Ritmo plástico e ritmo narrativo no cinema: Hollywood no século XXI ...
Paulo José - Meio século de cinema
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s u m á r
i obreve biografia 9
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53
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a pintura dos sentimentos,
ou a arte da intuição
a lanterna mágica
as máscaras e o absurdo: Paulo José em “As amorosas” e “O homem nu”
a educação pela pedra:Paulo José em “O padre e a moça”
entrevista
sinopses dos filmes exibidos
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A CAIXA é uma das principais patrocinadoras da cultura bra-
sileira, e destina, anualmente, mais de R$ 60 milhões de seu
orçamento para patrocínio a projetos culturais em espaços
próprios e espaços de terceiros, com mais ênfase a mostrascinematográficas, exposições de artes visuais, peças de tea-
tro, espetáculos de dança, shows musicais, festivais de teatro
e dança em todo o território nacional e artesanato brasileiro.
Os projetos são escolhidos através de seleção pública,
uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível
a participação de produtores e artistas de todas as unidades
da federação, e mais transparente para a sociedade o investi-
mento dos recursos da empresa em patrocínio.
Com a mostra “Paulo José: meio século de cinema”, a
CAIXA Cultural apresenta ao público carioca uma retrospecti-
va da carreira cinematográfica de um dos maiores nomes do
cinema, da TV e do teatro nacional.
Assim, a homenagem aos 50 anos de cinema de Paulo Joséé, antes de tudo, um presente para o espectador, que poderá
ver e rever filmes que mapeiam a carreira do ator e nos levam
a uma reflexão sobre a produção cinematográfica nacional.
Ao trazer mais esta mostra para o público carioca, a
CAIXA reafirma sua política cultural de estimular a discussão
e a disseminação de ideias e de promover a pluralidade de
pensamento, mantendo viva sua vocação de democratizar o
acesso à produção artística.
CAIXA ECONÔMICA FEDERALTodas as mulheres do mundo, 1966
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trabalho de Paulo José, com suas memoráveis atuações, acom-
panha há várias décadas a história do cinema brasileiro. Nosso
homenageado atuou em grandes clássicos, marcando o imagi-
nário do público desde 1965, quando, vindo do teatro, estreou no cinema.
Foi o padre introvertido e atormentado em O padre e a moça. Em seguida
foi Macunaíma ⎼ dividindo o papel com o inesquecível Grande Otelo ⎼ no
filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade. Foi o magnífico sedutorCassy Jones, no filme de Luís Sérgio Person. Contracenando com Leila
Diniz, foi Paulo, o Don Juan domesticado, em Todas as mulheres do mundo,
de Domingos de Oliveira. Foi também o universitário aturdido Marcelo,
em As amorosas, de Walter Hugo Khouri. E tudo isso foi só seu início de
carreira.
A homenagem aos seus 50 anos de atuação no cinema mostra a di-
versidade e a riqueza de seu trabalho. Paulo começou no teatro – sua
grande paixão, jamais abandonada – em Bagé, no Rio Grande do Sul, en-
trando em seguida para o cinema e, mais tarde, também para a TV. É
ator para todos os palcos e telas, mas, como se fosse pouco, também é
diretor e roteirista.
São 17 filmes escolhidos em meio a uma lista extensa: para a cura-
doria, um grande desafio e uma grande honra. O resultado é uma deli-
ciosa seleção, que mostra o ator em diferentes fases, traçando, ao mes-
mo tempo, um panorama do cinema brasileiro nas últimas décadas. Do
Cinema Novo à Retomada, nossa seleção se inicia em 1965, com O padre
e a moça, de Joaquim Pedro de Andrade, até chegar a 2011, com o lírico
O palhaço, de Selton Mello, seu filme mais recente, abrangendo também
os mais diversos gêneros, do drama à comédia.
A mostra, além da exibição de filmes, promove duas mesas-redon-
das sobre a importância da trajetória e obra de Paulo José. Seu trabalho
artístico estará em debate: o percurso por diferentes meios e linguagens
– teatro, cinema e televisão –, as interseções entre atuação e autoria, as
diferentes formas e técnicas de interpretação adotadas, entre outras
questões que um olhar para a sua carreira em retrospectiva nos suscita.
Também serão lembrados os encontros com amigos e interlocutores com
os quais dialogou e aprendeu: Joaquim Pedro de Andrade, Domingos de
Oliveira, Luís Sérgio Person e Walter Salles, entre tantos outros. Estes
dois encontros com o público serão ciceroneados por Juliano Gomes (crí-
tico de cinema), Hernani Heffner (conservador da cinemateca do MAM eprofessor da PUC-RJ), Domingos de Oliveira (ator, diretor e roteirista de
cinema e teatro), Daniel Caetano (crítico de cinema), Luiz Carlos Maciel
(jornalista e ícone da contracultura dos anos 1960) e Joel Pizzini (cineasta).
Com textos inéditos de Luís Alberto Rocha Melo, Anna Karinne
Ballalai e Juliano Gomes ⎼ que nos proporcionam um olhar crítico sobre
os filmes ⎼, uma biografia de autoria do jornalista Paulo Gois Bastos, um
texto do próprio Paulo José narrando sua trajetória e imagens cedidas
de seu arquivo pessoal, este catálogo pode ser considerado um valioso
vislumbre não só da vida e obra deste artista, mas de vários momentos
do cinema, da televisão e do teatro brasileiros.
Possibilitar a fruição destes filmes, muitos em 35 mm (nem todos re-
editados em DVD), foi uma prioridade da curadoria. Apesar de seu apego
ao teatro, ao qual sempre se dedicou com grande gosto, é em película que
seu trabalho se eterniza. Nossa seleção apresenta um panorama do papel
que Paulo José desempenha no cinema e, portanto, na cultura brasileira.
Se “o Brasil faz o melhor cinema brasileiro do mundo”, como nosso
homenageado costuma afirmar, sem dúvida temos que agradecê-lo pela
sua importante e marcante participação na construção desta nossa arte.
Desta forma, é com imensa alegria que trazemos estes filmes e convida-
mos todos a assistir a eles e se arrebatar.
Aïcha Barat, Diana Sandes, Diogo Cavour e Tiago Rios
CURADORES DA MOSTRA
O
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8
Paulo José Gómez de Souza nasceu em Lavrasdo Sul, único município gaúcho surgido a partir
da extração de ouro e que, atualmente, conta
com uma população pequena, de quase oito mil
habitantes vivendo principalmente da agrope-
cuária. Ele é o segundo filho de uma família
de cinco filhos homens. Pela vontade da mãe,
Paulo José deveria ter sido uma menina e se
chamaria Raquel.
Sua mãe, Maria Del Carmen, ou Carmencita,
tinha origem espanhola, tendo nascido nos
Pirineus espanhóis e vindo para o Brasil aos
oito anos de idade. Estudou em um colégio inter-
no em Porto Alegre, de onde saiu praticamente
para o casamento. Pianista e declamadora,
sempre incentivou os filhos a experimentarem
e conhecerem o mundo das artes.
Seu pai, Arlindo Ferreira de Souza, era um
gaúcho severo, vindo de uma família de cator-
ze filhos, mas criado pelos avós maternos qua-
se sem relação com os irmãos. Foi para o Rio
de Janeiro estudar engenharia civil, chegou a
atuar como engenheiro, mas tornou-se fazen-
deiro em Lavras do Sul, município que fica ao
lado de Bagé.
Desde cedo, os irmãos Gómez de Souzaestabeleceram uma relação de intimidade
com a literatura, a música, as artes plásticas
e o teatro. Além do português, aprenderam o
espanhol devido à proximidade com a família
da mãe. Eram praticamente os únicos meni-
nos a frequentarem o Instituto Municipal de
Belas Artes de Bagé e, por isso, eram alvo
da chacota dos outros garotos. No Instituto,
Paulo estudou piano, harmonia e solfejo.
Aos dez anos, Paulo ingressou no Colégio
Nossa Senhora Auxiliadora, onde começou a
experimentar o teatro. Ele fazia todos os es-
petáculos da escola, uns cinco por ano. Eram
peças religiosas escritas por Giovane Bosco,
fundador da ordem católica que mantinha o
colégio. O cumprimento das tarefas escola-
res contava com o acompanhamento próximo
de sua mãe, que havia sido professora, mas
não lecionava a pedido do esposo.
Nessa época, além de atuar, Paulo já se
percebia atraído pela função de diretor. Nas
férias escolares, os irmãos Gómez de Souza
não tinham moleza e, durante quatro meses
por ano, iam para a fazenda e assumiam a
P A U L O G O I S B A S T O S
brevebiografia
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Edu, coração de ouro, 1967
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rotina de atividades dos peões. “Era uma per-
sonalidade dupla, quase dividida! Na fazenda,
tínhamos um trabalho muito concreto e pe-
sado. Nosso pai nos colocava para assumir
a lida bem cedo, acordávamos por volta das
quatro da manhã”.
Também foi em Bagé que ele conheceu o
cinema; aliás, o cinema era algo, literalmente,
bem próximo de seu cotidiano familiar e che-
gava a ter uma “fra grância”: “A gente moravana mesma quadra do Cinema Avenida, que era
o único cinema de Bagé. Os fundos de nossa
casa faziam limites com a sala de cinema. Os
filmes chegavam muito danificados, pois as
cópias circulavam por outras cidades antes
de chegarem a Bagé. Chegavam aos pedaços,
quase todos eles sofriam emendas e cortes
depois de serem exibidos. Pela manhã, eu e
meus irmãos ficávamos esperando, em cima
do muro dos fundos de nossa casa, o funcio-
nário do cinema jogar os pedaços dos filmes
no lixo. Nós pulávamos e catávamos aquilo, a
gente chamava de ‘ceninhas’. Naquela época,
o cinema tinha cheiro, o cheiro do acetato”. E
Paulo se recorda do primeiro filme a que as-
sistiu no cinema: a animação da Disney Bambi ,
de David Hand.
Em 1954, a família Gómez de Souza mu-
dou-se para Porto Alegre, onde Paulo ingres-
sou no curso científico, que corresponde ao
ensino médio atual. Com um histórico de bom
aluno, ele repetiu o terceiro ano do científico
para não ter que fazer o vestibular para medi-
cina, que era a vontade de sua família. “Essa
ou São Paulo, a fim de que ele viesse a se
aprofundar na arte teatral. Os três anos de
estudante de arquitetura também serviram
para aproximar Paulo do Teatro Universitário
da União dos Estudantes; e, mais tarde, os co-
nhecimentos aprendidos contribuíram para a
criação de seus trabalhos de cenografia.
Em Porto Alegre, ainda enquanto estu-
dante de arquitetura, Paulo teve seus pri-
meiros contatos com grupos de teatro, atuouem peças amadoras e chegou a assumir a
direção de um espetáculo no Teatro Equipe.
No início dos anos de 1960, ele deixou Porto
Alegre e foi para São Paulo fazer parte do
Teatro de Arena, onde também atuou, dirigiu,
fez figurino e cenografia, entre outras ativida-
des. Foi no Arena que Paulo conheceu a atriz
Dina Sfat, sua primeira esposa, com quem se
casou em 1968.
Após o golpe militar de 1964, cresceram
os movimentos pela retomada democrática
no país. A tensão política também aumentou,
culminando em dezembro de 1968, com o
decreto do Ato Inconstitucional nº 5, dispo-
sitivo que suspendeu os direitos constitu-
cionais e concedeu poderes extraordinários
à Presidência da República, então ocupada
pelo General Arthur da Costa e Silva. No iní-
cio de 1969, Paulo e Dina, juntamente com o
Teatro de Arena, viajaram para um festival de
teatro na Europa. Ao retornar para o Brasil no
final daquele ano, Paulo José foi contratado
pela TV Globo e foi morar definitivamente no
Rio de Janeiro.
sabotagem era uma coisa dolorosa, era a
maneira de comprovar e de dar atestado que
eu não conseguiria fazer aquilo. Em casa ha-
via uma relação de conflito, pois, se por um
lado, havia uma aceitação e um estímulo ao
teatro, para que a gente estudasse música
e piano, ao mesmo tempo, havia uma seve-
ridade, uma restrição a essa coisa mais ‘va-
gabunda’ e atirada. Por isso, tínhamos que
ser muito consequentes. Eu frequentementedesandava e deixava de cumprir tarefas mais
nobres. Eu saí da posição de melhor aluno da
escola para ser um reprovado. Isso me fez
sofrer muito. Eu estava entrando por um ca-
minho que não podia controlar direito”.
Paulo chegou a ingressar no curso de
arquitetura da Universidade Federal de Porto
Alegre, mas não o concluiu. Tal decisão, eviden-
temente, não foi bem recebida pelos pais. Para
a família de Paulo, a vida no teatro era algo bem
distante de uma carreira profissional mais tra-
dicional, como haviam planejado para os filhos.
“Quando eu estava no colégio e participava das
peças enquanto atividade estudantil, para os
meus pais era uma ‘gracinha’ ter o filho fazendo
teatro. Depois dessa época, quando essa coisa
ficou séria e decidi largar a arquitetura para fa-
zer teatro, o clima ficou pesado e foi terrível a
convivência em casa. Eu era o vagabundo, pois
o importante era ter um diploma, um canudo.
Virei a ovelha negra da família”.
Tempos depois, seu pai o procurou para
uma “reconciliação” e propôs-se, inclusive, a
financiar a ida do filho para o Rio de Janeiro
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B e b e l , g a r o t a p r o p a g a n d a , 1 9 6 7
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Paulo José é pai de quatro filhos, três dos
quais enveredaram pela vida artística. Entre
as suas companheiras, contou sempre com
mulheres fortes e também envolvidas com o
meio artístico. Durante catorze anos, foi ca-
sado com a atriz Dina Sfat, com quem teve as
filhas Ana, Clara e Bel Kutner. Em 1979, nas-
ceu Paulo Henrique Caruso de Souza, filho de
Paulo José com a atriz Beth Caruso. No início
dos anos de 1980, casou com a atriz e direto-ra Carla Camurati. Em 1989, durante a peça
Delicadas torturas, se envolveu com a atriz
Zezé Polessa, com quem, entre idas e vindas,
viveu por sete anos. Por fim, conheceu a figu-
rinista, cenógrafa e diretora Kika Lopes, com
quem está casado desde 1999.
Em 1992, após uma estafa causada por
36 horas ininterruptas de trabalho em uma
ilha de edição, Paulo José foi diagnostica-
do com o mal de Parkinson. Essa doença
neurológica crônica e irreversível é cau-
sada pela falta de um neurotransmissor, e
provoca enrijecimento muscular, tremores,
perda na capacidade da coordenação mo-
tora e da potência vocal. Desde a desco-
berta do diagnóstico, Paulo modificou a sua
rotina para enfrentar a doença e se tornou
uma espécie de referência pública sobre o
Parkinson. “Tive muitos momentos de de-
pressão. Houve um tempo que tinha medo de
dormir e não acordar mais. Às vezes, tenho
medo de morrer. Não estou num daqueles
momentos de depressão profunda, mas tam-
pouco este é um período fácil. Quando acordo,
tenho de fazer uma escolha. Decido sair da
cama. Hoje será um dia melhor. Ao me deitar,
não penso se o dia foi mesmo melhor ou não.
Olho para frente e penso: ‘amanhã será um
outro dia’. Assim, sigo trabalhando, vivendo
dia por dia”.
Texto originalmente publicado
no Caderno VCV – Homenageado
Nacional , publicação do Festival
De Vitória – 21º Vitória Cine Vídeo,
evento realizado em setembro de
2014 em Vitória (ES) pela Galpão
Produções e pelo Instituto Brasil
de Cultura e Arte.
Paulo Gois Bastos é jornalista
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Delicadas torturas, 1988
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“Só me senti realmente ator no cinema. Foi o
único lugar em que optei por ser cúmplice dos
diretores e não meter a minha colher, dar palpi-
te sobre os filmes e personagens. Ao contrário,
sempre preferi deixar o julgamento para os di-
retores e assim poder me sentir livre para criar
o personagem.
Como todas as pessoas da minha geração,
cresci com uma ligação maravilhosa com o ci-
nema, claro! Era uma coisa sagrada, extraordi-
nária. Todos os domingos havia um faroeste na
matinê. Nos sábados, víamos episódios dos se-
riados, como Flash Gordon contra o planeta Mongo
e O homem-cobra, que duravam de dois a três
meses. Ir ao cinema era um programa excepcio-
nal, não uma coisa trivial como ver televisão.
Nós morávamos atrás do Cinema Avenida.Só um muro nos separava dele. Quando o fil-
me chegava a Bagé, era muito comum ele estar
meio baleado, bombardeado, e arrebentar no
meio da sessão. O operador emendava o filme
e para isso jogava fora dois ou três fotogra-
mas no lixo, no quintal do cinema. Eu e meus
irmãos pulávamos o muro e catávamos o que
chamávamos de ‘ceninhas’. Era fantástico po-
der ver de fato, constatar que existiam mesmo
o Gordo e o Magro, o Frankenstein contra o
Lobisomem, o James Cagney, Bogart, guardar
os personagens e os atores como r etratinhos
de pessoas queridas.
Às vezes, de noite, quando os meus pais
saíam para ir ao Avenida, abria a janela para
ouvir o som que vinha do cinema. Ficava ouvin-
do o filme, que era em inglês, a sonoplastia, e
este som significava a ausência dos meus pais.
Quando este acabava, sabia que em cinco, dez
minutos no máximo, pois bastava dar a volta na
quadra, meus pais estariam em casa de novo.
Havia uma relação afetiva com meus pais dada
pela máquina de projeção do cinema.
No verão, a porta dos fundos do cinema
costumava ficar aberta. Eu e meus irmãos sen-
távamos no muro e víamos um grande pedaço
da tela, imagens em movimento, ao contrário,
pelo avesso. Era uma sensação maravilhosa,
emocionante, a de ver o cinema por uma porta
entreaberta, cinema roubado.Em Bagé não havia problema de censura,
então com dez anos vi filmes que jamais pode-
ria ter visto, como Frankenstein. Filmes de sexo
não passavam, o próprio circuito de cinema era
cheio de pudor, familiar. Os filmes da Pelmex,
porém, mexiam com a libido: María Antonieta
Pons, rumbeiras sacudindo a bunda e com as
coxas de fora. Nós íamos ver por causa das mu-
lheres com pouca roupa. Não perdíamos tam-
bém os filmes do Cantinflas, nem alguns argen-
tinos ótimos, com a Libertad Lamarque.
Quando fui para Porto Alegre, entrei ime-
diatamente para o Clube do Cine ma criado por P.
a lanternamágica P A U L
O J O S É
Todas as mulheres do mundo, 1966
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F. Gastal, um apaixonado, que tinha os melhor es
arquivos sobre filmes no Brasil. Todo domingo
havia uma oficina de filmes clássicos, europeus,
porque o Gastal não gostava dos americanos,
muito comerciais: Robert Bresson, René Clair,
Jean Cocteau, De Sica, Bergman, Rossellini.
Havia um debate, e passávamos a semana intei-
ra discutindo o que havíamos visto.
Meu primeiro grande tesão no cinema foi
a Silvana Mangano em Riso amaro, um filme
de 1949 do Giuseppe de Santis, em que ela é
uma camponesa que planta arroz e aparece
com as calças enroladas, com as coxonas de
fora. Nossa, era um frisson enorme. Outra que
me provocou um desejo enorme foi a Harriet
Andersson, irmã da Bibi, em Mônica e o desejo,
do Bergman, um filme para lá de sensual.
Tudo isso é só para dizer que a minha rela-
ção com o cinema foi sempre muito misteriosa,
prazerosa, emocional. Mas nunca havia passa-
do pela minha cabeça ser um ator de cinema.
Na verdade, era tão remoto que nem pensava
sobre isso. Teatro havia sido absolutamente na-
tural na minha vida, uma continuidade do que
fazia quando criança, que não faz outra coisa a
não ser teatralizar a vida. Cinema, não, era uma
coisa mágica!
Um dia o Joaquim Pedro de Andrade con-
vidou o Fauzi Arap, que era meu companheiro
do Teatro de Arena, para fazer O padre e a moça.
Foi nesse momento que descobri que o cinema
estava mais perto de mim do que imaginava.
Fiquei morto de inveja do Fauzi. No elenco do fil-
me, estavam também Helena Ignez, Luiz Jasmin
e Mário Lago, e não tinha papel para mim mes-
mo. Quando eles estavam para começar as
filmagens, o Luiz Jasmin pegou uma hepatite,
precisava ficar dois meses parado e abandonou
as filmagens. E ficaram sem o padre. Começou
a maior correria, o Joaquim Pedro pensando em
nomes, aí a Sarah, mulher dele, lembrou-se de
mim em A mandrágora. Não havia tempo a per-
der. Sem fazer teste, sem conhecer o diretor, lá
fui eu para as filmagens, de um dia para o outro.
Quando já estava no avião que me levaria do Rio
até Diamantina foi que vi a extensão do perigo.
De Diamantina seguiria, numa viatura da polí-
cia de Minas, até São Gonçalo do Rio das Pedras,
uma cidadezinha.
Foi uma vivência estranhíssima numa ci-
dade morta do século XIX, São Gonçalo do Rio
das Pedras, habitada por pessoas semimortas.
Restos humanos abandonados naquele lugar.
Ficamos meses na pequena cidadezinha de
Minas Gerais, na qual o comércio, a delegacia e
as duas igrejas estavam fechadas. Não havia luz,
nem água. Os primeiros vasos sanitários foram
montados pela produção. A cidade inteira foi vi-
sitar as privadas. Não havia na cidade nenhuma
pessoa jovem, só homens e mulheres muito ve-
lhas, todos com bócio por falta de vitamina A e
D, papudos. Quinze dias depois, elas até tinham
seus encantos; dois meses após, até que eram
bonitinhos aqueles papinhos. Com a convivên-
cia, a gente foi se acostumando com aquela
gente. Tinha um velho, apelidado de Borba Gato,
que tinha acromegalia, gigantismo, e, rezava
a lenda, havia sido caçador de diamantes. Ele
entrou no filme, uma pessoa interessantíssima.
Hoje a cidade virou turística, um alemão fez lá
uma grande pousada, e como ela é muito bo-
nita, cortada pelo Rio Jequitinhonha, com seu
casario colonial, suas duas igrejas matrizes, vi-
rou uma atração, assim como Milho Verde. Ela
renasceu, ficou chique. Fiquei de voltar lá, mas
ainda não fui.
Quando nós chegamos, em 1965, porém, a
cidade estava vazia. Eu ficava de batina o dia
todo e, quando não estava filmando, ia para a
igreja tocar órgão. As mulheres me pediam a
bênção. Mesmo sabendo que não era padre
de verdade, elas preferiam acreditar na ficção.
Quando passava, elas estendiam a mão e eu as
abençoava.
O filme foi feito de forma lenta. Estávamos
a somente 30 km de Diamantina, mas não ha-
via estrada, só um imenso pedregal, que se
podia subir ou descer apenas de jipe. Na folga
semanal, um jipe do Exército nos levava para
Diamantina. Aí era uma maravilha. Diamantina
era uma cidadona, tinha até sorvete e telefone
para a gente ligar para casa. Foi uma experiên-
cia difícil, mas muito mágica.
Foi excelente ter começado com o Joaquim
Pedro. Ele me colocou dentro de uma relação
extremamente rigorosa com o cinema e me
ensinou, basicamente, a economia de meios
expressivos. Ele havia sido aluno do Robert
Bresson no IDHEC, Instituto de Altos Estudos
Cinematográficos, em Paris, que era extrema-
mente rigoroso. Ele não queria que o ator ex-
pressasse absolutamente nada, pois, para o
Bresson, era bem mais importante a execução
da ação física, pois através dela é que os senti-
mentos seriam entendidos, e não através de um
close-up emocionado, uma expressão particular
de sentimento ampliada. O padre e a moça foi
inspirado pelo Diário de um pároco de aldeia, um
livro do Georges Bernanos que o Bresson fil-
mou em 1951. Joaquim viu o p adre do poema do
Drummond de forma semelhante ao padre de
aldeia do Bresson, e a partir dele resolveu con-
tar uma história de repressão, um negro amor
de rendas brancas, algo quase trágico, porque,
no final da história, as mulheres que atacavam
o padre por ele ter saído com a moça viravam
umas fúrias gregas que destroçavam o herói e
a heroína.
O rigor da direção do Joaquim era absoluto.
Ele usava muito o recurso do sentimento subs-
tituto, que dava a intenção do momento sem ser
necessariamente o sentimento da cena. O padre,
por exemplo, estava angustiado em determina-
do momento do filme e saía caminhando pela
cidade, onde encontrava o farmacêutico, que,
completamente bêbado e também apaixonado
pela moça, começava a escarnecer dele. E le não
dizia absolutamente nada, resistia à pr ovocação,
porque tinha um conflito íntimo bem mais grave
do que responder às tolices do bêbado, se igua-
lar ao rival. O importante é que devia se sentir
nele um estado de grande intensidade interior,
de um conflito íntimo, visível, talvez, através dos
O padre e a moça, 1965
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olhos. O Joaquim me sugeriu que eu fizesse a
cena por substituição, sem levar o sentimento
do personagem, mas sim de alguém que estava
lidando internamente com algo que lhe escapa-
va. ‘Faça a cena tentando se lembrar de um po-
ema’ – me pediu. E fiz toda ela tendo em minha
cabeça um poema do Drummond que não sabia
bem de cor, e precisava procurar dentro de mim
as palavras, as rimas: De tudo ficou um pouco/
do teu riso... pausa..... precisava pensar... fica um
pouco do teu queixo/ no queixo de tua filha. E fica-
va tentando lembrar com dificuldade o poema do
Drummond. O resultado que se alcançou na tela
foi o desejado pelo Joaquim, um cara intensa-
mente interiorizado. Não vazio, morava alguém
dentro dele, mas ele era totalmente distante da-
quela circunstância que o envolvia no momento.
Essa ideia da substituição foi uma lição
que aprendi para toda a vida e levei pela minha
carreira adiante no cinema. Não é preciso mos-
trar toda a carga psicológica do personagem
na tela. O ator tem que ser material de ação.
Ele é muito mais significante do que significa-
do. Um significante aberto para que os espec-
tadores coloquem significações variadas nele.
Não se pode fechar os sentimentos. Isso é uma
qualidade do cinema.
Para mim foi um exercício maravilhoso,
porque no teatro o ator tem toda a expressão,
além de ser obrigado a ampliar a forma. Ele pre-
cisa ser visto e ouvido por toda a plateia, precisa
ter projeção de voz e intensidade corporal, um
desenho corporal ampliado. O cinema, ao con-
trário, trabalha com a microrrepresentação,
porque é a câmera que chega perto; se ela quer
mostrar o seu interior, ela dá um close-up, che-
ga bem perto. Então, depois dessa experiência
com o Joaquim, não me preocupei mais no cine-
ma em ser expressivo. Trabalhei a partir disso
muito mais com a impressão. Impressionado
pelo personagem e pela situação, mas sem a
intenção de expressar nada. A câmera é que vai
transformar esta minha impressão em expres-
são. Não tento nunca traduzir isto expressiva-
mente para a câmera, para que não soe falso,
fique superatuado.
Comecei no cinema com uma pessoa rigoro-
sa, exata na relação da câmera, dos elementos
expressivos do cinema, com o que ele queria di-
zer em cada momento. O Joaquim sabia também
tudo sobre as lentes, aberturas focais, conhecia
bem a técnica – ele havia estudado na mesma
escola por onde haviam passado o Polanski, o
Ruy Guerra, escola que formou grandes cineas-
tas. Foi importante ter iniciado a minha carreira
desta forma, entendendo que não se deve lidar
com o cinema levianamente. Pode-se lidar com
humor, alegria, prazer, mas jamais com levian-
dade. Porque, quando se coloca uma câmera no
lugar, ela está lá para a eternidade, aquele pla-
no ficará fixado para sempre. Não precisa ser
solene e grave, mas há que ser intenso!
E, como ator, há que ser ainda modesto.
Não se pode ceder ao exibicionismo. É preciso
sempre dar visibilidade ao personagem e es-
conder o ator. Vejo muitos atores no cinema que
levam os vícios da própria televisão e que se so-
brepõem aos personagens. E o cinema amplia
a falsidade, agiganta a impostura. A pequena
impostura torna-se enorme por causa da tela.
Na época de O padre e a moça, já estava
morando no Rio, pois tinha vindo com o Arena
para a montagem de A mandrágora. Logo depois,
dirigi Carnaval para principiantes, do Domingos
de Oliveira, Flávio Migliaccio e Eduardo Prado.
Eu já gostava do Domingos e ficamos re almente
amigos nessa montagem. Logo depois que vol-
tei para São Paulo, ele me convidou para fazer
um filme dele: Todas as mulheres do mundo.
Estava feita a polêmica. Quando aceitei fa-
zer O padre e a moça, fui razoavelmente criticado
por participar de um filme politicamente incor-
reto; afinal, segundo muitos, não era o momen-
to de falar do amor de um padre do interior. O
pessoal da UNE prometeu, inclusive, fazer uma
algazarra, uma confusão, na primeira sessão
do filme. Fomos avisados de que iam jogar pó-
de-mico, bomba de gás sulfídrico, aquela com
cheiro de ovo podre, para acabar com a sessão.
Foi meio tenso, mas nada aconteceu, o filme co-
meçou a ganhar prêmios, e a discussão morreu.
Mas, de repente, eu queria fazer uma come-
diazinha carioca, de um cara que jamais havia
feito cinema. Devia estar louco. Uma historinha
de amor numa hora dessas? As pessoas mais
ligadas a mim insistiam que não devia fazer o
filme. Mas gostava do Domingos, amava o ro-
teiro e a ideia de fazer o filme e contrariei todo
mundo. Fui contra todas as opiniões dos meus
amigos, pedi uma licença no Arena de São Paulo,
vim para o Rio de Janeiro e fiz o filme. A intuiç ão
me levou a fazer Todas as mulheres do mundo. E
foi uma obra definitiva para mim. Mudou minha
vida. Junto com O padre e a moça, me orientou
no caminho de ser um ator de cinema.
Embora seja uma pessoa pacífica, que, apa-
rentemente, faz concessões, no fundo só faço
aquilo que quero fazer. A Dina era bem diferen-
te de mim, era ‘murro em ponta de faca’, batia
de frente, gritava, esperneava. Eu sempre comi
‘mingau quente pelas beir adas’, sem impor muito
a minha vontade, aparentemente. As coisas que
não quis fazer, me tornei tão relapso com rela-
ção a elas, que acabaram tirando-as de mim:
‘Bem, me dá isso, você não sabe fazer!’. Sempre
fui meio índio nesse sentido. A dissimulação dos
vencidos. Existe até uma tese sobre isso, sobre
os índios da América Espanhola: se não é possí-
vel fazer frente ao invasor, torne-se inútil para
ele. Aguente algumas chibatadas, mas acabará
alcançando a liberdade. Trouxeram os negros
da África porque eles eram mais interessantes,
mais devotos; os índios, em seu habitat , manti-
nham as suas pertinências. Com a sua preguiça,
seus porres de cachaça, tequila, pisco, faziam-
se de indolentes e enganavam os vencidos.
Eu tenho um pouco desse negócio de dis-
simulação do vencido. Não dou para fazer isso,
não tenho muita capacidade, me atrapalho com
isso. Então acabam me tirando o que não que-
ro fazer, e as coisas que quero fazer, aí as faço
com muito entusiasmo. E me livro dos abacaxis,
sem precisar bater de frente. Já me acostumei
a ouvir das pessoas isto: ‘Você parece que não
tem vontade própria, mas no fim você faz o que
quer’. É isso aí, faço o que quero, só que deva-
garzinho. Acho que também tenho um pouco o
rabo virado para a lua. Frequentemente estou
no lugar certo, na hora certa. Talvez porque não
tenha nenhum projeto pessoal, determinação,
porque tenha disponibilidade. Estou sempre
mais aberto, e acabo recebendo mais coisas in-
teressantes do que alguém que determina um
caminho. Digamos que, quando viajo, me deixo
ir por onde estou andando e aceito os desvios
do próprio caminho. E assim descubro coisas
extraordinárias. Essa é a diferença entre o tu-
rista e o viajante. O turista é aquele que viaja
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8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema
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para se esquecer dele próprio, para se perder
dele próprio. Reserva determinados hotéis, o
ônibus sai toda manhã. É interessantíssimo, ele
vai curtir a viagem mostrando os slides na volta.
O viajante é aquele que viaja para se encontrar,
para se descobrir, se alterar, se modificar. Sou
um viajante na vida, não um turista, e por isso
grandes oportunidades apareceram. E fui em
frente, mesmo contra a opinião de todos. Todas
as mulheres do mundo é o grande exemplo.
Domingos era muito namorador, já havia
sido casado com a Leila Diniz e escreveu o ro-
teiro do filme quando estavam separados. O
filme, digamos, foi uma tentativa de reconquis-
ta, ou pelo menos um meio de esgotar todas as
possibilidades, de cantar o seu amor por ela e
transformar a separação em poesia. Não sei por
que ele me escolheu para ser o alter ego dele.
Talvez porque eu fosse mais bonitinho. A con-
vivência com a Leila foi fantástica. Ela era linda,
não segundo os padrões de beleza da Barbie,
da mulher sarada, siliconizada, produzida em
série. Tinha peitos grandes, canela fina para os
quadris largos, era dentucinha, deliciosamente
imperfeita. Linda. Quando sorria, franzia a tes-
ta de um jeito especial, felino. Ou então soltava
aquela gargalhada sonora, aberta, contagiante.
O filme firmou para a eternidade a Leila como o
mito da mulher dos anos 60.
Todas as mulheres do mundo era para ser
um média-metragem; o outro média seria Edu,
coração de ouro. No primeiro episódio, Paulo
contava a sua vida para Edu e, no segundo, Edu
é que narrava a sua trajetória. Inventamos tan-
to, improvisamos, que Todas as mulheres do
mundo virou um longa e a segunda parte caiu
fora, tornando-se outro filme tempos depois. É
um filme que adoro até hoje: autêntico, hones-
to, verdadeiro, sincero, amoroso, apaixonado,
agradável, bem-humorado, de bem com a vida,
a favor das coisas. O Cinema Novo não tinha hu-
mor, era meio iracundo, angry generation ingle-
sa. O Domingos fez uma comédia, carioca como
ele e deliciosamente verdadeira. Uma coisa
muito importante, que não só caracteriza Todas
as mulheres do mundo, mas diversos filmes
dos anos 60, é que não havia figurino, direção
de arte, cenário, era tudo feito de forma meiocaseira. As roupas eram dos próprios atores,
cada um levava as suas. Os cenários eram as
casas das pessoas. Os filmes dos anos 60 têm
assim uma qualidade, além das próprias, a de
serem excelentes documentários de uma épo-
ca. Podem ser vistos através deles os costu-
mes, o modo de vida, a forma de agir, de vestir,
de atuar, das pessoas se relacionarem típicos
da época; sem mediação, sem filtro de limpeza,
sem melhoria, upgrade no personagem ou em
sua casa. Se você pegar as regras do Dogma
95, verá que estava tudo lá no cinema brasileiro
dos anos 60, no Cinema Novo: câmera na mão,
pouca ou nenhuma iluminação, parcos recur-
sos, cenários reais, sem maquiagem no espaço
físico, mínimo de edição. Trabalhava-se bas-
tante em plano sequência, às vezes uma cena
inteira em um plano só.
O Domingos tinha sido assistente em um
curta-metragem do Joaquim Pedro, Couro de
gato, e os dois tinham a mesma escola, embo-
ra fizessem filmes completamente diferentes.
Domingos também queria o mínimo de repre-
sentação. Para eles, os atores só deviam fazer
o que parecesse espontaneamente verdadeiro.
Todas as mulheres do mundo , por isso mesmo, é
exemplar, também, em termos de interpretação,
que, anteriormente, digamos, era mais exterio-
rizada. Não são atores, mas pessoas vivendo. O
que o espectador capta é isto: a vida de forma
muito espontânea. Isso não quer dizer natura-
lismo bobo, que é sinônimo de boca mole, como
se vê na televisão. É uma interpretação que con-
fia no poder de revelação da câmera, que dá um
close no seu rosto e o público sabe que alguém
mora ali dentro.
Para mim não foi tão difícil porque já ha-via tido a experiência em O padre e a moça e
também porque vinha do Arena, onde se usa-
va o método Stanislavski, que era também de
microrrepresentação, e que buscava parecer
verdadeiro e menos teatral. Era uma luta con-
tra o melodrama, contra o teatro impostado. Foi
o método usado pelo Actor´s Studio, por onde
passaram todos os grandes atores americanos,
e se mostrou perfeito para o cinema.
No Arena era importante trabalhar a inte-
riorização, a ação pequena. Trabalhávamos em
um teatro de apenas 200 lugares, de forma cir-
cular, com espectadores por todos os lados, al-
guns a meio metro, e não havia a possibilidade
de fazer um trabalho estilizado, forte. Além do
mais, eram peças realistas. Não queríamos ter
personagens em cena, mas pessoas vivendo
aquela situação. E você, por uma dessas sortes
mágicas do teatro, teve a possibilidade de ficar
do lado delas, como que participando de um atomuito íntimo. A interpretação no Arena não po-
dia ser grande, tinha que ter o tamanho certo, o
tamanho da vida.
No caso de Todas as mulheres do mundo, o
diálogo era tão espontâneo que o texto era um
grande indicador do tipo de interpretação que
se devia ter. A não ser que se quisesse estragar
o filme, claro, e inventasse uma maneira impos-
tada de falar, mas não foi o caso. E o Stanislavski
ajudou e muito!
Fui o alter ego de Walter Hugo Khoury tam-
bém, um de seus Marcelos, em As amorosas, de
1967. Acho que as pessoas gostavam de se pro-
jetar em mim e de que eu as projetasse, sei lá.
Era empatia. O Khoury sab ia fazer cinema, tinha
uma câmera vigorosa, depois ficou um pouco
pornô, pornô chique. Ele me pedia para ser eco-
nômico, com pouca expressão e mobilidade. Ao
contrário do Domingos, que usava a câmera na
mão, o Khoury construía rigorosamente os seu s
planos, e era preciso se colocar dentro deles
com todo o cuidado, para não atrapalhar a com-
posição. Era um personagem com um drama
existencial enorme, com nóia de tudo, e alguém
assim desencantado não acredita muito naquilo
que está dizendo. O recurso de interpretação
Edu, coração de ouro, 1967
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as máscaras e
o absurdo: L U Í S A L B E R
T O R O C H A M E L O
Paulo José em “As amorosas” e “O homem nu”
era dizer uma coisa, mas pensar em outra; na
verdade, não investir demasiado no discurso,
pois o que importava era o que não estava sen-
do dito. O Peter Coyote me contou, na época das
filmagens de A grande arte, do Walter Salles,
que dizia ‘espero que seja a última vez que a
gente se encontre’ pensando ‘será que deixei o
gás ligado em casa?’. É o understatement , uma
sub-representação, o contrário do overacting.
Às vezes os atores no cinema americano exage-
ram um pouco nisso e se tornam uma máscara
sem expressão, mas é um recurso interessante.
Nos anos 60, fiz ainda A vida provisória, com
o Maurício Gomes Leite, que era um grande crí-
tico do Estado de Minas e dirigiu esse filme ab-
solutamente nouvelle vague. Revi o filme há uns
três anos e achei bom. Tinha um clima pós-gol-
pe, o começo de Brasília, as cidades-satélites,
aquela coisa desértica. Há um tom documental
muito interessante. O Maurício só fez esse único
filme, penhorou a casa dos pais para conseguir
o dinheiro, nunca conseguiu pagar a hipoteca e
perdeu tudo. Depois se meteu com um esque-
ma de Loteria Esportiva, e até ganhou algum
dinheiro, tentando fazer o seu segundo filme.
Jamais conseguiu: mudou-se para Paris, casou-
se e morreu lá.
O Maurício ficou devendo um dinheiro do fil-
me para mim e para a Dina e prometeu que nos
pagaria na Europa. Marcamos um encontro em
Paris, mas ele explicou que ainda não tinha, masque havia um distribuidor interessado no nosso
filme. E nós estávamos contando com a grana,
mas adorávamos o Maurício, que era uma pes-
soa agradável mesmo. Uma noite fomos jantar
juntos e ele, qu e era um homem finíssimo, fez
questão de comer o antepasto, o primeiro prato,
o segundo, os queijos. E nós dividimos uma mas-
sa. Quando ele ameaçou pedir a sobremesa, aí foi
demais. ‘Sobremesa, não, Maurício! Sobremesa,
não! Nós estamos num miserê danado, contan-
do centavos para comer um prato de massa, e
você vem exibir essa sua riqueza p ara a gente. E
não nos paga. Sobremesa, não!’. Parece coisa da
Dina, mas fui eu que falei, estávamos totalmen-
te afinados nessa questão. O Maurício ficou tão
sem graça que desistiu do doce. Mas ele era um
gentleman, e amava o cinema, como nós...”
Texto publicado originalmente
no livro de Tânia Carvalho Paulo
José - memórias substantivas
(uma coedição Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo
| Cultura – Fundação Padre
Anchieta, 2004, São Paulo) e
editado por Paulo José para o
catálogo desta mostra.
23
Marcelo, personagem central do filme As amo-
rosas, de Walter Hugo Khouri, é um jovem uni-
versitário de seus vinte e poucos anos. Sílvio
Proença, protagonista de O homem nu, dirigido
por Roberto Santos, é um professor especialis-
ta em folclore, com idade entre 30 e 40 anos. As
amorosas foi filmado em 1967; O homem nu, no
ano seguinte. Para interpretar esses dois pa-
péis, o mesmo ator: Paulo José.
A capacidade de viver, com a mesma desen-
voltura, tanto um jovem angustiado quanto um
metódico professor já maduro, sem recorrer
a caracterizações excessivamente marcadas
e em tão pouco tempo entre um filme e outro,
indica não só a extraordinária flexibilidade de
Paulo José na criação de tipos diversos, como
atesta a sutileza de seus recursos minimalistas
na construção de personagens.
A começar pelos elementos visuais exterio-
res mais básicos. Para compor o jovem Mar celo,
bastaram um casaco folgado, a calça de veludo
listrada em relevo, cinto e sapatos da moda e
o cabelo em casual desalinho. Em As amorosas,
Marcelo é um despossuído. Quase nada ostenta,
a não ser a sua própria arrogância varada pelo
mal-estar. Já os óculos de aros escuros e os ca-
belos rigorosamente penteados para trás com-
binam com o conjunto terno-e-gravata-pasta-
debaixo-do-braço típico de um professor à moda
antiga, como é Sílvio Proença em O homem nu.
Se aqui alguns truques caricaturais foram ne-
cessários para marcar os traços mais evide ntes
do personagem, isso não durará muito tempo: a
partir da segunda metade do filme, Sílvio ficará
nu, e do figurino anterior o ator só continuará a
contar com os óculos e o relógio.
Mas como em cinema a construção de per-
sonagens nunca é resultado exclusivo do tra-
balho do ator, sendo também a forma como o
ator é enquadrado, seguido pela câmera e até
mesmo posto para fora de quadro, há outros as-
pectos relativos a esses dois personagens tão
diversos e contemporâneos, Marcelo e Sílvio
Proença, que merecem ser destacados.
A vida provisória , 1968
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Em As amorosas, por exemplo, o que primei-
ro salta aos olhos do espectador é a máscara na-
tural, o rosto de Paulo José, notadamente seus
grandes olhos tristes. Em contrapartida, pouco
lembramos de seus braços, principalmente de
suas mãos. Isso é algo tão marcante a ponto de
podermos dizer que Marcelo é um personagem
que sem dúvida possui um rosto, mas talvez não
possua mãos. Sim, há dois ou três closes das
mãos de Paulo José acariciando o rosto de Lilian
Lemmertz ou segurando suavemente as mãos
de Anecy Rocha. Mas são apenas inversões do
mesmo problema: trata-se agora de mãos sem
um rosto ou, melhor dizendo, de mãos sem um
corpo. Isso é coerente com o personagem idea-
lizado por Walter Hugo Khouri, isto é, um jovem
que não se possui a si mesmo, p ara lembrarmos
de Cesare Pavese em seu diário O ofício de vi-
ver . Fragmentado, simbolicamente desprovido
de suas próprias mãos, Marcelo vê escaparem
diante de si as pessoas que cruzam seu caminho,
os amores, o trabalho, a sociedade, a própria
vida que segue e que parece tão inexplicável e
indeterminada. É o rosto de Marcelo que passa a
ser, assim, o imã de todas as expectativas, frus-
trações, decisões e sobretudo interrogações.
Em O homem nu, a sensação é oposta: ao fi-
nal da projeção, temos uma lembrança confusa
e indistinta do rosto de Sílvio Proença. Na pri-
meira parte do filme, suas expressões faciais
são de certa maneira obstruídas pela máscara
artificial formada pelos cabelos gomalinados pu-
xados para trás e os óculos de aros escuros. Na
segunda metade do filme, predomina a nudez
castigada do professor, e os planos ressaltam
ora o corpo inteiro, ora as pernas, os braços, asmãos, sendo a face apenas um complemento
desse conjunto, e não o centro das atençõe s. Tal
como nas comédias de perseguição da época
do cinema mudo, o que interessa são os cor-
pos que se movimentam pelos cenários, e não
a psicologia do rosto humano. Mas ainda assim,
não deixa de ser significativo que o corpo nu de
Sílvio Proença também seja filmado em peda-
ços. Tanto quanto o jovem Marcelo de As amo-
rosas, o maduro professor deixa de se possuir a
si mesmo. Depois que um incidente o priva das
roupas, a vida até então regrada de Proença es-
capa de seu próprio controle.
No fundo, tanto as mãos ausentes deMarcelo quanto o rosto fugidio de Sílvio Proença
apontam para um mesmo tema, que Walter Hugo
Khouri em As amorosas e Roberto Santos em O
homem nu procuraram analisar de forma bem
diversa: o tema da alienação de personagens
da classe média, um problema, aliás, em total
evidência nos anos 1967-68. Assim, Marcelo e
Sílvio Proença não deixam d e ser, cada um à sua
maneira, diferentes tipos de personagens alie-
nados – e, também, narcisistas.
Marcelo é o alter ego do próprio diretor
Walter Hugo Khouri. As belas mulheres que
passam por sua vida, entre elas a universitá-
ria militante, interpretada por Anecy Rocha,
e a atriz de TV medíocre e vulgar, vivida por
Jacqueline Myrna, não são capazes de fazer com
que ele desvie os olhos de si. No pequeno quar-
to em que vive, seu nome está escrito na pare-
de, repetidas vezes. A relação de caráter quase
incestuoso que mantém com sua irmã (Lilian
Lemmertz) também espelha o narcisismo do
personagem. Ainda assim, há algo nele que oimpele para a vida, que o arrasta para fora de
si. Mas se eventualmente ele se deixa arrastar,
é para ser punido, para sucumbir sob o peso de
sua própria culpa. O principal aspecto narcísico
de um personagem como Marcelo, contudo, não
se resume apenas às suas relações amorosas,
mas sobretudo ao permanente estado de des-
conforto que o caracteriza: no fundo, Marcelo
deseja não compactuar com a sociedade na
qual está inserido. As instituições (o trabalho,
a família, a universidade) o oprimem, ele se vê
impelido a cortar relações com qualquer tipo
de compromisso. Mas na medida em que de-
seja ardentemente essa independência, sofreporque percebe que também é, até a raiz, de-
pendente dessas mesmas instituições. Por isso,
só admite ligações duradouras com a própria
irmã, que, além de ser sua confidente, sempre
lhe empresta algum dinheiro para sobreviver. O
relacionamento com a irmã tem a vantagem de
garantir a Marcelo o mínimo necessário ao seu
sustento, ao mesmo tempo em que o mantém
protegido, já que pressupõe a permanente irre-
alização dos desejos mais profundos. Marcelo é,
por isso mesmo, um eterno deprimido. Seu sa-
grado espelho d’água será sempre perturbado
O homem nu, 1968
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pelo vento ou pelas pedras que o atingem, tor-
nando turva a imagem de seu rosto. A tragédia
de Marcelo é exatamente esta: prisioneiro de si
mesmo, nada pode fazer a não ser amargar o
tempo de sua condenação. Desviar os olhos do
espelho seria admitir a própria derrota.
Já Roberto Santos, em O homem nu, parece
se comprazer em ver o narcisista Sílvio Proença
sofrer. Em que consiste o narcisismo do pro-
fessor? Fundamentalmente em seu elitismo,expresso no acordo tácito que ele tem com as
instituições (isto é, com o Estado repressor), já
que são elas que lhe garantem a vida tranquila e
reclusa em sua casa na Zona Sul carioca. Sílvio
Proença é um folclorista. Ora, para um Estado
autoritário, o folclore é a manifestação mais
adequada à ideia de cultura como patrimônio, e
é a essa ideia que Sílvio Proença acriticamen-
te parece servir. Ele é, portanto, um intelectual
integrado que procura proteger as tradições
culturais do país ao mesmo tempo em que es-
pera que elas também o protejam. É este o seupecado original: acreditar nas tradições como
territórios supra-históricos. Entretanto, um
passo em falso e ele será expulso do paraíso.
É o que de fato acontece. Por uma série de aca-
sos, Sílvio Proença se desvia da rota previa-
mente traçada (ir a São Paulo para participar
de uma conferência de folclore) e, após uma
noite de bebedeira, durante a qual revela todo o
tédio que sente com a vida que leva, acorda na
cama de Marialva (Esmeralda de Barros), uma
bela mulata que conhece numa roda de samba.
A ironia aqui é cruel: enquanto mantinha umarelação distanciada e acadêmica com a “cultura
popular”, tudo ia bem; mas quando o contato se
dá no corpo a corpo, essa mesma “cultura po-
pular” é um perigo desviante. Não por acaso, é
a partir daí, desse contato corporal/ sexual, que
tudo desanda na vida de Sílvio. O ridículo inci-
dente que o deixa nu é apenas o ponto de parti-
da para sua via crucis. Aquele pacato professor
que até então se mantinha retraído no conforto
do seu lar e das sagradas tradições culturais,
agora vive na pele o confronto entre natureza e
cultura. Desprovido de suas roupas (e portanto
de sua própria identidade), lutará contra um
mundo extremamente hostil. Qualquer ideia desolidariedade é banida. O pesadelo e o absurdo
se instauram. Sílvio Proença não está apenas
nu, está desesperadamente só.
Para dar vida a Marcelo e a Sílvio Proença,
Paulo José conferiu a ambos um misto de aban-
dono e agressividade, ódio e tristeza, juventude
e velhice. Se o jovem universitário e o profes-
sor folclorista são personagens vivos, é porque
são ambíguos, insondáveis, indecifráveis. Com
eles, oscilamos entre a identificação e o dis-
tanciamento, a simpatia e o desprezo, o cômico
e o trágico. São raros os atores que possuem
essa capacidade de criar, com gestos mínimos,
universos tão particulares. Em As amorosas
e O homem nu, Walter Hugo Khouri e Roberto
Santos tiveram a sorte de contar com Paulo
José. Afinal de contas, a escolha não poderia ter
sido mais acertada. Quem melhor encarnaria o
absurdo da existência humana, além desse ator
paradoxal, capaz de gritar tão alto quando em
silêncio absoluto?
Luís Alberto Rocha Melo é cineasta, pesquisador eprofessor do curso de Cinema e Audiovisual da UFJF
O homem nu, 1968
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a educação pelapedra
J U L I A N O G O M E S
Paulo José em “O padre e a moça”
Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
“A educação pela pedra”
Neste ano, contam-se cinquenta anos do “acon-
tecimento” O padre e a moça. Nos quatro me-
ses em que a equipe se isolou na remota São
Gonçalo do Rio das Pedras, em Minas Gerais,
no primeiro longa de ficção de Joaquim Pedro,
na primeira montagem de Eduardo Escorel, em
uma situação absolutamente peculiar, se deu
esse filme que habita um espectro dentro da
história do cinema brasileiro que pouquíssimos
outros filmes ocupam.
Só comparável talvez ao Porto das Caixas,
de Paulo César Saraceni, O Padre e a moça é
um dos raros longas de estreia que inventam
um idioma próprio, que criam consigo suaspróprias regras, formando uma corrente sub-
terrânea. É um núcleo intimista do Cinema Novo,
que se liga com uma tradição trágica, uma me-
tafísica das sensações, em cujo traçado pode-
mos incluir Oswaldo Goeldi, Clarice Lispector,
Cornélio Pena, Lúcio Cardoso e Raduan Nassar,
para citar alguns. E uma parte-chave desse
acontecimento-filme é a escalação de um ator
sem experiência em cinema para fazer o papel-
título, substituindo Luiz Jasmin, que adoece às
vésperas da filmagem. Este ator é Paulo José.
O padre e a moça, 1965
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signos. Em O padre e a moça, é notável a força
premonitória com que um dos elementos mais
significativos das últimas décadas ganha prota-
gonismo: a nuca do ator, de costas para a câ-
mera. Como metáfora da opacidade, o Padre
filmado por trás é a ação dessa força misterio-
sa e dinâmica, que mais acompanhamos do que
decodificamos. Característica central de boa
parte da melhor ficção cinematográfica brasi-
leira deste século, o manejo da opacidade, na
interpretação, tem aqui sua pedra fundamental.
Paulo José é uma massa negra, uma silhueta,
tornado todo bata. Assim como na fotografia
de Mário Carneiro, as zonas de preto, de grau
zero de informação, são transformadas em
Sem conhecer o roteiro, Paulo chega alguns
dias depois da equipe à pacata cidade mineira e
conta que Joaquim Pedro o olha, o examina, dá
voltas em torno dele, deixando-o inseguro. E as-
sim começa um dos trabalhos que, como o pró-
prio filme, é uma das maiores conquistas da his-
tória dos nossos atores nas telas até hoje. O Padre
de Paulo José, nesse primeiro passo no cinema,
dado com maestria e precisão de um veterano,
coloca em jogo uma espécie de novo paradigma
para o ator no Brasil. Não por acaso, trata-se deum filme que sofreu grande incompreensão de
parte da crítica à sua época; e o próprio Joaquim
Pedro só percebeu o alcance do seu êxito quase
duas décadas depois, numa retrospectiva de sua
obra em Roterdã, no final dos anos 70.
O que faz de O padre e a moça uma obra-pri-
ma é justamente o perfeito ajuste das partes
envolvidas. A fotografia gravural e detalhista
de Mário Carneiro, a montagem discretamente
opressiva de Eduardo Escorel, o lirismo cortan-
te dos temas de Carlos Lyra, o ritmo lentamen-
te obsessivo impresso por Joaquim Pedro e o
trabalho do quarteto Paulo José, Helena Ignez,
Fauzi Arap e Mário Lago formam um mundo
marcado radicalmente por uma mistura de uma
discreta exuberância aliada a uma permanente
força de contenção. Trata-se de um filme em ne-
gativa, que se concentra em não acontecimen-
tos, filme que se funda na impossibilidade do
amor, do erótico, e transforma essa pedra de
fundação em sua força e seu motor conceitual.
Diante do impasse erótico latente, como disse
Rogério Sganzerla num de seus melhores tex-
tos, “quem sofre é o filme, é a forma do filme” 1.
1 Sã o Paulo, março/ abril, 1966.
Dentro dessa poética do negativo, desse
meticuloso esculpir de sombras que é O padre e
a moça, Paulo José transforma o conceito do fil-
me em seu corpo. Pela primeira vez com tal ra-
dicalidade, um ator de cinema brasileiro se tor-
na pura opacidade. Paulo aprende com Joaquim
que o “ator é significante e não significado” e,
daí, parte em busca de uma intensidade que
advenha de uma aparente neutralidade. Tendo
o trabalho de Robert Bresson e seus modelos
como referência composicional, Joaquim Pedroe Paulo José criam esse Padre que é mais im-
pressão, obstrução, do que expressão. O que
espanta é o quanto o filme, em variados níveis,
consegue construir um “dentro”, uma sensação
nítida de um interior de que só podemos sen-
tir sutis sismos e reverberações. À superfície
chegam signos indecifráveis, que se fazem pre-
sentes somente na medida mínima de um índice
desse magma interno.
Um dos expedientes que dão forma a esse
conjunto de sensações transmitidas pela rela-
ção do corpo com a imagem é a maneira como o
corpo é figurado quase sempre em seu valor de
conjunto. Os momentos em close são muitíssi-
mo pontuais, quase que somente quando o ero-
tismo atinge seu ponto máximo, como na fuga
do casal-título, no terço final do filme. Paulo
imprime a lentidão atormentada, a aparentada
neutralidade, que é a solução para a expressão
de represamento afetivo que é o motor do fil-
me. O papel do ator, que o trabalho de estreia
de Paulo José já consolida de maneira definiti-
va, é manejar o enigma, é tornar a opacidade, o
não significado, uma força dinâmica. Uma das
operações centrais desse processo é descen-
tralizar o rosto como fábrica predominante de
agentes ativos esteticamente. Todo o trabalho
desse cosmos sufocante a céu aberto chamado
O padre e a moça pode ser resumido no desafio
de como estetizar a negação, o negativo, o não,
como lhe dar forma.
O Padre é aquele que chega depois a essa
cidade condenada, após o ciclo dos diamantes,
uma terra de onde já se extraiu tudo. A condição
desse universo parece ser o “depois da vida”, o
“tarde demais” com que Gilles Deleuze carac-
teriza a obra de Luchino Visconti2 – cujo gosto
pelo trágico e pela lenta obsessão descritiva
muito se aproxima do filme brasileiro. Como
2 No livro “ A imagem-tempo ”, da Editora Brasiliense.
O padre e a moça, 1965
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expressar essa ausência? Como dar forma a
essa presença cuja substância é a morte e o
definhamento em suas mais variadas formas?
A moça Mariana, vivida por Helena Ignez, é pos-
sibilidade de sensualidade que desestabiliza
essa indelével atmosfera do trágico, e é ela que
está em disputa. Nessa empreitada num uni-
verso de composição a partir de um paradigma
de inexpressão, a força do trabalho dos atores,
e principalmente de Paulo José, é a compre-ensão do próprio corpo como material, como
matéria, como volume físico, em detrimento de
uma densidade psíquica ou expressiva. O ator
como bloco de cinza, tornado negro amor ou
renda branca, de acordo com sua relação com
os outros blocos de luz e tempo orquestrados
por Joaquim Pedro (não por acaso, formado em
física), Carneiro e sua equipe.
Não à toa, a ação converge para uma caver-
na. Esse drama esculpido é tragédia mineira e
mineral. Uma exploração das velocidades de
frequência mineral, que são os elementos por
excelência cujo desenvolvimento a percepção
humana não tem as ferramentas para acompa-nhar em ato; ela pode apenas ver seus resulta-
dos depois. Não vemos o nascer de um diaman-
te, mas vivemos a intensidade de sua presença.
Nesse mundo onde Deus parece ausente, e a
morte regente, o que confere sentido ao tempo
é a presença das coisas do mundo, e, entre elas,
o homem. Tal metafísica inversa pede um outro
tipo de trabalho, também para o ator, que é a es-
pecialidade das pedras: a combinação, em igual
intensidade, de uma expressão densa de alhea-
mento e presença. Ser vazio e cheio como uma
pedra, presente e indiferente, mas em relação.
Uma porta fechada não é um fim de caminho,
mas um objeto que sugere formas, pau, pedra,
sensações e experiências específicas. A “voz
inenfática, impessoal” descrita pelo poema de
João Cabral de Melo Neto, que mais parece uma
cartilha dessa estética que atinge em O padre e
a moça uma de suas mais violentas consubstan-
ciações, é um dos meios dessa densa melancolia
que implode a cada bloco de sombra e branco,
a cada respirar e fechar de pálpebras. E entreessa imponente orquestração em torno da irre-
alização, o corpo e os tempos do Padre vivido por
Paulo José são essa antimáquina perfeita que
exala distância e intimidade, construindo um
modelo raro de composição que segue o modelo
da escultura, em que a subtração é o meio que
leva ao auge de sua força singular e imprópria.
Juliano Gomes é crítico de cinema
a pintura dos
sentimentos, ou aarte da intuição A N N A K A R I N
N E B A L L A L A I
É muito difícil falar da arte de um ator. Seria
mais fácil falar da arte do ator, de forma univer-
sal, milenar, grandiosa e, por isto mesmo, im-
precisa. Ainda mais difícil se torna falar da arte
do ator no cinema, isolar o trabalho de um ator
num filme e procurar analisá-lo. Isolar é modo
de dizer, pois o trabalho do ator deve ser pen-
sado organicamente. O ator em cinema atua em
conjunto com outros seres – humanos (atores,
diretor, equipe) e não humanos (objetos, lumino-sidade, ruídos e máquinas). E ainda que se pos-
sa dizer o mesmo do ator de teatro, no cinema
sua imagem é fixada e pode-se projetar indefi-
nidamente no tempo, ou enquanto a materiali-
dade da película cinematográfica (ou da cópia,
qual seja o suporte) permitir a sua reprodução.
O ator de cinema é, portanto, um ser embalsa-
mado. Assistir a um filme realizado há cerca de
meio século é como encontrar um manuscrito
numa garrafa. É o milagre perfeito do aca-
so. Quem o escreveu jamais poderia imaginar
quem, e quando, e em qual mar o encontraria.
Assim eu me deparei, há alguns anos, com
o filme de Joaquim Pedro de Andrade, O padre e
a moça (1965). Os letreiros iniciais indicam que o
filme é sugerido pelo poema “O padre, a moça”,
de Carlos Drummond de Andrade. Mas em ter-
mos do ritmo interno dos planos e da compo-
sição das personagens, o filme evoca muito da
obra poética de Drummond, para além do po-
ema mencionado. Por exemplo, estes versos
do poema “Fraga e sombra” poderiam traduzirperfeitamente a entrega amorosa e suave na
cena de amor entre o padre e a moça: “Os dois
apenas, entre o céu e a terra/ sentimos o espe-
táculo do mundo/ feito de mar ausente e abstra-
ta serra”. Ou quando o padre arrasado retorna
e se prostra aos pés do altar, percebemos ao
fundo do plano uma figura de formas humanas,
sem sabermos se é mesmo uma beata ou uma
estátua. Lembra-nos o poema “Evocação ma-
riana”: “A igreja era grande e pobre. Os altares
humildes./ Havia poucas flores. Eram flores de
horta./ Sob a luz fraca, na sombra esculpida/
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(quais as imagens e quais os fiéis?)/ ficávamos.
[grifo nosso]. Vemos aqui e ali ecos de seus po-
emas, seja na composição dos planos, no tempo
que se arrasta, na sensação de uma noite de-
vassada, na inquietação das almas ou na signi-
ficação dos silêncios. A solidão da personagem
do padre traz um pouco do sentimento do mun-
do que a poesia de Drummond encerra.
Segundo Paulo José, O padre e a moça era
inspirado também no filme Diário de um páro-
co de aldeia (Le journal d’un curé de campagne,França, 1951), de Robert B resson, que ter ia sido
mestre de Joaquim em sua temporada de estu-
dos na Europa.1 O padre e a moça é o primeiro
longa-metragem de ficção dirigido por Joaquim
Pedro de Andrade, que já havia realizado o docu-
mentário em longa-metragem Garrincha, alegria
do povo (1962), e os curtas O mestre de Apipucos
(1959), O poeta do Castelo (1959) e Couro de gato
(1961). Desde os primeiros curtas, Joaquim
mostrava talento e segurança na direção, além
de um sofisticado senso de humor e ironia.
O padre e a moça é o filme de estreia de
Paulo José no cinema. Paulo já tinha experi-
mentado uma longa trajetória no teatro, des-de os tempos de colégio, em Bagé, passando
pelo Teatro Universitário de Porto Alegre, pelo
Teatro de Equipe de Porto Alegre, que fundou,
e pelo Teatro de Arena, em São Paulo.2 Ele nos
1 Cf. “Entrevista com Paulo José”. Entrevista a Clara
Linhart, Camila Maroja e Daniel Caetano. Contracampo nº 42.
Disponível em: http://www.contracampo.com.br/42/entre-
vistapaulojose.htm.
2 Cf. CARVALHO, Tânia. Paulo José: memórias substantivas.
São Paulo: Imprensa Oficial, 2007. pp.45- 75.
conta que entrou no filme por acaso.3 Era amigo
e colega de trabalho de Fauzi Arap no Teatro de
Arena. Fauzi, além de representar a persona-
gem Vitorino, em O padre e a moça, havia ajuda-
do o Joaquim Pedro a realizar os ensaios. Fauzi
relata: “Inicialmente, eu deveria fazer uma es-
pécie de assistência de direção do Joaquim no
que diz respeito à interpretação”.4 Joaquim era
muito exigente em termos da direção de atores
e procurou instaurar um trabalho meticuloso
de ensaios, que durou cerca de cinco meses epassava também pelo estudo da obra poética
de Drummond.5 Segundo depoimento de Helena
Ignez, “Nós ensaiávamos como se fosse uma
peça de teatro – e uma peça muito trabalhosa –,
ensaiando intenção por intenção, fala por fala”.6
O que acho interessante neste processo é
que Joaquim Pedro havia escolhido original-
mente um não ator para fazer o papel do padre,
o artista plástico Luiz Jasmin. Esta escolha era
coerente com uma busca específica empreendi-
da pelo cineasta Robert Bresson, que o induzia
a trabalhar com não atores, pois não queria que
eles interpretassem. Bresson estava interessa-
do num tipo de verdade e de movimento interiorque acreditava ser impossível extrair de um
3 “ Entrevista com Paulo José”, cit.
4 Depoimento de Fauzi Arap. Citado em ARAÚJO, Luciana
Corrêa de. Joaquim Pedro de Andrade : primeiros tempos. São
Paulo: Alameda, 2013. p. 185.
5 Cf. Depoimento de Helena Ignez. Citado em ARAÚJO,
Luciana Corrêa de. Op. cit . p. 185.
6 Depoimento de Helena Ignez. Citado em ARAÚJO, Luciana
Corrêa de. Op. cit . p. 185.
ator profissional. Podemos traduzir esta busca
de Bresson como a “pintura dos sentimentos”,
expressão apontada por Godard na entrevista a
Bresson, juntamente com Michel Delahaye, em
1966.7 Esta entrevista é posterior à realização
de O padre e a moça, mas pode iluminar muitas
questões relativas ao trabalho de direção de
atores e não atores. Ela aponta para questões
que Bresson vinha perseguindo ao longo de sua
carreira. E estas podem nos ajudar a pensar o
extremo rigor na direção de atores exercida porJoaquim Pedro de Andrade em O padre e a moça.
Acho instigante esta opção de Joaquim
Pedro de escolher um não ator e submetê-lo a
uma intensa experiência de ensaios. E é ainda
mais irônico o fato de Luiz Jasmin ter adoecido
gravemente, vítima de hepatite, e ser substitu-
ído às vésperas das filmagens. Esta experiên-
cia de ensaios era uma forma de trabalhar com
não atores diferente da de Bresson. Acresce
que os demais atores eram profissionais e ex-
perientes. Penso que talvez, ao escolher Luiz
Jasmin, Joaquim Pedro estivesse justamente
interessado no olhar de um pintor. Alguém que
compreendesse bem este meio de expressão
e pudesse se colocar a serviço dele (interna e
externamente). O padre e a moça contou com um
diretor de fotografia e câmera excepcional, que
era também um pintor, Mário Carneiro. Ele cui-
dou pessoalmente da cenografia. A composição
7 Cf. “Entrevista com Robert Bresson”. Entrevista a Michel
Delahaye e Jean-Luc Godard. In: BAZIN, André et al. A polí-
tica dos autores. Lisboa: Assírio & Alvim, 1976. pp. 319-371.
Originalmente publicada em Cahiers du Cinema nº 178. Paris:
maio 1966, com o título “La question”.
das personagens é então o resultado híbrido
do trabalho dos atores, do trabalho de direção
de atores de Joaquim e do trabalho do próprio
Mário Carneiro.8
Creio que o fato de Paulo José ter sido con-
vocado às pressas, assumindo prontamente
o papel do protagonista masculino, e estando
“virgem” da experiência anterior de ensaios,
contribuiu deveras para a composição da sua
personagem, o jovem padre que chega de ou-
tras terras após um tortuoso caminho entre asserras, e é esperado pela pequena população
de um antigo povoado em decadência, isolado
e esquecido no mundo. O início do filme mostra
esta peregrinação e lembra a clássica jornada
do herói nos filmes de faroeste. Sua persona-
gem é então um forasteiro, um estranho no
ninho. Ele não tem intimidade com aqueles
personagens locais: a moça, o farmacêutico, o
patriarca, os demais habitantes. Ele vem para
substituir o antigo padre e precisa ser aceito por
aquela comunidade.
Cada um daqueles habitantes de São
Gonçalo do Rio das Pedras nutre pelo jovem
padre alguma expectativa, isto é, espera que
ele represente algum papel, e é praticamente
impossível corresponder às expectativas de
8 Defendo esta ideia na minha dissertação de mestrado “O
ator-em-ato : a dialética ator/ personagem em Copacabana Mon
Amour ”, acerca do filme de Rogério Sganzerla. Argumento
que a construção de personagens no filme é o resultado hí-
brido do trabalho de direção; do trabalho de direção de ato-
res, mais especificamente; dos meios e modos de produção
(incluindo as filmagens e a pós-produção); e do trabalho dos
atores propriamente dito.
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todos eles ao mesmo tempo. A cidade agoniza.
O filme explora esta dificuldade do ser huma-
no de corresponder às expectativas alheias, de
libertar-se das amarras sociais e ideológicas.
Paulo José conseguiu passar esta dimensão deser errante, sujeito ao peso da gravidade e aos
percalços do caminho. A arte do ator é fundada
no caminho, no percurso, na busca. É uma bus-
ca interior. O ator é um ser nômade, não pode
se acomodar. O trabalho do ator é um trabalho
experimental e intuitivo. É um trabalho árduo:
ombros que suportam o mundo, como no poema
de Drummond.
A primeira vez que vi O padre e a moça, to-
cou-me profundamente o drama existencial
da personagem feminina, aquela moça prati-
camente abandonada ao mundo dos homens e
das pedras, a servir-lhes de corpo e a negar-
lhes a alma. Moça dos gestos contidos, retraí-
da, prisioneira até dos objetos que manuseia. O
bule de café, a bandeja, a fruteira, as xícaras
de porcelana lhe ensinam diariamente o ritualde servir aos homens, as posturas e os movi-
mentos que seu corpo deve assumir. E muitas
vezes vemo-la prostrada como uma boneca
namoradeira, destas que, nas cidades do in-
terior, colocam-se nas janelas para atrair o
olhar dos viajantes. Um ser encantado. Assim
a vemos em sua primeira aparição à janela, no
ponto de fuga de um zoom out que coincide com
a chegada do novo padre a São Gonçalo do Rio
das Pedras. E também atrás do balcão, à noite,
sentada após servir as mesas dos homens na
taverna – trabalho que as outras mulheres, as
beatas, tanto condenam. Impecável o trabalho
de Helena Ignez. Impecável sua beleza e foto-
genia. A minuciosa composição de personagem
que o filme apresenta. Seu rosto grita em silên-
cio. Aquela moça precisava ser tirada dali, da-
quele fim de mundo e daquela gente que a es-
cravizava e que a impedia de existir plenamente.
Da segunda vez que vi o filme, alguns anos
depois, outro aspecto arrebatou-me. Percebi o
caráter subversivo que havia na personagem
interpretada por Helena Ignez. Não a via maiscomo vítima das circunstâncias, mas como for-
ça motriz da ação dramática. Percebi o quanto
ela era ali a personagem mais lúcida, a mais
forte. A única de fato capaz de transgredir aque-
la realidade. E ela então me fez lembrar a hero-
ína de um filme japonês, O t úmulo do Sol (Taiyô
no Hakaba, Japão, 1960, Nagisa Oshima), a qual
onde quer que se infiltrasse, provocava discór-
dia e destruição, a ponto de ao final do filme to-
das as gangues da delinquência local terem sido
completamente dizimadas, e restar somente
ela. Era uma personagem catalisadora e assim
eu percebi a moça, desta vez. Lembrei-me tam-
bém das personagens femininas dos filmes noir .Mulheres belíssimas, inicialmente indefesas e
vulneráveis, revelavam-se a seguir verdadeiras
vamps, enredando numa intriga criminosa os
homens que mordiam sua isca.
Pude ver como a moça detonava uma sé-
rie de acontecimentos irreversíveis, como ela
alinhavava os elementos da tragédia. Ela não
era uma personagem passiva. Isto fica claro,
sobretudo, na sequência da fuga. Desde que sai
da casa do Sr. Honorato, fugida, ela assume a
dianteira da ação. É ela quem puxa o padre pela
mão na corrida ladeira abaixo e ao atravessar
a ponte que dá acesso ao vilarejo. Se a ideia de
fugir com a moça, para libertá-la, teria sido do
padre, é ela, por sua vez, quem o ensina na prá-
tica como se foge; isto é, o tipo de ação física
que uma fuga exige. Na estrada de pedras, na
serra, ela o atormenta com perguntas malicio-
sas, tentando seduzi-lo. Ela lhe toma um beijo
à força, e o incita ao ato sexual. Na caminhada
que se segue, ela questiona: “Isso aqui não é
caminho para lugar nenhum”. Acusa: “Você está
perdido!”. E quando eles parecem de fato perdi-dos e esgotados pela jornada, pela fome e pelo
sol, ela tem a lucidez de perceber a tragédia se
consumando: “Você está voltando!”. O drama
da moça é que o padre não pode simplesmente
pensar e agir como ela.
Se, da primeira vez que eu assistira a O pa-
dre e a moça, eu havia pensado que a chegada
do novo padre é o que havia despertado a revo-
lução naquele modo de vida quase medieval da
cidadela de São Gonçalo do Rio das Pedras, um
microcosmo do mandonismo patriarcal; da ter-
ceira vez que assisti ao filme, percebi o oposto.
Da terceira vez, fui motivada pelo convite para
escrever sobre Paulo José. Percebi como aque-la cidade de modos e personagens tão absur-
dos teria transformado completamente a vida
daquele jovem padre e colocado em xeque a
sua vocação sacerdotal. Não teria sido apenas
a atuação da moça que o fez duvidar de sua vo-
cação, mas o contato com cada um daqueles ha-
bitantes que sofriam de vários tipos de carência
humana. Imaginei tudo o quanto ele pode ter
ouvido, todas as confissões inauditas, a multi-
plicidade de versões e pontos de vista, todas as
histórias, “verdade e imaginação” que podem
ter-lhe perturbado a consciência, quase como
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O padre e a moça, 1965
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um psicanalista que adoece atormentado pelos
vícios e perversidades que lhe são confessados
pelos seus pacientes.
Todas essas três visões acerca do filme
coexistem e coexistiram desde a primeira vez.
São visões que se complementam. Como ocor-
re ao apreciador de uma pintura, um quadro,
que por contemplá-lo e por tantas vezes fitá-lo
longamente, permite-se então se esquecer das
formas e se concentrar somente nas cores. Ora
ressaltam sobremaneira os vermelhos. Oraprefere-se descobrir os verdes. Aqui demora-
se nas sutis pinceladas azuis. Enfim, o prazer
proporcionado pela intimidade com a obra de
arte. Mas estamos até aqui nos domínios da
estética, da fruição da obra acabada. Quanto à
poética, ao fazer artístico, é outra história.
Então, voltemos ao começo, ao nosso pon-
to de partida: à dificuldade de se abordar o tra-
balho de um ator em cinema, especificamente.
Venho há alguns anos percorrendo este caminho.
Venho me debruçando sobre o trabalho de dois
atores excepcionais no cinema brasileiro: Helena
Ignez e Otoniel Serra, que, coincidentemente ou
não, são formados na arte dramática pela mes-ma Escola de Teatro da Universidade da Bahia,
fundada em 1956, num momento de efervescên-
cia cultural da capital baiana. Dos palcos desta
escola, saíram grandes nomes do teatro e do
cinema brasileiro, como Geraldo del Rey, Othon
Bastos, Sônia dos Humildes e Anecy Rocha.
Ao receber o convite para escrever sobre
Paulo José, pensei que seria bastante coerente
com as minhas pesquisas falar sobre seu tra-
balho de ator em cinema. Afinal, ele atua num
grande número de filmes extraordinários do ci-
nema brasileiro, filmes que estão entre os meus
preferidos, sobretudo aqueles das décadas de
1960-70, com os quais eu tenho uma relação
afetiva muito intensa. Entretanto, um fenômeno
curioso operou-se. Ao ver e rever alguns destes
filmes, cada vez mais eu perdia de vista o que
poderia falar sobre o seu trabalho de ator, es-
pecificamente. Eu simplesmente não conseguia
ver o trabalho de Paulo José. E isto me intrigou.
Percebi que por mais que eu quisesse fixá-lo,
ele me distraía. Paulo José me levava com o fil-
me para outros pensamentos, outros focos deatenção. E este fenômeno se dava mais intensa-
mente em O padre e a moça.
Parecia-me, de alguma forma peculiar, que
o trabalho de Paulo José neste filme era invisível.
É perigoso dizer isto. Mas era esta a sensação
exata que eu sentia. Ou, melhor dizendo, sumia o
Paulo, o ator, e ficava tão somente uma existên-
cia, uma presença viva na tela. Como um retrato
de um homem capturado por um pintor, que tra-
duz com exatidão o sentimento humano, assim
eu o via. Mas esta personagem era tão transpa-
rente, porquanto sua inequívoca existência, e, ao
mesmo tempo, singularmente indecifrável em
seu interior. Seus pensamentos, suas motiva-ções eram extremamente difíceis de perscrutar.
Alguns atores emprestam às suas p ersonagens
apenas o próprio corpo. Outros lhes dão o corpo
e a consciência. Paulo José dava-lhes a alma.
Yoshi Oida nos conta que no teatro kabuqui
existe um gesto tradicional que indica “olhar
para a lua”. Este gesto consiste em apontar o
dedo indicador para o alto, para o céu. O mestre
relata a experiência de um ator muito talento-
so que interpretou o gesto com tamanha graça
e elegância que o público ficou admirado com
a beleza de seu movimento, isto é, com o seu
virtuosismo técnico. Já um outro ator, em ou-
tra circunstância, interpretou o mesmo gesto:
apontou para a lua. O público sequer percebeu
se ele teria realizado ou não um belo movimen-
to. O público simplesmente viu a lua.9 Acredito
que Paulo José seja um ator deste tipo: aquele
que mostra a lua ao público. Como define Yoshi
Oida: “O ator capaz de se tornar invisível”.10
Era isso. Paulo José me fazia ver tudo: o
mundo em torno dele. A natureza e os seres
humanos. A beleza, as dores, os juízos, as pai-
xões, as incertezas, as angústias, as fraquezas,
os equívocos, os desejos, os medos: ao seu re-
dor, nos outros e em si mesmo. Tudo em estado
bruto. Eu percebia o filme pelo olhar do Paulo
José. Não um olhar que consiste unicamente
num ponto de vista, mas o olhar da existência,
que antes de tudo é múltiplo, que enxerga/ sen-
te de costas e de olhos fechados, que reúne to-
dos os sentidos num só. Um olhar que encerra
um sentimento do mundo. Uma forma de com-
preensão e existência que está mais próxima
da intuição. Valendo-me dos ensinamentos de
Yoshi Oida: “Sendo capazes de usar bem osolhos não ficamos confinados ao mundo físico.
Os olhos podem ver tanto as coisas concretas
quanto as invisíveis.”11 Nisto consiste, a meu
ver, a arte da intuição.
9 OIDA, Yoshi. O ator invisível. São Paulo: Via Lettera, 2007. p.18.
10 OIDA, Yoshi. Op. cit . p. 18.
11 OIDA, Yoshi. Op. cit . p. 26.
Anna Karinne Ballalai é atriz, roteirista, produtora e
pesquisadora de cinema
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[...] A gente gostaria que você falasse do
seu começo no teatro, como você conheceu
Joaquim Pedro de Andrade...
O padre e a moça foi o meu primeiro filme, e foi
uma grande estreia, extraordinária... E come-
çou por acaso, porque quem ia fazer o padre
era o ator Luiz Jasmin, que era artista plásti-
co. O Joaquim gostava do tipo físico do Luiz
Jasmin para fazer o padre. E eles foram a São
Gonçalo do Rio das Pedras. Eu era do [Teatro de]
Are