicados eventualmente em
suplementos culturais ou revistas de literatura.
Na cidade, ainda sob os efeitos da onda lisérgica, Leminski
desfrutava, mais do que nunca, da fama de um sujeito socialmente
imprevisível, identificado pelo establishment como, no mínimo,
inconveniente. Nada nele era politicamente correto; muito pelo
contrário. Um freqüentador assíduo da Boca Maldita, integrante da
turma “do lado de lá”, o jornalista Carlos Alberto Pessoa, ou
simplesmente Nêgo, reconhece que havia uma forte discriminação
contra Leminski nesta época:
— Faziam piadinhas maliciosas, quadrinhas com rimas chulas
e outros comentários desairosos. Podia até haver o estigma de
drogado, de desleixado, de sujeito que não gostava de tomar banho,
mas o que o pessoal não perdoava mesmo era a inteligência e o
talento dele. Isso era imperdoável.
Os órgão oficiais da área de cultura, de olho no padrão
acadêmico da classe média curitibana, não lhe davam a mínima
atenção. Tratavam-no com distanciamento. Como também é possível
que poucos executivos na área cultural tivessem capacidade (ele diria
“instrumental”) para identificar o universo de suas preferências
intelectuais. Em seu cardápio literário e musical, não havia oferta de
quantidade — e muito menos a abordagem de temas de caráter
“abrangente e popular”, bem ao gosto das secretarias de cultura.
Seus produtos — mesmo enquanto idéias — traziam a marca
registrada do novo, em detrimento do belo. O setor de editoração da
Fundação Cultural de Curitiba, entidade criada por Lerner e
responsável por vários títulos “nobiliárquicos” para autores locais,
levaria mais de quinze anos até publicar um trabalho de Paulo
Leminski. Ele nunca seria convidado (curiosamente, por Aramis
Millarch, agora mais cauteloso, cuidando dos interesses do Estado)
para fazer parte do catálogo de autores, onde estavam nomes como
Jamil Snege, Manoel Carlos Karam, Valêncio Xavier e outros menos
conhecidos. E, se convidado fosse, certamente não aceitaria, pois
estava em sua fase mais radical:
— Curitiba é uma cidade de caretas. Jamais vou virar estátua
aqui porque tenho uma bagana no bolso. A minha missão é outra.
E o “missionário” passou a “despachar” do casarão da Cruz do
Pilarzinho, levando romarias de pessoas excêntricas ao bairro
durante mais de uma década — naqueles que seriam seus anos mais
produtivos. Caravanas se formavam espontaneamente para conhecer
“o tal Leminski, um sujeito fascinante e de posições extremas”.
Vinham de todos os cantos da cidade e do Brasil. Ele curtia:
— Os meninos ficam fumando dentro dos carros e alguém tem
a idéia: “Vamos visitar o Leminski?” Aparecem aqui em bandos.
Fazem perguntas que um aluno deveria fazer ao professor na sala de
aula. Fumamos um, falamos sobre tudo, tocamos violão e eles vão
embora produzir alguma coisa, porque, eu digo sempre: sem
produção não há salvação.
Esta talvez seja a principal virtude de Leminski no
relacionamento com os jovens: ele os fazia produzir. Todos — com
exceção do irmão Pedro, é claro! — saíam de uma conversa com ele
acreditando na capacidade de transformar o exercício intelectual e
criativo numa categoria de trabalho, com direito a mão-de-obra,
proventos, férias, 13° salário etc... Propunha transformar em
realidade o sonho romântico de uma geração voltada para a criação:
viver de literatura, arte ou até mesmo de jornalismo (que agora
deixava de ser uma atividade para advogados de carreira). Este era o
sonho. Para ele, qualquer um que tivesse sérias pretensões
intelectuais na vida deveria trabalhar duro para ser mais do que um
profissional competente: um profissional brilhante. Este era o
caminho para a verdadeira liberdade, a liberdade de criar. Adotando
um certo tom de soberba, sugeria a adoção de um “espírito olímpico”
de disputa que beirasse o confronto “só pra animar a festa”. Era
competitivo mas mantinha um forte espírito de equipe, tornando a
causa sempre coletiva e distribuindo faíscas de otimismo e auto-
estima (mais do que estima, crença) entre todos que o cercavam.
Descobria com facilidade o que o “outro” tinha de melhor e, com
satisfação e cumplicidade, fazia a revelação:
— Ivo, com certeza você é um dos melhores gogós do Brasil.
Cantando de calça jeans, camiseta e tênis, sem nenhuma fantasia. O
rock é básico.
Ou, então:
— Soldinha, você está no mesmo nível ou acima dos caras do
Pasquim. O que você tem se chama talento!
Nestas horas, como parte da estratégia, gostava de reafirmar a
necessidade de estudos e especialização:
— A receita é de Pound, mas serve até mesmo para quem
escreve horóscopo em jornal: vamos beber das fontes originais e
dispensar as diluições. Depois de conhecer os clássicos fica fácil
identificar os diluidores.
Falava sempre na célebre equação “quanto maior o repertório,
menor o auditório”. Tinha um discurso para subverter esta ordem:
— Temos que fazer John Cage e Joyce chegar às massas. Elas
também precisam desses conceitos para viver melhor. Não traz a
felicidade, mas ajuda a entender o mundo. Daqui a algum tempo
alguém vai programar Cage como música de elevador. Isto é
evolução.
Os garotos ouviam e percebiam que muito de suas “pregações”
faziam sentido. Ao lado de algumas contradições explícitas — outras
ele expunha involuntariamente —, havia também uma grande e
fundamental coerência: sua própria vida era o exemplo concreto de
que sonhar era possível. Lutava bravamente para viver de poesia.
Era um ser profundamente ideológico. Não planejava comprar um
apartamento na praia, o carro do ano ou estabelecer convênio com o
BNH para adquirir a casa própria — mas sim “brincar” com coisas
sérias e aprender com as novas tendências da arte.
A casa da Cruz do Pilarzinho seria muito freqüentada a partir
da segunda metade dos anos 70. Leminski costumava se referir ao
fenômeno como uma particularidade de Curitiba, uma cidade
culturalmente dividida em “guruatos”, espaços administrados por
gurus. Assim, ele identificava “o guruato do Oraci Gemba, no teatro;
o guruato do Karam, também no teatro. O guruato do Sylvio Back,
com a turma do cinema. Temos ainda o guruato da Boca Maldita,
uma região cheia de profetas”. E se autodefinia:
— Eu fico com os marginais. Fui empossado Ministro-Sem-
Pasta da Marginália.
Quando era levado a acumular o cargo de embaixador da
cultura local, Leminski gostava de levar os amigos “de fora” ao
Templo das Sete Musas, onde Dario Vellozo, o simbolista, construíra
um altar de adoração à cultura helênica, uma espécie de maçonaria
do conhecimento filosófico. Era o Instituto Neo-pitagórico, onde o
centro de toda as atenções, como o próprio nome diz, era Pitágoras.
O templo obedecia a uma arquitetura clássica, réplica dos edifícios
gregos, mantendo a mística das colunas monumentais. Um dos que
foram levados por ele ao templo é Décio Pignatari:
— Era uma coisa estranha, onde havia um altar e um vaso com
terra retirada do túmulo de Pitágoras. O Leminski adorava este
fanatismo.
Um dia, surgiu na Cruz do Pilarzinho um jovem motoqueiro
pilotando uma 250 de escapamento aberto. Tinha uma cicatriz no
rosto e era bastante selvagem nos gestos. Não trazia uma missão
específica, queria apenas bater papo e conversar sobre
generalidades. O rapaz se apresentou como sendo Fernando Blim.
Leminski achou curioso: Blim?
— É o barulho das “garrafinhas” (ampolas) no meu bolso;
quando eu ando elas fazem blim, blim...
Leminski percebeu que tinha encontrado uma onomatopéia
viva para brincar nos próximos dias e dedicou alguma atenção ao
rapaz, um aspirante ao mundo das letras e da criatividade.
Estabeleceu como premissa universal que “poeta é quem se
considera”. Eles conversaram e tomaram algumas cervejas. Falaram
de suas paixões pelos grafites agressivos, pelas gangues da
madrugada, spray na mão, tudo pela poesia espontânea: Celacanto
provoca maremoto; Lerfa mu.
Dias depois, o motoqueiro voltou à Cruz do Pilarzinho para
mostrar aquele que seria o seu primeiro poema, sua primeira
produção literária, submetendo-a aos rigores do “professor”.
Leminski olharia o texto com atenção mas não identificaria a
natureza das palavras, dispostas em coluna como uma poesia
concreta. Ele reconhecia vagamente algumas grafias. Seria no idioma
húngaro, a língua magiar? Não. Blim explicou:
— São as drogas que eu já tomei: dexamil, desbutal, themiram,
abulimim, mandrix...
Outra vez, um grupo de adolescentes apareceu procurando um
nome para a banda que estavam criando. Os ensaios musicais já
haviam começado mas faltava um distintivo, um slogan que pudesse
soar forte e que tivesse o apelo da “sacação”. Eram duas meninas e
dois rapazes na faixa dos 17 anos, bonitinhos e rebeldes, fazendo
uma música tosca e rudimentar intelectualmente. Eles chegaram
sacando um baseado de meio metro, um presente para o poeta,
cantaram alguma coisa no violão, mas, no final, depois de duas ou
três canções, não chegaram a um acordo. Os garotos receberam com
reservas a sugestão de Leminski:
— Fratura Exposta — repetia ele, com um sorriso malicioso.
Em junho de 1976, um novo encontro com Caetano Veloso,
durante a passagem da trupe Doces Bárbaros por Curitiba. Desta
vez, Leminski conheceria Gilberto Gil e Maria Bethânia — que, como
Gal Costa, fazia parte de um universo menos intelectual, pouco se
interessando pelas conversas. Gil apareceu uma noite na Cruz do
Pilarzinho, com o percussionista Djalma Corrêa e o guitarrista
Perinho Santana. Foi o primeiro encontro entre eles. Leminski,
sentado no chão da sala, passou a mão no violão e pôs-se a tocar,
cantando músicas como quem diz poemas, ao estilo Bob Dylan — ou
algo ainda mais tosco. Gil também tocaria um pouco e, a certa
altura, improvisaria um “toque” ao novo amigo:
— Pare de beber, pare de beber
pare de beber, rapaz...
Leminski baixou a cabeça, acusando o golpe, mas reagiu
imediatamente, pedindo o violão emprestado para improvisar sobre a
mesma batida:
— Pare de parar... pare de parar
pare de parar, rapaz...
Eles não falaram abertamente, mas ficou claro que Gil tinha
informações de que o álcool estava marcando presença em excesso
na vida do poeta. A despeito disso, eles passaram a noite bebendo e
dando “uns tapas” nuns baseados, enquanto a conversa girava fácil
pelos trezentos e sessenta graus do sumário.
Nos dias seguintes, enquanto o espetáculo Doces Bárbaros
permanecia em cartaz na cidade, eles se encontrariam nos lugares
mais inusitados. Houve uma conversa com Caetano Veloso numa
mercearia de secos e molhados, ao lado do Teatro Guaíra, quando
falaram sobre Hélio Oiticica e Torquato Neto. Alice fazia parte do
grupo — e o autor desta biografia registraria em fotos este momento:
Leminski aparece de sobretudo escuro e Caetano tomando uma
Coca-Cola com seu casaco estilo London London. Ao longo da
conversa, eles trocaram idéias sobre tropicalismo, Pagu e o filme
Doces Bárbaros, que o cineasta Jom Tob Azulay tinha acabado de
rodar. (Depois, Leminski repetiria algumas vezes, em circunstâncias
adequadas, a frase “Boa noite, Oswaldo!”, com a qual Caetano
encerrava sua participação no filme tropicalista.)
7 de julho de 1976. A turnê Doces Bárbaros é interrompida e os
músicos Gilberto Gil e Chiquinho Azevedo são presos por porte de
maconha, em Florianópolis. Existem fortes indícios de que seria uma
maconha adquirida num hotel, em Curitiba, por um outro músico da
banda, dois dias antes. O fato é que o episódio trouxe sérias
conseqüências para a vida de muita gente. Durante o período na
prisão, Gil aproveitaria para compor temas sobre a indesejada
experiência (a música “Gaivota”, por exemplo, tem como cenário o
caminho para a praia de Canavieiras, paisagem de uma das janelas
do presídio) e assumir intelectualmente o chamado “delito”,
repudiando a hipocrisia e provocando uma discussão nacional sobre
o assunto. O pai do músico, o médico José Gil Moreira da Silva,
apareceria nos jornais para garantir que o filho não era marginal,
trabalhava honestamente e podia ser considerado muito responsável.
Chegou a publicar um pequeno livro médico sobre o tema Canabis
sativa.
Na casa dos Leminski, onde sempre se fumou diante das
crianças, o assunto foi muito discutido, ainda que
involuntariamente. Eles disseram para os filhos que aquilo
[marijuana] não lhes fazia mal, desde que ninguém soubesse que
fumavam, caso contrário também poderiam ser presos. Agora, a
conversa tinha sido provocada pela tia de Alice, que chegou com os
olhos arregalados, alardeando: “Aquele amigo de vocês, o músico, é
um drogado e está preso em Florianópolis.” Alice argumentou com
convicção dizendo que devia haver algum engano, pois era público e
notório que Gil sustentava a família, ganhava muito dinheiro e tinha
energia suficiente para fazer grandes espetáculos no palco. Houve
um silêncio eloqüente entre elas. Em nenhum momento da conversa
Alice tentou negar, dizendo que Gil não fumava ou algo assim — até
porque ele mesmo tinha sustentado o contrário:
— Eu não tive coragem de assumir para não magoá-la.
Tínhamos um pacto, eu e o Paulo, de nunca fumar na frente de
nossas mães. E assim fizemos a vida inteira.
Dias depois, Leminski criaria um poema que chamaria de “Riso
para Gil”:
teu riso
reflete no teu canto
rima rica
raio de sol
em dente de ouro
everything is gonna be allright
teu riso
diz sim
teu riso
satisfaz
enquanto o sol
que imita teu riso
não sai
Sabe-se que como conseqüência do infortúnio da prisão,
Gilberto Gil se aproximaria espiritualmente do pensamento oriental,
ligando-se à teosofia e mantendo um novo hábito alimentar através
da macrobiótica. Era o que se chamava de “evolução espiritual ou
mística”. Leminski, é claro, acompanharia este processo com vivo
interesse, acreditando mesmo que “agora tudo começa a fazer
sentido”.
Não se pode afirmar que ele tenha tido uma visão premonitória
do que aconteceria exatamente nove dias depois, quando os jornais
curitibanos amanheceram com uma notícia espetacular na primeira
página. A Tribuna do Paraná chegou a decorar a manchete com
tintas vermelhas, para anunciar em letras garrafais:
Baianos lançaram nova moda?
TAMBÉM AQUI,
CANTOR É PRESO
COM MACONHA
No centro da página, uma grande foto mostrava o guitarrista
Ivo atrás das grades, com os cabelos caindo pelos ombros. Era uma
foto de arquivo onde, desafortunadamente, ele aparecia atrás de
grades cenográficas. Ivo tinha sido preso por agentes da Delegacia de
Entorpecentes no momento que entrava num edifício no centro da
cidade. A notícia continuava: “O artista do conjunto A Chave foi
denunciado por um garoto que notou quando ele deixou cair um
pequeno pacote de plástico contendo a ‘erva’ e avisou a polícia.” Ivo
conseguiria se livrar do chamado “flagrante delito” mas seria
indiciado em inquérito policial, o que representaria, no somatório dos
acontecimentos, o máximo em baixo astral para os próximos dias.
“Sujou”, ele mandou avisar.
Curiosamente, estes dois dramáticos acontecimentos
transformados em notícias policiais viriam contribuir para solidificar
a estética contracultural do grupo. Havia algo de patético em se
querer rotular o cabeludo Ivo de criminoso ou delinqüente; logo ele,
um sujeito reconhecidamente pacífico e ingênuo. (Dizem que certa
vez tentou entrar no cinema com a namorada, mas sem os bilhetes.
Quando o porteiro pediu os ingressos, ele explicou que “já tinha
superado isso” e continuou andando...) De qualquer forma, o trauma
estava deflagrado. Era necessário agora dar um tempo nas coisas.
Em novembro, os Leminski aceitariam o convite para a festa de
aniversário de Moreno Veloso, filho de Caetano e Dedé, que fazia
quatro anos. Depois de reunir algumas economias, eles embarcaram
num ônibus da Penha e seguiram para o Rio de Janeiro.
Ficaram hospedados na casa do poeta Duda Machado, na
época casado com Suzana de Moraes — ela, por sua vez, filha de
outro poeta, Vinicius. Na festa, Leminski conheceria Moraes Moreira
e reencontraria Risério e Jorge Mautner. Eles passaram horas
conversando, sentados no chão da sala, ouvindo Caetano cantar
uma música que estava terminando de criar. Depois do último
acorde, Caetano comentou que algumas vezes encontrava dificuldade
para dar nome às canções. Leminski observou que, em caso de
dúvida, costumava “puxar” as duas primeiras palavras do poema,
adaptando-as como um título. Caetano murmurou: “Um Índio”? A
música foi gravada com este nome por Maria Bethânia no LP Doces
Bárbaros, em 1976, e pelo próprio Caetano no álbum Bicho, no ano
seguinte.
Ao contrário do que aconteceria no futuro, quando selariam
uma forte e fecunda parceria, Leminski e Moraes Moreira quase não
conversaram esta noite. De fato, este primeiro encontro não passou
das apresentações. Mesmo assim, quando o casal voltava a Curitiba,
cinco dias depois, sentia-se com as esperanças e os ânimos
renovados. Afinal, tinham se aproximado um pouco mais dos ídolos e
das pessoas pelas quais sempre manifestaram especial carinho e
admiração.
No final do inverno, os Leminski conheceriam um jovem e
dinâmico empresário, Luiz Henrique Garcez de Oliveira Mello — o
Gordo Mello — com o qual trabalhariam no desenvolvimento de pelo
menos dois projetos literários. Gordo Mello, sujeito com ares de
poderoso, reconhecidamente rico e folgazão, era uma figura folclórica
em Curitiba. Diz a lenda — ou a história, nunca se sabe — que certa
noite ele criou o seguinte constrangimento no Teatro Paiol, durante
uma apresentação do conjunto MPB4: sacou uma latinha de cerveja
do bolso, dessas com arroz dentro, e passou a acompanhar o grupo,
fazendo o que chamava de “percussão”. Quando um dos músicos
protestou, pedindo clemência, ele ponderou, compenetrado:
— Não, bicho, pode tocar aí que eu garanto aqui.
Com planos de se lançar no ramo editorial e posteriormente na
política, Gordo Mello decidiu fundar a Editora Etecetera — e
escolheu como trabalho de estréia a edição de um livro de Leminski,
o poeta da terra. Logo na primeira conversa entre eles, surgiria a
idéia de uma edição misturando fotos e textos. O projeto visava a
aproveitar os flagrantes da cidade que o veterano fotógrafo Jack Pires
vinha coletando há mais de um ano. Leminski conhecia as fotos e via
poesia nelas. Jack era paulista e durante os anos 50 e 60 trabalhara
nas grandes revistas nacionais. Era um especialista em imagens do
cotidiano, fotos de gente do povo. Agora, em fim de carreira mas
ainda produtivo, era espezinhado pelos “artistas” da cidade que iriam
apelidá-lo de Jack, o Ex-trepador. Ele não se aborrecia, apenas pedia
“juízo” aos “meninos” com quem trabalhava agora, no mesmo
sobrado onde Retamozo mantinha seu estúdio de arte. Jack fazia
parte da turma.
Foi assim que certa vez ele apareceu na Cruz do Pilarzinho com
dezenas de fotos 18 x 24, que seriam espalhadas pelo chão para
permitir uma visão global do material. Leminski buscou uma pasta
de poemas no escritório e, junto com Alice, passaria horas
selecionando os textos que se identificavam melhor com as fotos. No
final estava concebida a caixa “Quarenta Clics em Curitiba”,
reunindo quarenta fotos e quarenta poemas. Leminski escreveria no
prefácio:
Jack Pires me convidou para sua festa e nessa festa havia
pipoqueiros, menores abandonados, gente do êxodo rural
jogada pelas praças pensando no destino, vagabundos,
mendigos, biscateiros. Uma Curitiba popular, cotidiana,
cômica, dramática, trágica.
“Fotografia” quer dizer “escrever com a luz”. Fotos.
Grafeim. É o que Pires faz. Um poeta que escreve com a
luz. Logo vi.
Aproximamos fotos e poemas como ideogramas
japoneses. Entre foto e poema — a faísca de uma nova
poesia.
Nenhum texto foi escrito para uma foto. Foi buscada
a relação/contradição texto/foto. Os poemas estavam
prontos já. E deu certo.
Esperamos Pires e eu, que tenha dado certo.
Uma das fotos mostrava uma mulher comum, do povo,
dormindo sentada num banco de praça, com ares de tranqüilidade.
O poema escolhido como referência:
Depois de hoje
a vida não vai mais ser a mesma
a menos que eu insista em me enganar
aliás
depois de ontem
também foi assim
anteontem
antes
amanhã
O lançamento de Quarenta clics em Curitiba, no dia 23 de
dezembro, na Livraria Ghignone, seria marcado pela confusão. As
capas, onde as folhas soltas — mais de 40 — deveriam vir
encartadas, não ficaram prontas a tempo, provocando uma correria
no quartel-general de Gordo Mello. Um funcionário fora encarregado,
de forma desesperada, de conseguir pelo menos 50 caixas na gráfica,
para quebrar um galho. Ele voltou com algumas dezenas de caixas,
que acabaram rapidamente na fila dos autógrafos — e a solução foi
se desculpar, garantindo que os compradores as receberiam em casa,
ou, se preferissem, poderiam retirá-las durante a semana na própria
livraria. Quem comprou, levava as folhas soltas na mão.
Leminski e Jack escolhiam as cartelas para fazer a dedicatória
de acordo com cada leitor/amigo. Assim, por exemplo, Leminski
separou uma foto onde havia uma criança e um longo caminho de
jardim ao fundo, como background, para escrever com caneta
vermelha: “Para Martins, amigo velho e irmão, admiração e carinho
do Leminski”.
Jack Pires escolheu a foto de dois garotos sentados por trás de
um monte de jornais — na Casa do Pequeno Jornaleiro —
aproveitando a poesia de Leminski para dizer: “Martins, só mesmo
um velho para descobrir detrás de uma pedra toda a primavera”.
Apesar das aporrinhações e contratempos da noite, eles se
divertiram tomando uns drinques com os amigos e reforçando o
folclore do momento, criado pela inusitada união de Paulo Leminski
com Jack Pires e Gordo Mello. Uma espécie de geléia geral
curitibana.
Semanas mais tarde, já refeitos da ressaca, os Leminski foram
surpreendidos por uma visita matinal de Gordo Mello, que chegou na
hora do café para comunicar a uma família ainda sonolenta:
— Meninos, estou alugando uma casa perto daqui. Vim avisá-
los que vamos ser vizinhos.
Alice recorda que todos colocaram as mãos na cabeça,
inclusive o Miguelzinho, que exclamou:
— Não!!!
Leminski teria dito:
— Mello, pense bem...
No final de 1976, finalmente, Miguelzinho estava curado dos
problemas nas articulações. O casal continuava vivendo de trabalhos
ocasionais para agências de publicidade — o que possibilitava levar
uma vida sem nenhuma ostentação mas também sem muitas
dificuldades. Eles tinham criado uma espécie de agência própria de
produção de texto, trabalhando em casa para vários clientes.
Leminski costumava contabilizar:
— Além das biritas, nossos consumos são modestos: um ou
dois discos por mês, um show por quinzena e um livro por semana.
Temos conseguido manter o padrão.
O item sagrado das despesas era a escola das crianças. Certa
vez, quando havia pouco dinheiro e duas contas para pagar — a luz e
o colégio —, eles decidiram ficar no escuro por alguns dias. Até
porque, nesta época, mesmo os momentos ruins eram bons.
No início do inverno — como um antídoto para — o poeta
baiano Waly Salomão, que ouvira falar de Leminski e do Catatau
através de Augusto de Campos e Caetano Veloso, de quem era amigo
e parceiro, chegava de mansinho na cidade. Waly, que na época se
assinava Sailormoon ou Sailorsun, o marinheiro da lua ou do sol, era
parceiro de Jards Macalé na música que representava o hino da
contracultura: o clássico “Vapor barato”, na interpretação memorável
de Gal Costa no disco A todo vapor, de 1971. Agora, depois de uma
temporada em Nova York, Waly estava desenvolvendo o projeto
Babilaques, feito de anotações, poesias informais e textos-sacadas —
e surgiu em Curitiba atraído pela “pedra magneto da poesia”, como
ele mesmo definiu, repetindo Haroldo de Campos:
— Eu fui a Curitiba com o único fito de conhecer Paulo
Leminski. Ele chamou minha atenção, a partir da revista Invenção,
por ser um erudito e um louco ao mesmo tempo, um heterodoxo,
fazendo um trabalho que me interessava muito. Eu gostava da idéia
de atravessar o paideuma da poesia concreta, se abeberar dela e sair
pelo outro lado com uma proposta pessoal. Ninguém trabalhava
como ele, nesta linha. De um modo geral, outros poetas — como o
Cacaso — rejeitavam absolutamente a poesia concreta. Eu achava
esta posição ignorante. Então resolvi fazer a ponte Norte-Sul. Ele não
tinha telefone e eu guardava na memória dois nomes que deveria
procurar em Curitiba: o fotógrafo Júlio Covello e o jornalista Toninho
Martins Vaz.
O Waly me encontraria através do Júlio, que ele conhecera no
Rio durante os anos do desespero. Eu estava em Curitiba fazendo um
jornal alternativo chamado Scaps, em parceria com Retamozo,
enquanto tomava fôlego para uma volta estratégica para a Guanabara
— antes, porém, tinha que cuidar da saúde, temporariamente abalada
pelos excessos.
Quando nos encontramos no hotel, Waly preferiu fazer o trajeto
até a casa do Paulo num ônibus, para conhecer melhor a cidade e
poder voltar nos dias seguintes. Ele planejava ficar em Curitiba “até
esgotar o assunto”:
— O Leminski era um grande apreciador de Canabis sativa.
Fazíamos verdadeiras toras, algo parecido com uma flauta doce, com
se diz na Mangueira, com a qual embalávamos horas e horas de
conversa. Entre uma baforada e outra, ele sempre tentava me aplicar
um golpe de judô, o que deixava tudo muito elétrico. A conversa era
concentrada e ao mesmo tempo dispersa, pela própria natureza da
Canabis.
Nesta época, todo o trabalho que produzíamos era publicado no
caderno de cultura do Diário do Paraná, o chamado “Anexo”, onde
Retamozo, o único verdadeiramente contratado, agitava as massas. O
jornal estava deixando de ser uma empresa dos Diários Associados e
passava por uma fase de transição, o que favorecia a apropriação
quase clandestina de suas páginas. E nós o fazíamos com a intenção
de contra-atacar o silêncio dominante. Waly trazia também na mochila
vários exemplares de Folias brejeiras, de José Simão, uma pequena
antologia hedonista sobre as grandes vedetes brasileiras, de Luz Del
Fuego a Virgínia Lane. Fizemos uma edição com direito a capa de
caderno: o Paulo editou as Babilaques e eu as Folias Brejeiras. O
trabalho foi realizado com bastante agilidade, de maneira que Waly
ainda estava na cidade quando o jornal circulou com a edição
especial.
Para Waly, este encontro representou a superação de muitas
barreiras ameaçadoras, inclusive a geográfica. Havia algo de científico
nesta alquimia, definida por ele como explosiva:
— O Leminski era uma pessoa nada convencional, cheia de
vitalidade, um agitador no mais alto significado do termo. Não engolia
um papo médio, queria o melhor, nada de “sopa rala”. Ele sempre me
pareceu uma cunha, um divisor de águas na poesia brasileira,
reunindo o marginal e o erudito como ninguém.
Passamos uma tarde andando pela cidade praticamente sem
destino, vagando entre um bar e outro. O Waly dizia: “Esta é a melhor
maneira de se conhecer um lugar.” Foi quando fizemos a foto
registrando o trio — com Waly de braços abertos sob a Cruz do
Pilarzinho — momentos antes de entrarmos num ônibus. Estava frio e
soprava um vento gelado, apesar do céu profundamente azul. Uma
tarde tipicamente curitibana. Em seguida, fomos ao Bife Sujo tomar
cerveja; Waly, como um bom árabe, se escandalizaria com o quibe frito
recheado com ovo cozido que lhe seria oferecido. Apesar disso, a tarde
transcorreu alegre para todos. O Paulo era, na mesa do botequim, o
apresentador oficial do folclore da cidade. E assim seria por muitos
anos.
No início de 1977, cansada de guerra e acometida por uma
forte crise de depressão, dona Áurea era motivo de preocupação para
todos, com sinais visíveis de apatia e inanição. Ela simplesmente
parou de comer. Prostrada numa cama, mantinha-se sob os
cuidados das cinco irmãs na antiga casa dos Pereira Mendes, na rua
Duque de Caxias. Como conseqüência imediata, uma nova crise se
instalou entre os irmãos. Tal como havia acontecido anteriormente,
Paulo costumava rechaçar com muita energia as atitudes
intempestivas de Pedro. Agora, o irmão mais velho exigia toda
atenção e cuidados com dona Áurea, que não podia ter
aborrecimentos “em hipótese alguma”. O grande problema com
Pedro, na maioria das vezes, eram as dívidas financeiras que ele
assumia e não conseguia pagar. Como se diz na gíria, era um joguete
fácil na mão dos agiotas. Ele e a mãe viviam com o dinheiro da
pensão deixada pelo pai, que se mostrava insuficiente para cobrir
todos os gastos. Em meio às tórridas discussões, Leminski
reafirmava a necessidade de Pedro arrumar um emprego
urgentemente: “Afinal, você já tem 30 anos, brother?”
Na primeira semana de maio fizemos uma viagem a São Paulo,
Paulo e eu, onde ele programara visitar Augusto de Campos e fazer
contatos com seus amigos poetas. Embarcamos num ônibus noturno
da Penha levando duas garrafinhas de Coca-cola misturadas com
cachaça — o popular “samba” — que foram reabastecidas no
caminho. Passamos a noite bebendo e conversando com empolgação,
as always. Devo dizer que, para desespero dos outros passageiros, o
Paulo liberava enormes bolas de fumaça do cigarro, enquanto
gesticulava nervosamente, tirando e colocando os óculos de aros
escuros. Como um reflexo total de imprudência, dormimos dez minutos
antes de chegar em São Paulo e descemos quadrados na rodoviária.
Durante os três dias previstos de agitação na Desvairada,
ficaríamos hospedados no apartamento de Risério e Mônica, no bairro
de Perdizes. Risério acabara de escrever os fascículos sobre Caetano e
Gil da série MPB, publicada pela Editora Abril, e estava em contato
direto com os músicos, o que garantia uma boa fonte de informação. E
informação era tudo que buscávamos.
O apartamento era uma espécie de república poética da nova
geração, ponto de encontro para Régis Bonvicino, Walter Silveira,
Lenora de Barros, Ornar Khouri, Jorge Caldeira e muitos outros, que
recebiam as visitas ocasionais dos “professores” Augusto, Julio Plaza,
Décio Pignatari e Zé Agripino.
Havia alguma expectativa neste grupo em torno da visita e do
trabalho de Paulo Leminski. Augusto, que estava lançando RE-
DUCHAMP, em parceria com Julio Plaza (ensaio sobre Marcel
Duchamp), nos avisaria que no dia seguinte, um sábado, teríamos um
almoço na casa dele, onde deveriam aparecer Regina Vater e
Sebastião Uchôa Leite, que manifestaram o desejo de conhecer
Leminski. No dia e na hora marcados lá estávamos, tocando a
campainha no apartamento de Augusto, que já fazia sala para o irmão
Haroldo e o professor Pignatari. Sem tergiversar um minuto, o Paulo
pediu algo para beber e sentou-se no chão, acomodando-se no tapete.
Bebeu com grande sofreguidão e nenhum comedimento, apesar dos
olhares de preocupação de Augusto. Ele suportou cerca de meia hora
de conversa animada, mas logo cansou e acabou dormindo,
ressonando como um grande urso. Os convidados chegaram e ele
continuaria dormindo. As reações diante daquele corpo inerte, no meio
da sala, foram diferentes. Regina Vater não lamentou muito. Ela
apenas sorriu e comentou:
— Faz sentido. Foi como me disseram que ele era.
O poeta Sebastião Uchôa, um pouco impaciente, chegou a sugerir
a remoção do corpo para um dos quartos, já que estava atrapalhando
o trânsito em frente das poltronas. Augusto, no papel de anjo da
guarda, interferiu:
— Vamos deixar ele dormir... Eles viajaram a noite inteira.
Eu confirmei:
— Sim, estamos muito cansados, isso é verdade...
O Paulo acordaria horas depois, quando as visitas já tinham ido
embora, pedindo “urgentemente” uma cerveja bem gelada.
Nestas temporadas em São Paulo, ele observava prioridade
absoluta para os contatos dito “profissionais” com seus mestres. Tinha
perguntas a fazer, inquietações para deflagrar e descobertas a
anunciar. O mais influente era Augusto de Campos, embora todos
tivessem sua parcela de responsabilidade em seu projeto intelectual.
Risério lembra que o ritual era quase sagrado. Na hora de sair para
encontrar Décio Pignatari, por exemplo, ele dizia em tom de
brincadeira:
— Então, Risério, tudo pronto! Vamos lá tirar sangue do
velhinho?...
Houve uma conversa, entre ele e Risério, ambos sentados no
chão do apartamento, minutos antes da nossa despedida, que
entraria para o anedotário de sua vida. Um tanto quanto intrigado,
Risério perguntou:
— Percebo por suas preferências de leitura que Freud não tem
nenhuma importância, nem mesmo como linguagem. Como pode
alguém no mundo moderno dispensar Freud?
A pergunta foi uma surpresa. Bem ao seu estilo, Paulo ergueu
lentamente a cabeça, ajeitando os óculos e a sobrancelha, deu uma
baforada no cigarro e reagiu com precisão:
— Acontece que eu não tenho psiquê. Eu sou a Besta das
Araucárias. Não me faz a menor falta o universo freudiano. Até mesmo
porque tudo está na mitologia grega.
Logo depois estávamos na rodoviária, voltando para Curitiba
com um grande volume de livros e revistas embaixo do braço.
Nesta época, Leminski revelaria seus planos de viver apenas de
jornalismo, trabalhando em casa, e — o que era o grande desafio —
mantendo-se dentro da mesma faixa de produtividade, com o rigor de
horários e tudo. Tal iniciativa pode ser encarada, neste momento,
como uma armadilha para urso, na medida em que a nova rotina o
deixaria mais próximo da vodca e longe dos olhares vigilantes dos
chefes de redação. Alice, por sua vez, aceitaria um convite para fazer
parte de uma equipe de propaganda e, ao se afastar de casa durante
as tardes, deixaria a cena armada para a elaboração de um crime.
Os tempos tumultuados teriam imediatas conseqüências na
vida doméstica do poeta. Os excessos com o álcool afetariam
visivelmente seu equilíbrio emocional. Certa vez, ao tentar acordá-lo
durante um pesadelo, Alice foi atacada no pescoço e quase agredida.
Ele urrava e vociferava palavrões mas continuava dormindo, em
transe. Quando finalmente acordou, não fazia a menor idéia do que
tinha acontecido. Seu estado de irritabilidade o deixava por vezes em
alta voltagem, como um vulcão prestes a explodir. Foi o que
aconteceu em Florianópolis, durante um evento de literatura onde
estavam também Décio Pignatari e o escritor Domingos Pellegrini,
um representante da chamada “poesia engajada” e, portanto, seu
adversário em potencial.
Depois de tomar alguns drinques, Leminski dormiu durante a
palestra de Pellegrini, cujo teor conhecia muito bem e já tinha sido
motivo de polêmica entre eles. Neste dia, porém, Pellegrini
apresentaria uma palestra diferente das anteriores, menos fechada e
mais simpática às experimentações dos poetas concretos. Sem saber
disso, Leminski, acordado pelos aplausos finais, levantou-se, pediu a
palavra e começou uma argumentação que aos presentes soaria
quase como um teatro nonsense. Em pouco tempo a platéia percebeu
que ele tinha assistido a outra palestra. Ouviram-se alguns risos
contidos... Leminski, que já não estava entendendo nada, ficou
irremediavelmente desnorteado quando Pignatari saiu em defesa de
Pellegrini. Confuso, ele não prestou atenção em Alice, que tentava
impedir a catástrofe, alertando-o baixinho, com o canto da boca:
— Paulo, não é nada disso!
Ele suportou duas ou três vezes as intervenções dela, até reagir
com um sonoro palavrão para, em seguida, continuar esbanjando
cátedra em seu equívoco. Quando finalmente descobriu o que estava
acontecendo, Leminski sentiu o golpe. Tal exibição de ego não lhe
facilitava as amizades. Muito pelo contrário.
No dia seguinte, durante um passeio no balneário de
Camboriú, quando se mostrava sóbrio, Pignatari aproveitou para
reforçar seus apelos, pedindo que ele cuidasse um pouco da saúde.
Os três caminhavam pela praia, envolvida numa bruma de inverno,
quando Leminski ouviu algo parecido com um sermão. Décio falou
textualmente — e com muita calma — que alguém com o potencial
dele não tinha o direito de se destruir daquela maneira etc.... Ele
ouviu em silêncio — como se o silêncio fosse uma estratégia — e
nada argumentou, mesmo quando era isso que se esperava dele. Não
era difícil perceber que estava com os nervos à flor da pele e que,
mesmo com todos os disfarces, esta tinha sido uma parada indigesta
para ele.
Certa vez, no auge de uma crise, Leminski destruiria o violão
na parede depois de atirá-lo em Alice. Era o violão que tinha sido
presente de José Louzeiro. Ele ainda mandaria o instrumento para
uma oficina especializada, mas não havia nada para ser feito: o
violão estava morto e o casamento abalado. Para tentar salvar o que
consideravam “um verdadeiro caso de amor, uma love story”, a
reação do casal foi imediata. Alice intensificaria a carga de trabalho
na agência de publicidade (chamada Século XX) e Leminski
escreveria resenhas em jornais locais para estimular a discussão
sobre o Catatau, agora reforçado pelo leferendum bem qualificado de
Caetano Veloso. Tudo levava a uma mudança de hábitos — e ele
efetivamente passou a beber menos, substituindo o conhaque e a
vodca por bebidas mais suaves, ou ligth, como dizia: vinho branco,
cerveja ou martíni, sem nunca misturá-las. Na avaliação de Alice, ou
as coisas mudavam entre eles ou a relação amorosa estaria
irremediavelmente comprometida. Alterar o hábito alimentar era um
bom começo.
Em meados do ano, a mãe de Alice sofreu um acidente
estúpido, porém com sérias conseqüências. Ela foi atropelada num
dia de chuva, no centro da cidade, tendo como resultado uma
clavícula quebrada e leves escoriações pelo corpo. Nada
aparentemente muito grave, mas na idade dela uma fratura de osso
não seria algo fácil de resolver — e dona Angela passaria por um
longo calvário de tratamentos e operações. Ela iria falecer em
decorrência deste acidente, exatamente um ano e dez cirurgias
depois. Ao longo deste tempo, Alice se afastaria circunstancialmente
da Cruz do Pilarzinho para dar assistência à mãe — e esta fase
coincide com outro problema de saúde na família, desta vez com o
próprio Leminski.
Depois de uma tarde de cerveja com os amigos, ao deitar-se,
ele passou mal e vomitou. Como sempre acontecia nestes momentos,
tentaria camuflar a situação. Alice, percebendo que algo estava
errado, levou uma bacia para o quarto, que logo ficou manchada de
sangue. No dia seguinte, um médico conhecido, o dr. Jamur,
apareceria para uma visita rápida. Leminski estranhou a
movimentação na casa e, mais uma vez, tentaria fugir da raia. Na
hora da consulta, ameaçou se aproveitar do fato de que o médico era
especialista em semiologia médica — uma área com muitas
afinidades com a semiologia da lingüística — para transformar a
conversa num encontro de intelectuais. No final, depois de ser
examinado, o diagnóstico não lhe pareceria duro demais. O dr.
Jamur foi categórico:
— Sim, é grave. Você pode morrer em poucos meses, mas
tenho certeza que, no seu caso, o pior seria a degenerescência dos
neurônios.
Assustado, assim que o médico saiu Leminski voltou-se para
Alice e anunciou:
— Fofa, não boto mais nem uma gota de álcool na boca!
Depois de permanecer por algum tempo estacionado na fase
light, fazendo uma espécie de vestibular para a abstinência, Paulo
Leminski parou completamente de beber. Ficou restrito aos baseados
e aos cigarros “caretas”, que continuava fumando com grande
voracidade. Para compensar os impulsos de oralidade, bebia
refrigerantes compulsivamente, que lhe eram servidos em taças de
champanhe. Nesta época, já fazia parte do layout um vasto bigode,
no melhor estilo Emiliano Zapata, que ele adotara com o propósito de
esconder os dentes estragados.
Convidado a dirigir um canal de televisão — a TV Paraná, uma
empresa dos Diários Associados — desembarca em Curitiba, “para
ficar”, o jornalista e poeta Reinaldo Jardim. Considerado um
profissional de elite, responsável pela histórica reforma gráfica do
Jornal do Brasil, nos anos 50, Jardim tinha o perfil de um jornalista
ligado às artes visuais. Ele ficaria pouco tempo na televisão. Logo
seria convidado a criar o projeto de reforma do Diário do Paraná,
onde cuidaria particularmente do suplemento cultural “Anexo” e se
encontraria com Retamozo, que comungava das mesmas preferências
estéticas. Com seu reconhecido espírito de aventureiro, Jardim logo
envolveu-se na criação de um outro jornal diário, o Correio de
Notícias, onde pôs em prática uma concepção modular de
diagramação, concebendo um jornal vistoso e visualmente apelativo
(no bom sentido, é claro). Teve início, então, uma fase bastante
efervescente de produção cultural na cidade, com quatro frentes
ativas na imprensa: além do suplemento do Correio, estavam a todo
vapor o “Anexo”, do Diário do Paraná, e Raposa, um jornal de idéias e
grafismos, editado pelo cartunista Miran, que todos chamavam de
Mirandinha. Havia também, pelo lado civil da sociedade, uma certa
distensão política, com o país vivendo os “brandos anos Geisel”,
quando aconteceria a tal abertura democrática “lenta e gradual”.
Em seguida, Jardim criaria um escritório de promoção com o
propósito de transformar Curitiba em Pólo Cultural — e editaria
semanalmente um jornal com o mesmo nome em quatro versões,
uma para cada “arte”. Leminski logo estava trabalhando com ele,
cuidando do segmento Inventiva, dedicado a “textos, experimentos e
vanguarda”. Os outros eram Espaço (arquitetura), Artes (espetáculos)
e Grafia (o jornal da foto). Em todas as publicações, Leminski teve
atuação constante e significativa, mostrando uma profusão de
poemas, ensaios e textos em prosa. O poeta Waly Salomão, mesmo
morando no Rio de Janeiro, participava destas invenções:
— Houve um momento em que Curitiba tinha a melhor
produção nacional em publicações de arte e literatura. Um
acabamento gráfico de primeira com profissionais cuidando de
textos, desenvolvendo grandes idéias temáticas e com ousadia. Era
muito sofisticado.
Em carta ao amigo Régis Bonvicino, datada de 27 de janeiro,
Leminski exultava: “O troço aqui tá bom pacas, tá dando pra se
mexer. Recebendo um alô teu e de Risério de quando em vez dá até
pra agüentar.”
Em 29 de abril de 1977, confirmando sua paixão pela cultura
oriental, Leminski publicaria uma edição especial do Anexo
abordando o tema “Zen e as artes marciais japonesas”, com design
de Retamozo. Na capa do suplemento, ocupando a página inteira,
aparecia o intrigante e elucidativo Jogo do Senhor e do Servo, “criado
por um mestre Zen para significar o relacionamento do praticante
zen com a Verdade Última”:
O ensaio tinha como título “Zen: o fruto de um silêncio de
Buda” e apresentava oito koans, “anedotas zen para abrir sua cuca”.
Um desses koans, o de número 8, tinha como título “O Mestre Ikkyú
e o Eremita”, de que Leminski gostava particularmente (ver Apêndice
8).
Suas contribuições para a imprensa diária foram bastante
significativas. Ele abria as páginas democraticamente (“neste negócio
de democracia temos que ser muito seletivos”) e propunha a
discussão de temas pouco convencionais, dando um sentido de
evolução ao seu trabalho, quase sempre com um cunho didático
permeando as abordagens. No dia 6 de julho, também no Anexo,
publicaria uma página dupla, com dois artigos diferentes. Num
deles, falava pela primeira vez, dez anos depois, da “contribuição do
grupo Áporo” para Curitiba, concluindo: “Éramos um bom grupo.
Mas, entre os que foram e os que chegaram, ficou o espírito de uma
época em que criar era um esporte nesta cidade.” No segundo texto,
“Onde está a poesia?”, ele mesmo respondia:
A poesia está na literatura. A poesia está na letra de
música popular. A poesia está no cartum e em
experimentos gráfico-plásticos. A poesia está nesses três
lugares. Existe tanta poesia em Drummond quanto em
Caetano, Millôr Fernandes e John Lennon.
A produção não se limitava apenas a uma amostragem em
âmbito local. Vendo ampliar seu ciclo de amizades e parcerias,
Leminski articulava-se nacionalmente com os “fazedores de coisas”,
participando de diversas experiências literárias. Na revista Código no.
3, editada em Salvador por Risério e Erthos Albino, ele apresentaria
um trabalho gráfico onde o centro do desenho era a palavra POESIA,
circundada por raios de frases (como raios de sol) com suas
múltiplas definições e respectivos autores. Assim, para Mário de
Andrade, poesia é “tudo o que meu inconsciente me grita”. Para
Roman Jakobson, “é a mensagem voltada para a mensagem”; para
Oswald de Andrade, “é a descoberta das coisas que nunca vi”; para
Fernando Pessoa, “um fingimento deveras”. E assim por diante... Ele
tinha compilado, ao longo dos anos, a definição de vários escritores
sobre poesia. Ao mesmo tempo, participava da revista Muda, editada
em São Paulo por Augusto de Campos, onde publicaria o poema que,
no futuro, lhe serviria como uma grife:
o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhadaputa
de fazer chover
em nosso piquenique
Todas estas atividades, constantes e regulares, faziam
aumentar o volume de originais em seus escaninhos. A visão de uma
pilha de poemas sobre a mesa acabaria estimulando nele a
expectativa de publicar um livro com regras e sintaxe puramente
poéticas. Enquanto isto não acontecia, ele seguia musicando a
poesia.
Em novembro de 1977, finalmente a estréia em disco. Depois
da grande “batalha” em que se transformou a fase de produção, em
São Paulo, ficava pronto o compacto simples d’A Chave, com duas
músicas by Leminski: “Buraco no coração” e “Me provoque pra ver”,
apresentada no estilo rock-a-billy:
Você não cansou
De me convencer
Que eu sou o cara duro
Que vai te amolecer
Mas pode me crer
Você sendo tão pura, baby
Vai desaparecer
Eu sou o cara duro
Que vai te amolecer
Se o dia é de sol
Sou eu que faço chover (ha ha ha)
Sou de carne e osso
E adoro uma tentação
Me provoque pra ver
Pura, pura, pura
Este teu jeito de pura
É pura provocação
Me provoque pra ver
A festa de lançamento do disco aconteceria no ginásio do
Círculo Militar, tendo o músico Manito, do conjunto Os Incríveis,
como convidado especial, tocando sax tenor na banda. Em artigo
publicado na Folha de Londrina, no dia 22, Leminski responderia às
críticas de alienação que se fazia ao “roque brasileiro”:
— É claro que não se trata de uma manifestação
autenticamente nacional. Mas essa discussão nasce sempre viciada
por esquemas artesanais, pré-industriais, nostálgicos. Como se a
cultura brasileira fosse um objeto de substância rara que tivesse que
ser preservado de influências estrangeiras e de ataques de corsários
franceses, holandeses, ingleses, fenícios...
A estréia em disco vai coincidir, paradoxalmente, com o
momento em que a banda A Chave deixaria de existir. Cansados de
tentar uma independência financeira, depois de quase dez anos “na
estrada”, os meninos capitularam. Atraídos para outras atividades,
Orlando e a namorada Wilma partiram para a criação de um estúdio
de fotografia; Eli formou-se engenheiro químico e foi trabalhar numa
empresa do setor; o baixista Carlão continuaria na produção de
shows, agora como músico da banda Bartenders; Ivo e Paulinho
deram continuidade às respectivas carreiras participando do
Blindagem; que nos anos seguintes gravaria em vinil a grande
produção musical de Paulo Leminski.
Nestes dias, Gilberto Gil voltaria à cidade, agora com o show
Refavela, em temporada no Teatro Guaíra. Na banda que o
acompanhava, estava Lúcia Turnbull, guitarrista que Leminski havia
conhecido anos antes como integrante da banda Tutti Frutti, de Rita
Lee. O grupo faria uma visita à Cruz do Pilarzinho, quando todos
passaram a noite conversando e tocando violão. Lucinha, como é
conhecida, lembra-se do charme derramado pelo poeta, que dias
depois lhe mandaria um telegrama dizendo:
— Um beijo no lóbulo da orelha esquerda.
PS: Devolva o arrepio.
O ano de 1978 traria a perspectiva de mudança de emprego
para o casal. Alice se afastaria da agência de publicidade para
escrever nas revistas da Grafipar, a mesma editora onde o Catatau
fora impresso. A gráfica editava uma profusão de pequenas
publicações, sendo que uma delas, chamada Peteca, permitia contos
eróticos e horóscopos picantes. Alice passou a escrever ensaios e
histórias em quadrinhos, contando com os desenhos de Solda e
Rogério Dias — que editavam também Passarola, então a revista de
bordo da Varig. Leminski voltaria a trabalhar na P.A.Z. com
Retamozo e Mirandinha, o que significava uma aproximação maior
do jornal Raposa, onde era um dos editores.
Tudo parecia perfeitamente encaixado e sobre controle, com as
atividades profissionais a mil, quando a doença de dona Áurea se
agravou. Ela foi internada no Hospital Militar e faleceu no dia 12 de
fevereiro. A notícia deixaria a todos desarvorados. Pedro voltaria a
beber durante o velório, a ponto de perder a cabeça e provocar um
grande bate-boca com o irmão — o que representaria o rompimento
das relações entre eles. E desta vez seria pra valer.
Alice acredita que — sem nenhum exagero — dona Áurea possa
ter morrido de tristeza:
— Sem o companheiro, ela foi progressivamente perdendo o
prazer de viver. O casal tinha uma cumplicidade de vida muito
grande. Ela foi ficando muito triste até parar completamente de
comer.
Dona Áurea foi enterrada ao lado do marido Paulo Leminski, no
jazigo da família, no Cemitério da Água Verde.
A morte da mãe, somada à crise afetiva com Alice, reforçaria
em Leminski a disposição assumida de se manter abstêmio por
algum tempo. A canabis — não incluída por ele na categoria das
drogas — continuaria sendo sua companheira inseparável. Em carta
ao amigo Bonvicino, a 13 de abril de 1978, referia-se a esta nova
empreitada como “o mesmo que domar um touro enfurecido”:
meu fígado deu um stop, parei de beber total: está
fazendo uma semana que não provo álcool, se der não
provo mais. cheguei à conclusão q o álcool até agora
tinha me dado, mas ia começar a me tirar, não quero
acabar como f pessoa com hepatite etílica aos 44 anos.
pound e maiakovski, os maiores poetas do século, não
bebiam.
No dia 24 de julho — mais de três meses depois, portanto — ele
escreveria a outro amigo (por acaso, este biógrafo) uma longa carta
onde voltava a falar da abstinência, agora encarando-a como um
projeto mais amplo, envolvendo vida e obra e que, finalmente,
resultaria na idéia (estética) de delírio e rigor ou visceralidade
tropical e geometria cartesiana:
aqui
multiplico minhas
formas
até o extremo limite de minhas forças
polo raposa poesia livros propaganda
isto é até onde posso ir sem sacrificar o rigor
ando aliás fanático pela idéia de rigor
o que é um contrasenso
fanatismos nada têm de rigorosos
um rigor digamos romântico
apaixonado
de descoberta
invenção
sóbrio
estou na fase mais exata de minha poesia
A casa da Cruz do Pilarzinho se encaminhava para ser
reconhecida como um dos elementos mais autênticos do
underground curitibano. Festas e tertúlias, encontros profissionais e
churrascos se sucediam em ritmo de cavalaria rusticana. Leminski
receberia a visita de Sinval de Itacarambi, seu ex-colega do mosteiro,
que, de passagem pela cidade, acabaria dormindo uma noite no
sótão do casarão. Alice estava viajando — e os dois passaram a noite
conversando sobre as lendas e histórias do mosteiro — e sobre o
avanço de suas respectivas religiosidades. Para Sinval, agora um
jornalista trabalhando como diretor da Rede Globo, este reencontro
serviria para consolidar uma velha amizade:
— Eu reencontrei o Leminski ainda bastante elétrico, orgulhoso
de seus valores e humilde por contradição. Relembramos as boas
coisas do mosteiro e fizemos algumas análises sobre o nosso
universo intelectual. Ele estava mais maduro e senhor dos seus
passos literários. Finalmente, começava a ter o seu talento
reconhecido.
Ao mesmo tempo, o casal Leminski continuaria se relacionando
com outros representantes da intelectualidade local. Mantinham
contatos com os poetas da Cooperativa de Escritores, que reunia
Domingos Pellegrini, Reinoldo Atem, Raimundo Caruso e Hamilton
Farias, reconhecidamente de esquerda e representantes da literatura
politicamente engajada. No primeiro encontro com Reinoldo, num
botequim, Leminski se mostraria irônico e, no mínimo, atrevido, ao
ouvir dele a lista de compositores e músicas preferidas:
— Mas, me diga uma coisa, depois da Segunda Guerra não tem
nada?
Apesar das aparentes animosidades, eles ficariam amigos. Alice
e Leminski estavam lendo A Revolução Russa, de Trotski, quando
Atem e a mulher Sueli foram presos pela polícia política. O motivo
pueril seria uma escolinha para crianças que estaria funcionando
sob a didática de Karl Marx. O assunto parecia uma piada, mas era
grave. Eles ficaram preocupados porque na escola havia outras
crianças, filhos de outros amigos. Foi um momento de tensão na
cidade. Alice lembra-se com carinho do episódio, por estar nele
embutida a revelação de um sentimento de fraternidade ideológica
com os amigos, com os quais esteticamente tinham posições
distintas e mesmo antagônicas. Leminski costumava dizer: “A
realidade objetiva é a prostituta mais barata no mercado das idéias”,
referindo-se às poesias cujas temáticas versavam sobre “bóias-frias
ou metalúrgicos do ABC”. A convivência entre ele e os rapazes da
cooperativa renderia muita polêmica intelectual nos jornais locais.
Atem lembra que era uma questão de marketing entregar antes
para Leminski qualquer livro a ser lançado pela Cooperativa:
— O Polaco certamente iria ler e cair de pau na imprensa,
acusando a obra disso ou aquilo. Assim, o livro tinha alguma chance
de ser comentado.
Então, certo dia, depois que a poeira baixou, Pedro apareceu
na casa do irmão brandindo um exemplar da revista Panorama com
a reportagem sobre o caso da escolinha — e, orgulhoso, mostrava a
foto de Ellinha, uma das crianças arroladas na confusão. Seguiu-se
uma grave divergência entre os irmãos. Leminski considerou um
absurdo — “uma pobreza”, ele dizia — alguém se envaidecer por ter
seu filho apontado como criminoso, ou mesmo envolvido num caso
policial. Ele acusava o irmão de aceitar ser notícia a qualquer preço,
nunca pelas vias normais de produção, como músico ou poeta. Foi
um bate-boca danado. Pedro saiu pela porta para nunca mais voltar.
No final, Miguelzinho, que tudo ouvia, virou-se para os pais e
fulminou:
— Falem a verdade: vocês não são militantes porque se
preocupam comigo e com a Áurea.
OUTRO CAPÍTULO À PARTE
Foi após um período de calmaria e prosperidade, quando a
Cruz do Pilarzinho podia ser comparada a um verdadeiro paraíso,
que um novo e poderoso acontecimento surgiria na vida deles. Nesta
época, com 9 anos, Miguelzinho seguia os passos do pai e fazia aulas
de judô na escola. Uma tarde, depois de sair do banho, ele parou no
meio da cozinha e fez um comentário aparentemente despretensioso:
— Mãe, depois que comecei a treinar judô, ganhei um músculo
novo.
Alice ergueu a cabeça, fechou o livro que estava lendo e,
intrigada, foi conferir o que se tratava. O tal músculo era uma bola
localizada embaixo do braço direito, na altura da axila. Ela tocou
com o dedo para reconhecer através do tato o que esperava que fosse
uma trivial íngua ou, na pior das hipóteses, uma distorção muscular.
Mas Miguelzinho não acusava nenhuma dor. Ela congelou:
— Na verdade eu entrei em pânico, mas tinha que disfarçar do
Miguel. No dia seguinte fomos procurar o dr. Costa, que tinha
tratado da artrite dele e era uma pessoa de confiança. O médico foi
categórico, dizendo que era necessário fazer uma biópsia
urgentemente.
A intervenção aconteceria no Hospital das Clínicas, com
Miguelzinho recebendo anestesia local para a retirada de uma
amostra do tecido que continuava crescendo. Na data marcada para
se conhecer o resultado dos exames, estando Leminski ocupado com
o trabalho na P.A.Z., durante a tarde, Alice foi sozinha ao hospital.
Uma enfermeira lhe informaria que o envelope só deveria ser aberto
na presença do pai e da mãe, juntos. Em transe pelas ruas, ela
voltou para casa imaginando coisas. Mesmo usando de todas as
argumentações, somente após uma semana de tentativas uma nova
entrevista seria marcada. A cada dia, Leminski apresentava uma
desculpa diferente para evitar o encontro com o diagnóstico do filho.
Quando a paciência de Alice se esgotou, ela entrou decidida num táxi
e mandou o motorista seguir para a P.A.Z., na altura do Centro
Cívico. Entrou no prédio e voltou em poucos minutos trazendo
Leminski pelas mãos. Mandou tocar para o hospital.
Minutos depois, eles estavam frente a frente com uma junta
formada por quatro médicos, além do dr. Costa, o encarregado de dar
a notícia. O palco era uma grande mesa de reuniões. O médico
começou explicando que os exames haviam constatado um tumor
maligno, mas que os prognósticos eram bons, pois fora detectado no
início de formação etc. etc... Alguém disse que havia uma chance
remota de o tratamento funcionar etc... O médico explicava, mas
suas palavras não pareciam encontrar o sentido exato da verdade;
eram palavras fugidias, disfarçadas por uma coreografia de intenções
anestésicas. Neste momento, Leminski jogou o corpo para trás e
suspirou:
— Ah! Graças a Deus. Pensei que fosse pior!
Alice virou-se pra ele e murmurou crispada:
— Mas, Paulo, é o pior!
Ela jamais vai esquecer aquele olhar:
— Acho que neste momento o Paulo desejou cortar a minha
cabeça como os imperadores faziam com os mensageiros que traziam
más notícias. Ele parecia não querer entender o que estava
acontecendo. Foi quando eu percebi que teria que cuidar dele
também.
Os médicos explicaram detalhadamente os procedimentos que
deveriam ser adotados nas semanas seguintes, quando seriam
realizados novos exames para definir a origem do câncer, já que o
gânglio inflamado era um sintoma, não um diagnóstico. O casal saiu
do hospital e, por sugestão de Leminski, seguiu andando em direção
à livraria do Chaim, atrás da Universidade do Paraná. Alice
caminhava pensando em como iria encarar o filho, sabendo que ele
estava ansioso por conhecer o resultado dos exames. Como um
elemento agravante, era óbvio que Miguelzinho tinha discernimento
suficiente para entender TUDO o que estava acontecendo. Parados
num sinal de trânsito, Leminski tentaria tranqüilizá-la:
— Fofa, aconteça o que acontecer eu não vou voltar a beber.
Em casa, Alice procurou o tom certo para conversar com o filho
e falar de uma doença séria — sem jamais dar nome à doença — que
eles deveriam tratar com muita dedicação e paciência; só assim
conseguiriam bons resultados. Como um bom menino, o garoto
prometeu se empenhar para manter a situação sob controle,
garantindo fazer a parte dele. Desde então, Miguelzinho deixaria de
subir no pé de laranjeira, a sua brincadeira favorita. Dias depois
Alice escreveria este poema-referência:
Tem palavra
Que não é de dizer
Nem por bem
Nem por mal
Tem palavra
Que não é de comer
Que não dá pra viver
Com ela
Tem palavra
Que não se conta
Nem prum animal
Tem palavra
Louca pra ser dita
Feia bonita
E não se fala
Tem palavra
Pra quem não diz
Pra quem não cala
Pra quem tem palavra
Tem palavra
Que a gente tem
E na hora H
Falta
A relação entre Leminski e Alice entraria novamente num
período conturbado. Motivos não faltavam. Os médicos haviam
decidido fazer uma cirurgia na barriga de Miguelzinho, suspeitando
ser ele portador de um câncer de origem visceral ou, no mínimo,
relacionado com o aparelho digestivo. Nenhum raio X e nenhum
outro exame poderia detectar o ponto exato onde a doença se alojava.
A cirurgia foi marcada para o Hospital das Clínicas, onde Alice
passou a noite acompanhando todos os movimentos. No final, os
médicos encontraram o que procuravam: o distúrbio estava na linfa,
alojado no hilo hepático, tornando impossível a radioterapia. Havia
perigo de lesões no fígado — e o tratamento adequado seria a
quimioterapia. Durante todo este tempo, Leminski manteve-se fora
da área de estresse familiar, fazendo com que todos os seus projetos
profissionais e intelectuais se transformassem numa grande válvula
de escape.
Em fevereiro de 1979, ele deixaria Alice e os problemas em
Curitiba para acompanhar os músicos da banda Blindagem numa
curta temporada no Teatro Opinião, no Rio, com o show Blues do Sul.
Leminski viajou de ônibus com Ivo, que estava com uma nova
namorada, Suca. Nos encontramos em Ipanema, quando ele me
perguntou onde poderia dormir nas próximas três noites, sugerindo
“um canto qualquer para jogar o boneco quando o dia amanhecer”.
Fomos juntos à casa de Márcio Borges, em Santa Teresa, onde ele
ficaria hospedado. (Na época, a produção musical do Clube da
Esquina, de um modo geral, e a de Milton Nascimento, em particular,
estavam no auge do sucesso, e Márcio era um de seus artífices). Os
dois passaram dias conversando sobre tudo, quando tiveram uma boa
interação intelectual.
Na noite de estréia do show “Ivo e a banda Blindagem” — como
estava no cartaz —, o Jornal do Brasil publicou reportagem com o
título “A música do Sul não vem de sandálias havaianas”, com direito
a uma foto do cantor, que declarava estar chegando ao Rio com
“esterco na bota e um sotaque carregado no r”. O Paulo era
apresentado como “um poeta concreto, o principal letrista da banda”.
A sessão maldita da meia-noite se cobriria de sucesso durante as três
noites de espetáculo, para um público fiel e caloroso. No repertório
havia pelo menos oito músicas by Leminski. Entre elas, uma balada
com toque caipira no refrão, entoado por três vozes:
Não posso ver sangue
Fico logo vermelho
Querendo chorar
Não posso ver sangue
Fico logo vermelho
Querendo chupar
Não posso ver
Água, poço, rio, mar
Que eu já começo
A tirar a roupa
Louco pra mergulhar
Não posso ver ninguém
Que eu já quero, que eu já quero
Namorar
(...)
De volta a Curitiba, ele daria um grande impulso na produção
musical, com a criação das músicas “Valeu”, “Mudança de estação” e
“Verdura”, esta composta a partir de uma notícia de jornal. Alice
fazia a leitura em voz alta sobre o tráfico de crianças na Colômbia, e
ele aproveitaria a idéia para concluir a letra em que vinha
trabalhando há dias. Para Miguelzinho, a melhor música do pai, no
entanto era “Valeu” que ele cantava durante o tratamento.
Alice passaria a viver uma crise pessoal com a doença do filho,
quando se reconheceria perdendo uma certa alegria que talvez nunca
pudesse recuperar:
— Eu e o Paulo estávamos diante de algo que exigia muita
estrutura, uma coesão familiar que nos faltava naquele momento.
Havia uma afinidade intelectual, mas agora o intelecto não servia
para nada. Para complicar as coisas, o Miguel apresentaria uma
reação negativa à quimioterapia. Nenhum alimento parava no
estômago dele. Foram meses de angústia e sofrimento.
Foi assim, neste clima dramático e dilacerante, que eu os
reencontrei na Cruz do Pilarzinho, uma certa tarde. Foi uma visita
rápida, marcada pelo desencontro e pela tensão, quando nenhum
deles conseguiria me falar da doença do Miguel Não havia energia
para nada. Minutos depois da minha chegada, quando a situação já
estava insustentável, o Paulo anunciou que precisava dormir, e saiu
da cozinha. Alice perguntou:
— Você quer ver o Miguel?
— Claro que quero... Ele está doente?!
Ela não respondeu e entrou no quarto, desaparecendo por trás
de uma cortina de pano. Eu nem tive tempo de montar uma equação,
mentalmente, pois logo ela retornou fazendo um sinal, afastando a
cortina para o lado. O Miguel estava deitado na cama com um livro
nas mãos — e me dirigiu uma saudação bastante serena e enfática,
quase cerimoniosa na sua simplicidade:
— Oi, Martins.
Sentei-me numa cadeira ao lado e conversamos por alguns
minutos sem que eu percebesse a gravidade de sua doença. Ele
apenas se expressava num tom exageradamente grave e profundo
para alguém de sua idade. Falamos das particularidades de alguns
animais, ele fazendo um pequeno relatório de suas últimas
descobertas. Era evidente que não estava podendo andar. Cheguei a
considerar a volta dos problemas com as articulações, a artrite, mas
nunca imaginei aquele anjo com câncer. Quanto ao astral dominante
na casa, preferi creditá-lo como contingência rotineira das rusgas de
um casal, nada além disso. Mas, por essas e por outras, quando voltei
para a cozinha senti uma vontade incontrolável de sair dali. Minutos
depois eu caminhava pelas ruas do bairro amargando uma sensação
estranha e forte, que só veio se esclarecer dias depois quando conheci
a verdade.
Em meio a toda esta carga emocional, Leminski conseguiria
conceber um novo livro, que chamaria de “Minha classe gosta, logo é
uma bosta”. Era uma novela que nunca seria publicada, visto que ele
próprio, no final, duvidava de suas qualidades. O livro apresenta-se
ainda hoje como um documento emblemático deste período típico de
traumas e desequilíbrios. Neste sentido, era mesmo revelador, pois o
texto mantinha o máximo de distanciamento da realidade, sem fazer
nenhuma menção à vida cotidiana. Apresentava o duelo do
personagem Privada Joke, um outsider engajado na contracultura,
versus Slogan, o sujeito que defendia o socialismo. Estavam criados,
em tese, os dois representantes máximos do pensamento da geração,
que atravessam centenas de páginas se digladiando teoricamente.
Em carta ao amigo Bonvicino, Leminski encontraria razões
técnicas e emocionais para a rejeição da obra:
Talvez o q eu quis fazer com certos meios não seja
possível de fazer com esses meios. Quero fazer ficção.
Mas sem enredo. Romance. Sem personagens.
Realidade. Com idéias apenas. Talvez meu material
(contracultura &/x marxismo) dê ótimos ensaios. Dê
impulso à minha poesia. E me dê motivos para viver.
Mas não dá um romance. Alice disse: “V. quer fazer um
romance q não ousa dizer seu nome...”
Para Alice, este período representou um afastamento
compulsório dos assuntos literários:
— Pela primeira vez na vida, eu que me habituara a ter
orgasmos com os textos do Paulo, não conseguia prestar atenção. Ele
mostrava novas páginas do livro, mas eu não conseguia ler. Ele
estava totalmente envolvido com este trabalho e eu com a situação
do Miguel. Até que um dia...
Miguelzinho morreu em 30 de julho de 1979, logo após
completar 10 anos. Alice ficou sabendo no exato momento em que
olhou pela janela da sala e viu o carro do tio se aproximando. Ela
não queria acreditar, mas naquela hora, 9:30 da manhã, não haveria
outro motivo para ele estar ali, em pleno inverno. Terminando por
fulminá-la de certezas, o velho, um reconhecido durão, desceu do
carro aos prantos. Miguelzinho estava há alguns dias internado na
UTI do Hospital das Clínicas, depois de suportar oito meses de
tratamento — ao longo dos quais foi se enfraquecendo até entrar em
coma. Os últimos tempos tinham sido difíceis para eles. Durante
semanas, Alice conseguira se comunicar com o filho pelo tato, até
que o último vestígio de força desapareceu da pequena mão. Agora,
chegava ao fim um doloroso período de peregrinações por farmácias,
laboratórios e hospitais. Alice acredita que o “encontro” entre
Leminski e o filho se deu apenas nesta reta final:
— O Paulo mudou de atitude e voltou a me olhar nos olhos,
coisa que não fazia há meses. Eu quis me separar, tive um xilique...
Ameaçado, ele ficou no hospital alguns dias cuidando do Miguel,
levando o filho ao banheiro, trocando de roupa etc.... Seu olhar
voltou a mostrar leveza, ele estava conseguindo. Estava sem beber há
quase um ano. Isto aconteceu na última semana de vida do Miguel.
Miguelzinho foi sepultado no jazigo da família, no cemitério da
Água Verde, ao lado dos avós, Paulo e Áurea. O poeta Régis
Bonvicino e a mulher Mônica (ex-mulher de Risério) chegaram um
pouco antes do enterro. Eles tinham sido avisados por Leminski e
imediatamente pegaram um avião em São Paulo. Durante o velório e
mesmo durante o enterro, Leminski permaneceu num imenso
silêncio. Alice identifica este sintoma como uma profunda tristeza:
— Naquele momento eu não me senti sozinha, várias vezes
percebi no Paulo um movimento de cuidar de mim. Era preocupação
mesmo. Mas ficamos o tempo todo silenciosos.
Depois do enterro, algumas pessoas seguiram para a casa do
fotógrafo Dico Kremer, onde mais tarde se uniria a eles o músico
Walter Franco, que estava se apresentando na cidade. A certa altura,
Alice teve sua atenção despertada para a voz de Leminski, pairando
sobre todas as outras, falando animadamente sobre música e
criação. Ela se perguntava: “Como ele pode?...”
É possível que, junto com o filho, Leminski e Alice estivessem
enterrando neste dia todas as esperanças de uma vida futura para
eles. No momento, o que era certo é que havia muitas feridas a serem
cicatrizadas — e eles deveriam tratar disso juntos e, de preferência,
carinhosamente. Então, Régis e Mônica os convidaram a seguir com
eles e passar uns dias em São Paulo. Seria uma forma de se afastar
da pressão à qual certamente estariam expostos em Curitiba. Eles
aceitaram. Deixaram um bilhete na porta da casa do Pilarzinho,
avisando que estariam ausentes, e pegaram um avião no mesmo dia.
A curta temporada na Paulicéia não traria boas conseqüências
para a vida do casal. Alice consideraria a viagem inoportuna:
— A Mônica estava grávida e, com toda razão, cuidava do filho
que ia nascer. O Paulo e o Régis falavam como verdadeiros deuses
sobre poesia, idéias, literatura, enfim, tudo que não fosse relacionado
com a vida imediata. Eu era a única a estar vivendo uma morte.
Depois de uma semana estávamos de volta a Curitiba, onde
procuramos nos reconstruir. Afinal, havia a Áurea, por quem
tínhamos que viver, e a poesia, que dava algum sentido às nossas
vidas.
Como sempre acontecia nestas horas, Leminski adotaria um
comportamento bastante retraído, esquivo mesmo, quando o assunto
era a morte do filho. Não gostava de falar de “coisas que dizem
respeito à natureza”. Sua manifestação mais efusiva ainda era a
poesia. Nestes dias, escreveria um poema chamado “Parada
cardíaca”:
Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure
vem de dentro
Vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito
sentir é muito lento
Em carta de 17 de agosto, ele seria lacônico também com
Bonvicino:
— Mergulhamos Alice e eu no trabalho. Alice prepara livro com
material deixado por Miguel, textos, desenhos, poeminhas, fotos, a
sair ano q vem. É em signos que se fica, o resto não passa de
moldura.
Dois meses depois, escrevendo para Risério, ele faria referência
a uma entidade do candomblé:
— Aqui a barra pesada (miguel agora é erê), mas a gente vai
levando trabalho e saúde. Estamos trabalhando muito.
E, finalmente, em carta escrita no dia 1º de outubro para este
biógrafo, Leminski já não falava mais da perda e apenas fazia
considerações sobre o futuro:
Gil e Caetano levaram (enfim!) fitas minhas. Caetano
declarou amor eterno a “Verdura” que não dá pra sair
neste lp dele “Cinema transcendental”, já gravado, mas
ele vai cantar “Verdura” no show “Cinema” e grava
depois. Grafipar pode editar meus textos de humor, o
volume: HERRAR É UMANO. Gil convidou a gente a
passar dezembro na casa dele na Bahia. Tamos
guardando $ para.
Logo depois, quando a árvore favorita de Miguelzinho, a
laranjeira, tombou de velha ao lado da casa, Leminski faria um
poema curto em homenagem ao totem:
árvore caída
vira amarela
última vez na vida
Antes do final do ano, Caetano e Gil voltariam a se apresentar
em Curitiba, em espetáculos diferentes, quando se mostraram
bastante solidários com a dor dos amigos. Na noite de estréia no
Teatro Guaíra, Gil os homenagearia em cena aberta cantando “Aqui e
Agora”, a música preferida de Miguelzinho. Ele disse apenas: “Para a
Alice e ela sabe por quê”. Para Leminski, Gil cantou “Logunedé” — e
todos aplaudiram freneticamente. Era a consagração do poeta em
sua própria casa. Dias depois, Leminski escreveria a este biógrafo
dizendo:
mano
gil dedicou uma música todo dia para mim
junto com um puta comercial (me chamou de “poeta
realce”,
“uma das inteligências mais faiscantes do país”)
isso no guairão cheio
já caetano foi mais sóbrio
ao cantar “cajá” — pedido meu —
apenas disse que eu era “o grande paulo leminski”
tudo quer dizer: ego feito por milênios.
A viagem a Salvador, depois de superada a etapa da poupança,
acabou acontecendo em janeiro de 1980. Esta seria uma das poucas
ocasiões em que Leminski viajaria de avião (como no dia do enterro
de Miguelzinho), agora ao lado de Alice e Áurea, então com 8 anos.
Um dos fatores decisivos para a escolha do transporte, sempre que
uma viagem o obrigava a sair de Curitiba, era o pânico das alturas.
Leminski dizia que “aviões não fazem sentido, logo não posso
acreditar neles, apesar de vê-los voar...”. Mas o caminho até a Bahia
era muito longo para ser encarado pelo chão, de ônibus.
Ficaram hospedados no apartamento do poeta Erthos Albino,
na Pituba. Neste primeiro dia, Leminski não sairia de casa, enquanto
Alice e Áurea fariam uma rápida incursão pela cidade. No dia
seguinte, sol brilhando, praia garantida, eles tomaram o caminho da
Boca do Rio, seguindo para o point da constelação baiana. Estavam
alegremente reunidos Caetano Veloso, Moraes, Paulinho Boca de
Cantor, Pepeu, Baby Consuelo etc.... Quis o destino que este verão
fosse efervescente em Salvador, um congraçamento diário para vinte
talheres. Alice recorda-se de que Leminski foi recebido como ídolo
pelo grupo:
— Quando Caetano o apresentou, todos fizeram uma festa.
Falavam dele como um grande poeta e músico, um tratamento que
ele nunca havia recebido. A nossa alegria somente seria ofuscada
pela dor que estávamos sentindo pela perda do Miguel.
Leminski reencontraria Moraes Moreira, com quem
desenvolveria parceria em pelo menos uma dúzia de músicas
consolidadas e outras tantas interrompidas. Foi convidado e aceitou
se apresentar na abertura do show de Jorge Mautner, no Teatro Vila
Velha, quando cantou músicas do seu repertório. Tudo sem beber
uma única gota de álcool. Em nenhum momento ele se mostraria
deprimido ou mesmo frustrado por não estar bebendo. Eles
chegavam pela manhã na praia e saíam para almoçar no final da
tarde, sempre debaixo de um sol escaldante. Visitaram o terreiro de
candomblé da ialorixá Stella de Oxóssi, que cantaria para eles “O
Canto de Oxóssi”, na língua nagô. Foram a Santo Amaro da
Purificação, a convite de Caetano, conhecer a casa dos pais dele,
onde se encontrariam com Maria Bethânia e dona Canô. Durante
todo o tempo, Leminski mostrava-se extasiado com a descoberta
deste novo Brasil, com aroma de dendê.
Em Salvador, eles reencontrariam Waly Salomão numa festa de
Largo, no Rio Vermelho, tentando convencê-los a ficar para o
carnaval. O episódio é engraçado, pois sentados num bar,
contemplando a folia, Waly contaria em detalhes a fantástica história
da turista francesa que quase foi estuprada durante uma festa de
rua, em meio a uma multidão. O marido em cima do trio elétrico
assistindo à mulher cercada por sete negões, sem nada poder fazer...
A turista charmosa entrou em pânico, mas o barulho ensurdecedor
da música, além do calor e o aroma de cerveja no ar, transformava
tudo em agonia... O homem, aos berros, pedia ajuda à distância, mas
ninguém prestava a menor atenção. E os negões ao redor da moça...
Leminski não deixaria Waly terminar a história — e, dirigindo-se a
Alice, falou sério:
— Benzinho, acho que não vamos ficar para o reinado de
Momo, vamos embora mais cedo.
Outro episódio divertido aconteceria durante uma madrugada,
quando eles voltavam para a Pituba num ônibus lotado de homens.
Todos negões. Alice vestia um short de tamanho normal, mas
suficiente para chamar a atenção dos marmanjos. Leminski, roxo de
constrangimento, não sabia onde colocar as mãos:
— Para descer do ônibus tivemos que passar por uma
passarela humana e os negões abriram a ala com muita malícia.
Quando saltamos, um deles colocou a cabeça pra fora da janela e
gritou:
— Vai se tratar bem hoje, hein, Bigode?
No dia 22 de janeiro, os amigos da Boca do Rio prepararam
uma grande festa pelo aniversário de Alice, que foi abraçada e
beijada à moda baiana, com direito a fortes amassos. Leminski
morria de ciúmes mas se controlava, sabendo que, afinal, estavam
ali para isso, para participar do jogo lúdico da vida. A pequena Áurea
encontraria os filhos de Paulinho Boca e Moraes e passaria o tempo
todo entre as crianças, não muito longe dali. Assim chegava ao fim
um agradável período de férias para eles.
De volta a Curitiba, Leminski era outra pessoa. Muitas dúvidas
tinham desaparecido dentro dele, que agora mostrava-se mais seguro
e com o ego aparentemente restaurado. Além de ser um artista
reconhecido nacionalmente, ele estava completando dois anos sem
beber, o que era outro motivo de júbilo. Atendendo a pedidos,
trabalharia na tradução para o espanhol da primeira e última
páginas do Catatau — enviando-as posteriormente ao poeta Julián
Ríos, no México. Dedi cava-se a leitura de biografias (“bilac, antero
de quental, pessoa, vitor hugo”, diria em carta a Bonvicino) e
aproveitava a boa fase para se dedicar a um novo projeto, desta vez
embalado pelo entusiasmo dos fotógrafos da ZAP, um estúdio (sendo
P.A.Z. ao contrário) criado para prestar serviços de publicidade. O
sócio de Dico Kremer, Márcio Santos, teve a idéia e eles prepararam
uma edição quase artesanal dos poemas, um grande livro intitulado
“Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e era quase”. Na
verdade, o projeto arrastava-se há mais de um ano em trâmites de
produção, ameaçando se transformar numa nova lenda, desta vez
sobre o “livro de poemas do Leminski”. No dia 9 de maio de 1980, o
cartunista Dante Mendonça publicaria n’O Estado do Paraná, uma
entrevista com o título:
Vai sair outro livro do Leminski. Olhai a prova!
Na ilustração, o facsímile da nota fiscal emitida pela Grafipar,
para 1.000 exemplares, especificando um livro de 80 páginas,
tamanho de revista, papel importado, capa dura e plastificada. Na
entrevista a Dante, concedida na época de governadores e prefeitos
biônicos, Leminski explicava a natureza da obra:
— São oitenta poemas, uma seleta de minha produção de 63
para cá, feita por um punhado de amigos. Então, não existe nenhum
poema biônico; os poemas não estão ali por um arbítrio meu, mas
sim por uma eleição do gosto de inúmeras pessoas, entre elas
Augusto de Campos, Alice Ruiz, Caetano, Gil, enfim, os poetas que
fazem parte da minha ecologia.
Uma das dificuldades operacionais da edição era que o livro
tinha sido projetado em foto-traço, ou seja, fotografando-se e
ampliando-se as letras da máquina de escrever. O resultado gráfico
era vistoso e se traduzia num produto híbrido, bastante limpo em
sua cor dominante branco, mas “sujo” na medida em que fazia as
letras “estourarem” na ampliação. Na abertura, nenhuma dedicatória
especial, apenas um agradecimento em forma de poema:
grande angular para a zap
as cidades do ocidente
nas planícies
na beira mar
do lado dos rios
feras abatidas a tiro
durante a noite
de dia
um motor mantém todas
vivas e acesas LUCROS
à noite
fantasmas das coisas não ditas
sombras das coisas não feitas
vêm
pé ante pé
mexer em seus sonhos
as cidades do ocidente
gritam
gritam
demônios loucos
por toda a madrugada
No mesmo empenho editorial, a ZAP produziria o primeiro livro
de Alice, Navalhanaliga, graças ao esforço de Márcio Santos, que
tomaria para si a tarefa da diagramação, foto da capa e
acompanhamento gráfico. Era a reunião de dez anos de produção
poética de Alice, que escreveria a dedicatória:
para Miguel Angelo Leminski
não era ainda pessoa
e já sonhava
não é mais pessoa
e ainda sonha
Ainda em 1980, aproveitando algumas sobras do Não fosse
isso..., Leminski lançaria um novo livro de poesia. Um elenco de 32
textos que tinham como identidade, segundo seu próprio conceito,
“uma natureza voluntariosa, quase uma poesia retumbante”, que ele
chamaria de Polonaises. Retamozo desenharia a capa a partir de um
manuscrito original de Leminski em polonês, borrifado com gotas de
sangue (em vermelho) como um elemento dramático. Na penúltima
capa, ao lado da ficha técnica — onde se percebe que a produção
acontecera dentro da agência de publicidade Eskala —, uma foto
mostra o autor encostado diante de um painel com uma montagem
de manchetes do jornal El Dia, de Managuá, em contagem regressiva
para a queda do ditador Somoza. O cenário era a casa do jornalista
Raimundo Caruso, um dos poetas da Cooperativa, que acabava de
chegar do México, onde estivera acompanhando os acontecimentos
políticos na Nicarágua. Polonaises seria dedicado ao professor Bóris
Schnaiderman e apresentaria em suas páginas o poema “Esplêndido
Corcel”, com o qual Leminski tentara, doze anos antes, impressionar
Alice no primeiro encontro. Mas tinha um outro poema, sem título,
aparentemente à deriva nas páginas:
um poema
que não se entende
é digno de nota
a dignidade suprema
de um navio
perdendo a rota
Foi no outono de 1980, durante uma mudança de estação, que
Leminski voltaria a beber. No início timidamente e, logo depois, de
forma vertiginosa. Tudo começou com algumas rodadas de chope
num restaurante, em companhia de amigos. Ele ergueu o copo
dizendo: “Depois de dois anos sem beber, não vai ser uns goles de
chope que vai me comprometer.” Alice, que também não bebia há
vários meses, por solidariedade, lembra-se que o efeito do álcool em
sua cabeça foi devastador. Esta noite eles conversaram sobre um
tema que Leminski e Áurea vinham insistindo nas últimas semanas.
Eles achavam que Alice deveria ter outro filho. Ela, de imediato,
rechaçaria a idéia argumentando que, para isso, seria necessário
uma mãe inteira, saudável — e ela não estava se sentindo assim.
Áurea rebatia prometendo ajudar nas tarefas domésticas,
argumentando que tudo funcionaria melhor com uma criança em
casa. Foram algumas semanas de conversa, até que...
Alice ficaria grávida no dia 6 de junho de 1980 (ela memorizou
a data por conta de uma transa sexual inusitada entre eles), mesmo
contra todas as evidências. A principal, era que ela não tomava pílula
há vários anos, sem nunca ter engravidado. Tivera um problema no
ovário e, desde então, se acreditava virtualmente estéril. Por tudo
isso, nas semanas seguintes, ela diria que a criança que estava vindo
fazia questão de chegar. Ao contrário das vezes anteriores, quando se
sentiu deprimida durante a gravidez, agora ela havia decidido que
nada abalaria o seu humor.
Em agosto de 1980, eu voltaria à casa da Cruz do Pilarzinho,
após um ano de ausência. Foi, como sempre, uma visita de amigos,
sem nenhum protocolo. Eu estava apresentando minha namorada
carioca, Naná, que foi recebida por Leminski com uma única pergunta,
dirigida surpreendentemente para mim:
— É ela? — perguntou em voz alta, querendo saber se devia
considerar um namoro sério, algo que pudesse merecer uma certa
solenidade.
Diante da confirmação, virou-se para Naná e fez o convite:
— Então, comadre, vamos tomar uma? Vai cerveja ou conhaque?
Leminski e Naná, que era professora universitária e ex-militante
do PC do B, conversaram muito sobre o poeta sergipano Mário Jorge,
falecido aos 25 anos, que ela conhecera em Aracaju. (M) morreu num
acidente de carro, em 1973, depois de levar uma vida intensa e
exagerada com sua verve de poeta maldito e contracultural.) O casal,
por sua vez, faria um rico relato da viagem a Salvador, no início do
ano, e da relação de amizade que vinham mantendo com os músicos
baianos. O frio era curitibana no Pilarzinho: 10 graus.
Depois do almoço, Ivo apareceria com a mulher Suca, a filha
Angela — com apenas dois meses — e o violão. Passamos a tarde
tomando cerveja e cantando as novas parcerias da dupla. Alice
entrava no terceiro mês de gravidez. O fogão à lenha deixava escapar
labaredas pelas aberturas da chapa, onde fumegava um panela de
pinhão, que seria servido acompanhado de uma porção de sal. “Sal e
pimenta”, coisa de polaco, ele diria. Ficamos sentados na escada da
varanda, onde fizemos a foto mostrando um bom pedaço da casa de
madeira. (A mesma paisagem captada pelo filme Vida e sangue de
polaco, de Sylvio Back, onde Leminski aparece dizendo preferir a
expressão polaco ao invés de polonês.) Enquanto conversávamos, ele
repetiria um gesto que era a sua marca registrada, em âmbito
doméstico: quando ouvia uma notícia que considerava espetacular, ou
apenas notável, não respondia diretamente ao interlocutor, mas
levantava-se e desaparecia pelo interior da casa, aos gritos:
— Alice... Alice... Escute o que o Martins está dizendo...
Estas manifestações davam densidade e espessura ao seu
cotidiano. Havia vibração no menor gesto, tudo lhe era magistral.
Assim, por força destes próprios desígnios, planejamos promover o
lançamento de Não fosse isso... e Polonaises no Rio de Janeiro. Como
ponto de partida, argumentei que o livreiro Rui, da Muro, em Ipanema,
era meu amigo e não seria difícil agendar uma data para o evento.
Eles acharam a idéia maravilhosa e vibraram com a perspectiva de
poder voltar à Guanabara, agora em outras circunstâncias. Nos
despedimos com um “até breve”.
O ano de 1981 traria uma seqüência de boas surpresas na
casa da Cruz do Pilarzinho, onde a harmonia parecia estar de volta.
A primeira das conquistas foi a compra de um telefone, 223-7866
(sem dúvida, um bom milhar), com o qual eles iriam virtualmente
encurtar as distâncias e desacelerar a prática de escrever cartas para
os amigos. Em compensação, passariam a gastar uma pequena
fortuna mensal com ligações telefônicas. Ainda assim, a boa notícia
chegaria mesmo num táxi, no dia 4 de março. O amigo Retamozo e
sua mulher Gorda (que na verdade era magra) chegariam trazendo o
disco Outras palavras, de Caetano, onde estava gravada a música
“Verdura”, de Paulo Leminski (tecnicamente, por ter criado a
harmonia, Ivo deveria constar como parceiro):
De repente me lembro do verde
A cor verde
A mais verde que existe
A cor mais alegre
A cor mais triste
O verde que vestes
O verde que vestistes
O dia em que me viu
O dia que me vistes
De repente vendi meu filho
Pruma família americana
Eles têm carro
Eles têm grana
Eles têm casa
E a grama é bacana
Só assim eles podem voltar
E pegar o sol em Copacabana
E pegar o sol em Copacabana...
Foi uma festa. Eles tocariam a faixa dezenas de vezes, sempre
tecendo os melhores comentários sobre o disco e a gravação — que
neste mesmo ano seria escolhida como tema musical do filme O rei
da vela, de Zé Celso e Noilton Nunes, que também apareceram no
Pilarzinho. Enquanto ouviam a música repetidas vezes, a capa do LP
circulava de mão em mão, todos querendo conhecer detalhes da
gravação. Neste dia, em meio a tantas comemorações, Alice sentiria
as primeiras contrações.
7 de março de 1981. Depois de uma gravidez tranqüila e
verdadeiramente diferenciada, nascia Estrela Ruiz Leminski, signo de
Peixes. Se fosse homem seria Leon, em homenagem a Trotski, já que
Leminski estava envolvido nestes dias com a organização de
esquerda Libelu — Liberdade e Luta. Estrela veio ao mundo de
manhã cedo, junto com os primeiros raios de sol. Desta vez, o pai
não apenas estava presente na maternidade como ajudaria a cortar o
cordão umbilical. É bem verdade que um dia antes ele tinha tomado
um porre daqueles de perder o rumo de casa. (Sabe-se que estava
com uma namorada, a dona de um bar.) Durante a madrugada,
quando finalmente apareceu em casa, ele e Alice tiveram uma áspera
discussão, que parece ter provocado as contrações. Eles saíram às
pressas, no meio da noite, e chegaram ao hospital às 6 horas da
manhã, com Alice segurando a barriga com uma das mãos. Estrela
nasceu às 6:25 — e quando isso aconteceu, Leminski estava ao lado,
com um relógio na mão, colhendo informações para o mapa astral do
bebê. Ele foi o primeiro a exclamar:
— É uma menina!
Quando tudo terminou, tinha as marcas das unhas e do relógio
na palma da mão. O médico deu o nó no cordão umbilical e passou-
lhe uma tesoura, pedindo para ele cortar. A enfermeira tirou a
criança do colo da mãe e entregou-a a ele, que desajeitadamente a
embalou por alguns minutos. Em seguida, sairia do quarto deixando
atrás de si um enorme ponto de interrogação, até retornar minutos
depois com uma cesta de frutas para Alice. Chegou dizendo que
sentira vontade de ajoelhar-se diante de cada mulher que encontrara
na rua. Estava profundamente emocionado com o ato da
maternidade. Estes acontecimentos teriam, no futuro, uma forte
influência em seu comportamento, ajudando a quebrar alguns mitos
e remover algumas barreiras. Ele tinha vivido uma experiência
inédita, bastante revolucionária, que poderia, finalmente,
transformá-lo num grande pai. Ou algo assim. Em carta a Bonvicino,
um mês depois, Leminski deixaria escapar um sentimento
igualmente inédito em seus textos:
tem acontecido coisas, maravilhosas, coisas
fundamentalmente maravilhosas, coisa linda é essa
estrela, doce de leite e coco de amor.
Antes do final do ano, juntando os direitos autorais da música
gravada por Caetano e o dinheiro de um prêmio literário que Alice
ganhara com Navalhanaliga, eles comprariam um carro de segunda
mão, um fusquinha verde, ano 70, que seria batizado de Verdura.
Leminski jamais aprenderia a dirigir, razão pela qual sempre dizia
que o carro não era dele e sim de Alice. Na verdade, mesmo viajando
de carona, ele tinha medo do trânsito e freqüentemente entrava em
pânico, sentindo-se à mercê dos acontecimentos. O ideal seria que o
tempo e o espaço, entre um ponto e outro do cotidiano, fosse sempre
mínimo.
Nesta época, Leminski e Alice tiveram uma conversa profunda
seguida de uma decisão que mudaria o rumo de suas vidas. Ou a
rota. Baseados num leque de argumentos, inclusive a própria
infidelidade dele, até então mantida na obscuridade das
conveniências, eles decidiram “abrir” o casamento. Na verdade, sabe-
se que Leminski vinha mantendo alguns “casos” amorosos, com
mulheres conhecidas ou não. Uma delas, a loura Mara, era viúva,
jovem e proprietária do bar Kappelle, um belo ambiente decorado
como uma pequena igreja — com altar e púlpito — bastante
freqüentado pelos rapazes no final dos anos 70. Como um bom
seminarista, Leminski dizia sentir-se “em casa, tomando o vinho do
padre na sacristia”. O estúdio de fotografia de Jack Pires e Retamozo,
e a redação do jornal Scaps, enquanto existiu, ficavam no prédio ao
lado, na rua Barão do Cerro Azul. Durante algumas madrugadas
Leminski foi visto como o último freguês a sair do Kappelle, quase
sempre acompanhado. Mara confirma:
— Não vou negar este fato. Mas eu não esperava nada da
relação com ele, apenas amizade. Ele ficava até o final da noite,
quando eu fechava o caixa e saíamos pela madrugada. Era divertido
e bem melhor que a solidão.
Alguns amigos contabilizaram pelo menos quatro “namoradas”
para ele num período de dois anos. Tinha inclusive uma moça
reconhecidamente lésbica e uma colega da agência Múltipla, onde ele
agora trabalhava como redator. Alice, por sua vez, conheceria um
rapaz, um caso definido por ela como “superficial”, mas
suficientemente poderoso para causar o efeito de uma bomba na vida
conjugai. Para complicar a situação, eles tiveram um romance duplo
certa noite, quando dois amigos ficaram para dormir. Alice deitou-se
com o rapaz num dos quartos e Leminski ficaria com a moça em
outro. A experiência seria amarga para todos, reconhece Alice:
— Foi uma tolice o que fizemos. Nenhum de nós tinha o perfil
para esta situação. Nos agredimos e sofremos muito com estes casos
mal resolvidos.
O que se seguiu foi um período de desarranjo conjugai, durante
o qual Leminski expressaria seu ciúme de forma estranha e
totalmente nova. Ele passaria a pressionar Alice diariamente para
conhecer detalhes de sua transa com o namorado — ou qualquer
outro caso que ela pudesse ter. Ele queria conhecer tudo, inclusive
as passagens mais íntimas e espetaculares. Para confundir ainda
mais as emoções, ele mesmo passaria a contar detalhes de seus
casos extraconjugais. Era uma forma curiosa de paranóia ou
fetichismo, uma manifestação embalada e resguardada por suas
próprias defesas e temores.
O lançamento de Não fosse isso... e Polonaises em terras
cariocas seria finalmente marcado para o começo de agosto de 1981,
na livraria Muro. Programou-se um lançamento triplo, uma vez que
Alice estaria autografando a tradução de 10 haikais de mulheres
japonesas, uma edição artesanal e sofisticada da Noa Noa, de Santa
Catarina. Eles chegaram carregando caixas de livros e seguiram para
o nosso apartamento, em Ipanema, onde Naná preparara um quarto
de hóspede. (Na verdade, tivemos que deixar as crianças na casa de
amigos para recebê-los). Áurea ajudava a cuidar de Estrela, que com
quatro meses fazia a sua primeira viagem nesta galáxia. Eles tinham
uma entrevista agendada para o mesmo dia com a repórter Cora
Rónai, do Jornal do Brasil, que apareceria na hora combinada: onze
da manhã. Eles conversaram animadamente sobre assuntos
referentes a poesia e literatura — e, sendo ela filha do imortal Paulo
Rónai, tudo ficaria mais fácil. A reportagem seria publicada no dia
seguinte no “Caderno B” com o título “Paulo e Alice, o poema como
inutensílio”, onde ele refletia:
— A poesia não é literatura. Ela está muito mais próxima das
artes plásticas e da música do que da ficção, embora seja feita com
palavras. A diferença é que na poesia as palavras têm uma função
diferente da que têm na prosa.
A reportagem, ilustrada com uma foto do casal, ajudaria a
divulgar a promoção — da qual eu havia sido investido de produtor —,
e a noite de autógrafos no dia seguinte seria um sucesso. Ainda bem!
Lá estavam os amigos Caetano Veloso, Moraes Moreira, Julio Barroso
e a cantora Alice Pink Punk, do grupo Gang 90 e Absurdetes. Uma
revista de Curitiba mandou uma equipe registrar o evento e quem
apareceu foi o fotógrafo Julio Covello — que aproveitaria para rever
seu velho amigo Waly Salomão, que chegou de repente com o artista
Luciano Figueiredo. A comunidade curitibana apareceria em peso para
prestigiar a festa do Polaco. (Menos Ivan e Neiva, que agora viviam
outra vida, morando em Copacabana com o pequeno Luciano.) Carlos
João conversava animadamente com velhos companheiros e tentava
surpreender o fotógrafo Zeka Araújo, lembrando os “bons tempos” do
Correio da Manhã. Presentes no local o rádio e a televisão... Na época
trabalhando como editor da TV Bandeirantes, no Rio, consegui
garantir a presença de uma equipe de jornalismo — que colocaria a
reportagem no ar no dia seguinte, em rede nacional. Uma fita com
músicas by Leminski, inclusive “Verdura”, “Valeu” e todas as
gravadas em estúdio pela banda Blindagem, tocava sem parar. Como
o repertório não era suficiente para completar o rolo, os DJs Laurinho e
Willie incluíram músicas de John Lennon, Elvis e Dylan, bem ao gosto
do autor. No final, os Leminski venderam uma quantidade suficiente
de livros para garantir a viagem de volta, comprar algumas novidades
e tomar várias cervejas.
O trabalho na agência Múltipla, de onde Leminski vinha
tirando “o leite das crianças”, reeditava a mesma equipe de anos
anteriores na P.A.Z., com Solda e Rogério Dias formando uma dupla
impagável, conhecida na cidade como o Duo Deno; com a chegada de
Leminski, a formação passaria para um trio, o Seqüelas do
Alcoolismo. Eles faziam poesias a quatro mãos (ver Apêndice 9) e
compunham músicas engraçadas que cantavam informalmente em
bares e casas de amigos. Como o próprio nome sugere, todos bebiam
muito. Costumavam derrubar uma garrafa de vodca durante a tarde,
no bar da esquina, onde efetivamente trabalhavam. Solda lembra que
tudo dava certo, apesar dos conflitos com a direção da agência:
— A gente voltava no final do expediente para passar a limpo e
encaminhar a arte para ser feita no dia seguinte. O caos era apenas
aparente. É verdade também que ninguém nos pagava para que
trabalhássemos no botequim, mas era assim que a coisa funcionava.
No repertório do Seqüelas, despontava uma paródia de samba-
enredo curitibano criado para animar as tardes no trabalho. A letra
era de Leminski, com ajuda de Solda:
Foi na Antiga Grécia
Que nasceu a Filosofia
Mas em Curitiba
A coitada entrou numa fria
Pois na Faculdade de Filosofia
Foi submetida
A um corte epistemológico
Que a fez cair na vida
(onde foi?)
Foi na Antiga Grécia...
A brincadeira com música acabaria tornando-se séria depois
que a banda Blindagem gravou um LP com sete músicas dele, a
maioria em parceria com Ivo, que aparece como vocalista em todas
as faixas. O disco fora gravado em São Paulo, pelo selo Continental,
com Almir Sater na viola de apoio. Em seguida, Paulinho Boca de
Cantor, Moraes Moreira e o conjunto a A Cor do Som — formado por
remanescentes dos Novos Baianos — fariam o mesmo. A Cor do Som
daria nome ao disco gravado em 1981: Mudança de estação. Os
contatos foram feitos através de Helinho Pimentel, agora morando no
Rio e trabalhando como empresário do grupo.
Mas seria mesmo o resultado da parceria com Moraes Moreira
que deixaria tudo em pratos limpos para ele. A música “Promessas
demais” seria escolhida como tema de abertura da novela Paraíso, da
Rede Globo. Ele havia criado a letra no ônibus, durante uma viagem
para o Rio. Ao mostrá-la para o parceiro durante o ensaio, Moraes
resolveria — com a ajuda do guitarrista Zeca Barreto — a parte
melódica. Agora, ele podia ouvir a música diariamente, a todo
volume, na voz de Ney Matogrosso:
Não precisava não
Acenar
Tanta felicidade
O rio que vai me levar
Não passa na tua cidade
(...)
Sobre a sensação de ouvir sua própria canção tocando na
televisão, ilustrada por um trabalho gráfico de Hans Donner,
Leminski diria:
— A coisa mais parecida é o orgasmo.
A parceria com Moraes renderia outras três canções no LP
Coisa acesa, de 1982. Ao todo, foram 12 músicas. O grupo MPB4
escolheria “Baile no meu coração”, que seria gravada também em
Portugal pelo conjunto Os Trovantes. Por conta do trabalho e da
amizade que nascia entre eles, Leminski e Alice voltariam muitas
vezes ao Rio de Janeiro, agora hospedando-se na casa de Moraes, no
Horto Florestal. Eles seriam compadres “a vera”, desde que Moraes e
Marília foram escolhidos como padrinhos de Estrela. Num desses
encontros, e diante da perspectiva agradável de passar uma tarde
chuvosa compondo e bebericando, os dois decidiram tomar um LSD.
Não discutiram muito com o destino e mandaram as pastilhas pra
dentro. Moraes lembra-se de que estava na expectativa, esperando
algo acontecer, quando Leminski levantou-se bruscamente e
denunciou:
— Porra, este ácido é fajuto! Mais de meia hora e nenhuma
rima!
Nesta temporada carioca, Leminski conheceria o compositor
Antonio Cícero — irmão da cantora Marina — que, como ele, era um
letrista de música popular com acentuada formação erudita. Cícero
seria um interlocutor à altura para questões de “poesia musicada”,
uma de suas especialidades:
— Nossas conversas foram concentradas neste universo poético
da MPB. Troquei idéias com Leminski sobre este específico segmento
lítero-musical, que ele chamava de “neoconcreto”.
Em seguida, Ângela Maria gravaria “Sempre Angela”, escrita
especialmente para ela (em parceria com Fred Góes, poeta carioca), e
usaria a faixa para dar nome ao disco. Leminski reagiria com
entusiasmo ao saber da novidade através de um telefonema de
Moraes:
— É a glória!
Quando estas coisas, longamente esperadas, começaram a
acontecer, a conseqüência imediata seria uma trégua nas
dificuldades financeiras. Eles conseguiam finalmente equilibrar as
finanças ganhando um bom dinheiro com direitos autorais e ainda
fazendo trabalhos publicitários esporádicos. Em janeiro de 1982, a
revista Veja publicaria uma ampla reportagem com o título “Um
Brilhante Maldito”, destacando que “o agressivo Leminski sai do
anonimato literário e invade as rádios com boas canções”. Na
legenda da foto, o bigode em primeiro plano, uma linha e dois
slogans: “Leminski: arredio a badalações, autodefine-se como ‘uma
besta dos pinheirais’.” Na outra foto, na página seguinte, ele aparece
tocando violão sentado nas escadas da casa do Pilarzinho. Em meio
a uma série de elogios, uma constatação da revista: “Agora, com
duas canções entre as mais executadas nas rádios FM do país —
‘Mudança de estação’, com a Cor do Som e ‘Chapéu de marinheiro’,
com o grupo Blindagem —, ele conquista uma popularidade tão justa
quanto avessa à sua personalidade.”
Para consolidar a vivência com o mundo da música, Leminski
conheceria Itamar Assumpção, “o nego Dito”, um legítimo
representante do lado marginal da MPB. Eles tinham sido
apresentados meses antes num show de Arrigo Barnabé, em
Curitiba. Deste encontro nasceria uma sólida amizade e algumas
parcerias. Eles ficaram três noites conversando, na Cruz do
Pilarzinho, fumando verdadeiras toras e bebendo todas — mas
sempre se afinando em idéias musicais e outras linguagens
pertinentes. Num certo sentido, considerando o pendor marginal de
cada um, eles eram “farinha do mesmo saco”. Itamar ganharia um
exemplar do Catatau e, como o Descartes da história, ficaria a ver
navios. De volta a São Paulo, aproveitaria a viagem de ônibus para
ler os poemas que ganhara e considerava mais “digestivos”. Sua
primeira parceria musical seria com Alice — para uma música
chamada “Navalhanaliga”. Com Leminski, ele faria “Vamos nessa”,
gravada no disco Sampa Midnight, no ano seguinte.
Em meados de 1982, ficaria pronto o livro de poemas de
Miguelzinho, um trabalho das Edições Piratas, de Recife, que Alice
produziu desde o início. Kátia Bento, a poeta que se tornara amiga
deles na época do Jornal do Escritor, no Rio, trabalharia na
composição artesanal dos onze poemas. Um deles:
Sou um gatão
como um tigrão
Sou um felino
como um menino
Na foto da capa, trabalhada em sépia e assinada por Dico
Kremer, Miguelzinho aparece como sempre viveu: andando descalço,
com o tênis na mão, em meio às barracas de um acampamento.
Parece história, mas tudo aconteceu num único dia. Eu estava
em Curitiba em companhia de um amigo carioca que manifestara o
desejo de conhecer Paulo Leminski, além dos livros e da fama. Era o
jornalista Cosme Coelho, meu colega na TV Globo, para o qual eu
agendara, informalmente, uma visita a Cruz do Pilarzinho. Era como
que, ao apresentar de viva voz meus amigos poetas, só então eu
pudesse dar por encerrado o relato vivo das histórias curitibanos,
temas de muitas conversas de botequim. Quando chegamos, no início
da noite, encontramos Alice afivelando as malas, se preparando para
passar três dias em São Paulo. Diante desta perspectiva, o Paulo não
conseguia disfarçar a excitação pela nossa entrada em cena, o que lhe
garantia um motorista para o Verdura e, como conseqüência, uma
noitada movimentada e festiva pela cidade:
— Fofa, podemos te levar na rodoviária, o Martins sabe dirigir.
Seguimos os quatro no fusquinha. Assim que Alice desapareceu
na porta de vidro, caminhando em direção ao ônibus, ele entrou no
carro passando-me as chaves e indicando o destino:
— Vamos ao bar do Pudim! É um botequim ao lado do cemitério,
onde a qualquer momento podemos ser surpreendidos com a chegada
sempre espetacular de Rita Pavão e suas coristas — referindo-se a
uma conhecida bailarina da cidade.
O bar do Pudim, quer dizer, do jeito que o encontramos, mais
parecia um velório. Mas o Paulo não perdeu o rebolado:
— Calma, rapazes. Elas costumam chegar de repente... Vai ser
uma festa!
Ele pediu um conhaque, que veio acompanhado de uma cerveja
não muito gelada. A conversa girava em torno de suas últimas
produções, tanto musicais como literárias. Logo vieram mais um
conhaque e outra cerveja. E depois outros. Falamos animadamente de
tudo, durante quase duas horas, sem que a Rita Pavão — e sequer
uma única corista — desse o ar de sua graça. Já estávamos
sensivelmente atingidos pelo efeito das biritas, quando ele decidiu
recuperar o tempo perdido propondo uma saída estratégica até a
churrascaria do Coritiba, no estádio do Alto da Glória:
— Vamos comer uma carne, um churrasco tipicamente
paranaense, com aquele corte América do Sul...
Na rua, tivemos uma surpresa desagradável, pois procuramos
mas não encontramos o Verdura. Ficamos parados por alguns minutos
girando no exato local onde o carro deveria estar, tentando entender o
que estava acontecendo. De braços abertos, o Paulo subitamente
explodiu no óbvio:
— Roubaram o carro! Não acredito. A Alice vai me matar! Como
isso foi acontecer, meu Deus?
— ...
— Martins, você travou bem a porta quando chegamos?
— Claro, Paulo, mas ladrões não respeitam isso...
— Incrível! A Alice não vai acreditar que foi simples assim:
entramos no bar do Pudim e roubaram o carro!
Desolado, sentou-se no meio-fio compondo mais uma cena
tipicamente chapliniana. O Cosme, tentando abrandar a nossa
estupefação, ponderava que o carro estava velho e não era nenhum
modelo cobiçado, portanto, “quem iria roubar!”.
Neste momento, um desconhecido que subia a rua proferiu uma
pergunta esclarecedora:
— Por acaso vocês estão falando de um fusquinha verde?
O carro descera sozinho a ladeira da rua Nilo Peçanha, seguindo
por dois quarteirões até atravessar a rua, subir na calçada e bater no
muro de um terreno baldio. Foi um acontecimento inusitado para as
crianças que acompanharam tudo de perto, correndo ao lado em
grande algazarra. Alguns ônibus tiveram que desviar e uma manobra
mais brusca de uma Kombi quase provocou um acidente. Quando
chegamos o Verdura estava cercado de garotos que se perguntavam
quem seria o dono do “carro fantasma”. No final, apenas um pára-
choque levemente amassado. (Mais tarde, Alice promoveria uma
pequena investigação para concluir que houve falha humana, pois o
freio de mão não tinha sido acionado.)
Minutos depois, na churrascaria do Coritiba, a cena que nos
aguardava não seria menos insólita: todas as mesas estavam
reservadas para jantares de confraternização, como só acontece nesta
época do ano. As cadeiras, mais de duzentas em formação militar,
aguardavam inclinadas num sinal respeitoso de “ocupadas”. Mesmo
assim, o garçom decidiu abrir uma exceção, afastando para o lado
uma mesa com três cadeiras. As reservas, feitas por duas grandes
empresas, estavam marcadas para as 21 horas e o relógio na parede
indicava 20:30.
Diante da constatação, o Paulo fulminou o garçom com um
estranho pedido:
— Pode trazer oito cervejas e churrasco para três.
O homem ainda nos varreu com o olhar antes de perguntar:
— Oito cervejas?
Eu tentei influenciar:
— Bem, Paulo, ele pode abrir duas cervejas agora, depois
pedimos mais duas...
Ele insistiu argumentando com aquela lógica meio amalucada
que manifestava em algumas situações:
— Vocês podem imaginar como este lugar vai ficar quando as
pessoas chegarem? Não vamos encontrar o garçom com facilidade e a
cerveja vai acabar em questão de minutos...
E dirigindo-se ao garçom:
— Faça o que estou dizendo: oito cervejas. E deixe todas
abertas, por favor!
— Mas, Paulo, veja bem...
No final, vieram seis cervejas, tomamos quatro e deixamos duas
pagas, abertas e sem tocar. Na saída, ele fez o último comentário
olhando para o garçom:
— É melhor sobrar do que faltar.
É claro que, até então, nenhum freguês havia chegado.
Um dia, um telefonema. Era Luis Schwarcz, da Editora
Brasiliense, fazendo um convite. Ele oferecia uma oportunidade para
Leminski participar da coleção Encanto Radical, um sucesso da
editora paulista — na época uma das mais importantes no mercado
brasileiro. O petisco era uma coleção de biografias rápidas, quase um
perfil, sempre com personagens de impacto no mundo da cultura,
como Emiliano Zapata, Oswald de Andrade, Bob Marley e Antonin
Artaud.
Os olhos dele cintilavam quando propôs escrever sobre Cruz e
Sousa, o poeta negro catarinense, e Schwarcz aceitou. Os dois
combinaram prazos, forma de pagamento e se despediram. Ato
contínuo, Leminski pôs-se a trabalhar com exclusividade no projeto.
O material de pesquisa já estava em casa, ao alcance das mãos.
Como um fã de Cruz e Sousa, costumava dizer: “Fosse um negro
norte-americano, ele tinha inventado o blues. Brasileiro, só lhe
restou o verso, o soneto e a literatura para construir a expressão da
sua pena.” Em prazo recorde pôs o ponto final naquela que seria a
primeira de uma série de biografias que escreveria para a
Brasiliense, a partir de 1983. Seu estilo sucinto acompanhava um
conceito de “idéia” do personagem, que poderia muito bem ser
apresentada em poucas palavras. Leminski não acreditava em obras
prolixas, como as de Lobsang Rampa e outros místicos, que
amontoavam “verdades supremas” em mais de vinte volumes. “Não é
mais filosofia; é mercado editorial”, acusava. O livro Cruz e Sousa, o
negro branco, em formato de bolso e com 80 páginas, seria dedicado:
ao lado negro, do lado da minha mãe, para Gilberto Gil,
pai de santo, guru, sensei, mestre zen, brilho do 3º
mundo, mimo de todos os orixás. Para Cassiana
Lacerda,* pelo amor ao Símbolo.
O lançamento da biografia de Cruz e Sousa suscitaria pelo
menos duas reações distintas da crítica, partindo de dois
interlocutores importantes para ele. Num rompante de sinceridade,
Risério faria restrições ao livro, considerando o resultado final uma
frustração: “Eu esperava mais do tema, principalmente vindo de
Paulo Leminski.” Para contrabalançar os valores dos quesitos, o
sambista Nei Lopes, um conceituado estudioso da cultura negra
brasileira, lhe escreveria uma carta dizendo-se entusiasmado com o
livro.
Nei mandaria, via editora Brasiliense, seus dois livros
abordando a cultura e as agruras da comunidade negra no Brasil.
Depois disso, os dois trocariam correspondências e telefonemas.
Leminski apresentaria o ensaio Alegria da senzala, tristeza das
Missões, que havia publicado num suplemento cultural. Em seguida,
receberia uma nova carta de Nei Lopes, que suscitaria a seguinte
resposta:
Mano: que baile você me deu! Suas considerações sobre
a Alegria da senzala e tristeza das Missões são setas
certeiras como as flechas de Oxóssi. Te proclamo desde
já meu mestre e consultor máximo em assuntos afro.
E encerrava com uma saudação em ioruba, que significa “até
* Cassiana Lacerda é professora de Literatura na Universidade Federal do Paraná e executiva na área de cultura.
logo, irmão”.
A biografia de Cruz e Sousa funcionaria como um talismã. As
relações com a editora se fortaleceriam com a entrada em cena de
Caio Graco Prado — o principal executivo da Brasiliense — que
assumiria o papel de grande incentivador do trabalho de Leminski no
campo literário. Caio e Schwarcz se mostrariam receptivos às idéias
do poeta, que passaria a exercer uma saudável influência em seus
editores, apresentando uma safra de sugestões editoriais das quais
se encarregaria também das traduções. Assim, Leminski traduziria e
a Brasiliense publicaria Pergunte ao pó, de John Fante (a única que
não foi indicação sua); Folhas das folhas da relva, de Walt Whitman;
O supermacho, de Alfred Jarry; Satyricon, de Petrônio (traduzido do
latim); Sol e aço, de Mishima; Um atrapalho no trabalho, de John
Lennon, e Giacomo Joyce, de James Joyce. Suas afinidades com as
obras da geração beat o levariam a traduzir Vida sem fim, de
Ferlinghetti, e a sugerir a edição — da qual escreveria o prefácio —
de Cartas na rua, de Charles Bukowski. (Qualquer semelhança entre
ele e o personagem Henry Chinaski, um “sujeito ávido de uísque,
cerveja, vinho e sexo”, não é mera coincidência.)
Seu trabalho como tradutor chamaria a atenção dos
especialistas. O crítico Ariovaldo Augusto Peterlini, professor da USP,
escreveria na Folha de S. Paulo:
— Paulo Leminski está entre os tradutores que amam o perigo.
Depois de Joyce, Petrônio. O Satyricon (texto latino escrito
provavelmente sob Nero, por um suposto Petrônio) é um desafio que
impõe audácias. E como é audacioso o artista que há em Paulo
Leminski. “Entre trair Petrônio e trair os vivos”, escreve ele no
prefácio, “escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém.”
O próprio Leminski diria que, ao traduzir Satyricon, o fizera
com o máximo de fidelidade ao sentido original, mas usando uma
linguagem “de hoje”. Assim, a expressão “Por Júpiter capitolino”
seria traduzida simplesmente por “Céus!”
O professor Antonio Houaiss, também na Folha de S. Paulo,
comentaria a tradução de Giacomo Joyce:
— Texto destinado ao frêmito, à emoção, a fundas
concupiscências interiores, é texto que dá prazer à vida pois dá
prazer de ler: o que se logra, aqui, no original e na tradução.
Em seguida, Leminski decidiria encarar outro desafio ao propor
a tradução de Malone Morre, de Samuel Beckett, consolidando seu
engajamento no “difícil”, primando pela escolha de textos
considerados “pedreiras”. No caso de Beckett, traduziria
simultaneamente do inglês e do francês — idioma original da obra.
Em sua apresentação, ele afirmava: “Beckett é um senhor das
palavras que usa, nunca um escritor comum, desses que são usados
pelas palavras.” O resultado final, em português, levaria em conta
valores dos textos nas duas línguas. Ele diria:
— Neste boom de traduções, do qual eu participo, se traduzem
obras B ou C quando ainda tem coisas A que não foram editadas no
Brasil. Eu tenho sete livros traduzidos, todos eles esgotados, e
alguns de valor enorme, como Beckett e Joyce, que considero as
melhores coisas que fiz na área. Numa jogada um pouco diferente,
posso incluir também John Lennon, com o qual eu pratiquei uma
transcriação.
Ainda em 1983, Leminski publicaria uma coletânea de poemas
— pela primeira vez com distribuição nacional — que chamaria de
Caprichos e relaxos, reunindo 150 páginas de trabalhos publicados
anteriormente em Polonaises, revista Invenção e Não fosse isso...,
além de letras de música e dos capítulos inéditos “Ideolágrimas”,
“Sol-te” e “Contos semióticos”. A obra tinha apresentação de Haroldo
de Campos e Caetano Veloso, que destacava na última capa:
— Esse livro de poemas é uma maravilha, porque os poemas de
Leminski são muito sintéticos, muito concisos, muito rápidos, muito
inspirados. Ele é um personagem único no panorama da curtição de
literatura no Brasil. Eu acho um barato. Deve ser instigante para os
poetas do Brasil o aparecimento desses novos poetas. Leminski é um
dos mais incríveis que apareceram.
A crítica — como havia acontecido com o Catatau — receberia o
livro com entusiasmo. O jornalista Mário Sérgio Conti, da revista
Veja, saudaria o lançamento:
— Leminski alerta para o fato de que alguns de seus poemas
devem ser ditos em voz alta, e até cantados, para serem plenamente
usufruídos. Mas o melhor dele são os poemas impressos — é na luta
com as palavras no branco e preto da página que ele ocupa o lugar
de um dos nomes mais inovadores da atual poesia brasileira.
Régis Bonvicino, mesmo sendo uma pessoa “de casa”, juraria
isenção crítica ao afirmar categoricamente, em resenha publicada no
Jornal da Tarde:
— Sem exagero, o melhor livro de poesia do ano.
A professora e crítica Leila Perrone-Moisés, no jornal O Estado
de S. Paulo, mostrava-se sensibilizada com a obra:
— Samurai e malandro, Leminski ganha a aposta do poema,
ora por um golpe de lâmina, ora por um jogo de cintura. Tão rápidos
que nos pegam de surpresa; quando menos se espera, o poema já
está ali. E então o golpe ou a ginga que o produziu parece tão
simples que é quase um desaforo:
acordei bemol.
tudo estava sustenido
sol fazia
só não fazia sentido
Outro analista, Marcos Augusto Gonçalves, na época editor do
caderno “Ilustrada”, da Folha de S. Paulo, saudaria a “Volta a
trivialidade de Paulo Leminski”, não exatamente com elogios diretos,
mas com inquietações: “Leminski emite uma voz multidirecional,
uma voz cujos estilhaços podem atingir em cheio o leitor mais
sofisticado ou irritá-lo — quando então estará acertando o leitor
menos literário, se bem que esperto.”
O sucesso de crítica seria acompanhado do sucesso de venda
— e, em menos de um mês, a primeira edição de 3 mil exemplares de
Caprichos e relaxos estava esgotada. Os editores decidiriam
rapidamente rodar uma segunda fornada, de 5 mil exemplares, que
repetiria o sucesso da primeira. Então, uma terceira e última edição,
de 10 mil exemplares, em parceria com o Clube do Livro, seria
lançada e esgotada no ano seguinte. Ele aparecia na mídia para
esnobar:
— Agora vou dar um tempo em publicidade, deixar de lado o
discurso exato e preciso; quero reconquistar o direito de ser
nebuloso.
Em janeiro de 1984, uma nova mudança de endereço para os
Leminski. Sem se preocupar com dinheiro, eles escolheram uma casa
em melhores condições que a atual e igualmente ampla — e
mudaram-se para a rua Antonio Cesar Casagrande, ainda no
Pilarzinho. A escolha seria por um bangalô de madeira, de estrutura
baixa, com varanda e um amplo jardim na frente, ao estilo japonês. À
esquerda da porta principal, na sala, num espaço marcado pelo
desnível do piso, ficava a biblioteca, mais revirada de livros do que
nunca, um verdadeiro caos de propósitos literários. Na parede, um
pôster de Miguelzinho com o poema de Alice ocuparia o espaço
principal da sala. A estante de bambu, a radiola, as grandes
almofadas e o velho baú compunham os elementos básicos. Na
garagem, o fusquinha Verdura resistia à passagem do tempo.
Quando apareceram no bar da esquina, pela primeira vez,
alguns vizinhos comentaram que aquela casa não trazia sorte para
seus moradores. O último casal a morar nela — disseram —
separou-se depois de uma briga sensacional, daquelas de quebrar
móveis e atirar louças pela janela. Leminski e Alice riram da história,
dizendo que eles iriam quebrar, sim, mas era a tradição de baixo
astral, fazendo daquela casa o lugar onde seriam felizes para sempre.
E a felicidade pode assumir algumas vezes a faceta do
reconhecimento público. Foi assim com a entrevista publicada pela
revista Veja com o escritor e crítico Nicolau Sevcenko, que, instado a
falar da experiência cultural de sua geração, definiu-a como uma
geração sem palavras, “não por não ter vocação para falar, mas
porque sua palavra não era solicitada pelo espaço público, que já
estava ocupado pela ditadura”. Assim, como conseqüência, teríamos
uma geração “que traz um enorme anseio pelo respeito às
individualidades e diferenças, de uma abertura à multiplicidade das
manifestações culturais em todos os níveis”.
O entrevistador, Guilherme Cunha Pinto, quis saber “onde se
pode notar esse caráter introspectivo da cultura atual”. A resposta de
Sevcenko:
— Na poesia de Paulo Leminski, por exemplo — nadei, nadei,
não dei em nada —, um jogo de aliterações vinculado ao concretismo,
mas cuja contextura vem toda da beat generation, de uma geração
marginalizada, corroída, sem perspectivas. Tudo que respira,
conspira. Na poesia de Leminski, há a síntese de uma vivência e
experiência histórica muito fragmentada e concisa.
Em seguida, Leminski mergulharia no projeto de uma nova
biografia: Bashô, a lágrima do peixe, sobre aquele que era, na sua
opinião, “o maior poeta que o Japão já produziu”. Suas pesquisas
sobre haikais o remeteriam a duas fontes de consulta: o original, em
japonês (Nippon Haishô Taikei, editora Kanda Hosui), e uma tradução
em inglês para Haiku, de R. H. Blyth. O livro seria dedicado “a
Kenjiro Hironaka, Makoto Yamanouchi e Aldo Lubes, meus mestres
de judô, na Kodokan. Para Alice Ruiz que, entre tantas coisas, ainda
acha tempo para ser uma haikaisista japonesa do século XVIII. Para
Augusto de Campos, inventor da poesia japonesa no Brasil”. Em nota
editada no final do livro, ele recomendava também a produção de
haikais de Millôr Fernandes, como referência do gênero.
O trabalho dava resultados e ele desfrutava de privilégios
concedidos apenas aos grandes autores. Planejava completar um
ciclo de biografias que, no futuro, deveriam ser publicadas num
único volume chamado “Vida”. Os dois outros livros eram sobre
Jesus, que seria lançado em 1984, e Trotski, em 1986:
— São quatro maneiras de como a vida pode se manifestar: a
vida de um grande poeta negro, simbolista, que se chamou Cruz e
Sousa; Bashô, um japonês que abandonou a classe samurai para se
dedicar apenas à poesia, e é considerado o pai do haikai; Jesus,
profeta judeu que propôs uma mensagem que está viva há 2.000
anos; e Trotski, o político, o militar, o ideólogo e revolucionário.
Quero homenagear a grandeza da vida em todos esses momentos.
A biografia de Jesus — dedicada a Domingos Pellegrini, Alice
Ruiz e Paulo Cesar Bottas, um frei dominicano, também compositor
— traria novamente a marca da polêmica, ao propor uma nova
leitura do Personagem, inclusive tratando de aspectos considerados
“tabus”:
— Para mim, Jesus é um sinal que deve ser lido a cada
geração. E cada qual dará a sua própria interpretação, conforme o
seu repertório e interesses. Numa parte do livro — que chamei de
Parabolário — traduzo diretamente do grego as principais parábolas
de Jesus, com um minicomentário. Eu tenho a pretensão de ter feito
a leitura de Jesus para a minha geração. Jesus é a soma das
interpretações que provoca. Eu sou um homem religioso mas não
sou alinhado a nenhuma seita.
A Folha de S. Paulo abriria espaço para o lançamento do livro,
em artigo assinado por Eduardo Sganzerla, com o título: “O
Evangelho Segundo Leminski”, sugerindo que Jesus “parece ter tido
uma ternura especial por uma das irmãs de Lázaro, de nome Maria.
A outra irmã, Marta, viu a caçula sentada aos pés do mestre, flagrou
o namoro e, por ciúmes, a chamou para a cozinha”. O livro
surpreenderia, sobretudo, por se atrever a propor a releitura de uma
das biografias mais consolidadas ao longo dos séculos.
A boa fase profissional se fortaleceria com as propostas da
Folha de S. Paulo, para uma coluna semanal, e da revista Veja, que o
queria como resenhista de livros, ao lado de Marcelo Rubens Paiva e
Paulo Sérgio Conti — o mesmo que havia feito a crítica a Caprichos e
relaxos. Leminski aceitaria na hora as duas propostas e começaria a
trabalhar como uma máquina, escrevendo preferencialmente durante
as madrugadas:
Andar e pensar um pouco
que só sei pensar andando.
Três passos, e minhas pernas
já estão pensando.
Aonde vão dar estes passos?
Acima, abaixo?
Além? Ou acaso
se desfazem ao mínimo vento
sem deixar nenhum traço?
Motivados pelo alto astral da temporada, Leminski e Alice
voltariam a falar com freqüência em casamento. Fizeram planos —
nunca concretizados — para legalizar a situação civil e consolidar a
relação amorosa que já completava 15 anos. Ao mesmo tempo,
Leminski desenvolveria com Guilherme Arantes a trilha sonora do
musical infantil Pirlimpimpim 2, da Rede Globo. Foram sete músicas
em parceria, sendo que a mais tocada nas rádios era “Xixi nas
estrelas”, nome do show de Arantes, no Canecão. Eles trabalhariam
diariamente pelo telefone, fazendo ligações entre São Paulo e
Curitiba. O músico improvisaria um pedestal para o telefone em seu
estúdio, para que pudesse cantar e falar com Leminski sem sair do
piano.
O especial Pirlimpimpim 2 iria ao ar numa Sexta-feira Nobre,
como era chamado o programa. Eles assistiriam o programa na casa
de Ernani Buchmann, onde uma equipe de televisão apareceria para
registrar a cena: o poeta assistindo ao próprio musical no vídeo.
Depois, ele diria envaidecido:
— Agora eu saio na Globo assim: Paulo Leminski — e, embaixo
— poeta. Exatamente como eu queria. Mas leva vinte anos para se
conseguir isso.
Apesar do relativo e planejado sucesso de Pirlimpimpim,
Leminski não ficaria satisfeito com o resultado final do trabalho.
Argumentaria que “o projeto não decolou, faltou química entre eu e o
Guilherme”.
Certa vez, diante das evidências de que suas origens estavam
numa aldeia polonesa chamada Narájow, Leminski decidiria fazer
uma investigação minuciosa no mapa-múndi. Debruçado sobre a
mesa da biblioteca, ele gastaria um bom tempo tentando resolver
este mistério, sem nada conseguir. Narájow, definitivamente, não
estava no mapa. Já havia desistido quando percebeu uma mosca
pousar sobre o mapa, dentro do território da Polônia. Calmamente
ele pegou uma caneta e fez um círculo no ponto exato onde o inseto
esfregava as patinhas — para decidir que ali estava Narájow! Logo
depois, criaria o poema:
uma mosca pouse no mapa
e me pouse em Narájow,
a aldeia donde veio
o pai de meu pai,
o que veio fazer a América,
o que vai fazer o contrário,
a Polônia na memória,
o Atlântico na frente,
o Vístula na veia
que sabe a mosca da ferida
que a distância faz na carne viva,
quando um navio sai do porto
jogando a última partida?
onde andou esse mapa
que só agora estende a palma
para receber essa mosca
que nele cai, matemática?
Em março de 1984, quando estava em São Paulo fazendo a
entrega da tradução de Pergunte ao pó (Ask the Dust), Leminski
ouviria do editor Caio Graco uma proposta inesperada:
— Quanto você quer de salário mensal para escrever um
romance para a coleção Cantadas Literárias? O prazo para entrega
dos originais é setembro.
Leminski pediria alguns minutos para responder. Depois de
fazer os cálculos “na ponta do lápis”, tendo como base os gastos
mensais da casa e projetando a inflação para o período, ele chegaria
a um valor que lhe permitiria viver confortavelmente durante quatro
meses, mesmo se afastando das agências de publicidade. Ele
apresentaria a cifra para o editor que responderia no ato:
— Negócio fechado.
O romance (ele diria “novela”) iria se chamar Agora é que são
elas — e seria um pretexto, segundos suas próprias palavras, “para
criar uma história na velocidade do fliperama, com texto
fragmentário, capítulos curtíssimos e cortes bruscos”. Seria uma
novela com começo, meio e fim — não necessariamente nessa ordem.
O primeiro parágrafo dizia, em tom surpreendentemente
confessional:
Aos 18 anos, pensei ter atingido a sabedoria.
Era baixinha, tinha sardas e tirei-lhe o cabaço na
primeira oportunidade.
Não ficou por isso.
A lei falou mais forte. E tive que me casar,
prematuro como uma ejaculação precoce.
Nem tudo foram rosas, no princípio.
Nos pulsos ainda me ardem as cicatrizes de três
malsucedidas tentativas de suicídio.
Mas eu não posso ver sangue. Sobretudo, quando
meu.
Assim decidi continuar vivo.
Principalmente porque o mundo estava cheio
delas.
De Marlenes. De Ivones. De Déboras. De Luísas.
De Sônias. De Olgas. De Sandras. De Edites. De Rosas.
De Evas. De Anas. De Mônicas. De Helenas. De Rutes.
De Raquéis. De Albertos. De Carlos. De Júniors. De...
(ihh, acho que acabo de cometer um ato falho). De
Joanas. De Veras. De Normas.
A história, apresentada ao leitor sem nenhuma explicação,
narra as aventuras textuais de um estudante de astronomia (o
narrador) que está sendo analisado por Vladimir Propp, escritor
russo, autor da Morfologia do conto fantástico, que também era
conhecido como um grande bebedor de vodca. Norma é a filha de
Propp, com quem o estudante mantém relações amorosas. Leminski
misturava mais uma vez ficção com realidade, sempre trabalhando
com inverossimilhanças. Para não estimular grandes expectativas
quanto às chaves de leitura, convém lembrar que o livro seria
dedicado “ao delito de deixar o dito pelo não dito”.
A noite de autógrafos, bastante concorrida, aconteceria a 30 de
novembro no Instituto Goethe. Através de sua obra, Leminski ficaria
novamente exposto às críticas.
Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, no mesmo mês do
lançamento, o crítico Eduardo Ramos Quirino, depois de observar
que a narrativa de Leminski “é muito influenciada pelo Joyce de
Retrato do artista quando jovem, mais uma pitada de Flaubert e um
outro tanto de Dostoievsky”, concluiria:
— Assim, o forte do romance é sua narrativa e sua construção
e não a linguagem como se poderia esperar vindo de um poeta.
Enfim, um belo romance, o suficiente para curar Paulo Leminski
daquele problema de bexiga que teve junto com Guilherme Arantes.
Fernando Py, em O Globo, dedicaria eloqüente artigo intitulado
“Estilhaços”:
O livro é assim, um mosaico à primeira vista
disparatado, mas que se revela, a uma leitura atenta,
um conjunto bastante consistente de estilhaços que o
leitor é convidado a remontar. À sua maneira.
Apesar disso, o livro passaria a sofrer do estigma de mal-
amado pela crítica. Talvez em função de o próprio autor ter renegado
a obra, afirmando não ter atingido o objetivo que pretendia:
— O romance não é mais possível. Agora é que são elas é um
romance sobre a minha impossibilidade de escrever um romance.
Em ensaio publicado anos depois (revista da USP, 1989), o
conceituado Bóris Schnaiderman falaria do “romance enjeitado”,
como um equívoco da crítica e não da obra:
Na base disso e de uma releitura do romance de
Leminski, tenho que contrariar a opinião consagrada da
crítica, os desafetos e amigos do poeta e a própria
opinião deste, pois, na medida em que posso tratar
desse tema, considero Agora é que são elas uma das
obras de ficção brasileira mais interessantes dos últimos
anos.
Em seguida, o professor pergunta:
Para começar, qual dos detratores desse romance seria
capaz de escrever um trecho de prosa tão ágil, numa
linguagem tão realizada como a da seqüência que vou
transcrever?
Com aquela cara de homem fingindo estar interessado
no papo de uma mulher apenas porque está com
vontade de comê-la, com aquela cara de mulher
costurando e bordando pensamentos apenas porque
está a fim de ser comida por ele, cheguei, caprichei,
relaxei, lembrei tudo o que tinha aprendido em Kant e
Hegel, repassei toda a teoria dos quanta, a morfologia
dos contos de magia de Propp, o vôo 14-bis, cheguei e
não perdoei: — Tem fogo?
Assim, uns dos textos menos realizados da carreira literária de
Paulo Leminski, aquele que mais apanhou da crítica, ainda era
considerado muito bom ou acima da média. (Consolidando esta
posição também no mercado, o livro ganharia uma 2ª edição nos
anos 90. Caso estivesse vivo para saber disso, provavelmente ele
diria: “Entre vocês e o Bóris Schnaiderman, eu fico com o Bóris.”)
Uma tarde, em maio de 1985, quando minha mãe convalescia de
um câncer num hospital especializado, em Curitiba, tivemos uma
conversa profunda e séria na Cruz do Pilarzinho. Certamente
motivados pela minha aflição e dor, falamos da morte durante um
longo tempo, embora eles não estivessem exatamente tentando me
consolar. Era — como vamos dizer? — mais uma atividade intelectual
do que um ato de comiseração. Eu me sentia como que sugado pelas
últimas noites mal dormidas, quando Alice nos revelou que tinha
“visto” Miguelzinho dias antes num teatro, sentado nas poltronas
vazias da platéia. Era uma visão mágica na qual, honestamente, ela
acreditava; uma comunicação extra-sensorial com o filho que partira
prematuramente. Divergimos neste ponto, quando expusemos nossos
conceitos sobre o status do ser após a morte — que eu, apesar de uma
autêntica formação cristã, chamava de O Nada. Eu argumentava que
O Nada não era ruim, mas algo parecido com o que acontecia antes de
você nascer: nada. O impacto da morte (se natural, por acidente ou
doença) era a única variável. Na substância, então, existiria o ser e o
nada.
Durante boa parte do tempo, Paulo se manteve em silêncio,
contrariando um comportamento natural dele. Apenas ouviria e, no
final, ponderaria dizendo acreditar que as pessoas, em vida,
constroem uma alma capaz de se perpetuar como uma extensão da
existência, muito além da existência. Não ofereceu mais detalhes e, na
verdade, era como se não os tivesse. Mais tarde, ele resumiria tudo
num poema com o pomo às avessas, mais uma vez desfigurando o
confronto ao desviar o olhar exclusivamente para a vida:
leite, leitura,
letras, literatura
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo,
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura
No dia 24 de junho de 1985, ele faria uma trégua no trabalho
para participar — como convidado especial — do evento Um Escritor
na Biblioteca, um bate-papo informal com estudantes no auditório. A
sabatina seria coordenada pelos poetas Reinoldo Atem e Marise
Manoel para um público eminentemente jovem. Marise abriria a
conversa perguntando se, à luz de tantos títulos já editados, “você
hoje abandonaria a sua principal teoria estética, ou seja, a poesia
como inutensílio?”:
— Não, ao contrário, eu comecei por uma profissão de fé no
inutensílio. Quer dizer, a poesia não tem que estar a serviço de
nenhuma causa, de nenhum pressuposto. A poesia é um exercício de
liberdade. Hoje sabemos que, a nível científico, existe uma função
poética na linguagem, detectada pelo lingüista russo Roman
Jakobson. A função poética está presente na linguagem de um modo
geral e não apenas na poesia feita pelos poetas.
Alguém na platéia quis saber:
— Como é seu processo de criação? Existe inspiração?
— Disciplina profissional. Eu não sou poeta de fim de semana,
nem faço por hobby, como quem faz poesia quando vai para a praia.
Faço poesia 24 horas por dia. Montei a minha vida de tal forma que a
produção textual me permite pagar o aluguel no fim do mês, a escola
das minhas filhas, o meu cigarro, o vinho. Antigamente, eu
trabalhava mais no sentido de adquirir aquela perícia artesanal que
todo mundo tem que ter. Agora, acho que as coisas estão mais
automatizadas em mim. Quer dizer, com dois toques eu estou
chutando em gol.
Enquanto falava, usava um quadro-negro colocado à sua
disposição. A certa altura, mencionaria a presença na platéia do
poeta Alberto Cardoso, um veterano trovador de reconhecidas
virtudes, cujo principal talento não estava exatamente em escrever
as líricas, mas dizê-las. O resultado da palestra, acrescido de outros
comentários e amostras de poemas, seria transformado em livreto
editado pela Biblioteca, como acontecera com Antonio Callado,
Márcio Souza, Thiago de Mello, Helena Kolody e Fernando Sabino.
Ele assinava a publicação, na última página, fazendo uso da frase
que adotara como lema:
Para ser poeta, é preciso ser mais que poeta
Paulo Leminski
Na equipe que trabalhava no projeto editorial estava uma bela
e jovem intelectual, Josely Vianna Baptista, que seria amiga do casal
Leminski — ou algo mais para ele, considerando a opinião de alguns
amigos. Josely, ou Jose, como era conhecida, trabalhava na tradução
do monumental Paradiso, de Lezama Lima, considerada a obra
máxima do neobarroco hispano-americano. Ela o escolheu para fazer
a primeira leitura crítica do trabalho. Naturalmente, esta confluência
de interesses e atividades os aproximaria e eles passariam a sair
juntos. E o que era melhor: brigavam de vez em quando. Ela
considerava que Leminski “facilitava” demais os poemas; ele
replicava dizendo que poemas “deveriam nascer quase por acaso”.
Falava numa “faísca”, onde estava a poesia:
pedirem um milagre
nem pisco
transformo água em água
e risco em risco
A idéia de encurtar a distância entre expressão e realização o
levaria a desenvolver um pensamento-síntese dos seus estudos zen e
a verbalizar esta postura diante do cotidiano criando o slogan
Distraídos Venceremos, em contraponto ao popular Unidos
Venceremos, dos movimentos de política sindical. Assim, quando a
conversa com os amigos passava pelas “estratégias de combate para
abrandar a zona de sufoco”, ele — como um bom Dom Quixote —
sacava e brandia as palavras-bálsamo:
— Distraídos venceremos!
Em 8 de julho, corroborando a fase de franca ebulição,
estreava no pequeno auditório do Teatro Guaíra o espetáculo-
performance Polonaises, com o trovador Cardoso e outros jovens
artistas fazendo uma leitura de seus poemas. Com uma parede
branca ao fundo, um ator aparecia em cena empunhando um spray
para escrever “Pau no Leminski”. Outros atores passavam como
transeuntes, assustando o desvairado pichador, que solta o primeiro
poema: “o paulo leminski é um cachorro louco, que deve ser morto...”
etc.... Em meio à confusão urbana, o próprio Leminski apareceria no
cenário para gritar: “Parem, eu confesso, sou um poeta!” Fotos
coloridas projetadas pelo fotógrafo Carlos Macacheira mostravam o
poeta aos pés da Cruz do Pilarzinho e em cenas domésticas com
Alice. Durante uma hora, tempo de duração do espetáculo, seriam
apresentadas nove músicas (com Marinho Galera ao violão) e
diversos textos.
Dois meses depois, em setembro de 1985, estava programada
uma viagem a Londrina para o lançamento de vários livros, numa
única noite de autógrafos. A festa aconteceria no reduto etílico-
intelectual da cidade, o bar Valentino, onde uma clone da cantora
Nina Hagen apareceu para dar uma pitada de nonsense à festa.
Nestes dias, eles conheceriam dois jovens que se tornariam amigos e
admiradores do casal. Os poetas Rodrigo Garcia Lopes e Ademir
Assunção, ambos de 17 anos, que podem ser incluídos entre aquelas
pessoas que foram “tocadas” por Leminski, sensibilizadas por seu
talento e carisma, como eles mesmos reconhecem. Ademir assinaria
uma reportagem de página inteira no caderno cultural da Folha de
Londrina: “Paulo e Alice no país das maravilhas e o que eles estão
vendo por lá”. Leminski seria apresentado nas páginas como o poeta
responsável pela “insurreição da fantasia”. Este encontro teria uma
forte influência na vida de Ademir, mais conhecido como Pinduca,
que se inquietaria o suficiente para considerar a possibilidade de sair
de Londrina e estudar em outra cidade. E foi o que acabou
acontecendo.
Em 1986, chegava ao fim a série de trabalhos de encomenda
para a editora Brasiliense, onde a partir de agora ele seria apenas
um autor. Continuaria recebendo pagamentos ocasionais pelos
direitos das obras — tanto de discos como de livros —, mas aceitaria
o convite de Ernani Buchmann para recompor a dupla de criação
com Solda, na agência Exclam. O dois voltariam a freqüentar o bar
da esquina, para desespero das respectivas mulheres e patrões.
Escolhiam os ambientes mais simples para beber, quase sempre
uma padaria ou botequim com mesas de bimbolim (totó) e
sinuquinha. A cada rodada, um litro de vodca era consumido. Sua
aparência física dava sinais de decadência, os cabelos, finos e lisos,
estavam agora mais ralos — e o porte atlético se consumia, por vezes
permitindo a saliência ululante dos ossos da clavícula. Dos dentes,
na arcada de cima, apenas ruínas. Como decorrência destas tardes
desregradas, Solda também apresentaria problemas de saúde,
fazendo com que ambos tivessem algo mais em comum além da
paixão pelo humor e poesia.
Os dois amigos estabeleceriam uma saudável cumplicidade
para administrar a produção feita em parceria, estabelecendo como
regra que o autor assumido seria aquele que primeiro pudesse fazer
uso do texto ou da idéia. Assim, uma palavra ícone criada por Solda
aparece assinada por Leminski na página 137 do livro Caprichos e
relaxos: a foto do poeta com o quimono oriental e o título Kamiquase,
escrito com a caneta pilot. Da mesma forma, o slogan Quem tem Q.I.,
vai! seria uma criação coletiva, com a participação de Retamozo.
Alguém teria falado primeiro:
— Bem, eu tenho que ir.
O outro emendou:
— Quem tem que ir, vai.
O último teria dito:
— É isso: quem tem Q.I., vai!
O trabalho na agência era constantemente interrompido pelas
viagens a São Paulo, onde ele mantinha sempre uma extensa agenda
a cumprir. Em outubro, seria convidado e aceitaria ministrar um
curso sobre poesia, com duração de uma semana, na Faap —
Fundação Álvaro Penteado — onde abordaria temas como Arte na
sociedade de consumo, Poesia concreta e vanguardas e a Presença
do hai-kai no Brasil. Ele reencontraria Itamar Assumpção e Pinduca,
agora trabalhando como repórter de O Estado de S. Paulo. Itamar
produzia aquele que seria o primeiro disco da cantora Fortuna,
chamado Só. No dia 21 de outubro, o “Caderno 2” do Estadão
publicava uma entrevista assinada por Ademir com o título “Poesia
na idade mídia”, onde Leminski sustentava:
não existe nenhuma língua no mundo que seja superior
a outra quanto ao seu potencial expressional. Todas as
línguas são igualmente capazes de expressar. São
igualmente ricas, são igualmente musicais. A língua
grega em si, não é dotada de propriedades que a torne
superior à língua, digamos, vietnamita. Tudo vai das
circunstâncias. Então, a questão é saber se, por
exemplo, Shakespeare seria o grande teatrólogo que é se
ele não tivesse coincidido com o apogeu imperial da
Inglaterra.
Foi Pinduca quem levou Leminski ao bar Madame Satã, uma
agitação das boas na noite de São Paulo, onde ele conheceria
Arnaldo Antunes, na época lançando seu primeiro livro de poesia,
Psia. Arnaldo era o principal nome do grupo Titãs e ostentava em seu
breve currículo de 26 anos uma prisão espetacular por porte de
heroína e vários feitos literários nada acadêmicos — fatos que,
certamente, contribuiriam para aproximá-los definitivamente.
Arnaldo lembra-se da primeira vez que Leminski apareceu num
ensaio dos Titãs:
— Ele chegou dizendo: “Posso dar uma voltinha nessa
guitarra?” E já foi pegando o instrumento e tocando alguns acordes.
O pessoal reagiu: “Pô, que sujeito folgado!” Depois nos acostumamos
com aquela maneira relaxada de ser e nos tornamos amigos. Ele
aparecia no apartamento do Aguilar, da Banda Performática,
vestindo um blusão de couro e querendo ouvir Sex Pistols. Parecia
um punk.
Na volta a Curitiba, Leminski colocaria uma antiga idéia em
prática, ao reunir seus ensaios num único volume que chamaria de
Anseios crípticos e seria impresso pela editora Criar, de Curitiba. O
livro apresentava, em 143 páginas, textos publicados anteriormente
em diversos jornais e revistas, além dos prefácios para as traduções
de Beckett e John Fante. Alguns trabalhos eram inéditos. Ele
apresentaria o livro como sendo uma busca de sentido:
O sentido, acho, é a entidade mais misteriosa do
universo. Relação, não coisa, entre a consciência, a
vivência e as coisas e os eventos.
O sentido dos gestos. O sentido dos produtos. O
sentido do ato de existir.
Me recuso a viver num mundo sem sentido.
Este anseios/ensaios são incursões conceptuais
em busca do sentido.
Pois isso é próprio da natureza do sentido: ele não
existe nas coisas, tem que ser buscado, numa busca
que é sua própria fundação.
Só buscar o sentido faz, realmente, sentido.
Tirando isso, não tem sentido.
Nos ensaios, apresentava digressões a respeito de temas os
mais diversos, colocando em evidência “O Último Show de Rock.
Quem Chora?”, “Click. Zen e a Arte da Fotografia” ou “Punk, Dark,
Mini-mal, O Homem de Chernobyl”. Continuava fazendo do labor
artesanal da escrita o seu assunto favorito. Em “Sem eu, Sem tu,
Nem ele”, expunha:
O primeiro personagem que um escritor cria é ele
mesmo. Só os imbecis procuram um eu atrás do texto
literário. Em literatura, a própria “sinceridade” é,
apenas, uma jogada de estilo.
Um escritor medíocre não consegue ser “sincero”.
Técnica, coração.
Para ser sincero, é preciso dispor das técnicas que
indiquem, signem, sinceridade. Sem isso, a mais pura
das explosões verbais, a mais direta, a mais
“espontânea”, será apenas mais uma manifestação de
imperícia literária. Um amontoado de bobagens que o
tempo vai se encarregar de destinar ao lixo, onde jazem
as ilusões.
Este mesmo raciocínio apareceria no filme Ervilhas da fantasia,
um curta-metragem dirigido por Werner Shumann e que fora
gravado na biblioteca de sua casa. Depois de ouvir o diretor gritar
Gravando!, Leminski sustentaria o valor da saga de um poeta que
supera a fase romântica dos 18 anos para continuar fazendo poesia
ao longo da vida:
— Ser poeta quando jovem é fácil. Continuar acreditando na
beleza da linguagem, como Drummond e Mário Quintana, que fazem
isso há 60 anos, é um ato de heroísmo ou santidade.
ÚLTIMO CAPÍTULO À PARTE
17 de dezembro de 1986. Neste dia Pedro Leminski acordou
decidido. Fez a barba com capricho, vestiu uma camisa bem
alinhada e saiu para comprar uma corda de náilon numa loja de
ferragens. Não se sabe por quê, escolheu uma corda branca. Ele
estava morando numa pensão na rua Paula Gomes, próximo à casa
das tias, onde fazia as refeições diariamente. Vivia mergulhado em
forte crise depressiva, com sinais visíveis de alcoolismo — e,
certamente, contava apenas com as tias e a sorte para sobreviver.
Estava separado de Elly há muitos anos e não falava com o irmão há
pelo menos seis, quando passou a ter notícias dele através dos
jornais. Às vésperas de completar 40 anos, Pedro tinha perdido as
esperanças de encontrar uma profissão ou mesmo um trabalho
regular que pudesse lhe permitir levar uma vida normal. Sua revolta
e inquietação deram lugar a uma apatia assustadora. Passava as
noites perambulando pela cidade, entrando e saindo de bares, agora
sem o violão e sem amigos. Ele vinha tomando remédios pesados que
eram incompatíveis com a bebida, mas continuava bebendo.
Neste dia, caprichou para confirmar a rotina. No horário de
sempre, apareceu para o almoço na casa das tias, que fizeram
alegres e repetidos comentários sobre a sua esmerada elegância.
Almoçou calmamente e, antes de sair, deixaria recomendações sobre
como gostaria de ter o jantar, pedindo para a tia Izelite levar um
prato de sopa na pensão, às 19 horas em ponto. Argumentou que
não estava se sentindo bem e deveria passar a tarde na cama,
descansando:
— Vou deixar a chave aqui. Quem chegar pode entrar sem
bater.
Era impossível saber o que se passava naquela cabeça
atormentada. Na hora combinada, as tias Luiza e Izelite prepararam
um farnel com um prato de sopa e fatias de pão, pegaram a chave
que ele havia deixado sobre a cômoda e saíram. Caminharam os
duzentos metros que separam as duas casas e, ao abrir a porta do
quarto, receberam um forte impacto. Pedro estava pendurado com
uma corda no pescoço na posição inequívoca de um enforcado, ainda
que com os pés no chão e os joelhos dobrados. O corpo pendia
apoiado no guarda-roupa, indicando que a corda havia cedido ao seu
peso. Tia Luiza aproximou-se o suficiente para notar que do canto da
boca escorria um líquido branco — como também percebeu que
naquele corpo não havia mais vida. Foi como um soco no estômago.
Ela recuou e tratou de afastar a irmã para fora do quarto enquanto
gritava pedindo socorro. Um rapaz que ocupava o aposento ao lado
apareceu com ares de espanto. Houve um momento de indecisão
entre eles até que o rapaz desfez o nó em torno do pescoço. O corpo
agora jazia inerte, dobrado, com o tronco sobre a cama e os joelhos
no chão. Tia Luiza balbuciou alguma coisa nervosamente indicando
que precisava dar alguns telefonemas e que estaria de volta em
poucos minutos. O rapaz tentaria tranqüilizá-la, mas sempre
insistindo para que alguém notificasse a polícia. Tia Luiza agarrou a
irmã pela mão e saiu apressada da pensão.
Não longe dali, Leminski e Alice viviam uma cena doméstica
trivial quando o telefone tocou. A notícia o deixaria absolutamente
transtornado. Ele ouvia sem acreditar no que a tia falava. Era como
se estivesse diante de um texto clássico de tragédia grega, algo
beirando a ficção. Ao mesmo tempo, tudo fazia sentido e, na verdade,
este desfecho já era mesmo esperado. Ainda assim, Leminski
desmoronou ao transmitir a Alice os detalhes que acabara de ouvir,
enquanto se vestiam.
Na pensão havia um camburão da polícia estacionado na porta.
Alice ficaria dentro do carro, a uma curta distância, esperando.
Leminski encontraria tia Luiza na calçada — ela estava conversando
com alguns policiais — e, em seguida, desapareceria porta adentro.
Logo depois, Elly e a filha Ellinha chegaram num táxi. Alguém
habilmente as separou, puxando Elly para um canto com o propósito
de informá-la sobre o que poderia encontrar lá dentro. Ela ouviu
atentamente e seu rosto se crispou. Quando voltou, segurou a filha
pelo braço e, abaixando-se à sua altura, contou-lhe que o pai estava
morto e que ela não iria entrar desta vez. Alice recorda-se da cena:
— Eu pude ver o joelho da Ellinha dobrando diante do impacto
da notícia. A mãe amparou-a com um forte abraço e as duas saíram
dali.
Na noite do velório aconteceria o pior. Leminski comportava-se
como um alvo atingido em cheio pela tragédia do irmão — e pela
primeira vez falaria em suicídio com Alice, argumentando que “o
melhor dos projetos humanos acaba invariavelmente em tragédia”.
Estava pessimista como nunca. Fazia do ritual da morte um
momento de meditação profunda, recusando-se a ficar
contemplativo, “dar um tempo” ou esfriar a cabeça. Agitava-se diante
do cadáver do caçula, como que trazendo para si a responsabilidade
pelo episódio. Ele passaria a noite com amigos no botequim ao lado
do cemitério, com o copo na mão. Falava em “pedir a conta pro
garçom”, entabulando uma conversa que, para Alice, soava
irreconhecível. Pedro Leminski seria sepultado no dia 18 de
dezembro, ao lado do pai, da mãe e do sobrinho Miguel.
Dois dias depois, a coluna do Correio de Notícias abriria com o
título “Adeus, Pedro Leminski”:
Meu irmão, que escolheu partir esta terça-feira, era,
sobretudo, um poeta. Dos poetas sempre foi forte nele
uma recusa de viver a vida comum, os dias comuns, as
tarefas comuns, a mecânica banalidade do dia-a-dia
burguês.
Infenso a toda disciplina, sua paixão era a
natureza.
Marumbinista da fase áurea do marumbinismo,
era alpinista e estar com ele num acampamento no meio
do mato era como estar com um chefe de escoteiros.
“Escoteiro” era seu apelido na “Serra”, como diziam os
marumbinistas dos anos 60, para designar aquele verde
viver à sombra do Marumbi.
Tinha alguma coisa de colono polaco e alguma
coisa de índio.
Jamais aceitou o mundo moderno, o mundo do
salário, dos horários, dos compromissos inadiáveis.
Sempre foi rebelde a tudo, à escola, à autoridade,
à ordem dos outros.
Nos anos 60, viveu intensamente toda a margem e
toda exceção.
Era muito hábil com as mãos, um verdadeiro
artista, capaz de muitos artesanatos, capacidade que
jamais quis colocar no mercado.
Era músico e compositor.
Foi meu único professor de violão.
Na passagem dos anos 60 para os 70, fizemos
muitas composições juntos.
Entre elas, a “Oração dos suicidas” que a
Blindagem gravou em seu LP.
A primeira parte, letra e música, é toda dele.
Pedro fez ainda inúmeras outras canções que trago
na memória, algumas da mais absoluta pureza lírica.
A vida é demais para os poetas.
Sobretudo para os melhores.
Pedro, quando queria e quando podia, era dos
melhores.
Ainda sobre os efeitos da morte do irmão, Leminski se
preparou para o lançamento triplo de Trotski, Anseios crípticos e o
mais recente trabalho de tradução, Fogo e água na terra dos deuses,
o poema egípcio. A festa aconteceria no dia 8 de fevereiro, na livraria
Dario Vellozo. Em seguida, o lançamento de um novo livro de poemas
sustentaria o astral num nível, digamos, aceitável para as
circunstâncias: estava chegando às livrarias Distraídos venceremos,
reunindo textos produzidos entre 1983-1987, onde Leminski dizia
acreditar ter atingido um horizonte longamente almejado: a abolição
(não da realidade, evidentemente) da referência, através da rarefação.
“Seria demais, certamente, supor que eu não precise mais da
realidade.”
O livro, de 134 páginas, era — como ele mesmo dizia na
primeira página — um gesto “Em direção a Alice, cúmplice nesse
crime de lesa-vida chamado poesia. Para Antonio Cícero, Arnaldo
‘Titã’ Antunes e — sobretudo — para ltamar Assumpção”.
A obra seria recebida com entusiasmo pela crítica. Em
contundente artigo intitulado “Rimas, Hai-Kais e Compulsão.
Leminski voltou”, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, Flora
Figueiredo anunciava:
— Pleno de sutis e mirabolantes momentos, Distraídos
venceremos traz de volta a poesia do curitibano Paulo Leminski,
depois do sucesso de seu livro Caprichos e relaxos publicado em
1983. A nova obra contém poemas escritos desde então e vem agora,
mais uma vez, confirmar o brilho e a versatilidade do autor.
Na página 89, encontra-se um poema em forma de bilhete, com
características biográficas, representativo destes dias de incertezas:
Último aviso
caso alguma coisa me acontecer.
informem a família
foi assim, assim tinha que ser
tinha que ser dor e dor
esse processo de crescer
tinha que vir dobrado
esse medo de não ser
tinha que ser mistério
esse meu modo de desaparecer
um poema, por exemplo,
caso alguma coisa me suceder,
vá que seja um indício
quem sabe ainda não acabei de escrever
Em abril de 1987, uma surpresa agradável.
Obedecendo a um impulso natural, Alice voltaria a trabalhar
em publicidade, agora fazendo dupla de criação com Retamozo na
agência Umuarama, cuidando da imagem do Banco Bamerindus. O
envolvimento com o trabalho externo promoveria os primeiros sinais
de mudança em sua vida pessoal. Ela decidiria por fazer terapia e
freqüentar o AA como uma forma de indicar um caminho capaz de
solucionar parte dos problemas que vinham enfrentando. Áurea
acompanharia a mãe, participando das reuniões da chamada Ala
Teen, reunindo os filhos de alcoólicos. Leminski, depois de se dizer
“sensibilizado” pela sutileza do convite, decidiria fazer análise
também, ainda que por um curto período.
Sua palestra de apresentação na reunião mensal do AA seria
considerado um show de lucidez, quando surpreenderia e comoveria
uma platéia tão numerosa quanto eclética, formada por
desembargadores, artistas, empregadas domésticas e marceneiros.
Ele começou dizendo:
— Não existe nada mais delicioso na vida do que birita. Uma
boa dose de vodca bem gelada. Mas é preciso merecê-la. Eu hoje
tenho que admitir que não estou sendo digno deste prazer.
E continuaria desfilando argumentos imbatíveis e charmosos a
favor da abstinência, do equilíbrio espiritual e da vida saudável. Sua
experiência no AA seria curta, apesar da encenação. Ele, que se
notabilizara por assumir posições firmes e determinadas, agora vivia
se esgueirando, tentando evitar qualquer confronto, em qualquer
circunstância. Alguns amigos se afastariam dele — não
necessariamente por mesquinharia ou desprezo, mas para não beber
junto, enquanto sua vida estivesse conturbada. Todos sabiam que ele
passava por um processo no qual estava imerso há muito tempo e do
qual teria que se livrar sozinho. Como dizem seus patrícios “polacos”,
para definir um certo estado de torpor provocado pelo álcool, ele
estava ficando de “miolo mole”. Apesar disso, reagiria com alegria ao
saber que Wilson Bueno estava na cidade planejando o lançamento
de um jornal de cultura, patrocinado pelo governo, que se chamaria
Nicolau. Eles se encontraram para planejar futuras edições
temáticas, das quais Leminski seria sempre um assíduo colaborador.
Ele aparecia na porta da sala de Bueno gesticulando de maneira
ambígua, com uma mão no sexo e a outra voltada pra cima, em
forma de concha:
— Um autor que se preza tem que ter volume, Bueno.
Na primeira edição do Nicolau, em julho de 1987, Leminski
apresentaria um abrangente panorama da nova poesia paranaense,
chamando atenção para nomes que considerava promissores. Era
como se ele estivesse passando o bastão para uma nova geração de
poetas. Falava de Marcos Prado (que morreria logo depois, ainda
jovem, por excessos etílicos), Rodrigo Garcia Lopes e Josely Vianna,
aquela para quem, declaradamente, ele arrastava as asinhas. Era
visto murmurando entre suspiros:
— Ah, Bueno, aquela pintinha no olho da Jose vale mais que
toda a poesia do mundo.
O que aconteceria, então, seria uma dose dupla de Josely, pois,
sem dúvida, houve muita harmonia entre eles quando traduziram
outros poetas e chegaram a ensaiar, ludicamente, uma série
intitulada “Poemas Neon-Barrocos”, unindo influências pop, haikai e
a “nossa cornucópica tradição barroca”. Leminski tinha acabado de
traduzir e lançar Fogo e água na terra dos deuses, que era um
assunto que interessava particularmente a ela. Moça tímida, Josely
iria sempre se comportar com extrema discrição. Ele a chamava de
Transpenumbra, apelido “neobarroco” que havia inventado. Na
época, Josely começou a namorar o artista João Virmond Suplicy,
que seria parceiro de Leminski em mais um bólido poético. Eles
freqüentavam o Café Poesia, perto do Teatro Guaíra, onde uma noite
Virmond desenhou um leque num pedaço de papel, escrevendo em
cima: “ó liberdade”. E Leminski, no ato, completou: “vento/onde
tudo/ cabe”. Quando estavam saindo, Josely voltaria para pegar a
anotação que ficara jogada sobre a mesa. A cena se repetiria nos dias
seguintes, em outros bares, quando nasceram outras composições a
partir de textos dele ou vice-versa. Como, por exemplo:
vazio agudo/ ando meio/ cheio de tudo.
Quando Josely se afastou de sua vida, motivada, sobretudo,
pelo excesso de álcool e pelas constantes crises de saúde que vinha
atravessando, Leminski sentiria o golpe, registrado no poema que
chamou de “Transpenumbra”:
tempestade
que passasse
deixando intactas as pétalas
você passou por mim
as tuas asas abertas
passou
mas sinto ainda uma dor
no ponto exato do corpo
onde tua sombra tocou
que raio de dor é essa
que quanto mais dói
mas sai sol?
Não seria surpresa, portanto, a partir destas noitadas e destes
envolvimentos, a volta das crises com Alice. Como também é verdade
que o principal motivo das neuroses seria o álcool, agora deixando
marcas visíveis em seu físico debilitado. (Ele estava se tornando uma
pálida lembrança do atleta que fora um dia.) Além de tudo, havia
sinais evidentes de que o nosso herói estava namorando, em São
Paulo, uma moça chamada Aninha. Alice, que de tudo era
informada, continuava escondendo dos amigos esta situação, que
nas últimas semanas tornara-se insustentável. Eles viviam uma
guerra de ciúmes em casa, quase sempre em prejuízo das crianças.
Aliás, Guerra dentro da gente seria o título de uma fábula
infanto-juvenil que Leminski escreveria em julho de 1987. Sua
principal interlocutora na construção do texto seria a pequena
Estrela, que passava as tardes ao seu lado, em casa. Na
apresentação do livro, ele propunha “menos guerra e mais amor”, ao
contar uma história “onde os milagres são freqüentes, onde existem
armas para acabar com todas as armas. Afinal, toda palavra aqui é
um gesto de amor”. Ele estava lidando com dois dos seus temas
favoritos: paixão e guerra.
E foi para discorrer sobre paixão, especificamente, que a
Funarte o convidou para a série de debates Os Sentidos da Paixão,
ao lado de nomes conhecidos como José Miguel Wisnik, Sérgio Paulo
Rouanet e Marilena Chauí. O coordenador do evento, Adauto Novaes,
ligara oferecendo o tema de uma forma abrangente, cabendo a ele
definir o assunto específico que gostaria de apresentar. Leminski
escolheria falar de “Poesia: a paixão da linguagem”. Uma semana
depois estava no Rio, onde debateria durante mais de uma hora,
defendendo um curioso postulado: o de que poetas podem ser um
erro de programação genética.
— O poeta é aquele produto que saiu com falha. Entre dez mil
sapatos, um sapato saiu meio torto. É aquele sapato que tem
consciência da linguagem, porque só o torto é que sabe o que é o
direito. Então, o poeta seria, mais ou menos, um ser dotado de erro,
e daí essa tradição de marginalidade, romântica, do século XIX pra
cá, do poeta bandido, banido e perseguido, vivendo socialmente em
condições adversas.
Ele chamava atenção para o interesse súbito pela palavra
paixão, lembrando que Affonso Romano de Sant’Anna tinha lançado
um livro, Paixão e política, e Alice um outro chamado Paixão chama
paixão. Fez charme com a platéia, onde estava o seu amigo Antonio
Cícero, que ele apresentaria como “grande poeta, irmão da cantora
Marina”. Lá pelas tantas, surpreendentemente, disparou:
— O amor é como o boxe, um esporte aristocrático que depois
se popularizou. A paixão, como a conhecemos, foi cultivada pelos
poetas provençais, na aristocracia da nobreza do Sul da França no
século XII, o amor cortês. Daí, sai toda a poesia portuguesa com as
cantigas de amigo, D. Dinis, que foi o conteúdo da nossa poesia
moderna.
do sinal de candura e do fino humor da obra, o seu particular
caso de amor continuava cada vez mais tempestuoso. As brigas com
Alice se sucediam, muitas vezes diante das filhas, que
acompanhavam tudo em silêncio. Silêncio que era um ato coletivo;
eles já não tinham mais o que dizer, estavam ficando mesmo sem
assunto. Ao mesmo tempo, o progresso de Alice no trabalho a
colocava a bordo de jatinhos executivos em viagens constantes para
Rio e São Paulo. Usava blusas de seda, tailleur e bolsa de couro,
adotando um modelo condizente com a função que exercia: era a
nova diretora de criação da agência, trabalhando 12 horas por dia.
Algumas vezes Leminski ligava no meio da tarde mas ela não podia
atender. A secretária era gentil: “A Alice retorna a ligação mais tarde,
depois da reunião.” Os papéis se invertiam, a gata estava subindo no
telhado.
A reação dele diante desta nova realidade seria quase de
desespero. Acusava Alice de estar traindo pressupostos de vida que
tinham estabelecido como parâmetros para a eternidade. Ela contra-
atacava dizendo que era um absurdo ele pensar assim, pois quem
trazia o dinheiro agora era ela, trabalhando com publicidade — e
argumentava em defesa própria: “E o que faremos com suas
namoradas? Vamos colocá-las em baixo do tapete?”
Pela primeira vez, Alice tentaria sugerir uma clínica
especializada em tratamento de alcoolismo, a qual ajudaria a pagar,
se fosse o caso. Leminski descartou a idéia de imediato. A gota
d’água, porém, aconteceria durante um almoço, quando eles
receberam a visita de Solda, agora trabalhando com a mulher do ex-
parceiro. Alice percebeu quando Leminski fez um movimento brusco
por trás dos livros, escondendo alguma coisa. Era uma garrafa de
vodca — e ela acreditava que ele não estava bebendo. Com muita
habilidade e dissimulação, ele tinha conseguido enganá-la por
alguns dias. Aos amigos mais íntimos confessava ter criado um
espaço atrás da estante que chamava de “litroteca”.
Os tempos que se seguiriam seriam infernais. Para complicar a
situação, Lemisnki contrairia uma doença venérea, ou algo parecido,
que se traduzia numa espécie de verruga na glande do pênis.
Assumindo uma idéia infeliz de automedicação, decidira fazer a
cauterização com as próprias mãos. Trêmulo, deixaria cair o
conteúdo do frasco sobre os órgãos genitais e a queimadura atingiria
as áreas do pênis e do saco. O resultado foi catastrófico. Ele berrava,
uivava, mas, como dizia o seu dístico favorito: “hic filius lacrimat
mater non audit” — aqui o filho chora e a mãe não ouve. À noite,
desesperado, ligaria pedindo ajuda ao amigo Rubão, dono do bar que
freqüentava, o Camarim, ao lado do Teatro Guaíra. Rubão entrou no
carro e, atravessando a cidade como uma ambulância, chegaria em
poucos minutos à Cruz do Pilarzinho. Mas, em vez de resolver,
complicou ainda mais o problema, recomendando a aplicação de
xilocaína no ferimento. A intenção era aliviar a dor, mas o remédio
agiu de forma contrária, acentuando a queimadura e terminando por
cauterizar toda a região. Leminski berrava e bebia vodca em grandes
talagadas. Em menos de 48 horas o ferimento infeccionou e ele foi
levado ao Hospital São Vicente onde, mesmo sedado, continuava
gritando de dor.
Alice chegaria de São Paulo a tempo de acompanhar estes
momentos dramáticos, tomando conta da situação. O ferimento era
uma chaga só, em carne viva. A equipe médica, depois de promover a
assepsia do local com a ajuda de anestesia geral, recomendaria que o
paciente fosse transferido para uma enfermaria de queimados.
Estavam, na verdade, se preparando para a crise de abstinência
alcoólica que deveria surgir nas próximas horas. Ao lado de outros
internos, e próximo ao monumental sofrimento alheio, todos queriam
crer, ele teria alguma chance de amenizar o seu. E o que aconteceria
nos próximos dias seria mesmo comovente.
Leminski transformou-se no animador de festas da ala dos
queimados, contando e ouvindo histórias com maestria. Usava de
toda sua erudição e talento para alinhavar enredos adequados à
ocasião, trazendo à luz as mais edificantes fábulas sobre sofrimento
e dignidade humana. Era reconhecido por todos como “o poeta e
músico Paulo Leminski”. Ele estava mesmo iluminado, diante de
uma platéia de queimados. É verdade também que passaria boa
parte do tempo com os olhos cheios de lágrimas, tentando resolver os
enormes sofrimentos daqueles que o cercavam.
Ao seu lado, envolto em ataduras de gaze, jazia um homem
com queimaduras de terceiro grau em 80% do corpo — um
desconhecido de quem apenas se podia enxergar os olhos e ouvir os
gemidos. Leminski adotaria o cidadão como seu ouvinte preferencial,
criando com ele uma irmandade instantânea. Sem apresentar sinais
de depressão, ainda encontraria tempo para fazer uma revisão no
Catatau, acrescentando um glossário ao texto original, conforme
solicitação de uma editora gaúcha, que manifestara o desejo de
reeditar a obra. Ele ainda comentaria com um amigo sobre o infernal
cheiro de queimado no ambiente, que definia como “hiper-realismo”.
Foram sete dias de enfermaria, em outubro, quando ele produziu o
poema “Sete dias na vida de uma luz”:
durante sete noites
uma luz transformou
a dor em dia
uma luz que eu não sabia
se vinha comigo
ou nascia sozinha
durante sete dias
uma luz brilhou
na ala dos queimados
queimou a dor
queimou a falta
queimou tudo
que precisava ser cauterizado
milagre além do pecado
que sentido pode ter
mais significado?
No oitavo dia, o poeta voltaria para casa com a recomendação
expressa de manter repouso e seguir rigorosamente os conselhos
médicos. Sentia-se fisicamente esgotado, mas o que mais lhe doía
certamente não eram as queimaduras. Tudo estava ruim.
A esperança da família em mantê-lo afastado da bebida não se
sustentaria por muito tempo. Uma noite, na mesma semana que teve
alta, ele não apareceu em casa e nem no dia seguinte. Voltaria no
terceiro dia, abatido e confuso. Ficara as últimas 48 horas ligado no
“piloto automático”, bebendo e cheirando cocaína com alguns
amigos, nos bares. Usava apenas ocasionalmente o “pó”, que
considerava uma droga da burguesia, “coisa de garotos da bolsa de
valores” — numa referência explícita à nova tendência da juventude
em ganhar dinheiro acima de tudo. Eram os yuppies — ou yaps,
como ele dizia — que estavam chegando. O ponho tinha acabado
anos antes, mas só agora o pesadelo começava efetivamente.
Em contato com médicos e companheiros do AA, Alice se
familiarizaria com o comportamento dos alcoólicos, conhecendo suas
famílias e compartilhando seus dramas. Por iniciativa própria,
consultaria uma adequada literatura sobre o assunto. Ouviria
conselhos médicos indicando que a última tentativa de fazê-lo parar
de beber seria negociar o casamento, condicionando uma coisa a
outra. Uma reação que talvez demorasse um pouco a surtir efeito,
mas que tinha boas chances de dar resultado, tal a dependência de
Leminski com a família. Apoiada moralmente por Áurea, Alice
preparava o espírito para a grande decisão, que seria um ultimato
curto e grosso.
Por outro lado, Leminski mostrava-se cada vez mais irascível,
algumas vezes mesmo destemperado. Não raro reforçava uma
postura suicida, falando em “morrer com dignidade”. Continuava
produzindo poemas densos cujas temáticas iriam traduzir estas
inquietações. Um deles dizia:
tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo feito
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu
tudo em minha volta
anda às tontas
como se as coisas
fossem todas
afinal de contas
Seu hábito de pensar e trabalhar andando, durante as
madrugadas, ganharia um impulso extra com a ansiedade que
estava sentido. Certo dia, após uma discussão com Alice durante o
almoço, retirou-se da mesa, jogando bruscamente a cadeira para o
lado. A pequena Estrela, com apenas seis anos, comentou:
— Acho que vocês têm razão. Vamos ter que nos separar do
pai.
Assim, Alice e as meninas decidiram partir. Ou melhor,
decidiram que Alice e Estrela sairiam de casa e que Áurea ficaria
mais algum tempo com o pai, enquanto fosse possível e necessário.
Na verdade, Áurea passaria a cuidar dele, ajudando na
administração mínima da casa, preparando o café da manhã,
separando as roupas para a diarista etc.... Este período se revelaria
importante para o relacionamento deles. Mesmo não sendo o modelo
paterno que Áurea idealizara — o grau de desleixo era absolutamente
insuportável —, eles se gostaram mutuamente, consolidando, por
fim, uma cumplicidade. Áurea recorda-se destes dias:
— Meu pai estava muito vulnerável e debilitado fisicamente.
Ele passou a conversar comigo como se eu já fosse uma mulher,
querendo saber minhas idéias e opiniões. Eu preparava uma sopa e
ficávamos no quarto conversando, ele tentando interpretar certos
fatos, usando-me como referência para fazer uma leitura das
relações.
Uma tarde, Áurea ligaria para Alice avisando que o pai estava
passando mal em casa. O clínico Júlio Caprioti seria imediatamente
acionado e, ao se inteirar dos sintomas, recomendaria a internação.
Alice apareceria com Estrela para ouvir, durante uma conversa
rápida com o médico, que o diagnóstico era de pré-cirrose hepática e
enfisema pulmonar. Uma hemorróida renitente e sangrenta fazia
parte do quadro clínico. Algumas vezes, quando se levantava e
caminhava, pedaços de papel higiênico ou guardanapos manchados
de sangue lhe caíam pelas calças.
A situação, segundo o parecer médico, era grave, mas ele ainda
poderia viver alguns anos caso concordasse em seguir uma dieta
rigorosa, estruturada a partir da eliminação quase absoluta de
gorduras. Pelo menos era o que se esperava dele: o máximo de rigor
na recuperação da saúde abalada. Mas os fatos quiseram diferente.
Antes mesmo que alguém apresentasse qualquer reação, Leminski
anunciaria à família um pacote de decisões pessoais de grande
impacto: sair de casa, parar de beber e voltar apenas quando
estivesse definitivamente recuperado. Sentindo-se ferido no seu
orgulho, murmurou para Alice que já tinha causado muitos
problemas e que o próximo gesto era dele. “É uma questão de
tempo”, garantiu.
Alice e as meninas voltariam para casa, enquanto ele se
mudava para o apartamento do jornalista Jaime Lechinski e da
artista Leila Pugnaloni — ele assessor de comunicação do prefeito
Jaime Lerner, de quem o poeta se aproximaria muito nesta fase.
Chegaria empunhando uma mala de couro, com algumas peças de
roupa, papel e canetas. O casal era amigo também de Alice, o que
facilitava as coisas. Logo no primeiro dia, Jaime chamou Leminski
para uma conversa em particular, quando lhe confidenciou que era
alcoólico e membro do AA, razão pela qual na casa não havia um bar,
propriamente. Explicou que ele e a mulher Leila tentavam evitar que
houvesse bebidas alcoólicas por perto, como prudência mínima
contra as tentações. Era uma farsa que estavam criando para
estimular uma abstinência na qual, acreditava-se, Leminski estava
empenhado até a medula.
E, efetivamente, ele pararia de beber por algumas semanas,
quando escreveu, a pedido dos Titãs, um texto para ser usado como
press release, chamado “Consciência selvagem x Capitalismo
selvagem”, onde sustentaria que os Titãs representavam “o que
restou do rock, suas letras são o que restou de um país falido, um
vice país vice governado, vice feliz, viceversa”.
Em casa, tomava chá pela manhã e recebia as visitas diárias de
uma psiquiatra, a doutora Margarida, e do médico, dr. Júlio. Diante
de uma receita de tranqüilizante que lhe fora recomendado —
Urbanil — sentiu-se motivado a escrever um texto em forma de
receituário, sobre um tal Boinil, ironicamente definido por ele como
“um remédio para boi dormir”. Estimulado pelos amigos anfitriões,
Leminski participava com entusiasmo das tertúlias programadas
para preencher as noites — agora regadas a suco de laranja e
refrigerantes.
O poeta suportaria quase dois meses esta situação. Depois de
combinar tudo com Alice, ele faria as malas e voltaria para o
Pilarzinho — uma vez que, supunha-se, ele estava mesmo
empenhado em parar de beber. Mas o período de abstinência duraria
pouco. Logo ele era visto novamente nos bares, cercado de amigos e
garotas. Voltaria a chegar tarde em casa, quase sempre cheirando a
cigarro e bebida. A situação doméstica, portanto, atingia o seu limite.
Alice tinha procurado um astrólogo para fazer um trabalho de
regressão e, durante a conversa gravada em fita, ela falava da
separação eminente do casal, dizendo que eles haviam “chegado ao
fim da linha” etc.... À noite, quando todos dormiam, Leminski —
morto de curiosidade — confiscou a fita na gaveta da cômoda e ouviu
as revelações de Alice. Assim que terminou, foi ao quarto acordá-la:
— Fofa, você vai mesmo se separar de mim?
Alice respondeu, enfática:
— Mas, Paulo, eu estou dizendo isso há meses e você não ouve!
Pode parecer um capricho do destino, mas o fato é que Alice,
Áurea e Estrela saíram de casa no dia 24 de dezembro de 1987.
“Deus”, diria ele, “porque tanta precisão?” Elas saíram carregando as
malas e ele ficaria sozinho na Cruz do Pilarzinho. Alice levaria o
carro e deixaria o telefone, única partilha possível nesta comunhão
de bens.
No dia seguinte, eles seriam vítimas de um desencontro
incrível, quando combinaram jantar em família na noite de Natal. O
destino manipularia os movimentos, fazendo Leminski pegar um táxi
e seguir para onde Alice estava; ela, na mesma hora, entrou no
Verdura e foi para a casa do Pilarzinho. Bastante nervosos e vivendo
momentos de freqüências distintas, eles não se encontrariam mais
esta noite. Alice recorda-se da frustração:
— Acabamos jantando sozinhas, eu e as meninas. Foi um
jantar triste de uma despedida que não houve. Desta vez nem o
acaso ajudou.
O silêncio na casa era insuportável. Ele tinha a impressão de
que a cabeça podia estourar a qualquer momento. Quando o telefone
tocava, corria e se atirava como um náufrago avistando uma bóia na
tempestade. Foi assim que eu o encontrei pela penúltima vez, em
Curitiba, numa quinta-feira ensolarada. Quando liguei de um telefone
público, por volta das 11 horas da manhã, era apenas para marcar
um encontro. Foi ele quem atendeu:
— Leminski!
— Salve, Paulo, estou ligando pra dizer que estou na cidade...
— Martins, é você? Venha pra cá AGORA!
— Paulo, escute...
— Entre num táxi e VENHA!
Quando cheguei pude perceber o jardim descuidado, a grama
alta e alguns galhos na varanda. Havia nuvens negras pairando sobre
a Cruz do Pilarzinho. Ele estava sozinho na cozinha tomando cerveja.
Entrei olhando para os lados, desconfiado, achando tudo esquisito.
Logo perguntei:
— Onde estão Alice e as meninas?
Ele respondeu com a voz contrita:
— Alice foi embora. Estamos separados. Áurea e Estrela foram
com ela.
Visivelmente triste, contou-me detalhes da separação — sem
blasfemar uma única vez. Estava monossilábico, como que esperando
que eu adivinhasse tudo que estava acontecendo só ao olhar para ele.
Dizia que, nestas horas, “o importante é a elegância”. O máximo que
faria seria se lamuriar, convencido de que Alice não era mais a mesma
pessoa, que tinha mudado de vida:
— Ela agora é uma executiva de publicidade. Resolveu fazer
carreira e viver na ponte aérea. Não me ama mais. Está morando com
as meninas num apartamento no bairro do Ahú.
Ficamos ali na cozinha, tomando cerveja e esmiuçando o
cotidiano. Ele contaria que enganava alguns amigos com uma suposta
abstinência. Falou nos dignos propósitos do AA — obviamente,
omitindo o diagnóstico de cirrose —, mas deixando claro sua
determinação com relação ao destino. A vida com o álcool era
intolerável, mas sem ele era impensável:
— Tenho que tomar uma birita pra levantar a peteca, ver o
mundo pela ótica certa.
A menção ao AA seria o primeiro sinal de gravidade que emitiria,
ainda que tentando matreiramente escamotear o assunto. Era próprio
dele desmanchar qualquer princípio de dramalhão que pudesse estar
sendo armado, ainda que por motivos reconhecidamente justos. Eu
argumentei, sem muita convicção, falando da minha experiência
pessoal, de quem estava levando uma vida mais saudável, com
caminhadas freqüentes e redução drástica no consumo de bebidas
alcoólicas — cerveja, no meu caso. Nenhuma sugestão para
“estacionar a máquina” ou assumir a caretice, apenas uma tentativa
de diminuir o ritmo da locomotiva. Sugeri que ele fizesse o mesmo, que
planejasse gastar as energias com longas caminhadas pelos campos
do Pilarzinho, um lugar favorecido pela qualidade do clima e
excelência do ar. Ele ouviria meus argumentos mas não os levaria
muito a sério. Estava profundo em sua angústia, parecendo dizer com
o olhar:
— Martins, nada de paliativos, ok?
Eu ainda voltaria ao tema, tentando torná-lo intelectualmente
palatável:
— Isto vale para covardes como eu, Paulo, que têm medo de
morrer. Estou chegando aos 40 e decidi me cuidar para prolongar um
pouco mais o prazer. Mas você sempre me pareceu um destemido.
Sua reação foi o silêncio. Quando ergueu a cabeça, lançou-me
um olhar oblíquo, mudando de assunto e falando da queimadura no
púbis e nos dias passados na enfermaria; uma experiência marcante,
pude perceber. Embora estivesse cansado e desorientado, em nenhum
momento me inspirou preocupação do ponto de vista físico. Tinha o
raciocínio mais lento, é verdade, mas ainda assim conseguia sustentar
uma conversa acima do trivial. Estava mergulhado num estado de
espírito que chamava de Marasmo Carlos. Usava as indefectíveis
sandálias franciscanos — ao lado dos tênis, seu calçado favorito —
que lhe acentuavam o aspecto messiânico.
Num determinado momento da nossa conversa, toquei
inadvertidamente num assunto proibido. Usando de um falsete quase
profissional, mencionei um encontro com o pequeno Kiko, filho de
Neiva, dias antes no Rio:
— O garoto está com uns 18 anos, toca num conjunto de rock
pesado e tem a sua cara. Você não acha muita coincidência!
(Silêncio)
— OK... Não vamos falar do assunto, é isso!
Ele estava de costas enchendo o copo e, curiosamente, não
apresentou sequer uma negativa que pudesse desfazer a dúvida. Algo
como, “o que é isso Martins, de onde você tirou essa idéia?”. Pelo
contrário, pincelou um silêncio absolutamente intrigante que se
prolongou por longos segundos. E mais não falou e nem lhe foi
perguntado. Terminamos a noite encharcados de birita, depois de uma
maratona que durou mais de 10 horas de consumo frenético.
No dia seguinte, ele teria uma nova surpresa com a visita
inesperada da ex-cunhada Elly e da sobrinha Ellinha. Elas estavam
passando de moto — com Ellinha na garupa, abraçada à cintura da
mãe — quando decidiram descer para uma conversa rápida.
Encontraram-no sozinho em casa, bebendo e mexendo nas
prateleiras da biblioteca, revirando livros e papéis. Os três ficaram
sentados nas almofadas da sala, durante um bom tempo,
conversando serenamente num tom até mesmo surpreendente para
Elly:
— Foi a melhor conversa que eu tive com o Paulo durante a
vida inteira. Ele parecia muito tranqüilo e bastante profundo na sua
solidão. Estava despido de todas as vaidades, com um semblante de
monge. Falou coisas lindíssimas...
Ao lado de uma vida poética e filosófica realmente rica, as
questões práticas naufragavam em águas profundas. Depois de
sofrer uma crise hepática na redação — quando teve que ser levado
às pressas para um hospital —, Leminski seria finalmente demitido
da Exclam. Ernani Buchmann, agora no papel de patrão, não via
mais condições de mantê-lo na agência:
— Ele não conseguia mais trabalhar. Estava disperso, tomando
vodca durante a tarde. Um dia meus sócios pediram uma definição.
Ele, que já tinha perdido a mulher, estava agora perdendo o
emprego.
Afastada dele há algum tempo, Josely receberia um telefonema
de uma amiga dizendo-se preocupada com o poeta, que parecia estar
mal de saúde, isolado e sem se alimentar adequadamente. Elas
foram encontrá-lo na desordem da casa, entre montes de papéis
velhos e livros que se espalhavam pelo chão da biblioteca e,
curiosamente, também no quintal dos fundos. Josely percebeu que
Leminski estava com os cabelos alvoroçados, óculos quebrados e
muito magro. Ela questionou singelamente as lentes quebradas,
dizendo que um escritor precisava ter uma boa visão do mundo. Ele,
sensível como sempre e com o espírito afiado, lembraria da equação
do sábio chinês, que dizia: “como no jade facetado, existem pelo
menos três pontos de vista: o meu, o teu e o verdadeiro”. “As outras
faces”, concluía, “sendo reflexos cambiantes, fabulares, de outros
olhares com o sentido do silêncio no centro.” Mesmo assim — e
apesar das filigranas — elas praticamente o arrastaram até uma
ótica na cidade, onde foram aviadas as novas lentes.
Leminski aproveitaria este encontro para pedir a Josely que
guardasse em sua casa alguns pertences que lhe sobraram no
desmanche do lar: o quimono de judô, com a respectiva faixa preta,
uma pequena mala de couro com um estilingue dentro, algumas
caixas com livros, fotografias, cartas e inéditos — inclusive os
originais de Metaformose, um ensaio de 50 páginas em forma de
“viagem pelo imaginário grego”, que ele escrevera em dezembro de
1986, ou seja, dois anos antes. Na caixa maior, Josely encontraria
um pequeno papel, meio borrado, onde estava escrito:
Maremotos em mares mortos. Pai morto. Mãe morta.
Filho morto. Irmão morto. Como querer que minha vida
não seja torta?
As aparências enganam. Uma tarde, Vítola receberia um
telefonema em caráter de urgência no escritório. Era alguém, algum
vizinho, ligando do botequim da esquina para alertar que o professor
Leminski certamente estava precisando de ajuda, pois tinha
comprado uma garrafa de álcool, “mesmo já estando embriagado”.
Vítola saiu em desabalada carreira em direção ao Pilarzinho,
tentando avaliar a gravidade da situação. Sabia que o amigo estava
passando por uma fase ruim, mas jamais imaginou uma situação
extrema.
Quando chegou, encontrou Leminski no quintal,
tranqüilamente sentado ao lado de uma fogueira onde ardia em
chamas uma pilha de livros e papéis. Ele estava consolidando uma
revisão em suas mais íntimas anotações e escritos, queimando —
numa espécie de inquisição particular — o que não considerava
digno de ser lido. Movido por uma eterna adolescência, Leminski
contemplava a chama azul da fogueira afirmando estar ouvindo os
últimos suspiros de alguns poemas preteridos. Tinha um copo de
cerveja bem gelada à mão. Dois dias depois, ele entregava as chaves
da casa do Pilarzinho para a família Pietruk e embarcava para São
Paulo, carregando a velha e surrada mala de couro.
CAPÍTULO 9
O POETA DESCALÇO
“Um milagre por dia”, assim ele definiria suas necessidades de
sobrevivência a partir de agora. Quando desembarcou na rodoviária
de São Paulo, estava ciente de que o próximo milagre deveria
acontecer rapidamente, antes que a noite chegasse. Entrou num táxi
e seguiu para a casa da amiga Fortuna, que mesmo sendo namorada
de Ademir Assunção, o Pin, morava sozinha no bairro de
Higienópolis. Fortuna ofereceu e Leminski aceitou ocupar um dos
quartos do amplo apartamento com vista para o Pacaembu — e, ato
contínuo, trataria de anunciar aos amigos que estava na cidade.
Dizia estar chegando com a intenção de permanecer alguns dias,
talvez semanas, mas a temporada acabaria se prolongando por
vários meses. Ele aproveitaria a ocasião para consolidar o namoro
com Aninha, sua companhia constante nestes dias. Juntos, eles
formavam um grupo animado pela noite paulistana, onde Fortuna
costumava se apresentar em bares e teatros, desfilando um
repertório típico da MPB. Em outros momentos, Leminski podia ser
visto em companhia de velhos e novos amigos, como Haroldo de
Campos, Itamar Assumpção, José Miguel Wisnik, Arnaldo Antunes e
Edvaldo Santana, o Baitola. Entre os novos, um deles, o cartunista
Glauco, se aproveitaria (no bom sentido, é claro!) do estereótipo
leminskiano para criar o personagem Tio Lema, história em
quadrinhos cujas tiras seriam publicadas durante vários meses na
Folha de S. Paulo.
Havia claros indícios — observados pelos amigos — de que ele
estava entrando em sua fase mais radical com relação a bebida, ao
tomar vodca minutos após o café da manhã. Ou melhor, já não havia
mais café da manhã. Ao que tudo indica, agia escondido de Fortuna,
que não recorda tê-lo visto bebendo em casa:
— O Paulo mantinha um comportamento muito civilizado. O
único deslize em vários meses foi esquecer o fogo ligado com uma
chaleira de água. Ele gostava de beber nos bares, cercado de amigos.
Nas ruas, vivia como se o mundo pudesse acabar a qualquer
momento, afirmando com convicção que sua urgência não podia ser
confundida com pressa. Estava sempre em companhia de jovens —
moças e rapazes com pendores poéticos — que viam nele um
exemplo de intelectual autêntico e confiável. Continuava escrevendo
poesias com disciplina profissional, levando a sério a recente safra
que vinha arquivando numa pasta denominada La Vie en Close.
Pinduca recorda-se de que Leminski trabalhava diariamente na casa
de Fortuna, ouvindo Frank Zappa:
— Era uma compulsão. Durante a noite, nos bares, escrevia
em guardanapos e pedaços de papel, fazendo um bolo de pequenas
anotações. No dia seguinte, sentava-se na máquina e dava forma
definitiva aos poemas. Depois deixava os textos largados em
qualquer lugar para que pudessem ser vistos.
Um poema representativo desta fase:
a todos os que me amam
ou me amaram um dia
deixo apenas um padre nosso
meio mal passado
e essa espécie de ave maresia
Ou então, esse outro, também sugestivo:
o que o amanhã não sabe,
o ontem não soube,
nada que não seja hoje
jamais houve
Leminski e Fortuna se tornariam grandes amigos. O convívio
diário favoreceria uma batelada de conversas íntimas e profundas.
Eles se identificariam — além da paixão por música e arte — como
duas pessoas abaladas em seus projetos de auto-estima. Enquanto
um tratava o próprio corpo como um “boneco”, jogando-o para cima e
para baixo, a outra sentia-se carente de convicção naquilo que vinha
fazendo, tanto no plano pessoal como profissional. E, pior, Fortuna,
que nunca consumira drogas, se descobriria vivendo emoções
equivocadas, forjando uma realidade que implicava negar o próprio
judaísmo de suas origens. Nesta hora, Tio Lema se mostraria um
bom conselheiro. Era algo como: “quem anda fora dos eixos tem uma
melhor visão deles”. Fortuna, que era treze anos mais nova, atesta
que em pouco tempo “caiu a primeira ficha”:
— O Paulo, que era reconhecidamente um marginal, me
ajudaria a entrar nos trilhos. Estava ao lado, junto comigo, fazendo
as reflexões mais dolorosas sobre a vida e nós mesmos. Foi
emocionante. Eu nunca tinha olhado tanto e tão profundamente
para dentro de mim.
Fortuna se tornaria uma das poucas pessoas com quem
Leminski falaria da morte dos pais, do Miguelzinho, do irmão Pedro
— e de todas as coisas que lhe tinham acontecido e escapado pela
vida. Ela concluiria, depois de vê-lo desnudar-se em montes de
reminiscências, que ali estava um homem saturado de emoções:
— Era evidente que o Paulo sentia-se culpado por estas mortes.
Carregava um duro fardo nas costas. Emocionava-se com freqüência
e chegava às lágrimas, tendo que tirar os óculos para enxugá-las. Ele
estava vivendo um momento muito delicado.
Sua chegada a São Paulo vai coincidir com o lançamento de
Guerra dentro da gente, livro com temática infantil no qual ele é
apresentado como um designer de texto. A edição era limitada e
despretensiosa, formando um pequeno livreto de 60 páginas onde se
apresenta, em linguagem fabular, o diálogo de um velho ensinando a
arte da guerra para um garoto. No prefácio, o indicador:
Nesta vida
Pode-se aprender três coisas de uma criança:
Estar sempre alegre,
Nunca ficar inativo
E chorar com força por tudo o que se quer.
Em entrevista a um jornal de Curitiba, o autor explicaria a
obra:
— É um livro que vai atingir meninos e meninas, ambos vão se
identificar com os personagens. Eu quis fazer uma história que
atingisse os dois sexos. Mas é justamente a menina que acaba
mostrando o outro lado do céu, a dimensão feminina da novela.
No início de 1988, ainda tendo que operar um milagre por dia,
subitamente o dinheiro acabou. Ele tentaria levantar algum com a
editora Brasiliense, através de Caio Graco, fez vários telefonemas,
pediu e implorou, mas nada conseguiu. Começaria, então, a procurar
trabalho em caráter de emergência, com a ajuda de Fortuna e
Pinduca.
O primeiro trabalho remunerado surgiria justamente pela
intermediação de Pinduca. Era uma oficina de texto com duração
prevista para três meses, no Centro Oswald de Andrade, um órgão da
Secretaria de Cultura do Governo Fleury. O dinheiro que ofereciam
não era nenhuma maravilha, mas ajudava nos gastos. Ele precisava
pelo menos de alguns trocados para o conhaque e o táxi, os gastos
básicos, ao lado do cigarro — e aceitou a programação. Entre os seus
alunos estava Rodrigo Lopes, que testemunharia o sucesso destas
palestras:
— Todos adoravam o Leminski. Enquanto a maioria dos poetas
é obsessivamente egoísta, paranóica e supercompetitiva, ele não
tinha medo de passar informação, em dizer francamente do que
gostava e não gostava. Sua alma era cosmopolita, dialógica, curiosa.
Depois das oficinas, íamos ao boteco da esquina, onde a conversa
continuava mais saborosa.
Quando Pinduca foi convidado a trabalhar na TV Bandeirantes
como redator de um telejornal a ser lançado — o Jornal de
Vanguarda —, surgiria para eles uma luz no fim do túnel. Pin
hesitaria em aceitar a vaga, preocupado com o distanciamento
técnico que mantinha do veículo televisão, mas negociaria um tempo
mínimo para responder: 24 horas. Em casa, pediria conselhos para
Leminski sobre como deveria fazer, por exemplo, com a abertura do
programa. No dia seguinte, logo pela manhã, Leminski lhe entregaria
o texto pronto para ir ao ar. Por vários motivos, inclusive este, Pin
lhe passaria o trabalho. Na verdade, Leminski já vinha conversando
com o diretor Renato Barbieri, que queria vê-lo apresentando uma
coluna semanal de cultura. Ele acumularia, então, as duas funções:
seria redator e colunista. O negócio foi fechado e ele passou a
freqüentar os estúdios da TV Bandeirantes, no Morumbi, onde
chegava diariamente por volta das 18 horas:
— O poeta foi um aditivo para todos nós — declara Barbieri. —
Trouxe novas fórmulas, criou vários vídeo-poesias — os chamados
“clip-poemas” — e demonstrou um grande domínio da linguagem
audiovisual. Era um casamento perfeito com a televisão.
Ele estava conquistando um espaço cultural valioso, ao ocupar
uma rede de televisão e criar performances poéticas para mais de um
milhão de espectadores, de segunda a sexta-feira. Ao seu lado, como
parceiros nesta aventura criativa, estavam nomes consagrados como
Fausto Wolff, Fernando Gabeira, Waly Salomão e Gilberto Gil. O
professor Pignatari, destacado para apresentar um quadro sobre
Televisão, voltaria a encontrá-lo sempre às pressas, na redação do
jornal:
— O Leminski estava mais magro e tinha um aspecto doentio.
Os colegas estavam preocupados com seu estado de saúde. Mesmo
assim, ele produziria bons momentos de poesia, agora trabalhando
com outra linguagem.
A estréia como colunista de televisão aconteceu em 31 de maio
de 1988, com a abordagem de um tema maldito: a grafitagem. Com
imagens noturnas da cidade de São Paulo, sua voz aparecia em off
falando de “um tipo de bandido urbano que não produz feridas,
produz letras: o grafiteiro”. O próprio Leminski, então, aparecia com
um tubo de spray em punho, pichando um muro com a frase criada
anos antes pelo Seqüelas:
Quem tem Q.I., vai
Seus quadros eram apresentados por Doris Giesse, ex-modelo
de publicidade que fazia sua estréia na televisão. Ela conhecia a
poesia de Leminski dos tempos de estudante na Unicamp, mas no
Jornal de Vanguarda estaria mais próxima dele, vendo-o trabalhar.
Ele era o seu principal redator e mentor. Doris ficava fascinada e, ao
mesmo tempo, confessa, temerosa:
— O Leminski nos empurrava para os limites. Quando eu
conversava com ele, sentia um frio na barriga, pois ele propunha
sempre uma performance audaciosa, nada comportada. Queria que
eu perdesse a postura clássica de apresentadora de televisão. Eu,
que já era influenciada por Denise Stocklos, tinha agora um outro
“demoniozinho” paranaense a me estimular no trabalho.
O comportamento do poeta na redação era estranho:
trabalhava praticamente deitado sobre a mesa, procurando uma
posição para diminuir as dores abdominais. Não reclamava de nada,
mas era evidente que tinha problemas de saúde. Nestes dias, pela
primeira vez, Pinduca detectaria sinais de debilidade e doença no
amigo:
— Eu dei uma carona até o Morumbi. Antes de entrar no carro,
ele foi até o botequim e virou uma dose de conhaque. No caminho,
quando estava dormindo, eu tive uma visão tenebrosa, e
aparentemente inexplicável, olhando para ele. E pensei: “Ih, ele está
mal.”
Em suas anotações, Leminski deixaria registrado estes
sintomas:
um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisas que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra
A namorada Aninha também reagiria ao excesso de álcool,
decidindo “dar um tempo” na relação. Antes, tentaria levá-lo para o
AA paulista, mas ele rejeitaria com veemência, mostrando-se
irredutível:
— Alcoólicos anônimos, jamais. Eu hoje sou um alcoólico
famoso!
Aninha se foi para não mais voltar. Para compensar, ele recebia
as visitas regulares de Josely e João Virmond, que vinham de
Curitiba para animar a festa. Eles passaram o carnaval de 1988 em
Ubatuba, no litoral paulista, onde estavam também Pinduca,
Fortuna e Itamar Assumpção. A casa era de Ana Cordeiro, filha de
Waldemar, que ele conhecera nos velhos tempos de poesia concreta.
Nestes dias, sua parceria com Virmond, nascida nos bares e cafés de
Curitiba, ganharia contornos finais. Eles decidiram chamar de
Winterverno o trabalho que vinham desenvolvendo, desde que Josely
assumira o papel de “coordenadora de rabiscos e guardanapos”,
organizando a produção “quase” informal da dupla. Certo dia, a
partir de uma observação feita por Pinduca — que se debruçava
sobre uma cena de natureza-morta, na cozinha —, Leminski foi
procurar um papel e uma caneta e em poucos minutos voltaria com
o lance em forma de poesia:
acabou a farra
formigas mascam
restos da cigarra
Ele continuaria produzindo poemas, que canalizava também
para o programa de televisão. Em julho, estaria novamente no ar
para enaltecer o valor das camisetas “como suporte para poemas”,
literalmente se vestindo de poesia — dele e de outros autores. A
última peça de roupa que vestiu, finalizando o quadro, era um
quimono com ideogramas orientais. Doris Giesse apresentaria o
quadro dizendo que “para Paulo Leminski, poesia se leva no peito”.
No dia 7 de setembro, uma performance audaciosa no estúdio,
com o cartunista Miguel Paiva interpretando D. Pedro II tocando
piano. Como fundo musical, o Hino da Independência, o objeto da
análise. Ele aparecia no vídeo sem óculos, com os restos de um único
dente na arcada superior e muita autoridade moral, para dizer:
— O Brasil é uma piada de português. Nós fomos descobertos
por acaso e a nossa independência veio de um grito, dado por um
príncipe que representava o próprio poder que nos oprimia. Ouçam o
que diz este hino.
Analisando ironicamente diversas imperícias do texto oficial,
Leminski concluiria questionando a palavra de ordem que diz:
— Ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil. Não seria melhor
ficar a pátria livre e VIVER pelo Brasil?
Ao longo de sete meses, tempo que duraria sua participação no
Jornal de Vanguarda, ele levaria ao ar diversos temas de sua real
preferência. Uma homenagem a Carlos Drummond de Andrade no
primeiro aniversário de morte; ironizava o Descobrimento do Brasil,
alertando que “se o brasileiro não descobrir o Brasil, alguém de fora
o fará novamente”; dramatizaria um monólogo sobre Guimarães
Rosa, assumindo a dicção de Diadorim, o personagem de Grande
sertão. Em outro momento dramático, desempenhava o papel de
Kafka atrás de grades gráficas, construídas com textos (o prisioneiro
das palavras), apresentando o perfil de um homem
irremediavelmente excluído do convívio social e intelectual da
sociedade. Sua performance mais teatral, entretanto, seria a
reprodução do ritual de harakiri desfechado pelo samurai Mishima, o
guerreiro homossexual, que ele havia traduzido anos antes. O diretor
Barbieri reconhece as qualidades dramáticas de Leminski:
— Ele era um bom ator. Tinha uma dimensão global do papel
da arte, o que lhe tornava tudo acessível, em vários planos.
Durante o tempo que esteve na casa de Fortuna, ele voltou
algumas vezes a Curitiba e, em outras ocasiões, Alice e as meninas
foram visitá-lo em São Paulo. Num desses encontros, eles fizeram
juntos a seleção final da última safra de poemas, que seria
definitivamente batizada de La vie en close. Alice lembra-se de que
Leminski alternava momentos de depressão com total descontração e
euforia. Quando depressivo, reagia dormindo; quando alegre e des-
contraído, bebia além do normal. Nestes dias, eles reencontrariam
Lúcia Turnbull, que os acompanhou em algumas noitadas:
— O Leminski estava bebendo muito. Ele era como um trem —
e ninguém consegue parar um trem. Só mesmo uma paixão.
Numa das idas a Curitiba, quando ficava hospedado no
apartamento de Josely, na Galeria Lustosa, Leminski conheceria
uma jovem cineasta, Berenice Mendes, que lhe fora apresentada por
amigos comuns. Na verdade, ele foi à casa dela com um grupo
animado, numa tarde de sábado, e a encontrou com um livro na
mão: A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera — que ele
criticaria com o pretexto dissimulado de iniciar uma conversa a dois.
Dez minutos depois, eles continuavam na seção “olho no olho” da
qual sairiam irremediavelmente atraídos um pelo outro. O encontro
só não foi mais avassalador porque Berenice mantinha um
relacionamento amoroso com outra moça — também cineasta — com
quem dividia a casa e o trabalho. Afastando-se do fogo cruzado,
Leminski voltaria a São Paulo com a promessa de ligar quando
chegasse em casa. E assim o fez, criando um vínculo afetivo entre
eles.
A vida na televisão e a rotina da cidade grande colocavam o
poeta num ritmo frenético de produção, que iria se revelar, num
futuro próximo, profundamente desgastante. Não tinha problemas
financeiros — pois recebia um bom salário e continuava com as
despesas básicas reduzidas —, mas gastava sempre na mesma
proporção que ganhava. Continuava sem carteira de identidade e,
como conseqüência, tendo problemas para receber o salário no final
do mês. Domingos Pellegrini, o escritor de Londrina, lembra-se de tê-
lo visto andando atabalhoado pela cidade, tomando precauções de
guerrilha para atravessar uma rua. Estava trêmulo e inseguro. Ele e
Pinduca freqüentavam um bar, em frente à Faap, onde bebiam
conhaque e cerveja e falavam o tempo todo de poesia. Sua conversa
estava se tornando vertiginosa e seus poemas continuavam radicais
e inflamados. Um deles:
cinco bares, dez conhaques
atravesso são paulo
dormindo dentro de um táxi
Houve uma noite agitada na casa noturna Dama Schok,
quando a grande atração era o conjunto Legião Urbana, com Renato
Russo no auge da fama. O show de abertura estava a cargo de
Fortuna e sua banda. Leminski pediria para dar uma canja antes da
apresentação da amiga, no que foi prontamente atendido. Ele
decidiu, então, que apresentaria duas ou três músicas, sozinho,
acompanhado apenas do violão. No camarim, entornou várias doses
“para quebrar o gelo” e quando entrou no palco estava trôpego,
vestindo uma calça vermelha que lhe caía pela bunda, deixando
metade dos glúteos à mostra. Sentou num banquinho e cantou “Se
houver céu”..., e o resultado foi uma estupenda vaia. A platéia,
formada basicamente por adolescentes radicais, considerou o
espetáculo xx-bizarro e foi implacável com ele. Era a vertigem do
universo. Pinduca recorda-se da cena:
— Os garotos gritavam: Fora! Sai dessa! Ele não entendia o que
se passava e berrava no microfone, em estilo heavy metal: “Porra,
vejo que vocês estão adorando minha música e vou cantar mais
uma.” A segunda música ele cantou embaixo de vaia. Assim que foi
possível, a produção tratou de tirá-lo do palco.
Em setembro de 1988, Leminski voltaria a apresentar
complicações de saúde quando, por sugestão e iniciativa de Fortuna,
seria levado a um hospital. Lhe seria oferecido, pela segunda vez —
e, agora, de uma forma mais contundente —, o diagnóstico de
cirrose. A avaliação médica era de que um terço do fígado estava
necrosado. Ele estava cuspindo sangue e tinha as fezes brancas
como uma folha de papel. Alimentos sólidos provocavam-lhe ânsias
de vômito e não paravam no estômago. Assustado com a própria
debilidade, mas ao mesmo tempo inabalável em seus propósitos, sua
primeira reação foi escrever um bilhete, que seria guardado por
Fortuna e posteriormente por Pinduca:
Este pode ser meu último texto.
Talvez eu repita o destino de Fernando Pessoa,
aos 44 anos e do mesmo mal.
Nunca estive muito interessado em envelhecer,
eu que sempre amei a juventude.
Quero repousar em Curitiba, ao som dos Beatles.
Com o meu quimono de faixa preta.
Saio da embriaguez de viver para o sonho
de outras esferas.
Alice: por toda uma vida.
Ana: obrigado pela vida que você me deu.
Fortuna: você foi demais pra mim.
Áurea, Estrela: vou amar vocês até o fim e depois.
Surpreendentemente, assim que se recuperou do impacto da
crise, ele passaria a mão no telefone e ligaria para Alice:
— Fofa, parei de beber! Fortuna me levou a um acupunturista
chinês e eu tenho que fazer uma dieta danada. O problema é que a
Fortuna viajou...
Alice pegaria um ônibus e desembarcaria em São Paulo na
manhã seguinte para fazer supermercado para ele. E o que ela
encontrou não era nada animador:
— O Paulo estava com uma cor terrível, esverdeada. Tinha o
abdome saliente, revelando problemas nos órgãos internos. Ele me
falou, na maior cara de pau, que por causa da doença tinha
diminuído sua disposição sexual. Justo no momento em que,
garantia, estava com seis namoradas, três em cada cidade.
Ele estava justamente reclamando que não podia dar conta das
namoradas, quando a campanhia tocou. Para surpresa geral, mas
sobretudo para ele, era Berenice, uma delas. Houve um ligeiro mal-
estar no ambiente. Desnorteado, Leminski conseguiu dar meia-volta
e ir dormir, deixando-as na sala. Alice entendeu o que se passava e
decidiu falar do estado de saúde dele, que inspirava cuidados.
Neste ponto, existe uma contradição flagrante no depoimento
das duas mulheres. Enquanto Berenice afirma nunca ter sido
informada sobre o diagnóstico de cirrose — nem por ele e nem por
ninguém —, Alice garante que abordou o assunto exatamente neste
momento, na casa de Fortuna. Mais tarde, diante da dúvida,
Berenice reconheceria que talvez não quisesse ouvir a verdade, pois
“como pode alguém se apaixonar e casar com uma pessoa que está
morrendo?”.
Sem mais nem por quê, Alice voltaria para Curitiba enquanto
Berenice ficaria alguns dias namorando em São Paulo. Foram
tempos de primavera para o novo casal. Os programas eram quase
sempre culturais e temáticos, fechando a noite no bar das Putas,
reduto tradicional da boemia paulistana. Berenice estava decidida a
pôr fim num casamento de dez anos — que envolvia também uma
sociedade na produtora de filmes — para ficar com ele. Houve uma
proposta de um triângulo amoroso — apresentada menos como
fetiche e mais como solução de harmonia — que a companheira de
Berenice descartou imediatamente. O estágio de namoro, portanto,
se estenderia ainda por vários meses, com o relacionamento se
tornando cada vez mais intenso e inevitável.
Na noite de 22 de setembro de 1988, Leminski e Fortuna
estavam na platéia do show de Walter Franco, na sala Adoniran
Barbosa, para ouvir um poema de sua lavra, “Pedra polida”, em
versão musical. A peça seria apresentada com arranjos de Cid
Campos, filho de Augusto, então baixista da Banda Nova. No final,
chamaram-no ao palco, onde ele subiu trôpego e desajeitado, para
receber uma calorosa salva de palmas. Era evidente que desfrutava
de grande prestígio junto aos jovens intelectuais paulistas — como
poeta, era o darling do caderno “Ilustrada”, da Folha de S. Paulo —
mas, no íntimo, sentia-se aturdido e massacrado pelo ritmo
avassalador da cidade. Nada de que não pudesse abrir mão em troca
da tranqüilidade e da neblina de suas araucárias. Assim, quando a
decisão de voltar a Curitiba surgiu pelas vias sinuosas da paixão, a
manobra lhe caiu como uma luva.
A despedida do Jornal de Vanguarda aconteceria em 3 de
novembro, com a sua performance mais sóbria e ao mesmo tempo
mais quadrada do ponto de vista formal: a leitura standard do poema
“O que passou, passou?”. Em seguida, sentindo-se fraco e
desnutrido, Leminski despedia-se de Fortuna, Pinduca e Itamar e
voltaria para Curitiba com Berenice. Ele queria chegar a tempo de
votar em seu candidato, Jaime Lerner, nas eleições para prefeito, no
dia 15. Logo depois, estavam ambos dentro de um ônibus, descendo
a famigerada e tétrica Rodovia da Morte, a Régis Bittencourt. Eles
viajaram sabendo que quando chegassem a Curitiba não poderiam
continuar juntos, pois, embora a situação já estivesse definida em
fórum íntimo, Berenice ainda continuava morando com a ex-
companheira:
— O Paulo foi me seduzindo até não me restar outra alternativa
se não me separar. A decisão foi difícil e, neste momento, exigiria
ainda algumas semanas de conversações.
Pelo telefone, no dia anterior, Leminski contara uma pequena
mentira para Alice, dizendo que chegaria na rodoviária de Curitiba
por volta das cinco horas da tarde. Ele nada pediu, apenas
comunicou. Alice decidiria buscá-lo na hora marcada, mas não
encontraria ninguém, além de rostos anônimos e sonolentos
descendo do ônibus. Ele havia embarcado em outro horário, horas
depois.
Quando se viu sozinho em Curitiba, no começo da noite,
Leminski estava confuso e não sabia que rumo tomar. Na dúvida,
seguiu para um bar atrás do Teatro Guaíra, onde poderia encontrar
alguns amigos. O publicitário César Bond, um ex-colega da agência
Múltipla, o encontraria ali. Apresentava sinais de embriaguez e
parecia bastante fraco, alegando não ter onde dormir. Bond levou-o
para sua casa, onde providenciou um repasto acompanhado de
umas cervejas. Havia um gravador portátil na casa, que eles usaram
para registrar conversas sobre arte, cultura de massa e literatura. Na
gravação, a voz de Bond é ouvida discretamente em mais de uma
hora de conversa. Leminski falava como quem escreve uma carta-
testamento — ou algo parecido — ao analisar pela última vez
diversos temas do seu universo intelectual (ver Apêndice 11).
Pouco depois, Bond pediria ajuda aos amigos para encontrar
um lugar onde Leminski pudesse ficar. Pensou mesmo em interná-lo,
por perceber que o poeta estava fraco e sofrendo de fortes dores
abdominais. Ligou inicialmente para Solda, que prometeu falar com
Paulo Vítola, que por sua vez tentaria resolver o problema. Assim, ele
foi localizado pelos amigos depois de meses de ausência de Curitiba.
Vítola teve a idéia de colocá-lo temporariamente num hotel, enquanto
as coisas tomavam um rumo qualquer. Leminski foi morar no Hotel
Elo, na rua Amintas de Barros, ao lado da Reitoria e da Faculdade de
Letras, onde fora aluno um dia. Era um quarto pequeno mas
confortável, onde ele construiu um varal com barbantes para fixar
seus poemas — folhas brancas datilografadas, como roupas comuns
dependuradas. Um deles tinha o título “Estupor”:
esse súbito não ter
esse estúpido querer
que me leva a duvidar
quando eu devia crer
esse sentir-se cair
quando não existe lugar
aonde se possa ir
esse pegar ou largar
essa poesia vulgar
que não me deixa mentir
Sua companhia mais freqüente nestes dias era Rubão, o arauto
da xilocaína, que lidera com folga o ranking dos “amigos-da-onça” —
segundo avaliação de pessoas próximas ao poeta — por “arrastá-lo”
irresponsavelmente para as esbórnias da noite. Rubão não aceita o
título “honorífico” e defende-se, lembrando ser apenas o dono do bar:
— O Leminski chegou a morar em minha casa por alguns dias.
Estava todas as noites no Camarim porque ali tinha vários amigos.
Quando o bar fechava, em função de um feriado ou coisa assim, ele
era visto caindo em botequins baratos, perto da rodoviária. Além do
mais, ficou meu amigo. Dizia que se tivesse um bar daria o nome de
Bar ou Ímpar.
Foi num sábado, depois de uma tarde de biritas no bar do
Passeio Público, que o cartunista Dante Mendonça, vendo Leminski
sozinho e aparentemente sem destino, decidiria convidá-lo para
saborear um prato de comida em seu apartamento. Dante foi para a
cozinha preparar alguma coisa. Eles continuaram bebendo e
conversando por algum tempo, até Leminski literalmente capotar no
sofá da sala. No dia seguinte, quando partiu, deixou para trás um
cheiro amargo impregnando o sofá, algo como a sudorese da bílis,
que permaneceria no ar ainda por muitas semanas. Quando,
finalmente, Dante descobriu a origem do espantoso mau cheiro num
certo canto da casa, confidenciou para a mulher:
— O Leminski está com sérios problemas hepáticos.
Já se disse que o poeta estava pálido e magro da cintura para
cima, como um pino de boliche. Quando Alice o encontrou, ele não
dormia além de três horas por dia, quase sempre desmaiando. Ela
perceberia nele um olhar apavorado, “o olhar de um homem que
sabe que vai morrer”. Seu hábito de não puxar a descarga do vaso
sanitário — que em outros tempos era motivo de rusgas entre eles —
revelaria que sua urina estava com uma tonalidade entre o marrom e
o vermelho, quase cor de sangue. A visita que ele planejara tinha
como pretexto rever as meninas e passar uma tarde em família. Por
sorte, ele encontrou Alice anestesiada pela opinião de amigos, que
lhe pediam para não “endurecer o jogo” — e ela, então, como que
fazendo parte de uma encenação bíblica, lhe ofereceria uma acolhida
resignada. Sua benevolência iria lhe custar o peso da desistência, ao
se reconhecer impotente para alterar a realidade. Como que
atingidos por um efeito embriagador instantâneo, Leminski e Alice
puderam sentir novamente — por poucos minutos — o sabor da
velha cumplicidade:
— Diante da situação de relaxamento, ele tentou transar
comigo, queria fazer sexo como antigamente. Eu parei e disse que a
gente tinha que dar um tempo. Sustentei a condição para uma volta:
primeiro ele teria que cuidar da saúde.
Esta noite, Leminski iria dormir sozinho no hotel, onde
repetiria o comportamento desvairado que vinha cometendo na casa
de Bond, ao andar nu pelos corredores a qualquer hora do dia.
Acumulavam-se reclamações de hóspedes contra ele, o que deixava a
situação à beira do insustentável. Seu discurso mais freqüente tinha
como objetivo enaltecer figuras que se mataram, começando por
Yukio Mishima. Era uma estratégia recorrente: em épocas que bebia
muito, falava das pessoas geniais que bebiam; quando parava de
beber, dizia o mesmo dos abstêmios da história. Agora, tinha um
discurso maravilhoso sobre os gênios que tinham se matado, mesmo
involuntariamente.
Em novembro de 1988, após um ano de namoro, Leminski e
Berenice puderam, finalmente, “juntar os trapos”. Ele deixaria uma
dívida no Hotel Elo (e também alguns pertences, que nunca seriam
resgatados) e iria morar no apartamento dela, na praça Santos
Andrade. Logo alugariam uma casa e se mudariam para a rua Duque
de Caxias, próximo às cinco tias, que ele visitava regularmente “na
hora da sobremesa”. Assim que se instalaram, uma Kombi de
aluguel estacionou na porta trazendo caixas e mais caixas de livros,
papéis, fotos, o arquivo completo, enfim, de Paulo Leminski — e, no
subscrito, Alice Ruiz. Ele e Berenice, que era quinze anos mais
jovem, gastaram as primeiras semanas do casamento organizando
estes arquivos, enquanto revolviam com palavras o passado de suas
vidas.
Sua volta a Curitiba seria saudada pela imprensa local com
efusivas reportagens de boas-vindas. No dia 27 de novembro, o
resultado de uma conversa informal com a repórter Adélia Lopes
seria publicado nas páginas do jornal O Estado do Paraná com o
título: “Leminski: a vida espiritual é muito material”. Ocupando três
páginas do suplemento “Almanaque”, a entrevista era ilustrada com
fotos onde, pela primeira vez, ele não aparecia em sua casa, mas no
alto de um edifício, tendo a cidade como cenário. Na legenda, um
slogan que perpetuaria sua ligação territorial: “Nunca saí de
Curitiba. Pinheiro não se transplanta”. Ao refletir sobre sua
experiência de oito meses fora de casa, diria:
— Fui para uma megalópole, uma supercidade, a Nova York
que nós merecemos, no bom e no mau sentido. São Paulo é cidade de
efervescência cultural, intelectual e criativa muito grande. Consegui
trabalhar em televisão, coisa que ainda não tinha me acontecido.
Na mesma entrevista, ele faria uma declaração conclusiva, uma
espécie de inventário poético, ao afirmar:
— Se me perguntarem quem é o maior poeta brasileiro vivo,
hoje, na área de escrita — texto no papel —, eu diria João Cabral de
Mello Neto. Tem a obra mais densa e irradiante e continua
influenciando a produção.
Mesmo à distância, Leminski vinha acompanhando a segunda
edição do Catatau, que estava sendo finalizada em Porto Alegre, nas
gráficas da Editora Sulina. A novidade era a capa, que sofria uma
grande modificação em relação à primeira edição. As gravuras das
lutas marciais foram substituídas por um desenho estilizado de René
Descartes e, na contracapa, os dois esqueletos foram substituídos
pela foto do autor. Ele não participaria das decisões editoriais, mas
se diria convencido de que mesmo as obras clássicas e sinceras
“mudam de roupa” por razões comerciais.
Ao mesmo tempo, a editora Arte Pau-Brasil, de São Paulo,
preparava a edição do livro infantil A lua no cinema, escrito e
dedicado a Estrela, então com oito anos. A história, carregada de
candura e magia, era, na verdade, um poema sugestivamente
ilustrado por Alonso Alvarez, que arranjou cada verso (ver Apêndice
12) em páginas duras e grossas, com um bom aproveitamento
gráfico. O resultado sugere um álbum sofisticado e luminoso.
Em dezembro de 1988, aconteceria o meu último encontro com
Paulo Leminski. Ele e Berenice chegaram ao Rio para uma reunião na
Embrafilme, onde ela negociava contratos para a realização de um
longa-metragem (o projeto — já aprovado — se desmantelaria junto
com o casamento de dez anos e a sociedade na produtora).
Desafiando uma velha sina, eles viajaram de avião para o Rio, com
Leminski ostentando um vistoso chapéu panamá e muita verve à
bordo: passaria boa parte do tempo contando para a senhora da
poltrona ao lado uma verdadeira antologia de histórias
extraordinárias sobre acidentes de aviação. Ao que tudo indica,
apenas ele achava graça nos verbetes.
Ao longo de nossa história de amizade, meu amigo Paulo me
transmitiria por telefone todas as notícias ruins, enquanto, ao vivo,
entre um abraço e outro, apenas as notícias boas. Este movimento
parece ter influenciado o nosso humor com relação ao telefone, que
sempre evitamos: era tudo ou nada, sem intermediários. Jamais
ligamos apenas para saber como o outro estava passando no Natal ou
coisa assim — contatos que ele incluía na categoria das grandes
abobrinhas. Um telefonema era sempre para comunicar algo muito
importante ou apenas raro — como quando ele ligou para lamentar
que a filha Áurea estava se preparando para participar do concurso
Garota Caiobá, desfilando de maiô e tudo. Ele “precisava” contar para
alguém e esperava cumplicidade. Eu ponderei:
— Um baile de debutantes seria pior, Paulo, pois a moça tem que
dançar com o pai!
Ele agradeceu e desligou.
Foi, portanto, uma grande surpresa reencontrá-lo em Ipanema,
com a nova namorada — que ele chamava de Bere — e com os dois
“filhotes” recém-saídos do prelo, que foram sacados da mochila como
coelhos de uma cartola: A lua no cinema e uma revista temática
chamada Leite Quente, cuja coleção ele inaugurava com “Nossa
linguagem”, ensaio sobre as inflexões típicas do falar curitibano. Esta
revista seria, a rigor, a primeira parceria dele com a Fundação
Cultural de Curitiba, ou seja, com o setor de editoração do órgão
cultural, ao longo de uma gestão de Jaime Lerner — que, afinal,
venceria as eleições de 15 de novembro. Na apresentação do trabalho,
Leminski chama a atenção do leitor:
Aqui, uma viagem de leve, em asas de andorinha, pelas
várias linguagens desta cidade de nome tupi, ouro de ipê
pelo chão, onde se diz “leite quente”, não “leitchi
quentchi”.
Ele falaria com empolgação sobre as duas obras, que
considerava essenciais naquele momento. A certa altura,
comportando-se como um velho rato de livraria, após passar o olho
num álbum de Marcel Duchamp que descansava sobre a mesa da
sala, ele me dirigiu um gesto carinhoso, sugerindo ganhar o livro de
presente. Eu respondi passando-lhe a obra:
— Já é sua! Afinal foi você quem me apresentou a Duchamp.
Mais alguma coisa?
Ele respondeu igualmente rápido, com uma outra pergunta:
— Que tal me levar pra tomar uma birita?
Na rua, nuvens densas e quentes pairavam sobre a praia de
Ipanema, abafando nossos ímpetos — o que nos faria procurar refúgio
num restaurante com ar-condicionado, na praça General Osório. Foi
um alívio “pra cútis”, ele diria. Berenice e Naná ficaram pra trás,
passeando na Feira Hippie. Sentamo-nos numa mesa estratégica para
quatro pessoas e pedimos dois dry martínis caprichados. Fizemos o
brinde e detonamos o primeiro gole. Foi quando ele, sem me encarar,
falou:
— Compadre, fui ao médico em São Paulo e os exames
confirmaram que estou com cirrose!
— ...??
Olhei para ele no momento exato em que o garçom se preparava
para servir outras duas doses. Com uma das mãos parei a bandeja no
ar e falei vacilante:
— Paulo!...
Ele me encarou impacientemente, esperando uma cumplicidade
instantânea, antes que as moças entrassem pela porta:
— Porra, Martins, estou aqui com você pra falar de coisas
fundamentais da vida... Agora, você quer deixar o garçom trabalhar?
Nossa conversa iria girar sobre a política nacional, a nova
conjuntura do Brasil e a nossa atividade profissional neste contexto.
Falamos muito de televisão, ele ainda empolgado com o Jornal de
Vanguarda, que continuava lhe pulsando nas veias. Súbito, passaria
a falar coisas etéreas, abstratas, fazendo um discurso enviesado e
desconexo. Era como se a máquina estivesse fora de rotação,
deixando o pensamento galopar desordenadamente. Ao mesmo tempo,
como num velho sinal de contradição, demonstrava lucidez e humor ao
explicar o making off das recentes produções. Falou, entre um gole e
outro, que seus sonhos estavam sendo dirigidos por cineastas
americanos:
— Tenho sonhos dirigidos por Hitchcock pelo menos uma vez por
semana. Ontem sonhei Blade Runner, na semana passada foi John
Ford que me conduziu, mas também já peguei muito Woody Allen pela
frente.
As moças chegaram e continuamos bebendo como se nada esti-
vesse acontecendo. Ou quase isso.
No dia seguinte, antes de voltar a Curitiba, o casal iria à casa
de Marieta Severo, em São Conrado, que acertava detalhes de sua
participação como atriz no tal filme de Berenice, que jamais seria
realizado. A visita aos Buarque de Holanda era para Marieta, mas
Leminski passaria boa parte do tempo conversando com Chico, na
biblioteca, onde seria apresentado a um computador PC, que o
compositor vinha usando para redigir seus textos. Na saída,
Leminski se mostraria impressionado com o que acabara de ver:
— O Chico dispensou a máquina e garante que a operação de
escrever um texto naquele aparelho ficou dez vezes mais veloz.
A vida de casado e, conseqüentemente, a volta a uma
alimentação saudável e regular, ajudariam o poeta a manter-se
ocupado e bem-disposto por algum tempo. Ele cogitou, inclusive, a
possibilidade de marcar uma consulta no dentista — mas a ameaça
nunca seria concretizada. Quando necessário, continuaria
recorrendo ao ex-colega de judô, o dentista Micelli, para eventuais
extrações e curativos.
Em fevereiro, Fortuna apareceria para passar o carnaval com
eles, em Tibagi, uma cidade do interior do Paraná. Eles estavam
sendo apresentados à cidade natal de Berenice. Todos viajaram de
carro com Rubão e tiveram um agradável fim de semana prolongado.
À noite, Leminski e Fortuna tocaram violão no melhor bar da cidade
e fizeram um show em praça pública — diante dos olhares
incrédulos dos pacatos habitantes do lugar — e tudo foi uma festa
para eles. Berenice, que também se revelaria uma boa companheira
de copo e poesia, continuava desconhecendo a gravidade do seu
estado de saúde. O que não lhe passou despercebido é que Leminski
vivia dias muito dramáticos:
— Uma tarde, ele ficou observando a filha da diarista
brincando dentro de uma caixa de papelão, enquanto a mãe passava
roupa. De repente, abaixou-se, ergueu a garota no colo e começou a
chorar. Chorava de soluçar, abraçado à criança...
Alice iria morar em São Paulo com as meninas, depois de se
afastar voluntariamente do emprego. Para ela, ficar na mesma cidade
que Leminski estava se revelando uma condição insuportável. Com
ajuda de alguns amigos, planejava reestruturar a alma e recomeçar a
vida.
Mas, mesmo morando em cidades diferentes, eles continuariam
se falando pelo telefone quase diariamente. Na maioria das vezes era
ele quem ligava. Alice tentava falar de poesia, fazer humor ou
conversar alegremente sobre qualquer assunto, mas isto já não era
mais possível. Ele continuava tomando vodca pura e teorizando
sobre a própria desistência.
Em março, finalmente, apareceria um trabalho capaz de
garantir algum dinheiro e ajudar nas despesas da casa. Após uma ou
duas reuniões com os editores do jornal Folha de Londrina, ficou
acertado que ele escreveria uma coluna semanal, às sextas-feiras, no
suplemento cultural “Caderno 2”. Em entrevista ao próprio jornal,
anunciando a novidade, ele revelaria como o atual momento de crise
se revertia em fluxo poético:
— Quando se dissolve uma união, um casamento, ou se sai de
um emprego, fica aquele vazio... aquela instabilidade. É aí que a
nossa criatividade se torna mais aguda até a nível biológico. Tem um
momento que o bicho se sente mais ameaçado e produz soluções.
Na mesma entrevista, finge-se autoconfiante ao falar pela
primeira vez publicamente de La Vie en Close, a ser lançado pela
Brasiliense no segundo semestre:
— Estou sem pressa.
Sua estréia como colunista da FL aconteceu a 7 de abril de
1989, com o tema “Como era boa a nossa banda”, onde abreviava
reminiscência de uma juventude (geração) criativa e esplendorosa.
Tratava do assunto como se lembrança fosse algo que se tem e não
que fosse perdido.
Na sexta-feira, 2 de junho, além de frio e quadrado, o mundo
estava também distante para Paulo Leminski. Como fazia
regularmente, ele passaria a mão no telefone e ligaria para Alice —
para levar aquela que seria a última conversa entre eles. Ela recorda:
— O Paulo estava com a voz triste, mais do que de costume.
Falou de um poema que tinha criado naquele momento (ver Apêndice
13) e me perguntou se eu estava feliz. Respondi como Borges,
dizendo que “hay tantas otras cosas en la vida” além da felicidade.
De repente fui interrompida pelo choro dele e comecei a chorar
também. Não havia mais nada para dizer, pois estávamos a
quilômetros de distância, e desligamos rapidamente.
A se considerar os depoimentos dos amigos que estiveram com
Leminski nestes primeiros dias de junho, não havia indícios
evidentes de que algo de grave estava para acontecer. Pelo menos
nada que o impedisse de trabalhar ou passear. Nesta mesma noite de
sexta-feira, ele e Berenice foram se reunir a alguns amigos num
restaurante no Alto de São Francisco, o bairro histórico de Curitiba.
Durante a madrugada, de volta em casa, recolheu-se no escritório
para trabalhar em alguns textos antes de dormir. Estava
organizando um conjunto de contos que escrevera em 1986 e que
chamava de “Gozo fabuloso”; também finalizava uma nova seleção de
poemas que vinha arquivando numa velha pasta identificada por
uma etiqueta como O Ex-estranho. É bem verdade que estava
cansado e não resistiu mais do que vinte minutos de trabalho. A
fraqueza do organismo finalmente parecia estar minando as poucas
energias que lhe restavam. Algo mais forte do que a vontade de viver
vinha neutralizando as proteínas que uma boa alimentação pudesse
estar lhe fornecendo. Para isso, Berenice preparava sopinhas,
caldinhos e sucos de frutas. Mas ele continuava fumando e bebendo,
fazendo da abstinência uma conquista cada vez mais remota. Mas
outros amigos também não conseguiram isso. Toninho Stinghen, um
dos gêmeos do BacTuc, tinha morrido meses antes, vítima dos efeitos
infernais do álcool; e mesmo seu irmão, Luizinho, já dava sinais de
uma precoce debilidade, e viria a falecer no ano seguinte.
No sábado, dia 3, eles almoçaram na casa de dona Isabel, mãe
de Berenice, onde passaram a tarde. Leminski comeu pouco, dando
uma ou duas garfadas frouxas. Depois do almoço, deitou-se no sofá
da sala, repousando a cabeça no colo da mulher, enquanto
entabulava uma conversa com a sogra sobre um assunto pertinente
e no qual se considerava especialista: as drogas. Na condição de
vereadora em Tibagi, dona Isabel estava se preparando para
participar de um seminário onde deveria abordar o tema e propor
soluções para o problema. Leminski se mostraria interessado,
querendo saber o enfoque que ela pretendia apresentar. Diante da
explicação de que seriam priorizadas as drogas mais comuns, como a
maconha e a cocaína, ele se permitiu sugerir uma mudança de 180
graus no diagnóstico ao direcionar o foco exclusivamente para o
álcool. “Uma droga anônima e permitida por lei, a pior de todas”,
garantia.
No domingo, 4, o casal estava com a casa cheia de amigos. O
jovem poeta Rodrigo Garcia Lopes ficaria até mais tarde e jantaria
com eles numa cantina vizinha, o Porão Italiano, onde Leminski
novamente apenas beliscou a comida — uma inoportuna pizza a
quatro queijos — e tomou algumas cervejas. Rodrigo recorda-se
destes momentos:
— Ele não parava. Estava no auge de sua maturidade
intelectual e poética. Ao contrário do que dizem, quando falam em
decadência, o Leminski havia virado, de fato, um mestre.
Na segunda-feira, 5 de junho, eles foram dormir cedo. A cena,
do ponto de vista de Berenice, aconteceu de forma brutal. Os
ponteiros do relógio estavam para se encontrar, à meia-noite, quando
ela foi acordada por Leminski, que reclamou de um mal-estar. Ela
levantou-se para acender as luzes e aproveitou para ir à cozinha
buscar um copo d’água. Tudo foi muito rápido e violento, como
sempre acontece neste tipo de hemorragia. Num gesto único e ligeiro,
Leminski sentou-se na cama e explodiu em vômitos de sangue, num
jorro que atingiu as paredes, Berenice, o quarto inteiro. Diante da
gravidade da situação, Berenice chamaria um táxi e sairia voando
para a Casa de Saúde Paciornik. Na confusão, não perceberia que
estava cometendo um equívoco ao levá-lo para um hospital-
maternidade.
O paciente receberia atenção imediata do cirurgião geral
Ricardo Rydygier e da equipe médica de plantão. Assim que o dia
amanheceu, Berenice telefonaria para alguns amigos pedindo ajuda.
No início da tarde, ela pessoalmente ligaria para a redação do jornal
Nicolau, procurando por Josely e Rodrigo Lopes, que seguiram
imediatamente para a clínica. Encontraram Leminski numa maca,
preparando-se para uma endoscopia. O poeta estava lúcido quando
segurou a mão de Josely e murmurou:
— Trans, a barra agora pesou.
O amigo Rubão e a mulher Mônica chegariam para passar a
noite no hospital. Depois de uma série de exames, Leminski seria
removido para um quarto no segundo andar, enquanto a família e os
amigos eram convocados para doar sangue do tipo A positivo. O
hospital estava apenas seguindo uma praxe adotada para garantir as
reservas nos bancos de sangue gratuitos. Com o objetivo de ampliar
a coleta, alguém teve a idéia de veicular um apelo na televisão,
chamando os voluntários. Os boletins de plantão entrariam no ar em
vários canais e em poucos minutos a notícia se espalhava pela
cidade: Paulo Leminski está internado em estado grave. Quando o
dia amanheceu, os amigos começaram a chegar, lamentando não
encontrar boas notícias.
Assim que tomou conhecimento do quadro clínico, o dr.
Cláudio Paciornik — um amigo da família e médico particular de
Berenice — decidiria, em comum acordo com o dr. Ricardo, pela
remoção do paciente para o Hospital Nossa Senhora das Graças,
onde havia melhores condições de atendimento e uma estrutura
montada para este tipo de emergência. Imobilizaram-no na maca e
levaram-no numa ambulância que atravessaria a cidade lentamente,
na hora do rush. Josely seguia na frente em outro carro, abrindo
espaços no trânsito. O caminho agora era sem volta. Na ambulância,
ao lado dele, estavam o poeta Rodrigo e a irmã de Berenice, Isabel,
que tem o mesmo nome da mãe. Leminski estava lúcido durante o
percurso e reconheceria a voz do amigo:
— Rodrigo, é você?
O rapaz pegou uma de suas mãos e murmurou algo sem muita
convicção, uma saudação do tipo “ôi, Paulo, vai dar tudo certo,
depois a gente se fala com mais calma...”. Ao que o poeta respondeu,
segurando o murmúrio:
— Até mais, coisa nenhuma! Pode dar boa noite pro gaiteiro!
Os médicos planejavam fazer uma cauterização do esôfago,
mas antes teriam que estancar a hemorragia. O quadro revelava
varizes esofágicas que deveriam ser prontamente atacadas. No balcão
de recepção, Josely preencheu e assinou a ficha de internação como
responsável pelo paciente. Assim que chegou, Leminski foi levado
para a UTI. Ele gemia de dor enquanto era submetido a inúmeras
transfusões de sangue. Berenice ficaria ao lado o tempo todo. A certa
altura, Josely convenceu a amiga a dormir um pouco numa sala ao
lado, assumindo para si a tarefa da vigília. Ela se recorda destes
momentos:
— O Paulo parecia febril e eu fiquei umedecendo seus lábios
com algodão molhado. Ele entreabriu os olhos esgazeados e se agitou
um pouco. Em seguida, levantou levemente a mão direita, teve um
estremecimento e percebi que tinha perdido a consciência. Acredito
que entrou em coma neste momento.
Em São Paulo, Alice receberia a primeira notícia na madrugada
de terça-feira, quando Mônica, a mulher de Rubão, ligaria avisando
que Leminski estava internado em estado grave. Pela manhã, outro
telefonema, agora de Jaime Lechinski, acionava a luz vermelha: ele
estava em coma. Alice negociou uma licença no trabalho, apanhou
as meninas na escola e seguiu para o aeroporto. Quando chegaram
ao hospital, foram recebidas pela dra. Margarida, a psiquiatra, que
gentilmente encontrou um lugar na sala de espera da UTI, agora
reservada apenas à família do poeta, ou seja, Berenice, sua mãe e
irmãos.
Na manhã de quarta-feira, dia 7, o hospital estava literalmente
ocupado pelos amigos mais próximos, enquanto outros tipos de fãs
— os anônimos descamisados, companheiros de infortúnio e poesia
— se espalhavam pelos bares das redondezas.
Por volta de meio-dia, o secretário de Cultura do Estado,
advogado René Dotti, apareceria para desejar boa sorte a todos e
garantir que o governo estava assumindo as despesas hospitalares.
Alice percebeu quando Aldo Lubes, o mestre de judô, surgiu
emocionado e exasperado na outra extremidade do corredor. Ele
estava fora de si quando parou diante dela e, com mãos e braços
fortes, sacudiu-a violentamente pelos ombros, vociferando:
— Eu vim aqui por sua causa! A vontade que tenho é de entrar
lá e cobrir aquele filho da puta de porrada. Não posso perdoar o
Paulo por estar fazendo isso conosco.
Disse isso e pôs-se a chorar, saindo apressado do hospital,
como se estivesse fugindo do próprio desespero. A esta altura, entre
os amigos que aguardavam em vigília, esperando por um milagre, o
clima era de comoção. Para aliviar a tensão, uma das amigas, ao
entrar na sala de espera e perceber várias mulheres reunidas,
exclamaria com bom humor:
— Nossa! Quantas viúvas de Paulo Leminski!
Quando a noite chegou, o médico de plantão permitiria que
Alice e Berenice fizessem uma entrada rápida na UTI. As duas
mulheres ficariam ao lado dele por alguns minutos, mergulhadas
naquela atmosfera rarefeita. Berenice cantarolou um trecho da
música “Valeu...” e saiu chorando do quarto. Alice continuou até ser
interrompida em sua meditação por Jaime Lechinski, que propôs um
café na cantina. Eles saíram caminhando vagarosamente pelos
corredores do hospital. Estavam mergulhados num profundo
silêncio. No lado de fora e nas ruas próximas, grupos de jovens
fumavam baseados nas esquinas para incensar o lugar. Todos
estavam consternados e parecia que algo de muito grave estava para
acontecer. Alguns gritavam:
— Sai dessa, Leminski! Estamos te esperando aqui!
* * *
Paulo Leminski Filho “pediu a conta pro garçom” às 21h20 do
dia 7 de junho de 1989, vítima de cirrose hepática. Antes, às 20
horas, ele teve uma parada cardíaca. Ao saber da morte do amigo, o
cartunista Solda, aparentemente em transe, disparou na mesma
noite vários faxes para vários amigos em suas casas e escritórios.
Tinha como título “Sete de seis de oitenta e nove” e dizia:
fechem as portas
apaguem as luzes
o poeta
jaz num canto
todo em cânticos
silêncio semântico
kamikase do espanto
por um porém
um talvez
quase um acaso
do desencanto
mergulhou fundo
no instante
em que era raso
Alheio a toda esta movimentação, levando uma vida pacata e
rotineira em Ipanema, a notícia me chegaria em forma de susto
através de um telefonema matinal de Márcio Borges:
— Compadre, o Paulo Leminski morreu!
No mesmo instante, Naná apareceria atônita na porta do quarto
com um jornal nas mãos e a manchete em letras, obviamente,
garrafais: Morre em Curitiba o poeta Paulo Leminski. Ainda pela
manhã, Carlos João ligaria para descarregar seu estado de choque.
Fizemos um novo telefonema pro Márcio e fomos os três ao bar Aurora,
em Botafogo, derramar nosso pranto e comungar da nossa dor: o
poeta do lirismo louco tinha caído.
O velório foi marcado para a capela da Reitoria da UFP, onde
ele tinha sido em outros tempos um aluno de vida acadêmica
irregular. Houve um indisfarçável mal-estar entre as duas famílias,
justamente no momento de acomodá-las no espaço reservado ao lado
do caixão. Num gesto no mínimo deselegante, dona Isabel, mãe de
Berenice, fez um discurso no qual assumia para si as honras do
funeral e praticamente agradecia a presença de Alice e das meninas.
É provável que tal fato seja conseqüência de um sentimento
consagrado entre algumas pessoas — aquelas que chegaram depois
da separação —, para as quais Alice era “a mulher que abandonou o
marido num momento difícil”. Na verdade, havia neste ambiente
carregado de emoção e dor duas viúvas de fato e nenhuma de direito.
Com suas almas agitadas e igualmente conformadas, Áurea e Estrela
tudo observavam. Elas vinham ao longo dos últimos meses
decodificando o ritual de despedida do pai, que deixava pegadas
indisfarçáveis sobre o seu destino. As meninas fizeram uma leitura
madura destas mensagens, embora tivessem apenas 18 e 8 anos.
O prefeito Jaime Lerner estava presente e participou das
homenagens com um discurso improvisado e emocional:
— A palavra que melhor define o Leminski é brilho. Como
escritor, poeta e pensador, tudo que fez foi com brilho.
E terminaria fazendo uma pergunta aos presentes:
— E, agora, quem vai fazer a nossa cabeça??
O enterro, que estava marcado inicialmente para às 15 horas
do dia seguinte, seria antecipado para às 11 da manhã. O corpo
estava inchando e o caixão teria que ser trocado por um outro maior,
onde coubesse o último excesso do poeta. Na sala da administração
do cemitério, Ernani Buchmann e Lechinski cuidavam das
formalidades. A certa altura do procedimento, o funcionário
encarregado de liberar o corpo quis saber a profissão do morto.
Ernani indicou:
— Poeta.
Houve um momento de hesitação do funcionário, que
perguntou:
— Poeta é profissão?
Diante da incerteza da resposta, foi-lhe sugerido:
— Então coloque escritor.
O funcionário quis saber se o falecido deixava bens. Ernani
concluiu:
— Deixa muitos bens, todos intangíveis.
O enterro, no dia 8, foi acompanhado por mais de cem amigos,
entre eles, segurando as alças do caixão, Fernando Blim, o
motoqueiro, e Rubão, o dono do bar. O jovem Ademir Assunção, o
Pin, chegaria de São Paulo no primeiro vôo da manhã.
Quando o caixão estava descendo, todos cantaram “Valeu”,
num trabalho de coral magnífico puxado, à capela, por Paulinho, Ivo
e Carlão, os ex-integrantes d’A Chave. Alice se uniu a eles, sem
desafinar:
Valeu agitar esta vida que podia ser melhor
Valeu encharcar este planeta de suor...
Foi de arrepiar. Neste momento, a ex-aluna Peggy Paciornik,
pagando uma promessa feita durante um pacto de morte juvenil, em
1967, deixava cair folhas de papel em branco no túmulo, um símbolo
de eternidade para o operário das letras e da poesia. Se fossem
pombas, certamente sairiam voando, mas eram apenas folhas de
papel em branco, que no final se acomodaram, uma a uma, junto ao
caixão. Paulo Leminski Filho foi enterrado ao lado de toda a família:
o pai Paulo, a mãe Áurea, o filho Miguel e o irmão Pedro.
O RESTO IMORTAL Paulo Leminski, 1944-1989
Queria não morrer de todo. Não o meu melhor. Que o melhor
de mim ficasse, já que sobre o além sou todo dúvidas. Queria deixar
aqui neste planeta não apenas um testemunho de minha passagem,
pirâmide, obelisco, verbetes numa obscura enciclopédia, campos
onde não cresce mais capim.
Queria deixar meu processo de pensamento, minha máquina
de pensar, a máquina que processa meu pensamento, meu pensar
transformado em máquinas objetivas, fora de mim, sobrevivendo a
mim.
Durante muito tempo, cultivei esse sonho desesperado.
Um dia, intuí. Essa máquina era possível.
Tinha que ser um livro.
Tinha que ser um texto. Um texto que não fosse apenas, como
os demais, um texto pensado. Eu precisava de um texto pensante.
Um texto que tivesse memória, produzisse imagens, raciocinasse.
Sobretudo, um texto que sentisse como eu.
Ao partir eu deixaria esse texto como um astronauta solitário
deixa um relógio na superfície de um planeta deserto.
Claro, eu poderia ter escolhido um ser humano para ser essa
máquina que pensasse como eu penso. Bastava conseguir um aluno.
Mas pessoas não são previsíveis. Um texto é.
A impressão do meu processo de pensamento não poderia estar
na escolha das palavras nem no rol dos eventos narrados. Teria que
estar inscrito no próprio movimento do texto, nos fluxos da sua
dinâmica, traduzindo para o jogo de suas manhãs e marés.
Um texto assim não poderia ser fabricado nem forjado. Só
podia ser desejado.
Ele mesmo escolheria, se quisesse, a hora de seu advento.
Tudo o que eu poderia fazer nessa direção era estar atento a
todos os impulsos, mesmo os mais cegos, nunca sabendo se o texto
está vindo ou não.
Era óbvio, um texto assim teria, no mínimo, que levar uma vida
humana inteira. Na melhor das hipóteses.
CAPÍTULO 10
PERHAPPINESS
No dia seguinte ao enterro de Leminski, a imprensa revelava
sua perplexidade com a trágica notícia. A Folha de Londrina, onde o
poeta publicou seu último texto — ainda que cometendo o erro de
afirmá-lo nascido em Itaiópolis —, estampava em manchete de
página inteira:
A VIDA MATA PAULO LEMINSKI
E, como subtítulo: “Ele queria o futuro, ontem”.
A Folha de S. Paulo apresentou matéria assinada por Régis
Bonvicino, com o título:
MORRE LEMINSKI, O POETA-SÍNTESE DOS ANOS 70
No Jornal da Tarde, uma reportagem de página inteira:
O IRREVERENTE ADEUS AO POETA
A legenda da fotografia, mostrando o cortejo fúnebre com
Berenice, Rubão, Fernando Blim e Marinho Galera em destaque,
utilizava um poema feito naquele mesmo dia por Itamar Assumpção:
Leminski,
ei, psiu, sou eu Beleléu
não fui no enterro teu
porque você não irá no meu
estamos quites, adeus
O jornal O Globo mostrou agilidade, divulgando a notícia no dia
8, o dia do enterro:
MORRE EM CURITIBA O POETA LEMINSKI
O Estado do Paraná, onde ele tinha começado sua carreira
jornalística, tratou do assunto também em primeira página:
CURITIBA ENTERROU SEU MAIOR POETA
O Jornal do Brasil publicaria, além do registro factual, um texto
assinado pelo articulista Wilson Coutinho com o título “Um ímã de
modernidade”, concluindo que Leminski “na sua provençal Curitiba,
acabava por fazer uma poesia que interessava — e muito — às
antenas cosmopolitas”.
O Correio Brasiliense, na sexta-feira, 9, apresentou a notícia em
artigo assinado por Nuevo Baby:
MORRE O POETA MESTIÇO QUE ERA PURA POESIA
Três dias depois, o muro do cemitério da Água Verde
amanheceria grafitado no trecho próximo ao túmulo, com uma
grande frase pintada a pincel, com adornos em spray:
PAULO LEMINSKI MORA AQUI
Na edição de julho, a revista Panorama, editada em Curitiba,
publicaria matéria de quatro páginas assinada por Jaques Brand,
com fotos de Julio Covello, mostrando Leminski em sua biblioteca,
sem camisa e com o título: “O Poeta se faz puro charme”.
Os acontecimentos importantes — ou meramente significativos
— registrados após a morte de Paulo Leminski, não foram poucos:
• Em menos de um mês ficava pronta e chegava às livrarias a nova
edição do Catatau, que mereceria de Haroldo de Campos e Leo
Gilson Ribeiro amplas análises críticas, respectivamente, na Folha
de S. Paulo e no Jornal da Tarde. Haroldo usou a expressão “Uma
leminskíada barrocodélica”, para saudar o relançamento do livro
“que teve, por assim dizer, um sucesso de câmera ou um sucesso
de estima” junto a um pequeno círculo de aficionados. Leo Gilson
resumiu sua apreciação no título: “Para Desnortear Europeus
Arrogantes”. Cada um a sua maneira ratificava o que afirmara 15
anos antes: a obra mantinha seu tom instigante e consolidava seu
valor — como uma jóia — para a literatura brasileira.
• Em agosto, quando Leminski completaria 45 anos, foi inaugurado
por iniciativa da Prefeitura de Curitiba o Espaço Leminski, uma
pedreira desativada que seria adaptada para receber grandes
espetáculos com o aproveitamento de um majestoso cenário
natural. Qual o bairro? Pilarzinho, é claro! Por sugestão de Jaime
Lechinski, o nome oficial passou a ser Pedreira Leminski, hoje
situada ao lado da igualmente sugestiva Ópera de Arame — ambas,
obras marcantes no contexto cultural da cidade.
• Ainda em agosto, como parte das homenagens ao Cachorro Louco,
seria criado o Projeto Perhappiness (talvez felicidade, segundo um
portmanteau criado por ele), uma semana de programação cultural
abordando temas de diversas áreas. Uma grande exposição de
fotografias, vídeos e objetos do poeta (violão, máquina de escrever,
anotações originais, quimono de judô etc....) foi montada como
parte da retrospectiva, no Centro de Criatividade, onde foi
inaugurado o Bar ou Ímpar, em sua homenagem. Mas o principal
foco do evento era a inauguração da Pedreira Leminski, com show
para 30 mil pessoas. Foram colocados ônibus extras e gratuitos
para a população, partindo do centro da cidade. No palco, quase
todos os seus ex-parceiros: Moraes Moreira, Blindagem, Jorge
Mautner e Jacobina, Marinho Galera, Paulinho Boca de Cantor,
Fortuna, José Miguel Wisnik, Itamar Assumpção, Lúcia Turnbull,
A Cor do Som, José Roberto Oliva e outros. Caetano Veloso e
Gilberto Gil tinham compromissos inadiáveis e não puderam
comparecer. Nos eventos paralelos, as palestras sobre Leminski e
sua obra reuniam Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman,
Walter Silveira, Renato Barbieri, Sylvio Back, Cassiana Lacerda,
Domingos Pellegrini, Régis Bonvicino, João Alexandre Barbosa,
Antonio Risério e outros.
• No dia 21 de agosto morria, em São Paulo, o cantor Raul Seixas,
vítima de uma pancreatite aguda, resultado de problemas com
alcoolismo.
• A revista Exu, editada pela Fundação Casa de Jorge Amado, na
Bahia, publica “o dossiê Leminski”, com trabalhos de Antonio
Risério e Haroldo de Campos.
• Em outubro, o Pasquim prestaria sua homenagem ao poeta
publicando um réquiem assinado por este biógrafo com o título “O
tal das químicas, tributo a Paulo Leminski”. O texto, que fora
escrito no Rio de Janeiro, no exato momento do enterro do poeta,
vinha acompanhado de uma ilustração de Solda — uma caricatura
mostrando Leminski numa mesinha de bar diante de uma galáxia
de taças e copos, exclamando: “Garçom! Traz a saideira!” A edição
ganhou um texto de introdução onde o cartunista Jaguar — a esta
altura o único editor do Pasquim — se penitenciava publicamente:
“Você é um babaca, Jaguar”, eu disse pro espelho logo
depois que li no jornal a notícia da morte de Leminski.
“Um tremendo babaca.” Leminski foi um dos quatro
porra-loucas de gênio que conheci; os outros foram
Hélio Oiticica, Armando Costa e Glauber.
Quando Leminski mandou pro Pasquim aquele seu
romance-tijolo, Catatau, me irritou. Achei pernóstico,
pretensioso, provinciano, metido à besta. Os artigos que
nos mandou também, botei na gaveta. E ficou por isso
mesmo. Isso foi há quase 20 anos. Há uns 2 anos estive
em Curitiba, nos encontramos por acaso num bar. Porre
de steinhager com cerveja. Me mostrou poemas
magníficos. Ficou de mandar colaborações pro jornal.
Escreveu um telefone de São Paulo num guardanapo de
papel, é claro que perdi. Antes que conseguisse localizá-
lo, a cirrose o apanhou.
Depois recebi Nicolau, uma revista paranaense
com textos e poemas dele da maior qualidade. Mas no
Pasquim, que é bom, não teve Leminski. Culpa minha.
Perdão, leitores.
Toninho Vaz e Solda (reaparece depois de um
longo e tenebroso inverno), que tiveram a sorte de pegar
uma carona na viagem de Leminski, fazem parceria
neste réquiem. Ass. Jaguar.
• Durante curta temporada em Curitiba, de 20 a 22 de outubro, a
cantora Fortuna apresenta um espetáculo onde aparecem no
repertório algumas parcerias com Leminski, incluindo a música
inédita “Hoje tá tão bonito”.
1990
• Em maio, a exposição do Projeto Perhappiness ganha os salões do
MASP, em São Paulo, tendo como curadora a professora Cassiana
Lacerda Carollo.
• Em outubro, a editora Sulina coloca à disposição dos leitores Vida,
com 352 páginas, reunindo as quatro biografias escritas por ele.
Leo Gilson Ribeiro escreveria no Jornal da Tarde: “Quatro retratos.
Com a marca de Leminski.” Na Folha de S. Paulo, Frederico
Barbosa observaria que “cada uma das quatro vidas nos mostra
claramente uma faceta da quinta: a de Paulo Leminski”.
• Por iniciativa oficial, partindo do governo do Estado, Quarenta clics
em Curitiba (Jack Pires-Leminski) ganha uma segunda fornada,
com a editora Etecetera, de Gordo Mello, repetindo o trabalho
gráfico.
1991
• Sai, pela Brasiliense, La Vie en Close, com 180 páginas de poemas
inéditos preparados por ele antes de morrer. Por ser uma obra
póstuma, não foi dedicada a ninguém. Não por acaso, o último
poema dizia:
essa idéia
ninguém me tira
matéria é mentira
1992
• Em maio, chega às livrarias Uma carta — uma brasa através,
Iluminuras, reunindo cartas de Paulo Leminski a Régis Bonvicino
escritas entre 1976 e 1981. A mesma obra, com pequenas
modificações, seria reeditada em 1999 com o título Envie meu
dicionário — Cartas e alguma crítica (Editora 34). Em ambos os
casos, as publicações trariam constrangimentos para a família de
Leminski, já que alguns trechos revelavam intimidades que Alice e
as filhas gostariam que “tivessem sido respeitadas”.
1994
• A editora Iluminuras publica o inédito Metaformose — Uma viagem
pelo imaginário grego (título que os revisores são levados a “corrigir”
para metamorfose, desconhecendo que o poeta queria falar da
forma como meta). O livro tinha apresentação de Alice Ruiz e nota
introdutória de Régis Bonvicino. Na opinião do poeta Arnaldo
Antunes, “esta obra tem a magnitude e o calibre do Catatau. É um
dos trabalhos mais sérios do Leminski”. No ano seguinte, o livro
ganharia o prêmio Jabuti para poesia.
• A Fundação Cultural de Curitiba finalmente decide editar
Winterverno, da dupla Leminski-Virmond. A edição, criativa e com
sofisticado aproveitamento gráfico, exagerou nos textos
introdutórios e de apresentação. Falam do autor e da obra o
prefeito Rafael Greca, a professora Cassiana Lacerda, Alice Ruiz,
Rodrigo Garcia Lopes, Josely Vianna e Arnaldo Antunes. No meio
de todos, aparecendo com um conjunto de quarenta haikais, Paulo
Leminski.
• Sai a edição húngara de Distraídos venceremos, organizada pelo
professor Pál Ferenc, da Universidade Eötvös Lorand, de
Budapeste, que credita a tradução a Egressy Soltán, embora ele
tenha sido o tradutor literal e coordenador da coletânea. A primeira
edição de 3 mil exemplares foi vendida em três semanas na
Hungria.
• Com organização de Josely Vianna, a antologia Desencontrários —
6 poetas brasileiros (Unencontraries — 6 Brasilian Poets) tem edição
bilíngüe da Fundação Cultural de Curitiba. Leminski é um dos seis
poetas.
1996
• Em maio, a editora Iluminuras lança O ex-estranho, livro que Alice
Ruiz apresentaria como “provavelmente a última reunião de
poemas inéditos de Paulo Leminski”. Entre eles, havia um
representativo dos anos difíceis, concebido poucas semanas antes
de sua morte:
Trevas.
Que mais pode ler
um poeta que se preza?
• O jornalista e escritor José Castello, duas semanas antes do
lançamento de O ex-estranho, escreveria no jornal O Estado de S.
Paulo, que a nova obra de Leminski “mostra as dúvidas do poeta
com relação à sua fé e o sentimento de exclusão que dominou sua
vida”.
• Antes do final do ano, uma seleção de poemas reunindo “os
melhores” de Paulo Leminski, na concepção dos professores Fred
Góes (o parceiro musical em “Sempre Angela”) e Álvaro Martins,
sairia pela Global, com direção de Edla Van Steen.
1997
• A revista O Carioca, editada por Chacal, Bernardo Vilhena e Waly
Salomão apresenta três inéditos de Leminski, entre eles uma letra
de música feita para Edvaldo Santana, o Baitola, e o bilhete de
despedida deixado com Fortuna, que Pinduca apresentou assim:
“Leminski sabia que estava morrendo. E continuou pisando firme
no acelerador. Tinha que ser assim. Com ele era tudo ou tudo.
Nenhuma mistificação. É o que é.”
• Zizi Possi grava “Filhos de Santa Maria”, parceria de Leminski com
Itamar Assumpção.
• Uma coletânea de poesias com o título Aviso a los náufragos, de
Paulo Leminski, organizada por Rodolfo Mata, é publicada no
México pela editora Eldorado. No mesmo ano, seus poemas são
incluídos na antologia Nothing the Sun Could Not Explain, editada
em Los Angeles, com organização de Michael Palmer, Nelson Arsher
e Régis Bonvicino. Sun & Moon Press. O título da antologia foi
escolhido a partir do poema de sua autoria Nada que o Sol não
possa explicar.
1999
• A revista Medusa apresenta três contos inéditos de Leminski, como
parte do volume também inédito Gozo fabuloso. A festa de
lançamento da revista, no pub Finnegan’s, em São Paulo, no dia 31
de agosto, teve leitura de poemas de Arrigo Barnabé, Arnaldo
Antunes, Alice Ruiz e Itamar Assumpção. Nesta noite, com a casa
superlotada, foram registradas algumas manifestações de
fanatismo na platéia; a certa altura, alguns jovens gritavam:
“Leminski, venha tomar um uísque” — frase que se repetia em
todos os cantos do salão. Alguém, em uma das mesas, ponderou:
“Acontece o mesmo fenômeno com Raul Seixas, que deixou uma
legião de órfãos.”
• A parceria musical (póstuma) em “Além alma”, com Arnaldo
Antunes, sai no disco Um som, selo BMG. No mesmo disco, foi
incluída uma parceria de Arnaldo com Alice Ruiz: “Socorro”,
gravada anteriormente por Cássia Eller.
2000
• Na virada da década, vários sites enfocando a produção poética e
intelectual de Paulo Leminski foram criados na Internet. Um deles,
uma iniciativa da Revista de Estudos Literários da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, apresenta Leminski em inglês, com
tradução de Charles A. Perrone. Eis uma amostra de sua poesia na
língua de Joyce:
we were born in diverse poems
it was fate’s wish that we find each other
in the same strophe sister and brother
in the same verse the same phrases
rhyme at first sight we saw each other
trading what was synonymous
our gazes no longer anonymous
having read this far along
the same track and lines
of mine of yours of ours blended
2001
• Paulo Leminski faz parte da coletânea Os cem melhores poetas
brasileiros do século, seleção de José Nêumanne Pinto. Geração
Editorial.
EPÍLOGO
27 CLICS DE LEMINSKI
AS três primeiras frases do Catatau são, para mim, um retrato
em preto e branco do Leminski adolescente que eu, em 1958 também
adolescente, conheci. Só que para essa adolescência já lá vão anos
XLII.
Como é que um taludo caboclo de 12 anos poderia almejar ser
um místico se sua testosterona naquele ambiente formalmente casto
do Mosteiro de São Bento o levava secretamente a colecionar
anúncios de filmes onde apareciam seminuas as divas de Hollywood?
No futebol era um cavalo mas, em compensação, discutia erudições
sobre os primeiros sábios da Igreja, com D. João Mehlman, o único
sábio que nós então conhecíamos. E trombava nas horas vagas, com
os sonetos porque aos haikais ele não havia sido apresentado, ainda.
Fui rever o Leminski nos anos 80, em Curitiba, num jantar
com o governador Richa na casa do Malucelli. Eu, já editor da
Revista Imprensa e ele redator de publicidade. Findo o jantar fomos
beber conhaque em sua casa, no Pilarzinho. O assunto foi,
logicamente, o Mosteiro. Ao me despedir, ele foi à biblioteca e pegou
uma página amarelada e m’deu de presente, com dedicatória, aquele
poema falando da “ordem de são bento, a ordem que sabe que o fogo
é lento”... O poema termina dizendo: “e no interior do mais pequeno
abre-se profundo a flor do espaço mais imenso. Basta estar
desatento”. Só então, entendi o misticismo do Leminski. E entendi
também que para ser sábio, poeta e talvez editor ou publicitário, é
preciso estar desatento.
Sinval de Itacaiambi Leão
Jornalista. Diretor e editor da revista Imprensa.
Depois que deixei o mosteiro, no começo dos anos 60, estudei
biologia na USP, onde fui assistente e me envolvi com a organização
AP. Lá me “profissionalizei”, peguei uma cana brava e fui expulso do
Brasil em fins de 69. Os amigos do Brasil tinham medo de se
corresponder comigo e fiquei felicíssimo em conseguir o endereço do
Leminski. Ele não tinha medo de me escrever, mandou o Catatau e
surgiu uma correspondência pouco sistemática entre nós.
Me espantava a capacidade que ele tinha em decorar
dicionários. Lembro-me bem o de alemão. Decorava tudo e sabia
usar as palavras. Lia o que lhe caía nas mãos e D. Clemente ainda
dava uma força maravilhosa, contrariando discretamente as
diretrizes da santa ordem. Éramos um grupo de “enfants terribles”,
dos quais Leminski, obviamente, fazia parte. Andávamos sobre os
telhados do mosteiro e fomos delatados pelos edifícios próximos.
Tínhamos uma pequena criação de pombos numa das torres do
Mosteiro, enfim, conhecíamos todas as dependências fechadas há
decênios naquele edifício e nunca fomos descobertos! Realizávamos
as expedições durante a noite, depois que todos estavam
adormecidos ou nos fins de semana. Éramos, creio, desajustados em
relação ao que se esperava da vocação religiosa de um “oblato”. E
esta avaliação, evidentemente, refere-se muito ao Leminski.
Clemens Schrage
Biólogo. Ex-colega do Colégio São Bento.
Quando Leminski voltou da Semana de Poesia de Vanguarda,
de Belo Horizonte, em agosto de 1963, viajando comigo e Lygia,
dormiu em minha casa, para retornar no dia seguinte a Curitiba.
Melhor, não dormiu, revirando minha biblioteca, respingando os
Cantos de Pound, agitadíssimo. A primeira carta que mandou está
datada de 23 de agosto de 1963. A partir daí começou entre nós uma
longa e assídua correspondência, que só terminaria em 1981, quase
20 anos depois. Em dado momento, após uma carta que eu lhe
mandei em 20.9.66, ele subitamente silenciou. Preocupado, escrevi a
Neiva, em dezembro, perguntando o que havia acontecido. Nenhuma
resposta. Uma noite, em julho de 1967, ao retornar do lançamento
do livro Maiakóvski, na Livraria Sal, no centro de São Paulo,
encontro este bilhete telegráfico debaixo da minha porta: CAR’AUG/
Cá estive/ de volta PIRACICAB JUDÔ (universitário). I’m sorry.”
Respondi logo: “é bom saber que você está (viva o judô) vivo”. Mas só
recomeçamos, de verdade, nosso epistolário em março de 1969,
quando ele me mandou os primeiros esboços do ainda inominado
Catatau, que eu recebi assim, em carta que escrevi em 1º de abril:
“ave lemniscus/quia ressurrexit/cartesius renatus/ em teu
cartesanato furioso”. Mas aí começa uma outra história. Na minha
opinião foi o maior poeta brasileiro da sua geração.
Augusto de Campos
Poeta e escritor. Autor de Caixa preta; Poesia antipoesia
antropofagia; Guimarães Rosa em três dimensões;
e Tygre, de William Blake (tradução).
O Paulo Leminski era o mais jovem entre os interessados em
poesia que nos procuraram naqueles anos 60. Caiu na estrada muito
cedo, atrás de informação. Fizemos o lançamento nacional de sua
poesia na revista Invenção, em 64. Depois, estive com ele na Cruz do
Pilarzinho e no Templo Neo-pitagórico, em Curitiba. Ele morava
numa casa pobre, de madeira, bastante simples e com uma
arquitetura tradicional da região, com as sapatas altas, para se
proteger do frio. Nós tínhamos algo em comum, pois eu era
publicitário e ele decidiu também enveredar por este caminho — e
então nos tornamos amigos. Sua grande obra é o Catatau, um
trabalho de fôlego que ainda aguarda uma edição crítica e
aprofundada para ser definitivamente desvendado. A história é
magnífica e muito criativa, a idéia de colocar Descartes numa praia
nordestina fumando um cachimbo de ervas alucinóginas. A partir de
um certo momento, Leminski deixou de ser um escritor experimental
e começou a fazer poemas breves, que lhe garantiriam a fama. Falava
que conhecia línguas, mas na verdade conhecia muito mal umas sete
ou oito. Tinha crises de megalomania que faziam parte do próprio
delírio etílico no qual vivia mergulhado. Seu discurso político-
ideológico era confuso, sem muita coerência. No final, ficou
conhecido também como músico e se tornou um escritor importante
para a sua geração.
Décio Pignatari
Poeta, professor e escritor. Autor de Informação.
Linguagem. Comunicação e Contracomunicação.
Considero Paulo Leminski o mais criativo poeta de sua geração
e um intelectual completo, armado de erudição e argúcia crítica:
além de poeta, era tradutor, ensaísta, prosador, a culminar no
Catatau, pleno de invenção e ousadia experimental, onde prosa e
poesia confluem. Foi também um artista bem característico de sua
geração, um hippie-zen, no plano existencial, plenamente aberto à
aventura da vida. Nada melhor, como expressão de sua irreverente
atitude perante a vida, do que o poema em que Leminski define-se
como um “cachorro louco”, zombeteiro, ou aquele poema-letra
(belamente cantado pelo Caetano) em que, irônica e criticamente,
anuncia que venderá os filhos para uma “família americana”...
Haroldo de Campos
Poeta, professor e escritor. Autor dos livros Metalinguagem,
A arte no horizonte do provável e A operação do texto.
Conheci o Leminski na década de 60. Foi meu vizinho no
Edifício São Bernardo. Ele me emprestou as revistas Invenção e
Noigandres e foi assim que tomei conhecimento do concretismo em S.
Paulo. Mas, quando veio me procurar, ele já estava em outra. Estava
interessado em haikais e se surpreendeu ao encontrar três deles em
meu livro Paisagem interior, de 1941. Por isso ele me procurou. Mas,
o verdadeiro haikaiista era ele. Nesta ocasião, estava aprendendo
japonês para mergulhar no espírito da língua e na cultura oriental.
Por isso seus haikais foram tão autênticos. Por mais antigas que
sejam, em seus poemas as palavras são sempre inaugurais. Leminski
tinha uma fome insaciável de conhecimento. Em 1969, mudou-se do
prédio e nunca mais deu notícias. Finalmente, em 1985, reapareceu
com a maior naturalidade. Ele e Alice Ruiz, a maravilhosa Alice Ruiz,
entrevistaram-me no programa Um Escritor na Biblioteca. Acho que o
Leminski foi um marco original e luminoso em nossa literatura. Falar
dele sempre me emociona muito. Ele me chamava de mãe.
Helena Kolody
Autora de Viagem no espelho e Luz infinita, livros de poesia.
(Para este depoimento, ela fez questão de se definir como “mocinha
no sentido antigo da palavra, ou seja, virgem, aos 87 anos”.)
Uma noite, no São Bernardo, Neiva chegou agitada. Tinha visto
Caetano Veloso à porta de um hotel, ele que tinha uma apresentação
marcada em Curitiba. Para o Paulo, a coisa esquentou mesmo, em
termos de importância da MPB, quando ele soube que Augusto de
Campos conhecera Caetano e iria escrever sobre ele (mais tarde
publicaria O balanço da bossa). Por aqueles dias, me surpreendi
quando, numa das nossas noitadas, vi o Paulo não debruçado sobre
os livros, como era de costume, mas empunhando um tosco violão
num canto da sala, junto com o irmão Pedro, também de violão em
punho, que lhe ensinava alguns acordes. Eram umas oito horas da
noite. Às quatro da manhã, a aula continuava. Às seis, o Paulo já
compunha um arremedo de canção, manejando bem os trastes.
Assim era Paulo Leminski, quando se propunha a fazer alguma
coisa: obstinado.
Carlos João
Jornalista, fazia parte do Grupo Áporo. Especialista em MPB.
O Leminski queria nos fazer crer que era um provinciano. Nada
disso. Ele tinha uma mente de vanguarda, uma cultura universal,
informações de primeira grandeza. Fazia gênero com a pequenez da
alma, usando o álibi das boas intenções. No fundo, parecia um
monge alucinado. Nada para ele era impossível. Tinha a capacidade
de transformar o imponderável em algo possível e concreto. Mesmo
quando estava vivendo dentro de uma lata de lixo, pela precariedade
da situação, ainda assim se parecia com um oficial polonês a serviço
de alguma Majestade. Não perdia a dignidade. Sua grande paixão era
o mundo intelectual e literário. Era fascinante ouvi-lo falar,
discorrendo sobre qualquer assunto que dominava. Aprendi muito
com ele.
José Louzeiro
Escritor, jornalista, roteirista de televisão. Autor dos livros
Infância dos mortos e Lúcio Flávio, o passageiro da agonia.
Conheci o Paulo Leminski no Rio de Janeiro, em 1970, na
redação do Correio da Manhã. Fui reencontrá-lo em Curitiba, dois
anos depois, quando fizemos a escalada ao pico do Marumbi.
Acompanhei o trabalho literário dele como um leitor privilegiado, pois
conhecia o personagem e sua história. Foi uma pessoa marcante.
Andou também por São Paulo, trabalhou na imprensa e freqüentou a
academia de judô, mas era em Curitiba onde estava à vontade, que
parecia reinar como o maldito, o assinalado de Cruz e Sousa.
Quando morreu, deixou pesar e alívio. É mais cômodo enterrar
figuras assim, batizar lugares públicos com seu nome e seguir a vida
na certeza de não mais ser perturbado por aquela inteligência de
assustar secretário de cultura. Dizer que ficamos mais pobres com
sua morte é falso: sua vida não enriqueceu nenhum de nós em
particular, mas sim uma geração maldita, perdida entre a polícia de
costumes e a polícia política. O maior mérito de Paulo foi ter driblado
o rígido esquema da defesa para não fazer o gol, mas sim, como
Garrincha, apenas mostrar que não existe adversário invencível.
Luiz Augusto Gollo
Jornalista carioca, amigo “dos curitibanos”. Atualmente mora em
Brasília, onde comanda um programa matinal numa rádio FM.
Paulo Leminski conheci muitos. Fui aluno do professor, colega
do publicitário, patrão do poeta doente. Amigos mais de vinte anos.
Da lira dos próprios ao impróprio caixão.
Posso escrever sobre o rapaz com fama de gênio, capaz de
resumir em uma aula a matéria de ano inteiro para o vestibular. Ou
sobre o compositor travestido em cantor, a esganiçar maltratando o
violão com tamanha fúria que fez quebrar, felizmente, a cadeira do
canto em decapê da casa de minha mãe.
Também do autor a andar pela casa das Mercês teorizando aos
berros, enquanto Alice, sentada no chão, tratava de cortar os rolos
com o texto já composto do Catatau para montar as pranchas, de
forma que, assim, pudéssemos revisá-lo — tarefa que jamais chegou
a ser realizada, se posso dar crédito às lembranças que me restam da
época, para sempre envoltas nos eflúvios que dali emanavam.
Talvez conte a visita que a família Leminski nos fez na casa de
praia, dois dias inteiros de churrasco, cachaça e cigarros. Eu
queimando os industrializados, tantos que jamais voltei a pitar
cigarros de qualquer espécie, ele fumando também os artesanais,
como desde sempre.
Falaria do pai que se negava a ver a gravidade da doença do
filho, ocupado demais estava, ou do sujeito que costumava furtar
livros da biblioteca dos amigos, como levou da minha um raro
exemplar — comprado no mercado das pulgas de Paris — de Marco
Antônio, de Shakespeare, tradução francesa de André Gide.
Conto, afinal, sua última molecagem. Depois de Jaime
Lechinski e eu comprarmos o caixão, ele, inchado, não coube. Pedro
Franco fez-me companhia na volta à funerária, viagem macabra para
a troca por um ataúde de dimensões extremas, não fosse seu futuro
ocupante um sujeito assim mesmo.
Meu acesso compulsivo de choro ao ver Paulinho do Blindagem
puxar, à beira do túmulo, aquela interpretação maravilhosa de
“Valeu”, foi emoção, homenagem, saudade e expiação — por não ter
sido com ele mais rigoroso, relevando mentiras evidentes: “Agora só
bebo uma ou outra cervejinha.”
Saudades do PauLeminski cachorro louco, do Paulo pauleira,
polaco provocador irresistível de quem me restaram alguns
exemplares, relidos sempre, a imaginar o riso irônico que a tudo
dedicava, com que talvez ainda nos veja.
Ernani Buchmann
Escritor e publicitário. Autor de Cidades e chuteiras,
livro de crônicas, e Os heróis da liberdade, romance.
Conheci o Paulo pessoalmente quando fizemos (eu e alguns
amigos) a Cooperativa de Escritores, em 1974. Eu fiquei encarregado
de levar sempre um exemplar dos livros que lançávamos para ele,
com antecedência.
Ele fazia a crítica para ser publicada nos jornais no mesmo dia
do lançamento do livro. Criticava com veemência, a partir de sua
posição de vanguarda concretista. Nós, da Cooperativa, tínhamos,
então, o ensejo de responder às críticas, no próximo domingo, no
mesmo jornal, o Estado do Paraná. Assim, a polêmica se estendia por
mais de mês, a respeito do nosso lançamento e outras posições
estéticas e literárias. Como fui sempre muito bem recebido por ele,
acabei, nessa época, freqüentando sua casa todo final de semana.
Quando a hospitalidade é generosa e estimulante, a gente retorna.
Acabamos muito amigos. Na morte de seu filho, Miguel, eu e
minha mulher Suely conduzimos o casal Leminski durante o funeral.
Outra vez, estávamos só eu e ele em sua casa, na Cruz do Pilarzinho.
Conversa vai, conversa vem, surgiu o papo do judô. Pedi, meio
descrente, que ele me aplicasse um golpe. Ele topou na hora.
Pusemo-nos em posição. Ele me virou de ponta-cabeça e me
derrubou no chão. Detalhe: os óculos voaram, mas eu não me
machuquei, porque ele me segurou antes que eu caísse totalmente.
Depois me levantou, peguei os óculos, demos boas risadas. Outra
ocasião, eu trabalhava na Pão de Açúcar Publicidade, precisávamos
de um redator, eu indiquei Alice Ruiz para o cargo. Ela foi
contratada. Depois, a vida nos levou para outros caminhos. Ele ficou
famoso e passou a freqüentar mais o eixo Rio-São Paulo-Bahia.
Reinoldo Atem
Poeta e publicitário. Autor de Urbe vage, poema longo,
e O aprendizado da vida, livro de poesias.
Paulo Leminski entrou em minha casa como o amigo de um
amigo, em 1979. Eu o considerava então apenas mais um desses
escritores herméticos, autor de um “Catatau”, que eu havia
começado a ler e não engolido de todo, por achar demasiado
rebarbativo, tentativa redundante de reinventar a roda, experiências
empobrecedoras do tipo joyce-proust tupiniquins, pois aos meus
olhos infanto-nouvelle-vague tais coisas se assemelhavam não às
citações e private-jokes de um filme de Godard, mas ao Walter Hugo
Khoury querendo dar uma de Antonioni, o que é totalmente uma
outra coisa. Eu pensava: colonizados! Não sabia ainda sobre o poeta
privilegiado e genial, sobre o homem culto e gentil, sobre o pai
extremoso e seu gigantesco drama. Paulo já entrou em minha casa
com nome próprio, amado e reverenciado por nosso grande amigo em
comum, Toninho Vaz, seu conterrâneo, seu melhor amigo desde os
tempos que brincavam juntos de fisdusca-em-pó, quase polaquinhos
de calças curtas. Paulo havia chegado ao Rio com os músicos da
banda Blindagem, Ivo & cia., para uma curtíssima e memorável
temporada no Teatro Opinião, rock fulgurante e meteórico, com letras
engraçadíssimas de Paulo (“sou legal eu sei/ agora só falta/
convencer a lei”). Como era uma produção tipo “Dubolso”, como diria
o Sebastião Nunes, eis que sobrou o hóspede Paulo lá em casa, na
Santa Teresa hippie dos anos 70. Conversamos muito sobre o
aspecto provinciano das nossas culturas, a mineira e a paranaense,
rimos da ta-canhez de nossas próprias vidas, e, na saída, ele deixou
pichado na parede: “HIC FILIUS LACRIMAT MATER NON AUDIT”. (O
velho dístico das cadeias: “aqui o filho chora e a mãe não ouve”.)
Poderia ter sido escrito em grego. Ou em japonês. Ou sânscrito. O
homem era um perfeito intelectual e artista. Daqueles que as
metrópoles tarde demais descobrem e adotam, transformam em
parâmetros, talvez por sentirem ali um restinho do gosto que já
perderam há tempo.
Márcio Borges
Poeta, compositor e escritor. Autor do livro autobiográfico
Os sonhos não envelhecem, a história do Clube da Esquina.
Madrugadas no Bar Palácio foram a senha e a cena de muita
conversação com Leminski, às vezes em grupos grandes, outras só
com ele ou poucos mais. Numa dessas ocasiões, entrou numa de
sustentar que na Segunda Guerra os generais alemães tinham
levado enorme surra dos seus colegas russos, dando como boa prova
disso a captura de von Paulus, creio que durante a batalha de
Stalingrado. Ele queria — porque queria — que eu (como neto de
alemães por parte do meu Ôpapa — meu avô — paterno) tomasse a
defesa dos boches... enquanto, com seu lado eslavo, ele ficaria, no
caso, com a do vencedor!
Eu vivia uma curiosidade inadiável das letras clássicas.
Leminski generosa e pacientemente se dispôs a me passar algumas
noções. Sobre o aoristo, um aspecto dos tempos gregos, deu essa
explicação singular: de que era como se fosse um tempo em que
transcorre a ação dos provérbios. Assim, quando se diz Quem não
tem cão caça com gato, em qual tempo está o verbo? Não é bem um
presente, está longe de ser um pretérito. É um tempo digamos
virtual. Esticando o conceito seria talvez possível dizer: é o tempo em
que vivem as crianças e os animais; é o tempo em que estão postas
as obras de arte.
Jaques Mario Brand
Poeta. Autor de Brisais (Das brisas do Brasil os ais et os sais).
É um dos poetas da antologia bilingüe Outras praias/Other Shores,
Iluminuras, 1998.
Guardo lindas lembranças do Paulo. Certa vez, hospedado em
nossa casa de São Paulo, ele continuou mantendo o hábito de não
“se lembrar” de tomar banho. A casa era uma farra só. Numa bela
manhã, Mônica, minha mulher, acordou disposta a botar ordem na
bagunça. Quando ela entrou na cozinha, me encontrou com um copo
de cerveja e o Paulo com um de conhaque. Ela tirou os copos de
nossas mãos e disse pro Paulo ir tomar banho e que depois estava
programado um café da manhã, como pessoas normais. Ele se
levantou sério, algo solene mesmo, tomou o seu copo de volta e,
encarando a Mônica, disse: “Mônica, por favor, não atrapalhe a
minha viagem autodestrutiva.”
Nosso último encontro foi já nos anos 80, em São Paulo. Logo
que ele chegou, o telefone tocou. Era uma namorada minha, a Dulce
Ferrero, ligando da Bahia. Eu desliguei o telefone e comentei com ele:
“Veja só, estou namorando com uma moça que está lendo ítalo
Svevo.” E ele: “Não caia nessa. Ela tá lendo Svevo pra lhe seduzir.”
Ato contínuo, me convidou para tomar uma. Eu disse: “Paulo, eu
estou dando um tempo, não estou bebendo.” Ele ficou calado, com
um ar meio triste. Ficamos conversando durante algum tempo, mas
ao se despedir, ele me deu um abraço e, com o mesmo ar de tristeza,
disse: “Você ficou me devendo uma farra.”
Logo depois, ao receber a notícia de sua morte, chorei muito. E
me veio essa frase, de que eu ficara lhe devendo uma farra. Tomei
um tremendo porre.
Antonio Risério
Poeta, compositor e crítico literário, autor de Fetiche
e Ensaio sobre o texto poético em contexto digital.
Quem primeiro me falou de Leminski foi Gilberto Gil, que me
deu notícias do experimento do Catatau. Na minha primeira
temporada em Curitiba, fizemos — eu e o Nelson Jacobina — um
contato com ele quando passamos a tarde na chácara polaca do
Rafael Greca. O caos nos unia. Ele escreveu um artigo me chamando
de O Olho do Ciclone, que eu reproduzi no meu livro Panfletos da
Nova Era. Depois nos encontramos algumas vezes na casa do Moraes
Moreira, no Rio. Nossa identificação vem de uma verve otimista que
estranhamente contrastava com a visão crítica que tínhamos de
tudo. Tudo que Leminski fazia tinha a marca da paixão. Era um
vulcão, um ativista cultural e um pensador fenomenólogo. Participou
de todas as experiências extremas da nossa geração. Poucos artistas
e escritores tiveram uma atitude tão heróica diante do amor e da
poesia quanto ele.
Jorge Mautner
Músico, compositor e escritor. Autor do livro
Fragmentos de sabonete.
Quando voltei de Curitiba, onde conheci Leminski, trouxe uma
pilha de Catatau comigo e virei um divulgador do livro no Rio de
Janeiro. Mais do que isso, um propagador, evangelizador, um
macaco de auditório do Leminski. Distribuí o livro para as pessoas
certas, falando com entusiasmo da obra. Uma noite, minutos antes
de um show de Caetano, no Canecão, ficamos sabendo da morte
dele. Por coincidência, o Haroldo de Campos também estava no
camarim quando alguém nos transmitiu a notícia. Foi um horror, um
buraco que se fez no mundo. Paulo Leminski foi a realização da
contribuição milionária de todos os erros de que falava Oswald de
Andrade. Ele encarnava isso. Bebia das fontes originais, tinha uma
cultura e uma sapiência assombrosa, descomunal. Ao mesmo tempo
fumava grandes baseados e se interessava por temas nada
acadêmicos. Desta forma, pulava de um registro para outro com
muita rapidez. Foi quem primeiro me falou de Carl von Clausewitz, o
teórico da guerra. Ele não apenas conhecia a obra como tinha
assimilado os postulados do grande estrategista. Era o seu lado
Golbery, um pouco Glauber Rocha, formado por uma mente
geopolítica. Eu acho que nós, os poetas brasileiros, devemos alguma
coisa ao Paulo Leminski.
Waly Salomão
Poeta, compositor, produtor musical. Autor de Lábia, livro de
poemas. Um dos editores da revista de poesia NAVILOUCA.
Primeira vez que vi o bigodudo, ele agitava um cartaz numa
cerimônia ou debate, não lembro, do saudoso Concurso de Contos do
Paraná. O cartaz só tinha três palavras:
O CONTO
MORREU!
Anos depois, ele elogiaria um conto meu, e eu diria ué, mas
você não pregava que o conto morreu?
— Naquele tempo, mas renasceu. Até eu ando fazendo contos!
Quando ele ainda morava no Pilarzinho, um dia, depois de
muita conversa e bebida, me ofereceu pouso:
— Você vai dormir cercado por pilhas de obra-prima!
Era no sótão, uma cama cercada por pilhas de Catatau, que ele
ia dando a um e outro:
— E ainda vou ter Catatau por muitos anos!
Onze da manhã. Já tinham ligado três vezes da agência
quando ele chamou um táxi. Alice recomendou:
— Vê se manera, tá? Não bebe no trabalho, Paulo!
— Xacomigo, amor. Prometo!
Mas, no caminho, mandou parar num bar, virou uma vodca
dupla.
— A caminho do trabalho não prometi nada.
A outra casa, também de madeira, tinha uma sala gostosa
onde ele era capaz de ficar horas conversando comigo sobre filosofia
política e a chamada arte militar, único intelectual que conheci a
discutir essas coisas com independência mental. Eu estava sempre
de passagem, a caminho do litoral, então gastávamos a tarde com
Sun-tzu, Lao-tsé, Jesus, Trotski, os anarquistas etcétera.
Começo da tarde, toca o telefone, era uma agência querendo
um slogan, ele anotou os dados. Fim de tarde, toca o telefone, é a
agência querendo o slogan, ele fica procurando o papel das
anotações.
— Pois é, eu ia agorinha mesmo ligar pra vocês, passei a tarde
pensando nesse slogan.
Dá uma olhada nas anotações, solta um suspiro fundo
ganhando tempo, aí fala o slogan. Explica por que, enquanto alguém
anota do outro lado da linha. Desliga.
— Tim-tim — falava assim também quando ouvia música sua
no rádio. — Dinheiro na caixinha!
E voltamos a falar de Ghandi ou de von Klausewitz.
Um dia, perguntei por que não fazia de bate-pronto os pedidos
das agências.
— Ah — passava a mão no bigode. — Se não demorar, eles
pensam que é fácil, não dão valor.
Outro telefonema. Ele ouviu, suspirando fundo, em seguida só
soltou negativas:
— Não... não... de jeito nenhum... já falei... não quero... não.
Desligou.
— Era um pessoal que ano passado fez um encontro trotskista,
me convidaram, fui lá, falei de Trotsky, até cantei, acharam ótimo.
Agora estão me convidando de novo, mas chega desse brinquedo,
ano passado já brinquei.
Do hotel, liguei, ele falou vou aí, vamos fazer um programa.
Chegou, perguntei qual o programa, ele falou conversar, ué, que
mais? E ficamos conversando horas, aí chegou o César Marquesini,
que só conhecia o polaco de vista, e ficou ouvindo, até que não
agüentou:
— Caras, vocês não param de pensar!
— E nem tudo — Leminski emendou — a gente consegue
expressar!
Fugia de falar de contratos de edição, confessou que assinava
sem ler direito, na compulsão de publicar, publicar, com a urgência
duma visível ansiedade. Seus fundos suspiros pareciam os vapores
duma máquina de criar e esperar reconhecimento. Era apaixonado
pela imprensa cultural e pela divulgação da própria arte,
preocupação que foi se acentuando conforme o reconhecimento foi
aumentando, talvez porque também pressentisse o próprio fim. Na
última vez em que pousei a mão em sua coxa, estava quase só pele e
osso, sugado pela vida que passou a levar DA (Depois de Alice).
Passei a evitar o bigodudo que nos bares falava acima de todas
as vozes, e que estava sempre adiante algumas doses. Ele tinha
também certas mesquinharias que me irritavam e, na última
passagem por Curitiba, liguei, convidou para um bate-papo mas me
esquivei.
Um dia, estou no Rondon Palace Hotel, Porto Velho, Rondônia,
onde fazia um trabalho de propaganda, e eis que ele surge na tela da
televisão do saguão. Fui lá, aumentei o volume:
— Paulo Leminski tinha 44 anos e...
Virei as costas e fui para o serviço a fazer. Tempo depois,
convidam para uma mesa-redonda no Perhapiness, e na minha hora
de falar comecei a chorar e não parava mais. Haroldo de Campos
olhou espantado, quando falei:
— Estar aqui é como estar no velório dele, então eu gostaria de
hoje estar aqui apenas para chorar.
E chorei. E agora, lembrando, torno a chorar. Me pegou de
novo, polaco!
Domingos Pellegrini
Escritor e jornalista. Fazia parte da Cooperativa dos Escritores do
Paraná. Autor dos romances Teria vermelha e Questão de honra.
O traço que mais me comoveu na personalidade do Leminski,
que não conheci integralmente, foi o orgulho de sua metade negra.
Intelectual e artista cultuado ainda em vida, ele poderia muito bem
ter “deixado isso pra lá”, como tanta gente faz. Mas ele sentia prazer
em assumir-se como um afro-polaco-brasileiro — o que se constitui
numa grande injeção de auto-estima em nós todos. Quando lhe
mandei meu livro Islamismo e negritude, ele afirmou, benevolamente,
que foi a melhor coisa que já lera sobre o assunto. E mandou-me um
esboço de “poema/letra” que havia feito: “Oxalá Xangô Ogum/ dai-
me a graça de ser forte/ para. que eu possa ser bom/ para que eu
possa ser um”.
Nei Lopes
Compositor, escritor e bamba de escola de samba. Autor dos livros O
samba na realidade e Islamismo e negritude.
O Paulo Leminski me resgatou junto aos intelectuais, que eu
sempre considerei pessoas chatas, que dificultam o relacionamento
com os “normais”, tornando muitas vezes a conversa inacessível.
Eles entendem de tudo, sabem de tudo, têm uma visão
particularíssima do mundo etc.... Nunca tive muita simpatia por
intelectuais. Mas com o Paulo era diferente. Ele tinha erudição, tinha
conhecimento mas era muito generoso, conversava da mesma forma
com os mais variados interlocutores, desde uma criança até um
catedrático. Se você não demonstrava conhecimento de um
determinado assunto, não tinha a menor importância. E ouvir suas
explicações era uma delícia. Depois, estive com ele uma noite em São
Paulo, em 1987, e fiquei triste: tomava conhaque a cada quinze
minutos. Eu estava no Rio de Janeiro quando acompanhei a notícia
de sua morte pela televisão. A imagem mostrava ele dançando e
cantando num show dos Titãs. Sinto a maior saudade daquele olhar
doce e das covinhas que se formavam quando ria encabulado. Eu o
amava profundamente.
Lúcia Turnbull
Cantora e compositora. Guitarrista nas bandas de Rita Lee, Gilberto Gil
e Moraes Moreira. Tem uma filha, de 11 anos, chamada Alice em homenagem
à personagem de Lewis Carrol e a Alice Ruiz.
Paulo Leminski foi uma das pessoas mais marcantes na minha
vida. Eu conheci sua poesia aos 17 anos, quando morava em
Londrina, e decidi ir a Curitiba entrevistá-lo. Encontrei-o por acaso
na livraria Ghignone, na Rua das Flores. Me apresentei e ele
imediatamente me convidou para “passar lá em casa mais tarde, e
não se esqueça de levar uma garrafa de vinho”. Telefonei antes para
confirmar o encontro naquela mesma noite. Ele atendeu o telefone
tratando a mim — um total estranho — de “meu nego”, me dando as
coordenadas para I chegar à sua casa. A primeira coisa que percebi
na rua do Leminski foram os números que não obedeciam a
nenhuma seqüência. Era mais ou menos assim: 4, 35, 2749, 815, 76
etc. Quando cheguei ele estava varrendo a varanda, com as duas
filhas brincando por perto. Logo Alice apareceu e o ambiente ficou
mais animado, as idéias rolando entre fumaças. Ele falou das origens
da poesia, música, contracultura, Bashô, zen. A empatia com ele era
total. Este encontro revelou para mim pistas essenciais sobre “o que
é ser poeta” e “como se vive a poesia”. Quem o conheceu sabe do
privilégio que foi tê-lo conhecido. Leminski, na minha opinião, foi
uma das maiores inteligências, um dos maiores talentos da cultura e
da poesia brasileira e mundial do XX.
Rodrigo Garcia Lopes
Poeta, jornalista e tradutor.
É organizador do livro Sylvia Plath: Poemas.
Leminski é (os poetas não morrem) um poeta multimídia. A sua
poesia antevia a velocidade da internet e a fugacidade desses tempos
modernos. Por isso Leminski não teve nem que se adaptar à
linguagem da TV. Ele já possuía um texto sintético, que é, em tese, o
texto televisivo. Leminski está à frente do seu tempo. É um homem
do século XXI. E estar à frente do seu tempo é sempre um problema.
Leminski é o nosso Prometeu (mesmo que existam outros). Paulo
Leminski, o poeta intrépido, nos trouxe o fogo dos Deuses. Sua
poesia veloz e precisa iluminou nossas gerações. Há muito não se via
um poeta tão eloqüente e apaixonado em terras brasileiras. Leminski
é fiel aos altos ensinamentos da tradição grega: o poeta faz de seu
sangue a sua lira. Tal como Prometeu, Leminski foi sacrificado e seu
fígado virou alimento de abutres. Mas estes morrerão. Leminski não.
O poeta vive. Sua verve está fresca em nosso olhar. É como se
Leminski tivesse partido ainda ontem em uma longa viagem pelo
mundo (do grego: cosmos). Até então nunca tinha saído do Brasil. O
homem poliglota, que traduziu até Bashô, conheceu o planeta azul
sem sair de Curitiba, em sua santa felicidade. Leminski, poeta,
amigo, daonde você estiver agora, fazendo poesia com as letras do
universo, lhe desejamos feliz jornada.
Renato Barbieri
Cineasta, diretor do documentário Atlântico negro — Na rota dos orixás.
Ex-diretor da produtora de vídeo Olhar Eletrônico e do Jornal de Vanguarda.
O Paulo e a Alice agendaram um dia cheio em Londrina:
lançamentos de livros dele e dela, entrevistas, palestras. Era 1988,
se não me engano.
Saímos de Curitiba na noite anterior, de ônibus. Ele embarcou
com uma garrafa de vodca a tiracolo, que chegaria completamente
vazia ao destino, lá por seis da manhã. Vodca quente, que ele tomou
diretamente do gargalo, da primeira à última gota, já que Leila, Alice
e eu recusamos um gole sequer e não se viu entre os demais
passageiros qualquer intenção de participar da beberagem.
Viagens sempre exaustivas estas de longo percurso em ônibus
convencional, por melhor que possa ser a companhia. Daí que
imaginávamos pelo menos um pequeno descanso na chegada, mas
Leminski, sempre falante e animado, insistiu para continuar a
conversa no apartamento que os anfitriões haviam reservado para ele
no Hotel Bourbon. Ali, em poucos minutos, derrotou
sistematicamente tudo que havia de interessante no frigobar,
primeiro as garrafinhas de uísque, depois as de vodca, as de vinho e,
finalmente, as latinhas de cerveja.
Ainda no hotel, e antes que desse 9 horas, quando estava
agendado o primeiro compromisso, apareceram alguns dos anfitriões
e, com eles, os baseados e as carreirinhas que o polaco consumiu
com voracidade e uma naturalidade que impressionavam até os mais
íntimos, como nós.
Enfim, a tal palestra. Ele, sem dar qualquer demonstração de
cansaço ou de que pudesse ter a mente turvada depois de tamanha
extravagância, falou por mais de uma hora, eloqüente como sempre,
marcando pela exatidão das palavras e pela exuberância de gestos.
Encerrada a fala, vieram as perguntas e, quase no final do
debate, uma senhorinha — algo perua, algo tímida — faz a sua
indagação, visivelmente ensaiada:
— É verdade que o senhor escreveu a maior parte de sua obra
sob o efeito de álcool e de drogas pesadas?
Tensão na platéia, especialmente entre os anfitriões. Mas o
polaco, impassível, fulminou a senhorinha com aquele seu olhar
penetrante:
— Jamais! Eu não bebo. Quando muito aceito uma taça de
vinho na noite de Natal.
Jaime Lechinski
Jornalista e assessor de comunicação do gov. Jaime Lerner.
Leminski. Como um bom “polaco”, era rápido e matreiro; pela
raiz de crioulo, não facilitava, não deixava por pouco. E eu, libriano
duplo, com vivência de quem morou no mato, e fala pelo papel e
lápis, fiz o que Leminski mais gostava: ser provocado com vara curta,
lancei desenhos que puxaram poemas e aí virou um duelo à parte,
chamado winterverno. A cada novo desenho via-se a sobrancelha
direita elevada, provocando um sinal do cérebro para a mão, que
com os dedos armados, me deixava na espectativa no seu direito de
resposta. No dia seguinte se invertia, com o semblante orgulhoso de
quem chegou antes e provocou um novo desafio. Às vezes vindo via
telefone da TV Bandeirantes num intervalo do programa Jornal de
Vanguarda.
Vangloriava-se ao pegar o violão e cantar “Verdura”, dizendo
que letra e música eram suas e que Caetano dificilmente gravava
algo que não tivesse sua intervenção. Citava Caetano com respeito
pela inteligência, dizendo que transformava letras simples em coisas
de valor.
Os fatos, para Leminski, poderiam ter qualquer peso, mas
deveriam conter criação e humor. Imagens eram pescadas pelo poeta
que vivia o que escrevia, com informação e um domínio
enciclopédico; quem estava ao seu lado, criava ou saía fora. Não
tinha escrúpulos de, num lugar público, afastar com firmeza os
chatos.
À vista da porta da cozinha, na casa da rua Duque de Caxias,
vislumbrava-se um quadro admirado por ele. Um pinheiro araucária
e uma antena parabólica sobrepostos, imagem forte para quem se
considerava como um pinheiro que não se transplanta (citando a
volta de sua estada em São Paulo), e adorava comunicação. Ali,
ainda tinha a sensibilidade de apreciar o quintal, o limoeiro e cuidar
das rosas no jardim.
Enganam-se os ditos “amigos”, que até publicam livros
póstumos, declarando aos jornais à época de sua morte, como se
esta tivesse sido decorrente da sua vivência com drogas. Convivemos
bastante próximos nos seus dois últimos anos de vida, e sei que o
álcool — a vodca, mais precisamente — é que foi o problema, e não
as drogas. Ao menos aqui podemos usar o forte poema de
Maiakovski, “é melhor morrer de vodca, do que de tédio”.
João Virmond (Suplicy Neto)
Arquiteto, artista plástico, parceiro de Leminski no livro Wintervemo.
Paulo Leminski é o poeta mais intenso que já conheci. Jamais
encontrei outro que “respirasse” poesia todo o tempo. Está lá,
inscrito como um obelisco, logo no seu segundo livro: “vai vir o dia/
quando tudo que eu diga/ seja poesia”. Quem o conheceu de perto
sabe que ele transformou esses versos em lema para a sua própria
vida. Talvez por esse motivo ele tinha dificuldade (ou um certo des-
prezo, sabe-se lá!) em lidar com coisas práticas. Bobagens
mundanas, como abrir uma conta bancária (lembram dos versos
“fiquem vocês com a realidade/esse baixo astral/em que tudo entra
pelo cano”?). Então. Quando começou a trabalhar no Jornal de
Vanguarda, da TV Bandeirantes, ele pediu para eu acompanhá-lo a
uma agência do Banco Nacional, na avenida Angélica. Precisava abrir
uma conta para receber o salário mensal. Foi hilário. A gerente pedia
a carteira de identidade e ele não tinha. O CIC — não tinha.
Comprovante de residência — necas. “Mas como é possível abrir uma
conta, se o senhor não tem identidade?”, dizia a gerente. “Nunca me
interessei por essas bobagens freudianas”, ele se divertia. Passamos
meia hora dentro do banco, Leminski disse alguns poemas para a
gerente e saiu como tinha entrado — sem nenhuma conta. Quem
sabe para se defender da “realidade, esse baixo astral”, ele mantinha
um admirável senso de humor. E possuía o raciocínio mais rápido do
Oeste. Lembro de uma tarde em que estávamos passeando na praça
Buenos Aires, em Higienópolis — bairro paulistano de judeus ricos, e
demos de cara com uma madame levando seu poodle na coleira. Não
sei se devido a algum pó antipulgas, o cachorro estava todo colorido,
com faixas azuis, vermelhas, lilases e verdes no pêlo. Quando vi
aquilo, comentei, quase sem pensar: “Nossa, olha aquele poodle,
parece o Pepeu Gomes.” Leminski soltou uma baita gargalhada. A
madame, imediatamente, colocou seu cachorrinho embaixo do braço
e disse: “Vamos embora que aqui só tem gente ignorante”. Muito
sério, Leminski retrucou: “Mas ele está fazendo um elogio ao seu
cãozinho. A senhora não sabe quem é Pepeu Gomes, não?” Lembro
bem quando, num sábado, cheguei na casa da cantora Fortuna,
onde ele estava hospedado, e vi uma porção de poemas empilhados
no tatami da sala. Ele me disse: “Pin, leia aí e assinale os melhores,
aqueles que baterem fundo.” Era o livro La Vie en Close, finalizado.
Fiquei pasmo com a quantidade de poemas que falavam de dor, que
substituíam o bom humor da fase inicial da sua poesia por um tom
mais grave e, em certo sentido, muito mais denso. Disse isso a ele,
que não me respondeu nada. Um dos poemas, em especial, me
impressionou muito: “Sintonia para pressa e presságio”. O final: “Eis
a voz, eis o deus, eis a fala,/ eis que a luz se acendeu na casa/ e não
cabe mais na sala”. Senti algo estranho na leitura. Alguns meses
depois eu entendi. “Pressa e presságio”. Leminski estava consciente
de que tinha pouco tempo. E até isso ele transformou em poesia.
Ademir Assunção, o Pinduca
Poeta e jornalista. Autor dos livros LSD Nô (poesia) e
A máquina peludo e Cinemitologias (prosa).
Hospedado em minha casa em Curitiba, no final dos anos 80
(nesta época ele morava em São Paulo, na casa da Fortuna),
Leminski ficou amigo do chinês de uma pastelaria embaixo do
prédio, com quem conversava todas as manhãs ao sair para comprar
pão. Tentava falar com o chinês, que viera de Cantão, em mandarim,
e normalmente chegava atrasado, com o pacote de pão amassado
debaixo do braço, desistindo de tomar café conosco, pois já ficara
freguês de um engordurado bolinho de carne da pastelaria. Foi por
esses tempos que discutimos muito sobre cultura hispano-
americana, literatura e revolução — a propósito de uma tradução de
Guillermo Cabrera Infante que eu estava fazendo para a Cia. das
Letras, e que ele gostava de ler durante as tardes. Ele estava um
pouco over, saía todas as noites e nem víamos quando voltava.
Mesmo arriscando ouvir alguma desconversa aborrecida dele, disse-
lhe que achava que ele precisava parar um pouco, talvez ir para a
chácara de algum amigo, ficar longe da cidade, voltar a escrever,
enfim, tentar frear aquela vertigem suicida. Surpreendentemente, ele
não fez graça nem torceu o nariz fingindo não ter ouvido. Depois de
um tempo em silêncio, disse, com uma calma aterradora, que se
manteria conscientemente nesse mesmo rumo, com “a dignidade
suprema de um navio perdendo a rota”, pois assim se sentia mais
vivo, mais criativo, e que a lucidez da sobriedade agora tornaria o
mundo opaco para ele. Além dos traços mais evidentes de sua
personalidade, como a transbordante criatividade e a generosidade
(típica, aliás, dos grandes artistas), lembro-me de seu bom humor e
de uma paradoxal fragilidade, revelados através de uma poderosa e
romântica imaginação poética, que lembra a “vivência oblíqua pela
imagem” de que falava Lezama Lima, e de uma atitude muito
particular que ele assumia nos momentos mais adversos.
Josely Viana Batista
Poeta e tradutora. Fazia parte da equipe do jornal Nicolau.
Paulo não usava cuecas. Só vim a saber disso numa entrevista
em 1988, quando, sem que lhe fosse perguntado, disse que soltava a
jeans no corpo em pêlo. Mas, depois, ele queria fazer crer a Alice Ruiz
que eu poderia ter essa informação com conhecimento de causa.
Fofoqueiro? Fanfarrrão? Machista? Não houve oportunidade de
tomar satisfações, restando a Alice e eu, numa mesa de bar, depois
dos pratos limpos, rir das fantasias do nosso amigo. Mal sabia ele
que entre amigas nada é secreto. Mas Alice guardou um segredo, sim
— e aí a história (quem sabe) poderia ser outra: numa outra mesa,
em outro bar, e em tempo bem recente, ela confidenciou-me que o
Paulo era um homem superlativo na cama.
Em 1988, a inexistente cueca até me passou desapercebida na
entrevista. Magro por demais, dentes estragados, apenas um brilho
febril nos olhos denotando vontade de viver, ele retornava de São
Paulo a Curitiba. E uma frase sua, na época, me chamou atenção e
até hoje me emociona: “Pinheiro não se transplanta”, disse a
propósito de nunca ter saído de Curitiba. A força e imponência da
árvore não combinava com aquele Paulo Leminski de então, tão frágil
que precisava fantasiar uma irresistível atração sobre as mulheres.
Contudo, a figura do pinheiro é familiar à imagem do poeta. Os dois
fazem falta e sentido.
Adélia Maria Lopes
Jornalista, ex-colega de Leminski n’O Estado do Paraná.
A convivência com Leminski, naqueles oito meses em que ele
morou em minha casa, me foi muito estimulante. Mais do que isso,
revolucionária. Eu despertei para a poesia e comecei a compor. Ele
era meu amigo e me fez voltar para dentro de mim. Eu, que renegava
as minhas próprias origens, passei a cantar músicas do meu
universo arquetípico, do mundo árabe-judaico, do Mediterrâneo.
Adotei uma nova linguagem musical, no dialeto ladino, próprio das
comunidades sefaraditas, de raízes medievais. A morte dele
representou o fim de um processo na minha vida. Foi como uma
bênção. Quando percebeu que ia embora, Leminski foi embora
mesmo, suavemente, para Curitiba, com a Berenice.
Fortuna
Cantora e compositora. Diretora artística do Festival Todos os Cantos
do Mundo. Colaboradora da rádio Eldorado FM para assuntos de world music.
Vivi com Paulo Leminski os dois últimos anos de sua vida. Foi
muito pouco tempo para conhecer o homem, o artista e o intelectual,
sobretudo porque nosso relacionamento estava baseado na categoria
de gênero. Fomos apenas um homem e uma mulher completamente
apaixonados no final da década de 80. É claro que pude vislumbrar
seu mundo, as idéias, os amigos, as dores, os sonhos. O que havia,
foi partilhado. Reciprocamente. Mas sua obra, a não ser aquela in
progress, confesso, só vim conhecer após sua morte, durante o longo
período de luto que se abateu sobre mim, ou me abateu, dá na
mesma.
Depois dos poemas, das crônicas, traduções e biografias,
resolvi encarar o Catatau, aquele livro que ele amava feito a um filho.
Livro que lhe consumira uma década de trabalho e que lhe deixara,
segundo dizia, livre, descomprometido. Chamou minha atenção o
fato de a epígrafe do Catatau ser citação da própria obra. Lá está (na
edição original): “... usque consumatio doloris legendi”. Bem que se
diz que o diabo mora nos detalhes. Fui investigar e encontrei na
página 167 a epígrafe como parte de uma frase que por sua vez faz
parte de uma oração, na realidade uma inscrição marmórea. A
questão é que ela estava em latim e eu, além do parco crédito da
faculdade de direito, não tinha latim para gastar. Por outro lado,
naquele momento, eu tampouco tinha vontade de procurar, falar ou
sequer ver quem quer que fosse gente, mesmo que pudesse me
auxiliar. Mas eu queria entender, mesmo porque, segundo o Aurélio,
epigrafar é denominar; epígrafe é o título que serve de tema ao
assunto, e epigrafia é também a decifração de escrita antiga em
material que é ao mesmo tempo uma inscrição no mármore, com
todo o simbolismo funéreo desta pedra. Tinha que ser uma chave
para a compreensão de alguma coisa.
Lancei-me ao desafio e me vi, por muito tempo, rodeada de
dicionários etimológicos, latinos, franceses e outros quetais. A
inscrição, que contém a epígrafe, é a seguinte:
“HIC FUIT LAPIS. In locum suum se restituebat, ad seipsum
redens. Et quasi peregrinos per pláginas pertransire usque
consumatio doloris jussit, quod invenies intra? Ipse et simul quam
antea: oculum adendis susceptis, sine tirocinare nisi mittere!”
A tradução à qual cheguei foi esta:
“Isto escrevi para a pedra da sepultura. Neste lugar estou e
voltaria, se soubesse voltar. E como um estranho iria além das
páginas que escrevi, até consumar as dores que eternizei. Estou
purificado, acabou-se o tormento! Concluída a solitária obra, o que
fará o rei em sua morte? O mesmo e do mesmo modo que antes; ver
a água e o sangue que correm da ferida, transformaram-se num
hipnótico, delicioso e definitivo pensamento extraordinário, colossal e
poderoso! Segui este caminho sem pensar, apenas segui!”
Irônico, trágico, autoconfiante até as raias da megalomania.
Com certeza, atributos do homem que amei. Valho-me de suas
próprias diretivas — agregadas à segunda edição da obra, em
“Quinze pontos nos iis”, em especial o de nº 7, onde recomenda
atenção para “as passagens do sentido para o nonsense, do suspense
para o pressentimento” — para concluir que, além de outros
significados, encontrei ali seu epitáfio. Que torno público agora.
Berenice Mendes
Cineasta. Autora do média-metragem Vítimas da vitória.
APÊNDICES
1.
Anos mais tarde, em fevereiro de 1987, Leminski receberia uma
carta assinada por um dos membros da comissão julgadora do
Concurso, explicando os acontecimentos daquele dia:
Meu caro Paulo Leminski:
Apesar de ter ido inúmeras vezes a Curitiba, a capital brasileira
do conto, nunca tive o prazer de conhecê-lo. (...)
Como membro daquela comissão, conservei o original do conto
“Descartes com lentes” (no caso, uma cópia) comigo durante anos e
deve estar ainda entre meus papéis, porque desejava identificar o
autor.
Votei em “Descartes” para inclusão entre os 5 premiados e
tentei até o último instante que o fosse. Infelizmente a comissão ficou
restrita a 4 nomes, porque o Léo Gilson Ribeiro estava internado. E
no dia da entrega do prêmio, chega um telegrama do Léo votando em
“Descartes” para o 1º lugar. Mas tudo errado: o número estava certo,
mas ele identificava o pseudônimo “Kurt” (havia um Kurt muito
ruim) e não “Kung” (não era esse?).
Ele não indicou o título de nenhum conto, o que teria resolvido.
Só eu tenho certeza de que era o Kung.
Tentei falar pelo telefone com o Léo no hospital, mas foi
impossível. (...)
Era um espinho que estava na minha garganta e eu gostaria de
tirá-lo. O prêmio, é claro, não fez falta a você. Mas o fato é que era
seu.
Aceite o meu grande abraço.
Fausto Cunha
2.
Poema com aparato persa
uma vespa persa me cobre de flechas
melhoral
combateremos à sombra
e água fresca de mescal
a vespa persa
presa no espaço
o osso exposto
a aranha-niemeyer
com suas brasílias provisórias
carantonha maia
digamos
uma casa branca
poliedro
com uma só janela
olho-vitral
a máscara-nô
cobre a estrelas-vásper
no chafariz-piscina
polvos pulsam
sob a luz de gás-morfina
sim
ou neon?
a fruta-pão
a flauta-de-pan
furta-cor
e furta-som
a mesa farta e lauta
tecnicolor
no ar de sal de fruta
no ar de som de flauta
férias em hiroshima
totem,
ópio
ego
o coração é uma seda
o olho na labareda
era no anel
o sol — a semprepedra
no canal —
o mesmo cão
o fogo dos outros
queima ao longe
acendo a pira
com um pão em chamas
no desabotoar da manhã
cento e dezoito mil pássaros
entoam juntos
o hino nacional
até dar cãimbra
o deus-ra ri
da nota ré
o homem-rã ri
da letra rô
a porta inteira
era uma chave de si mesma
um rock
em língua d’oc
a pupila na papoula
o olho madrepérola
o júbilo na esfera
sangue de cristo na ampola
explosão e pavão de primavera
o nervo-polvo
o polvo
rosa
em polvorosa
um polvo no pulmão
a mão
o pulso
a pulsação
o ar tine
viver arde
bichos do pau podre
comem o olho
da estátua grega
na vênus de milo
os mamilos são os olhos
da mona lisa
o seio
é um soco com luva de box
o poder estupendo das ruas
a bomba-câncer
não encrenca
o vento enfuna a mente
como a um galo
de um catavento em chamas
a rua é festa
a casa dos vivos
está cheia de frutas
cercada de flores
e de um brinquedo incompreensível
de crianças loucas
uma frase numa freqüência
exaure a força perversa dos rádios
os deuses estão aqui
a raça dança
na ampulheta do tempo
escorrem sais de anfetamina
o olho é raio-X
a mente emite seus discos voadores
e nas farmácias feéricas
borbulha o polén dos tóxicos
o coração sob um holofote
derrete em doces frutas brinquedos
um menino cruza a rua
assobiando uma canção hitita
o carro dos bombeiros
em chamas
atravessa a cidade
esvoaçam no vento
múmias de faraós
caranguejos abandonam
suas armaduras danificadas
o nó perfeito das forças
é feito por escoteiros com dentes
de gilete
o dia espirra
de uma fresta
flecha em festa
na testa dessa fera
ouro incenso e mirra
no nariz da besta
espirra e vomita
a tara das aves
por um sol bom
o belo berro
duma ave magra
oásis é tudo que o neon ilumina
um pão selvagem
na boca que canta
um raio atinge o sol
explode em frutas borboletas
e sombrinhas de verão
foguetes pirilampos e balões
para os meninos de são joão.
(Publicado no Jornal do Escritor em outubro de 1969)
3.
Outros verbetes do Indicionário, que Leminski publicou com a
recomendação: “Atenção para a pronúncia — Pronuncia-se o
malaquês pegando o que ainda resta do português, amolecendo o
meio das frases e endurecendo as pontas. Requer prática. Deve-se
ter o máximo de cuidado de não inverter a equação (amolecer as
pontas e endurecer o final) porque quem fala assim é bicha.”
Aponte. Encontro marcado. O mancão dispensa aponte: é um vacilo
(ver).
Atividade. Manobras estratégicas, exigindo alerta, lucidez e
discrição.
Bandeira. Dar bandeira = desbandeirar. Abrir o jogo expondo-se a
quem não tem nada a ver. Como remédio recomenda-se
cabreiragem.
Batalha. Forma básica de desempenho.
Bater. Levar ao conhecimento dos interessados.
Bobeira. Zonzeira desgovernada. Vai da desatenção ao descuido e
daí à bandeira.
Bobo. Coração ou/e relógio que trabalha de graça. Tem pegada.
Boca. Mocó caído.
Bom. Da boca. Não se cria. O ruim com o bom da boca é a boca
(vide).
Cabreiro. Morreu de velho.
Cachanga. Também cafifa. Para onde não se leva desaforo. É onde
vagau se joga.
Cair do cavalo. Provincianismo gaúcho, dadas as alusões eqüestres.
No Rio, dizem “sambar”, “dançar”, para essa desagradável
ocorrência. Ser preso.
Cara. Um tempo atrás. O contrário é continuação. Livrá-la é receber
ajuda (ver presença).
Chulé. Não é flor que se cheire. É o pária, o pilantra, vacilão, só
aparecendo onde não é chamado. Em províncias onde se fala o
tupi, Chué.
Chutar e caminhar. “Caminhar” é voz passiva de “chutar”. Te chuto
em dez pedros. Você caminha em igual quantia. Ligados a uma
falsa noção de adiantar o lado (ver).
Colher de chá. Muito pedida. Várias ao dia são o arrego. A sigla é
CC.
Continuação. O que vem depois. Não tem muita importância. Tem
volta (vide).
Crivo. Também giz. Cigarro. No vagau, não dá câncer. Não dá tempo
de dar.
Crocodilagem. Também crocô. Não se faz, é crime — que nem folga e
vacilo.
Cucuia. Aonde tem ido muita gente boa. Não faz parte da ONU nem
dos roteiros turísticos.
Curtir. O português está avacalhando com a palavra. Levar a
bobagem a sério. Dar pra entender. Os outros sempre acharão
que não dá. Não dê muito a entender. Não há muito a entender
ou ser entendido.
Desbaratinar. Fazer de conta que não tem nada que ver.
Descolar. Fazer se criar (ver piar).
Desempenho. Exercício das funções. O maior é o pinote (ver).
Dispensa. Sem essa. Deixar falando sozinho. Rompimento de
relações. Se desfazer.
Em cima. Com a gente, na hora. Babilaca, berro, coisas.
Empapuçar. Encher o saco e outras medidas de capacidade.
Escrache. Qualquer coisa pode ser um tremendo escrache.
Federal. De lascar. “Bode federal” é locução clássica para “morte”.
Finalidade. Estado de quem está a fim.
Folga. Cama, comida e roupa lavada & deitar e rolar. Abuso de
confiança.
Fajuto. De São Paulo. Produto agrícola ou industrial que não dá prá
entender. Também: frajuto, frajute, farjuto ou fajo.
Grupo. Louvável quando tem fins louváveis, por ex., adiantar teu
lado.
Japonês. Tou muito japonês. Zumbi. Louco, com as butucas em luz
baixa.
Lado. Também ladosa. Interesse pessoal. Adiantar-se ou atrasar-se
o lado.
Limpeza. Opõe-se a sujeira. Há cada vez menos sujeira e mais
limpeza.
Máquina. O berro da lei.
Mina. Ganha-se no papo. As que trampam nas bocas são limpeza.
Dependendo da folga, podem apanhar várias vezes ao dia.
Minha. Onde meu lado começa.
Necessa. Quando já faz uma cara. Birita é benéfica aliviando os
sintomas.
Neurose. Estados agudos da necessa. John Lennon — “Cold
Turkey”. A birita, nesse caso, não tem nada que ver. No dizer de
ilustre malaco: “é quando a gente fica na expectativa e não se
define a situação”.
Mocó. A utopia do esconderijo perfeito. Pintou sujeira, cai e vira
boca (ver).
Moringa. O armazém de bobagens, o besteirômetro. É onde se dão
as encucações, as tacanhas e as sugestas.
Peça. Pessoa física, vagau ou alienígena.
Pedido. Marcado para morrer. Locução: pedir pra morrer — perder
o rebolado.
Perigo. Nas últimas. Também periguete.
Peteca. Disposição de ânimo ou desânimo. Baixa ou alta.
Piar. Pintar no lance, aparecer.
Pitanga. Estes que a terra há de comer. Vivem debaixo de colírio
Moura Brasil.
Presença. Livra a cara.
Quebrada. Geografia. O pinote se dá nas quebradas.
Rango. Fome natural ou provocada.
Responsa — bilidade. O que faz do vagau um irresponsável. Refere-
se a apontos.
Revertere. Também rebodosa, rebô. Ressaca; volta. As
conseqüências.
Sacar. É entender, saca? Trouxa diz: entendeu? Mino incrementado
diz: morou? Vagau saca. Frase malaquesa típica começa com
PODE CRER e termina com SACA?
Sugesta — Sugestiva palavra que indica a natureza sugestionável do
vagau. Estado mental sem bases na realidade. Filosofia, ciência,
História, são sugestas.
Sujeira — Está por fora, o trouxa. Tem ligações (sujas) com
elementos (sujos) não identificados com os interesses da
comunidade malaquesa (limpeza). Sin.: crocô, vacilo, bandeira,
chulé e xarope.
Tacanha. Pensamento negativo. Kafka só entrava em tacanha, saca?
Toque. Impressão momentânea que o mundo acabou e a gente
começa agora. Satori.
Trampo. Fonte de rendas, trabalho não tem nada a ver.
Vacilo. Crocodilagem venial. É mais que folga e menos que
entregação.
Volta. O destino. A vingança. O karma. Vai ter volta.
Xarope. Pra lá de louco, não se entende mais. Sintomas: a) rictus
pervitínicos; b) esquizofrenia anfetamínica; c) demência
canábica. Sempre na dele, só dá a dele.
Xinfra. Ou chinfra. Tremenda xinfra = zoeira.
Zonzeira. Estado natural do vagau. Zoeira. Zazoeira.
4.
Carta a Augusto de Campos, escrita a 30 de dezembro de 1970,
do Rio de Janeiro (respeitando-se grafia e pontuações originais):
“januarius februarius marxius aprilis maius junius julius
augustus Campi,
carta não resolve, distingo: informação — TV cine foto
comunicação — cara a cara a festa o udestoque. hoje: muita
info e pouca comu.
meu diálogo mental com você/vocês é corrente corriqueira.
Noigandres é o único olho que me acompanha criando vê pensando
me julga sartreanamente. tento praticar uma radicalidade quixotesca
porq me reporto ao armed look arm lock de você. não é pequena
vaidade minha não querer louvores de novatos e amadores. Dos
livros que tenho, trouxe os que não posso passar sem. Dicionário de
Rimas
Analógico
Gramáticas. Prossigo meu trabalho de formiga das letras
treinando para o grande salto: cataqual? Continuo extraindo as
séries estocásti-cas (estoxicásticas, melhor melhorando) da língua,
olho a fala na rua. manejo Sartre, husserl. não durmo um dia sem
massacrar literati.
o jornal do escritor é vaidade das vaidades tudo vaidade,
publico o que eu quero, quero publicar o catatau, louzeiro pode, tem
relações, minha hora chega, e minha hora vai ser nossa hora.
a situação para mim: o momento não permite coisas, certas
coisas me permitem fazer outras coisas, aquelas coisas, me dá uma
coisa aqui, outra ali. a literatura é a luz das estrelas há milenios
fanadas. Mas se não é mais arte ainda é um meio. não é fim mais.
como meio, permite dizer certas coisas para um público limitado e
determinado, os nucléolos de mandarins, os comedores de livros são
seus produtores, coprófagos e lotófagos. uso o canal, você sabe: eu
sou caipira, me assusta a massa media assustadora, no livro, por
pequeno e equívoco que seja, sempre são os vocábulos de uma
consciência individual, ou uma equipe lúcida e não posta a serviço
das grandes estruturas massi-ficantes. época houve em q eu me cri
comunista, hoje acho que pound tem razão contra mussolini.
Mcluhan; artistas, antenas, usam instrumental fora de contexto pois
são os únicos a vir a entender o contexto, o texto é o contracontexto.
o oposto de envolvimento é livro, o desenvolvimento uma oficina e
dois caras editam um livro, o livro é livre, à margem de mallarmé,
viva a malacomargem, dai-me um exílio e eu vos darei um exercício.
nós estamos nos olhando, olha esse olhar,
olha esse olhar!
um abração de leminski & alice”
5.
Trecho da carta ao irmão Pedro, de 30 de agosto de 1973,
falando da seqüência do filme Kung Fu:
“Imagine: o monge é mandado para o mundo quando está
senhor de todos os truques, SÓ QUE ELE VAI PARAR NO OESTE
AMERICANO DO BANGUEBANGUE!!! Uma cena inesquecível foi
quando ele e uma moça toda perseguida de desgraças são cercados
por uma meia dúzia de índios no matão & os índios não atacam de
noite, vão tirar uma pestana antes do amanhecer confiando nos seus
ouvidos de coiote que ninguém poderia chegar até eles no alto da
colina sem fazer um mínimo barulho, e afinal, só tinha um chinês e
uma mulher lá embaixo, um pouco antes do amanhecer está o
chinês ajoelhado a dois passos da cabeça do índio chefe do bando &
imagine a cara de espanto do bugre, não entendendo nada: como é
que alguém podia chegar até ali, sem ter feito nenhum ruído que
acordasse alguém: o índio deve ter pensado que a segurança nesta
tribo nunca esteve tão ruim! O chinês (que é americano com cara
meio orientalizada, algo como Flint) se põe de costas para o sol
nascente e aparece assim à indiada como um ser sobrenatural & os
6 guerreiros alinham a dez passos, o chinês firme em pé na frente
dos cavalos, um índio investe galopando, lança em riste. o chinês em
postura, meio karatê, meio aikidô, meio de konfu e solta um kiai. em
cima do golpe, desvia, acerta um pontapé de lado no cavalo e estica
um ukemi, caindo de pé e em postura, nova investida: o chinês tira a
lança da mão do cavaleiro numa técnica de bojitsu (luta do bastão)
que ele treinava no mosteiro, derrubando-o do cavalo & investem
dois agora: usando o bastão como lança e dando ukemis para todos
os lados ele derruba mais dois: os índios caídos avançam de lança e
de faca. e foi uma chuva de maegeris, porradas de bastão e kiais
para todo lado & os índios pararam, ele de pé encarando, o chefe
arrisca ainda atirar uma lança que nosso herói desvia com o corpo e
o bastão, foi demais para a paciência do cheyenne. eles levantam os
companheiros e saem devagar, o chinês lá atrás parado, encarando,
vai haver um episódio da série cada mês. o maior barato que eu já vi
na TV.”
6.
TROTSKI
“Depois da desilusão-decepção do sonho soviético (o suicídio de
Maiakóvski é um buraco de chumbo na cabeça de todos nós), a
realidade internacional da ‘entente’ URSS/USA (Elizabeth Taylor x
Richard Bur-ton), a invasão pura e simples da Tchecoslováquia (e a
morte da primavera em Praga) vale a incursão dos fuzileiros navais
da OEA na Nicarágua, a ação da CIA no Chile de Allende, a disputa
de posições militares no Oriente Médio e no Mediterrâneo.
A programação de ditaduras militares na América Latina (só o
Exército e o Clero sendo castas organizadas, o Clero, logicamente, de
esquerda) para garantir a estabilidade social e institucional, em prol
da segurança dos investimentos privados estrangeiros em nossas
fontes de matéria-prima (folclore e macumba: nós também queremos
fazer rock). Tecnologia de segundo grau, alienação e censura. Nossos
senhores têm poder bastante para mandar pelos ares o terceiro
planeta depois do sol. Estamos em face de um poder planetário,
branco, senhor do Bem e do Mal, patrão das consciências porque
regente de todas as tecnologias; o bloco URSS-USA.
Cria a lógica para qualquer máfia matar a quem destoa,
discorda ou desafina no “coro dos contentes”.
A hierarquia dos insetos sociais (abelhas, formigas) avança
sobre os acampamentos dos ciclopes.
Se um ser do espaço viesse à terra, chegaria à conclusão que
os terráqueos mais próximos da perfeição, o supra-sumo da perfeição
da vida na terra, seriam os insetos sociais com suas brasílias levy-
straus-sianas de perfeição de organização social.
Somos talvez os últimos a notar. A sermos notados.
Isto é uma garrafa. Isto é, um bilhete dentro de uma garrafa.
p.leminski”
7.
Carta de Leminski a Antonio Risério, 1975:
“Companheiro:
augusto me mandou teu endereço e eu estou te chegando os
últimos produtos da minha atuação neste ralo contexto curitibano.
só consegui me manter incontaminado pela praga de contos
que grassa por aqui (o literatismo de Curitiba só encontra paralelo
em Belo Horizonte) foi graças a uma ponte mágica e epistolar que
mantenho há anos com o pessoal concreto, em particular, augusto, a
quem devo grande parte da formação de meu paladar e
características do meu fazer.
em todos esses anos, poucas publicações brasileiras me deram
tanta alegria quanto o teu CÓDIGO, de radicalidade exemplar, Bahia
com régua e compasso, exercício cartesiano no trópico.
aqui, o frio etílico e anfetamínico retarda as informações,
recolhe os ânimos e gera esse mineiro sem mistério que é o
curitibano.
a única saída estratégica é um retiro permanente para dentro
do projeto, e é — há oito anos, o que tenho feito, vivendo vida de
avestruz, com a cara metida dentro do meu CATATAU. (...)
Vê se concorda com a minha lista:
São Paulo = anfetamínico
Rio = lisérgico (sujeito a bads)
Bahia = canábica
Curitiba (Belo Horizonte e províncias) = etílica
qual não foi a minha surpresa quando constatei a situação a
que chamei POROROCA (quod vide) = a ponte arco-íris São Paulo-
Bahia.
me interessa muito esse atrito entre visceralidade tropical e
geometria cartesiana. é muito provável que seja esse o PROBLEMA
nacional.
muito interessante, em todo caso, esse processo através do
qual a gente fica sabendo da existência e do trabalho uns dos outros
sem nos cruzarmos. Tenho muito treino no diálogo com ausentes,
chega-se, dessa forma, a criar um super-ego para efeitos de atuação,
eu sabendo que todo mundo está mandando brasa, fazendo pressão
na performance.
muito interessado nisso que parece ser a post-literatura entre
nós: textos/semioses, malditos a todos os títulos.
traços: estruturas concretas + pirações psicodélicas + desvarios
tropicais + sei lá o que. localização: entre São Paulo & Bahia.
característica: música no centro.
o trabalho de gil, caetano, gal, macalé, duda, capinan, wally
(não esquecer o rock Mutantes/Rita Lee, via Duprat, mais um
casamento sul/norte, eletrônica/Amaralina.
Rita: “Serginho e Arnaldo deram dicas de guita para Gil e
aprendemos com os baianos a musicalidade da língua portuguesa”).
o “Troço” do wally — gosto muito. Irregular, cheio de altos e
baixos, montanha, não russa, mas árabe. Mascate da informação
nova, barra, garra, farra, na marra.
letras de música com os maiores lances de texto.
mas esses produtos de mercado se alimentam em solo rico:
essa proliferação de textos underground (Flor do Mal, Presença,
Bondinho, Rolling Stones, Verbo, que sei mais eu!), que acabaram
vandergrounde, essa síntese digna de figurar nas zoologias
fantásticas de Borges. Centauros, sereias, seres ambíguos e
andróginos, entre Bahia e São Paulo. Quem diria! Quem diria!!! Para
o entusiasmo baiano, talvez essa pontuação seja insuficiente,
lembrando que Castro Alves terminava um verso, pontuando:
!?!...
?!!...
perguntar a gil como se lê/diz uma frase terminando em!?!?...
é muita emoção para quem vive neste frio verde, cercado de
mato.
uma coisa nova, muito grande, está pintando, só não temos
certeza quanto à intensidade: rala em relação ao trabalho já feito?
pedra em direção ao futuro?
como diz o maciel, pelo menos, durante, a gente está curtindo,
não dá para esquecer nada.
quando augusto virou para a Bahia, tive uma crise de
compreensão, não faço charme, acabando por entender.
o esquerdismo dos anos sessenta encalacrou. fica de
background. propriedade coletiva dos bens de produção, da
produção, aí consiste, começa e acaba meu credo político, mas há
muitos outros ingredientes mais. 64 mudou as direções do barato,
viva torquato. a geração tem partes com Rimbaud.
Mallarmé vai mais longe, conduz o trio elétrico (augusto,
haroldo, ronaldo, zé-lino) e sai na corrente sangüínea.
quando brasileiro pensar em rigor, vai ter que olhar para o
laboratório torre de marfim dos concretos paulistas.
detesto toda forma artificial de contato/comunicação (tipo
carta, telefonema, telex, xerox), mas isto não é uma mensagem, é
uma tangência uma coincidência um atrito e sobretudo um abraço
do
Leminski
8.
O Mestre Ykkyú e o Eremita
“Certa tarde de outono, o Mestre Ikkyú vagueava pelos campos,
levando consigo uma flauta de bambu. Um eremita, ao vê-lo,
perguntou-lhe:
— Quem és tu?
— Sou um peregrino que segue para onde sopra o vento.
Tencionando pô-lo em apuros, o eremita perguntou:
— E quando o vento não sopra?
— Então sopro eu — respondeu Ikkyú, começando a soprar
sua flauta.”
9.
Poemas em parceria com Solda, a partir da técnica “Eu começo, você
termina”:
EU QUERO ME AFOGAR
NA SALMOURA
DORMIR
NA MANGEDOURA
SER UM MONGE
DE OUTRORA
O DIA INTEIRO
FAZENDO HORA
CORTAR O MAL COM TESOURA
EU QUERO O MAL MAL QUERO
E TUDO ME APAVORA
O POVO
O POLVO
A PÓLVORA
TUDO ENFIM
QUE MEU CAVALO SENTE
QUANDO ME SENTA
ESPORA
(Leminski/Solda 1980)
* * *
POIS QUE ÉS INDIVISÍVEL
ÉS CARNE
CARNE DE TODAS
AS CARNES
CARNE DE CHUVA
CARNE DE SOL
POIS QUE HABITAS
EM TI MESMO
CARNE DO SORRISO
CARNE
DO ESCÁRNIO
CARNE TABELADA
CARNE CARMIM
CARNE
ESCARLATE
POSTO QUE ÉS CARNE
E PORQUE HOJE É SÁBADO
SERÁS SEMPRE CARNE
CARNE MOÍDA
CARNE
DE PRIMEIRA
CARNE DE PESCOÇO
CARNE DE MIM
(Solda/Leminski 1987)
10.
Em Busca do Templo Perdido
(A gana de durar)
É pura perda de templo tentar explicar por que o Templo das
Sete Musas, sede do Instituto Neo-pitagórico, pegou fogo na noite de
24 de agosto de 1987. A explicação é simples. Em 1907, Dario
Vellozo, poeta, professor de philosophia, tipógrafo, guru da mocidade
curitibana no Gymnasio Paranaense, erigiu o Templo no bairro de
Vila Isabel, então uma floresta de contos dos irmãos Grimm.
Nesse ano, Dario soube da presença na pequena cidade de um
eletricista alemão, Schroeder, que tinha acabado de chegar da
Europa.
Procurou-o e contratou seus serviços para realizar a instalação
de luz elétrica no Templo. Eletricidade era então uma novidade
absoluta.
Mas encomendou a Schroeder uma tarefa muito especial.
A instalação de luz deveria conter dentro de si um mecanismo
de autodestruição que deveria funcionar dali a 80 exatos anos, a 24
de agosto, Dia de S. Bartolomeu, quando o diabo tem uma hora de
seu.
Dario queria durar. E sabia que viveria na memória dos seus
contemporâneos. Mas estas morreriam. Em 80 anos, a memória do
Templo e de Dario já estaria esmaecida, como uma foto antiga.
Um incêndio devolveria o Templo à notoriedade e à atenção do
público por mais anos. Assim, um templo feito de chamas subiu
pelos ares em 24 de agosto de 1987. Dizem algumas testemunhas do
sinistro que foi possível ver no meio do fogaréu um rosto sorrindo
com um olhar zombeteiro de quem diz:
— Não disse que eu ia durar?
11.
Trechos da gravação feita por Cesar Bond, com Leminski falando:
De sua própria vida:
“Não existe nenhuma experiência — das mais íntimas, eróticas,
emocionais — que eu não tenha transformado em poemas e tornada
pública através da literatura.”
De literatura:
“Fazer literatura para mim — a esta altura do campeonato — é uma
necessidade fisiológica. Quando penso ‘preciso escrever’, penso
‘preciso colocar idéias no papel’. A partir de três ou quatro palavras
eu faço um jogo. Escrever é só uma das coisas que o ser humano
sabe fazer. E eu me sinto mais humano depois de fazer isso.”
De estratégias:
“A lógica dos militares é a pré-lógica. O macaco-homem se fez pela
guerra, se construiu pela guerra e pode morrer pela guerra. Por que
nós nos matamos? Para mim ainda é um mistério. Perseguir o
mistério da guerra é tentar desvendar todos os mistérios onde a
morte está envolvida. E a estratégia da guerra só está absolutamente
correta quando a vida humana é reduzida apenas às leis físicas. É a
ação mais simples para obter o máximo de efeito: como num haikai.
Não quero dizer com isso que sou a favor da guerra. Sou totalmente
contra. Mas a exatidão do raciocínio me fascina.”
De trabalho:
“Se você não conseguir equacionar a relação vida/trabalho, você está
perdido. Não há força e criatividade que resistam quando você
percebe que o rio mudou de leito.”
De linguagem:
“Nunca me recusei a nada. Tipo: televisão, rádio, publicidade, grafite
de parede... qualquer negócio que trate de aproximar pessoas, via
palavra, é comigo mesmo. É assunto meu. É um desafio e não
considero nada disso alheio a mim. Tudo isso me diz respeito.”
Da crítica:
“Se caísse um raio agora na minha cabeça, não sei qual a imagem
que ficaria de tudo que escrevi. Fiz poesia, prosa, crítica, textos para
publicidade, ficção, traduções, crônicas e muitas outras coisas.
Nesse sentido, aceito a crítica óbvia do Wilson Martins: eu não me
fixo em nada.”
Da morte:
“Quanto à morte, eu sou nipônico. Você tem que superar o medo da
morte. A morte é alguma coisa que está dentro da vida e não contra
ela. Eu nunca me confrontei com situações limites mas não tenho
medo da morte.”
Da morte e do acaso:
“Sempre achei ligeiramente indecente tratar a morte como um acaso.
Eu coloquei o Mishima em moda no Brasil, quando traduzi Sol e aço.
E o Mishima fez a formulação mais terminal que se pode fazer sobre
a morte. Ele tinha uma visão estética da morte. Para ele, a morte era
um momento de beleza tamanha que só merecia coisas de tal
plenitude. Um momento único. Uma determinação e não um acaso.
Para ele, morte, prazer sexual e beleza sempre tiveram um signo
único.”
12.
A Lua no Cinema
A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
Uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!
13.
São Não
não são
são não
rogai por nós
para que não
sejamos senão
BIBLIOGRAFIA
Publicações consultadas na elaboração desta biografia
Livros
Beat Culture and the New America — 1950-1965. Whitney Museum of
American Art, 1998.
Boletim Informativo da Casa Romário Martins (temas: Água Verde e
Pilarzinho).
Bonvicino, Régis. Envie meu dicionário — Cartas e alguma critica.
Editora 34, 1999.
Curitiba sem mestre, ed. Fundação Cultural de Curitiba.
de Luna, D. Joaquim G. Os monges beneditinos no Brasil. Edições
Lúmen Christi, 1947.
Escritor na biblioteca, Um, BPP, 1985.
Kerouac, Jack. Selected Letters — 1940-1956. Viking, 1995.
Maciel, Luiz Carlos. Geração em transe. Nova Fronteira, 1996.
Novaes, Adauto (coord.) Os sentidos da paixão. Funarte/Companhia
das Letras, 1999.
Reis, Daniel Aarão e Moraes, Pedro de. 1968 — A paixão de uma
utopia. Espaço e Tempo.
São Gregório Magno, Papa. Vida e milagres de São Bento. Artpress,
1996.
Suzuki, Daisetz Teitaro. Introdução ao zen-budismo. Civilização
Brasileira, 1971.
Jornais e revistas
Correio de Notícias
Diário do Paraná
Folha de Londrina
Folha de S. Paulo
Gazeta do Povo
Jornal do Brasil
Nicolau
O Estado de S. Paulo
O Estado do Paraná
Revista Quem
Série Paranaense nº 2 (Paulo Leminski), ed. Scientia et Labor da
UFPR
Veja
BIBLIOGRAFIA DE PAULO LEMINSKI
Catatau, edição do autor, 1975.
Quarenta clics em Curitiba, Etecetera, 1976.
Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e era quase, ed. ZAP,
1980.
Polonaises, ed. do autor, 1980.
Caprichos e relaxos (incluindo os poemas de Não fosse isso... e
Polonaises), Brasiliense, 1983.
Cruz e Sousa, Brasiliense, 1983.
Matsuó Bashô, Brasiliense, 1983.
Jesus A.C., Brasiliense, 1984.
Agora é que são elas, Brasiliense, 1984.
Trotsky, a paixão segundo a revolução, Brasiliense, 1986.
Anseios crípticos, Criar Edições, 1986.
Distraídos venceremos, Brasiliense, 1987.
Guerra dentro da gente, Scipione, 1988.
Catatau (reedição), Sulinas, 1989.
A lua no cinema, Arte Pau-Brasil, 1989.
La Vie en close, Brasiliense, 1991.
Metaformose, Iluminuras, 1994.
O ex-estranho, Iluminuras, 1996.
Traduções
Folhas das folhas da relva, de Walt Whitman, Brasiliense, 1983.
Pergunte ao pó, de John Fante, Brasiliense, 1984.
Vida sem fim, de Ferlinghetti, Brasiliense, 1984.
Supermacho, de Alfred Jarry, Brasiliense, 1985.
Satyricon, de Petrônio, Brasiliense, 1985.
Sol e aço, de Yukio Mishima, Brasiliense, 1985
Um atrapalho no trabalho, de John Lennon, Brasiliense, 1985.
Malone morre, de Samuel Beckett, Brasiliense, 1986.
Não estão relacionadas as participações em antologias e esparsos. A
relação da produção musical não está completa (as parcerias
póstumas, a partir de seus poemas, se sucedem).
DISCOGRAFIA
Gravações com letra e música de Paulo Leminski
“Verdura”, LP Outras Palavras, de Caetano Veloso, 1981. Philips.
“Mudança de estação”, LP Mudança de Estação, de A Cor do Som,
1981. Odeon.
“Valeu”, LP Valeu, de Paulinho Boca de Cantor, JQN Discos, 1981.
“Se houver céu”, LP Prazer de Viver, de Paulinho Boca de Cantor,
Polygram, 1982.
“Razão”, LP Magia Tropical, de A Cor do Som, Odeon, 1983.
EM PARCERIA
Com A Chave
“Me provoque pra ver” e “Buraco no coração”, 1997, GTA (Rede Tupi).
Com Pedro Leminski
“Oração de um suicida”, no LP Blindagem, 1981, Continental.
Com Ivo Rodrigues
“Sou legal eu sei”, “Não posso ver”, “Palavras”, “Hoje”, “Marinheiro”,
“Quanto tempo mais”, LP Blindagem, 1981.
“Legião dos anjos”, Blindagem, CD Dias Incertos, 1998.
“Rapidamente”, Blindagem, CD Dias Incertos, 1998.
Com Guilherme Arantes
“Xixi nas estrelas”, “Circo pirado”, “Milonguera da Serra Pelada”,
“Cadê vocês?”, “Frevo palhaço”, “O prazer do poder”, “Viva a
vitamina”, “Coração de vidro”, LP Pirlimpimpim 2, com Guilherme
Arantes, 1984, Som Livre.
Com Itamar Assumpção
“Vamos nessa”, LP de Itamar Assumpção Sampa Midnight, 1986.
“Custa nada sonhar”, Itamar Assumpção, disco Bicho 7 Cabeças,
1993.
“Filho de Santa Maria”, gravação de Zizi Possi, disco Mais Simples,
1996.
“Dor elegante”, CD Itamar Assumpção PretoBras, 1999.
Com Moraes Moreira
“Decote pronunciado”, “Pernambuco meu” e “Baile no meu coração”,
LP Coisa Acesa, de Moraes Moreira, 1982, Ariola.
“Promessas demais”, LP de Ney Matogrosso Mato Grosso, 1982,
Ariola.
“Pernambuco meu”, LP do conjunto MPB4 Caminhos Livres, 1983,
Ariola.
“Teu cabelo” e “Oxalá”, LP de Moraes Moreira Pintando o Oito, 1983,
Ariola.
“Mancha de dendê não sai”, LP do mesmo nome de Moraes Moreira,
1984, CBS.
“Sempre Angela”, LP de Ângela Maria Sempre Angela, 1984, Odeon.
“Alma de guitarra”, LP de Moraes Moreira Instrumentos de Deus,
1985, CBS.
“Morena absoluta”, LP de Moraes Moreira Mestiço é Isso, 1986, CBS.
“Lêda”, no disco 50 Carnavais, 1997.
Com José Miguel Wisnik
“Subir mais”, CD José Miguel Wisnik, 1992.
“Polonaises”, trilha sonora do filme Ed Mort, 1994.
“Rob Digital”, CD Ed Mort, 1994.
Com Edvaldo Santana (Baitola)
“Freguês distinto” e “Mãos ao alto”, no disco Lobo Solitário, 1993.
Com Edvaldo Santana e Ademir Assunção
“O Deus”, disco Tá Assustado!, de Edvaldo Santana, 1995.
Com Celso Pirata (Loch)
“Coisas”, no disco Verfremdungseffekt Blues, 1998.
Com Carlos Careqa
“Alles Plastik”, no disco Todos os Homens São Iguais.
Com Arnaldo Antunes
“UTI”, gravado pelo grupo Clínica, no disco Clínica, 1988.
“Além alma”, CD Um Som, Arnaldo Antunes, 1998.
Com Thadeu, Roberto Prado e Walmor Douglas
“Perdendo tempo”, trilha sonora do filme Bar Babel, da banda Maxixe
Machine, 1999.
AGRADECIMENTOS
Especiais à Biblioteca Pública do Paraná — pelo arquivo Leminski —
e Casa da Memória de Curitiba; família Zippin; jornalistas Sinval de
Itacarambi Leão e Paulo Vasconcellos; Mosteiro e Colégio de São
Bento; D. Estevão, D. Leandro, José Maria Siviero, Pedro Uzum, José
Maria Costa Vilar (D. Clemente), D. Lucas Torrell. Funcionária Rita
Julieta Ferreira (Colégio Paranaense Internato).
À eterna Helena Kolody, padroeira da poesia paranaense, pelo seu
arquivo “Leminski”.
Especiais também a Augusto de Campos.
Ao empresário Ernani Paciornick, pela cumplicidade.
Para Lucélia Auríquio Newton, que colaborou na primeira parte das
pesquisas.
Para José Vieira, fotógrafo, pelas reproduções do arquivo da família.
Família Pereira Mendes, tias do poeta: Luiza, Luci e Izilite, pelas
memórias.
Elly e Ellinha Leminski pelas fotos e histórias.
À Alice, Áurea e Estrela, pontos de luz e referência desde o início.
Para os amigos de Paulo Leminski que colaboraram com esta história
e este livro, direta ou indiretamente
com sinceridade.
Toninho Martins Vaz
EEssttaa oobbrraa ffooii ddiiggiittaalliizzaaddaa ee rreevviissaaddaa ppeelloo ggrruuppoo DDiiggiittaall SSoouurrccee ppaarraa pprrooppoorrcciioonnaarr,, ddee mmaanneeiirraa ttoottaallmmeennttee ggrraattuuiittaa,, oo bbeenneeffíícciioo ddee ssuuaa lleeiittuurraa ààqquueelleess qquuee nnããoo ppooddeemm ccoommpprráá--llaa oouu ààqquueelleess qquuee nneecceessssiittaamm ddee mmeeiiooss eelleettrrôônniiccooss ppaarraa lleerr.. DDeessssaa ffoorrmmaa,, aa vveennddaa ddeessttee ee--bbooookk oouu aattéé mmeessmmoo aa ssuuaa ttrrooccaa ppoorr qquuaallqquueerr ccoonnttrraapprreessttaaççããoo éé ttoottaallmmeennttee ccoonnddeennáávveell eemm qquuaallqquueerr cciirrccuunnssttâânncciiaa.. AA ggeenneerroossiiddaaddee ee aa hhuummiillddaaddee éé aa mmaarrccaa ddaa ddiissttrriibbuuiiççããoo,, ppoorrttaannttoo ddiissttrriibbuuaa eessttee lliivvrroo lliivvrreemmeennttee.. AAppóóss ssuuaa lleeiittuurraa ccoonnssiiddeerree sseerriiaammeennttee aa ppoossssiibbiilliiddaaddee ddee aaddqquuiirriirr oo oorriiggiinnaall,, ppooiiss aassssiimm vvooccêê eessttaarráá iinncceennttiivvaannddoo oo aauuttoorr ee aa ppuubblliiccaaççããoo ddee nnoovvaass oobbrraass.. SSee qquuiisseerr oouuttrrooss ttííttuullooss nnooss pprrooccuurree:: hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//VViicciiaaddooss__eemm__LLiivvrrooss,, sseerráá uumm pprraazzeerr rreecceebbêê--lloo eemm nnoossssoo ggrruuppoo..
hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//VViicciiaaddooss__eemm__LLiivvrrooss
hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//ddiiggiittaallssoouurrccee
Este livro foi composto na tipologia Trump Mediaeval, no corpo 10/14,
e impresso em papel offset 75g/m2 no Sistema Cameron da Divisão
Gráfica da Distribuidora Record.