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PAULO GHIRALDELLI JÚNIOR

MARIANGELA CABELO

Organizadores

PANDEMIA E PANDEMÔNIO

Ensaios sobre biopolítica no Brasil

CEFA EDITORIAL São Paulo - 2020

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Edição Hugo Lopes de Oliveira e Leandro Sousa Costa

Preparação Marlin Rose Jones e Mariangela Cabelo Revisão de texto Eliane Otani – da Bridge3

Capa Mariangela Cabelo

Diagramação Hugo Lopes de Oliveira e Leandro Sousa Costa

CONSELHO EDITORIAL CEFA Paulo Ghiraldelli – USP e CEFA

Ladislau Dowbor – PUC-SP

Marisa Souza Neres – UFT

Luma Miranda da Silva – Universid ade Eötvös Loránd

Leandro Sousa Costa UNESPAR e UNIUV

José Ildon Gonçalves da Cruz – CEFA

Mariangela Cabelo – UFMS e CEFA

Hugo Lopes de Oliveira UFRuralRJ e CEFA

Olgária Matos – USP

Rubens Russomano Ricciardi – USP

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Cabelo, Mariangela; Ghiraldelli Jr., Paulo. (Org.)

Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre biopolítica no Brasil/Cabelo,

Mariangela; Ghiraldelli Jr., Paulo. (Organizadores) – São Paulo: CEFA

Editorial, 2020.

ISBN 978-65-990994-2-7

1. Pandemia 2. Pandemônio 3. I Título

CDD - 100

Índices para catálogo sistemático:

1. Filosofia e disciplinas relacionadas 100

É vedada a reprodução de qualquer parte deste livro sem a

expressa autorização da editora – [email protected]

Todos direitos reservados à

São Paulo – SP

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Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre

biopolítica no Brasil

Paulo GHIRALDELLI

Natália PASTERNAK

Maria Lúcia FATTORELLI

Carlos ORSI

Mariangela CABELO

Leonardo CAMARGO

Estevão CRUZ

Thiago STADLER

Luma MIRANDA

Hugo OLIVEIRA

Thiago MATTOS

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SUMÁRIO

Prefácio........................................................................................................................... 8

Pandemia e Pandemônio: O Bolsovírus................................................................ 9 Paulo Ghiraldelli Júnior

A saúde na era Bolsonaro ....................................................................................... 16 Mariangela Cabelo

Uma aula de como não testar um medicamento .............................................. 27 Natalia Pasternak e Carlos Orsi

O desvaneio de Bolsonaro em tempos de pandemia ...................................... 39 Hugo Lopes de Oliveira

O novo coronavírus no Brasil e sua repercussão na mídia estrangeira . 43 Luma da Silva Miranda

O grande mal e os trabalhos................................................................................... 50 Thiago Ricardo de Mattos

Pandemia e o negacionismo nosso de cada dia .............................................. 54 Estevão Cruz

O papel da responsabilidade na crise sanitária contemporânea ................. 64 Leonardo Camargo

Entre esgotamento e estupidez, um vírus........................................................... 77

Thiago David Stadler

Devemos despolitizar o vírus?............................................................................ 110

Mariangela Cabelo

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Oportunismo Trilionário dos Bancos em plena Pandemia...........................123

Maria Lucia Fattorelli Carneiro

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Prefácio

Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre biopolítica no Brasil é uma

organização de textos sobre a Covid-19 no contexto brasileiro sem desconsiderar o

panorama global dessa situação. Os textos presentes nesta publicação são de estilos

diversos e foram escritos ao longo das primeiras semanas do despontar da doença no

Brasil, em 2020. São contribuições de pesquisadores e pesquisadoras de várias áreas e

que estão na realidade brasileira: filosofia, história, medicina, biologia, psicologia,

sistemas de informação, jornalismo, economia e letras. Os textos colocam em evidência

os problemas derivados da crise sanitária que surgiram numa situação em que a

realidade brasileira enfrentava uma complexa crise política e econômica. As

perspectivas trabalhadas pelos autores e autoras nesta obra, suscitam uma série de

elementos que nos permitem traçar os cenários da disseminação do novo Corona Vírus

na realidade brasileira e suas nuances.

Essa compilação, iniciativa do CEFA Editorial, pretende ser um escape seguro

diante do bombardeio cotidiano de informações, da paranóia instituída e das políticas de

isolamento impostas pelo estado como medida de resguardo diante do inimigo invisível.

Boa leitura!

Prof. Esp. Hugo Lopes de Oliveira

Diretor Geral

do CAIC Paulo Dacorso Filho UFRRJ – Prefeitura Municipal de

Seropédica

Prof. Dr. Leandro Sousa Costa

Professor do Curso de Filosofia da

Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) – Campus União da Vitória

São Paulo, 08 de julho de 2020.

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PANDEMIA E PANDEMÔNIO: O BOLSOVÍRUS

Paulo Ghiraldelli1

O mundo do Capitão Corona

Você já esteve na feira de Wuhan? Não? Nem eu! Mas, nesses tempos, já li muita

coisa sobre o local. Não à toa! Foi de lá que escutamos os primeiros gritos a respeito do

novo coronavírus. Nessa feira, na cidade de Wuhan, na China, os cuidados higiênicos

são os piores possíveis. O que hoje conhecemos como a pandemia da Covid-19, segundo

uma boa parte dos pesquisadores, teve sua origem lá naquele lugar. Foi de lá que a

Covid-19 decidiu infestar todo e qualquer país. A história da trajetória dessa doença,

que, enquanto escrevo, vem matando muita gente no mundo todo, poderia ser contada

de acordo com a perspicácia de diversos intelectuais. Entretanto, o único que parece

acertar, de fato, a mão, é Stan Lee, o grande produtor da Marvel.

Na ficção da ficção de Stan Lee contando essa história, tudo pode ser entendido

conforme o desdobrar de forças cósmicas. Sabe-se lá por qual razão, irradiações de uma

estrela distante atingiram a China, fazendo nascer em Wuhan um elemento

completamente malévolo: a insaciável Covid-19. Ela não pode ser considerada nem

mesmo um ser vivo, já que é incapaz de apresentar DNA. Mostra-se apenas como um

fio de RNA e, talvez, por isso mesmo, é portadora de um atroz e gigantesco

ressentimento. Por que os homens não lhe deram o status de ser vivo? Dominada por

essa mágoa da subalternização, a Covid-19 saiu devorando o mundo. Então, encontrou

um estranho lugar chamado Brasil. Nesse país, o governante máximo tinha exatamente

a mesma falha em sua estrutura psicofísica, quase como um vírus. E a fusão dos dois foi

imediata. Uma “quase pessoa” uniu-se a um “quase ser vivo”!

1Doutor e mestre em Filosofia pela USP. Doutor e mestre em Filosofia da Educação pela PUC- SP.

Bacharel em Filosofia pelo Mackenzie e Licenciado em Ed. Física pela UFSCar. Pós -doutor em Medicina

Social na UERJ. Titular pela Unesp. Autor de mais de 40 livros e referência nacional e internacional em

sua área, com colaboração na Folha de S. Paulo e Estadão. Foi professor em várias universidades no

Brasil e pesquisador no exterior. Aposentado pela UFRRJ.

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O presidente Bolsonaro contraiu o novo coronavírus e, aparentemente, não

apresentou sintomas. Por isso, passou a acreditar que o correto seria que todos viessem

a ser contaminados para que, então, fossem imunizados. Isso deveria ocorrer a partir do

momento que 50% da população tivesse contraído o vírus. Essa seria a “imunização de

rebanho”, embora alguns especialistas afirmem que isso não é viável, pois o novo

coronavírus não gera uma imunização fácil.

De qualquer maneira, verdadeira ou falsa, a teoria de Bolsonaro implicava a morte

de muitos. Para o presidente, o importante era que os negócios não parassem. E, se os

mais velhos e os mais pobres viessem a morrer, não fariam falta. A lógica neonazista aí

embutida é a de que os fortes sobrevivem e, sem os fracos, o resultado é a depuração da

raça.

A fusão entre o presidente e a Covid-19 assim se fez, e tudo isso se tornou claro

de maneira bem rápida. Logo, o presidente começou a apresentar sintomas não

corriqueiros da doença. Em vez de febre, tosse e falta de ar, ele passou a pensar como o

vírus pensa. Por sua vez, o próprio vírus sentiu que seu hospedeiro queria exatamente o

que ele mesmo queria. Nunca o conceito de biopoder havia encontrado lugar e hora para

se efetivar de maneira tão promissora. O corpo do presidente passou a funcionar sob

ordem do vírus, procurando contaminar outros e criar um combate à política de

isolamento que, enfim, era o único modo de conter a expansão da doença. O presidente

foi apelidado de Capitão Corona.

A população percebeu sua forte conexão com a intenção virótica. De fato, o

projeto de Bolsonaro era (e, no momento que escrevo este texto, ainda é) a criação de

uma sociedade realizada como um pastiche do já pastiche anarcocapitalismo. Para tal,

nada melhor que um caos instaurado em doses homeopáticas. Ora, o vírus comportou-se

como capaz de promover tal caos. O presidente e o vírus vieram a se entender, e o poder

se fez presente no corpo do presidente, que passou a exercer esse poder diretamente

sobre os corpos dos seus cidadãos. A política de saúde, praticamente solapada pelo

Capitão

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Corona, tornou-se a política par excellence. Nada mais foi pensado – como não é, nesse

momento que escrevo – de forma desvinculada do corpo. Foi tomado coletivamente

como “biopolítica da população” e individualmente como “anátomo-política do corpo”,

para bem lembrar dois conceitos de Michel Foucault.

O nosso cotidiano em fins de maio e as antropotécnica

Até aqui, isso é o que pudemos notar da pandemia. A partir de agora, neste texto,

relato o que vivemos cotidianamente, estando em meio à pandemia.

Na perspectiva da biopolítica da população, todas as manhãs, passamos a

contabilizar quantos foram infectados e quantos morreram, e se morreram em casa ou

hospitais. Tentamos calcular o número de leitos e covas necessários e de apetrechos

hospitalares disponíveis. Na perspectiva da anátomo-política do corpo, procuramos

manter a quarentena e nos desdobramos para ficarmos saudáveis. Mas é difícil. A

potencialização do corpo, sua transformação, ganhou novo ritmo. Todos sentem que a

vida se tornou, de fato, naquilo que foi teorizado pelo filósofo italiano Giorgio

Agamben, a vida nua, isto é, a vida puramente biológica. Ou seja, importa mais antes

sobreviver do que viver, ainda que, na classe média, o entendimento se manteve aquele

de que a sobrevivência ainda não é a prioridade – para ela própria, classe média, é

claro. A mera sobrevivência é o que se pode dar aos outros, mas não em épocas de

crise!

Ao mesmo tempo, os corpos começam a se transmutar e a aceitar um novo

conceito de silhueta. A máscara é algo necessário. Já se mostra, até mesmo, como uma

peça de adorno, à semelhança do ocorrido, no passado, com os óculos. Os ocidentais

experimentam o erotismo dado pelos olhos, que só os orientais conheciam. Isso para os

que ainda podem pensar em erotismo em uma sociedade cuja distância social

reordenada vê ocorrer um novo boom de virtualização. Uma juventude de classe

média, talvez até mais sexualizada

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em alguns casos, mas, em geral, menos erotizada, inicia a adoção de uma vida

remodelada. Nessa vida, se ainda alguma tara sexual viesse a ser lembrada, ela arrastaria

junto uma frase de Millôr Fernandes de 1971: “de todas as taras sexuais, não existe

nenhuma mais estranha do que a abstinência”.

Essas mutações corporais podem ser colocadas em uma caixa sob a rubrica de

“antropotécnicas” – técnicas de produção do homem pelo homem. Peter Sloterdijk, que

criou esse conceito, o toma como uma maneira de escaparmos da divisão pouco

produtiva entre cultura e natureza. Na verdade, o homem se faz homem por técnicas que

ele cria, as antropotécnicas. Toda essa reordenação da anátomo-política do corpo nada

mais é do que a criação de antropotécnicas. A máscara é uma antropotécnica, e a

distância social deve ser outra. O zelo com o álcool gel também se insere nessa “caixa”.

Uma vez que o Capitão Corona comandou uma ação contra tudo isso, ele se

mostrou como uma força contrária às antropotécnicas e, portanto, como um

reacionarismo diante do homem, da própria noção de civilização. O biopoder é exercido

sobre o corpo. Gera nova política. Naquilo que tem de reacionário, se faz contra as

antropotécnicas geradas no afã de ludibriar o vírus. A missão do Capitão foi a de não

viabilizar isso. Ele continua no mesmo afã e ritmo.

Se assim olhamos tudo, somos obrigados a admitir que a política chegou ao fim, e

tudo o que temos é a biopolítica, o exercício do biopoder. Lutar pelo impeachment do

presidente deve ser entendido, desse modo, ao menos no momento que escrevo, não

como imperativo político, uma vez que este não mais existe. O que temos é um

imperativo no âmbito da biopolítica. Todavia, é um imperativo da política crivada,

agora, por uma nova conceituação. Nesse caso, tirar Bolsonaro do poder põe-se na

conjuntura de tornar o Brasil livre do vírus e, concomitantemente, da perigosa anomia

social que nos ronda.

Os políticos, ao menos até o momento em que produzo este texto, não entendem

muito bem isso. Atuam como se, de um lado, houvesse a Covid-19 e, de outro, o

presidente. De um lado, a morte pela infecção e, de outro, a morte pelo descaso e

pelo desgoverno. Mas não é isso que ocorre; o descaso é o gerenciador da morte. O

vírus promove o caos pedido por Bolsonaro e este

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abre passagem para o vírus continuar ceifando vidas e executando sua vingança.

Ademais, se computarmos que Bolsonaro também sempre foi um medíocre, deveremos

perceber que ele está se vingando. Ele vinga-se das esquerdas e de todas as forças

iluministas. Vinga-se da sociedade que, enfim, o viu como quem foi expulso do

Exército. O vírus vinga-se da humanidade que

o viu como alguém capaz de ganhar cidadania sem ganhar o qualificativo de ser vivo.

O conceito de imunização

Roberto Espósito desenvolveu o conceito de imunização, que também é utilizado

por Sloterdijk, mesmo que seja de maneira ligeiramente distinta. Posso me aproveitar

desses conceitos como insights para operar com a atual situação brasileira em que o

império do biopoder está sob o descomando do Capitão Corona.

O conceito de imunização remete ao fato de que precisamos de algo que nos ataca

para que, com ele, possamos gerar uma vacina. Ora, a vacina para o novo coronavírus,

no Brasil, dependerá menos de laboratórios do que da compreensão de que todo tipo de

mal já foi causado pelo Capitão Corona. Estamos prontos para a produção de

anticorpos. A imunização diante do biopoder é sempre uma imunização biopolítica.

No momento em que escrevo, há mais de 20 mil mortos no Brasil. Todos são de

responsabilidade do Capitão Corona – o “Bolsovírus”. A imunização pedida por ele é

aquela que, em nome da vida, gera a morte. Segundo Espósito, o conceito de

imunização pode mostrar exatamente isso: o deslize do positivo no negativo. Ele

menciona uma transfiguração da intenção do compromisso de Hipócrates, que fora

levada a cabo pelos médicos que aderiram ao nazismo – e não foram poucos! Ao se

pedir a raça pura por imunização de rebanho, os médicos com tendências nazistas

podem acreditar que a vida da nação e, portanto, do povo que irá ultrapassar o vírus,

é o que

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importa. Quem adota isso talvez acredite que está com Hipócrates. A ideologia é que

permite essa subversão, mas o que se gera é a mortandade.

Essa inversão do compromisso com Hipócrates, que, de fato, ocorreu na

Alemanha entre os médicos nazistas, deveria ser observada pelo nosso ensino de

medicina e precisaria ser estudada pelo nosso ensino de direito. É uma visão em que

a vida é entendida segundo uma conceituação que elimina o rosto da vida individual.

Trata-se de perceber que vivemos na época da biopolítica. Que o poder é exercido pelo

seu entrosamento com os corpos. Mas que o corpo parece estar sob o invólucro de um

imperativo que pode ser explicitado mais ou menos assim: “só vale a pena a vida ser

vivida se ela é a vida mais imune à morte”. Nesse caso, a ideia de vida e de corpo

desloca-se para o plano de um tipo de seleção forjada pela natureza, ao menos em

princípio, mas que, na verdade, é executada pelo Estado, pelos agentes públicos e

privados de uma política de higienização pervertida. Escolhe-se quem deve morrer:

velhos, desnutridos, pobres, populações vulneráveis e assim por diante. Isso é

genocídio, não Hipócrates. No Brasil, o Estado faz isso por desaparelhamento, portanto,

em um sentido diferente do estado hitleriano. Somos o pastiche do neoliberalismo e do

anarcocapitalismo! Não vivemos sob a ditadura nazifascista.

O ideal seria tentar uma imunização que não deslizasse para a morte. Para isso,

seria necessário adquirir anticorpos sociais contra o próprio chefe da tropa virótica, o

Capitão Corona. Teríamos de absorvê-lo em nossas entranhas, a fim de o domesticar. A

nossa chance pode ser o processo de impeachment, durante o qual todos os seus crimes

poderão vir à tona. À medida que a sociedade entender que são crimes mesmo, talvez

surja a oportunidade de anular o vetor que os leva a serem cometidos. Ao fim e ao cabo,

o bolsonarismo não será ejetado do corpo de cada um de nós e da sociedade em geral,

mas, diante de sua permanência, saberemos controlá-lo. É semelhante a controlar o

fascismo que pode haver em cada um de nós e na sociedade.

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Para finalizar, se não decidirmos parar Bolsonaro, não conseguiremos impor a

“nossa” imunização, e ocorrerá a dele. Teremos perdido o próprio Brasil.

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A SAÚDE NA ERA BOLSONARO

Mariangela Cabelo2

No dia 23 de abril de 2020, o inimaginável aconteceu. Em verdade, inimaginável

em outras épocas, mas não na era Bolsonaro. Naquela tarde quente de Campo Grande

(MS), Paulo Ghiraldelli chamou-me para ler a notícia sobre a divulgação do parecer (nº

04/2020) do Conselho Federal de Medicina (CFM), em que este autorizava o uso de

hidroxicloroquina (HDX) para o tratamento da Covid-19, mesmo sem evidências

sólidas que embasassem tal decisão. A própria autarquia e o presidente do CFM

lembraram da falta de comprovação científica. Aliás, um estudo sobre o assunto3, na

época, foi interrompido, pois o grupo de pacientes que tomou HDX apresentou maior

mortalidade. Resta-nos perguntar: qual é o sentido disso? O que fez a entidade médica

mais importante do país autorizar o uso dessa droga para tratar a Covid-19?

O sentido foi o de abaixar a cabeça para a ideologia do presidente Jair Messias

Bolsonaro. Na manhã do mesmo dia, houve uma reunião entre o chefe do Executivo, o

ministro da Saúde e o presidente do CFM; e, então, o que era consenso no mundo todo

foi abandonado pelo CFM. A boa prática médica foi desconsiderada. As diretrizes da

Food and Drug Administration (FDA) e as recomendações da Organização Mundial da

Saúde (OMS) deixaram de valer. O CFM passou a obedecer ao comando do segundo

maior “tosco” da República (Bolsonaro disse que era Mourão o mais tosco!). O

presidente vinha defendendo que o isolamento social, pedido por especialistas de todo o

mundo, era uma medida “histérica” que atrapalhava a economia do país. Assim, havendo

um remédio mágico para a doença, o trabalhador poderia voltar às ruas e o Estado não

precisaria ajudá-lo. A benção do CFM foi-lhe de extrema valia.

2 Graduanda em Medicina pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e criadora do canal Todos

pela Saúde. 3 O estudo que posteriormente era atacado pelo Planalto disponível em:

https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.07.20056424v2. Acesso em: 08 de junho de 2020.

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Houve reação dos médicos quando o conselho de maior importância para a

profissão foi maculado por uma ideologia genocida?

Parece que a covardia se apoderou da classe médica. Notei isso quando

permitiram que Drauzio Varella fosse atacado em cadeia nacional e não vieram em

defesa do colega; quando permitiram que o Bolsonaro fritasse o então ministro da Saúde

Henrique Mandetta; quando o “gabinete do ódio” começou a atacar os colegas da

Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); quando não reagiram ao desmanche do ministério

da Saúde (MS). Se eu disser que houve um silêncio generalizado, estaria mentindo,

mas a resposta foi fraca e sem união, e, diga-se de passagem, com aquela típica isenção

política por parte de quem não entende o conceito de biopolítica e biopoder4 inerentes a

uma pandemia. Alguns pediram em suas redes sociais que as pessoas ficassem em casa,

outros elogiaram o Mandetta, mas nada falaram do cerne do problema, nada disseram a

respeito de políticas públicas, e poucos5 lembraram que o maior inimigo dos médicos e

dos brasileiros era o próprio presidente, que iniciou sua marcha em favor do novo

coronavírus no dia 24 de março de 2020.

Será que as confrarias existentes há séculos, pelas quais a prática médica surgiu e

se institucionalizou, não significaram nada? Será que os médicos não perceberam que

eles tinham grande força em um momento de pandemia? Talvez a história da ciência

brasileira não esqueça esse silêncio. Alguns órgãos, a exemplo do Instituto Questão de

Ciência, chegaram a enviar cartas à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),

à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e ao Ministério da Saúde (MS)

alertando sobre as crescentes evidências de que a droga não tinha eficácia. Aliás,

avisaram, ainda, que a droga colocava em risco a vida dos pacientes com Covid-196.

Será que apoiamos como deveríamos os gladiadores da ciência no país, que, apesar das

constantes agressões, continuaram a lutar? O

4 Vide o primeiro capítulo desta obra.

5 O neurologista Miguel Nicolelis referiu-se ao presidente Bolsonaro como um pandemônio que só

piorava a pandemia. 6 PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. CFM abandona médicos que seguem a ciência à própria sorte.23

de abril de 2020. Revista Questão de Ciência. Disponível em:

https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/index.php/artigo/2020/04/23/cfm-abandona- medicos-que-

seguem-ciencia-propria-sorte. Acesso em: 13 de junho de 2020.

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silêncio desse momento era o grito mais alto que um profissional, com

responsabilidade ao diploma, poderia dar!

De certo, a opinião médica durante essa pandemia tinha “algum” valor, ou seja,

nós, da área da saúde, tínhamos tudo para ter lutado e defendido nossas instituições,

nosso ministério e nossos médicos contemplando a postura e a ética médicas. Digo isso

pois algumas atitudes do ex-ministro Henrique Mandetta foram, por certo, as que um

médico, à frente do respectivo ministério, tomaria. Outras eram execráveis, oriundas do

mais podre jogo político, como a de permanecer no cargo, mesmo às custas da ruína do

MS. Fato esse que ficou evidente no episódio do dia 25 de março de 2020, em

pronunciamento coletivo para a imprensa. Henrique Mandetta tentou, ao máximo,

racionalizar o discurso do presidente, falando de isolamento vertical (depois, mudou de

opinião), elogiando Bolsonaro em sua fala da noite anterior, ato que nenhuma

associação médica conseguiu fazer. Inclusive, a Sociedade Brasileira de Infectologia foi

a primeira a vir a público (em 25/03/2020) apresentando uma nota que, veementemente,

discordava do discurso e da postura presidencial; atitude oposta à tomada pelo então

ministro.

Para esclarecer o início do fim de Mandetta no ministério da Saúde, temos de

voltar à noite do dia 24 de março de 2020.

Nessa noite, ocorreu o pronunciamento do presidente da República em rede

nacional. Jair Messias Bolsonaro fez um ataque frontal ao MS e a suas decisões

técnicas, que, na época, recebia atenção e elogios do mundo todo. Ao afrontar esse

ministério, ele também atacou a OMS e a boa prática científica, uma vez que o Brasil

vinha se guiando por ela. É que, para Bolsonaro, uma pandemia, capaz de mudar os

paradigmas da história, deixando um rastro de mortes, não poderia ter mais atenção que

o próprio presidente, ou seja, não poderia roubar seus holofotes.

De fato, o nosso país estava atento às orientações do ministério da Saúde.

Começamos bem o isolamento social em março e, a cada dia, estávamos com maior

adesão, até a data cabalística que coincide com o discurso do excelentíssimo.

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Você pode estar se perguntando: por que, em meio ao caos do governo Bolsonaro

e ao caos que se instalou em outros ministérios, o problema da Covid-19 no Brasil

conseguiu ser bem encaminhado na pasta da Saúde? A resposta é que tínhamos

competentes médicos e profissionais da área em cargos importantes no ministério da

Saúde, atentos desde 31 de dezembro de 2019, quando foi notificado o primeiro caso à

OMS de uma pneumonia atípica na China. Foi no dia 23 de janeiro de 2020 a primeira

vez que o ministério se pronunciou acerca do novo coronavírus e nos esclareceram

tudo que sabiam da doença até o momento. Isso ocorreu na voz do dr. Julio Croda, o

então diretor do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis da Secretaria

de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (DEVIT/SVS/MS). Foi uma verdadeira

aula aos jornalistas. Croda é infectologista, foi meu professor na faculdade de medicina

da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Ele e sua equipe foram os primeiros

responsáveis a enfrentar o problema, elaboraram os protocolos iniciais e ensinaram os

passos que deveriam ser tomados dali em diante.

No fim de janeiro de 2020, havia muito desespero; alguns jornalistas confundiram

casos suspeitos com confirmados e alarmaram a população. Havia medo e

desconhecimento por parte das pessoas e dos próprios profissionais de saúde.

Entretanto, o MS iniciou um ótimo trabalho de educação em saúde, com

pronunciamentos transmitidos ao vivo em redes sociais cotidianamente e notícias

atualizadas em seu site. Estávamos adiantados em relação ao vírus, e uma prova disso

foi a ativação no Centro de Operações de Emergência nível 1 (COE) no mês de

janeiro. A título de esclarecimento, o COE é ativado quando uma secretaria convoca

outras da mesma pasta, secretarias de saúde estaduais e órgãos como a Anvisa para um

trabalho em conjunto. Inicialmente, poderia ser um problema do DEVIT, mas, a partir

daquele momento, passou a ser um problema de todos.

Não era histeria, era o trabalho profissional de preparação para a chegada

iminente do vírus que, enfim, chegou. No dia 26 de fevereiro de 2020, o MS confirmou

o primeiro caso brasileiro. Continuou analisando todas as notificações e trabalhando

junto às secretarias estaduais e municipais em uma

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força-tarefa para conter a doença, até sugerir o isolamento social, que se deu na

segunda quinzena de março.

Eram sete horas da manhã de uma segunda-feira, dia 16 de março de 2020, e notei

uma aglomeração em uma parte do hospital universitário em que eu estava. Houve um

problema com o agendamento e o ambulatório geral tinha pegado fogo na última sexta-

feira. Os pacientes deveriam ter tido seus horários remarcados, o que evidentemente não

havia ocorrido. Andei um pouco pelo hospital e cheguei a um corredor que havia mais

de cinquenta pessoas, a maioria em pé. Profissionais de saúde, demais trabalhadores do

hospital e acadêmicos transitando e trabalhando por ali. A situação foi, depois de algum

tempo, regularizada. Mas aquilo já era um alerta: será que o nosso SUS sucateado, com

suas filas enormes, com falta de equipamento e de mão de obra, aguentaria uma

pandemia avassaladora? Enquanto isso, os jornais do mesmo dia noticiavam 2.158

mortes confirmadas na Itália pelo novo coronavírus.

Eu não havia imaginado que, já no dia seguinte, terça-feira, a minha vida

começaria a ficar diferente. De um dia para o outro, a faculdade de medicina pediu para

os alunos não aparecerem no ambulatório na manhã seguinte. Naquela terça-feira, então

dia 17, já não fui mais à universidade e todas as federais fecharam suas portas. Em

sequência, vieram as escolas estaduais e municipais. Nesse período, a Itália mostrava ao

mundo o perigo de atrasar o isolamento social. Meus plantões na Unidade de Pronto

Atendimento (UPA) e no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) foram

cancelados; não podiam mais gastar equipamento de proteção individual (EPI) com os

alunos. De repente, aquelas máscaras que usávamos até então despreocupadamente em

relação à quantidade se mostraram um utensílio muito valioso – fariam uma falta vital

em nosso país. Evidentemente, os internos (acadêmicos dos 5º e 6º anos de medicina)

não pararam, pois, além de estarem mais avançados no curso, residentes e internos são

imprescindíveis em um hospital.

Dia 18 de março de 2020: 2.978 mortos na Itália. A curva logarítmica, que pensei

ter esquecido lá nas aulas de matemática do ensino médio, apareceu. Para nossa

infelicidade, sua ordenada significava vidas interrompidas.

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No dia do primeiro pronunciamento oficial de Jair Bolsonaro sobre o tema, já

havia 6.820 corpos desalmados na península itálica. Antes do final de março, o rastro de

destruição que passou por aquele país já tinha ceifado 12.428 vidas. Assim, a Itália

perplexa chorou. A nação arrependeu-se de subestimar a nova peste.

Por incrível que pareça, diante dessa dor da humanidade, diante de algo que nos

atingiu frontalmente, a autoridade maior brasileira referiu-se à nova peste como uma

gripezinha. Ele, o presidente, no dia 24 de março de 2020, já tinha suficiente informação

para saber que o vírus não estava para brincadeira. Era contagioso e vinha para testar

nossos sistemas de saúde. Colapsando-os, derrotando-os um por um, até a da mais rica

metrópole estadunidense, Nova York. Todos ajoelharam-se: um simples pedaço de

RNA nos havia vencido.

A Covid-19 é uma doença que pode matar por asfixia. Eis uma das razões pelas

quais os sistemas de saúde colapsaram. Eram necessários ventiladores mecânicos para

uma parcela dos pacientes sintomáticos graves.

Diga-se de passagem que os médicos sabem o protocolo e conhecem os

medicamentos e os procedimentos que devem ser utilizados em casos de síndrome do

desconforto respiratório agudo (SDRA) – ninguém estava deixando ninguém morrer.

No entanto, efetivamente, não existia – como não existe até o momento em que escrevo

– um remédio capaz de derrotar o vírus. Nesse cenário, o nosso Capitão Corona7 tinha a

solução, com o seu pseudodiploma de médico, e passou a receitar. O coronel Homero

de Giorge Cerqueira, presidente do Instituto Chico Mendes, foi a público informar que

seguiria os conselhos do Capitão. Tomou hidroxicloroquina. O general Heleno,

ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), se deu alta do hospital depois do

pronunciamento do presidente e foi infestar o mundo, cada vez que abria a boca, com

novos milhões de RNAs mortíferos.

A prova da existência de uma família genocida na presidência da República se

deu com uma propaganda do Planalto, divulgada em massa no

7 Apelido para Jair Bolsonaro, cunhado pelo professor Paulo Ghiraldelli, explicado no início deste livro.

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dia 27 de março de 2020. O primogênito do clã, senador Flávio Bolsonaro, deu o chute

inicial na campanha #BrasilNaoPodeParar. Depois disso, iniciou-se algo bizarro:

bolsonaristas fanáticos organizaram carreatas e manifestações a favor do vírus, ou

melhor, pedindo o fim do isolamento social. Isso considerando que, até aquele

momento, não havia impedimento legal, por parte de ação dos governadores, quanto à

circulação de cidadãos.

Tudo isso ocorreu em cerca de uma semana – tempo necessário para desmanchar

o trabalho de meses do MS e iniciar sua ruína. O último dos ministérios que ainda

tentava funcionar adequadamente estava com os dias contados. Foram suficientes esses

poucos dias para preparar o óleo no qual Mandetta seria frito nas semanas subsequentes.

Houve um verdadeiro êxodo da equipe técnica do MS durante esse período. No

dia 25 de março de 2020, Júlio Croda, diretor de departamento, deixou o ministério,

sendo o precursor. Ele percebeu, como outros depois dele, que a ideologia bolsonarista

atrapalharia a luta contra a nova peste. É inútil varrer papéis em uma ventania. É inútil

lavar o carro na chuva. Assim como é inútil escrever protocolos pedindo isolamento,

quando o chefe do Executivo fala, em rede nacional, contra o trabalho dos especialistas.

Atenção deve ser dada aqui ao fato de que é a ideologia, e não a política, que

atrapalhou o trabalho científico-médico. Sem política, não há SUS, não há políticas

públicas de saúde, nem há vida em sociedade. Nossa civilização ocidental nasceu da

polis, e, por isso, é impossível tirá-la do nosso cotidiano. Uma política bem feita pode, a

exemplo de outros países, ser a chave para achatar a curva de infectados. Se política não

é a mesma coisa que partido, então os médicos não precisam ter medo de usar essa

palavra. Devemos e podemos utilizá-la em favor da saúde pública.

Em 24 de março de 2020, eu reiterei, em meu canal “Todos pela Saúde”8, que o

avanço do vírus não seria contido apenas com as recomendações médicas de lavar as

mãos e de instaurar a quarentena. Sem a atuação do

8 O canal “Todos pela Saúde” foi criado em 2019 e foi entabulado para servir ao propósito de educação

em saúde e divulgação científica. Ressalta-se que ele não possui qualquer relação com o banco Itaú, que

iniciou uma campanha com o mesmo nome.

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Estado, seria inviável conter a pandemia, sobretudo porque são cerca de 35 milhões de

brasileiros sem acesso à água tratada. Metade da população não tem acesso aos serviços

de coleta de esgoto. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

mostram que 1.935 municípios brasileiros (34,7% do total) ainda registram epidemias

ou endemias relacionadas à falta ou à deficiência de saneamento básico.

Será que preciso lembrar das favelas? É impossível sete pessoas da mesma família

ficarem juntos, o tempo todo, em um único cômodo. E quando uma janela de sua casa

dá para o interior da casa do vizinho? Que tipo de isolamento seria esse? Considerando

esses pressupostos, no dia 25 de março de 2020, Drauzio Varella, em seu canal no

Youtube, além de desmentir o discurso do presidente, salientando a importância de ficar

em casa, nos lembrou de que aquelas recomendações médicas seriam insuficientes. Ele

disse que o Brasil estava atrasadíssimo em relação às medidas de controle pandêmico.

Expos que o Estado deveria estar há semanas na favela, entregando cestas básicas e

resolvendo o problema da água. Alguns dias antes, o filósofo Paulo Ghiraldelli9 nos

lembrou também dos escritos de Byung- Chul Han10. Esse filósofo sul-coreano escreveu

como o país dele lidou com o novo vírus. Seria uma interessante solução para o Brasil

imitar algumas medidas tomadas na Coreia do Sul. Lá, algumas regiões têm

semelhanças com as favelas brasileiras no que diz respeito às condições de vida. Se a

quarentena é difícil/impossível em uma favela, então, os moradores suspeitos e

contaminados deveriam ser retirados pelo poder público. Deveriam ter uma estadia à

parte. Assim, a mazela não acometeria milhares de pessoas simultaneamente.

Desse modo, o trabalho do MS, seja qual for, já era insuficiente em um país tão

desigual como o nosso. Precisávamos, efetivamente, dos políticos, dos governadores,

dos deputados, dos vereadores e dos senadores, enfim, de todos aqueles que são pagos

com dinheiro público. Naquele momento, eles não poderiam faltar diante das

necessidades da população. Então, qual é a utilidade de isenção política médica se uma

pandemia é toda biopolítica? Ah,

9 Em seu canal no YouTube.

10 Dentre outros escritos, destaca-se a obra Sociedade do cansaço.

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esqueci! Na verdade, de isento o CFM não tinha nada quando aceitou a ideologia

presidencial. Se o nosso compromisso primeiro é a saúde, qualquer um que tomasse

uma postura anticientífica deveria receber uma admoestação, no mínimo. O silêncio

custa vidas.

Já que o assunto é a aceitação da ideologia bolsonariana, Mandetta deveria ter sido

firme e, no dia 25, não poderia ter amenizado seu discurso. Será que ele não conhecia

realmente o chefe para quem trabalhava? Será que ele não percebeu que um homem, no

qual o “guru” é um tipo como Olavo de Carvalho, não poderia conciliar com

argumentos racionais? Será que não percebia a impossibilidade de tentar qualquer

diálogo lógico com o chefe? Olavo dizia que o vírus não existia, em meio à plena

pandemia. Até mesmo o YouTube removeu de sua plataforma alguns vídeos dele, pois

ameaçavam a vida. Nem é preciso recordar que o bastião da pseudociência e do anti-

intelectualismo, o desescolarizado Olavo de Carvalho, fazia ataques ao Drauzio Varella,

lutava em favor do câncer, defendendo os interesses da indústria tabagista, e falava em

favor do lucro de caixões infantis ao defender campanhas antivacinação. Não era de se

espantar que o Capitão Corona escutasse esse tipo de discurso.

Muitos acharam que seria o fim de Bolsonaro, quando ele atacou mais diretamente

o ministério mais popular e importante do momento. O presidente prometeu, no dia

24/03/2020, que conversaria com Mandetta e iria “dobrá-lo”. O Capitão conseguiu o

que queria. Longe de ser seu fim, ele interferiu o quanto quis no trabalho do MS. Como

um “imperadorzinho”, comparecia às reuniões para dizer seus gostos à pasta da Saúde e,

no dia, concordava com algumas pautas, mas, no dia seguinte, discordava publicamente.

Fez o MS engolir sua cloroquina; no dia 07 de abril de 2020, foi publicado um

protocolo estapafúrdio do MS. Na ocasião, os únicos dois estudos sobre a droga eram

inconclusivos, e um deles era evidentemente uma fraude científica11. Bolsonaro, depois

de fritar e dourar bem Henrique Mandetta, exonerou-o no dia 15 de abril. A essa altura,

o Brasil tinha uma equipe técnica impedida de trabalhar corretamente. Era como se

soldados lutassem uma guerra com seus braços presos para trás

11 Vide o item “Texto II” do próximo capítulo, no qual Natália Pasternak e Carlos Orsi nos

contarão um pouquinho sobre a história de Didier Raoult.

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e seus olhos vendados. No Brasil, parece que é o próprio coronavírus que tem a caneta.

O “segundo maior tosco” do Brasil não parou com seus pronunciamentos oficiais

criminosos. Além disso, em meio ao isolamento social, o presidente começou a sair às

ruas, causando aglomerações e, assim, as incentivando. Desprezava as máscaras e,

sempre que podia, falava contra as orientações do MS. No momento em que escrevo,

Jair Bolsonaro continua com as mesmas práticas de produção de aglomerações. Enfim,

uma série de crimes contra a humanidade foi cometido em pouco tempo por esse

homem. Nenhum júri e nenhuma sentença seriam suficientes para reverter o mal que foi

feito. Nada devolverá as vidas que foram ceifadas devido à sua política de extermínio.

Entretanto, certamente, isso não tira a necessidade de um julgamento, inclusive, em

tribunal internacional.

Nenhuma exceção ou tentativa de racionalização podia ser feita daqueles

discursos do presidente. O papel da política é fundamental para que a saúde possa se

desenvolver. Aos que achavam que de um lado estava a área técnica e de outro, a

política, digo que esse vírus nos ensinou algumas lições: a lição de que cada política

pública assumida implicaria um número diferente de internações e de mortes; a lição de

que precisamos de mais “Drauzios” lutando pelo SUS, falando dos problemas

decorrentes da desigualdade social e de como isso interfere no trabalho médico.

Enquanto ficarmos curando doenças em consultórios e hospitais, vamos falhar

miseravelmente. Talvez seja relativamente tarde para ouvirmos mais os sanitaristas.

Já que explicitei a importância da política em uma pandemia, tenho de imputar ao

governo federal a responsabilidade para com as mortes que viriam em abril. Elas

efetivamente vieram.

Dia 28 de abril de 2020: 72.899 casos confirmados e mais de 5 mil indivíduos

mortos no Brasil. Nesse dia, os jornalistas confrontaram o chefe do Executivo sobre os

dados do país. Novamente, eclodiu-se mais uma amostra do sarcasmo de Bolsonaro e

sua desconsideração para com a vida da nação.

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A resposta foi: “O que eu tenho a ver com isso? E daí!? Sou Messias, mas não faço

milagre”. Deveras, o que poderia um presidente ter a ver com o seu país?

Não teremos chances contra a nova peste enquanto existir um Capitão Corona no

governo do Brasil. Como diria o neurologista Miguel Nicolelis, não dá para lutar contra

uma pandemia e um pandemônio ao mesmo tempo!

29 de abril de 2020

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UMA AULA DE COMO NÃO TESTAR UM MEDICAMENTO

Natalia Pasternak 12 e Carlos Orsi13

Entre a segunda metade de março e a primeira quinzena de abril de 2020, a

população brasileira foi bombardeada por uma bem-orquestrada operação de relações

públicas – envolvendo entrevistas na grande imprensa, comentários em redes sociais e,

até mesmo, intervenções do presidente da República –, dando conta de que o grupo

provado de saúde paulista Prevent Senior “em breve” publicaria um estudo atestando a

utilidade da combinação de drogas hidroxicloroquina e azitromicina no combate à

infecção causada pelo vírus SARS-CoV-2.

As comunidades médica, científica e jornalística, compreensivelmente,

aguardavam, com enorme interesse, a prometida publicação. Apontada, inicialmente,

como tratamento promissor por um pequeno estudo francês, repleto de inconsistências e

defeitos metodológicos graves, a combinação não vinha se saindo bem na maior parte

dos estudos internacionais posteriores e seguia um padrão bem conhecido no universo

dos tratamentos médicos que acabam descartados ou transformados em terapias

alternativas: quanto maior o rigor e a qualidade do estudo, menor o efeito constatado.

A possibilidade de um trabalho de boa qualidade, realizado no Brasil, reverter o

rumo do crescente consenso negativo em torno do uso da combinação de drogas no

contexto da pandemia mantinha leigos e especialistas acordados madrugadas adentro.

Quando o estudo veio a público – não no formato de artigo científico, revisado

pelos pares e publicado em um periódico de prestígio, mas, sim, de um documento

digital distribuído a jornalistas por uma assessoria de marketing –, revelou-se,

infelizmente, uma decepção acachapante. Um artigo

12 Formada em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo IBUSP,

PhD com pós-doutorado em Microbiologia, na área de Genética Molecular de Bactérias pelo Instituto de

Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, ICB-USP. 13

Jornalista formado pela Escola de Comunicação e Artes. Membro da diretoria do Instituto Questão de

Ciência.

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publicado originalmente na Revista Questão de Ciência14, e reproduzido a seguir,

explica o porquê.

Pelo menos desde a última quinta-feira, 16, circula entre jornalistas e cientistas

brasileiros um documento em PDF que parece ser o preprint – a versão “quase final” de

um artigo científico, supostamente submetida à revisão dos pares – do trabalho que

descreve os resultados obtidos pelo grupo de medicina privado brasileiro Prevent Senior

com um protocolo de tratamento de Covid-19 baseado em telemedicina (isto é,

consultas remotas) e na perigosa combinação das drogas hidroxicloroquina (HCQ) e

azitromicina (AZ).

Dizemos “parece” porque, até o momento em que escrevemos (manhã de sábado,

18), o documento não se encontra disponível em nenhuma das plataformas usuais de

preprints dedicadas ao conteúdo relativo à nova pandemia. No entanto, jornalistas

receberam nota oficial de divulgação da assessoria de marketing e comunicação do

grupo médico, e representantes do Prevent Senior concederam entrevistas sobre o

assunto – em todo esse material, já disponível ao público, o conteúdo é consistente com

o que vemos apresentado no PDF.

A repercussão do aparente manuscrito na comunidade científica tem sido a pior

possível. Especialistas em medicina baseada em evidências de renome internacional,

como o oncologista norte-americano David Gorski e o geneticista francês Gaetan

Burgio, referiram-se ao material como “execrável” (crappy, no original) e “atroz”.

O desfecho descrito é necessidade de hospitalização: se tomarmos o trabalho pelo

valor de face, ele mostra que o uso de HCQ e AZ em pacientes de Covid-19 reduz a

necessidade de internação hospitalar. O valor real, no entanto, é muito menor do que o

valor de face – tende, de fato, a zero.

As razões para isso são inúmeras. Para dar ao leitor uma visão panorâmica dos

problemas que atingem o que parece ter sido uma desastrada

14 PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. Uma aula de como não se deve testar um medicamento. 18

de abril de 2020. Revista Questão de Ciência. Disponível em:

https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2020/04/18/uma-aula-de-como- nao-se-

deve-testar-um-medicamento. Acesso em: 19 de junho de 2020.

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operação de marketing de uma empresa que sentiu a necessidade de polir a própria

reputação, além de promover a suposta eficácia da plataforma de telemedicina que

oferece aos clientes, dividimos esta análise [capítulo] em seções que vão dos problemas

éticos ao técnicos, e conclui mostrando que as falhas técnicas são, no fim, também

falhas éticas.

Conflito de interesse

Há alguns anos, a Coca-Cola Company viu-se como alvo de duras críticas,

algumas veladas, feitas pela comunidade científica e outras bem explícitas, na mídia,

por financiar uma série de estudos que sugeriam que a falta de atividade física, e não o

consumo excessivo de calorias (como, por exemplo, as calorias do açúcar presente em

refrigerantes como os da Coca- Cola Company), era a principal responsável pela

epidemia de obesidade que atinge os Estados Unidos.

A razão das críticas é a questão do conflito de interesse: é, no mínimo, suspeito

que uma empresa pague para que cientistas investiguem uma hipótese cuja confirmação

pode ter impacto positivo no marketing da companhia.

Isso acontece o tempo todo. Recentemente, descobriu-se que um estudo sobre os

“benefícios” do consumo “moderado” de álcool era bancado por fabricantes de bebidas.

E qualquer médico, cientista ou farmacêutico digno do diploma lhe dirá que estudos

financiados pela indústria farmacêutica tendem a favorecer o remédio ou o tratamento

sendo testado.

Esse favorecimento pode ser bem sutil – um leve exagero nos benefícios

descritos, efeitos colaterais que são apresentados com um pouco menos ênfase do que

seria de se esperar –, mas é sistemático na literatura científica. Muito raramente, ele

descamba para fraude deliberada. Entretanto, é algo que a comunidade científica precisa

levar em conta sempre que um novo estudo sobre intervenções em saúde humana

aparece.

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É por isso que a boa prática científica requer que autores de estudos que afetam

interesses comerciais declarem conflitos de interesse. Basicamente, se você ou seu

patrocinador têm algo a ganhar (ou perder) dependendo do resultado do trabalho, você

precisa avisar a comunidade científica disso. Não o fazer acende todo tipo de sinal de

alerta e é motivo para pôr em dúvida a integridade e as boas intenções dos envolvidos.

Se isso é verdade para estudos sobre dieta e obesidade conduzidos por

pesquisadores independentes – muitas vezes, em universidades –, mas com algum

aporte financeiro de uma empresa como a Coca-Cola, o que se poderia dizer de um

estudo conduzido dentro de uma empresa privada, por funcionários da empresa, com

dinheiro dos clientes da empresa e testando o produto que a empresa vende e do qual

sua reputação depende?

No entanto, o manuscrito não traz nenhuma menção a conflito de interesse. De

fato, o espaço reservado para declarações de conflitos diz, de modo muito explícito, que

não há nenhum.

Informação de menos

Para determinar se uma terapia “T” é eficaz contra uma doença “D”, o primeiro

passo obviamente necessário é determinar se as pessoas que estão sendo tratadas com

“T” realmente sofrem de “D”. Não faz sentido, por exemplo, dar um antitérmico para

alguém que não está com febre e, meia hora depois, concluir que, se a pessoa não tem

febre, o antitérmico funciona.

Essa necessidade óbvia, no entanto, escapou à equipe do Prevent Senior. Os

pacientes envolvidos no estudo tinham “suspeita” de Covid-19, mas nenhum resultado

de exame que confirmasse a presença do vírus. De fato, o manuscrito diz que o

critério inicial de seleção para o estudo era a presença de flu-like symptoms, ou seja,

sintomas semelhantes aos da gripe. A presença desses sintomas era avaliada por

consultas remotas.

A variedade de condições que produzem sintomas semelhantes aos da gripe talvez

só não seja maior que o número de anjos que podem dançar na

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cabeça de um alfinete. Além da gripe propriamente dita, há resfriado, asma, excesso de

poeira no ar, rinite, alergias diversas, sinusite, um sem-número de infecções bacterianas

e assim por diante. Em pacientes idosos e com comorbidades, como os clientes da

Prevent Senior, a prevalência desses sintomas pode ser ainda maior.

Resumindo: o Prevent Senior não sabia o que estava tratando. Apenas

conjecturava que parte dessas pessoas talvez estivesse contaminada pelo vírus SARS-

CoV-2. Alguns pacientes passaram por tomografias de tórax, o que talvez pudesse ser

visto como uma tentativa de aferir a plausibilidade da conjectura, mas as tomografias

não foram feitas de modo consistente e o manuscrito não diz quando foram

obtidas (se antes, durante ou depois do “estudo”).

Um representante da empresa declarou que os exames para detectar a presença do

vírus demorariam muito para ser completados e que o objetivo do estudo era avaliar a

eficácia da intervenção precoce.

Ninguém explicou, no entanto, por que os exames não foram feitos de qualquer

forma, e seus dados integrados depois, na fase de análise dos resultados. Seria, no

mínimo, interessante saber se, dos vinte pacientes que acabaram internados (oito do

grupo-tratamento e doze do grupo-controle), quantos realmente estavam infectados pelo

vírus, e, se estavam, qual era a carga viral, se precisaram de oxigênio, ventilação, UTI,

etc.

Informação demais

Se ninguém sabia o diagnóstico, todos sabiam quem estava recebendo a

combinação HCQ+AZ e quem não. Cerca de 600 pacientes com os tais flu-like

symptoms receberam a oferta de ter acesso às drogas; 400 disseram sim, 200 disseram

não. Os 200 que disseram não foram usados como grupo-controle (não está claro se

alguém fez a gentileza de avisá-los).

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O manuscrito não diz se houve algum monitoramento da taxa de adesão ao

protocolo – isto é, se alguém viu os pacientes tomando os remédios –, o que já é um

problema, mas está longe de ser o maior.

A questão é que, em princípio, todos, de pacientes às equipes de telemedicina que

iriam decidir se eles precisariam ser internados ou não, tinham um forte investimento

emocional (e, no caso das equipes do Prevent Senior, interesse financeiro) em que o

número de hospitalizações fosse o menor possível.

Do outro lado, as equipes que acompanhavam os pacientes-controle tinham o

incentivo oposto. Para além de considerações egoístas (provavelmente de natureza

inconsciente), se as equipes que acompanhavam os controles realmente acreditavam na

eficácia da HCQ+AZ, era natural considerarem que os pacientes sem medicação

corriam maior risco e, também, serem mais rigorosas na interpretação dos sintomas que

poderiam levar à hospitalização.

Do lado dos pacientes que recebiam as drogas, o investimento emocional e o

desejo de agradar os cuidadores – às vezes, chamado de “efeito Hawthorne”, o que nos

leva a escovar os dentes com cuidado especial antes de ir ao dentista – também pode

ter influenciado o resultado. É justamente para evitar dificuldades desse tipo, além da

exacerbação do efeito placebo, que os testes clínicos de melhor qualidade são chamados

de duplos-cegos, nos quais nem pacientes nem cuidadores sabem quem recebe o

tratamento e quem está no grupo de controle.

À falta de cegamento, soma-se a autosseleção: foram os próprios pacientes que

escolheram fazer parte do grupo de tratamento. Em termos do controle do efeito

placebo, isso é muito diferente do que o paciente que aceita ser randomizado – isto é,

que concorda em ser designado, por sorteio, para o grupo que vai receber a droga ou

para algum dos controles.

Não apenas o investimento emocional é de outra ordem, como também se

quebra uma condição fundamental para a validade de qualquer teste

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clínico – a de que os grupos comparados sejam o mais parecidos possível,

diferindo, no caso ideal, apenas na natureza do tratamento recebido.

É possível, por exemplo, que parte dos pacientes que recusaram o tratamento

tenha tomado a decisão por conta de problemas cardíacos ou histórico cardíaco na

família – questões que os colocam num grupo de maior risco de complicações causadas

pela Covid-19.

As tabelas fornecidas junto com o manuscrito indicam, por exemplo, que mais

pacientes do grupo de tratamento entraram no estudo se queixando de febre, tosse,

coriza, diarréia e dor de cabeça. Talvez, essas pessoas tenham aceitado as drogas por

estarem assustadas. Mas, se parte delas estava no auge de um resfriado comum, podem

apenas ter sarado naturalmente no curso da pesquisa – afinal, “resfriado passa com

repouso e canja de galinha”.

Informação nenhuma

Uma das possíveis definições para informação é “aquilo que reduz nossa

ignorância”. Nesse aspecto, o estudo conduzido pelo Prevent Senior tem valor

informativo zero. As eventuais dúvidas da comunidade médico-científica sobre a

eficácia e a conveniência do uso de HCQ+AZ no tratamento da Covid-19 continuam

exatamente como estavam. Nada foi agregado.

Ruído, por sua vez, pode ser definido como algo que ocupa espaço num canal de

comunicação, mas não conduz informação: estalos e zumbidos num telefonema,

chuvisco numa televisão, caracteres ao acaso no meio de um texto. O “estudo” do

Prevent Senior pode ser definido como ruído científico, o que, numa situação de

pandemia, é condenável – já que consome recursos, tanto financeiros quanto cognitivos,

que poderiam ser muito melhor aplicados.

Representantes do grupo médico em questão têm tentado defender o resultado

afirmando que fizeram o melhor possível. Se quisessem mesmo fazer o melhor possível,

poderiam ter seguido princípios básicos de ética médica e registrado seu desenho

experimental no site internacional de registro de testes

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clínicos, para que a comunidade científica pudesse opinar e, até mesmo, orientar

sobre as graves falhas metodológicas.

Essa prática é uma praxe em estudos de medicamentos justamente para respeitar a

transparência da ciência e para que os demais especialistas possam avaliar se o trabalho

foi desempenhado de acordo com a proposta inicial; desvios entre o projeto registrado e

o trabalho executado não são bem vistos. Infelizmente, o registro desse “estudo” do

grupo médico foi feito após a elaboração e a divulgação do manuscrito e descreve

um estudo bem diverso do apresentado.

Estudos clínicos controlados sobre medicamentos existem para tentar eliminar

fatores de confusão que podem comprometer os resultados. O estudo do Prevent Senior

fez o oposto: gerou confusão com a desculpa de que qualquer tipo de informação é

melhor do que nada. Qualquer turista que já tenha ido parar num bairro violento após

seguir indicações falsas do GPS sabe que isso está longe de ser verdade.

Texto II

A onda global de entusiasmo com os fármacos cloroquina (CQ) e

hidroxicloroquina (HCQ) como possíveis remédios para a Covid-19 eclodiu a partir de

um único “estudo” em humanos sobre o assunto; porém, esse estudo contém tantos

defeitos, erros e imprecisões que o coautor de maior prestígio dentro da comunidade

científica, o médico e microbiologista francês Didier Raoult, rapidamente passou a ser

tratado como maluco excêntrico pela mídia internacional.

Dentre os problemas do ensaio conduzido por Raoult, publicado num periódico

que tem, como editor, um de seus coautores, estão a ausência de um grupo de controle

significativo, o número minúsculo de pacientes envolvidos, a mixórdia experimental (no

início, era sobre hidroxicloroquina e, depois, transformou-se num estudo sobre a

associação entre a HCQ e o antibiótico azitromicina) e a manipulação excessivamente

liberal dos dados gerados (os

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pacientes que pioraram depois de receber HCQ foram, convenientemente, excluídos da

análise final).

O choque entre a reputação construída e a realidade do trabalho publicado foi

tamanho que inclusive o currículo acadêmico de Raoult ficou sob novo escrutínio: o

jornal Le Figaro resgatou uma acusação feita no livro Malscience, do biólogo

Nicolas Chevassus-au-Louis, que aponta que o número de publicações científicas

atribuídas ao francês, num período de quinze anos (1996-2011) supera 12 mil. Segundo

a base de dados de artigos científicos da área médica PubMed, só em 2020 já saíram 36

artigos onde seu nome consta como autor, o que dá uma média aproximada de uma

publicação a cada dois dias. “Demais para ser honesto?”, questiona Le Figaro.

Esse despertar do senso crítico, porém, chegou tarde e fora muito lento, sobretudo

diante do estrago causado pela recepção inicial dada ao “estudo”, divulgado no fim de

março de 2020. Até mesmo cientistas sérios e comunicadores da ciência experientes,

aparentemente ofuscados pela reputação prévia de Raoult e abalados pelo custo humano

da Covid-19, optaram, de início, por fazer vista grossa para os problemas óbvios que

invalidam o trabalho e, então, saudaram a publicação como uma contribuição relevante

para o combate à pandemia.

A opção preferencial pela complacência ignorou uma lição que deveria ser o

bê-á-bá de qualquer cientista ou comunicador da área: a dos indícios clássicos de

crackpottery, expressão da língua inglesa quase intraduzível para o português que

define um espectro de distorções da prática científica que vai desde a incompetência

ingênua ao charlatanismo desbragado, sempre em parceria com obstinação e soberba.

Alguns dos indícios clássicos são: pesquisador que apresenta seus resultados de

modo espetacular ao público leigo, antes de buscar a revisão dos pares; pesquisador que

faz alegações grandiosas com base em amostras pequenas ou na ausência de estudos

formais; pesquisador que faz alegações grandiosas sobre um assunto científico fora de

sua área de expertise; pesquisador que se mostra mais preocupado em convencer o

público leigo e

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lideranças políticas do que em responder às críticas técnicas dos demais

especialistas da área.

Exemplos comumente citados são a recomendação do uso de superdoses de

vitamina C como panaceia, o fiasco da fusão a frio, a conexão espúria entre vacinas e

autismo e, aqui no Brasil, a famigerada “pílula de câncer”, a fosfoetanolamina sintética.

Embora o uso da CQ ou da HCQ como antiviral não seja, em si, uma ideia

crackpot – há pelo menos um bom estudo in vitro, isto é, envolvendo células em

cultura de laboratório, que sugere a possibilidade –, o trabalho específico do grupo

de Raoult, se não chega a completar o bingo da crackpottery (o pesquisador,

afinal, é da área), emitia, desde o início, claros sinais de alerta. Indícios como o fato de

Raoult ter optado por ir ao YouTube para se gabar da “descoberta” antes da publicação

do artigo científico e a amostra muito pequena (grupo de tratamento inicial com apenas

26 pessoas) já deveriam ter deixado todo mundo com o pé atrás.

Depois, a mera leitura do artigo, tal como apresentado, deveria ter sido suficiente

para eliminar toda e qualquer dúvida de que se tratava de um caso de crackpottery da

mais fina estampa: dentre os diversos problemas do estudo, salta aos olhos a informação

de que os pacientes que pioraram (e o que morreu!) durante o tratamento foram

desconsiderados. É como se os autores tivessem partido do princípio de que o remédio

só poderia fazer bem.

E mesmo o “bem” constatado é duvidoso. Em entrevista, o virologista alemão

Christian Drosten, principal consultor do governo Angela Merkel em sua bem-sucedida

resposta à pandemia, diz que “os resultados possivelmente teriam sido os mesmos se os

pacientes tivessem tomado um comprimido para dor de cabeça”.

A complacência inicial de comunicadores e cientistas para com a publicação teve,

e segue tendo, consequências nefastas: a perspectiva de uma cura fácil e ao alcance da

mão encantou líderes populistas, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que têm uma

visão pragmática do que conta como evidência científica – o pragmatismo, nesse caso,

é dar relevância apenas ao

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que pode ser usado para promover suas agendas políticas. Tanto Trump quanto

Bolsonaro, aliás, são reincidentes: o mandatário estadunidenseflertou, quando lhe foi

conveniente, com o movimento antivacinação, e o brasileiro foi um promotor da “pílula

do câncer”.

Se, nos Estados Unidos, as autoridades sanitárias, após uma hesitação inicial,

demonstraram a altivez necessária para conter os arroubos presidenciais – tanto a FDA

quanto o médico Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças

Infecciosas, não se furtaram ao dever de contradizer, sem meias palavras, as falsidades

proferidas por Trump sobre o assunto –, no Brasil, não tivemos a mesma sorte: o nosso

então ministro da Saúde Henrique Mandetta chegou a dizer que havia “validado” a

cloroquina para ser usada no Brasil em pacientes graves de Covid-19.

Hospitais privados, como o Albert Einstein, de São Paulo (SP), dispuseram-se,

bovinamente, a conduzir testes do “protocolo” apresentado por Raoult. Dada a péssima

qualidade dos dados oferecidos em defesa do tal “protocolo”, tratou-se de uma escolha

difícil de ser justificada em bases científicas. De acordo com um levantamento feito

pelo jornalista Carl Zimmer para o The New York Times, existem pelo menos 69

fármacos promissores a serem testados contra o SARS-CoV-2. A

cloroquina/hidroxicloroquina é apenas mais um deles, e um dos menos relevantes.

O hype teve que, dentre outras consequências, distorcer as prioridades de

pesquisa em todo o mundo: mais de um mês depois da publicação original, a

cloroquina era o fármaco mais pesquisado no mundo em relação à Covid-19.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), que, em primeira avaliação, havia

considerado a cloroquina e a hidroxicloroquina inadequadas para um teste em escala

mundial de fármacos promissores para o combate ao SARS-CoV-2, viu-se coagida a

incluí- las.

Muito provavelmente, isso tudo representa perda de tempo e um trágico

desperdício de recursos. Ouvida pela revista Science, a especialista Susanne Herold

lembra que “pesquisadores vêm testando essa droga contra um vírus

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atrás do outro, e ela nunca funciona em humanos”. O fracasso mais recente envolveu

o vírus chicungunha.

Diversos países passaram a sofrer desabastecimento de medicamentos à base de

cloroquina, usada no combate à malária, e de hidroxicloroquina, usada contra lúpus e

artrite reumatoide.

Na Nigéria e nos Estados Unidos, foram registradas mortes causadas pela

automedicação com cloroquina/hidroxicloroquina contra o vírus. Não se trata de um

fármaco inócuo; ele é capaz de causar efeitos colaterais graves, atacando, por exemplo,

os olhos e o coração. Uma dose de apenas dois gramas pode matar um homem

adulto.

Há quem defenda que, em condições de guerra, os rigores usuais da ciência não

se aplicam mais. É um raciocínio profundamente falacioso, visto que os rigores da

ciência não são luxos, e sim salvaguardas que reduzem – mas jamais eliminam – o risco

de mentirmos para nós mesmos, de permitirmos que medos ou esperanças nos ceguem

para os fatos. Ademais, condições de guerra não nos tornam menos vulneráveis a esses

riscos. Muito pelo contrário.

Pode ser que a CQ seja eficiente para combater a Covid-19. No entanto, as

evidências que vêm se acumulando desde a desastrada publicação original sugerem,

cada vez mais, que ela não é. Cumprindo um padrão que é, infelizmente, um velho

conhecido de quem estuda a parte da história da Medicina que dá conta das fraudes, dos

erros e das falsas esperanças, a cloroquina contra a Covid-19 refaz o caminho da

fosfoetanolamina, da homeopatia e de tantos outros tratamentos “aprovados” por clamor

popular: como já mencionado, quanto mais bem desenhado e conduzido o estudo,

menor o efeito constatado – que tende a zero à medida que a qualidade da avaliação

aumenta.

A priorização da CQ e da HCQ na pandemia de 2020 entrará para a história como

um momento em que políticos e parte da comunidade médico- científica resolveu jogar

roleta-russa com a saúde da população.

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O DESVANEIO DE BOLSONARO EM TEMPOS DE PANDEMIA

Hugo Lopes de Oliveira15

Em novembro de 2016, quando os delegados do estado de Wisconsin (EUA)

foram computados e o republicano Donald Trump ultrapassou o número mínimo de 270

delegados, muita gente não imaginava o que viria dali em diante. Os analistas estavam

surpresos com a vitória de um candidato do Partido Republicano que era um outsider

da política, sem nenhuma tradição de militância em qualquer área. Os EUA estavam

prestes a ganhar mais do que um presidente republicano, um presidente de extrema

direita, mais radical, inclusive, do que a ala do Freedom Caucus, do próprio Partido

Republicano.

Para alguns analistas, Donald Trump aproveitou uma onda conservadora e

nacionalista que já vinha percorrendo parte da Europa e da América. Para outros, Trump

inaugurou, por si só, um estágio em vários setores, como na política externa dos EUA,

rompendo várias barreiras. De fato, não se pode negar que a eleição de Trump como um

presidente de extrema direita na nação mais poderosa e influente do mundo é um divisor

de águas. Nesse embalo, uma parte considerável da América Latina viveu uma guinada

à direita após um considerável período de governos à esquerda. A Argentina nomeou o

neoliberal Maurício Macri em 2017 e a Venezuela constatou o enfraquecimento do

chavista Nicolás Maduro. O Brasil não ficou de fora desse movimento e elegeu Jair

Bolsonaro, que tem um discurso de extrema direita e pautas de combate à esquerda e ao

que ele chamava de comunismo.

Desde o início da campanha eleitoral em 2018, Bolsonaro fez questão de se

aproximar de Donald Trump. Eram frequentes às menções ao líder estadunidense não

fazendo nenhuma questão de esconder a simpatia pelas ideias dele. Já eleito, Bolsonaro

alinhou a política externa brasileira aos princípios e desejos dos estadunidense Recebeu

o então Conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, John Bolton, em sua

residência para um

15Licenciado em História pela UFRuralRJ e Especialista em Ensino de História pelo Colégio Pedro II.

Diretor Geral do Centro de Atenção à Criança e ao Adolescente Paulo Dacorso Filho (UFRualRJ e PMS)

e Coordenador Geral do Núcleo Municipal de Seropédica do SEPE – Sindicato Estadual dos Profissionais

em Educação do Rio de Janeiro.

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café da manhã mais do que simples, simplório! Viajou para os EUA quatro vezes em

menos de quinze meses de mandato, quebrando o recorde de todos os presidentes

anteriores. Cedeu aos estadunidenses em disputas comerciais e alinhou-se a eles em

votações na ONU. Pela primeira vez na história, o Brasil rompeu a tradição e votou,

junto com EUA e Israel, favoravelmente ao embargo econômico à ilha de Cuba.

Agora, em 2020, o mundo está diante daquela que pode ser a mais terrível das

pandemias da era moderna. Um vírus que começou na China alastrou-se, em poucas

semanas, para o mundo inteiro e desvendou uma consequência perversa da

globalização: a velocidade com que as doenças podem percorrer o planeta. Sem uma

vacina eficaz, o novo coronavírus tornou- se mortal para muitas pessoas. Sobrecarregou

os sistemas de saúde públicos e privados, em países ricos e pobres. Atingiu a todos, mas

mostrou sua face mais perversa entre os mais pobres, em especial nas periferias da

América Latina e nos países pobres da África.

O novo coronavírus permitiu que o mundo se unisse no enfrentamento da

pandemia. Ampliação das pesquisas, trocas de informações e compartilhamento de

equipamentos e insumos foram algumas das medidas tomadas pelas autoridades na

tentativa de conter o vírus e evitar mais mortes. A Organização Mundial da Saúde

(OMS) conquistou uma espécie de soberania mundial, em especial se esquadrinharmos

os escritos do filósofo italiano Giorgio Agamben. Conquanto, para além dessa

concórdia, o mundo presenciou Donald Trump e Jair Bolsonaro, presidentes da

República e líderes de duas das nações mais atingidas pela Covid-19, em uma união

quase impensável em torno das críticas ao isolamento social.

Trump e Bolsonaro juntaram-se para, entre outras coisas, defenderem o uso do

medicamento cloroquina no tratamento da doença, criticar os efeitos econômicos do

isolamento social e acusarem a China de ter criado o vírus. Trump disse que tinha

evidências de que o vírus seria uma criação de Pequim, mas não apresentou provas. Já

Bolsonaro, seguindo seu ídolo, afirmou que estaria convencido de que o vírus era um

plano do governo chinês. Em tese, Trump acreditava que a China queria se aproveitar

economicamente do vírus e

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Bolsonaro – um militar expulso do Exército, que se formou na Academia Militar das

Agulhas Negras (Aman) nos anos de 1980 e que ainda pensa de acordo com o que

aprendeu no quartel – julgou o vírus como uma possível ameaça comunista. Ele acredita

friamente de que há um inimigo em comum a ser combatido: o comunismo. Dessa

forma, Bolsonaro apega-se às lições aprendidas na Doutrina de Segurança Nacional do

General Golbery do Couto e Silva, na Aman, e as repete até hoje. Entretanto, Bolsonaro

e Trump estão errados.

O filósofo germano-coreano Byung-Chul Han escreveu recentemente um artigo

publicado no jornal El País16 mostrando que não há motivos plausíveis para que a

China tire algum proveito do vírus. Essa conjectura deve-se, em parte, ao fato de vários

analistas ocidentais, em especial os europeus, viverem com o passado nazista nas costas

e, assim, temerem medidas antidemocráticas por parte dos Estados no combate ao vírus.

Giorgio Agamben, filósofo italiano, tem se preocupado com as decisões tomadas pelos

governos da Itália e de outros países europeus no que concerne ao isolamento social.

Apesar de seus esforços estarem concentrados na reflexão sobre a ética que surgirá

após essa pandemia, Agamben não deixa, de certo modo, de alfinetar os europeus para

que não se esqueçam dos horrores do totalitarismo.

As alfinetadas de Agamben não surtem efeito na China porque – como explica

Byung-Chul Han –, na Ásia, medidas como o controle da população por chipes

eletrônicos, a identificação em câmeras de reconhecimento facial ou o monitoramento

remoto não são vistas como uma invasão do Estado na vida privada do cidadão, uma

vez que os asiáticos já teriam uma tradição mais autoritária em decorrência da sua

história cultural ligada ao confucionismo. Por terem uma vida mais regrada e

disciplinada, as populações desses países aceitariam mais passivamente políticas de

controle social adotadas em tempos de pandemia, diferentemente da maior parte da

Europa e da América, onde há forte resistência a adoção desse tipo de política.

Enquanto no Brasil se discutem questões éticas em torno da tecnologia de

reconhecimento facial, em

16 HAN, Byung-Chul. O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, segundo o filósofo Byung- Chul

Han. 22 de março de 2020. El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ideas/2020- 03-22/o-

coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html. Acesso em: 02 de

junho de 2020.

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alguns países asiáticos quase a totalidade da população já é monitorada por esses

sistemas, sem nenhuma resistência.

O pensamento bolsonarista, amparado nas ideias de Trump de que o vírus seria

uma criação chinesa, avistou o perigo de um possível domínio comunista no mundo –

algo que não se sustenta empiricamente – e sustentou a ideia de que os chineses usariam

a pandemia para imporem à população medidas de controle social. Todavia, como bem

lembra Byung-Chul Han, os países asiáticos já possuem um forte esquema de

controle da população a partir do uso de tecnologias, de modo que o governo chinês

não tem necessidade de criar um vírus para poder controlar sua população através da

imposição de medidas totalitárias. As ideias de Bolsonaro, calçadas tanto na Doutrina de

Segurança Nacional aprendida durante seu serviço ao Exército quanto nos

“ensinamentos” de Donald Trump, não passam de puro desvaneio ideológico, pois a

China já controla sua população há tempos por meio da tecnologia.

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O NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL E SUA REPERCUSSÃO NA

MÍDIA ESTRANGEIRA

Luma da Silva Miranda17

A cobertura da mídia sobre a Covid-19 no mundo dominou a programação de

grande parte das empresas de comunicação. A pandemia do novo coronavírus foi

anunciada no dia 11 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e,

desde então, temos testemunhado, em vários países dos cinco continentes, um

crescimento vertiginoso do número de infectados e de óbitos em decorrência da doença

por ele causada.

A primeira cidade que registrou a epidemia da Covid-19 foi Wuhan, que fica na

província de Hubei, na China, e que foi também a primeira cidade a entrar em

confinamento social. Em 23 de janeiro de 2020, a China adotou, em Wuhan e em outras

cidades nos arredores, o lockdown, isto é, o bloqueio total de circulação de pessoas,

incluindo fechamento de vias e proibição de deslocamentos e viagens não essenciais.

Após 76 dias de confinamento total, a cidade de Wuhan voltou a abrir suas portas

gradualmente, por conta da diminuição tanto dos casos de transmissão local do tal vírus

quanto do número de mortes. Foi somente no dia 08 de abril que Wuhan reabriu18.

Mais tarde, no dia 13 de março de 2020, o epicentro da já reconhecida pandemia

passou a ser a Europa, mais especificamente a região da Lombardia, no norte da Itália,

sendo esse um dos países da Europa mais afetados pela Covid-19. Recentemente, o

Brasil começou a se tornar o epicentro da enfermidade, ao lado dos EUA. Apesar de o

Brasil ter tido pelo menos três meses de acompanhamento midiático sobre a pandemia

em países como China, Itália e Espanha, não houve, por parte das autoridades

públicas,

17

Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente trabalha como

Leitora de Português do Brasil na Universidade Eötvös Loránd, em Budapeste, Hungria. 18

Conforme LEMOS, Vinicius. 'Parece uma cidade após a guerra': brasileiros em Wuhan descrevem

recomeço em primeiro epicentro do coronavírus. 06 de maio de 2020. BBC News. Disponível em:

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-

52554336?at_custom2=twitter&at_custom3=BBC+Brasil&at_medium=custom7&at_custom4=01

7A7096-96D2-11EA-9941E3DDFCA12A29&at_custom1=%5Bpost+type%5D&at_campaign=64. Acesso

em: 18 de maio de 2020.

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uma preocupação em tomar medidas preventivas mais rígidas, a fim de que

minimizar o impacto dela na população brasileira.

Diferentemente de países mais desenvolvidos, como os da Europa, o Brasil é um

país que apresenta uma gigantesca desigualdade social e uma enorme quantidade de

cidadãos vivendo na miséria. No que concerne à experiência com o novo coronavírus, o

resultado não poderia ser outro a não ser o próprio Brasil se tornar um dos países do

mundo mais afetados pela Covid-19. Em 18 de maio de 2020, o Brasil ocupava o

terceiro lugar do mundo em número de infectados19.

Enquanto este livro está sendo escrito, ao acompanhar a mídia internacional, nota-

se que, de modo geral, as agências de notícias estrangeiras declaram que o Presidente da

República Jair Messias Bolsonaro não está ajudando, de maneira responsável e efetiva,

o Brasil a passar por essa crise de saúde. Constantemente, os noticiários informam que

Bolsonaro adota uma atitude populista, dizendo que está defendendo a liberdade do povo

brasileiro, ao se posicionar contra o isolamento social. Diversos jornais declaram que a

economia do país está sendo priorizada, em vez da saúde da população20, e que o Brasil

viverá uma hecatombe anunciada21,22. Vejamos, agora, alguns casos que aconteceram

no Brasil e que ganharam repercussão na mídia internacional.

19 Agência AFP. Brasil pasa AL Reino Unido y se convierte em El tercer país com más casos de COVID-

19. 18 de maio de 2020. Mundo, El País. Disponível em:

https://www.elpais.com.uy/mundo/coronavirus-brasil-pasa-reino-unido-convierte-tercer- paiscasos-

covid.html. Acesso em: 19 de maio de 2020. 20

Al Jazeera. Bolsonaro called bigges tthreatto Brazil's coronavirus response. 09 de maio de 2020. Al

Jazeera. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/05/bolsonaro-called- biggest-threat-

brazil-coronavirus-response200509054352022.html. Acessoem: 19 de maio de 2020. 21

Agência AFP. Coronavirus: Le Brésil face à une hecatombe annoncée. 02 de maio de 2020. Le Point

International .Disponível em: https://www.lepoint.fr/monde/coronavirus -le-bresil-face-a- une-

hecatombe-annoncee-02-05-2020-237380224.php. Acesso em: 18 de maio de 2020. 22

MEYERFELD, Bruno. Coronavirus: Le Brésil desarme face àl’effondrement sanitaire. 18 de maio

de 2020. Le Monde. Disponível em:

https://www.lemonde.fr/international/article/2020/05/18/coronavirus -le-bresil-desarme-face-a-

leffondrement-sanitaire_6039978_3210.html. Acesso em: 19 de maio de 2020.

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Histeria da mídia e “gripezinha”

O ataque à mídia brasileira23 foi uma estratégia adotada por Bolsonaro em seus

pronunciamentos. No dia 22 de março de 2020, por exemplo, Bolsonaro declarou que a

mídia era responsável por criar pânico na população em relação à chegada da Covid-19

no país, além de enganar os brasileiros. Dois dias depois, em entrevista coletiva24, o

nosso presidente da República referiu-se à Covid-19 como uma “gripezinha”,

subestimando o alto grau de letalidade do novo coronavírus. Nada tem de original, pois

Bolsonaro imitou o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que também deu

diversas declarações sobre a pandemia sem embasamento científico nenhum. Trump

chegou a falar que os Estados Unidos tinham tudo sob controle e que não era necessário

se preocupar. Sem o menor pudor, o presidente estadunidense também disse que a

Covid-19 iria desaparecer. Ambos os países enfrentam, agora, uma das maiores crises

de saúde pública de suas histórias.

“E daí?”

Pouco tempo após o registro do primeiro caso de Covid-19 no Brasil, o número de

mortes começou a crescer. Ao ser questionado pela imprensa brasileira sobre as 5 mil

mortes em decorrência do novo vírus no país, Bolsonaro disse: “E daí? Sinto muito. O

que eu posso fazer?”. Essa resposta dada por Bolsonaro gerou uma intensa revolta na

população brasileira e também repercutiu em diversas agências de notícias

estrangeiras25, fazendo do Brasil um modelo a não ser seguido no combate à

Covid-19. Além disso,

23 PHILLIPS, Tom. Brazil's Jair Bolsonaro says coronavirus crisisis a media trick. 23 de março de

2020. The Guardian. Disponível em:

https://www.theguardian.com/world/2020/mar/23/brazils -jair-bolsonaro-says-coronavirus-

crisisis-a-media-trick. Acesso em: 18 de maio de 2020. 24

FOLHA DE S. PAULO. De 'gripezinha' a pacto, compare pronunciamentos de Bolsonaro na crise do

coronavírus. 08 de abril de 2020. Folha de S. Paulo. Disponível em:

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/de-gripezinha-a-pedido-por-uniao-compare-

ospronunciamentos-de-bolsonaro-na-crise-do-coronavirus.shtml. Acesso em:18 de maio de 2020. 25

PHILLIPS, Tom. 'Sowhat?': Bolsonaro shrugs off Brazil's rising coronavirus deathtoll. 29 de abril

de 2020. The Guardian. Disponível em:

https://www.theguardian.com/world/2020/apr/29/so-what-bolsonaro-shrugs-off-brazil- risingcoronavirus-

death-toll. Acesso em: 19 de maio de 2020.

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mesmo depois que o novo coronavírus começou a fazer suas vítimas no país, o

presidente Bolsonaro nunca restringiu as aglomerações ao redor dele. Sem vestir

máscaras de proteção, ele caminhou inúmeras vezes até as grades do Palácio do

Planalto, onde compareciam multidões de manifestantes e seus apoiadores, e os

cumprimentava, inclusive com apertos de mão. Chegou, até mesmo, a tirar fotos junto

com crianças.

Amazônia e índios em perigo

Grande parte da mídia estrangeira noticiou a situação vulnerável que os povos

nativos da floresta amazônica enfrentava em face da Covid-19. Em entrevista ao vivo na

rede internacional CNN, no dia 04 de maio de 2020, o fotógrafo brasileiro Sebastião

Salgado falou do potencial genocídio dos povos indígenas da Amazônia em razão da

Covid-19. Sebastião Salgado também denunciou a invasão de grupos de mineradores na

Amazônia e afirmou que o governo brasileiro não está tomando medidas cabíveis para

solucionar o problema. Tanto a mídia internacional quanto organizações internacionais

de defesa do meio-ambiente expressaram preocupação com a total falta de ação do

governo brasileiro para proteger a vida dos índios e a floresta.

A fixação pela cloroquina

A mídia internacional exprime uma grande apreensão quanto ao discurso e às

atitudes da autoridade máxima do Brasil acerca do combate ao novo coronavírus,

especialmente no que concerne ao tratamento da doença26 com uso da cloroquina27 – um

medicamento produzido no Brasil, já utilizado, por exemplo, no tratamento da malária.

Apesar de Trump já ter parado de flertar com a cloroquina, Bolsonaro continua dizendo

que a cura para a Covid-19 tem relação com essa medicação. Trump agora foca seu

discurso na vacina contra

26

WOOD, Vincent. Coronavirus: Bolsonaro defies healthad vice topose with supporter sãs Brazil

becomes fourth most-infected country. 18 de maio de 2020. Independent. Disponível em:

https://www.independent.co.uk/news/world/americas/coronaviruslatestbraziljairbolsonarolockdo wn-

economy-chloroquine-health-minister-a9519411.html. Acesso em: 18 de maio de 2020. 27

A cloroquina é tema de outros capítulos deste livro.

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a Covid-19, enquanto Bolsonaro insiste no uso da cloroquina. Isso, inclusive, gerou

vários conflitos entre o presidente Bolsonaro e seus ministros da Saúde que, baseados

em sua formação médica e bom-senso, não endossaram o uso da cloroquina.

A troca de ministros da Saúde

O cargo de ministro da Saúde tornou-se palco de uma das mais lamentáveis

situações da pandemia. O ministro que cuidava da gestão da crise ainda em seu início

era Luiz Henrique Mandetta, médico de formação. No entanto, à medida que o

presidente Bolsonaro incitava o uso da cloroquina no combate à doença, criava um

conflito com as determinações do seu próprio ministro. Após muito desgaste, Mandetta

saiu. O cargo foi assumido pelo médico Nelson Teich, mas, em menos de um mês, esse

novo ministro pediu demissão28. É notável a denotação de um caos na administração do

governo em meio à pandemia da Covid-19 e de um país que segue sem rumo quando

deveria estar salvando vidas.

O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta alega que Bolsonaro usa a

cloroquina como uma maneira de iludir a população de que é seguro sair às ruas e voltar

a trabalhar, pois, com o uso dela, haveria tratamento para a doença. Mais grave do que

isso é a denúncia de Mandetta de que Bolsonaro, junto com uma equipe do governo

federal, queria assinar um decreto que alteraria a bula da cloroquina, inserindo a

informação de que essa medicação é indicada no tratamento de Covid-19. Esse seria um

ato criminoso, pois uma decisão desse teor poderia ser deliberada somente pelo

Conselho Federal de Medicina (CFM), e não pelo presidente da República, que não tem

formação na área, acompanhado de apenas um médico. No entanto, no dia 20 de maio de

2020, o Ministério da Saúde do Brasil, mesmo sem comprovação científica,

28

LONDOÑ O, Ernesto. Another Health Ministerin Brazil exit samid chaotic coronavirus response. 15

de maio de 2020. The New York Times. Disponível em:

https://www.nytimes.com/2020/05/15/world/americas/brazilhealthministerbolsonaro.html. Acesso em: 18

de maio de 2020.

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liberou um protocolo que libera o uso da cloroquina para o tratamento precoce de

Covid-1929.

Considerações finais

Esses cinco casos ocorridos no Brasil, especialmente, repercutiram na mídia

internacional em grande parte do mundo, inclusive na Hungria, país onde eu, autor deste

capítulo, vivo. O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, embora seja de um partido

de extrema direita, assim como Bolsonaro, agiu de maneira mais responsável em relação

ao avanço da Covid-19 na Hungria. Todavia, o chefe de Estado húngaro aproveitou-se

desse momento da pandemia para aumentar seu autoritarismo e decretou o fechamento

do congresso húngaro por tempo indeterminado.

A justificativa de Orbán é que seria mais eficiente implementar medidas de

combate à Covid-19 se ele não tivesse que gastar muito tempo com reuniões

envolvendo todos os parlamentares para fazer as deliberações. Contudo, a maioria das

nações não apresentou esse problema levantado pelo governo húngaro e não precisou

alterar o funcionamento da democracia por causa da Covid-19. Recentemente, Orbán

anunciou que reabrirá o congresso e exige que todos aqueles líderes que fizeram críticas

ao seu governo por causa desse decreto autoritário peçam desculpas por terem afirmado

que ele não o revogaria.

No Brasil, embora o distanciamento social tenha sido aplicado por determinação

de vários governadores e prefeitos, o número de casos de Covid-19 no Brasil cresce

assustadoramente. Além disso, sabe-se que o Brasil coloca em risco não apenas a sua

população, mas também de outros países da América do Sul. A negligência a estudos

científicos nos discursos presidenciais tem um efeito direto nas deliberações de

instituições públicas que deveriam estar protegendo a população contra a pandemia

do coronavírus.

29 Agência AFP. Brazil recommend schloroquine totre ateven mild COVID-19 cases. 20 de maio de

2020. France 24. Disponívelem:

https://www.france24.com/en/20200520brazilrecommendschloroquine-to-treat-even-mild- covid19-cases.

Acesso em: 21 de maio de 2020.

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Isso significa que a situação que estamos testemunhando não é algo que permanece

exclusivamente no discurso. Essa confusão, regada com desinformação, está custando

milhares de vidas.

Convém lembrar que, no âmbito internacional, o Brasil tem um íntegro histórico

de combate a crises de saúde30. A última crise enfrentada pelo Brasil de grande

repercussão internacional foi em 2014 com o surto do Zika vírus. Os acontecimentos

atuais no Brasil durante a pandemia do coronavírus diminui sua importância no

cenário mundial, uma vez que sua trajetória outrora bem sedimentada no combate a

epidemias está se deteriorando.

30 LONDOÑ O, Ernesto. Brazil, on cealeader, struggles to contain vírus amid political turmoil. 16 de maio

de 2020. The New York Times. Disponível em:

https://www.nytimes.com/2020/05/16/world/americas/virusbrazildeaths.html. Acesso em: 19 de maio de

2020.

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O GRANDE MAL E OS TRABALHOS

Thiago Ricardo de Mattos31

Hoje, quando escrevo este texto, o número de mortes pelo coronavírus passa dos

300 mil no mundo e dos 15 mil no Brasil. É um grande mal que se abate sobre a raça

humana, comparável ao que foram a peste negra, a epidemia de cólera e o holocausto.

Para se protegerem da nova ameaça, alguns países europeus fecharam suas

fronteiras a países vizinhos. O filósofo italiano Giorgio Agamben, sem nenhum prejuízo

à proteção, não pôde deixar de perceber nessa fronteirização a expansão do estado de

exceção, noção que designa o modo moderno de gestão populacional que deixa

determinada parte da população sem direitos. O medo do contágio apoia-se,

irracionalmente, em um antigo medo ao estrangeiro.

No Brasil, em seu cotidiano e sua construção dos modos de viver, o eu e o outro,

o asfalto e a favela são inseparáveis entre si. A ordem de isolamento social não é

investida por nenhuma libido. Aqui, a mentalidade social e as políticas diferenciam

entre aqueles que devem trabalhar e, por conseguinte, não podem se isolar e aqueles que

não precisam trabalhar. Em um momento em que se deve buscar reduzir a velocidade

dos novos casos de coronavírus, o governo brasileiro insiste que o principal mal a se

evitar é a destruição da economia. Por isso, ele pressiona estados a abrirem seu

comércio e serviços, e lança sucessivas sugestões e ameaças de perda de emprego à

população mais pobre, aquela sobre a qual o trabalho sempre foi usado como medida de

controle social.

Uma sabedoria antiga sobre como o ser humano deve lidar com os males que

sobre ele se abatem é narrada no famoso poema épico “Odisseia”, de Homero. Zeus

ordena que todos sejam hospitaleiros com o estrangeiro que lhe vem. Ulisses e sua

tripulação chegaram a uma terra que lhes pareceu acolhedora e provedora, e esperavam

a hospitalidade dos locais. Entretanto, os

31 Estudante de Filosofia. Graduado em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá.

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Ciclopes, que não respeitavam Zeus, aprisionaram e devoraram os visitantes. Textos

como esse são proveitosos não para os comparar com a atualidade, mas, sim, para fazer

questionamentos como “Por que Zeus quer que sejamos hospitaleiros com o

estrangeiro?” ou “Por que se deve reprovar os governantes que não favorecem a

equanimidade entre os homens?”.

Talvez haja uma resposta para essas perguntas no texto sobre o mito das duas lutas,

constante no também poema épico “Trabalho e os dias”, de Hesíodo.

Hesíodo evoca as Musas, que falarão, através da boca do poeta, a sabedoria de

Zeus. De acordo com Zeus, a vida do homem sobre a Terra conhece duas lutas: a

primeira delas é odiosa para os mortais, pois é má e, ao ser combatida, só amplia, jamais

abrevia, o combate. Lembre-se do quanto os combatentes em Troia ansiavam pelo

encerramento da guerra e seu consequente retorno para casa. A guerra estendeu-se por

10 intermináveis anos, e pouquíssimos sobreviveram. A segunda luta nasce das raízes

da terra e desperta nos homens o desejo de trabalho. O homem vê o seu vizinho

enchendo sua despensa, melhorando sua casa e, então, o inveja. Isso o faz se engajar

nessa mesma luta, que o louva. A sabedoria de Zeus diz que entrar em disputas diretas

com o seu vizinho é desaconselhável, pois desperta a primeira luta e distrai o homem da

segunda. Também diz que os governos devem favorecer a justiça entre os homens, para

que eles não se destruam. Por isso, deve-se acolher o estrangeiro e estimular os cidadãos

a não entrarem em disputas por víveres ou posições, mas, sim, a se concentrarem em

seus próprios trabalhos. Nesse ínterim, à cidade e aos homens que promovem injustiças,

Zeus manda guerras e pestes.

Hoje, tendemos a julgar esses males como naturais ou, então, causados pelos

homens. A Guerra de Troia foi causada pelo rapto de Helena pelos troianos, mas

também se pode dizer que esse rapto foi incitado por Afrodite. A causa foi humana ou

divina? Essa pergunta nos cabe: em que medida temos conhecimento daquilo que

pensamos conhecer e controle daquilo que pensamos controlar?

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Até o momento da publicação deste capítulo, ainda não havia uma delimitação

clara sobre a causa do surgimento do coronavírus. Talvez, nunca se chegue a delimitá-

la.

A tarefa dos governos engloba a abertura e o equipamento de leitos hospitalares e

o provimento de condições para que todos possam ficar fisicamente isolados e também

para que fiquem sem trabalhar aqueles de trabalhos considerados não essenciais nesse

momento. O governo brasileiro está falhando nisso, visto que não cuida da

desaglomeração de pessoas em lugares de baixa renda e não fornece a elas um aporte

financeiro que permita seu isolamento. Isso é o que o governo não faz. Já o que ele tem

feito é mandar os pobres ao trabalho, expondo-os à doença contra a qual eles não terão

recursos para se tratarem, e promover enormes filas em frente a agências bancárias, por

pessoas que buscam uma quantia que não será suficiente para mantê-las em casa.

A incumbência que se impõe à população mundial – inclusive, é claro, a brasileira

–, ou seja, o seu atual trabalho ou luta louvada, é a prevenção contra o próprio

adoecimento e dos outros: usar máscara, lavar as mãos, higienizar os ambientes, deixar

de visitar os entes queridos e, até mesmo, deixar de exercer o próprio trabalho. No

Brasil, apesar de grande parte da população estar empenhada nisso, o número de casos

está em franco crescimento e, por isso, talvez seja necessário exercer um isolamento

social ainda maior. O governo ainda parece ignorar a letalidade do vírus e as suas

próprias atribuições. Nos discursos presidenciais, a retração da economia aparece

como o verdadeiro mal a ser combatido, atribuindo-se ao trabalhador a responsabilidade

pelo seu enfrentamento. A população não é deixada, por nenhum momento, desgarrar-

se da identidade de trabalhador; ela não pode deixar de trabalhar e deve adaptar a isso

suas medidas de proteção contra a contaminação. A vida nua, vida reduzida ao biológico

e preocupada antes com a sobrevivência. Assim é, por aqui, o organismo de um pobre,

um pulmão de trabalhador que não pode parar de funcionar, sob a ideia de que não é a

sobrevivência dele próprio que se arrisca, mas a do país.

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O mal do coronavírus tomou uma dimensão tão grande no Brasil que é

considerado um dos maiores do mundo em relação à essa pandemia. O seu governo

também é um mal, pois atua conjuntamente com o vírus.

O trabalho de enfrentamento da doença só é possível com a luta contra aquele que

trouxe o mal. Hesíodo diz que o povo tem um forte aliado contra o rei desatinado e

injusto:

Alinhai as palavras, ó reis comedores-de-presentes, esquecei de vez tortas

sentenças! A si mesmo o homem faz mal, a um outro o mal fazendo: para quem a

intenta, a má intenção malíssima é32.

Rio de Janeiro, 22 de maio de 2020.

32 HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Tradução estudos e notas Luiz Otávio de Figueiredo Mantovaneli. São Paulo: Odysseus, 2011. vv. 260-266.

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PANDEMIA E O NEGACIONISMO NOSSO DE CADA DIA

Estevão Lemos Cruz33

Certa vez, nos idos tempos da minha graduação em Filosofia, um professor muito

estimado contou a seguinte história acerca da importância e do problema da inutilidade

da Filosofia e do filósofo: “todos sabem da importância do piloto de avião. Se ele erra

em seu ofício, é um grande problema! O avião cai e pessoas morrem. O mesmo ocorre

com o neurocirurgião. Se ele comete um erro, o paciente pode morrer ou ficar com

sequelas terríveis. E o filósofo? Se ele erra em seu ofício, o que ocorre? Não há mortos,

não há comoção e é bem provável, aliás, que ninguém perceba ou se chateie. Nada mais

inofensivo do que errar a interpretação de um poema ou um texto filosófico. Entretanto,

o que ocorre depois de duzentos ou trezentos anos de má interpretação e leituras

equivocadas? O fundamental do texto é perdido. Não porque suas linhas foram

esquecidas, já que ele pode continuar sendo recitado com frequência e, até mesmo, se

tornar um lugar-comum. Ele é perdido porque o que há de fundamental nele se tornou

inacessível, obliterando-se toda a compreensão de mundo que há em jogo nele.

Duzentos anos de má interpretação e toda uma possibilidade de interpretação de mundo

e de realidade se perde. Mas não só isso. A má interpretação sempre é acompanhada por

justificativas e reelaborações que buscam perpetuar sua leitura de mundo até, por fim,

sufocar e enterrar definitivamente toda possibilidade de acesso à compreensão de

mundo anterior. Essas reelaborações confundem-se com a própria história da filosofia e

elas acontecem de tal modo que o que hoje compreendemos como mundo ou realidade

não passa de um apinhado de más interpretações. O filósofo, ao errar, não mata pessoas

como o cirurgião ou o piloto, ele mata o mundo”.

O leitor pode até imaginar o quanto eu ficava perturbado com isso. Eu não queria

assassinar nenhuma compreensão de mundo! Eu pensava: “Malditos filósofos e suas

interpretações equivocadas!”. E, assim, todo zelo na leitura dos textos parecia pouco.

Confesso que já não me lembro bem do contexto da fala,

33 Professor adjunto do curso de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da

Universidade Estadual do Paraná – [email protected]

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mas é bem provável que ele estivesse se referindo ao platonismo e suas interpretações

acerca da obra platônica. Concordando ou não com as premissas e conclusões de meu

antigo professor, há um fato inegável em sua fala: o filósofo detém a grande

responsabilidade de interpretar mundo.

O que é interpretar mundo? É dispor-se a tentar compreender o que faz da

realidade tal como ela se apresenta, e isso pode se deixar dizer sob diversos matizes

explicativos que, por sua vez, podem assumir contornos da metafísica, da política, da

ética, enfim. Agora, se a tarefa de interpretar o mundo e a realidade já é, por si só,

árdua, propor-se a fazer isso quando o mundo que conhecemos parece se revelar de

modo distinto torna-se uma tarefa descomunal. Tal é a responsabilidade do filósofo da

qual não se pode abrir mão sem abdicar de seu título. Assim, da combinação entre as

dificuldades que uma nova realidade apresenta e o imperativo que obriga ao filosofar,

algumas apostas filosóficas acabam por ser propostas.

Por mais das vezes, as apostas costumam se mostrar totalmente fracassadas, e não

são raras suas ocorrências na história da filosofia. Um exemplo clássico de aposta

fracassada advinda da combinação entre as dificuldades de uma nova realidade e a

necessidade do filosofar foi o caso de Martin Heidegger e o nazismo. Muito se discute

se o filósofo alemão era um nazista de carteirinha ou “apenas” detinha uma leitura

distinta acerca do que era ou do que deveria ter se tornado o nacional-socialismo. No

entanto é inegável que seus discursos sobre o destino histórico da Alemanha

demonstram uma aposta filosófica muito torpe no contexto político de sua época34. Por

outro lado, são desconcertantemente precisas as considerações e previsões que

Heidegger faz acerca do fenômeno da técnica, que influenciará toda uma geração de

pensadores35. Outro filósofo a se equivocar em algumas

34 Sobre o tema, ainda vale a pena conferir a biografia feita por Rüdiger Safranski, intitulada

Heidegger:um mestre na Alemanha entre o bem e o mal. 35

Uma famosa previsão de Heidegger, feita em 1935, diz: “Quando o mais afastado rincão do globo tiver

sido conquistado tecnicamente e explorado economicamente; quando qualquer acontecimento em

qualquer lugar e a qualquer tempo estiver tornado acessível com qualquer rapidez; quando um atentado a

um reina França e um concerto sinfônico em Tóquio puder ser ‘vivido’ simultaneamente; quando tempo

significar apenas rapidez, instantaneidade e simultaneidade, o tempo, como História, houver desaparecido

da existência de todos os povos; quando o pugilista valer, como o grande homem de um povo; quando as

cifras em milhões dos comícios de massa forem um triunfo, então, justamente então continua ainda a

atravessar toda essa assombração, como um fantasma, a pergunta: para quê? Para onde? E o que

agora?”

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de suas leituras e previsões face às transformações que se faziam presentes no mundo

foi Marx. Sua previsão sobre a inevitável revolução nos países industrializados nunca

chegou a acontecer. Em contrapartida, são inúmeros os acertos que prediziam a atuação

do capitalismo, tal como o processo de globalização, a recorrência das crises

econômicas, a tendência da concentração e da centralização do capital, enfim. Os

exemplos citados aqui servem ao propósito de ilustrar que a demanda de se pensar uma

nova realidade sempre esteve presente na história da filosofia e que tais reflexões, como

é de se esperar, trazem apostas por vezes equivocadas e outras muito precisas.

É certo que houve, e ainda há, inúmeros impactos na realidade que obrigaram os

filósofos a levantarem suas canetas. Além nacional-socialismo e a ascensão do

capitalismo industrial, já citados, poderiam ser dados exemplos que iriam desde o

estabelecimento da democracia ateniense até o surgimento das redes sociais ou o

desenvolvimento de inteligências artificiais. Tais acontecimentos que bombardeiam

nossa realidade são comuns e cabe ao filósofo interpretá-los.

O ano de 2020 trouxe mais um desses acontecimentos. No dia 11 de março de

2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto de Covid-19

passava a ter o status de pandemia. Com centenas de milhares de mortos, a Covid-19 já

é responsável por mais mortes que a SARS, a MERS ou mesmo a gripe A (H1N1)36. Tal

cenário fez os mais diversos pensadores contemporâneos sentirem-se obrigados a se

manifestar e traçar os seus prognósticos. Foram tantas as perspectivas mostradas, as

possibilidades aventadas, os diagnósticos sugeridos que o leitor mais costumaz da

literatura filosófica hodierna pode ter se sentido mais perdido ao final das leituras do

que quando embarcou nelas. Não faltou nenhuma perspectiva possível: previsões

apocalípticas foram bradadas, caixões foram encomendados para enterrar o sistema

capitalista, o “novo normal” foi prescrito, sociedades alternativas foram

(HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. 4.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. p.64-

65). 36

Cf.SIMONSEN, Lone; SPREEUWENBERG, Peter; LUSTIG, Roger; et al. Global mortality estimates

for the 2009 influenza pandemic from the GLaMOR Project: a modeling study. PLOS Medicine,

10(11): e1001558, 2013. Disponível em:

https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1001558. Acessoem: 08 de junho de 2020.

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inventadas, teorias da conspiração desveladas, teses políticas confirmadas, o ano de

2020 foi batizado como o mais importante da história da humanidade, rupturas com o

passado próximo tornaram-se irrecuperáveis, o bom-senso foi chamado para debate e

depois excluído do debate por acreditar que ele já não tem lugar no mundo. Enfim,

ergueu-se uma miscelânea de posturas filosóficas que acredito, inclusive, ser sempre

sadia ao pensamento. No entanto uma postura perniciosa vez ou outra se fez presente na

discussão, e é sobre ela que eu gostaria de refletir: o negacionismo.

Sou daqueles que gostam de textos provocativos, dos que preferem ler as previsões

malucas e com o humor genial de SlavojŽižek37às corretas e sóbrias análises do filósofo

sul-coreano Byung-Chul Han38. Em um texto de 27 de fevereiro de 2020, quando a

Covid-19 sequer começava a engatinhar no continente europeu, Žižek apontava o

coronavírus como um golpe mortal no capitalismo que poderia culminar em uma

reinvenção do comunismo. É claro que é uma proposição provocativa, embora não se

resuma a isso. Trata-se, sobretudo, de um exercício filosófico que busca pensar um

cenário possível e que, ao mesmo tempo, serve de pretexto para pensarmos sobre nossa

realidade. O escrito de Žižek é genial e não deve ser confundido com um delírio alucinado

de um filósofo comunista. Han, por sua vez, quase um mês mais tarde, é direto e

certeiro em sua análise: “o vírus não vencerá o capitalismo”, ao contrário, o capitalismo

haverá de se alimentar mais uma vez da crise e sairá mais forte. O texto de Han é muito

mais sóbrio, mas apenas nos entrega o óbvio. Não é propriamente um exercício

filosófico e também não há nada ali que, de modo mais ou menos claro, já não

saibamos. O escrito de Han também é genial, mas, pela sua clareza, e não pelo que

propõe.

Embora sejam dois textos de proposituras e métodos bem diferentes, ambos se

dispõem à função de pensar a nova realidade que se apresenta. O negacionismo não faz

isso.

37Cf.ŽIŽEK, Slavoj.El coronavirus es un golpe al capitalismo a loKill Bill.In: AGAMBEN, Giorgio et al.

Sopa de Wuhan: pensamientocontemporáneoentiempos de pandemias. ASPO (Aislamiento

Social Preventivo y Obligatorio), 2020. 188p. p.21-28.Disponível em: https://www.medionegro.org/pdf-

sopa-de-wuhan/. Acesso em: 22 de junho de 2020. 38

Cf. HAN, Byung-Chul. La emergencia viral y el mundo de mañana.In: AGAMBEN, Giorgio et al.

Sopa de Wuhan: pensamientocontemporáneoentiempos de pandemias . ASPO (Aislamiento

Social Preventivo y Obligatorio), 2020. 188p.p.97-112 .Disponível em: https://www.medionegro.org/pdf-

sopa-de-wuhan/ . Acesso em: 22 de junho de 2020.

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O que é o negacionismo? É a posição de negar fatos ou argumentos verificáveis

sem apresentar uma contraprova que detenha alguma validade. É um posicionamento

filosófico? Não. O negacionismo representa justamente o oposto de toda pretensão

filosófica. Ele não figura como uma possibilidade filosófica tal como o ceticismo, o

dogmatismo, o criticismo, etc.39. O negacionismo é o antipensamento. Trata-se

exatamente da recusa da responsabilidade que a atividade filosófica demanda, aquela

mesma responsabilidade para qual meu velho professor chamava atenção. O

negacionismo não quer interpretar a realidade, pois ele já o fez; o que lhe interessa é

liquidar as demais possibilidades. Se o real se mostra diferente de sua leitura, pior para

o real. O negacionista usa de todos os subterfúgios à sua disposição para fazer valer sua

posição e, portanto, não compartilha do método filosófico ou científico.

Como nasce o negacionismo? Essa é uma pergunta complexa e de resposta

sempre insatisfatória, porque a postura negacionista tem várias origens.

A mais banal tende a ser um mecanismo psicológico de defesa contra qualquer

verificação da realidade que seja deletéria a uma compreensão de mundo já

consolidada40. A negação do evolucionismo – ou de que a Terra tenha mais de 10 mil

anos – por parte de alguns grupos religiosos se enquadra bem em tal perfil. Não se abre

mão de uma compreensão de mundo já fixada desde a infância por meras evidências

científicas. Medo, culpa e orgulho costumam acompanhar a negação de fundo religioso.

A mesma origem negacionista é perceptível também no “culto à personalidade”

de alguns líderes ou chefes de Estado. Depois de confirmada na mente negacionista que

tal líder detém caráter irretocável, um messias escolhido de Deus, todo deslize será

justificado; todo comportamento, insuspeito; toda acusação contrária, ilegítima; a

mídia, mentirosa e

39 É muito importante demarcar tal diferença porque muitas vezes o negacionista acredita ser um cético e,

não poucas vezes, costuma-se tratar o negacionismo como sinônimo de ceticismo. O ceticismo é, sem

dúvida, uma das mais rigorosas posturas filosóficas e encontra suas características fundamentais na

dúvida, na suspensão de juízo, jamais na negação. 40

É possível encontrar também algumas boas justificativas acerca dessa origem em estudos sobre

irracionalidade motivada e sobre autoengano, frequentes na filosofia da mente e na psicologia política.

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conspiratória; os adversários políticos, verdadeiros demônios transvestidos de pessoas

para serem pedras de tropeço na jornada sagrada de ilibação moral da nação.

Origem semelhante também pode ser encontrada no meio acadêmico. Ela, no

entanto, é mais sutil nesse ambiente e se alimenta, sobretudo, do subproduto mais

daninho da universidade, o orgulho acadêmico. O negacionismo pode se expressar entre

os docentes quando rejeitam imediatamente os argumentos ou resultados de pesquisa

que se verificam contrários àqueles defendidos em suas trajetórias acadêmicas. Deve-se

confessar que não é fácil admitir que a teoria que você defendeu por anos não parece

mais encontrar respaldo na realidade. Esse tipo de negacionismo tende a ter pouca

sobrevida no campo das ciências empíricas em razão do avanço das novas pesquisas,

mas é frequentemente longevo nas humanidades. No entanto é possível identificar o

negacionismo nas humanidades quando há o uso recorrente de argumentum ad

personam, evidências incompletas (cherry picking) e, por vezes, a negação de

conceitos básicos.

Há ainda uma segunda origem possível do negacionismo que costuma vigorar não

entre os docentes, mas entresos estudantes e que, muitas vezes, é insuflado por

professores que se pretendem politicamente incorretos. Veja, não tenho absolutamente

nada contra o politicamente incorreto. Ao contrário, penso que toda filosofia só é

filosofia quando politicamente incorreta, isto é, subversiva, quando não está a serviço

da mera defesa partidária e tem a coragem de colocar em jogo seus próprios

pressupostos. Contudo os que geralmente se proclamam politicamente incorretos não

compreendem o significado da incorreção política e nada têm de subversivos; ao

contrário, são notoriamente reacionários, e suas concepções têm mais afinidade com os

“guias politicamente incorretos” vendidos em bancas de jornais, bem como seus apelos

intelectuais encontram sustentação quase exclusivamente em frases de efeitos. Tais

frases de efeitos e a imagem do “politicamente incorreto” ganham facilmente guarita nos

corações dos jovens estudantes que, inexperientes, julgam que filosofia ou ciência têm

algo a ver com vencer debates e discussões.

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Nota-se que o negacionismo aqui demarcado não encontra abrigo somente entre

estudantes, mas entre todos que querem dar algum tom cientificista às suas “teses”.

Como as pseudociências negacionistas ainda não encontram solo propício em

universidades, resta a tais discursos se espalharem pelas redes sociais, pelo YouTube,

pelo WhatsApp, etc. Alguns negacionismos clássicos se encaixam bem aqui, tais como

os que negam a eficácia das vacinas, a ida do homem à Lua ou o formato esférico da

Terra. Os que se deixam seduzir por esses tipos de “teses” são motivados, em geral, pelo

sentimento de que estão indo contra o sistema. Nesse sentido, nem sequer importa

identificar o que é o sistema e como ele atua, importa apenas ir em direção contrária.

Eles são os antiacadêmicos; os que não se confundem com o intelectual engomadinho;

os que, heroicamente, não se rendem aos caprichos da academia. Contudo tal prática

negacionista explicita na verdade uma vontade de destruição, que não se confunde nem

mesmo com o desejo do novo pelo novo ou da crítica pela crítica, mas que se esforça

apenas em destruir sua fonte de descontentamento, seja uma teoria consolidada ou

mesmo os conceitos básicos de uma ciência. Mas não só isso. O negacionismo que busca

algum tom cientificista se fundamenta, historicamente, na compreensão de que as

pessoas só devem aceitar como válidas as teorias que se mostrarem evidentes a elas por

meio de seus próprios experimentos, recursos e conhecimentos prévios. A proposta soa

tentadora, democrática, mas é completamente irreal. Por exemplo, eu não posso

pretender dominar e entender o mecanismo de criação e o funcionamento de uma vacina

com base apenas em minhas experiências (aliás, com as minhas, sequer chegaríamos a

ter descoberto algo como vacina). Todavia, o deslumbre da defesa de uma posição

contra o sistema é o suficiente para criar, entre as pessoas que a compartilham, um

sentimento de pertencimento a um grupo, uma ideia de que, juntas, lutam contra um

inimigo maior e mais bem armado.

O sentimento de pertencimento é base dessa segunda origem que leva ao

negacionismo, e não nos enganemos acreditando que o negacionismo oriundo do

sentimento de pertencimento a um grupo é algo meramente inocente. Nessas

circunstâncias, também podem ser verificados os negacionismos perversos que

rejeitam, por exemplo, o holocausto, a tortura na

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ditadura militar brasileira e, até mesmo, a escravidão – negações que, muitas vezes, hão

de se transformar na tentativa de um revisionismo.

Por fim, há ainda uma terceira origem do negacionismo que encontra exemplos no

negacionismo climático e da Covid-19. Essa origem é percebida na dificuldade de se

aceitar mudanças de comportamentos, alterações do cotidiano. Se a primeira origem

indicada tem a ver com a não aceitação de uma realidade que contradiga uma

compreensão de mundo já estabelecida, essa terceira origem diz respeito à negação da

realidade que implica uma mudança no comportamento da pessoa no mundo.

O que torna a aceitação do aquecimento global difícil não é a falta ou a

imprecisão das pesquisas sobre o assunto, mas a mudança de comportamento que ela

implica. Ademais, mudança de comportamento não diz respeito somente às pessoas em

particular, mas às práticas governamentais, que, ao aceitar a realidade das mudanças

climáticas, precisariam alterar suas estratégias de ação, intervindo no setor privado e

investido em políticas ambientais.

A pandemia de 2020, de modo bem mais flagrante, impôs subitamente a

necessidade de uma mudança de comportamento. Isolamento social, quarentena, uso

constante de máscaras e álcool em gel, ensino à distância, aumento do desemprego,

fechamento de comércios, superlotação de hospitais, contagem diária de mortos, tudo

isso parece ter nos tomado de assalto em tamanha velocidade que não fomos capazes de

processar a natureza da realidade que nos atingia – e justamente por não entender,

negamos. O particular nega para não ter que usar máscara ou ficar confinado em casa, o

governo nega para não alterar seu comportamento neoliberal. No entanto os

particulares, ao se obrigarem a uma mudança de comportamento, impedem que as

políticas governamentais permaneçam as mesmas. Assim, o governo negacionista, para

manter seu comportamento, necessariamente agirá de modo a minimizar a pandemia e

a convocar as pessoas de volta ao trabalho, mesmo que isso represente o colapso do

sistema público de saúde e a morte milhares de cidadãos. O mesmo governo há também

de negar número de mortos, propor recontagens, ocultar informações. Não é difícil

prever seus passos. Realmente o ano de dois mil e vinte traduziu e escancarou o

sentido

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de necropolítica. Mas é fundamental que tenhamos em alerta que tradução não implica

em aprendizagem. Há ainda muito trabalho a ser feito pela filosofia nos países

governados por líderes negacionistas, pois nenhum governo é eleito sem um

eleitorado que compartilhe seu modo de pensar.

Pois bem, até aqui, falamos do negacionista como se ele fosse um conhecido

distante, um parente de quem não gostamos e que, só com muito esforço, admitimos

compartilhar o mesmo DNA. No entanto, talvez mais do que qualquer outro fenômeno

histórico recente, a pandemia de 2020 revela o negacionista que se esconde em nós. Não

porque negamos a pandemia e o número de mortos, apesar de muitos o fazer, mas

porque negamos que vivemos vidas precárias, descartáveis. É preciso reconhecer que

não é a morte de 500 mil pessoas que está nos comovendo. Morrem quase 4 mil

pessoas no mundo todos os dias só por diabetes e não há nenhuma cruzada midiática

contra a indústria alimentícia. O que temos, no máximo, é a exploração comercial de

produtos e do estilo de vida fitness. O que nos comove, na verdade, é a mudança

obrigatória em nosso comportamento, o sentimento de privação de liberdade e o

medo de tal situação se prolongar indefinidamente ou de voltar a se repetir. Apenas

queremos voltar à vida normal e, aqui, não basta apenas não refletir sobre a

precariedade de nossa existência, mas, diante da forçosa mudança em nosso

comportamento, chegamos mesmo a desejar a ter de voltar nossa precariedade como

nunca antes. Em meio a pandemia descobrimos que não nos importamos em vivermos

vidas precárias, desde que eu possa continuar vivendo minha vida como sempre vivi. Se

o mesmo número de mortes tivesse acontecido não por uma doença infectuosa, mas por

um aumento no número de cânceres que em nada tivesse alterado nossa rotina, teríamos

apenas uma nota de jornal – e vida que segue. Mas, que tipo de vida? Quando a

pandemia passar, provavelmente pouco teremos aprendido com ela. O “novo normal”,

de que tanto se fala, não passará de, quando muito, uma maior conscientização de

higiene, mudanças em protocolos de viagem, utilização de ferramentas à distância que,

em proveito de um produtivismo questionável, surrupiará ainda mais o tempo de vida

do trabalhador, transformando sua casa uma extensão do local de trabalho.

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Não me entendam mal. Quero voltar à minha vida normal tanto quanto todos e

também não gosto da ideia de que os acontecimentos da vida devam ser acompanhados

de uma “moral da história” – não, não devem e não precisam. Contudo, em prol de uma

honestidade existencial, não devemos negar o negacionismo que há em nós. Só

queremos ir de volta para nossas vidas, nossas vidas precárias.

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O PAPEL DA RESPONSABILIDADE NA CRISE SANITÁRIA

CONTEMPORÂNEA

Leonardo Nunes Camargo41

Do final do século XIX até meados do século XX, a pergunta filosófica

predominante na Europa, mais precisamente na Alemanha, era sobre o papel do homem

na natureza. A preocupação dos pensadores da chamada Antropologia Filosófica, como

Scheler, Gehlen e Plessner, era determinar qual aspecto antropológico diferenciava a

espécie homo sapiens dos demais seres vivos. Por detrás desses sistemas filosóficos e

narrativas, sempre prevaleceu um tipo de antropocentrismo que privilegiava a

capacidade intelectiva do homem em detrimento dos demais. No entanto, as tentativas

em reestabelecer os laços vitais com o mundo natural abriram perspectivas e caminhos

para poder se pensar o ser humano nos dias de hoje.

Desse modo, também no século XXI, o objeto da filosofia é pensar a questão

antropológica diante dos avanços da tecnologia e das paulatinas crises sanitárias. O

poder técnico conferido ao homem, pelo humanismo do século XV, conforme afirmado

por Pico della Mirandola, em seu Discurso sobre a dignidade do homem, mostra

que o homem é a coisa mais admirável para se contemplar no mundo. Intermediário de

todas as coisas da natureza, o homem poderá ser “o modelador e escultor de si mesmo”

conforme sua vontade.

Fizemos uma criatura nem dos céus nem da terra, nem mortal nem imortal,

para que você possa, como o modelador livre e orgulhoso de seu próprio ser,

formar-se na forma que preferir. Estará em seu poder para descer para as

formas inferiores, formas brutais da vida; você será capaz, por meio de sua

própria decisão, subir novamente às ordens superiores cuja vida é divina42

.

41 Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), bolsista da

CAPES. E-mail: [email protected] . 42

MIRANDOLA, 1989, p.7-8.

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Entretanto, essa criatura apta a modelar sua existência e decidir a sorte dos

demais seres vivos tornou-se inoperante e impotente diante da presença de novos vírus

e bactérias, como o da Covid-19, por exemplo. Assim, em um cenário de crise sanitária,

aquele ser vivo, dotado de racionalidade, capaz de ascender ao divino, revela sua

fragilidade e precariedade existencial.

Nesse ambiente contemporâneo, onde se manifesta a impotência do ser humano,

este capítulo pretende fazer alguns questionamentos sobre a urgência de um novo agir

ético que seja capaz de guiar nossas ações no presente e, por meio das próximas

gerações, no futuro.

A marca ontológica da vida e sua fragilidade

Quando pensamos na vida enquanto fenômeno, portadora de uma marca

ontológica, queremos refletir sobre algo que a aproxime de sua dimensão natural, cuja

finalidade é o rompimento com o antropocentrismo ocidental. Pensar a humanidade

longe desses padrões tornou-se indispensável para a filosofia nos dias de hoje. Desse

modo, o primeiro passo para tentar definir a vida é eliminar de sua categorização a não

essencialidade, isto é, não podemos pensá-la enquanto substância dada e fixa.

Um dos fatores que contribuiu para esse rompimento da universalização do

conceito de natureza humana foi a tecnologia. Ela gerou um problema ético na medida

em que passou a influenciar as ações humanas, moldando-as de acordo com seus

interesses econômicos e políticos. Nesse sentido, a própria vida converteu-se em um

produto tecnológico, ou, como Heidegger havia sugerido em seu texto A questão da

técnica, de 1953, uma Gestell ou, ainda, uma interpelação produtora, um estágio

transitório.

Qual seria a marca ontológica da vida mencionada no subtítulo dessa seção?

Seguindo o pensamento de Hans Jonas, sugere-se que essa marca seja a liberdade,

enquanto dimensão fenomênica que extrapola os limites da consciência humana e se

insere em todo reino da vida. A liberdade deve ser entendida como um “conceito-guia

capaz de orientar-nos na tarefa de

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interpretar a vida”43. Se a intenção é pensar em uma nova posição do homem no

cosmos, isto é, como agente portador da responsabilidade, e por isso, responsável por

salvaguardar as gerações futuras de possíveis ameaças que atingem sua integridade e

autenticidade, é preciso repensar o fenômeno vida e atribuir a ela uma característica que,

até então, era exclusiva do ser humano.

Jonas sustenta que o surgimento da vida ocorre enquanto um acontecimento que

parte de uma escolha da própria vida, de uma decisão que a própria vida teve de tomar a

fim de manter sua “sobrevivência”. Por meio de uma ação primária, a substância viva,

ao se separar da interação geral das coisas da natureza, portanto, ao se desprender da

matéria inerte, introduziu no mundo a tensão entre ser e não ser. Jean Monod confirma a

tese jonasiana ao enunciar que “apenas o acaso é a origem de cada novidade, de cada

criação da biosfera. O acaso puro, apenas o acaso, a liberdade absoluta, mas cega, para a

raiz própria do prodigioso edifício da evolução”44. Com essa escolha (ação primária),

surge uma série de consequências com as quais a vida terá que conviver, bem como

contradições que, até então, eram impostas apenas ao ser humano, como autonomia e

dependência, vida e morte, relação e isolamento, entre outros45.

A vida, desse modo, passa a ser marcada pela liberdade (ou seja, ela escolhe viver,

dá o “sim” necessário para continuar a existir) e pela necessidade (caso a vida não

quisesse viver e não optasse pelo sim, ela teria escolhido a morte, sua negação). A cada

novo estágio que a vida opta por um sim, mais livre ela se torna. Entretanto, junto com

sua possibilidade de conquista, há, em mesmo grau, o risco de fracasso; a cada grau de

desenvolvimento da vida, maiores o perigo e a ameaça. Nesse sentido, pode- se afirmar

que a vida só é o que é porque ela arrisca, mesmo sabendo da sua fragilidade e das

adversidades que ela encontra.

43 JONAS, 2004, p.106.

44 MONOD, 1976, p.96. 45

A polaridade fundamental que Jonas considera é a entre ser e não ser. O organismo deve,

constantemente, afirmar sua identidade, fazendo um esforço contínuo para adiar sua contradição

eminente, o não ser, uma vez que essa é a regra das coisas do universo. Entretanto, apesar de todo o

esforço que o organismo empreender ao se opor à sua contradição, ele, no fim, sucumbirá perante a

morte. Dessa forma, a mortalidade torna-se característica essencial da própria vida.

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A liberdade na história da vida representa o desprendimento que o organismo

(forma viva) tem em relação à matéria. O corpo vivo não é simplesmente corpo

material, há algo nele que transcende. Essa liberdade nasce no metabolismo como

independência do orgânico para com a matéria e termina nos níveis mais elevados da

evolução orgânica, ou seja, passa pela imediaticidade das plantas, pelas capacidades de

sensação, pelo movimento e pela emoção dos animais, e chega aos seres humanos,

último estágio da escala evolutiva de Jonas.

A liberdade encontra seu substrato básico no metabolismo, que se revela como

“um poder da forma orgânica, o poder de mudar sua matéria, mas que, ao mesmo

tempo, implica também a inevitável necessidade de fazer exatamente isto”46. A vida é

livre e, como tal, “carrega nos ombros o fardo da necessidade”47. Trata-se de uma

“liberdade dialética”48: ao mesmo tempo em que é livre, a vida também é obrigada à

liberdade, na medida em que precisa intercambiar com o ambiente para que possa

continuar vivendo. Desse modo, a atividade metabolizante torna-se, no pensamento de

Jonas, a característica fundamental da existência orgânica. A audácia da liberdade da

forma viva carrega consigo o fardo da necessidade.

O próprio ser orgânico passa a ser pensado como uma atividade, isto é, a vida, a

fim de se afirmar, precisa manter, constantemente, uma relação equilibrada entre as

polaridades em que ela se encontra. Portanto, tal atividade passa a estar ligada ao

conceito de vida e, dessa forma, inaugura-se uma nova filosofia voltada ao organismo,

em que tanto o espírito como a matéria passam a fazer parte do mesmo ser. Segundo

Jonas, a vida é um modo de ser e o organismo é a parte visível do universo na qual esse

modo de ser se realiza, é onde a vida se manifesta.

A vida possui necessidade do mundo, está relacionada com ele, depende dele, está

disposta ao encontro dele, experimenta o mundo e, através dessa “experiência, possui o

mundo”49. O mundo torna-se elemento constitutivo da

46 JONAS, 2004, p.107.

47 Idem, p.14.

48 Idem, p.106.

49 Idem, p.108.

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atividade orgânica. Enquanto o ser vivo depender da matéria para se renovar, o mundo

se abrirá para a forma viva a fim de suprir suas necessidades e carências50. Liberdade,

no âmbito ontológico da vida, é a tensão entre dever e necessidade para se auto-afirmar.

Hans Jonas, nesses tempos de crise sanitária, parece acertar em sua proposta

fenomenológica ao analisar a vida em sua dimensão frágil e precária. Em outras

palavras, somos produtos da natureza, dependentes de Gaia. Para entender a dimensão

da crise que agora se vive, é preciso nos colocarmos, enquanto seres vivos, dentro de

um macrocosmo copertencente e interligado a outros seres que habitam e coexistem

conosco. O que a atual adversidade nos revela nada mais é que precisamos mudar

nossos hábitos de consumo e de relacionamento com o meio ambiente, e que, se não

mudarmos nosso comportamento, seremos facilmente eliminados por novas agruras. O

vírus da Covid-19 desvela justamente a nossa fragilidade existencial e, ao mesmo

tempo, desmascara, de um ponto de vista epistemológico, a racionalidade humana.

Portanto, uma saída para a crise é pensá-la a partir de um viés ético e moral, em que é

necessário abandonar as antigas formas e prescrições e instituir novos valores.

A insuficiência das éticas tradicionais perante as crises sanitárias

Para que as mudanças de comportamento diante das atuais crises sanitárias

produzam efeito no plano ético e ontológico, é preciso ter ciência que tais debates não

faziam parte das discussões e dos modelos éticos até o século XX. Em um cenário de

incertezas e de fake news, o conhecimento é um “dever primário”51, não apenas no

sentido de instituir um novo modelo ético, mas também para direcionar e guiar nossas

ações. Nesse novo contexto, a

50 Jonas refere-se à carência como uma das propriedades do ser orgânico, como uma característica

exclusiva da vida, portanto, não pertencente ao resto da realidade. De acordo com o autor, um átomo, por

ser um elemento autossuficiente, existe independentemente do que aconteça com o mundo à sua volta,

entretanto, “a essência do organismo, ao contrário, incluía não autarquia” (JONAS,1998,p.93). Por poder

usar o mundo, a vida encontra sua polaridade, ou seja, sua necessidade, se ela pode atuar no mundo, ela

deve, pois senão fizer pode deixar de existir. Dessa forma, a vida é dependente da sua própria ação. “A

dependência que impera aqui é a dívida que a substância primordial assumiu quando, ao invés de

permanecer na matéria inerte, se aventurou ao iniciar o caminho da identidade orgânica, uma identidade

que se constitui a si mesma” (JONAS,1998,p.93). 51

JONAS, 2017, p.33.

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ética precisa assumir conotações diferentes das anteriores; para isso, é imprescindível

estabelecer uma nova teleologia além da esfera humana, isto é, precisamos incluir

valores no âmbito da ética e reconhecer fins como inerentes à própria natureza. Já

saímos do plano antropocêntrico e reconhecemos o dever de responsabilidade e cuidado

para com os demais seres vivos.

A vida, ao longo de anos de evolução, é resultado de um processo de

desenvolvimento de funções orgânicas e sensoriais e encontra seu ápice no ser humano,

que passa a ser responsável pela existência e pela manutenção da vida. Desse modo,

compreende-se a responsabilidade como um produto da liberdade. Ora, se a liberdade é

um elo que liga todo o reino da vida e é conferida à existência do ser, ela encontra seu

ápice de desenvolvimento na responsabilidade. Sem responsabilidade, não podemos

pensar em uma ideia ontológica de homem. “O que constitui o horizonte relevante da

responsabilidade é o futuro indefinido, antes do contexto contemporâneo da ação. Isso

exige imperativos de um novo tipo”52.

Quais imperativos colocam a responsabilidade em uma dimensão ontológica e

ética? O primeiro imperativo da responsabilidade diz que deve existir um futuro

adequado para abrigar a existência da vida humana e que esse futuro deve ser

habitado por humanos; porém, não qualquer tipo de humanos, mas seres humanos

dignos.

Uma das questões que a crise da Covid-19 suscita é sobre o tipo de ser humano

que existirá em uma era pós-pandemia. Seremos pessoas com mais humanidade ou mais

mesquinhos e egoístas? Que tipo de ser humano existirá no futuro? Por mais que

admitamos que a natureza humana não está fixada em essências, como sustentou as

ontologias até na contemporaneidade, temos de nos debruçar sobre a ideia de que,

mesmo em estado transitivo da condição natural do homem, existem elementos que

precisam ser preservados indubitavelmente, como a liberdade e a responsabilidade.

Jonas afirma que esse imperativo (o de que deve existir) é uma “proposição

moral – a saber, uma obrigação prática em relação à posteridade

52 Idem, p.36.

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de um futuro distante e um princípio de decisão para a ação atual”53. Na crise

vivenciada hoje, esse futuro não é tão distante, mas, mesmo assim, o imperativo da

responsabilidade precisa possuir a mesma grandeza e o mesmo poder como na atual

crise.

Um segundo imperativo da responsabilidade que deve ser apresentado aqui refere-

se à presença do ser humano no mundo. Esse imperativo sugere que é necessário

preservar e garantir a existência do homem no futuro, como uma obrigação de ordem

moral. Por isso, devemos evitar apostas que comprometem o futuro da humanidade.

Saber se as futuras gerações serão felizes ou infelizes, se alcançarão a imortalidade ou

se ainda terão de conviver com a mortalidade é outro assunto. Esse imperativo obriga

que a humanidade deve continuar. No entanto, diante de governos autoritários e

negacionistas que pregam a inexistência de um vírus capaz de se espalhar em uma

velocidade enorme e de matar mais que o previsto, é mais do que urgente garantir e

gerar politicas públicas responsáveis que favoreçam primeiramente a vida, e não a

economia de seus países.

Apenas com esses dois imperativos apresentados, já se percebe que a proposta

jonasiana é um avanço em relação aos imperativos éticos e morais propostos por outros

pensadores, como Kant, uma vez que os de Jonas superam a dimensão privada e se

voltam à esfera pública, pois deve ser pensada com vistas ao futuro das gerações. Por

isso, em face a essas questões aqui levantadas, sustentamos que agir com ética exige

que os homens do presente ajam visando a ordenar, direcionar e regular o poder

tecnológico para garantir a existência da vida futura. “Novos poderes de ação requerem

novas normas éticas”54.

A responsabilidade como saída a crise sanitária

Em épocas de pandemia, quais elementos fundamentais precisam ser considerados

para mobilizar o senso de responsabilidade nas pessoas?

53 Idem, p.37.

54 Idem, p.49.

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Também com base nos conceitos de Hans Jonas, podem ser destacadas duas

características fundamentais – expressas em sua obra O princípio responsabilidade:

ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, de 1979: o conceito de

futurologia comparativa e a heurística do temor. Para Jonas, a tecnologia moderna

apresenta, como principais características, a ambivalência de seus efeitos e a

extrapolação das dimensões globais de tempo e espaço, e isso exige da sociedade uma

nova ciência, tanto no aspecto prático quanto no ideal, capaz de superar o tempo

presente, ou seja, uma ciência de “previsão hipotética”55. Em outras palavras, diante de

um futuro ameaçado e da inexperiência, na história humana recente, com um vírus tão

poderoso que sucumbe diariamente com a vida de milhares de pessoas e para o qual

ainda não há um tratamento eficaz para o seu controle, o primeiro dever da ética da

responsabilidade é visualizar os efeitos que nossas ações podem provocar a longo prazo,

de preferência produzindo um cenário negativo capaz de mobilizar a ação.

Destarte, em épocas de crise sanitária, a ciência nunca foi tão exigida quanto

agora, pois, além de ter instrumentos capazes de encontrar uma cura e um tratamento

adequado, ela fornece pistas sobre como as nossas atitudes e comportamentos podem

comprometer e colocar em risco a vida das pessoas, inclusive a própria. Todavia,

quando se sugere que o tipo de prognóstico futuro deve favorecer os efeitos negativos

de nossas ações, não significa que se deve ser alarmistas; pelo contrário, o efeito

negativo da previsão deve mobilizar a prudência e a responsabilidade.

Dessa previsão hipotética de que possíveis danos podem ser gerados por não se

agir de maneira correta, sobrevém o segundo dever da ética do futuro, que é mobilizar o

sentimento correto. Se formos capazes de imaginar um mal que ameaça a autenticidade

da vida e da humanidade, precisamos de um sentimento que desperte no ser humano a

capacidade de ação; desse modo, pode-se dizer que, no reino do ser, o agir se insere

como agente apto para salvaguardar a vida futura. Esse sentimento é o temor, ou seja,

um sentimento que, ao mesmo tempo em que alerta para os perigos, impulsiona a agir.

Nesse

55

JONAS, 2006, p.70.

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ínterim, tanto a futurologia comparativa como a heurística do temor têm como objetivo

orientar a ação do homem, ainda que de maneira hipotética. De acordo com Oswaldo

Giacóia Junior,

“é nesse sentido que o medo pode ter um efeito heurístico, levando - nos a

procurar e descobrir novas possibilidades e estilos de vida, assim também

como produzir o efeito benéfico de chamar-nos a responsabilidade perante

nós mesmos e as próximas gerações de seres humanos e não humanos”56

.

O caráter coletivo da responsabilidade é evidente nas palavras de Giacóia Junior,

visto que somos responsáveis não apenas pela vida humana, mas também pelos seres

não humanos e, por isso, o alcance do princípio responsabilidade de fato assegura a

permanência de uma autêntica vida sobre a Terra.

Uma vez que “ser responsável por”, do ponto de vista ético, implica uma

capacidade de decidir por uma ação, pode-se dizer que a responsabilidade é produto da

liberdade, pois somos livres para agir ao mesmo tempo que obrigados a agir a fim de

garantir a vida. Jonas diz: “é esse o fardo da liberdade próprio a um sujeito ativo: eu sou

responsável por meus atos enquanto tais (mesmo por minha omissão) e pouco me

importa a circunstância de quem de demanda a resposta, se agora ou mais tarde”57. Isso

não quer dizer que o ser humano pode optar ou não pela responsabilidade; ela impõe-se

à natureza humana. Assim como a ferramenta, a imagem e a tumba, a responsabilidade

também está inserida na escala evolutiva de desenvolvimento das funções e das

capacidades do orgânico, o que faz da responsabilidade a essência do ser humano.

Em sua obra Matéria, Espírito e Criação58, Jonas adverte que um dos aspectos

que permitem uma diferenciação antropológica é o salto qualitativo da subjetividade

encontrada no ser humano. Isto é, da mesma forma que a tumba

56 GIACÓIA JUNIOR, 2019, p.220.

57 JONAS apud PINSART, 2019, p.76-77.

58 JONAS, 2010.

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é um artefato da transanimalidade, a experiência subjetiva de um eu substancial permite

ao homem se tornar o sujeito agente da ação moral. É nesse sentido que a

responsabilidade assume o status de liberdade que nos impele para a ação. Desse

modo, pode-se afirmar que o ser humano dispõe do último grau de liberdade necessária

(que o próprio Jonas não previu na sua escala evolutiva), a responsabilidade.

Ainda de acordo com essa obra de Jonas, há um tipo de liberdade que pesa sob a

existência humana, a liberdade moral, considerada pelo autor a mais transcendente e

perigosa, “pois é também a liberdade de negar-se, de surdez voluntária e, inclusive, de

escolher uma contra opção que pode chegar até o mal radical que (como temos

aprendido) pode, ademais, adornar-se com a aparência do bem supremo”59. É justamente

o mal da omissão que mais ameaça a existência da vida no planeta, principalmente

quando essa omissão, esse desrespeito e a negação dos fatos científicos partem de

políticos e governantes.

Portanto, o ponto fulcral da fundamentação do princípio responsabilidade diz

respeito à heurística do temor. Jonas propõe que é necessária uma “previsão de uma

deformação do homem”60, um tipo de saber que gere no ser humano uma ideia clara

daquilo que o ameaça e, assim, o convoque para a ação. Assim como a tecnologia hoje

confere poderes inimagináveis ao ser humano,

“o conhecimento do bem e do mal, o poder de distingui-los, é também a

capacidade para o bem e o mal. Fica claro que o “eros” em ação, enquanto

fator de impulso necessário em qualquer escolha entre bens, não oferece

ainda, mesmo como guia, garantia alguma para vislumbrar e perseguir seu

verdadeiro objeto [grifos do autor]”61.

Marie-Genevière Pinsart, em Vocabulário Hans Jonas, diz que

“não somente a capacidade de ser responsável obriga a exercer essa

capacidade sob o olhar de todos os objetos contingentes da ação,

59 Idem, p.31.

60 Idem, p.70.

61 Idem, p.31.

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mas ela impõe igualmente a responsabilidade de colocar-se, ela mesma,

como seu próprio objeto de exercício”62

.

Verificou-se, antes, neste texto, que o primeiro imperativo da responsabilidade

deve assegurar que exista uma humanidade, isto é, que não se pode transferir a

responsabilidade da existência da humanidade das futuras gerações para elas, pois

também a responsabilidade teria como dever o zelo pela imagem do ser humano, ou

seja, sua representação no mundo, tanto hoje como no futuro.

Uma vez que a responsabilidade teria como dever garantir a presença do humano

no planeta, ela também garantiria a liberdade. Assim, evidencia-se o caráter ontológico

e ético da responsabilidade. Ao passo que a responsabilidade, em uma dimensão que

chamamos de substancial, deve garantir que exista uma humanidade, ela também

afirma, em uma dimensão formal, que é preciso haver uma vida humana autêntica.

Essas duas características da responsabilidade são complementares entre si.

No princípio responsabilidade, a atividade reflexiva do sujeito cognoscente, à

medida que transforma o homem no único indivíduo no reino do ser em portador da

responsabilidade, também o converte em objeto de “avaliação e vontade axiológica”63.

Esse sujeito, ao se tornar responsável por um objeto externo a ele, “também implica, por

si só, o cuidado bem pelo interior, e pela possibilidade e obrigatoriedade do valor da

própria pessoa”64.

Para concluir, ressalta-se que, para Jonas, a afirmação original do ser é, de fato,

sua tendência a um propósito, e o primeiro propósito de ser é continuar a ser. Ser é

melhor que não ser, ter objetivos é melhor do que não ter. É essa superioridade de ter

propósito na ausência de metas, de estar no não ser, de constituir o axioma ontológico

fundamental que permite Jonas interpretar o propósito intrínseco de ser, não apenas

como um fato, mas também como um valor. Se ser é preferível a não ser, significa que o

propósito para o qual o próprio ser tende, isto é, a sua conservação, é também um valor

a ser salvaguardado. Por essa razão, até mesmo diante da precariedade e da

vulnerabilidade que a existência pode apresentar, a liberdade vai se

62 PINSART, 2019, p.137.

63 JONAS, 2010, p.32.

64 Idem, ibidem.

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constituindo e aumentando em diferentes graus, perpassando o vegetal, o animal e o

humano.

Esse valor a ser salvaguardado tem a ver com a imagem de homem que

precisamos estabelecer e que nos orienta a afirmar a necessidade de fundamentação

ontológica da ética.

”Somente então, com a antevisão da desfiguração do homem, chegamos ao

conceito de homem a ser preservado. Só sabemos o que está em jogo quando

sabemos que está em jogo. Como se trata não apenas do destino do homem,

mas também da imagem do homem, não apenas de sobrevivência física, mas

também da integridade de sua essência, a ética que deve preservar ambas,

precisa ir além da sagacidade e tornar-se uma ética do respeito”65

.

Somente o homem é capaz de assumir a tarefa de garantir a existência e a

continuidade da vida, pois ele é o único ser cuja liberdade pode assumir a forma para

agir com responsabilidade. De acordo com Paolo Becchi e Roberto

F. Tibaldeo,

”o aparecimento do homem na Terra não constitui apenas um aspecto

adicional do mundo já variado de ser, porque, em sua natureza, algo

qualitativamente diferente é revelado: o ser capaz de responsabilidade. Nisso

consiste basicamente sua constituição ontológica, que é caracterizada por sua

própria natureza “transanimal” e por uma forma de liberdade sem

precedentes66

”.

Portanto, a existência é confiada aos humanos, e o ser humano é responsável em

garantir as condições de vida e lutar contra as ameaças que poderiam causar o seu

desaparecimento do mundo.

Referências bibliográficas

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transumano: il contributo di Hans Jonas. Cosmopolis Rivistadi Filosofia e teoria

política, XII. 2015. Disponível

em: https://www.researchgate.net/publication/304778572_Natura_natura_uman

65JONAS, 2006, p.21.

66 BECCHI; TIBALDEO, 2015.

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ENTRE ESGOTAMENTO E ESTUPIDEZ, UM VÍRUS

Thiago David Stadler67

Penso que, atualmente, se vive um momento de esgotamento das diversas relações

de sociabilidade e das estruturas formais do governo, mas também de enorme

estupidez68 e maldade69 propagadas tanto por representantes das mais altas esferas do

poder governamental quanto por cidadãos que tem na família o trato mais básico da

cotidianidade.

No que diz respeito ao esgotamento das estruturas formais do governo, faço um

rápido levantamento de realidades políticas latino-americanas que dão o tom dos

esgotamentos.

Já em 2019, sucederam-se os levantes populares chilenos contra toda uma

estrutura liberalizante derivada dos tempos ditatoriais de Augusto Pinochet e com a

presença de uma insensata violência e repressão policial70. O povo chileno foi às ruas

reivindicar a troca e a revisão da atual Constituição do Chile, que ainda é legatária de

uma das mais sangrentas ditaduras latino-americanas.

O caricato venezuelano Nicolás Maduro, sucessor incompetente de uma herança

revolucionária, mantém o poder exclusivamente por um aparato militar-repressivo de

Estado. A autoproclamação de Juan Guaidó, em janeiro de 2019, como presidente

interino da Venezuela, com apoio aberto dos EUA,

67Doutor em História. Professor do Colegiado de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná (UFPR),

campus de União da Vitória. Professor efetivo do Programa de Mestrado Profissional em Filosofia

(PROF-FILO) e Professor colaborador do Programa de Pós -graduação em História da UFPR. Contato:

[email protected] . 68

Quando digo estupidez, o que quero dizer? Refiro-me ao princípio de Hanlon: “nunca atribua à

maldade o que pode ser explicado pela estupidez”. Assim, a estupidez é o domínio dos idiotas, tontos,

néscios, bobos, imbecis, mentecaptos, obtusos, etc. Indico a leitura do texto: MORENO CASTILLO,

Ricardo. Breve tratado sobre La estupidez humana. Madri: Fórcola Ediciones, 2018. 69

Quando digo maldade, o que quero dizer? Agir e/ou discursar a partir da negação de princípios

científicos; negar a necessidade de uma educação da sensibilidade; negar a manutenção de um estado de

paz; negar a existência da diferença; negar a figura do adversário e tomá-lo com o inimigo. 70

Com mais de 2 mil denúncias de violação dos direitos humanos (torturas, restrições ilegítimas, abuso

sexual,etc.), por parte do aparato repressivo do Estado chileno.

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da União Europeia e dos países do Grupo de Lima, legitimou a derrocada

democrática com vistas à exploração petrolífera venezuelana71.

Os seguidos escândalos ocorridos na Bolívia de Evo Morales – desde a validação

pelo Tribunal Constitucional Plurinacional (TPC) da possibilidade de reeleição

(contrariando tanto a Constituição Boliviana quanto o plebiscito popular de 2016, que

rejeitaram tal medida), a qual permitiu, por consequência, a reeleição de Evo em 2019 –

acabaram, dentre outros fatores, por evidenciar diversos problemas na condução da

contagem dos votos. Esse contexto levou Morales a uma renúncia caracterizada pelas

típicas tomadas de poder na América do Sul e influenciada por pressões estadunidenses.

Tal como na Venezuela, a Bolívia presencia a autoproclamação da presidente Jeanine

Áñez e promessas de rápidas eleições – que, desde novembro de 2019, não aconteceram.

A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil – após a somatória de um processo de

impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff sem comprovação de crime, de ajustes

fiscais e monetário abruptos72 e da prisão do ex-presidente Luís Inácio “Lula” da Silva

sem provas materiais – determinou um clima antissistema nutrido por ódios populares e

uma retórica que evoca preconceitos, militarização e novidades advindas de um velho

representante do poder legislativo brasileiro. Ministros incultos, criminosos e cínicos

compuseram o

71 De acordo com o rank ing das maiores empresas da América Latina, a Petróleos de Venezuela S.A.

(PDVSA) figura no terceiro lugar, atrás apenas da Petrobrás (Brasil) e PEMX (México) – todas de

exploração do petróleo e gás (AMÉRICA ECONOMÍA. Ránking América Latina – Lugares 1 al 50. Disponível em:

https://rankings.americaeconomia.com/2010/500/ranking-500-america-latina.php. Acesso em: 08 de

junho de 2020). 72

Sobre este ponto: “A política econômica do primeiro governo Dilma Rousseff tinha atendido a várias

das bandeiras defendidas pela FIESP ao longo dos anos, no que se chamaria de ‘nova matriz econômica’:

redução de taxas de juros e tarifas de energia elétrica; desonerações tributárias e crédito subsidiado;

desvalorização cambial e protecionismo industrial seletivo; concessões de serviços públicos para a

iniciativa privada. Algumas dessas iniciativas foram, inclusive, solicitadas em documento entregue ao

governo e assinado em conjunto com outras organizações empresariais e centrais sindicais em 2011. No

segundo governo, contudo, a presidenta reeleita Dilma Rousseff resolveu realizar um ajuste fiscal e

monetário abrupto que surpreendeu muitos dos que, em sua base eleitoral, acreditaram em suas críticas de

campanha à disposição de cortar e cortar dos candidatos de oposição. Dessa vez, atendia ao clamor de

grupos empresariais que se colocaram contra a chamada ‘nova matriz econômica’ e, além de motivos

econômicos que podem ser discutidos, a virada parecia ter razões políticas” (BASTOS, Pedro Paulo

Zahluth. Ascensão e crise do governo Dilma Rousseff e o golpe de 2016: poder estrutural, contradição e

ideologia. Revista de Economia Contemporânea, v.21, n.2, e172129, 2017. Disponível em:

https://doi.org/10.1590/198055272129. Acesso em: 24 de junho de 2020).

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primeiro escalão do governo brasileiro com uma coleção de escândalos e intrigas

nacionais e internacionais. Em menos de um ano e meio de governo, já foram nove

ministros trocados, além de Jair Bolsonaro abandonar o partido pelo qual foi eleito

(PSL) e anunciar a criação de outro partido (Aliança pelo Brasil).

A Argentina presenciou a curta duração, por absoluta inabilidade econômica e

falência de princípios democráticos, do governo liberal de Mauricio Macri, eleito

enquanto oposição ao kirchnerismo; e, consequentemente, o retorno de Cristina

Fernández de Kirchner como vice- presidente, com projetos assemelhados àqueles que a

deslegitimaram tempos atrás.

No Equador, houve seguidas crises políticas, desde 2010, com o ex- presidente

Rafael Correa, até a chamada crise do combustível em 2019, sob a presidência de Lenin

Moreno, que compôs o velho quadro de medidas de austeridade advindas de acordos

nefastos com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Poderiam ser citados tantos outros exemplos pitorescos e desconcertantes de

nossa realidade que deixariam Macondo de Gabriel García Márquez com inveja. No

entanto, esses poucos exemplos são suficientes para assinalar que, atualmente, parece

evidente e notória a quebra multifacetada das bases de sustentação do neoliberalismo

asseguradas por Estados corrompidos, empresariado transnacional e empresariado

privado nacional.

No campo do esgotamento da sociabilidade entre indivíduos ordinários, penso que

o papel das redes sociais é determinante. O filósofo francês Alain Badiou afirmou que

as redes sociais tão presentes na propagação de tudo mostram, uma vez mais,

que são espaços de propagação da paralisia mental fanfarrona, dos rumores fora de

controle, do descobrimento das “novidades” antediluvianas, e, no mais, um espaço que

nada mais é do que um obscurantismo fascista73. Basta participar de um grupo de

WhatsApp e prezar

73 Indico a leitura: BADIOU, Alain. Sobre La situación epidémica. 21 de março de 2020. Lavoragine.net

.Disponível em: https://lavoragine.net/sobre-la-situacion-epidemica/. Acesso em: 08 de junho de 2020.

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por um mínimo de dignidade para entender Badiou e, talvez, concordar com ele.

Também afirmei que vivemos um tempo de estupidez e maldade (alguns preferem o

termo perversão). Aqui, o papel das mídias sociais e, novamente, das redes sociais dá

todos os indicativos para entender o que afirmo. O rebaixamento do já rebaixado, a

imbecilização plena e completa de assuntos relevantes para o bem comum, o ataque

frontal a instituições históricas e consagradas por suas conquistas científicas e humanas,

o negacionismo histórico, o cinismo enquanto postura política, o esfacelamento de

frágeis conquistas no campo dos direitos humanos, a naturalização de discursos racistas,

homofóbicos e machistas, a absoluta ausência e ineficácia de uma chamada oposição,

“memes” e mais “memes” que provocam um riso imediato e nada mais, partidarismos

envoltos até mesmo em desejos de bom dia, a propagação diária de notícias falsas, a

desinformação, a aceitação de limites culturais impostos por uma indústria interessada

em divulgar um aparato (in)formativo raquítico, ameaças de morte, xingamentos

enquanto ferramenta de debate, empresas especializadas em divulgar notícias falsas e

alimentar a irracionalidade coletiva, a passiva aceitação de um vocabulário sem

memória histórica. Tudo isso compõe uma paisagem de estupidez e maldade que,

somada ao esgotamento da sociabilidade ordinária e das estruturas formais do governo,

torna as práticas do cotidiano agressivas e sem muito espaço para o tesão de viver (os

filósofos gregos diriam sobre paixão, afeto; eu, brasileiro, digo, tesão).

É justo perguntar: essa reflexão não leva a Covid-19 em conta? Ora, é diante todo

esse panorama sócio-político-afetivo que se acrescenta a chegada da Covid-19. Soma-

se, a essa insensata realidade, a presença de uma determinação natural, isto é, um vírus

que, até então, não mostrou nada de excepcional, nada que a natureza de um vírus já não

tenha revelado noutros momentos vivenciados por tantos animais na história natural do

mundo. As principais características elencadas até agora sobre o vírus versam sobre o

alto poder de contágio e de disseminação; a possibilidade de transmissão por

assintomáticos, dificultando o rastreamento de quem está contaminado; e a falta de

proteção natural do corpo humano, já que se trata de um vírus novo. Dados do dia 21 de

maio de 2020 indicam que o número de mortos no mundo

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gira em torno de 328 mil e mais de 5 milhões de infectados e, no Brasil, 19.156 mortos

e mais de 296 mil infectados. Em face dessas características, os Estados e os

conglomerados da saúde reprogramaram os caminhos das ciências para centralizar

esforços na construção de uma nova vacina. Novamente, ficou claro que o tempo da

ciência não é o tempo da sociedade. Novamente, ficou claro que é preciso entender que

se trata de uma determinação natural e, portanto, haverá de se compreender o limite da

técnica diante da sempiterna natureza74.

Com o choque dessas quatro realidades (esgotamento da sociabilidade,

esgotamento das estruturas formais do governo, escalada da estupidez e maldade,

chegada da Covid-19), potencializaram-se as crises já instauradas no mundo (falo,

principalmente, da realidade latino-americana). Quando digo crise, o que quero dizer?

Primeiramente, é preciso distinguir as crises gerais, que envolvem um colapso

generalizado das relações econômicas e políticas de reprodução, das crises parciais, que

constituem um traço regular da história do capitalismo. Ao se falar das crises gerais, ter-

se-ia como consequência a erosão ou a destruição das relações societárias que

determinam os limites da transformação da atividade econômica e política. Já as crises

parciais envolvem surtos de prosperidade aparentemente intermináveis, seguidos de

graves declínios da atividade econômica75. Desse modo, no meu entendimento, a crise

potencializada pelo choque dos elementos que levantei é uma crise parcial que ainda

não gestou as forças contraditórias suficientes para colocar em colapso o modo de

produção do capitalismo76. Há, sim, um esgotamento das políticas liberais, dos

resquícios de um estado de bem-estar social europeu e do modelo das esquerdas

reformistas e de coalização da América do Sul, mas todas as mudanças, até então,

oriundas da atual crise estão absolutamente dentro dos marcos do capitalismo. A crise

revela-se como uma

74 Não se trata de uma comemoração macabra, nem de um culto aos deuses da natureza. Espero e confio

que as(os) cientistas desenvolverão uma vacina eficaz contra a Covid-19. Contudo, é um bom momento

para entender que os preceitos científicos de dominar e controlar a natureza são danosos e falhos. Indico a

leitura: STADLER, Thiago David. O valor das humanidades em um tempo técnico-científico. Diálogos,

v.20, n.2, p.205-217, 2016. 75

BOTTOMORE, Tom (Ed.); HARRIS, Laurence; KIERNAN, V.G.; MILIBAND, Ralph (Coeds.).

Dicionário do pensamento marxista. 2.ed. Tradução de Waltensir Dutra. Org. (ed. brasileira) de

Antonio Monteiro Guimarães. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p.123. 76

Nome e entendimento, a análise da Covid-19 por Slavoj Žižek foi um erro (ou uma esperança

exagerada?). Falarei sobre isso mais adiante.

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intensificação do colapso de princípios básicos do funcionamento de uma sociedade

pautada em valores liberais, mas sem inferir desse colapso alterações da contradição

fundamental do capitalismo, qual seja, a produção social em benefício de interesses

particulares.

Noutras palavras, a chegada da Covid-19 é um ingrediente a mais no plantel das

crises parciais já vivenciadas pelos latino-americanos. O poder de dano do vírus é

potencializado diante de um sistema de saúde público historicamente menosprezado e

de um sistema privado de saúde excludente. Ao chegar, a Covid-19 encontra um país

como o Brasil com cerca de 12 milhões de desempregados e mais de 38 milhões de

trabalhadores informais. Um país que extinguiu o Ministério do Trabalho, aprovou uma

reforma da previdência sem escrúpulos com as(os) trabalhadores e destruiu a

Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) com as chamadas Medidas Provisórias da

Liberdade Econômica e do Contrato Verde e Amarelo, enfrenta um vírus novo com um

projeto de precarização intensivo. Desculpem-me os confinados, mas, se não

vincularmos o cenário de destruição de direitos básicos vivenciados em toda a América

Latina com a chegada da Covid-19, teremos uma realidade falseada. A realidade não

falseada é aquela que revela os Estados e a iniciativa privada mentindo e roubando ao

dizer que não possuem meios nem dinheiro para atender aos empobrecidos. Bastou a

chegada de um vírus que também mata o rico e bloqueia o mercado para aparecerem

fundos e linhas de crédito salvaguardando as grandes corporações e, de modo

humilhante, o auxílio de 600 reais por mês para os mais de 30 milhões de brasileiros

sucateados por um Estado criminoso (lembrem-se que, nas primeiras discussões no

Senado, falava-se do perigo dos 600 reais, pois o Ministério da Economia havia

indicado inicialmente um auxílio de 200 reais).

Nessa realidade, ainda me pergunto como sustentar as ladainhas das(os)

confinadas(os) de geladeira cheia que afirmam que o antigo mundo acabou, que o

normal não existe mais, etc. Penso que, para afirmar coisas assim, somente comprando

(ou seria mendigando?) os discursos que não tocam a nossa realidade.

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O que exatamente não voltará a ser mesmo? O ex-presidente do Uruguai, José

“Pepe” Mujica, afirmou em artigo escrito para o periódico El País:

Haverá aqueles que pedem solidariedade econômica e financeira com os

pobres do mundo e aqueles que pedirão algum gesto dos milionários. Os dois

estarão cantando para a lua. Os bancos centrais do mundo rico inundarão de

dólares e euros os seus próprios países77

.

A conta continuará sendo a mesma. Parece-me uma ingenuidade que beira a

incompetência não se atentar aos discursos proferidos por médicos e políticos do “velho

mundo”, assim como dos políticos, empresariados e conglomerados dos países

periféricos, que sustentam as mais velhas estruturas de poder e preconceito nutridos

secularmente (antes e depois da gripe espanhola, da tuberculose, da Aids, da gripe

asiática, etc.).

Pergunto-me, quase me repetindo, o que mudará especificamente? Analisemos o

discurso do médico francês racista Jean-Paul Mira, que, no canal televisivo LCI, afirmou

sobre os testes de possíveis vacinas contra a Covid-19:

Se posso ser provocador, não devíamos fazer esses estudos na África, onde

não há máscaras, tratamento ou cuidados intensivos, um pouco como se faz,

aliás, para certos estudos da Aids ou com prostitutas? Tentamos coisas

porque sabemos que elas estão altamente expostas e não se protegem78

.

77 MUJICA, Pepe. Uma advertência a los ‘sapiens’. Mundo, Ideas, El País. Disponível em:

https://elpais.com/especiales/2020/coronavirus -covid-19/predicciones/una-advertencia-a-los- sapiens/.

Acesso em: 08 de junho de 2020. 78

FARIA, Luís M. Médico que sugeriu testar em África a utilização da vacina BCG contra o corona

vírus pede desculpa. 04 de abril de 2020. Internacional, Expresso. Disponível em:

https://expresso.pt/internacional/2020-04-04-Medico-que-sugeriu-testar-em-Africa-a-utilizacao- da-

vacina-BCG-contra-o-coronavirus-pede-desculpa. Acesso em: 08 de junho de 2020.

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O que há de novo nisso? Nem mesmo a retratação do médico francês deplorável e

racista se deu com novidade, pois afirmou que “exprimiu desajeitadamente” algumas

ideias.

Afinal, qual é a nova realidade que todos estão esperando? O que será

radicalmente distinto? Qual é o “novo normal”? Será que os estúpidos e imorais que

pedem intervenção militar a cada semana pararão por ocasião de uma quarentena

ocasionada por um vírus? Será que os apologistas da nova ordem pós-Covid-19 não

estão se confundido com os problemas já anteriores à chegada do vírus? Será que

políticos e grandes conglomerados colocarão o bem-estar da população antes da

ferocidade econômica? Será que haverá uma diminuição radical de consumo ou tudo foi

transferido para o ambiente virtual e aqueles que já consumiam continuam consumindo

e aqueles que não consumiam continuam sem consumir? Ou, novamente, a população

caíra no encanto do progresso tecnológico como algo novidadeiro? Lavar as mãos, usar

máscara, ter celular rastreado (novidade?), ter aulas a distância (EAD), pedir comida por

aplicativos, ter governos que vigiam a população (?!); seriam essas as mudanças do

novo mundo? Para quem exatamente acontecerão as propagadas mudanças?

Talvez, para aprofundar as questões do dito “novo normal”, seja oportuno debater

com dois autores que se posicionaram de modo oposto quanto a esse tema. Como são

autores estrangeiros, farei algumas intervenções com os aspectos da realidade vivenciada

por mim. Do lado dos entusiastas das mudanças que a Covid-19 trará, está o filósofo

esloveno Slavoj Žižek. Ele afirmou, no texto “El coronavírus es un golpe al

capitalismo al estilo de ‘Kill Bill’ y podría conducir a la reinvención del

comunismo”, que este seria um momento para aproveitar as possibilidades das grandes

transformações políticas e econômicas e nos encaminharmos para uma espécie de

cooperação global e solidária79. Do outro lado dessa discussão, dentre aqueles que

apostam que não há basicamente nada de novo na condução e na gestão dessa

pandemia, está o filósofo francês Alain Badiou. Ele indicou, no texto “Sobre la

situación

79 Indico a leitura: ŽIŽEK, Slavoj. Slavoj Zizek: Coronavirus is ‘Kill Bill’-esque blow tocapitalism and

could lead tore invention of communism. 27 de fevereiro de 2020. Russia Today. Disponível em:

https://www.rt.com/op-ed/481831-coronavirus-kill-bill-capitalism-communism/. Acesso em: 08 de junho

de 2020.

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epidémica”, que não vê, na atuação dos Estados, nada que já não seja próprio de sua

natureza. O seu espanto advém mais da quantidade de coisas que estão sendo

(mal)ditas sobre a pandemia e da inadequação disso tudo perante uma situação

francamente simples do que da previsibilidade de ações descoordenadas e classistas dos

Estados.

Naturalmente, vejo um exagero por parte de Slavoj Žižek. Apesar de o mercado

agir deslavadamente sem fronteiras, os Estados ainda não dão sinais de um

desmoronamento dos preceitos do Estado moderno (dentre eles, as fronteiras). Pode-se

privatizar tudo, até mesmo os serviços aduaneiros e a produção das moedas, mas esperar

solidariedade de Estados nações por questões de determinação natural penso ser

absolutamente inviável80. Há, sim, ao olhar para o movimento histórico, um

recrudescimento das fronteiras louvado pela estupidez generalizada. Quando os

europeus fecharam as suas fronteiras para que ninguém mais pudesse entrar na Europa,

pensei na eficácia da medida, mas de modo contrário: o bom é não deixar ninguém sair

de lá. Quem, afinal, iria para o epicentro de uma pandemia? Tal como as ironias ácidas

de Žižek, por aqui circulou a proposta tardia de que esse isolamento preventivo europeu

deveria ter ocorrido já em meados do século XIV e ter proibido o vírus do colonialismo

na América. A respeito dessa exacerbação discursiva de Žižek, que previa a

reconfiguração de uma espécie de comunismo no período pós-Covid-19 (para o delírio

do insano chanceler Ernesto Araújo), exponho um quadro muito mais realista advindo

do coletivo chileno “Iniciativa 18 Octubre”:

Falar de um colapso do capitalismo é, ainda, mais um desejo do que uma

realidade. Pode-se recordar a frase que “está nascendo algo novo enquanto o

velho não termina de morrer” [...], mas, além disso, novos e velhos valores,

novas formas de organização da sociedade humana, a consciência ecológica

e a mudança climática, puseram

80 Vide: HIBOU, Béatrice. De la privatización de las economías a la privatización de los estados:

análisis de a formación continua del Estado. México: FCE, 2013.

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tudo em discussão, a gestão e a manipulação da natureza tem limites que

devem ser respeitados pela sociedade humana81

.

Vejo com grande desconfiança a aposta em transformações políticas positivas pós-

pandemia. Não há nenhuma evidência, até então, que possa corroborar com tal anseio

(talvez por residir no Brasil, talvez). Para não pensar que estou sozinho nessa descrença,

pois, de acordo com as redes sociais, estamos “noutro mundo”, uso o exemplo sem

censuras da anarcofeminista e psicóloga boliviana María Galindo:

Dirão, mais uma vez, que estou louca [por afirmar algo contrário ao

momento; grifo do autor] quando sabemos que nessa sociedade nunca teve

camas de hospital no número que necessitamos e que, se vamos às suas portas,

ali mesmo morremos rogando”82

.

O mesmo poderia ser dito por qualquer cidadã ou cidadão brasileiro que já é

atropelado e deglutido pela realidade crua do preconceito e da pobreza estrutural. Esse é

outro cuidado diante da pandemia: as mídias oficiais e grande parte da divulgação

irresponsável das redes sociais sucedem-se tanto pela voz de uma pequena burguesia

acomodada como pela voz de uma esquerda naïf. Os indivíduos de ambos os grupos

tiveram, na quarentena, um triste encontro: encontraram-se consigo mesmos. Não

aguentando a própria estupidez, perceberam-se acorrentados tal como Prometeu. A

quarentena, para essa parcela que infesta as redes sociais com discursos desconexos e

sofríveis, é mais um sinal de que muitas coisas mudam para permanecer igual. Essa

parcela acomodada que não sofre na pele os efeitos econômicos da quarentena (podendo

sofrer, como todos, os efeitos da perda de queridos) perdem a enorme oportunidade de

calar-se, de silenciar-se. Como acertadamente disse o dramaturgo e cineasta Juan

Cavestany, teria chegado o momento de finalmente e verdadeiramente ficar calado sem

culpa, mas com fundamento; de poder estar em silêncio não apenas como dever, mas

também

81 Carta aberta do coletivo “Iniciativa 18 Octubre”, publicada em Santiago no mês de abril de 2020. Trata-

se de uma citação que aborda tanto as questões oriundas dos movimentos sociais chilenos quanto da atual

situação de crise sanitária. 82

Indico a leitura de: GALINDO, María. Desobediencia, por tu culpa voy a sobrevivir. Radio Deseo.

Disponível em: http://radiodeseo.com/desobediencia-por-tu-culpa-voy-a-sobrevivir- maria-galindo/.

Acesso em: 08 de junho de 2020.

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como emancipação (com a visível contradição entre a pandemia e experiência

particular)83. No fundo, tenho a triste sensação de que a histeria desse grupo se

resolverá quando acabar a abstinência de consumo84.

No que concerne às afirmações feitas por Alain Badiou, penso que ele acerta

quando fala das redes sociais como um lugar de paralisia mental fanfarrona. Muitos

defensores das redes sociais falam que basta saber usar, saber quem seguir, saber o que

procurar, que se trata de espaços democráticos (?!), que há muita coisa boa entre as

poucas ruins. Aqui, é a ideologia das tecnologias que fala. Digo ideologia no sentido

tradicional: a representação de problemas reais de forma mistificada. É claro que há

boas possibilidades e um pouco de vida honesta85 nas redes sociais, mas até quando

ficaremos fingindo que isso é o suficiente ou que isso é a maior parte do que se

consome nas redes sociais? Percebo que, desde fevereiro, há gráficos, estudos

científicos, previsões, especialistas tocando as trombetas do apocalipse no Brasil;

morrerão 1 milhão de brasileiros; morrerão entre 700 a

2.000 brasileiros; isolamento funciona; isolamento não funciona; beber desinfetante

funciona; beber desinfetante mata; tomar sol e água é fundamental; correr maratona em

uma sacada; assistir lives (transmissões ao vivo) de cantores e cantoras bêbedos ou

missa do papa e ópera em catedral; mostrar o que está comendo, bebendo, lendo; etc.

Um espaço de paranoia e desinformação travestidos de diversão e passatempo. Já as

mídias tradicionais restringem-se ao papel de contabilizar mortos, infectados e curados.

Trabalham incessantemente a partir de uma pedagogia dos milhões de mortos que visa

exclusivamente à criação de signos do medo, que serão devidamente bem aproveitados

por instituições religiosas e por aventureiros da realidade virtual.

Já quando Alain Badiou fala da plena continuidade das práticas estatais em torno

da pandemia, penso que há um rasgo intransponível entre a realidade europeia e a

realidade latino-americana. É preciso aceitar que há diferenças entre uma gestão política

levada a cabo por Macron e outra, por Jair Bolsonaro,

83 CAVESTANY, Juan. Micuarentena. 08 de maio d e2020. El País. Disponível em:

https://elpais.com/cultura/2020-05-08/mi-cuarentena.html. Acesso em: 08 de junho de 2020. 84

Indico os quadrinhos e as ilustrações de Leandro Assis, no site: www.moluscomix.com.br.

85 Por honesto, digo: sem embocadura/freio partidário, religioso, místico.

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e que há diferenças entre a continuidade do modelo político-econômico tal como é na

Europa e tal como se degenera na América Latina. A continuidade das práticas estatais

no Brasil significa o aprofundamento da precarização absoluta dos trabalhadores, mas

significa também a restrição e o encolhimento dos espaços públicos de debate, das

manifestações e das práticas de liberdade. Estou em concordância com Badiou na

perspectiva de que a pandemia da Covid-19 não trouxe grandes elementos novos para o

campo político; no entanto, a confusão ocasionada pelas alterações no cotidiano da

população acaba potencializada por uma estrutura podre de poder. Ordens de

confinamento a partir da militarização em cidades marcadas pela absurda violência é

algo nocivo. A destruição dos protestos sociais que incendiavam a América Latina a

partir da supressão das liberdades individuais (mascaradas por uma ideologia sanitária)

será reconstruída com dificuldades e, provavelmente, com mais signos de violência. O

que aconteceria na França se as pessoas resolvessem desobedecer para sobreviver? A

mesma pergunta deve ser feita para as mais diversas realidades latino-americanas. Penso

que Badiou entenderia as sangrentas distinções.

Encerro minhas reflexões afirmando que há muito pouco de novo sob o sol da

América Latina (infelizmente, em termos econômicos e políticos). Que os apocalípticos

e novidadeiros me perdoem, mas prefiro seguir ao lado de María Galindo, dizendo que

espero que, no tempo oportuno, voltemos à mesmice, ao mesmo espírito revolucionário,

ao mesmo convite à resistência, ao mesmo cantar, ao mesmo celebrar e ao mesmo fazer

amor que nenhuma nova ordem retirará.

A sentença “politizaram o vírus”, preferida e proferida por médicos, cientistas e

jornalistas, segundo eles mesmos, explica a causa do mal. A politização da pandemia é a

responsável pelo sucesso de marketing da hidroxicloroquina. O desprezo à opinião dos

especialistas, os ataques de todo tipo à ciência e ao isolamento social seriam também

frutos dessa “politização”. Será que é correto pensar assim?

A resposta é, enfaticamente, não! Por que não? Primeiro, pela falsa relação de

causa e efeito que a frase gera. Segundo, porque ela elimina a

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possibilidade de um diálogo mais esclarecedor, que poderia ajudar a traçar rotas

mais claras para resolver o grande caos que se apoderou do país.

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DEVEMOS DESPOLITIZAR O VÍRUS?

Mariangela Cabelo

“Politizaram o vírus”. Proferida e preferida dos médicos, cientistas e jornalistas,

essa sentença, segundo eles mesmos, explica a causa do mal. A ideia é a de que a

politização da pandemia é a responsável pelo sucesso de marketing da

hidroxicloquina. O desprezo à opinião dos especialistas, os ataques de todo tipo a

ciência e ao isolamento social seriam também frutos

dessa “politização”. Será que é correto pensarmos assim?

A resposta é enfaticamente um não! E podemos citar alguns motivos para isso:

primeiro pela falsa relação de causa e efeito que a frase gera. Segundo que ela elimina a

possibilidade de um diálogo mais esclarecedor, que poderia ajudar a traçar rotas mais

claras para resolver o grande caos que se apoderou do país.

Na verdade, fica claro, para os que estudam filosofia política, a confusão feita com

os conceitos básicos. Por exemplo, muitos desses médicos e cientistas acertariam se

tivessem dito “ideologia” no lugar de “politização”. Ideologia significa uma falsa

consciência. Na ideologia, existe uma certa verdade; não é puramente uma fake news.

Evidencia-se a ideologia na questão do isolamento vertical. Para que o isolamento

vertical pudesse ter força, seria necessário que ele seguisse alguma lógica. Assim, usou-

se uma certa verdade: a chance de o vírus ceifar mais a vida dos idosos. Se assim o é, por

que todos devem pagar o preço do isolamento social? Essa foi a ideologia do Planalto.

Isso foi o que Bolsonaro queria que o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta

defendesse.

Nós, da ciência, deveríamos ficar atentos à ideologia e às suas meias verdades. A

ideia do isolamento vertical estenderia a duração da pandemia se fosse colocada em

prática. Colocaria a população jovem e adulta em risco, pois eles podem morrer com a

doença, apesar de em menor número se comparado aos que possuem alguma morbidade.

Esses adultos, uma vez livres do isolamento vertical, chegariam em casa, pondo seus

familiares mais velhos em risco, expondo-lhes ao vírus e aumentando as chances de

infecção. O isolamento vertical foi descartado pela maior parte dos países, pois

geraria

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mais mortes, um aumento do tempo para a pandemia passar e, inclusive, uma piora na

economia.

Agora entendemos que a ideologia era e é, se não notada, uma inimiga da ciência.

Quero enfatizar aqui que o problema não é meramente de nomenclatura ou uma disputa

mesquinha de terminologias acadêmicas. O problema é começarmos uma conta

utilizando a fórmula errada e as variáveis erradas. Não chegaremos a um bom resultado.

Devemos tentar evitar nosso comprometimento com a ideologia, mas não com a

política. Se afastarmos a política, afastaremos justamente a chave que poderia revolver

os nossos problemas.

Outro motivo, e talvez o mais importante é a ideia de que a associação do

especialista com a política o macularia. A palavra política parece ser um palavrão, um

par de óculos embaçador que tira a clareza do discurso médico. Usar a palavra política

de maneira positiva, na mentalidade dos especialistas, os deixa com pouca autoridade

para falar de seus assuntos técnicos. Na verdade, nesse caso, o partidarismo é o grande

medo do médico, e não propriamente a política. Digo isso pois penso no exemplo do

Drauzio Varella, que, apesar de não ter medo da palavra política, não é um médico

partidário. De fato, o médico partidário perde a liberdade de poder criticar todos os

partidos e suas políticas. Afinal, ele não irá criticar o próprio partido. Será que todas as

políticas públicas, principalmente as da saúde, merecem passar ilesas das críticas?

As vozes da ciência e da medicina devem apontar todo e qualquer erro. Se não

temos isso em mente, o médico fica com medo de falar que é o presidente quem está

ferrando tudo. Aliás, isso é óbvio, todos veem. Hoje, até mesmo as revistas científicas,

como a Lancet, alertam que Bolsonaro precisa sair.

Portanto, o médico e o cientista que puxarem o coro a favor do

impeachment não serão partidários. Prezarão, antes, pelo seu ministério, pelas

instituições, pela medicina e pela própria profissão. Saber que a medicina

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tem um casamento profundo com políticas públicas de saúde faz parte da

formação de um bom médico.

Além disso, a nossa cultura ocidental nasceu da polis e, por isso, não podemos

fugir da política, pois é com ela que podemos estancar o número de almas levadas. A

seguir, explico-me melhor.

Os problemas de saúde de um país não se revolvem dentro de um consultório, mas,

sim, junto e justamente com políticas. Exemplos incontestes são o diabetes e a

obesidade, que afligem tantos brasileiros e dispensam tantas consultas no SUS e nas

clínicas particulares. A política pública de saúde que obrigou que refrigerantes,

biscoitos, bolos e etc. tivessem suas quantidades de açúcar diminuídas fez mais pelo

país do que anos do nosso trabalho no consultório em relação ao diabetes e à obesidade.

No quesito coronavírus, isso se repete. O trabalho do médico ajudando paciente

por paciente no hospital é como um passarinho que enche o bico de água para apagar

um incêndio na floresta. Já o presidente da República está com um maçarico acesso,

com 10 km de diâmetro, mirando para as árvores. Será que é tão difícil ter essa clareza

que as revistas internacionais tiveram?

Médicos, prestem atenção! Escutem a Lancet. Nenhum trabalho de vocês será

suficiente para estancar o mal da Covid-19 do país, quando a própria peste usa a faixa

presidencial, quando o próprio SARS-CoV-2 tem suas vontades atendidas pelo

Bolsonaro.

Enfim, do meu ponto de vista, parece que há uma falsa “isenção” da parte dos

médicos. Sabemos bem o que eles fizeram “no verão passado”. Não estou tirando o

mérito de os médicos irem para as ruas e protestarem contra o governo do PT e de

lutarem pela sua profissão. Foi um ato lícito. No entanto, hoje, os cidadãos pedem,

como brasileiros, para que lutem também pela saúde e pela ciência, pois, se elas

acabarem, a própria profissão de vocês já não precisará mais ser defendida!

Campo Grande, 30/05/2020

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O placar da vida

Das tantas piadas feitas pelo governo Bolsonaro, uma das mais cruéis, sem

dúvida, é a que se refere ao “Placar da vida”108.

Para contextualizar, sabe-se que a Organização Mundial da Saúde (OMS) já

declarou o Brasil como epicentro da pandemia da Covid-19, o que, consequentemente,

significa que o nosso país está em uma situação muito frágil e complicada. Com uma

alta taxa de contágio, o vírus encontrou aqui um habitat ideal para se multiplicar. Apesar

da brutal subnotificação, os dados oficiais indicam meio milhão de infectados pela nova

doença. O sistema de sepultamentos está em apuros, com máquinas tendo de abrir

grandes valas na terra. No cemitério, os corpos que se acumulam em suas instalações

frias, pedindo alguma vaga para o descanso final, perfazem 30 mil ex-cidadãos.

O “Placar da vida” são posts que aparecem nas publicações tanto da Secretaria

Especial de Comunicação Social (Secom) quanto, agora, do Ministério da Saúde. Esse

placar informa o número de pacientes que tiveram a doença e não faleceram pelo

coronavírus. Esses posts fazem um serviço ideológico par excellence, ou seja,

trabalham com uma falsa consciência. Trazem a ideia de que o Brasil tem um governo

“da vida”, não “da morte”, com o argumento de que o Planalto não faz a histeria da

mídia anunciando o número dos mortos.

A falsa consciência que o governo federal deseja passar é que a Covid-19 é uma

“gripezinha”, que a maioria não morrerá e que muitas pessoas pegaram a doença e não

morreram. Visto que toda ideologia tem uma parte de verdade, os posts trazem um

número verdadeiro de pacientes sobreviventes até então.

Em verdade, tudo não passa de um grande escárnio, pois é o governo de

Bolsonaro que está usando a palavra “vida”.

Além disso, esse placar não apenas esconde as mortes por Covid-19, mas

também ameniza a culpa do responsável por elas. Agora, talvez você pense: o

responsável pelas mortes desses brasileiros é o agente etiológico, o

108 https://covid.saude.gov.br/.

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SARS-CoV-2, nome de uma fita odiosa de RNA. Se seu pensamento é esse, e somente

esse, você está [meio] errado. O tópico agente etiológico é uma meia verdade.

O SARS-CoV-2 é uma estrutura tão simples que divide a opinião dos cientistas

sobre se é ou não um ser vivo. Ele não sobrevive muito tempo fora de nossas células

e, com uma boa esfregada de detergente, sabonete ou álcool, é destruído. Como é que

essa coisa ínfima, comparada à majestade e à organização do corpo humano, conseguiu

o que conseguiu?

Bem, esse pedacinho de RNA conseguiu o que conseguiu porque encontrou

pernas e braços humanos. Outrossim, aqui, no Brasil, o vírus vestiu a faixa

presidencial. Em uma espécie de simbiose entre o desejo do vírus e o do presidente,

nasceu o “Bolsovírus”. Similarmente à série infantojuvenil Power Rangers, o SARS-

CoV-2 encontrou no Brasil um Megazord, ou seja, aqui, teve seus poderes ampliados

pelas instituições republicanas. Elas estavam à sua disposição e ao seu serviço.

Foi assim que o “Bolsovírus” corroeu o Ministério da Saúde, o Conselho Federal

de Medicina (CFM), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e estruturas

que, em outros países, ajudaram a derrubar o coronavírus. Enquanto algumas nações

encerram suas quarentenas, o Brasil tem um SARS-CoV-2 realizando plenamente sua

vontade. Friedrich Nietzsche ficaria orgulhoso de ver um conceito vivo, a “vontade de

potência”, circulando sorridente, enquanto espalha um caminho de corpos (como

costuma dizer o filósofo Paulo Ghiraldelli em seu canal no YouTube). Aqui, o SARS-

CoV-2 povoou as ruas e os pulmões, tanto quanto há estrelas no firmamento.

Um dia, “Bolsovírus”, com seu corpo humano, terá de pagar o preço da destruição

causada por ele. Em Haia, no Tribunal Internacional de Justiça, esse “Placar da vida”

não servirá para amenizar a culpa do responsável pela morte dos nossos irmãos

brasileiros. Afinal, o SARS-CoV-2 não abraçaria tantas pessoas com seu manto sombrio

se não tivesse recebido a espetacular ajuda de Bolsonaro!

Campo Grande, 31/05/2020

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Oportunismo Trilionário dos Bancos em plena Pandemia

Maria Lucia Fattorelli Carneiro119

O privilégio do setor financeiro é estrutural no Brasil. Apesar da crise que

derrubou o PIB em cerca de 7% em 2015 e 2016, provocou a quebra de milhões de

empresas e aumentou o desemprego, o lucro dos bancos seguiu batendo novos recordes

a cada trimestre. Em 2020, em meio ao tumulto gerado pela pandemia do Covid-19 e

por crise política insana, o privilégio do setor financeiro avança e atinge trilhões de

reais.

No primeiro dia útil seguinte ao reconhecimento do estado de calamidade

pública pelo Congresso Nacional, no dia 23/03/2020, o Banco Central autorizou um

pacote de apoio de R$ 1,2 trilhão aos bancos. Essa medida veio antes de qualquer outro

apoio destinado às pessoas,instituições de atendimento médico-hospitalar ou aos

Estados e municípios.

Em seguida, o Congresso aprovou graves mecanismos financeiros que

comprometem tanto as finanças nacionais (a PEC 10/2020 autorizou gasto sem limite

para que o Banco Central compre papéis podres de bancos), como as finanças dos

estados e municípios (o PLP 39/2020 inseriu esquema que desvia recursos públicos, a

chamada securitização).

Além disso, em apenas 5 meses, o Banco Central acumulou perdas de mais de

R$ 65 bilhões em contratos que garantiram a alta do dólar para bancos e investidores

privilegiados – quantia superior à que a Lei Complementar 173/2020 destina aos 26

estados, DF e mais de 5.800 municípios, para o combate à pandemia.

Esses trilhões destinados aos bancos irão provocar o crescimento da dívida

pública em proporções gigantescas, cuja contrapartida estará refletida

119 Possui Especialização (MBA) em Administração Tributária pela FGV-EAESP (2009), Graduação em

Ciências Contábeis pela Fundação Educacional Machado Sobrinho (1986) e Graduação em

Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (1978). Atualmente é Coordenadora da

Auditoria Cidadã da Dívida. Foi membro da Comissão de Auditoria Integral da Dívida Externa

Equatoriana - CAIC - Subcomissão de Dívida Externa com Bancos Privados Internacionais (2007-2008).

Atuou como Assessora Técnica da Comissão Parlamentar de Inquérito CPI da Dívida Pública na Câmara

dos Deputados Federais em Brasília (2009-2010). Auditora Fiscal da Receita Federal do Brasil de 1982 a

2010. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Auditoria da Dívida Pública e Administração

Tributária.

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em papéis podres e demais danos patrimoniais, econômico-financeiros e morais.

É preciso amplo conhecimento acerca desses mecanismos financeiros que

aprofundam o privilégio dos bancos em plena pandemia, caso contrário, depois ainda

irão dizer que a destruição das finanças públicas decorreu dos míseros 600 reais pagos

aos pobres. Espero que o presente artigo contribua para esse necessário registro

histórico.

Pacote de R$ 1,2 trilhão

O pacote de R$ 1,2 Trilhão para bancos120 foi anunciado pelo presidente do

Banco Central Roberto Campos Neto em 23/03/2020, sob a justificativa de que seria

necessário injetar liquidez dos bancos para facilitar a concessão de empréstimos a juros

baixos para as empresas durante a pandemia.

Essa justificativa não se concretizou. A dificuldade de obtenção de empréstimos

e a elevação dos juros121,que já levou mais de 600 mil empresas a fecharas portas e

demitir122, tem sido objeto de inúmeras notícias.O próprio ministro Paulo Guedes

declarou que o dinheiro ficou “empoçado” nos bancos123.

Os bancos não cumpriram o combinado. Em vez de punidos, ainda estão sendo

premiados! Isso mesmo! O dinheiro que os bancos não

120 Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4plBToPhD8w&feature=youtu.be, referente

às medidas detalhadas em relatório do Banco Central disponível em

https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/ref/202004/RELESTAB202004-secao2_2.pdf, e resumidas

em notícia publicada pelo Correio Braziliense

http://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/banco-central-detalha-pacote-de-r-1216-tri-contra- a-crise-

do-coronavirus/. 121

Diversas notícias, por exemplo,

https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/26/coronavirus -juros-alta-prazo-corte- linha-

credito-antecipacao-recebivel.htm> e

https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/05/09/sem-verba-criada-para-salarios-associacao- estima-

em-1-milhao-ja-demitidos 122

https://gazetabrasil.com.br/economia/sebrae-mais-de-600-mil-empresas-fechadas-e-9-

milhoes-de-desempregados/ 123

https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2020/04/05/ internas_economia,1135804/guede

s-diz-que-dinheiro-esta-empocado-nos-bancos-e-sinaliza-medidas.shtml

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125

emprestam continua sendo depositado voluntariamente no Banco Central e é

remunerado diariamente, à custa do orçamento público124.

Não há previsão legal para essa remuneração diária, que custou cerca de R$ 1

trilhão durante 10 anos (2009 a 2018) aos cofres públicos.

Mesmo sem amparo legal, atualmente, quantia superior a R$ 1,3 trilhão que

sobra no caixa dos bancos é depositada voluntariamente no Banco Central e remunerada

diariamente, como o antigo overnight, às nossas custas.

Se o Banco Central não remunerasse essa montanha de dinheiro, os bancos iriam

se esforçar para emprestar, e para isso teriam que reduzir drasticamente os juros de

mercado. Portanto, é o próprio Banco Central que, ao remunerar a sobra de caixa dos

bancos, está incentivando a alta dos juros de mercado e provocando dificuldades para o

crédito às empresas.

Somente agora os bancos passarão a emprestar às pequenas empresas, porque o

Tesouro Nacional resolveu garantir para tais empréstimos125. Dessa forma, a atividade

mais lucrativa do país não irá correr risco algum para exercer a sua atividade fim, que é

prestar crédito. Fácil, não? Capitalismo sem risco para bancos, que continuam de posse

do pacote de R$1,2 trilhão, sem ter que cumprir a sua parte.

Trilhões de reais em troca de papéis podres

Outra benesse injustificável dada aos bancos em plena pandemia constou de

dispositivo inserido no Art. 7o da Emenda Constitucional 106/2020, que tramitou no

Congresso Nacional como PEC 10 e escancara o que denominamos Sistema da

Dívida126, isto é, a geração de dívida pública sem contrapartida alguma.

124Folheto resumido disponível em https://auditoriacidada.org.br/conteudo/temos-dinheiro- sobrando-

para-remunerar-diariamente-a-sobra-de-caixa-dos-bancos-essa-e-a-prioridade-do- pais/

125https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-06/governo-oferece-garantia-em-

emprestimo-para-pequena-e-media-empresa 126

https://auditoriacidada.org.br/conteudo/pec-10-2020-escancara-sistema-da-divida-por-maria- lucia-

fattorelli/

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126

A Emenda Constitucional 106 rebaixou o Banco Central a mero agente

independente do mercado secundário (mercado de balcão), o qual funciona de forma

desregulada, como uma negociação informal entre 2 agentes financeiros

independentes,sem a supervisão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ou de

qualquer bolsa de valores.

O Banco Central será uma das pontas desse negócio, porém, atuando com

dinheiro público e comprando qualquer tipo de ativo privado de bancos em volumes que

poderão alcançar vários trilhões de reais.

O presidente do Banco Central informou aos senadores, em 09/04/2020, que o

valor desse negócio bizarro seria de R$972,9 bilhões127. Porém, levantamento elaborado

pela Ivix Value Creation, publicado128 em novembro/2019, já havia revelado que esse

valor de quase R$ 1 trilhão corresponde a papéis financeiros que vêm sendo acumulados

ao longo de 15 anos na “carteira podre” de bancos, e esse valor não considera a

atualização pela inflação.

127https://www.moneytimes.com.br/ativos -privados-que-bc-pode-comprar-caso-pec-seja-

aprovada-somam-r-9729-b ilhoes/ 128

https://auditoriacidada.org.br/conteudo/carteira-podre-de-trilhoes-dos-bancos-nas-costas-do- povo-

brasileiro/

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127

Se considerarmos a atualização monetária sobre essa “carteira podre” dos

bancos, estamos falando de um gasto no valor de VÁRIOS TRILHÕES DE REAIS, que

irá afetar de forma drástica tanto o orçamento púbico como o endividamento, mais uma

vez, sem contrapartida alguma!

O risco de o Brasil virar o lixão dos papéis podres do mundo é elevadíssimo,

diante da falta de restrições aos tipos de papéis, falta de transparência, e falta de limite

para o gasto de dinheiro público a ser destinado para a compra de questionáveis ativos

privados.

No Senado, algumas modificações foram feitas no texto, em especial a

discriminação dos tipos de créditos privados que o Banco Central passaria a comprar: a)

debêntures não conversíveis em ações; b) cédulas de crédito imobiliário; c)

certificados de recebíveis imobiliários; d) certificados de recebíveis do

agronegócio; e) notas comerciais; e f) cédulas de crédito bancário.

A Câmara dos Deputados suprimiu tal discriminação e não retornou o texto para

o Senado, gerando uma inconstitucionalidade formal que é objeto da Ação Direta de

Inconstitucionalidade 6417 junto ao Supremo Tribunal Federal129.

Ao suprimir a discriminação dos papéis, o texto aprovado na Câmara acabou

autorizando a compra de qualquer ativo privado, sem limite, abrindo-se a oportunidade

para negócios completamente obscuros, como revela a notícia130 “O Banco Central

avalia comprar cestas de títulos privados.

Não será possível conhecer ou estabelecer qualquer tipo de controle sobre o tipo

de papel efetivamente comercializado, pois uma “cesta de títulos” pode conter inúmeros

tipos de distintos papéis financeiros, inclusive títulos sem valor comercial algum, podres

ou já prescritos (superiores a 5 anos) que sequer poderão ser identificados, pois estarão

“empacotados” na referida cesta.

129https://auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2020/05/peca_1_ADI_6417.pdf

130https://valor.globo.com/financas/noticia/2020/05/20/bc-avalia-comprar-cestas-de-titulos-

privados.ghtml

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128

Esse “empacotamento” torna sem sentido falar em “risco de crédito” ou “preço

de referência”, pois cestas de títulos misturam diversos tipos distintos de papéis

financeiros, de naturezas diversas, riscos diversos e preços de referência diversos e até,

em muitos dos casos, inexistentes, escondendo a verdadeira identidade e qualidade dos

títulos que estão sendo de fato negociados.

Os operadores desse negócio estão livres de punição, pois foram colocados

acima da lei de responsabilidade administrativa. Durante a tramitação da PEC 10 no

Senado, os senadores chegaram a exigir a revogação do Art. 3o da MP 930, que garantia

imunidade aos diretores e alguns servidores do Banco Central.

Vários senadores fizeram a ligação: se as operações a serem feitas com base na

PEC 10 fossem legítimas, qual seria a necessidade de conceder imunidade aos diretores

e operadores do Banco Central? Senadores disseram que não votariam a PEC 10

enquanto não fosse revogado o Art. 3o da MP 930. Tal revogação ocorreu no dia

15/4/2020, com a edição da MP 951, o que viabilizou a aprovação da PEC 10 no

Senado em 17/04/2020. Porém, logo após a promulgação da EC 106, por encomenda

do BC131, foi editada nova MP 966que coloca todos os agentes públicos acima da Lei de

Improbidade Administrativa, inclusive os do Banco Central.

Qual seria a justificativa para que o Banco Central gaste trilhões de reais para

comprar papéis privados que ninguém compraria? Porque a classe política brasileira

aprovou esse mecanismo em plena pandemia, e segue entregando as riquezas do país e a

possibilidade de desenvolvimento socioeconômico? Quem eles representam ao aprovar

isso? Não é o interesse social, definitivamente!

O ministro da Economia Paulo Guedes tem conhecimento do impacto trilionário

dessa operação no endividamento público, e já vem anunciando que pretende vender

reservas internacionais (possuímos cerca de US$ 360 bilhões em reservas

internacionais, equivalente a quase R$ 2 trilhões) para pagar

131

https://oglobo.globo.com/brasil/equipe-economica-bc-pediram-mp-que-livra-autoridades-de-

punicao-por-erro-na-pandemia-24426628

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129

dívida pública132, além de acelerar privatizações no valor de R$ 2 trilhões, referentes à

entrega de imóveis públicos e participações em estatais, também para pagar a dívida

pública133.

Em resumo, a dosagem desse mecanismo aplicada ao Brasil é cavalar e vai gerar

trilhões de reais de “dívida pública”, que terá que ser paga com sacrifício social e

entrega de patrimônio público. Por isso, durante a tramitação da PEC10 a Auditoria

Cidadã da Dívida enviou notificação extrajudicial134 aos deputados federais e produziu

várias notas técnicas alertando sobre os graves problemas de ordem jurídica,

constitucional, econômico-financeira e social envolvidos na PEC 10/2020, assim como

os seus impactos danosos à sociedade brasileira. Não adiantou! Os interesses

financeiros falaram muito mais alto e a PEC 10 foi aprovada em poucas sessões virtuais.

A Securitização permite que o mercado se apodere de recursos que

sequer alcançarão os cofres públicos

Outro mecanismo aprovado em plena pandemia foi o da chamada Securitização

de Créditos, que corresponde a uma nova forma de geração de dívida pública, porém, de

forma camuflada e super onerosa.

A dívida securitizada é paga por fora dos controles orçamentários, ou seja,

estamos diante de um esquema fraudulento.

Toda a legislação de finanças do país, fundamentada no princípio da unidade

orçamentária, é rasgada pelo esquema da securitização, pois o fluxo de recursos

arrecadados é parcialmente desviado para o mercado financeiro durante o percurso do

dinheiro pela rede bancária, e antes de alcançar os cofres públicos.

132https://www.infomoney.com.br/economia/guedes -defende-reducao-de-reservas-

internacionais-para-diminuir-divida-bruta/ 133

https://www.esmaelmorais.com.br/2020/04/paulo-guedes-quer-repassar-mais-r-2-trilhoes-

aos-bancos-enquanto-o-povo-se-humilha-para-receber-r-600/ 134

https://auditoriacidada.org.br/notificacao-extrajudicial-alerta-deputados-dos-graves-danos-

envolvidos-na-pec-10-2020/

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130

O ente federado perde o controle sobre parte de suas receitas, tendo em vista que

o desvio do fluxo de recursos públicos se dá durante o percurso do dinheiro pela rede

bancária resguardada pelo sigilo.

O mercado financeiro vem tentando aprovar o esquema de securitização de

créditos públicos há vários anos, por meio do PLP 459/2017135, cuja votação foi

obstruída várias vezes por mobilizações intensas e várias outras iniciativas, destacando-

se a interpelação extrajudicial136 a todos os líderes partidários e a denúncia sobre os

danos comprovadamente apurados por CPI da PBH Ativos S/A em Belo Horizonte137.

Em votação virtual realizada no sábado à noite, dia 02/05/2020, entre o feriado

de 1o de maio e o domingo, o Senado incluiu o esquema da securitização no PLP

39/2020 e o aprovou, juntamente com o congelamento de salários de servidores e a

exigência de implantação de medidas de arrocho fiscal. A relação é direta:

investimentos públicos ficarão inviabilizados diante do vazamento de recursos para o

mercado financeiro antes de alcançarem o orçamento público.

Esse é mais um negócio que só beneficia o mercado financeiro. Bancos

agenciam o processo de securitização, cobram taxas exorbitantes (em Goiás essas taxas

superavam R$ 350 milhões), e acabam adquirindo a totalidade dos ativos financeiros

(debêntures) gerados pela securitização. No caso da PBH Ativos S/A, por exemplo, em

2014 o BTG Pactual estruturou a operação e adquiriu a totalidade das debêntures que

pagavam juros de 23% ao ano!

Em vez de empacotar as dívidas dos entes federados e oferecê-las em processo

fraudulento de securitização, em linha com a perversa financeirização que está dando

errado no mundo todo, o Congresso deveria obrigar a União a socorrer estados e

municípios, onde vive a população, pois possui muito dinheiro em caixa; mais de R$ 4

trilhões em caixa: saldo de R$ 1,4 trilhão na

135https://auditoriacidada.org.br/conteudo/apelo-pela-rejeicao-de-projetos-fraudulentos-que-

desviam-recursos-publicos-plp-459-2017-e-pec-438-2018/ 136

https://auditoriacidada.org.br/conteudo/interpelacao-extrajudicial-sobre-o-plp-459-2017-

entregue-a-parlamentares-em-21-11-2018/ 137

https://auditoriacidada.org.br/conteudo/relatorio-preliminar-especifico-de-auditoria-cidada-da- divida-

no-2-2017/

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131

conta única do Tesouro Nacional138, mais de R$ 1,7 trilhão em Reservas

Internacionais139, e mais de R$ 1 trilhão no caixa do Banco Central140.

Esse mesmo PLP 39/2020 autorizou a destinação de apenas R$ 60 bilhões para

todos os 26 estados, DF e mais de 5.500 municípios, para ações de combate à pandemia

do coronavírus. A liberação de recursos não é automática e passa por diversos trâmites

burocráticos.

O desrespeito à vida e ao federalismo fica escancarado quando se verifica que

quantia superior a R$ 65 bilhões foi destinada pelo Banco Central, no período de janeiro

a maio deste ano, ao seleto grupo de bancos e grandes corporações que têm acesso aos

sigilosos contratos que paga a diferença decorrente da alta do dólar (swap cambial).

Conclusão

Os dispositivos mencionados neste artigo não têm nada a ver com o drama da

pandemia do coronavírus e descaradamente representam mais privilégios para o setor

mais lucrativo do país, às custas de geração exponencial de dívida pública sem

contrapartida alguma, com graves consequências sociais e econômicas para toda a

população e para a economia do país.

Por trás da desculpa de resolver problemas da pandemia, os bancos conseguiram

aprofundar seus privilégios na ordem de trilhões, comprometendo a geração atual e as

futuras com os pagamentos exorbitantes de juros sobre tal obrigação.

É inaceitável esse oportunismo que se aproveita do drama da pandemia do

coronavírus para suicidar de vez as finanças e adiar por muitas décadas qualquer

possibilidade de desenvolvimento socioeconômico do nosso rico país.

138 https://www.bcb.gov.br/content/estatisticas/docs_estatisticasfiscais/Notimp3.xlsx - Tabela 4 -

Linha 44 139

https://www3.bcb.gov.br/sgspub/localizarseries/localizarSeries.do?method=prepararTelaLoca

lizarSeries, Série Temporal nº 13621. 140

https://auditoriacidada.org.br/conteudo/fonte-da-informacao-de-r-144-trilhao-no-caixa-do-

tesouro-nacional-em-dez-2019/

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Seguiremos lutando e exigindo a realização da auditoria integral, com

participação cidadã, a fim de desmascarar esse golpe financeiro de trilhões que

aprofunda o Sistema da Dívida em plena pandemia, pois é urgente redirecionar os rumos

para outro modelo econômico que coloque o ser humano no centro e respeite o

ambiente.