Paulo José - Meio século de cinema

download Paulo José - Meio século de cinema

of 31

Transcript of Paulo José - Meio século de cinema

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    1/31

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    2/31

      s  u  m   á  r

       i  obreve biografia   9

    15

    23

    33

    41

    53

    29

    a pintura dos sentimentos,

    ou a arte da intuição

    a lanterna mágica

    as máscaras e o absurdo: Paulo José em “As amorosas” e “O homem nu”

    a educação pela pedra:Paulo José em “O padre e a moça”

    entrevista

    sinopses dos filmes exibidos

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    3/31

    4 5

    A CAIXA é uma das principais patrocinadoras da cultura bra-

    sileira, e destina, anualmente, mais de R$ 60 milhões de seu

    orçamento para patrocínio a projetos culturais em espaços

    próprios e espaços de terceiros, com mais ênfase a mostrascinematográficas, exposições de artes visuais, peças de tea-

    tro, espetáculos de dança, shows musicais, festivais de teatro

    e dança em todo o território nacional e artesanato brasileiro.

    Os projetos são escolhidos através de seleção pública,

    uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível

    a participação de produtores e artistas de todas as unidades

    da federação, e mais transparente para a sociedade o investi-

    mento dos recursos da empresa em patrocínio.

    Com a mostra “Paulo José: meio século de cinema”, a

    CAIXA Cultural apresenta ao público carioca uma retrospecti-

    va da carreira cinematográfica de um dos maiores nomes do

    cinema, da TV e do teatro nacional.

    Assim, a homenagem aos 50 anos de cinema de Paulo Joséé, antes de tudo, um presente para o espectador, que poderá

    ver e rever filmes que mapeiam a carreira do ator e nos levam

    a uma reflexão sobre a produção cinematográfica nacional.

    Ao trazer mais esta mostra para o público carioca, a

    CAIXA reafirma sua política cultural de estimular a discussão

    e a disseminação de ideias e de promover a pluralidade de

    pensamento, mantendo viva sua vocação de democratizar o

    acesso à produção artística.

    CAIXA ECONÔMICA FEDERALTodas as mulheres do mundo, 1966

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    4/31

    6 7

    trabalho de Paulo José, com suas memoráveis atuações, acom-

    panha há várias décadas a história do cinema brasileiro. Nosso

    homenageado atuou em grandes clássicos, marcando o imagi-

    nário do público desde 1965, quando, vindo do teatro, estreou no cinema.

    Foi o padre introvertido e atormentado em O padre e a moça. Em seguida

    foi Macunaíma ⎼ dividindo o papel com o inesquecível Grande Otelo ⎼ no

    filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade. Foi o magnífico sedutorCassy Jones, no filme de Luís Sérgio Person. Contracenando com Leila

    Diniz, foi Paulo, o Don Juan domesticado, em Todas as mulheres do mundo,

    de Domingos de Oliveira. Foi também o universitário aturdido Marcelo,

    em As amorosas, de Walter Hugo Khouri. E tudo isso foi só seu início de

    carreira.

    A homenagem aos seus 50 anos de atuação no cinema mostra a di-

    versidade e a riqueza de seu trabalho. Paulo começou no teatro – sua

    grande paixão, jamais abandonada – em Bagé, no Rio Grande do Sul, en-

    trando em seguida para o cinema e, mais tarde, também para a TV. É

    ator para todos os palcos e telas, mas, como se fosse pouco, também é

    diretor e roteirista.

    São 17 filmes escolhidos em meio a uma lista extensa: para a cura-

    doria, um grande desafio e uma grande honra. O resultado é uma deli-

    ciosa seleção, que mostra o ator em diferentes fases, traçando, ao mes-

    mo tempo, um panorama do cinema brasileiro nas últimas décadas. Do

    Cinema Novo à Retomada, nossa seleção se inicia em 1965, com O padre

    e a moça, de Joaquim Pedro de Andrade, até chegar a 2011, com o lírico

    O palhaço, de Selton Mello, seu filme mais recente, abrangendo também

    os mais diversos gêneros, do drama à comédia.

    A mostra, além da exibição de filmes, promove duas mesas-redon-

    das sobre a importância da trajetória e obra de Paulo José. Seu trabalho

    artístico estará em debate: o percurso por diferentes meios e linguagens

    – teatro, cinema e televisão –, as interseções entre atuação e autoria, as

    diferentes formas e técnicas de interpretação adotadas, entre outras

    questões que um olhar para a sua carreira em retrospectiva nos suscita.

    Também serão lembrados os encontros com amigos e interlocutores com

    os quais dialogou e aprendeu: Joaquim Pedro de Andrade, Domingos de

    Oliveira, Luís Sérgio Person e Walter Salles, entre tantos outros. Estes

    dois encontros com o público serão ciceroneados por Juliano Gomes (crí-

    tico de cinema), Hernani Heffner (conservador da cinemateca do MAM eprofessor da PUC-RJ), Domingos de Oliveira (ator, diretor e roteirista de

    cinema e teatro), Daniel Caetano (crítico de cinema), Luiz Carlos Maciel

    (jornalista e ícone da contracultura dos anos 1960) e Joel Pizzini (cineasta).

    Com textos inéditos de Luís Alberto Rocha Melo, Anna Karinne

    Ballalai e Juliano Gomes ⎼ que nos proporcionam um olhar crítico sobre

    os filmes ⎼, uma biografia de autoria do jornalista Paulo Gois Bastos, um

    texto do próprio Paulo José narrando sua trajetória e imagens cedidas

    de seu arquivo pessoal, este catálogo pode ser considerado um valioso

    vislumbre não só da vida e obra deste artista, mas de vários momentos

    do cinema, da televisão e do teatro brasileiros.

    Possibilitar a fruição destes filmes, muitos em 35 mm (nem todos re-

    editados em DVD), foi uma prioridade da curadoria. Apesar de seu apego

    ao teatro, ao qual sempre se dedicou com grande gosto, é em película que

    seu trabalho se eterniza. Nossa seleção apresenta um panorama do papel

    que Paulo José desempenha no cinema e, portanto, na cultura brasileira.

    Se “o Brasil faz o melhor cinema brasileiro do mundo”, como nosso

    homenageado costuma afirmar, sem dúvida temos que agradecê-lo pela

    sua importante e marcante participação na construção desta nossa arte.

    Desta forma, é com imensa alegria que trazemos estes filmes e convida-

    mos todos a assistir a eles e se arrebatar.

    Aïcha Barat, Diana Sandes, Diogo Cavour e Tiago Rios

    CURADORES DA MOSTRA

    O

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    5/31

    8

    Paulo José Gómez de Souza nasceu em Lavrasdo Sul, único município gaúcho surgido a partir

    da extração de ouro e que, atualmente, conta

    com uma população pequena, de quase oito mil

    habitantes vivendo principalmente da agrope-

    cuária. Ele é o segundo filho de uma família

    de cinco filhos homens. Pela vontade da mãe,

    Paulo José deveria ter sido uma menina e se

    chamaria Raquel.

    Sua mãe, Maria Del Carmen, ou Carmencita,

    tinha origem espanhola, tendo nascido nos

    Pirineus espanhóis e vindo para o Brasil aos

    oito anos de idade. Estudou em um colégio inter-

    no em Porto Alegre, de onde saiu praticamente

    para o casamento. Pianista e declamadora,

    sempre incentivou os filhos a experimentarem

    e conhecerem o mundo das artes.

    Seu pai, Arlindo Ferreira de Souza, era um

    gaúcho severo, vindo de uma família de cator-

    ze filhos, mas criado pelos avós maternos qua-

    se sem relação com os irmãos. Foi para o Rio

    de Janeiro estudar engenharia civil, chegou a

    atuar como engenheiro, mas tornou-se fazen-

    deiro em Lavras do Sul, município que fica ao

    lado de Bagé.

    Desde cedo, os irmãos Gómez de Souzaestabeleceram uma relação de intimidade

    com a literatura, a música, as artes plásticas

    e o teatro. Além do português, aprenderam o

    espanhol devido à proximidade com a família

    da mãe. Eram praticamente os únicos meni-

    nos a frequentarem o Instituto Municipal de

    Belas Artes de Bagé e, por isso, eram alvo

    da chacota dos outros garotos. No Instituto,

    Paulo estudou piano, harmonia e solfejo.

    Aos dez anos, Paulo ingressou no Colégio

    Nossa Senhora Auxiliadora, onde começou a

    experimentar o teatro. Ele fazia todos os es-

    petáculos da escola, uns cinco por ano. Eram

    peças religiosas escritas por Giovane Bosco,

    fundador da ordem católica que mantinha o

    colégio. O cumprimento das tarefas escola-

    res contava com o acompanhamento próximo

    de sua mãe, que havia sido professora, mas

    não lecionava a pedido do esposo.

    Nessa época, além de atuar, Paulo já se

    percebia atraído pela função de diretor. Nas

    férias escolares, os irmãos Gómez de Souza

    não tinham moleza e, durante quatro meses

    por ano, iam para a fazenda e assumiam a

       P   A   U   L   O   G   O   I   S   B   A   S   T   O   S

    brevebiografia

    9

    Edu, coração de ouro, 1967

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    6/31

    rotina de atividades dos peões. “Era uma per-

    sonalidade dupla, quase dividida! Na fazenda,

    tínhamos um trabalho muito concreto e pe-

    sado. Nosso pai nos colocava para assumir

    a lida bem cedo, acordávamos por volta das

    quatro da manhã”.

    Também foi em Bagé que ele conheceu o

    cinema; aliás, o cinema era algo, literalmente,

    bem próximo de seu cotidiano familiar e che-

    gava a ter uma “fra grância”: “A gente moravana mesma quadra do Cinema Avenida, que era

    o único cinema de Bagé. Os fundos de nossa

    casa faziam limites com a sala de cinema. Os

    filmes chegavam muito danificados, pois as

    cópias circulavam por outras cidades antes

    de chegarem a Bagé. Chegavam aos pedaços,

    quase todos eles sofriam emendas e cortes

    depois de serem exibidos. Pela manhã, eu e

    meus irmãos ficávamos esperando, em cima

    do muro dos fundos de nossa casa, o funcio-

    nário do cinema jogar os pedaços dos filmes

    no lixo. Nós pulávamos e catávamos aquilo, a

    gente chamava de ‘ceninhas’. Naquela época,

    o cinema tinha cheiro, o cheiro do acetato”. E

    Paulo se recorda do primeiro filme a que as-

    sistiu no cinema: a animação da Disney Bambi ,

    de David Hand.

    Em 1954, a família Gómez de Souza mu-

    dou-se para Porto Alegre, onde Paulo ingres-

    sou no curso científico, que corresponde ao

    ensino médio atual. Com um histórico de bom

    aluno, ele repetiu o terceiro ano do científico

    para não ter que fazer o vestibular para medi-

    cina, que era a vontade de sua família. “Essa

    ou São Paulo, a fim de que ele viesse a se

    aprofundar na arte teatral. Os três anos de

    estudante de arquitetura também serviram

    para aproximar Paulo do Teatro Universitário

    da União dos Estudantes; e, mais tarde, os co-

    nhecimentos aprendidos contribuíram para a

    criação de seus trabalhos de cenografia.

    Em Porto Alegre, ainda enquanto estu-

    dante de arquitetura, Paulo teve seus pri-

    meiros contatos com grupos de teatro, atuouem peças amadoras e chegou a assumir a

    direção de um espetáculo no Teatro Equipe.

    No início dos anos de 1960, ele deixou Porto

    Alegre e foi para São Paulo fazer parte do

    Teatro de Arena, onde também atuou, dirigiu,

    fez figurino e cenografia, entre outras ativida-

    des. Foi no Arena que Paulo conheceu a atriz

    Dina Sfat, sua primeira esposa, com quem se

    casou em 1968.

    Após o golpe militar de 1964, cresceram

    os movimentos pela retomada democrática

    no país. A tensão política também aumentou,

    culminando em dezembro de 1968, com o

    decreto do Ato Inconstitucional nº 5, dispo-

    sitivo que suspendeu os direitos constitu-

    cionais e concedeu poderes extraordinários

    à Presidência da República, então ocupada

    pelo General Arthur da Costa e Silva. No iní-

    cio de 1969, Paulo e Dina, juntamente com o

    Teatro de Arena, viajaram para um festival de

    teatro na Europa. Ao retornar para o Brasil no

    final daquele ano, Paulo José foi contratado

    pela TV Globo e foi morar definitivamente no

    Rio de Janeiro.

    sabotagem era uma coisa dolorosa, era a

    maneira de comprovar e de dar atestado que

    eu não conseguiria fazer aquilo. Em casa ha-

    via uma relação de conflito, pois, se por um

    lado, havia uma aceitação e um estímulo ao

    teatro, para que a gente estudasse música

    e piano, ao mesmo tempo, havia uma seve-

    ridade, uma restrição a essa coisa mais ‘va-

    gabunda’ e atirada. Por isso, tínhamos que

    ser muito consequentes. Eu frequentementedesandava e deixava de cumprir tarefas mais

    nobres. Eu saí da posição de melhor aluno da

    escola para ser um reprovado. Isso me fez

    sofrer muito. Eu estava entrando por um ca-

    minho que não podia controlar direito”.

    Paulo chegou a ingressar no curso de

    arquitetura da Universidade Federal de Porto

    Alegre, mas não o concluiu. Tal decisão, eviden-

    temente, não foi bem recebida pelos pais. Para

    a família de Paulo, a vida no teatro era algo bem

    distante de uma carreira profissional mais tra-

    dicional, como haviam planejado para os filhos.

    “Quando eu estava no colégio e participava das

    peças enquanto atividade estudantil, para os

    meus pais era uma ‘gracinha’ ter o filho fazendo

    teatro. Depois dessa época, quando essa coisa

    ficou séria e decidi largar a arquitetura para fa-

    zer teatro, o clima ficou pesado e foi terrível a

    convivência em casa. Eu era o vagabundo, pois

    o importante era ter um diploma, um canudo.

    Virei a ovelha negra da família”.

    Tempos depois, seu pai o procurou para

    uma “reconciliação” e propôs-se, inclusive, a

    financiar a ida do filho para o Rio de Janeiro

    10

       B   e   b   e   l ,   g   a   r   o   t   a   p   r   o   p   a   g   a   n   d   a ,   1   9   6   7

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    7/31

    12

     Paulo José é pai de quatro filhos, três dos

    quais enveredaram pela vida artística. Entre

    as suas companheiras, contou sempre com

    mulheres fortes e também envolvidas com o

    meio artístico. Durante catorze anos, foi ca-

    sado com a atriz Dina Sfat, com quem teve as

    filhas Ana, Clara e Bel Kutner. Em 1979, nas-

    ceu Paulo Henrique Caruso de Souza, filho de

    Paulo José com a atriz Beth Caruso. No início

    dos anos de 1980, casou com a atriz e direto-ra Carla Camurati. Em 1989, durante a peça

    Delicadas torturas, se envolveu com a atriz

    Zezé Polessa, com quem, entre idas e vindas,

    viveu por sete anos. Por fim, conheceu a figu-

    rinista, cenógrafa e diretora Kika Lopes, com

    quem está casado desde 1999.

    Em 1992, após uma estafa causada por

    36 horas ininterruptas de trabalho em uma

    ilha de edição, Paulo José foi diagnostica-

    do com o mal de Parkinson. Essa doença

    neurológica crônica e irreversível é cau-

    sada pela falta de um neurotransmissor, e

    provoca enrijecimento muscular, tremores,

    perda na capacidade da coordenação mo-

    tora e da potência vocal. Desde a desco-

    berta do diagnóstico, Paulo modificou a sua

    rotina para enfrentar a doença e se tornou

    uma espécie de referência pública sobre o

    Parkinson. “Tive muitos momentos de de-

    pressão. Houve um tempo que tinha medo de

    dormir e não acordar mais. Às vezes, tenho

    medo de morrer. Não estou num daqueles

    momentos de depressão profunda, mas tam-

    pouco este é um período fácil. Quando acordo,

    tenho de fazer uma escolha. Decido sair da

    cama. Hoje será um dia melhor. Ao me deitar,

    não penso se o dia foi mesmo melhor ou não.

    Olho para frente e penso: ‘amanhã será um

    outro dia’. Assim, sigo trabalhando, vivendo

    dia por dia”.

    Texto originalmente publicado

    no Caderno VCV – Homenageado

    Nacional , publicação do Festival

    De Vitória – 21º Vitória Cine Vídeo,

    evento realizado em setembro de

    2014 em Vitória (ES) pela Galpão

    Produções e pelo Instituto Brasil

    de Cultura e Arte.

    Paulo Gois Bastos é jornalista

    13

    Delicadas torturas, 1988

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    8/31

    14 15

    “Só me senti realmente ator no cinema. Foi o

    único lugar em que optei por ser cúmplice dos

    diretores e não meter a minha colher, dar palpi-

    te sobre os filmes e personagens. Ao contrário,

    sempre preferi deixar o julgamento para os di-

    retores e assim poder me sentir livre para criar

    o personagem.

    Como todas as pessoas da minha geração,

    cresci com uma ligação maravilhosa com o ci-

    nema, claro! Era uma coisa sagrada, extraordi-

    nária. Todos os domingos havia um faroeste na

    matinê. Nos sábados, víamos episódios dos se-

    riados, como Flash Gordon contra o planeta Mongo 

    e O homem-cobra, que duravam de dois a três

    meses. Ir ao cinema era um programa excepcio-

    nal, não uma coisa trivial como ver televisão.

    Nós morávamos atrás do Cinema Avenida.Só um muro nos separava dele. Quando o fil-

    me chegava a Bagé, era muito comum ele estar

    meio baleado, bombardeado, e arrebentar no

    meio da sessão. O operador emendava o filme

    e para isso jogava fora dois ou três fotogra-

    mas no lixo, no quintal do cinema. Eu e meus

    irmãos pulávamos o muro e catávamos o que

    chamávamos de ‘ceninhas’. Era fantástico po-

    der ver de fato, constatar que existiam mesmo

    o Gordo e o Magro, o Frankenstein contra o

    Lobisomem, o James Cagney, Bogart, guardar

    os personagens e os atores como r etratinhos

    de pessoas queridas.

    Às vezes, de noite, quando os meus pais

    saíam para ir ao Avenida, abria a janela para

    ouvir o som que vinha do cinema. Ficava ouvin-

    do o filme, que era em inglês, a sonoplastia, e

    este som significava a ausência dos meus pais.

    Quando este acabava, sabia que em cinco, dez

    minutos no máximo, pois bastava dar a volta na

    quadra, meus pais estariam em casa de novo.

    Havia uma relação afetiva com meus pais dada

    pela máquina de projeção do cinema.

    No verão, a porta dos fundos do cinema

    costumava ficar aberta. Eu e meus irmãos sen-

    távamos no muro e víamos um grande pedaço

    da tela, imagens em movimento, ao contrário,

    pelo avesso. Era uma sensação maravilhosa,

    emocionante, a de ver o cinema por uma porta

    entreaberta, cinema roubado.Em Bagé não havia problema de censura,

    então com dez anos vi filmes que jamais pode-

    ria ter visto, como Frankenstein. Filmes de sexo

    não passavam, o próprio circuito de cinema era

    cheio de pudor, familiar. Os filmes da Pelmex,

    porém, mexiam com a libido: María Antonieta

    Pons, rumbeiras sacudindo a bunda e com as

    coxas de fora. Nós íamos ver por causa das mu-

    lheres com pouca roupa. Não perdíamos tam-

    bém os filmes do Cantinflas, nem alguns argen-

    tinos ótimos, com a Libertad Lamarque.

    Quando fui para Porto Alegre, entrei ime-

    diatamente para o Clube do Cine ma criado por P.

    a lanternamágica    P   A   U   L

       O   J   O   S    É

    Todas as mulheres do mundo, 1966

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    9/31

    16 17

    F. Gastal, um apaixonado, que tinha os melhor es

    arquivos sobre filmes no Brasil. Todo domingo

    havia uma oficina de filmes clássicos, europeus,

    porque o Gastal não gostava dos americanos,

    muito comerciais: Robert Bresson, René Clair,

    Jean Cocteau, De Sica, Bergman, Rossellini.

    Havia um debate, e passávamos a semana intei-

    ra discutindo o que havíamos visto.

    Meu primeiro grande tesão no cinema foi

    a Silvana Mangano em Riso amaro, um filme

    de 1949 do Giuseppe de Santis, em que ela é

    uma camponesa que planta arroz e aparece

    com as calças enroladas, com as coxonas de

    fora. Nossa, era um frisson enorme. Outra que

    me provocou um desejo enorme foi a Harriet

    Andersson, irmã da Bibi, em Mônica e o desejo,

    do Bergman, um filme para lá de sensual.

    Tudo isso é só para dizer que a minha rela-

    ção com o cinema foi sempre muito misteriosa,

    prazerosa, emocional. Mas nunca havia passa-

    do pela minha cabeça ser um ator de cinema.

    Na verdade, era tão remoto que nem pensava

    sobre isso. Teatro havia sido absolutamente na-

    tural na minha vida, uma continuidade do que

    fazia quando criança, que não faz outra coisa a

    não ser teatralizar a vida. Cinema, não, era uma

    coisa mágica!

    Um dia o Joaquim Pedro de Andrade con-

    vidou o Fauzi Arap, que era meu companheiro

    do Teatro de Arena, para fazer O padre e a moça.

    Foi nesse momento que descobri que o cinema

    estava mais perto de mim do que imaginava.

    Fiquei morto de inveja do Fauzi. No elenco do fil-

    me, estavam também Helena Ignez, Luiz Jasmin

    e Mário Lago, e não tinha papel para mim mes-

    mo. Quando eles estavam para começar as

    filmagens, o Luiz Jasmin pegou uma hepatite,

    precisava ficar dois meses parado e abandonou

    as filmagens. E ficaram sem o padre. Começou

    a maior correria, o Joaquim Pedro pensando em

    nomes, aí a Sarah, mulher dele, lembrou-se de

    mim em  A mandrágora. Não havia tempo a per-

    der. Sem fazer teste, sem conhecer o diretor, lá

    fui eu para as filmagens, de um dia para o outro.

    Quando já estava no avião que me levaria do Rio

    até Diamantina foi que vi a extensão do perigo.

    De Diamantina seguiria, numa viatura da polí-

    cia de Minas, até São Gonçalo do Rio das Pedras,

    uma cidadezinha.

    Foi uma vivência estranhíssima numa ci-

    dade morta do século XIX, São Gonçalo do Rio

    das Pedras, habitada por pessoas semimortas.

    Restos humanos abandonados naquele lugar.

    Ficamos meses na pequena cidadezinha de

    Minas Gerais, na qual o comércio, a delegacia e

    as duas igrejas estavam fechadas. Não havia luz,

    nem água. Os primeiros vasos sanitários foram

    montados pela produção. A cidade inteira foi vi-

    sitar as privadas. Não havia na cidade nenhuma

    pessoa jovem, só homens e mulheres muito ve-

    lhas, todos com bócio por falta de vitamina A e

    D, papudos. Quinze dias depois, elas até tinham

    seus encantos; dois meses após, até que eram

    bonitinhos aqueles papinhos. Com a convivên-

    cia, a gente foi se acostumando com aquela

    gente. Tinha um velho, apelidado de Borba Gato,

    que tinha acromegalia, gigantismo, e, rezava

    a lenda, havia sido caçador de diamantes. Ele

    entrou no filme, uma pessoa interessantíssima.

    Hoje a cidade virou turística, um alemão fez lá

    uma grande pousada, e como ela é muito bo-

    nita, cortada pelo Rio Jequitinhonha, com seu

    casario colonial, suas duas igrejas matrizes, vi-

    rou uma atração, assim como Milho Verde. Ela

    renasceu, ficou chique. Fiquei de voltar lá, mas

    ainda não fui.

    Quando nós chegamos, em 1965, porém, a

    cidade estava vazia. Eu ficava de batina o dia

    todo e, quando não estava filmando, ia para a

    igreja tocar órgão. As mulheres me pediam a

    bênção. Mesmo sabendo que não era padre

    de verdade, elas preferiam acreditar na ficção.

    Quando passava, elas estendiam a mão e eu as

    abençoava.

    O filme foi feito de forma lenta. Estávamos

    a somente 30 km de Diamantina, mas não ha-

    via estrada, só um imenso pedregal, que se

    podia subir ou descer apenas de jipe. Na folga

    semanal, um jipe do Exército nos levava para

    Diamantina. Aí era uma maravilha. Diamantina

    era uma cidadona, tinha até sorvete e telefone

    para a gente ligar para casa. Foi uma experiên-

    cia difícil, mas muito mágica.

    Foi excelente ter começado com o Joaquim

    Pedro. Ele me colocou dentro de uma relação

    extremamente rigorosa com o cinema e me

    ensinou, basicamente, a economia de meios

    expressivos. Ele havia sido aluno do Robert

    Bresson no IDHEC, Instituto de Altos Estudos

    Cinematográficos, em Paris, que era extrema-

    mente rigoroso. Ele não queria que o ator ex-

    pressasse absolutamente nada, pois, para o

    Bresson, era bem mais importante a execução

    da ação física, pois através dela é que os senti-

    mentos seriam entendidos, e não através de um

    close-up emocionado, uma expressão particular

    de sentimento ampliada. O padre e a moça  foi

    inspirado pelo Diário de um pároco de aldeia, um

    livro do Georges Bernanos que o Bresson fil-

    mou em 1951. Joaquim viu o p adre do poema do

    Drummond de forma semelhante ao padre de

    aldeia do Bresson, e a partir dele resolveu con-

    tar uma história de repressão, um negro amor

    de rendas brancas, algo quase trágico, porque,

    no final da história, as mulheres que atacavam

    o padre por ele ter saído com a moça viravam

    umas fúrias gregas que destroçavam o herói e

    a heroína.

    O rigor da direção do Joaquim era absoluto.

    Ele usava muito o recurso do sentimento subs-

    tituto, que dava a intenção do momento sem ser

    necessariamente o sentimento da cena. O padre,

    por exemplo, estava angustiado em determina-

    do momento do filme e saía caminhando pela

    cidade, onde encontrava o farmacêutico, que,

    completamente bêbado e também apaixonado

    pela moça, começava a escarnecer dele. E le não

    dizia absolutamente nada, resistia à pr ovocação,

    porque tinha um conflito íntimo bem mais grave

    do que responder às tolices do bêbado, se igua-

    lar ao rival. O importante é que devia se sentir

    nele um estado de grande intensidade interior,

    de um conflito íntimo, visível, talvez, através dos

    O padre e a moça, 1965

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    10/31

    18 19

    olhos. O Joaquim me sugeriu que eu fizesse a

    cena por substituição, sem levar o sentimento

    do personagem, mas sim de alguém que estava

    lidando internamente com algo que lhe escapa-

    va. ‘Faça a cena tentando se lembrar de um po-

    ema’ – me pediu. E fiz toda ela tendo em minha

    cabeça um poema do Drummond que não sabia

    bem de cor, e precisava procurar dentro de mim

    as palavras, as rimas: De tudo ficou um pouco/

    do teu riso... pausa..... precisava pensar... fica um

    pouco do teu queixo/ no queixo de tua filha. E fica-

    va tentando lembrar com dificuldade o poema do

    Drummond. O resultado que se alcançou na tela

    foi o desejado pelo Joaquim, um cara intensa-

    mente interiorizado. Não vazio, morava alguém

    dentro dele, mas ele era totalmente distante da-

    quela circunstância que o envolvia no momento.

    Essa ideia da substituição foi uma lição

    que aprendi para toda a vida e levei pela minha

    carreira adiante no cinema. Não é preciso mos-

    trar toda a carga psicológica do personagem

    na tela. O ator tem que ser material de ação.

    Ele é muito mais significante do que significa-

    do. Um significante aberto para que os espec-

    tadores coloquem significações variadas nele.

    Não se pode fechar os sentimentos. Isso é uma

    qualidade do cinema.

    Para mim foi um exercício maravilhoso,

    porque no teatro o ator tem toda a expressão,

    além de ser obrigado a ampliar a forma. Ele pre-

    cisa ser visto e ouvido por toda a plateia, precisa

    ter projeção de voz e intensidade corporal, um

    desenho corporal ampliado. O cinema, ao con-

    trário, trabalha com a microrrepresentação,

    porque é a câmera que chega perto; se ela quer

    mostrar o seu interior, ela dá um close-up, che-

    ga bem perto. Então, depois dessa experiência

    com o Joaquim, não me preocupei mais no cine-

    ma em ser expressivo. Trabalhei a partir disso

    muito mais com a impressão. Impressionado

    pelo personagem e pela situação, mas sem a

    intenção de expressar nada. A câmera é que vai

    transformar esta minha impressão em expres-

    são. Não tento nunca traduzir isto expressiva-

    mente para a câmera, para que não soe falso,

    fique superatuado.

    Comecei no cinema com uma pessoa rigoro-

    sa, exata na relação da câmera, dos elementos

    expressivos do cinema, com o que ele queria di-

    zer em cada momento. O Joaquim sabia também

    tudo sobre as lentes, aberturas focais, conhecia

    bem a técnica – ele havia estudado na mesma

    escola por onde haviam passado o Polanski, o

    Ruy Guerra, escola que formou grandes cineas-

    tas. Foi importante ter iniciado a minha carreira

    desta forma, entendendo que não se deve lidar

    com o cinema levianamente. Pode-se lidar com

    humor, alegria, prazer, mas jamais com levian-

    dade. Porque, quando se coloca uma câmera no

    lugar, ela está lá para a eternidade, aquele pla-

    no ficará fixado para sempre. Não precisa ser

    solene e grave, mas há que ser intenso!

    E, como ator, há que ser ainda modesto.

    Não se pode ceder ao exibicionismo. É preciso

    sempre dar visibilidade ao personagem e es-

    conder o ator. Vejo muitos atores no cinema que

    levam os vícios da própria televisão e que se so-

    brepõem aos personagens. E o cinema amplia

    a falsidade, agiganta a impostura. A pequena

    impostura torna-se enorme por causa da tela.

    Na época de O padre e a moça, já estava

    morando no Rio, pois tinha vindo com o Arena

    para a montagem de A mandrágora. Logo depois,

    dirigi Carnaval para principiantes, do Domingos

    de Oliveira, Flávio Migliaccio e Eduardo Prado.

    Eu já gostava do Domingos e ficamos re almente

    amigos nessa montagem. Logo depois que vol-

    tei para São Paulo, ele me convidou para fazer

    um filme dele: Todas as mulheres do mundo.

    Estava feita a polêmica. Quando aceitei fa-

    zer O padre e a moça, fui razoavelmente criticado

    por participar de um filme politicamente incor-

    reto; afinal, segundo muitos, não era o momen-

    to de falar do amor de um padre do interior. O

    pessoal da UNE prometeu, inclusive, fazer uma

    algazarra, uma confusão, na primeira sessão

    do filme. Fomos avisados de que iam jogar pó-

    de-mico, bomba de gás sulfídrico, aquela com

    cheiro de ovo podre, para acabar com a sessão.

    Foi meio tenso, mas nada aconteceu, o filme co-

    meçou a ganhar prêmios, e a discussão morreu.

    Mas, de repente, eu queria fazer uma come-

    diazinha carioca, de um cara que jamais havia

    feito cinema. Devia estar louco. Uma historinha

    de amor numa hora dessas? As pessoas mais

    ligadas a mim insistiam que não devia fazer o

    filme. Mas gostava do Domingos, amava o ro-

    teiro e a ideia de fazer o filme e contrariei todo

    mundo. Fui contra todas as opiniões dos meus

    amigos, pedi uma licença no Arena de São Paulo,

    vim para o Rio de Janeiro e fiz o filme. A intuiç ão

    me levou a fazer Todas as mulheres do mundo. E

    foi uma obra definitiva para mim. Mudou minha

    vida. Junto com O padre e a moça, me orientou

    no caminho de ser um ator de cinema.

    Embora seja uma pessoa pacífica, que, apa-

    rentemente, faz concessões, no fundo só faço

    aquilo que quero fazer. A Dina era bem diferen-

    te de mim, era ‘murro em ponta de faca’, batia

    de frente, gritava, esperneava. Eu sempre comi

    ‘mingau quente pelas beir adas’, sem impor muito

    a minha vontade, aparentemente. As coisas que

    não quis fazer, me tornei tão relapso com rela-

    ção a elas, que acabaram tirando-as de mim:

    ‘Bem, me dá isso, você não sabe fazer!’. Sempre

    fui meio índio nesse sentido. A dissimulação dos

    vencidos. Existe até uma tese sobre isso, sobre

    os índios da América Espanhola: se não é possí-

    vel fazer frente ao invasor, torne-se inútil para

    ele. Aguente algumas chibatadas, mas acabará

    alcançando a liberdade. Trouxeram os negros

    da África porque eles eram mais interessantes,

    mais devotos; os índios, em seu habitat , manti-

    nham as suas pertinências. Com a sua preguiça,

    seus porres de cachaça, tequila, pisco, faziam-

    se de indolentes e enganavam os vencidos.

    Eu tenho um pouco desse negócio de dis-

    simulação do vencido. Não dou para fazer isso,

    não tenho muita capacidade, me atrapalho com

    isso. Então acabam me tirando o que não que-

    ro fazer, e as coisas que quero fazer, aí as faço

    com muito entusiasmo. E me livro dos abacaxis,

    sem precisar bater de frente. Já me acostumei

    a ouvir das pessoas isto: ‘Você parece que não

    tem vontade própria, mas no fim você faz o que

    quer’. É isso aí, faço o que quero, só que deva-

    garzinho. Acho que também tenho um pouco o

    rabo virado para a lua. Frequentemente estou

    no lugar certo, na hora certa. Talvez porque não

    tenha nenhum projeto pessoal, determinação,

    porque tenha disponibilidade. Estou sempre

    mais aberto, e acabo recebendo mais coisas in-

    teressantes do que alguém que determina um

    caminho. Digamos que, quando viajo, me deixo

    ir por onde estou andando e aceito os desvios

    do próprio caminho. E assim descubro coisas

    extraordinárias. Essa é a diferença entre o tu-

    rista e o viajante. O turista é aquele que viaja

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    11/31

    20 21

    para se esquecer dele próprio, para se perder

    dele próprio. Reserva determinados hotéis, o

    ônibus sai toda manhã. É interessantíssimo, ele

    vai curtir a viagem mostrando os slides na volta.

    O viajante é aquele que viaja para se encontrar,

    para se descobrir, se alterar, se modificar. Sou

    um viajante na vida, não um turista, e por isso

    grandes oportunidades apareceram. E fui em

    frente, mesmo contra a opinião de todos. Todas

    as mulheres do mundo é o grande exemplo.

    Domingos era muito namorador, já havia

    sido casado com a Leila Diniz e escreveu o ro-

    teiro do filme quando estavam separados. O

    filme, digamos, foi uma tentativa de reconquis-

    ta, ou pelo menos um meio de esgotar todas as

    possibilidades, de cantar o seu amor por ela e

    transformar a separação em poesia. Não sei por

    que ele me escolheu para ser o alter ego dele.

    Talvez porque eu fosse mais bonitinho. A con-

    vivência com a Leila foi fantástica. Ela era linda,

    não segundo os padrões de beleza da Barbie,

    da mulher sarada, siliconizada, produzida em

    série. Tinha peitos grandes, canela fina para os

    quadris largos, era dentucinha, deliciosamente

    imperfeita. Linda. Quando sorria, franzia a tes-

    ta de um jeito especial, felino. Ou então soltava

    aquela gargalhada sonora, aberta, contagiante.

    O filme firmou para a eternidade a Leila como o

    mito da mulher dos anos 60.

    Todas as mulheres do mundo era para ser

    um média-metragem; o outro média seria Edu,

    coração de ouro. No primeiro episódio, Paulo

    contava a sua vida para Edu e, no segundo, Edu

    é que narrava a sua trajetória. Inventamos tan-

    to, improvisamos, que Todas as mulheres do

    mundo  virou um longa e a segunda parte caiu

    fora, tornando-se outro filme tempos depois. É

    um filme que adoro até hoje: autêntico, hones-

    to, verdadeiro, sincero, amoroso, apaixonado,

    agradável, bem-humorado, de bem com a vida,

    a favor das coisas. O Cinema Novo não tinha hu-

    mor, era meio iracundo, angry generation  ingle-

    sa. O Domingos fez uma comédia, carioca como

    ele e deliciosamente verdadeira. Uma coisa

    muito importante, que não só caracteriza Todas

    as mulheres do mundo, mas diversos filmes

    dos anos 60, é que não havia figurino, direção

    de arte, cenário, era tudo feito de forma meiocaseira. As roupas eram dos próprios atores,

    cada um levava as suas. Os cenários eram as

    casas das pessoas. Os filmes dos anos 60 têm

    assim uma qualidade, além das próprias, a de

    serem excelentes documentários de uma épo-

    ca. Podem ser vistos através deles os costu-

    mes, o modo de vida, a forma de agir, de vestir,

    de atuar, das pessoas se relacionarem típicos

    da época; sem mediação, sem filtro de limpeza,

    sem melhoria, upgrade  no personagem ou em

    sua casa. Se você pegar as regras do Dogma

    95, verá que estava tudo lá no cinema brasileiro

    dos anos 60, no Cinema Novo: câmera na mão,

    pouca ou nenhuma iluminação, parcos recur-

    sos, cenários reais, sem maquiagem no espaço

    físico, mínimo de edição. Trabalhava-se bas-

    tante em plano sequência, às vezes uma cena

    inteira em um plano só.

    O Domingos tinha sido assistente em um

    curta-metragem do Joaquim Pedro, Couro de

    gato, e os dois tinham a mesma escola, embo-

    ra fizessem filmes completamente diferentes.

    Domingos também queria o mínimo de repre-

    sentação. Para eles, os atores só deviam fazer

    o que parecesse espontaneamente verdadeiro.

    Todas as mulheres do mundo , por isso mesmo, é

    exemplar, também, em termos de interpretação,

    que, anteriormente, digamos, era mais exterio-

    rizada. Não são atores, mas pessoas vivendo. O

    que o espectador capta é isto: a vida de forma

    muito espontânea. Isso não quer dizer natura-

    lismo bobo, que é sinônimo de boca mole, como

    se vê na televisão. É uma interpretação que con-

    fia no poder de revelação da câmera, que dá um

    close no seu rosto e o público sabe que alguém

    mora ali dentro.

    Para mim não foi tão difícil porque já ha-via tido a experiência em O padre e a moça  e

    também porque vinha do Arena, onde se usa-

    va o método Stanislavski, que era também de

    microrrepresentação, e que buscava parecer

    verdadeiro e menos teatral. Era uma luta con-

    tra o melodrama, contra o teatro impostado. Foi

    o método usado pelo Actor´s Studio, por onde

    passaram todos os grandes atores americanos,

    e se mostrou perfeito para o cinema.

    No Arena era importante trabalhar a inte-

    riorização, a ação pequena. Trabalhávamos em

    um teatro de apenas 200 lugares, de forma cir-

    cular, com espectadores por todos os lados, al-

    guns a meio metro, e não havia a possibilidade

    de fazer um trabalho estilizado, forte. Além do

    mais, eram peças realistas. Não queríamos ter

    personagens em cena, mas pessoas vivendo

    aquela situação. E você, por uma dessas sortes

    mágicas do teatro, teve a possibilidade de ficar

    do lado delas, como que participando de um atomuito íntimo. A interpretação no Arena não po-

    dia ser grande, tinha que ter o tamanho certo, o

    tamanho da vida.

    No caso de Todas as mulheres do mundo, o

    diálogo era tão espontâneo que o texto era um

    grande indicador do tipo de interpretação que

    se devia ter. A não ser que se quisesse estragar

    o filme, claro, e inventasse uma maneira impos-

    tada de falar, mas não foi o caso. E o Stanislavski

    ajudou e muito!

    Fui o alter ego de Walter Hugo Khoury tam-

    bém, um de seus Marcelos, em  As amorosas, de

    1967. Acho que as pessoas gostavam de se pro-

     jetar em mim e de que eu as projetasse, sei lá.

    Era empatia. O Khoury sab ia fazer cinema, tinha

    uma câmera vigorosa, depois ficou um pouco

    pornô, pornô chique. Ele me pedia para ser eco-

    nômico, com pouca expressão e mobilidade. Ao

    contrário do Domingos, que usava a câmera na

    mão, o Khoury construía rigorosamente os seu s

    planos, e era preciso se colocar dentro deles

    com todo o cuidado, para não atrapalhar a com-

    posição. Era um personagem com um drama

    existencial enorme, com nóia de tudo, e alguém

    assim desencantado não acredita muito naquilo

    que está dizendo. O recurso de interpretação

    Edu, coração de ouro, 1967

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    12/31

    22

    as máscaras e

    o absurdo:   L   U    Í   S   A   L   B   E   R

       T   O   R   O   C   H   A   M   E   L   O

    Paulo José em “As amorosas” e “O homem nu”

    era dizer uma coisa, mas pensar em outra; na

    verdade, não investir demasiado no discurso,

    pois o que importava era o que não estava sen-

    do dito. O Peter Coyote me contou, na época das

    filmagens de  A grande arte, do Walter Salles,

    que dizia ‘espero que seja a última vez que a

    gente se encontre’ pensando ‘será que deixei o

    gás ligado em casa?’. É o understatement , uma

    sub-representação, o contrário do overacting.

    Às vezes os atores no cinema americano exage-

    ram um pouco nisso e se tornam uma máscara

    sem expressão, mas é um recurso interessante.

    Nos anos 60, fiz ainda A vida provisória, com

    o Maurício Gomes Leite, que era um grande crí-

    tico do Estado de Minas e dirigiu esse filme ab-

    solutamente nouvelle vague. Revi o filme há uns

    três anos e achei bom. Tinha um clima pós-gol-

    pe, o começo de Brasília, as cidades-satélites,

    aquela coisa desértica. Há um tom documental

    muito interessante. O Maurício só fez esse único

    filme, penhorou a casa dos pais para conseguir

    o dinheiro, nunca conseguiu pagar a hipoteca e

    perdeu tudo. Depois se meteu com um esque-

    ma de Loteria Esportiva, e até ganhou algum

    dinheiro, tentando fazer o seu segundo filme.

    Jamais conseguiu: mudou-se para Paris, casou-

    se e morreu lá.

    O Maurício ficou devendo um dinheiro do fil-

    me para mim e para a Dina e prometeu que nos

    pagaria na Europa. Marcamos um encontro em

    Paris, mas ele explicou que ainda não tinha, masque havia um distribuidor interessado no nosso

    filme. E nós estávamos contando com a grana,

    mas adorávamos o Maurício, que era uma pes-

    soa agradável mesmo. Uma noite fomos jantar

     juntos e ele, qu e era um homem finíssimo, fez

    questão de comer o antepasto, o primeiro prato,

    o segundo, os queijos. E nós dividimos uma mas-

    sa. Quando ele ameaçou pedir a sobremesa, aí foi

    demais. ‘Sobremesa, não, Maurício! Sobremesa,

    não! Nós estamos num miserê danado, contan-

    do centavos para comer um prato de massa, e

    você vem exibir essa sua riqueza p ara a gente. E

    não nos paga. Sobremesa, não!’. Parece coisa da

    Dina, mas fui eu que falei, estávamos totalmen-

    te afinados nessa questão. O Maurício ficou tão

    sem graça que desistiu do doce. Mas ele era um

    gentleman, e amava o cinema, como nós...”

    Texto publicado originalmente

    no livro de Tânia Carvalho Paulo

    José - memórias substantivas 

    (uma coedição Imprensa

    Oficial do Estado de São Paulo

    | Cultura – Fundação Padre

    Anchieta, 2004, São Paulo) e

    editado por Paulo José para o

    catálogo desta mostra.

    23

    Marcelo, personagem central do filme  As amo-

    rosas, de Walter Hugo Khouri, é um jovem uni-

    versitário de seus vinte e poucos anos. Sílvio

    Proença, protagonista de O homem nu, dirigido

    por Roberto Santos, é um professor especialis-

    ta em folclore, com idade entre 30 e 40 anos. As

    amorosas foi filmado em 1967; O homem nu,  no

    ano seguinte. Para interpretar esses dois pa-

    péis, o mesmo ator: Paulo José.

    A capacidade de viver, com a mesma desen-

    voltura, tanto um jovem angustiado quanto um

    metódico professor já maduro, sem recorrer

    a caracterizações excessivamente marcadas

    e em tão pouco tempo entre um filme e outro,

    indica não só a extraordinária flexibilidade de

    Paulo José na criação de tipos diversos, como

    atesta a sutileza de seus recursos minimalistas

    na construção de personagens.

    A começar pelos elementos visuais exterio-

    res mais básicos. Para compor o jovem Mar celo,

    bastaram um casaco folgado, a calça de veludo

    listrada em relevo, cinto e sapatos da moda e

    o cabelo em casual desalinho. Em  As amorosas,

    Marcelo é um despossuído. Quase nada ostenta,

    a não ser a sua própria arrogância varada pelo

    mal-estar. Já os óculos de aros escuros e os ca-

    belos rigorosamente penteados para trás com-

    binam com o conjunto terno-e-gravata-pasta-

    debaixo-do-braço típico de um professor à moda

    antiga, como é Sílvio Proença em O homem nu.

    Se aqui alguns truques caricaturais foram ne-

    cessários para marcar os traços mais evide ntes

    do personagem, isso não durará muito tempo: a

    partir da segunda metade do filme, Sílvio ficará

    nu, e do figurino anterior o ator só continuará a

    contar com os óculos e o relógio.

    Mas como em cinema a construção de per-

    sonagens nunca é resultado exclusivo do tra-

    balho do ator, sendo também a forma como o

    ator é enquadrado, seguido pela câmera e até

    mesmo posto para fora de quadro, há outros as-

    pectos relativos a esses dois personagens tão

    diversos e contemporâneos, Marcelo e Sílvio

    Proença, que merecem ser destacados.

     A vida provisória , 1968

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    13/31

    24 25

    Em As amorosas, por exemplo, o que primei-

    ro salta aos olhos do espectador é a máscara na-

    tural, o rosto de Paulo José, notadamente seus

    grandes olhos tristes. Em contrapartida, pouco

    lembramos de seus braços, principalmente de

    suas mãos. Isso é algo tão marcante a ponto de

    podermos dizer que Marcelo é um personagem

    que sem dúvida possui um rosto, mas talvez não

    possua mãos. Sim, há dois ou três closes  das

    mãos de Paulo José acariciando o rosto de Lilian

    Lemmertz ou segurando suavemente as mãos

    de Anecy Rocha. Mas são apenas inversões do

    mesmo problema: trata-se agora de mãos sem

    um rosto ou, melhor dizendo, de mãos sem um

    corpo. Isso é coerente com o personagem idea-

    lizado por Walter Hugo Khouri, isto é, um jovem

    que não se possui a si mesmo, p ara lembrarmos

    de Cesare Pavese em seu diário O ofício de vi-

    ver . Fragmentado, simbolicamente desprovido

    de suas próprias mãos, Marcelo vê escaparem

    diante de si as pessoas que cruzam seu caminho,

    os amores, o trabalho, a sociedade, a própria

    vida que segue e que parece tão inexplicável e

    indeterminada. É o rosto de Marcelo que passa a

    ser, assim, o imã de todas as expectativas, frus-

    trações, decisões e sobretudo interrogações.

    Em O homem nu, a sensação é oposta: ao fi-

    nal da projeção, temos uma lembrança confusa

    e indistinta do rosto de Sílvio Proença. Na pri-

    meira parte do filme, suas expressões faciais

    são de certa maneira obstruídas pela máscara

    artificial formada pelos cabelos gomalinados pu-

    xados para trás e os óculos de aros escuros. Na

    segunda metade do filme, predomina a nudez

    castigada do professor, e os planos ressaltam

    ora o corpo inteiro, ora as pernas, os braços, asmãos, sendo a face apenas um complemento

    desse conjunto, e não o centro das atençõe s. Tal

    como nas comédias de perseguição da época

    do cinema mudo, o que interessa são os cor-

    pos que se movimentam pelos cenários, e não

    a psicologia do rosto humano. Mas ainda assim,

    não deixa de ser significativo que o corpo nu de

    Sílvio Proença também seja filmado em peda-

    ços. Tanto quanto o jovem Marcelo de  As amo-

    rosas, o maduro professor deixa de se possuir a

    si mesmo. Depois que um incidente o priva das

    roupas, a vida até então regrada de Proença es-

    capa de seu próprio controle.

    No fundo, tanto as mãos ausentes deMarcelo quanto o rosto fugidio de Sílvio Proença

    apontam para um mesmo tema, que Walter Hugo

    Khouri em As amorosas e Roberto Santos em O

    homem nu procuraram analisar de forma bem

    diversa: o tema da alienação de personagens

    da classe média, um problema, aliás, em total

    evidência nos anos 1967-68. Assim, Marcelo e

    Sílvio Proença não deixam d e ser, cada um à sua

    maneira, diferentes tipos de personagens alie-

    nados – e, também, narcisistas.

    Marcelo é o alter ego  do próprio diretor

    Walter Hugo Khouri. As belas mulheres que

    passam por sua vida, entre elas a universitá-

    ria militante, interpretada por Anecy Rocha,

    e a atriz de TV medíocre e vulgar, vivida por

    Jacqueline Myrna, não são capazes de fazer com

    que ele desvie os olhos de si. No pequeno quar-

    to em que vive, seu nome está escrito na pare-

    de, repetidas vezes. A relação de caráter quase

    incestuoso que mantém com sua irmã (Lilian

    Lemmertz) também espelha o narcisismo do

    personagem. Ainda assim, há algo nele que oimpele para a vida, que o arrasta para fora de

    si. Mas se eventualmente ele se deixa arrastar,

    é para ser punido, para sucumbir sob o peso de

    sua própria culpa. O principal aspecto narcísico

    de um personagem como Marcelo, contudo, não

    se resume apenas às suas relações amorosas,

    mas sobretudo ao permanente estado de des-

    conforto que o caracteriza: no fundo, Marcelo

    deseja não compactuar com a sociedade na

    qual está inserido. As instituições (o trabalho,

    a família, a universidade) o oprimem, ele se vê

    impelido a cortar relações com qualquer tipo

    de compromisso. Mas na medida em que de-

    seja ardentemente essa independência, sofreporque percebe que também é, até a raiz, de-

    pendente dessas mesmas instituições. Por isso,

    só admite ligações duradouras com a própria

    irmã, que, além de ser sua confidente, sempre

    lhe empresta algum dinheiro para sobreviver. O

    relacionamento com a irmã tem a vantagem de

    garantir a Marcelo o mínimo necessário ao seu

    sustento, ao mesmo tempo em que o mantém

    protegido, já que pressupõe a permanente irre-

    alização dos desejos mais profundos. Marcelo é,

    por isso mesmo, um eterno deprimido. Seu sa-

    grado espelho d’água será sempre perturbado

    O homem nu, 1968

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    14/31

    26 27

    pelo vento ou pelas pedras que o atingem, tor-

    nando turva a imagem de seu rosto. A tragédia

    de Marcelo é exatamente esta: prisioneiro de si

    mesmo, nada pode fazer a não ser amargar o

    tempo de sua condenação. Desviar os olhos do

    espelho seria admitir a própria derrota.

    Já Roberto Santos, em O homem nu, parece

    se comprazer em ver o narcisista Sílvio Proença

    sofrer. Em que consiste o narcisismo do pro-

    fessor? Fundamentalmente em seu elitismo,expresso no acordo tácito que ele tem com as

    instituições (isto é, com o Estado repressor), já

    que são elas que lhe garantem a vida tranquila e

    reclusa em sua casa na Zona Sul carioca. Sílvio

    Proença é um folclorista. Ora, para um Estado

    autoritário, o folclore é a manifestação mais

    adequada à ideia de cultura como patrimônio, e

    é a essa ideia que Sílvio Proença acriticamen-

    te parece servir. Ele é, portanto, um intelectual

    integrado que procura proteger as tradições

    culturais do país ao mesmo tempo em que es-

    pera que elas também o protejam. É este o seupecado original: acreditar nas tradições como

    territórios supra-históricos. Entretanto, um

    passo em falso e ele será expulso do paraíso.

    É o que de fato acontece. Por uma série de aca-

    sos, Sílvio Proença se desvia da rota previa-

    mente traçada (ir a São Paulo para participar

    de uma conferência de folclore) e, após uma

    noite de bebedeira, durante a qual revela todo o

    tédio que sente com a vida que leva, acorda na

    cama de Marialva (Esmeralda de Barros), uma

    bela mulata que conhece numa roda de samba.

    A ironia aqui é cruel: enquanto mantinha umarelação distanciada e acadêmica com a “cultura

    popular”, tudo ia bem; mas quando o contato se

    dá no corpo a corpo, essa mesma “cultura po-

    pular” é um perigo desviante. Não por acaso, é

    a partir daí, desse contato corporal/ sexual, que

    tudo desanda na vida de Sílvio. O ridículo inci-

    dente que o deixa nu é apenas o ponto de parti-

    da para sua via crucis. Aquele pacato professor

    que até então se mantinha retraído no conforto

    do seu lar e das sagradas tradições culturais,

    agora vive na pele o confronto entre natureza e

    cultura. Desprovido de suas roupas (e portanto

    de sua própria identidade), lutará contra um

    mundo extremamente hostil. Qualquer ideia desolidariedade é banida. O pesadelo e o absurdo

    se instauram. Sílvio Proença não está apenas

    nu, está desesperadamente só.

    Para dar vida a Marcelo e a Sílvio Proença,

    Paulo José conferiu a ambos um misto de aban-

    dono e agressividade, ódio e tristeza, juventude

    e velhice. Se o jovem universitário e o profes-

    sor folclorista são personagens vivos, é porque

    são ambíguos, insondáveis, indecifráveis. Com

    eles, oscilamos entre a identificação e o dis-

    tanciamento, a simpatia e o desprezo, o cômico

    e o trágico. São raros os atores que possuem

    essa capacidade de criar, com gestos mínimos,

    universos tão particulares. Em  As amorosas 

    e O homem nu, Walter Hugo Khouri e Roberto

    Santos tiveram a sorte de contar com Paulo

    José. Afinal de contas, a escolha não poderia ter

    sido mais acertada. Quem melhor encarnaria o

    absurdo da existência humana, além desse ator

    paradoxal, capaz de gritar tão alto quando em

    silêncio absoluto?

    Luís Alberto Rocha Melo é cineasta, pesquisador eprofessor do curso de Cinema e Audiovisual da UFJF

    O homem nu, 1968

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    15/31

    28 29

    a educação pelapedra

       J   U   L   I   A   N   O   G   O   M   E   S

    Paulo José em “O padre e a moça”

    Uma educação pela pedra: por lições;

    Para aprender da pedra, frequentá-la;

    Captar sua voz inenfática, impessoal

    (pela de dicção ela começa as aulas).

     A lição de moral, sua resistência fria

     Ao que flui e a fluir, a ser maleada;

     A de poética, sua carnadura concreta;

     A de economia, seu adensar-se compacta:

    Lições da pedra (de fora para dentro,

    Cartilha muda), para quem soletrá-la.

    Outra educação pela pedra: no Sertão

    (de dentro para fora, e pré-didática).

    No Sertão a pedra não sabe lecionar,

    E se lecionasse, não ensinaria nada;

    Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,

    Uma pedra de nascença, entranha a alma.

    JOÃO CABRAL DE MELO NETO

    “A educação pela pedra”

    Neste ano, contam-se cinquenta anos do “acon-

    tecimento” O padre e a moça. Nos quatro me-

    ses em que a equipe se isolou na remota São

    Gonçalo do Rio das Pedras, em Minas Gerais,

    no primeiro longa de ficção de Joaquim Pedro,

    na primeira montagem de Eduardo Escorel, em

    uma situação absolutamente peculiar, se deu

    esse filme que habita um espectro dentro da

    história do cinema brasileiro que pouquíssimos

    outros filmes ocupam.

    Só comparável talvez ao Porto das Caixas,

    de Paulo César Saraceni, O Padre e a moça  é

    um dos raros longas de estreia que inventam

    um idioma próprio, que criam consigo suaspróprias regras, formando uma corrente sub-

    terrânea. É um núcleo intimista do Cinema Novo,

    que se liga com uma tradição trágica, uma me-

    tafísica das sensações, em cujo traçado pode-

    mos incluir Oswaldo Goeldi, Clarice Lispector,

    Cornélio Pena, Lúcio Cardoso e Raduan Nassar,

    para citar alguns. E uma parte-chave desse

    acontecimento-filme é a escalação de um ator

    sem experiência em cinema para fazer o papel-

    título, substituindo Luiz Jasmin, que adoece às

    vésperas da filmagem. Este ator é Paulo José.

    O padre e a moça, 1965

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    16/31

    30 31

    signos. Em O padre e a moça, é notável a força

    premonitória com que um dos elementos mais

    significativos das últimas décadas ganha prota-

    gonismo: a nuca do ator, de costas para a câ-

    mera. Como metáfora da opacidade, o Padre

    filmado por trás é a ação dessa força misterio-

    sa e dinâmica, que mais acompanhamos do que

    decodificamos. Característica central de boa

    parte da melhor ficção cinematográfica brasi-

    leira deste século, o manejo da opacidade, na

    interpretação, tem aqui sua pedra fundamental.

    Paulo José é uma massa negra, uma silhueta,

    tornado todo bata. Assim como na fotografia

    de Mário Carneiro, as zonas de preto, de grau

    zero de informação, são transformadas em

    Sem conhecer o roteiro, Paulo chega alguns

    dias depois da equipe à pacata cidade mineira e

    conta que Joaquim Pedro o olha, o examina, dá

    voltas em torno dele, deixando-o inseguro. E as-

    sim começa um dos trabalhos que, como o pró-

    prio filme, é uma das maiores conquistas da his-

    tória dos nossos atores nas telas até hoje. O Padre

    de Paulo José, nesse primeiro passo no cinema,

    dado com maestria e precisão de um veterano,

    coloca em jogo uma espécie de novo paradigma

    para o ator no Brasil. Não por acaso, trata-se deum filme que sofreu grande incompreensão de

    parte da crítica à sua época; e o próprio Joaquim

    Pedro só percebeu o alcance do seu êxito quase

    duas décadas depois, numa retrospectiva de sua

    obra em Roterdã, no final dos anos 70.

    O que faz de O padre e a moça uma obra-pri-

    ma é justamente o perfeito ajuste das partes

    envolvidas. A fotografia gravural  e detalhista

    de Mário Carneiro, a montagem discretamente

    opressiva de Eduardo Escorel, o lirismo cortan-

    te dos temas de Carlos Lyra, o ritmo lentamen-

    te obsessivo impresso por Joaquim Pedro e o

    trabalho do quarteto Paulo José, Helena Ignez,

    Fauzi Arap e Mário Lago formam um mundo

    marcado radicalmente por uma mistura de uma

    discreta exuberância aliada a uma permanente

    força de contenção. Trata-se de um filme em ne-

    gativa, que se concentra em não acontecimen-

    tos, filme que se funda na impossibilidade do

    amor, do erótico, e transforma essa pedra de

    fundação em sua força e seu motor conceitual.

    Diante do impasse erótico latente, como disse

    Rogério Sganzerla num de seus melhores tex-

    tos, “quem sofre é o filme, é a forma do filme” 1.

    1 Sã o Paulo, março/ abril, 1966.

    Dentro dessa poética do negativo, desse

    meticuloso esculpir de sombras que é O padre e

    a moça, Paulo José transforma o conceito do fil-

    me em seu corpo. Pela primeira vez com tal ra-

    dicalidade, um ator de cinema brasileiro se tor-

    na pura opacidade. Paulo aprende com Joaquim

    que o “ator é significante e não significado” e,

    daí, parte em busca de uma intensidade que

    advenha de uma aparente neutralidade. Tendo

    o trabalho de Robert Bresson e seus modelos

    como referência composicional, Joaquim Pedroe Paulo José criam esse Padre que é mais im-

    pressão, obstrução, do que expressão. O que

    espanta é o quanto o filme, em variados níveis,

    consegue construir um “dentro”, uma sensação

    nítida de um interior de que só podemos sen-

    tir sutis sismos e reverberações. À superfície

    chegam signos indecifráveis, que se fazem pre-

    sentes somente na medida mínima de um índice

    desse magma interno.

    Um dos expedientes que dão forma a esse

    conjunto de sensações transmitidas pela rela-

    ção do corpo com a imagem é a maneira como o

    corpo é figurado quase sempre em seu valor de

    conjunto. Os momentos em close  são muitíssi-

    mo pontuais, quase que somente quando o ero-

    tismo atinge seu ponto máximo, como na fuga

    do casal-título, no terço final do filme. Paulo

    imprime a lentidão atormentada, a aparentada

    neutralidade, que é a solução para a expressão

    de represamento afetivo que é o motor do fil-

    me. O papel do ator, que o trabalho de estreia

    de Paulo José já consolida de maneira definiti-

    va, é manejar o enigma, é tornar a opacidade, o

    não significado, uma força dinâmica. Uma das

    operações centrais desse processo é descen-

    tralizar o rosto como fábrica predominante de

    agentes ativos esteticamente. Todo o trabalho

    desse cosmos sufocante a céu aberto chamado

    O padre e a moça pode ser resumido no desafio

    de como estetizar a negação, o negativo, o não,

    como lhe dar forma.

    O Padre é aquele que chega depois a essa

    cidade condenada, após o ciclo dos diamantes,

    uma terra de onde já se extraiu tudo. A condição

    desse universo parece ser o “depois da vida”, o

    “tarde demais” com que Gilles Deleuze carac-

    teriza a obra de Luchino Visconti2 – cujo gosto

    pelo trágico e pela lenta obsessão descritiva

    muito se aproxima do filme brasileiro. Como

    2 No livro “ A imagem-tempo ”, da Editora Brasiliense.

    O padre e a moça, 1965

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    17/31

    32

    expressar essa ausência? Como dar forma a

    essa presença cuja substância é a morte e o

    definhamento em suas mais variadas formas?

    A moça Mariana, vivida por Helena Ignez, é pos-

    sibilidade de sensualidade que desestabiliza

    essa indelével atmosfera do trágico, e é ela que

    está em disputa. Nessa empreitada num uni-

    verso de composição a partir de um paradigma

    de inexpressão, a força do trabalho dos atores,

    e principalmente de Paulo José, é a compre-ensão do próprio corpo como material, como

    matéria, como volume físico, em detrimento de

    uma densidade psíquica ou expressiva. O ator

    como bloco de cinza, tornado negro amor ou

    renda branca, de acordo com sua relação com

    os outros blocos de luz e tempo orquestrados

    por Joaquim Pedro (não por acaso, formado em

    física), Carneiro e sua equipe.

    Não à toa, a ação converge para uma caver-

    na. Esse drama esculpido é tragédia mineira e

    mineral. Uma exploração das velocidades de

    frequência mineral, que são os elementos por

    excelência cujo desenvolvimento a percepção

    humana não tem as ferramentas para acompa-nhar em ato; ela pode apenas ver seus resulta-

    dos depois. Não vemos o nascer de um diaman-

    te, mas vivemos a intensidade de sua presença.

    Nesse mundo onde Deus parece ausente, e a

    morte regente, o que confere sentido ao tempo

    é a presença das coisas do mundo, e, entre elas,

    o homem. Tal metafísica inversa pede um outro

    tipo de trabalho, também para o ator, que é a es-

    pecialidade das pedras: a combinação, em igual

    intensidade, de uma expressão densa de alhea-

    mento e presença. Ser vazio e cheio como uma

    pedra, presente e indiferente, mas em relação.

    Uma porta fechada não é um fim de caminho,

    mas um objeto que sugere formas, pau, pedra,

    sensações e experiências específicas. A “voz

    inenfática, impessoal” descrita pelo poema de

    João Cabral de Melo Neto, que mais parece uma

    cartilha dessa estética que atinge em O padre e

    a moça uma de suas mais violentas consubstan-

    ciações, é um dos meios dessa densa melancolia

    que implode a cada bloco de sombra e branco,

    a cada respirar e fechar de pálpebras. E entreessa imponente orquestração em torno da irre-

    alização, o corpo e os tempos do Padre vivido por

    Paulo José são essa antimáquina perfeita que

    exala distância e intimidade, construindo um

    modelo raro de composição que segue o modelo

    da escultura, em que a subtração é o meio que

    leva ao auge de sua força singular e imprópria.

    Juliano Gomes é crítico de cinema

    a pintura dos

    sentimentos, ou aarte da intuição   A   N   N   A   K   A   R   I   N

       N   E   B   A   L   L   A   L   A   I

    É muito difícil falar da arte de um  ator. Seria

    mais fácil falar da arte do ator, de forma univer-

    sal, milenar, grandiosa e, por isto mesmo, im-

    precisa. Ainda mais difícil se torna falar da arte

    do ator no cinema, isolar o trabalho de um ator

    num filme e procurar analisá-lo. Isolar é modo

    de dizer, pois o trabalho do ator deve ser pen-

    sado organicamente. O ator em cinema atua em

    conjunto com outros seres – humanos (atores,

    diretor, equipe) e não humanos (objetos, lumino-sidade, ruídos e máquinas). E ainda que se pos-

    sa dizer o mesmo do ator de teatro, no cinema

    sua imagem é fixada e pode-se projetar indefi-

    nidamente no tempo, ou enquanto a materiali-

    dade da película cinematográfica (ou da cópia,

    qual seja o suporte) permitir a sua reprodução.

    O ator de cinema é, portanto, um ser embalsa-

    mado. Assistir a um filme realizado há cerca de

    meio século é como encontrar um manuscrito

    numa garrafa. É o milagre perfeito do aca-

    so. Quem o escreveu jamais poderia imaginar

    quem, e quando, e em qual mar o encontraria.

    Assim eu me deparei, há alguns anos, com

    o filme de Joaquim Pedro de Andrade, O padre e

    a moça (1965). Os letreiros iniciais indicam que o

    filme é sugerido pelo poema “O padre, a moça”,

    de Carlos Drummond de Andrade. Mas em ter-

    mos do ritmo interno dos planos e da compo-

    sição das personagens, o filme evoca muito da

    obra poética de Drummond, para além do po-

    ema mencionado. Por exemplo, estes versos

    do poema “Fraga e sombra” poderiam traduzirperfeitamente a entrega amorosa e suave na

    cena de amor entre o padre e a moça: “Os dois

    apenas, entre o céu e a terra/ sentimos o espe-

    táculo do mundo/ feito de mar ausente e abstra-

    ta serra”. Ou quando o padre arrasado retorna

    e se prostra aos pés do altar, percebemos ao

    fundo do plano uma figura de formas humanas,

    sem sabermos se é mesmo uma beata ou uma

    estátua. Lembra-nos o poema “Evocação ma-

    riana”: “A igreja era grande e pobre. Os altares

    humildes./ Havia poucas flores. Eram flores de

    horta./ Sob a luz fraca, na sombra esculpida/

    33

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    18/31

    (quais as imagens e quais os fiéis?)/   ficávamos.

    [grifo nosso]. Vemos aqui e ali ecos de seus po-

    emas, seja na composição dos planos, no tempo

    que se arrasta, na sensação de uma noite de-

    vassada, na inquietação das almas ou na signi-

    ficação dos silêncios. A solidão da personagem

    do padre traz um pouco do sentimento do mun-

    do que a poesia de Drummond encerra.

    Segundo Paulo José, O padre e a moça era

    inspirado também no filme Diário de um páro-

    co de aldeia  (Le journal d’un curé de campagne,França, 1951), de Robert B resson, que ter ia sido

    mestre de Joaquim em sua temporada de estu-

    dos na Europa.1 O padre e a moça é o primeiro

    longa-metragem de ficção dirigido por Joaquim

    Pedro de Andrade, que já havia realizado o docu-

    mentário em longa-metragem Garrincha, alegria

    do povo (1962), e os curtas O mestre de Apipucos

    (1959), O poeta do Castelo (1959) e Couro de gato 

    (1961). Desde os primeiros curtas, Joaquim

    mostrava talento e segurança na direção, além

    de um sofisticado senso de humor e ironia.

    O padre e a moça  é o filme de estreia de

    Paulo José no cinema. Paulo já tinha experi-

    mentado uma longa trajetória no teatro, des-de os tempos de colégio, em Bagé, passando

    pelo Teatro Universitário de Porto Alegre, pelo

    Teatro de Equipe de Porto Alegre, que fundou,

    e pelo Teatro de Arena, em São Paulo.2 Ele nos

    1 Cf. “Entrevista com Paulo José”. Entrevista a Clara

    Linhart, Camila Maroja e Daniel Caetano. Contracampo nº 42.

    Disponível em: http://www.contracampo.com.br/42/entre-

    vistapaulojose.htm.

    2 Cf. CARVALHO, Tânia. Paulo José: memórias substantivas.

    São Paulo: Imprensa Oficial, 2007. pp.45- 75.

    conta que entrou no filme por acaso.3 Era amigo

    e colega de trabalho de Fauzi Arap no Teatro de

    Arena. Fauzi, além de representar a persona-

    gem Vitorino, em O padre e a moça, havia ajuda-

    do o Joaquim Pedro a realizar os ensaios. Fauzi

    relata: “Inicialmente, eu deveria fazer uma es-

    pécie de assistência de direção do Joaquim no

    que diz respeito à interpretação”.4 Joaquim era

    muito exigente em termos da direção de atores

    e procurou instaurar um trabalho meticuloso

    de ensaios, que durou cerca de cinco meses epassava também pelo estudo da obra poética

    de Drummond.5 Segundo depoimento de Helena

    Ignez, “Nós ensaiávamos como se fosse uma

    peça de teatro – e uma peça muito trabalhosa –,

    ensaiando intenção por intenção, fala por fala”.6

    O que acho interessante neste processo é

    que Joaquim Pedro havia escolhido original-

    mente um não ator para fazer o papel do padre,

    o artista plástico Luiz Jasmin. Esta escolha era

    coerente com uma busca específica empreendi-

    da pelo cineasta Robert Bresson, que o induzia

    a trabalhar com não atores, pois não queria que

    eles interpretassem. Bresson estava interessa-

    do num tipo de verdade e de movimento interiorque acreditava ser impossível extrair de um

    3 “ Entrevista com Paulo José”, cit.

    4 Depoimento de Fauzi Arap. Citado em ARAÚJO, Luciana

    Corrêa de. Joaquim Pedro de Andrade : primeiros tempos. São

    Paulo: Alameda, 2013. p. 185.

    5 Cf. Depoimento de Helena Ignez. Citado em ARAÚJO,

    Luciana Corrêa de. Op. cit . p. 185.

    6 Depoimento de Helena Ignez. Citado em ARAÚJO, Luciana

    Corrêa de. Op. cit . p. 185.

    ator profissional. Podemos traduzir esta busca

    de Bresson como a “pintura dos sentimentos”,

    expressão apontada por Godard na entrevista a

    Bresson, juntamente com Michel Delahaye, em

    1966.7  Esta entrevista é posterior à realização

    de O padre e a moça, mas pode iluminar muitas

    questões relativas ao trabalho de direção de

    atores e não atores. Ela aponta para questões

    que Bresson vinha perseguindo ao longo de sua

    carreira. E estas podem nos ajudar a pensar o

    extremo rigor na direção de atores exercida porJoaquim Pedro de Andrade em O padre e a moça.

    Acho instigante esta opção de Joaquim

    Pedro de escolher um não ator e submetê-lo a

    uma intensa experiência de ensaios. E é ainda

    mais irônico o fato de Luiz Jasmin ter adoecido

    gravemente, vítima de hepatite, e ser substitu-

    ído às vésperas das filmagens. Esta experiên-

    cia de ensaios era uma forma de trabalhar com

    não atores diferente da de Bresson. Acresce

    que os demais atores eram profissionais e ex-

    perientes. Penso que talvez, ao escolher Luiz

    Jasmin, Joaquim Pedro estivesse justamente

    interessado no olhar de um pintor. Alguém que

    compreendesse bem este meio de expressão

    e pudesse se colocar a serviço dele (interna e

    externamente). O padre e a moça contou com um

    diretor de fotografia e câmera excepcional, que

    era também um pintor, Mário Carneiro. Ele cui-

    dou pessoalmente da cenografia. A composição

    7 Cf. “Entrevista com Robert Bresson”. Entrevista a Michel

    Delahaye e Jean-Luc Godard. In: BAZIN, André et al. A polí-

    tica dos autores. Lisboa: Assírio & Alvim, 1976. pp. 319-371.

    Originalmente publicada em Cahiers du Cinema nº 178. Paris:

    maio 1966, com o título “La question”.

    das personagens é então o resultado híbrido

    do trabalho dos atores, do trabalho de direção

    de atores de Joaquim e do trabalho do próprio

    Mário Carneiro.8 

    Creio que o fato de Paulo José ter sido con-

    vocado às pressas, assumindo prontamente

    o papel do protagonista masculino, e estando

    “virgem” da experiência anterior de ensaios,

    contribuiu deveras para a composição da sua

    personagem, o jovem padre que chega de ou-

    tras terras após um tortuoso caminho entre asserras, e é esperado pela pequena população

    de um antigo povoado em decadência, isolado

    e esquecido no mundo. O início do filme mostra

    esta peregrinação e lembra a clássica jornada

    do herói nos filmes de faroeste. Sua persona-

    gem é então um forasteiro, um estranho no

    ninho. Ele não tem intimidade com aqueles

    personagens locais: a moça, o farmacêutico, o

    patriarca, os demais habitantes. Ele vem para

    substituir o antigo padre e precisa ser aceito por

    aquela comunidade.

    Cada um daqueles habitantes de São

    Gonçalo do Rio das Pedras nutre pelo jovem

    padre alguma expectativa, isto é, espera que

    ele represente algum papel, e é praticamente

    impossível corresponder às expectativas de

    8 Defendo esta ideia na minha dissertação de mestrado “O

    ator-em-ato : a dialética ator/ personagem em Copacabana Mon

     Amour ”, acerca do filme de Rogério Sganzerla. Argumento

    que a construção de personagens no filme é o resultado hí-

    brido do trabalho de direção; do trabalho de direção de ato-

    res, mais especificamente; dos meios e modos de produção

    (incluindo as filmagens e a pós-produção); e do trabalho dos

    atores propriamente dito.

    34 35

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    19/31

    todos eles ao mesmo tempo. A cidade agoniza.

    O filme explora esta dificuldade do ser huma-

    no de corresponder às expectativas alheias, de

    libertar-se das amarras sociais e ideológicas.

    Paulo José conseguiu passar esta dimensão deser errante, sujeito ao peso da gravidade e aos

    percalços do caminho. A arte do ator é fundada

    no caminho, no percurso, na busca. É uma bus-

    ca interior. O ator é um ser nômade, não pode

    se acomodar. O trabalho do ator é um trabalho

    experimental e intuitivo. É um trabalho árduo:

    ombros que suportam o mundo, como no poema

    de Drummond.

    A primeira vez que vi O padre e a moça, to-

    cou-me profundamente o drama existencial

    da personagem feminina, aquela moça prati-

    camente abandonada ao mundo dos homens e

    das pedras, a servir-lhes de corpo e a negar-

    lhes a alma. Moça dos gestos contidos, retraí-

    da, prisioneira até dos objetos que manuseia. O

    bule de café, a bandeja, a fruteira, as xícaras

    de porcelana lhe ensinam diariamente o ritualde servir aos homens, as posturas e os movi-

    mentos que seu corpo deve assumir. E muitas

    vezes vemo-la prostrada como uma boneca

    namoradeira, destas que, nas cidades do in-

    terior, colocam-se nas janelas para atrair o

    olhar dos viajantes. Um ser encantado. Assim

    a vemos em sua primeira aparição à janela, no

    ponto de fuga de um zoom out  que coincide com

    a chegada do novo padre a São Gonçalo do Rio

    das Pedras. E também atrás do balcão, à noite,

    sentada após servir as mesas dos homens na

    taverna – trabalho que as outras mulheres, as

    beatas, tanto condenam. Impecável o trabalho

    de Helena Ignez. Impecável sua beleza e foto-

    genia. A minuciosa composição de personagem

    que o filme apresenta. Seu rosto grita em silên-

    cio. Aquela moça precisava ser tirada dali, da-

    quele fim de mundo e daquela gente que a es-

    cravizava e que a impedia de existir plenamente.

    Da segunda vez que vi o filme, alguns anos

    depois, outro aspecto arrebatou-me. Percebi o

    caráter subversivo que havia na personagem

    interpretada por Helena Ignez. Não a via maiscomo vítima das circunstâncias, mas como for-

    ça motriz da ação dramática. Percebi o quanto

    ela era ali a personagem mais lúcida, a mais

    forte. A única de fato capaz de transgredir aque-

    la realidade. E ela então me fez lembrar a hero-

    ína de um filme japonês, O t úmulo do Sol (Taiyô

    no Hakaba, Japão, 1960, Nagisa Oshima), a qual

    onde quer que se infiltrasse, provocava discór-

    dia e destruição, a ponto de ao final do filme to-

    das as gangues da delinquência local terem sido

    completamente dizimadas, e restar somente

    ela. Era uma personagem catalisadora e assim

    eu percebi a moça, desta vez. Lembrei-me tam-

    bém das personagens femininas dos filmes noir .Mulheres belíssimas, inicialmente indefesas e

    vulneráveis, revelavam-se a seguir verdadeiras

    vamps, enredando numa intriga criminosa os

    homens que mordiam sua isca.

    Pude ver como a moça detonava uma sé-

    rie de acontecimentos irreversíveis, como ela

    alinhavava os elementos da tragédia. Ela não

    era uma personagem passiva. Isto fica claro,

    sobretudo, na sequência da fuga. Desde que sai

    da casa do Sr. Honorato, fugida, ela assume a

    dianteira da ação. É ela quem puxa o padre pela

    mão na corrida ladeira abaixo e ao atravessar

    a ponte que dá acesso ao vilarejo. Se a ideia de

    fugir com a moça, para libertá-la, teria sido do

    padre, é ela, por sua vez, quem o ensina na prá-

    tica como se foge; isto é, o tipo de ação física

    que uma fuga exige. Na estrada de pedras, na

    serra, ela o atormenta com perguntas malicio-

    sas, tentando seduzi-lo. Ela lhe toma um beijo

    à força, e o incita ao ato sexual. Na caminhada

    que se segue, ela questiona: “Isso aqui não é

    caminho para lugar nenhum”. Acusa: “Você está

    perdido!”. E quando eles parecem de fato perdi-dos e esgotados pela jornada, pela fome e pelo

    sol, ela tem a lucidez de perceber a tragédia se

    consumando: “Você está voltando!”. O drama

    da moça é que o padre não pode simplesmente

    pensar e agir como ela.

    Se, da primeira vez que eu assistira a O pa-

    dre e a moça, eu havia pensado que a chegada

    do novo padre é o que havia despertado a revo-

    lução naquele modo de vida quase medieval da

    cidadela de São Gonçalo do Rio das Pedras, um

    microcosmo do mandonismo patriarcal; da ter-

    ceira vez que assisti ao filme, percebi o oposto.

    Da terceira vez, fui motivada pelo convite para

    escrever sobre Paulo José. Percebi como aque-la cidade de modos e personagens tão absur-

    dos teria transformado completamente a vida

    daquele jovem padre e colocado em xeque a

    sua vocação sacerdotal. Não teria sido apenas

    a atuação da moça que o fez duvidar de sua vo-

    cação, mas o contato com cada um daqueles ha-

    bitantes que sofriam de vários tipos de carência

    humana. Imaginei tudo o quanto ele pode ter

    ouvido, todas as confissões inauditas, a multi-

    plicidade de versões e pontos de vista, todas as

    histórias, “verdade e imaginação” que podem

    ter-lhe perturbado a consciência, quase como

    36 37

    O padre e a moça, 1965

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    20/31

    um psicanalista que adoece atormentado pelos

    vícios e perversidades que lhe são confessados

    pelos seus pacientes.

    Todas essas três visões acerca do filme

    coexistem e coexistiram desde a primeira vez.

    São visões que se complementam. Como ocor-

    re ao apreciador de uma pintura, um quadro,

    que por contemplá-lo e por tantas vezes fitá-lo

    longamente, permite-se então se esquecer das

    formas e se concentrar somente nas cores. Ora

    ressaltam sobremaneira os vermelhos. Oraprefere-se descobrir os verdes. Aqui demora-

    se nas sutis pinceladas azuis. Enfim, o prazer

    proporcionado pela intimidade com a obra de

    arte. Mas estamos até aqui nos domínios da

    estética, da fruição da obra acabada. Quanto à

    poética, ao fazer artístico, é outra história.

    Então, voltemos ao começo, ao nosso pon-

    to de partida: à dificuldade de se abordar o tra-

    balho de um ator em cinema, especificamente.

    Venho há alguns anos percorrendo este caminho.

    Venho me debruçando sobre o trabalho de dois

    atores excepcionais no cinema brasileiro: Helena

    Ignez e Otoniel Serra, que, coincidentemente ou

    não, são formados na arte dramática pela mes-ma Escola de Teatro da Universidade da Bahia,

    fundada em 1956, num momento de efervescên-

    cia cultural da capital baiana. Dos palcos desta

    escola, saíram grandes nomes do teatro e do

    cinema brasileiro, como Geraldo del Rey, Othon

    Bastos, Sônia dos Humildes e Anecy Rocha.

    Ao receber o convite para escrever sobre

    Paulo José, pensei que seria bastante coerente

    com as minhas pesquisas falar sobre seu tra-

    balho de ator em cinema. Afinal, ele atua num

    grande número de filmes extraordinários do ci-

    nema brasileiro, filmes que estão entre os meus

    preferidos, sobretudo aqueles das décadas de

    1960-70, com os quais eu tenho uma relação

    afetiva muito intensa. Entretanto, um fenômeno

    curioso operou-se. Ao ver e rever alguns destes

    filmes, cada vez mais eu perdia de vista o que

    poderia falar sobre o seu trabalho de ator, es-

    pecificamente. Eu simplesmente não conseguia

    ver o trabalho de Paulo José. E isto me intrigou.

    Percebi que por mais que eu quisesse fixá-lo,

    ele me distraía. Paulo José me levava com o fil-

    me para outros pensamentos, outros focos deatenção. E este fenômeno se dava mais intensa-

    mente em O padre e a moça.

    Parecia-me, de alguma forma peculiar, que

    o trabalho de Paulo José neste filme era invisível.

    É perigoso dizer isto. Mas era esta a sensação

    exata que eu sentia. Ou, melhor dizendo, sumia o

    Paulo, o ator, e ficava tão somente uma existên-

    cia, uma presença viva na tela. Como um retrato

    de um homem capturado por um pintor, que tra-

    duz com exatidão o sentimento humano, assim

    eu o via. Mas esta personagem era tão transpa-

    rente, porquanto sua inequívoca existência, e, ao

    mesmo tempo, singularmente indecifrável em

    seu interior. Seus pensamentos, suas motiva-ções eram extremamente difíceis de perscrutar.

    Alguns atores emprestam às suas p ersonagens

    apenas o próprio corpo. Outros lhes dão o corpo

    e a consciência. Paulo José dava-lhes a alma.

    Yoshi Oida nos conta que no teatro kabuqui  

    existe um gesto tradicional que indica “olhar

    para a lua”. Este gesto consiste em apontar o

    dedo indicador para o alto, para o céu. O mestre

    relata a experiência de um ator muito talento-

    so que interpretou o gesto com tamanha graça

    e elegância que o público ficou admirado com

    a beleza de seu movimento, isto é, com o seu

    virtuosismo técnico. Já um outro ator, em ou-

    tra circunstância, interpretou o mesmo gesto:

    apontou para a lua. O público sequer percebeu

    se ele teria realizado ou não um belo movimen-

    to. O público simplesmente viu a lua.9  Acredito

    que Paulo José seja um ator deste tipo: aquele

    que mostra a lua ao público. Como define Yoshi

    Oida: “O ator capaz de se tornar invisível”.10

    Era isso. Paulo José me fazia ver tudo: o

    mundo em torno dele. A natureza e os seres

    humanos. A beleza, as dores, os juízos, as pai-

    xões, as incertezas, as angústias, as fraquezas,

    os equívocos, os desejos, os medos: ao seu re-

    dor, nos outros e em si mesmo. Tudo em estado

    bruto. Eu percebia o filme pelo olhar do Paulo

    José. Não um olhar que consiste unicamente

    num ponto de vista, mas o olhar da existência,

    que antes de tudo é múltiplo, que enxerga/ sen-

    te de costas e de olhos fechados, que reúne to-

    dos os sentidos num só. Um olhar que encerra

    um sentimento do mundo. Uma forma de com-

    preensão e existência que está mais próxima

    da intuição. Valendo-me dos ensinamentos de

    Yoshi Oida: “Sendo capazes de usar bem osolhos não ficamos confinados ao mundo físico.

    Os olhos podem ver tanto as coisas concretas

    quanto as invisíveis.”11  Nisto consiste, a meu

    ver, a arte da intuição.

    9 OIDA, Yoshi. O ator invisível. São Paulo: Via Lettera, 2007. p.18.

    10 OIDA, Yoshi. Op. cit . p. 18.

    11 OIDA, Yoshi. Op. cit . p. 26.

    Anna Karinne Ballalai é atriz, roteirista, produtora e

    pesquisadora de cinema

    38 39

    O padre e a moça, 1965

    t i t

  • 8/18/2019 Paulo José - Meio século de cinema

    21/31

    40 41

    [...] A gente gostaria que você falasse do

    seu começo no teatro, como você conheceu

    Joaquim Pedro de Andrade...

    O padre e a moça foi o meu primeiro filme, e foi

    uma grande estreia, extraordinária... E come-

    çou por acaso, porque quem ia fazer o padre

    era o ator Luiz Jasmin, que era artista plásti-

    co. O Joaquim gostava do tipo físico do Luiz

    Jasmin para fazer o padre. E eles foram a São

    Gonçalo do Rio das Pedras. Eu era do [Teatro de]

    Are