Paulo Antonio Rodrigues Martins

101
7/18/2019 Paulo Antonio Rodrigues Martins http://slidepdf.com/reader/full/paulo-antonio-rodrigues-martins 1/101  PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO, RELAÇÕES INTERNACIONAIS E DESENVOLVIMENTO - MESTRADO PAULO ANTONIO RODRIGUES MARTINS A MORALIDADE NO DIREITO CONTRATUAL BRASILEIRO: UM ESTUDO A PARTIR DA FILOSOFIA DE ADAM SMITH Goiânia 2012

description

kjg

Transcript of Paulo Antonio Rodrigues Martins

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE GOIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO, RELAES INTERNACIONAIS

    E DESENVOLVIMENTO - MESTRADO

    PAULO ANTONIO RODRIGUES MARTINS

    A MORALIDADE NO DIREITO CONTRATUAL BRASILEIRO: UM ESTUDO A PARTIR DA FILOSOFIA DE ADAM SMITH

    Goinia 2012

  • 2

    PAULO ANTONIO RODRIGUES MARTINS

    A MORALIDADE NO DIREITO CONTRATUAL BRASILEIRO: UM ESTUDO A PARTIR DA FILOSOFIA DE ADAM SMITH

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao de Mestrado em Direito, Relaes Internacionais e Desenvolvimento da Pontifcia Universidade Catlica de Gois como requisito obteno do ttulo de Mestre em Direito, sob a orientao do Doutor Jean Marie Lambert.

    Goinia 2012

  • 3

    M386m Martins, Paulo Antonio Rodrigues.

    A moralidade do direito contratual brasileiro : um estudo a partir

    da filosofia de Adam Smith / Paulo Antonio Rodrigues Martins. -

    2012.

    101 f.

    Bibliografia: f. 94-101.

    Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de

    Gois, Programa de Ps-Graduao de Mestrado em Direito,

    Relaes Internacionais e Desenvolvimento, 2012.

    Orientador: Prof. Dr. Jean Marie Lambert.

    1. Filosofia moral - Adam Smith. 2. Princpios contratuais. 3. Cdigo

    civil moral Adam Smith. 4. Processo simpattico. 5. Obrigaes

    negociais. I. Ttulo.

    CDU: 17(043.3)

  • 4

    PAULO ANTONIO RODRIGUES MARTINS

    A MORALIDADE NO DIREITO CONTRATUAL BRASILEIRO: UM ESTUDO A PARTIR DA FILOSOFIA DE ADAM SMITH

    Dissertao defendida no Curso de Mestrado em Direito, Relaes Internacionais e Desenvolvimento da Pontifcia Universidade Catlica de Gois, para obteno do grau de Mestre. Aprovada pela Banca Examinadora constituda pelos seguintes professores:

    Dr. Jean Marie Lambert Prof. Orientador e Presidente da Banca

    PUC/GOIS

    Dra. Geisa Cunha Franco Prof. Membro da Banca

    PUC/GOIS

    Dr. Rabah Belaidi Prof. Membro da Banca

    UFG/GOIS

  • 5

    Dedico esta dissertao a Paulo Rodrigues de Miranda e Alice da Silva de Miranda, que em momento algum mediram esforos para realizao dos meus sonhos; guiaram-me pelos caminhos corretos; ensinaram-me a fazer as melhores escolhas; mostraram-me que a honestidade e o respeito so essenciais vida e que devemos sempre lutar pelo que queremos. Sou reflexo de vocs.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todas as pessoas que compartilharam a incrvel experincia vivida por mim ao longo do curso de mestrado, em especial ao amigo Arcio Vieira da Silva, grande incentivador e companhia em inmeras viagens e ao Dr. Ricardo Luiz Nicoli, respeitvel acadmico e laborioso magistrado, que indicou pontos prticos importantes para concluso desse trabalho. Aos meus queridos pais, avs, irmos e sobrinhos, que me oportunizaram momentos de alegria na difcil trajetria para obteno do conhecimento. Em especial, agradeo meu tio Rosngelo Rodrigues de Miranda, culto jusfilsofo, homem ntegro e honroso exemplo de tica, sabedoria e garra, sendo que sem o seu apoio esse projeto no sairia do papel. Ao meu orientador, Doutor Jean Marie Lambert, minha eterna gratido, pela sua assistncia, dedicao, competncia, pacincia e compreenso, sem as quais no seria possvel a confeco desta pesquisa. Aos professores Doutores Geisa Cunha Franco e Rabah Belaidi pelas relevantes crticas e sugestes apresentadas por ocasio de meu exame de qualificao, indispensveis para o aprimoramento deste trabalho. Aos amigos Marcelo Lopes Ferreira, ex-secretrio do mestrado e Ramon de Souza Oliveira, pesquisador do programa de iniciao cientfica do CNPq, obrigado pelas orientaes e pela convivncia nos intervalos das aulas. Aos colegas servidores tcnico-administrativos e docentes da Universidade de Rio Verde - GO (FESURV) e do Instituto de Ensino Superior de Rio Verde (IESRIVER) Faculdade Objetivo, obrigado pelo incomensurvel apoio. Muito grato.

  • 7

    "Paradoxalmente, so as cincias humanas que, no momento atual, oferecem a mais fraca contribuio ao estudo da condio humana, precisamente porque esto desligadas, fragmentadas e compartimentadas. Essa situao esconde inteiramente a relao indivduo/espcie/sociedade, e esconde o prprio ser humano. [...] Seria preciso conceber uma cincia antropossocial religada. [...] espera dessa religao - desejada pelas cincias, mas ainda fora de seu alcance -, seria importante que o ensino de cada uma delas fosse orientado para a condio humana. Assim a Psicologia, tendo como diretriz do destino individual e subjetivo do ser humano deveria mostrar que Homo sapiens tambm , indissoluvelmente, Homo demens; que Homo faber , ao mesmo tempo, Homo ludens; que Homo economicus , ao mesmo tempo, Homo mythologicus; que Homo prosaicus , ao mesmo tempo, Homo poeticus. A Sociologia seria orientada para nosso destino social; a Economia para nosso destino econmico; um ensino sobre os mitos e as religies seria orientado para o destino mtico-religioso do ser humano. [...] Quanto contribuio da Histria para o conhecimento da condio humana, deve incluir o destino, a um s tempo, determinado e aleatrio da humanidade. [...] Todas as disciplinas, tanto das cincias naturais como das cincias humanas, podem ser mobilizadas, hoje, de modo a convergir para a condio humana."

    MORIN, Edgar. A cabea bem-feita. RJ. Bertrand Brasil, 2000, pg. 42.

  • 8

    RESUMO

    Este estudo tem como objetivo investigar a filosofia de Adam Smith, fundada nos sentimentos, no qual a participao na situao alheia gera uma reciprocidade de sensaes e emoes, que servem de subsdio para o estabelecimento da valorao moral. Uma moralidade construda a partir de juzos de fato sintticos a posteriori, que geram raciocnios causais e fticos das percepes do prximo. Uma prtica reflexiva, tica e pedaggica. Perceber-se- que as ideias filosficas e morais de Adam Smith no foram devidamente difundidas, sendo que uma viso parcelar de suas obras obnubilaram o verdadeiro conhecimento de seu gnio. A par disso, perquirir-se-o quais so os fundamentos morais das obrigaes contratuais e econmicas, com base num movimento de reconciliao entre tica e economia. Por conseguinte, contextualizar-se-o todas essas invenes com a principiologia contratual do Cdigo Civil brasileiro, transformada com a incluso de clusulas gerais (funo social, boa-f e confiana), que exigem do hermeneuta rigor e criatividade no preenchimento e definio de seus sentidos. Problematizao: A filosofia moral de Adam Smith tem por base a utilidade e o auto-interesse? Ou esse auto-interesse socialmente e moralmente condicionado? possvel estabelecer relaes negociais sendo tico, ou seja, possvel enriquecer agindo com lealdade e probidade? Hiptese: Os sentimentos morais de Adam Smith tm alicerces no estabelecimento de relaes sociais corretas e justas, sendo que o auto-interesse individual calibrado pelo interesse da preservao da prpria espcie e o regime contratual brasileiro tambm se fundamenta nessas ideias. A metodologia privilegiou a pesquisa bibliogrfica e a anlise histrica, atravs do mtodo hipottico-dedutivo de construo de conjecturas e eliminao de erros. Concluso: possvel contratar sendo tico e leal, lucrando individualmente e enriquecendo socialmente, atravs do processo simpattico proposto pela moral smithiana.

    Palavras-chave: Filosofia Moral. Adam Smith. Cdigo Civil. Princpios contratuais.

  • 9

    ABSTRACT

    This study aims to investigate the philosophy of Adam Smith, founded in feelings, in which participation in the situation of others creates a reciprocity of sensations and emotions, which serve as input for the establishment of moral valuation. A morality constructed from synthetic judgments of fact 'a posteriori', that generate causal reasoning and factual perceptions of others. A reflective practice, ethics and pedagogy. Understanding will be that the moral and philosophical ideas of Adam Smith were not properly distributed, and a partial view of his works obnubilaram true knowledge of his genius. In addition, perquirir will be what are the moral foundations of economic and contractual obligations, based on a movement of reconciliation between ethics and economics. Therefore, context will be all these inventions with contract principles, the Brazilian Civil Code, changed with the incorporation of standard terms (social function, good faith and trust), which require the hermeneutist rigor and creativity in completing and setting their senses. Curriculum: The moral philosophy of Adam Smith is based on the usefulness and self-interest? Or that self-interest is morally and socially conditioned? You can establish business relations and ethical, ie, it is possible to enrich acting with fairness and probity? Hypothesis: The Moral Sentiments by Adam Smith have foundations in establishing social relationships right and fair, and the individual self-interest is calibrated by the interest of preserving the species itself and the contractual arrangements Brazil is also based on these ideas. The methodology favored the literature and historical analysis, through hypothetical-deductive method of construction of conjectures and eliminate errors. Conclusion: It is possible to contract being ethical and fair, profiting individually and socially enriching, through the process proposed by the sympathetic Smithian moral.

    Keywords: Moral Philosophy. Adam Smith. Civil Code. Contractual principles.

  • 10

    SUMRIO

    RESUMO.................................................................................................................... 08 ABSTRACT................................................................................................................ 09 INTRODUO............................................................................................................ 11 CAPTULO 1 A FILOSOFIA MORAL DE ADAM SMITH.........................................17 1.1 A simpatia e a Teoria dos sentimentos morais...................................................19 1.2 A solidariedade moral e o senso de convenincia............................................ 23 1.3 O ponto de vista moral e o autodomnio.............................................................26 1.4 O dilogo entre a Teoria dos sentimentos morais e a Riqueza das naes...... 29 CAPTULO 2 O PROCESSO SIMPATTICO E AS OBRIGAES NEGOCIAIS..36 2.1 A moral na contemporaneidade e o processo simpattico de Adam Smith.......36 2.2 A moral nas obrigaes contratuais....................................................................40 2.3 O direito e o contrato em Adam Smith: Lectures on jurisprudence.....................41 2.4 A reaproximao entre tica e economia e os sentimentos morais....................47 CAPTULO 3 - A PRINCIPIOLOGIA DAS RELAES CONTRATUAIS NO CDIGO CIVIL BRASILEIRO A PARTIR DA MORAL SMITHIANA.................................................................................................................53 3.1 O direito civil brasileiro: evoluo histrica e atual configurao........................53 3.2 Os fatos jurdicos e os negcios jurdicos...........................................................56 3.3 Os contratos: nova teoria geral...........................................................................57 3.4 Os princpios informadores mais tradicionais: liberdade de contratar e obrigatoriedade contratual...........................................................................................61 3.5 O princpio da funo social dos contratos.........................................................63 3.5.1 O princpio da funo social do contrato a partir do processo simpattico...................................................................................................................69 3.6 O princpio da boa-f (objetiva)...........................................................................71 3.6.1 Funo interpretativa da boa-f.......................................................................75 3.6.2 Funes integrativa e de controle da boa-f objetiva......................................75 3.6.3 A confiana como pressuposto da boa-f........................................................77 3.6.4 A vedao do comportamento contraditrio (venire contra factum proprium).78 3.6.5 Os princpios da boa-f objetiva, confiana e o venire contra factum proprium interpretados a partir do processo simpattico de Adam Smith..................................81 CONCLUSO..............................................................................................................89REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...........................................................................94

  • 11

    INTRODUO

    O estudo da moralidade e do direito contratual envolve diversas reas do conhecimento humano, entre elas, a filosofia, a economia e as cincias jurdicas. O objeto desta pesquisa apresentar alguns escritos de Adam Smith, notadamente os filosficos, no sentido de esmiuar quais foram suas contribuies para o estabelecimento de parmetros morais e ticos praticveis e aceitveis. Alm do mais, relacionar essas orientaes com o regime jurdico contratual brasileiro, especificamente a teoria geral dos contratos, formatada com a aprovao do Cdigo Civil de 2002.

    A escolha do tema no aleatria, pois as ltimas tendncias doutrinrias e legislativas tm valorizado muito a orientao ps-positivista do direito. O intuito ultrapassar a viso jurdica meramente formalista e positiva, na qual a lei incorpora o papel de nica protagonista das relaes sociais e reconhecer que os princpios assumem funes de destaque. Antes meras fontes subsidirias; agora representam a supremacia no ordenamento jurdico.

    A palavra princpio vem do latim principium, que significa incio, comeo, origem de algo. Juridicamente, expressa critrio de inspirao s leis ou normas concretas do direito positivo. (BONAVIDES, 2002). Tambm representa o alicerce de uma disciplina jurdica, seu ponto fundamental e que vincula todas as outras leis.

    No obstante, referidas fontes pecam pela significativa ausncia de carga normativa e cabe aos juristas da ps-modernidade consertar tal deficincia. A sua valorao jurdica, de outro lado, foi ratificada com a sua incluso nos diplomas constitucionais. Como pice do ordenamento, a Carta Magna estabelece um sistema aberto de regras e princpios. Agora, diferenciam-se as primeiras (mais objetivas e restritivas) dos segundos (funo de abrangncia), no arcabouo do ordenamento jurdico. No que as regras (leis em sentido estrito) tenham perdido sua relevncia; mas sua aplicabilidade depende da conformidade com os valores principiolgicos mais fundamentais de todo o sistema jurdico. Violar uma lei fere alguns pontos estruturais; ferir um princpio desmonta todo o sentido da ordem legal.

    Na interpretao de Eros Grau, imbudo de muitas das ideias do lusitano Menezes Cordeiro, o formalismo e o positivismo (sobretudo o difundido por seguidores de Hans kelsen) ainda so as marcas que caracterizam metodologicamente o pensamento jurdico moderno. Entretanto, sua fragilidade e

  • 12

    inconsistncia desnudam-se em vrios aspectos, dentre os quais a incapacidade de explicar os chamados conceitos indeterminados e as proposies carentes de preenchimento com valoraes. (GRAU, 2011).

    A mudana de paradigmas, desse modo, torna-se necessria. A hermenutica jurdica se enriquece com uma leitura substancial e principiolgica, sendo que o intrprete assume uma condio mais construtiva e atribui sentido ao enunciado legal. a propalada nova hermenutica (GRAU, 2011).

    Nesse desiderato, a prpria leitura da Constituio da Repblica sofre uma grande transformao. Constitucionaliza-se o direito e se estabelece a fora normativa da Lei fundamental. Uma expanso da jurisdio constitucional com nfase no surgimento de cortes especficas e o aprimoramento de novos mtodos e princpios interpretativos.

    O ps-positivismo (ou neoconstitucionalismo), na verdade, persegue a eficcia da Lei maior, especialmente a concretizao dos direitos fundamentais.

    O direito privado brasileiro no pode ignorar tais transformaes, tanto que o Cdigo Civil de 2002 consolidou princpios caros aos modelos particulares de conduta, como o princpio da boa-f objetiva. O prprio Miguel Reale propagou que o artigo-chave do Cdigo Civil, rico em conseqncias jurdicas, o artigo 113 (boa-f objetiva) (REALE, 2003).

    Observa-se, por esse mandamento, o interesse do legislador em promover a dignidade humana, a solidariedade social, a lealdade, a honestidade e a transparncia nas relaes civis. Sua organizao se d atravs de clusulas abertas (gerais), que expressamente permitem ao intrprete (principalmente ao juiz), desenvolver mais sentido s normas, estabelecer sua eficcia e seus limites.

    Vale lembrar que essa atividade interpretativa relativamente nova; exige do operador do direito uma postura mais flexvel e criativa, sem deixar de lado a segurana jurdica. Talvez aqui esteja o principal objetivo da presente reflexo, qual seja, oferecer instrumentos e subsdios mais seguros para que o magistrado possa preencher com sabedoria o vale hermenutico que surge com a natureza axiolgica prpria das normas abertas.

    Justifica-se o estudo do tema proposto como forma de contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa. A leitura moral do direito renova concepes pouco discutidas e resgata a essncia da natureza humana. A separao extrema entre direito e moral perseguida por alguns autores positivistas, de certa

  • 13

    forma atrasou a evoluo da prpria cincia jurdica. Uma viso to reducionista certamente sobreviveria por poucas dcadas.

    Alm de aprimorar o desenvolvimento social, a escolha pela pesquisa sobre as relaes entre a moral e o direito contratual, a partir das contribuies filosficas de Adam Smith, permitir que muitos leitores tomem conhecimento de conceitos bsicos propostos pela filosofia moral smithiana, que expressam com sapincia ideias simples e fiis sobre a pessoa humana.

    Perceber-se- que, antes do cultuado economista, manifestou-se um gnio da filosofia ocidental. Ideias abandonadas ou pouco difundidas pela humanidade, mas retomadas por um verdadeiro movimento de releitura de suas obras.

    Os engenheiros econmicos de planto (economistas numricos) deveriam ter tido mais cuidado com a interpretao poltica e jurdica de um pensador formado na era das Luzes. Um filsofo do iluminismo (escocs) certamente possui um pensamento mais complexo e rico do que muitos possam imaginar. Os prognsticos foram equivocados. Adam Smith no propriamente o pai do liberalismo econmico; representa mais um construtor de teorias morais embasadas naquilo que h de essencial na natureza do homem. Seus escritos, notadamente a Teoria dos sentimentos morais, expressam um sentimento de solidariedade raramente visto no mundo das letras. Para ele, as respostas para as imperfeies da espcie esto na prpria natureza humana, no contato com o prximo, com o outro, que o nico referencial existente.

    Em certa passagem de sua obra, na qual trata das virtudes amveis e respeitveis, Adam Smith dispe: (SMITH, 1999, pg. 26):

    E da resulta que sentir muito pelos outros e pouco por ns mesmos, restringir nossos afetos egostas e cultivar os benevolentes, constitui a perfeio da natureza humana; e somente assim se pode produzir entre os homens a harmonia de sentimentos e paixes em que consiste toda a sua graa e propriedade. E assim como amar a nosso prximo do mesmo modo que amamos a ns mesmos constitui a grande lei do Cristianismo, tambm o grande preceito da natureza amarmos a ns mesmo apenas como amamos a nosso prximo, ou, o que o mesmo, como nosso prximo capaz de nos amar.

    Ademais, em artigo sobre a contextualizao de Adam Smith e o ambiente vivido por ele poca do iluminismo escocs, Hugo E. A. da Gama Cerqueira conclui que os escoceses levaram a srio o desafio de explicar a sociabilidade humana (...). Sua expectativa era de alar as cincias morais ao mesmo xito terico e prtico alcanado pela filosofia natural no sculo que os precedeu. (CERQUEIRA, 2005, pg.

  • 14

    05). Corrente essa, que contraria tambm autores como Hobbes e Locke, pois constata que a vida em sociedade a condio natural para o ser humano e revela um autor mais criativo do que a imagem difundida pelos economistas mais tradicionais.

    Por conseguinte, ser possvel perceber no decorrer do presente estudo, que as orientaes utilitaristas formatadas nos sculos XIX e XX no so frutos das especulaes filosficas e muito menos econmicas de Adam Smith. Para o senso comum, as proposies mais recorrentes nos termos econmicos smithianos so aquelas que privilegiam a vantagem individual em face da coletiva; que contemplam o proveito pessoal em face do ganho social; que o egosmo necessrio para se estabelecer relaes negociais vantajosas. Entretanto, o que Smith na verdade prope um utilitarismo no qual os fins no esto desligados dos meios; deve haver adequao entre as duas situaes; serem convenientes, ou seja, realmente necessrias para se alcanar lucro individual e riqueza social. , assim, um utilitarismo simptico (moralmente compartilhado).

    A pesquisa do sistema moral construdo por Adam Smith , dessa forma, assunto essencial para melhor adequao e interpretao dos valores e proposies jurdicas dispostas no Cdigo Civil brasileiro.

    Quando se fala, por exemplo, em boa-f e lealdade denotam-se cargas valorativas que precisam ser descobertas e preenchidas para que a to venerada segurana jurdica seja preservada. O legislador deixou que o intrprete assumisse to rica (criativa) e penosa (delimitada) funo.

    Em meio anlise das influncias da moral sobre o direito contratual brasileiro, importante o dilogo, especialmente no mbito doutrinrio, das novas formas de releitura do direito, subsidiadas pela filosofia, pela sociologia, pela economia, pela poltica e pelo prprio senso comum.

    Para a confeco deste trabalho, diversas pesquisas bibliogrficas foram feitas no intuito de levantar o maior nmero de informaes possveis. Aps a coleta do material, diversas anlises foram realizadas no sentido de adotar uma referncia para o debate do tema. Como ponto bsico e referencial doutrinrio adotou-se a obra Teoria dos sentimentos morais ou Ensaio pelo qual os homens naturalmente julgam a conduta e o carter, primeiro de seus prximos, e depois de sis mesmos de Adam Smith. J como referencial terico, a filosofia moral como campo do saber.

    A obra filosfica produzida por Smith em 1.759, no foi muito difundida e

  • 15

    discutida, fatos que dificultaram a plena compreenso de seu pensamento. A maior vantagem desta leitura perceber que h mais de 253 (duzentos e cinqenta e trs anos) uma rica construo terica contribuiu para o amplo conhecimento da natureza e moralidade humanas.

    O trabalho est dividido em trs captulos. O primeiro captulo faz uma abordagem sobre a filosofia moral de Adam

    Smith. Uma filosofia simples, mas muito bem formatada. Apresenta-se seus antecedentes tericos e os autores que mais influenciaram o pensamento filosfico smithiano, como Francis Hutcheson e, principalmente, David Hume.

    A partir da ideia de simpatia, Adam Smith organiza todo um sistema moral, pautado nos sentimentos, na emoo e imaginao, ou seja, nas relaes de troca e experimentao que existem entre todos os seres humanos e que geram simpatia e solidariedade moral. O homem como espelho do homem.

    Ainda no primeiro captulo, feito um paralelo entre a Teoria dos sentimentos morais e a Riqueza das naes, demonstrando mais a noo de continuidade entre as obras, do que propriamente de ruptura.

    J no segundo captulo, esmia-se a teoria moral smithiana, atravs do processo simpattico (um processo imaginativo, em que algum espectador real - se coloca na posio do outro atravs do espectador imaginrio - e toma algumas concluses, que, ao final, serviro de baliza para sua prpria conduta do espectador real). a conhecida dialtica de espelhos.

    Alm disso, no segundo captulo, esclarece-se a retomada do discurso moral nas construes tericas contemporneas. Tambm as influncias da moral nas obrigaes civis e contratuais e, ainda, a reaproximao entre tica e economia, a partir das contribuies de Adam Smith.

    Apresentam-se, por fim, no ltimo captulo, as conexes entre o regime jurdico contratual brasileiro e a filosofia moral smithiana. Um breve relato do desenvolvimento do direito civil e as relaes entre os princpios da funo social dos contratos, boa-f objetiva e confiana, a partir do processo simpattico. Enumeram-se exemplos doutrinrios e jurisprudenciais, em que referidas proposies so interpretadas de variadas formas, ou melhor, no mais das vezes de modo vago e pouco preciso.

    Definir o que moral ou imoral nunca foi uma tarefa fcil. Muitos se valem de conceitos indeterminados e inseguros, no apreciveis pela razo humana

  • 16

    (metafsicos, por exemplo). Com a preocupao jurdica contempornea em definir com certeza, habilidade, justia e segurana tais conceitos, opta-se nesse trabalho pela adoo da teoria moral smithiana como um instrumento importante para soluo desses impasses.

    A par disso, levantam-se algumas indagaes importantes: a filosofia moral de Adam Smith tem por base a utilidade e o auto-interesse? O auto-interesse smithiano socialmente e moralmente condicionado? possvel estabelecer relaes negociais sendo tico, ou seja, possvel enriquecer agindo com lealdade e probilidade?

    Finalizando, ressalta-se que para a confeco dessa dissertao foi utilizada a metodologia de pesquisa cientfica de modalidade hipottico-dedutivo, consistente na construo de hipteses submetidas a crticas intersubjetivas a fim de descartar conjecturas falsas e obter concluses confiveis e verificveis. Alm disso, buscou-se atravs da anlise histrica tomar conhecimento da vida e da obra de um importante pensador do sculo XIX, Adam Smith.

    As pesquisas se concentraram em estudos bibliogrficos, contendo informaes coletadas em livros, jurisprudncias, revistas e jornais sobre o tema.

  • 17

    CAPTULO 1 A FILOSOFIA MORAL DE ADAM SMITH

    Historia magistra vitae (o passado um grande professor).

    Adam Smith foi um filsofo social e economista escocs (1.723-1.790). Mais do que isso, um gnio da era moderna, responsvel, entre outras coisas, pela Teoria do liberalismo econmico. (ORourk, 2008)

    Duas grandes revolues tm lugar durante sua vida: a americana e a francesa. Adam Smith publica, em 1759, um importante tratado, Teoria dos sentimentos morais ou Ensaio para uma anlise dos princpios pelos quais os homens naturalmente julgam a conduta e o carter, primeiro de seus prximos, depois de si mesmos, e, em 1776, a Investigao sobre a natureza e as causas da riqueza das naes ou, simplesmente, Riqueza das naes. Nela, define os pr-requisitos para o liberalismo econmico e a prosperidade das naes, como o combate aos monoplios; a no-interveno do Estado na economia; a liberdade comercial entre as naes, etc. (COBRA, 1997).

    Embora Adam Smith tenha sido conhecido eminentemente pelo trabalho realizado na Riqueza das naes, justamente na Teoria dos sentimentos morais que ele apresentou ao mundo seu mais ousado projeto - a construo de uma simples e ao mesmo tempo sofisticada teoria moral. Na verdade, suas pretenses eram mais audaciosas ainda, como relata P.J. ORourk (ORourk, 2008, pg. 41 e 42):

    Adam Smith pretendia publicar trs invenes da imaginao: A teoria dos sentimentos morais, A riqueza das naes e uma terceira obra sobre jurisprudncia isto , sobre as conexes mais inventivas e criativas: lei e governo que, entretanto, jamais foi concluda; pouco antes de morrer, ele mandou queimar suas anotaes e esboos.

    Sua teoria moral foi influenciada, sobretudo, pelos pensamentos de seu ex-professor Francis Hutcheson (1.694-1746) e de seu amigo David Hume (1.711-1.776), este ltimo com quem conviveu intensamente. O historiador do pensamento econmico Ricardo Feij (FEIJ, 2007, pg. 113) relata:

  • 18

    Vejamos a questo tica em Smith. Primeiramente, h que se notar certa continuidade entre a filosofia moral de Smith e a de seu antigo professor em Glasgow, Francis Hutcheson (1694-1746), e tambm entre Smith e David Hume, de quem desfruta de ntima amizade. Hutcheson segue a filosofia do direito natural, na linha de Locke, e acredita que o homem naturalmente dotado de um senso moral. Os homens possuem paixes altrustas, mas tambm egostas e elas so reconciliadas, na determinao da conduta humana, pela interveno de um senso de auto-estima que atenua a propenso individual para aes egostas. Hume fala que a correo moral da conduta humana depende de julgamentos que ns e os outros fazem de nossas aes. A moral humeana aproxima-se das outras concepes da poca por ser tambm ela teleolgica. No caso, porm, os efeitos repercutidos da ao ou os fins decorrentes dependem, se ela for um bem moral, da aprovao dela no s por parte de quem pratica, mas por todos os demais. A importncia do julgamento de terceiros expressa em um sentimento a que denomina de simpatia, na raiz etimolgica, a capacidade de sofrer com.

    Pela proximidade, Hume merece uma ateno especial, pois esse pensador tambm foi filho do iluminismo escocs (sedimentado na Universidade de Glasgow, ao norte da Esccia). A originalidade de seu pensamento est em permitir um maior distanciamento da racionalidade e da metafsica para explicitao das relaes morais, valorizando, sobremaneira, as construes empricas e sensoriais. A tica deveria ser, para ele, uma cincia da natureza humana, formatada na observao dos fatos, fenomenolgica. Nas palavras de Fbio Konder Comparato (COMPARATO, 2006, pg. 278):

    Para Hume, tal como para Rousseau, os princpios da natureza humana sobre os quais deveria fundar-se toda a reflexo tica so, primeiramente, as paixes e os sentimentos, e apenas secundariamente a razo. Esta segue sempre atrs, e sua funo consiste em descobrir os meios mais aptos para fazer com que as paixes e os sentimentos alcancem o seu objetivo. A razo, portanto, mesmo no campo tico, meramente tcnica.

    E quais so, para Hume, os principais sentimentos que determinam as aes humanas? Justamente a benevolncia e o egosmo; temperados por um senso de utilidade pblica, ou seja, satisfao em promover prazer ao prximo.

    Utilidade pblica, eis a base de suas concepes tericas. Nas palavras de Eduardo C. B. Bittar (BITTAR, 2002, pg. 262):

    Para Hume, bvio e natural o sistema que explica a moralidade pelo conceito de utilidade, sendo desnecessrio remontar a causas longnquas para que se recobre o porqu da escolha deste ou daquele valor como moralidade positiva (virtude) ou negativa (vcio). Ento, pode-se dizer que se age com vistas a este ou quele fim com base em uma experincia humana que favorece o entendimento de que se trata de algo imediatamente til.

  • 19

    Smith aproveitou-se de muitos dos conceitos formulados por Hume, mas estabeleceu uma teoria da moral com bases mais voltadas para a simpatia como senso de convenincia (apropriada, decorosa) do que propriamente simpatia como utilidade pblica (satisfao de um prazer, meramente vantajosa, at certo ponto esttica). As ideias esposadas por Andr Marzulo Quintana (QUINTANA, 2011, pg. 08), so esclarecedoras:

    A tica de Smith fundada na simpatia como um sentido de partilhar afetos, emoes e sentimentos, tal como a desenvolvida por Hume. No entanto, distingue Smith de Hume, o compartilhar afetos no significa apenas acompanhar o prazer que o espectador sente ao reconhecer a beleza do sistema. Hutcheson e Hume se preocuparam mais com a finalidade dos afetos do que com as causas, fundamentando o julgamento moral em consideraes de esttica e agente-neutro: moral beauty (Smith, 1999; Darwall, 1999). Smith se diferencia dos antecessores. Para ele, o julgamento moral provm mais do senso de convenincia do que do senso de beleza.

    Em sua dissertao de mestrado, Joo de Azevedo e Dias Duarte explica (DUARTE, 2008, pg. 77):

    (...) Na interpretao de Smith, a teoria moral humeana, ao situar o fundamento da aprovao/desaprovao moral numa considerao das conseqncias que certas aes e carteres tendem a produzir, em sua utilidade potencial, adota uma perspectiva demasiado abstrata sobre a tica, e no faz justia aos fenmenos morais. Em outras palavras, a ideia de que julgamos as aes por sua tendncia a ser til , segundo Smith, uma construo filosfica especulativa e no uma explicao adequada de como os homens julgam moralmente na vida comum.

    Ser demonstrado no decorrer do presente estudo, que a ideia de utilidade aprimorada e refinada no pensamento de Adam Smith. A adequao dos meios para obteno de determinados fins como pressuposto fundamental da sua filosofia moral.

    1.1 A simpatia e a Teoria dos sentimentos morais

    O ponto nevrlgico em que construda a filosofia moral de Adam Smith passa pela ideia de simpatia, construda em sua obra Teoria dos sentimentos morais. Para referido pensador, o homem seria uma criatura guiada por paixes e ao mesmo tempo auto-regulada pela sua habilidade de raciocinar e pela sua capacidade de simpatia. Esta dualidade tanto joga os homens uns contra os outros, quanto os leva a

  • 20

    criar racionalmente instituies pelas quais a luta mutuamente destrutiva pode ser mitigada e mesmo voltada para o bem de todos. (SMITH, 1999).

    Na Teoria dos sentimentos morais, logo na Primeira Parte, Seo I (Do senso de convenincia), Adam Smith declara (SMITH, 1999, pg. 5):

    Por mais egosta que se suponha o homem, evidentemente h alguns princpios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte de outros, e considerar a felicidade deles necessria para si mesmo, embora nada extraia disso seno o prazer de assistir a ela. Dessa espcie a piedade, ou compaixo, emoo que sentimos ante a desgraa dos outros, quer quando a vemos, quer quando somos levados a imagin-la de modo muito vivo. fato bvio demais para precisar ser comprovado, que freqentemente ficamos tristes com a tristeza alheia; pois esse sentimento, bem como todas as outras paixes originais da natureza humana, de modo algum se limita aos virtuosos e humanitrios, embora este talvez a sintam com uma sensibilidade mais delicada. O maior rufio, o mais empedernido infrator das leis da sociedade, no totalmente desprovido desse sentimento.

    Parece bvio. As pessoas se interessam pela vida alheia. O homem tem o outro como referncia; as ideias de bom ou mal, de belo ou feio, de saudvel ou indigesto passam, primeiro, pelas avaliaes do que outras pessoas j decidiram sobre elas. No entendimento de Adam Smith, essas so as fontes da solidariedade moral (SMITH, 1999). Se uma criatura humana vivesse isolada num determinado espao, como numa ilha deserta, sua conduta no seria balizada por qualquer tipo de parmetro. No saberia distinguir o belo do feio, o certo do errado, o justo do injusto. Somente vivendo em sociedade possvel aprimorar e assimilar tais conceitos. Nas suas prprias palavras: Tragam-no para a sociedade, e ser imediatamente provido do espelho de que antes carecia. (SMITH, 1999, pg. 140).

    Mas, como chegar ao conhecimento do que o outro sente, e, ao final, estabelecer a prpria deciso sobre determinado assunto? Atravs de um espectador, denominado por Adam Smith como sendo um espectador imparcial (um tribunal dentro de nosso prprio peito). E como esse espectador alcanar esse desiderato? Participando da situao alheia, atravs da imaginao; inicialmente uma atividade imaginativa.

    ngela Ganem (GANEM, 2000, pg. 06), complementa:

    A partir da experincia, o sujeito smithiano exercita o segundo grande aspecto presente na TSM (Teoria dos sentimentos morais) que o exerccio da imaginao. S a partir da experincia podemos formar alguma ideia do que se passa na mente do outro, podemos nos colocar no lugar do outro. S por meio da imaginao nos possvel conceber quais so as suas verdadeiras sensaes. Imaginar-se no lugar do outro, vivenciar uma

  • 21

    situao anloga ou colocando-se no lugar do outro o ponto de partida da anlise que Smith faz do indivduo. Nas palavras do autor: A imaginao permite nos colocarmos na posio do outro, padecer seus sofrimentos, entrar por assim dizer em seu corpo e chegar a ser, em alguma medida, uma nica pessoa, formando assim uma ideia de suas sensaes, sentindo algo parecido, embora de intensidade menor. (Smith, TSM:50)

    Dessa forma, a teoria moral de Smith formatada em bases empricas e sensoriais, tal como em David Hume. Abandona explicaes metafsicas e teleolgicas para se aproximar, de certo modo, de justificativas fenomenolgicas.

    Entretanto, dizer que sua teoria uma construo puramente psicolgica (psicologismo), seria muito precipitado. Quando o espectador imparcial (imaginrio) participa da situao alheia, ele avalia, entre outras coisas, as condies sociais, econmicas e histricas que influenciaram as suas concepes, chegando a algumas concluses importantes, para, logo depois, transferi-las ao espectador real que ir adapt-las na sua experincia cotidiana. uma teoria que produz efeitos prticos, com certeza. Mais do que isso, uma teoria objetiva e tica pedaggica (BAGOLINI, 1953).

    Pelo exposto at aqui possvel perceber que a ideia de simpatia para Adam Smith tem a ver com o senso de convenincia prprio das relaes humanas (reciprocidade dos sentimentos alheios com os nossos); semente que produzir frutos para uma moral reflexiva: um processo discursivo e socivel de reflexo (ROTHSCHILD, 2003, pg. 254). Longe de ser uma mera benevolncia.

    Joo de Azevedo e Dias Duarte discorda da ideia de que Adam Smith prope uma tica do amor ou da compaixo, conforme abaixo discriminado: (DUARTE, 2008, pg. 84 e 85):

    A tica de SMITH no , portanto, simplesmente uma tica do amor ou da compaixo, e a simpatia tampouco pode ser confundida com benevolncia. perfeitamente possvel simpatizarmos (no segundo sentido) com paixes egostas, e at anti-sociais (como o ressentimento). A simpatia tambm pode ser pervertida e perversiva; embora natural aos seres humanos, ela deve ser cultivada e refinada. Da o papel fundamental que a educao moral desempenha no esquema smithiano: devemos aprender a bem simpatizar, exercitando nossa imaginao na representao e na compreenso adequadas de situaes morais. O prprio exerccio de se colocar no lugar dos outros, e perceber o que importante em diferentes contextos, ajuda a atingir o objetivo tico: aproximar-se da posio do espectador imparcial.

    A simpatia, ento, um processo no qual entram: 1) a imaginao da situao alheia; 2) as conseqncias que esta atitude emocional e imaginativa produz

  • 22

    no prximo - mais intensas e parciais, e 3) os reflexos destas concluses no espectador imparcial - menos intensas e mais imparciais.

    Outrossim, Adam Smith estabelece uma diferena fundamental entre as simpatias imediata (instintiva, altrusta, egosta), e a mediata (valorao isonmica do problema, mais benvola, equidistante). A partir dessa distino ser possvel estabelecer todo o processo de valorao prtica.

    Estudando nas Arcadas do Largo de So Francisco (Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo), ainda na dcada de 50 do sculo XX, o italiano Luigi Bagolini disps (BAGOLINI, 1952, pg. 42):

    Como, porm, possvel a realizao da simpatia, quando a percepo e a experincia dos sentimentos alheios no intensa, crucial e imediata? Para responder a esta pergunta, SMITH penetra no vivo do processo simpattico como processo imaginativo. Quando a experincia dos sentimentos alheios no direta e imediata, formamos uma ideia do que os outros sentem, concebendo imaginativamente o que ns mesmos sentiramos se nos encontrssemos em igual situao. Assim, pois, seguindo HUME, SMITH distingue a simpatia imediata da simpatia mediata, atravs da imaginao do observador. Esta distino se reveste da maior importncia, pois que, unicamente base de tal distino, a simpatia poder ser considerada como elemento fundamental de todo o processo de valorao pratica.

    Eis aqui uma das singularidades de Adam Smith em relao aos pensadores de seu tempo. Considerando a situao alheia (conjugada com as condies sociais, econmicas e histricas da pessoa que est sendo observada), sua doutrina adquire uma valorao prtica e se afasta da abstrao egosmo-altrusmo prprio do raciocnio imaginativo.

    Processo simpattico; participao simpattica ou imaginao simpattica so processos que no resultam do emprego da razo, j que envolvem sentimentos e percepes inventivas que fogem ao processo racional? Para Adam Smith (SMITH, 1999), referidos mtodos so irracionais sim, mas de nada interferem na construo da solidariedade entre os homens, vez que so racionalidades do juzo de fato sinttico a posteriori, ou seja, a atividade do espectador imparcial importante na medida em que estabelece um raciocnio causal e ftico das percepes alheias.

    Quando uma pessoa imagina a situao alheia, seu espectador imparcial tomar algumas concluses; e, quando este indivduo for construir juzos morais a respeito de sua prpria conduta, ele ter como base as decises que foram tomadas a respeito da conduta de seu prximo.

  • 23

    A simpatia, dessa forma, fundamento da valorao moral.

    1.2 - A solidariedade moral e o senso de convenincia

    O sentimento simpattico produz resultados satisfatrios ou insatisfatrios na imaginao do espectador imparcial. Mas participar das paixes alheias pode ser vantajoso na medida em que embasa decises importantes para a prpria vida do ser humano. Por mais que este envolvimento seja indireto e imparcial, possvel gerar solidariedade.

    Talvez o grande mrito de Adam Smith seja o de demonstrar que os homens so espelhos uns dos outros. Participam de uma grande comunidade e precisam do prximo para viver com tranqilidade (no sentido estico). Quanto mais identificao com as atitudes alheias, mais harmonia social. Quanto menos, mais desordem e crise de valores e da prpria identidade.

    Importante destacar que, para Adam Smith (SMITH, 1999) os homens possuem solidariedade com quaisquer paixes benficas ou malficas. Isso faz parte da sua prpria essncia; para que discutir se os homens so bons ou ruins, justos ou injustos, egostas ou altrustas, se na prtica as pessoas podem ser boas ou ms, justas ou injustas, egostas ou altrustas?! Adam Smith trata do homem como ele . (GANEM, 2000).

    Quando aborda Do prazer da simpatia mtua, Adam Smith apresenta inmeros exemplos dessa manifestao emprica (simpatia): (SMITH, 1999, pgs. 11 e 12):

    Mas, seja qual for a causa da simpatia, ou do que a provoca, nada nos agrada mais do que observar em outros homens uma solidariedade com todas as emoes de nosso prprio peito; e nada nos choca mais do que a aparncia do contrrio. Aqueles que se comprazem em deduzir todos os nossos sentimentos de certas sutilezas do amor de si julgam que no se equivocam, segundo seus prprios princpios, ao responsabilizarem-no tanto por esse prazer como por essa dor. O homem, dizem, consciente de sua prpria fraqueza e da necessidade que tem da ajuda de outros, regozija-se ao observar que adotam suas prprias paixes, porque isso o assegura dessa ajuda; mas sente-se triste sempre que observa o contrrio, porque isso o certifica de sua oposio. Todavia, tanto o prazer quanto a dor so sempre sentidos to instantaneamente, e com freqncia por motivos to frvolos, que parece evidente que no poderiam resultar de nenhuma considerao egosta desse tipo. Um homem se sente mortificado quando, depois de se ter esforado para divertir a reunio, olha em torno e v que ningum, seno ele prprio, ri de suas graas. Ao contrrio, a jovialidade do grupo lhe agrada muitssimo, e considera essa reciprocidade entre os seus sentimentos e dos deles como o mais caloroso aplauso.

  • 24

    Enfatizando sua teoria, prossegue (SMITH, 1999, pg. 15 e 16):

    Quando as paixes da pessoa a quem principalmente concernem esto em perfeita consonncia com as emoes solidrias do espectador, necessariamente parecem a este ltimo justas e prprias, adequadas aos seus objetos; e, ao contrrio, quando, colocando-se no lugar dele, descobre que no coincidem com o que sente, necessariamente lhe parecem injustas e imprprias, inadequadas s causas que as suscitam. Portanto, aprovar as paixes de um outro como adequadas a seus objetos o mesmo que observar que simpatizamos inteiramente com elas; e no aprov-las como tal o mesmo que observar que no simpatizamos inteiramente com elas. (grifo nosso)

    E acrescenta:

    Aprovar as opinies de outro homem adotar essas opinies; e adot-las aprov-las. Se os mesmos argumentos que te convencem tambm me convencem, necessariamente aprovo a tua convico; e se no o fazem, necessariamente a reprovo; nem posso conceber que faa uma coisa sem a outra. Portanto, todos admitem que aprovar ou desaprovar as opinies de outros significa apenas observar sua concordncia ou discordncia com nossas prprias. Contudo, o mesmo caso ocorre com relao a nossa aprovao ou desaprovao dos sentimentos ou paixes dos outros.

    A solidariedade moral nasce da reciprocidade (concordncia mtua) dos sentimentos alheios com os do espectador imparcial, que obtido atravs da imaginao.

    Para ficar mais claro como se processa o processo simpattico, cite-se novamente Joo de Azevedo e Dias Duarte (DUARTE, 2008, pg. 99):

    Esquematicamente, pode-se dividir a teoria smithiana da avaliao moral em quatro etapas: (a) H a troca imaginria de posies, pela qual o espectador busca tanto quanto possvel expor-se s influncias causais que produziram a paixo original, o que exige uma representao acurada da sua situao. (b) A partir da, produz-se uma resposta no espectador. (c) Essa , ento, comparada com a reao original. (d) Dessa comparao, emerge ainda uma emoo no espectador, que ser prazerosa, chamando-se aprovao, caso as reaes original e simptica concordem, e dolorosa (desaprovao) caso contrrio.

    Nunca demais lembrar, entretanto, que a solidariedade proposta por Adam Smith diferente daquela adotada por David Hume, apesar da secularizao em comum (ROTHSCHILD, 2003). O primeiro est preocupado com o senso de convenincia, ou seja, se a reciprocidade verdadeiramente til para o corpo social (causal; motivacional), sendo que o segundo acredita que este vnculo seria meramente vantajoso ao corpo social mais pela beleza esttica produzida do que pelo interesse social (finalstica).

  • 25

    Alis, a ideia de convenincia ou adequao (propriety) permite alcanar o sentido tico presente no tratado smithiano de moralidade. ngela Ganem, mais uma vez, pontua: (GANEM, 2000, pg. 10/11)

    A adequao fornece novas luzes sobre o desejo imperioso de ser aprovado e, conseqentemente, sobre a construo do amor prprio. Mas o que significa esse desejo e que moralidade e conceitos bsicos o norteiam? Se a intersubjetividade fica clara no exerccio da imaginao, Smith no se limita a ela. Alm de definir a relao social homem a homem o autor define uma relao do homem com sua prpria conduta, sendo esta ltima uma conduta social. (...) As regras morais podem ser internalizadas e expressas pelo homem dentro do peito. Logo fazemos uma mediao entre ns e o espectador imparcial, estabelecendo uma regra geral em que todas as aes que nos tornam depreciveis devem ser evitadas. Ao internalizarmos o sentido de adequao, tornamo-nos espectadores imparciais de nossa prpria conduta, verificando o seu mrito efetivo. Existiria em verdade um tribunal hipottico na nossa prpria conscincia, elemento construtor do nosso amor ao outro e do amor a ns mesmos.

    Por mais que haja controvrsias, visualiza-se em Adam Smith uma proposta de utilitarismo simpattico (onde um fim concreto e realizvel no independente da escolha dos meios idneos para realiz-lo), contemplativo (ROSS, 1999), um tanto quanto diverso do que David Hume prope como utilitarismo imediato (finalstico; proveitoso; prazeroso). Luigi Bagolini aduz: (BAGOLINI, 1953, pg. 80)

    Enquanto o utilitarismo anti-egostico de HUME se funda na considerao daquelas circunstncias nas quais o observador, e portanto o sujeito que valora, simpatiza prevalentemente com o fim para o qual a ao de valorar, a posio de SMITH faz ressaltar aquelas circunstncias nas quais, segundo ele, a considerao da idoneidade dos meios, para a realizao de um fim, prevalece sobre a considerao mesma do fim. Como exemplo ele tomara, entre outros, o da ordem poltica. O aperfeioamento da ordem social, econmica e poltica de um estado valorado em relao realizao do seu fim, que a felicidade dos cidados. Todavia, algumas vezes observa SMITH parece que ns valoramos mais os meios do que o fim e que desejamos promover a felicidade dos nossos semelhantes, antes partindo da exigncia de aperfeioar e melhorar a estrutura dos meios, como estrutura de uma ordem social e poltica, do que partindo diretamente da considerao dos prazeres que os homens podero usufruir dentro de uma determinada ordem poltico social.

    J possvel perceber, de antemo, que referido processo imaginativo e a conseqente solidariedade moral so significativamente responsveis pelas atitudes tomadas pelo homem em relao ao prximo e a si mesmo.

  • 26

    1.3 - O ponto de vista moral e o autodomnio

    No pensamento smithiano, a moralidade fruto da prpria sociabilidade (SMITH, 1999).

    O exerccio de se colocar na situao dos outros e perceber o que importante em diferentes contextos e, quando necessrio adotar concepes positivas como juzos morais sobre a prpria conduta cria um senso de dever, ou seja, todo um sistema de valorao moral, de sentimentos morais.

    Os comentrios de Emma Rothschild (ROTHSCHILD, 2003, pg. 255), so elucidativos: O princpio do julgamento moral que no existe um princpio fundamental de julgamento moral. No existe uma base; tudo que existe a correo e convergncia de sentimentos (...).

    Esse processo obtido, assim, por meio da imaginao que produz um sentimento de simpatia; de solidariedade moral (processo simpattico), que leva ao estabelecimento de concluses racionais.

    Nas palavras do ex-professor de filosofia moral da Universidade de Glasgow, Esccia (SMITH, 1999, pg. 139 a 142):

    O princpio pelo qual naturalmente aprovamos ou desaprovamos nossa prpria conduta parece em tudo igual ao princpio pelo qual formamos juzos semelhantes a respeito da conduta de outras pessoas. Aprovamos ou desaprovamos a conduta de outro homem segundo sintamos que, ao fazermos nosso seu caso, podemos ou no simpatizar inteiramente com os seus sentimentos e motivos que a nortearam. E, da mesma maneira, aprovamos ou desaprovamos nossa prpria conduta segundo sintamos que, quando nos colocamos na situao de outro homem, como se contemplssemos com seus olhos e de seu ponto de vista, podemos ou no entender os sentimentos e motivos que a determinaram, simpatizando inteiramente com ela. (...). Nossas primeiras ideias de beleza e deformidade das pessoas ss extradas da figura e aparncia de outros, no das nossas prprias. (...) Da mesma maneira, nossas primeiras crticas morais se referem aos caracteres e conduta de outros; e com grande desembarao observamos como cada uma delas nos afeta. Porm, logo aprendemos que outras pessoas tm igual franqueza a respeito das nossas. Ansiamos por saber em que medida merecemos sua censura ou aplauso, e se perante elas necessariamente mostramo-nos to agradveis ou desagradveis como elas perante ns. Comeamos, pois, a examinar nossas prprias paixes e conduta, e considerar o que devem parecer aos outros, pensando o que a ns nos pareceriam se estivssemos em seu lugar. Supomo-nos espectadores de nosso prprio comportamento, e procuramos imaginar o efeito que, sob essa luz, produziria sobre ns. Esse o nico espelho com o qual, em certa medida, conseguimos esquadrinhar a convenincia de nossa prpria conduta por intermdio de olhos alheios. (...).

  • 27

    O que seria do homem sem a convivncia com o seu prximo? Um ser puro de sentimentos naturais, em que as necessidades mais bsicas iriam se manifestar vertiginosamente. Para Adam Smith, ento, as relaes humanas concretas de troca, experimentao e aprendizado produzem justamente os sentimentos morais. O homem como espelho do homem. (SMITH, 1999).

    Uma teoria, como dito alhures, simples, mas ao mesmo tempo muito sofisticada.

    Importante destacar, ainda, que o processo simpattico fundamental para a formao da conscincia (moral). (GANEM, 2000). Quando o homem observa o comportamento do prximo, percebe que este tambm lhe observa e julga. uma prtica reflexiva. Criticando outros, e cientes da crtica alheia, tornamo-nos ansiosos para saber at que ponto nossa aparncia desperta a censura ou o aplauso destes. Essa conscincia a origem do cuidado de si. (GANEM, 2000, pg. 94). Isso gera um auto-exame, simulando como a pessoa pareceria aos olhos de outros espectadores imaginrios (moralidade social).

    Mas o homem no est dependente exclusivamente desse senso moral. Ao refletir sobre a prpria conduta com base em que outras pessoas pensam sobre esta atitude, aprende-se a se libertar de juzos mal informados ou extremamente parciais. uma prtica didtica e pedaggica, acentua-se novamente.

    Valendo-se, mais uma vez, dos dizeres de Ana Ganem (GANEM, pg. 95):

    A perspectiva externa e reflexiva sobre ns mesmos que interiorizamos aspira a uma independncia relativa da moralidade social, pois buscamos nos tornar espectadores imparciais de nossa prpria conduta, sermos dignos de aprovao e no apenas sermos aprovados. No obstante, todo o processo socialmente condicionado. O outro-espectador imaginado uma derivao do outro-espectador real. No temos nenhum acesso estimativo s nossas emoes que dispense a intermediao do outro. No temos nem mesmo um eu moral fora da comunidade humana. Ns existimos apenas nas relaes, diretas ou indiretas, que estabelecemos com os outros. (grifo nosso).

    Realmente Adam Smith nutria mais simpatia pelas experincias sensoriais fruto das mltiplas e multifacetadas relaes pessoais, do que propriamente pelas explicaes metafsicas e teolgicas da moralidade humana. No h viso romntica do eu; pelo contrrio, a doutrina da simpatia at certo ponto ctica (moderadamente). Isso pode ser de grande valia para entender como age o homem nas suas relaes sociais (econmicas, contratuais, etc).

    Ademais, para Adam Smith (SMITH, 1999), viver em sociedade imaginar-

  • 28

    se visto atravs dos olhos dos outros. A observao do outro gera uma postura crtica sobre si mesmo, extremamente importante para a formao do sujeito moral (espelho). Tornar-se moralmente consciente requer que o eu se divida em dois, espectador e ator de si mesmo: o primeiro o juiz; o segundo a pessoa julgada (GANEM, 2000, pg. 96). O indivduo est, de certa forma, condicionado socialmente (dialtica de espelhos).

    Resta, de outro norte, estabelecer como essa pessoa exerce seu autodomnio e controla seus sentimentos naturais em prol dos sentimentos morais. Isso, pois, as paixes podem ser demasiadamente fortes a ponto de obnubilar o ponto de vista moral; podem gerar o mais pernicioso dos vcios, que a vaidade (SMITH, 1999). Ou mesmo o egosmo extremo.

    Para Ana Ganem (GANEM, 2000, pg. 104), o senso de convenincia o responsvel pelo equilbrio, ou seja, demonstrar que as paixes e as emoes no so boas ou ms em si, mas sim segundo se fazem visveis, i.e, compreensveis aos outros-espectadores. o prprio fato de que o espectador no consiga participar da paixo o que a torna inconveniente, aquilo que h de excessivo.

    Obtempera Ana Ganem (GANEM, 2000, pg. 105):

    No h, para Smith, paixes boas ou ms em si, porque o que importa moralmente a medida de sua expresso, e sempre a sua expresso que, enquanto espectadores, julgamos. Mesmo as paixes insociveis e egostas podem ser expressas sem, necessariamente, incorrer em falta moral. O que talvez difcil de se entender o fato de que, para Smith, os sentimentos no so simplesmente privados, mas so tambm, fundamentalmente, pblicos. claro que os sentimentos de algum so sempre os sentimentos dessa pessoa especfica, mas ns no somos mnadas fechadas, inacessveis aos outros. A simpatia atesta esse fato fundamental, mobilizando, atravs da imaginao, uma representao ativa e concreta das circunstncias e sentimentos de outras pessoas.

    Percebe-se que as paixes so e devem estar abertas observao e julgamento alheio. justamente atravs deste abrimento que possvel calibr-las, condicion-las para o bem comum. (GANEM, 2000). Moderao, eis a palavra chave. Com o julgamento alheio, o eu torna-se mais consciente, sbio e equilibrado. Sozinho no teria pontos de referncia, e se tornaria demasiadamente individualista e egosta, a ponto de evitar absolutamente o convvio social (prtica mais do que impossvel no atual estgio da civilizao).

    Colaciona Andr Marzulo Quintana e Solange Regina Marin (QUINTANA, 2007, pg. 13/14):

  • 29

    A grande escola da vida a do autodomnio, duramente exercido nos conflitos dirios. Somente a partir dessa educao exemplar o agente pode emular o suposto espectador que serve de juiz imparcial das suas condutas. A formao desse juiz lenta, gradual e progressiva. Todo dia melhora-se um trao e corrige-se uma falha (Smith, 1999:309 e 310). O costume leva identificao quase completa entre o agente e o seu espectador. O agente at passa a sentir somente guiado por esse grande rbitro (Smith, Ibid: 176 e 177). Maior refinamento exige mais filosofia, tal como a recomendada pelos esticos (Smith, Ibid: 170).

    Assim, para Adam Smith (SMITH, 1999), sem as emoes os homens so insensveis e incapazes de perceber e responder eticamente ao mundo. A tica smithiana, assim, dependente de uma equidade obtida atravs da imaginao simpattica do espectador (imparcial). Atravs disso, e com a profuso da educao moral, a sociedade moderna se torna uma comunidade moral.

    A tica smithiana uma tica da felicidade, no sentido estico do termo, ou seja, consistente em tranqilidade e gozo. Mas sem apatia, pois no uma doutrina do amor e da benevolncia. (GANEM, 2000)

    1.4 O dilogo entre a Teoria dos sentimentos morais e a Riqueza das naes

    A nfase no pensamento filosfico de Smith esboada em linhas pretritas foi proposital.

    O conjunto de suas ideias e obras mais complexo do que se pensa nos meios ortodoxos. Esforos reducionistas e simplistas acabaram por obscurecer os princpios mais elementares do homem smithiano (sejam nas suas relaes sociais, morais, jurdicas e econmicas).

    H algum tempo, uma enorme discusso foi levantada pela Escola Histrica Alem, intitulada Das Adam Smith Problem. O debate, basicamente, se circunscreve ao fato da ruptura ou da continuidade do pensamento de Adam Smith, pois para uns as ideias esposadas na Teoria dos sentimentos morais so incompatveis e inconciliveis com as percepes prprias da Riqueza das naes. Enquanto para outros, no h qualquer ruptura nas referidas obras; antes, continuidade.

    Para os defensores da viso de ruptura, na primeira obra Smith desenvolve seu pensamento ancorado no altrusmo humano (benevolncia). J na segunda a base de seu pensamento assenta-se no egosmo.

    Na concepo do senso comum a frase mais marcante no pensamento de Adam Smith aquela pela qual o homem satisfaz os prprios interesses nas suas

  • 30

    relaes scio-econmicas, presente na Riqueza das naes (SMITH, Vol. 1, 2003, pg. 92):

    No da benevolncia do aougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da considerao que eles tm pelo seu prprio interesse. Dirigimo-nos no sua humanidade, mas sua auto-estima, e nunca lhes falamos das nossas prprias necessidades, mas das vantagens que adviro para eles.

    Tal assertiva parece ntida aos olhos de um leitor desavisado. Est presente no sentido literal do texto, que o interesse do homem econmico (de negcios) importante para si prprio e, conseqentemente, para toda a sociedade. Entretanto, esta seria uma viso muito reducionista do pensamento smithiano.

    Tanto verdade que Amartya Sen, um dos autores contemporneos responsveis por reaproximar a tica e a economia, imbudo de muitas ideias morais smithianas, manifesta claramente que: (SEN, 1999, pg. 39)

    Embora muitos admiradores de Smith no paream ter avanado alm do trecho sobre o aougueiro e o cervejeiro, at mesmo uma leitura dessa passagem indicaria que o que Smith est fazendo aqui especificar por que e como se efetuam as transaes normais no mercado e por que e como funciona a diviso do trabalho, que o tema do captulo onde se encontra o trecho citado. Mas o fato de Smith ter observado que transaes mutuamente vantajosas so muito comuns no indica em absoluto que ele julgava que o amor-prprio unicamente, ou na verdade a prudncia em uma interpretao abrangente, podia ser suficiente para a existncia de uma boa sociedade. De fato, ele afirmava exatamente o oposto. Smith no alicerava a salvao da economia em alguma motivao nica.

    Assim, para maior compreenso desses conceitos e valores preciso conhecer o conjunto da obra, ou seja, as ideias que estruturaram os escritos de Adam Smith. Antes de ser reconhecido como um dos primeiros economistas (pai do liberalismo econmico), ele j era um renomado filsofo, profundo conhecedor das caractersticas mais marcantes do gnero humano.

    Adam Smith sofreu grandes influncias na formao de seu pensamento. De Francis Hutcheson observou a filosofia de indivduos cooperantes, onde existe uma conciliao entre as paixes afveis com aquelas voltadas ao interesse do prprio indivduo, de tal forma que estas motivaes sejam moralmente neutras, ou pelo menos no condenveis, j que no prejudicam outras pessoas. (AVILA, 2010, pg. 14).

    No mesmo sentido, de David Hume viu na vivncia social a causa do respeito s regras de justia. Alm do mais, de certa forma acreditou no utilitarismo

  • 31

    pblico como forma de gerar simpatias mtuas entre os indivduos, gerando inmeros benefcios aos interesses coletivos. (AVILA, 2010).

    A influncia desses dois autores sobre a Teoria dos sentimentos morais inegvel. Mas defendem os adeptos da viso de ruptura que o homem smithiano, nesse passo (altrusta, benevolente) diverso daquele apresentado na Riqueza das naes (egosta, individualista e meramente utilitarista).

    A Economia (Poltica), ento, havia se libertado da Filosofia (Moral)? Seria isso possvel?

    verdade que, na Riqueza das naes, Adam Smith parece ter sofrido algumas influncias de Hobbes (natureza humana essencialmente egosta e avarenta), de Mandeville (os interesses individuais produziriam o interesse coletivo) e, ainda, de Helvetius (comportamentos humanos fundamentado no interesse, que poderiam ser produtivos coletividade). (AVILA, 2010). Defende-se at que Smith assimilou importantes ideias de James Stuart, mas acabou por omiti-las propositadamente no seu trabalho (REGO, 2000).

    No obstante, a perspiccia de Adam Smith foi alm dessas concepes particulares. Ele pode at ter tomado de emprstimo algumas ideias, mas o resultado de seu trabalho mais complexo e criativo. Os interesses dispostos no homem da Teoria dos sentimentos morais no esto to longes dos presentes na Riqueza das naes.

    Nos escritos de P.J. ORourke (ORourke, 2008, pg. 49), consta que:

    Ler A riqueza das naes como justificativa para a cobia amoral equivocado, pois se trata de mais uma tentativa de Adam Smith para tornar a vida melhor. Na Teoria dos sentimentos morais ele registrou: Amar nosso prximo assim como amamos a ns mesmos a grande lei do cristianismo. Observem, porm, a comparao usada por Cristo e citada por Smith A teoria dos sentimentos morais sobre nosso prximo; A riqueza das naes, sobre o outro laudo da equao: ns mesmos.

    Falar que o egosmo na Riqueza das naes entra em conflito com a benevolncia da Teoria dos sentimentos morais reduzir drasticamente a compreenso da genialidade de Adam Smith. Em ambas as ocasies, notadamente na primeira obra, ele tambm reconhece o egosmo (interesse) como paixo humana importante na manuteno das relaes interpessoais. O peculiar, no entanto, admitir que esse egocentrismo seja moralmente condicionado pelo processo simpattico, ou seja, pela participao na situao alheia.

    Relembrando: Adam Smith reconhece a importncia das paixes para a

  • 32

    espcie humana, mas ele deixou bem posto que a equidade (prudncia; mediania; convenincia) o peso ideal a contrabalanar as prticas individuais e as voltadas ao bem comum. E isso seria possvel graas ao trabalho empreendido pelo espectador imparcial.

    O interesse (egosmo) do homem smithiano moralmente condicionado, frise-se novamente.

    E, por mais que, na Riqueza das naes, Smith tenha justificado o interesse pecunirio, o indivduo acabava por fazer o bem, mesmo que involuntariamente. Veja-se: (SMITH, Vol. II, 2003, pg. 790):

    (...) cada indivduo necessariamente se esfora por aumentar ao mximo possvel a renda anual da sociedade. Geralmente, na realidade, ele no tenciona promover o interesse pblico nem sabe at que ponto o est promovendo. Ao preferir (...) visa apenas a seu prprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, levado como que por mo invisvel a promover um objetivo que no fazia parte de suas intenes. Alis, nem sempre pior para a sociedade que esse objetivo no faa parte das intenes do indivduo. Ao perseguir seus prprios interesses, o indivduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promov-lo.

    Robert Iturriet vila (AVILA, 2010, pg. 17/18) estabelece interessante comentrio sobre essa passagem na obra de Smith:

    Na medida em que cada um busca o seu interesse, o melhor para si, acaba contribuindo para o bem comum. Ou, dito de outra maneira, chega-se a conseqncias benficas no-intencionais ao se agregar as aes individuais intencionais. Smith haveria, sob esta interpretao, conciliado o conflito interno do homem que quer ser justo, mas deseja a riqueza. O interesse passa a figurar como paixo razovel, que auxiliaria na construo de uma sociedade em que todos saem beneficiados. As relaes econmicas amalgamam a organizao social e pensar em si, neste ngulo, torna-se uma virtude. A juno de habilidades, a cooperao das multides permite o acesso a mais produtos aos membros de uma sociedade, j que cada indivduo no precisa produzir tudo, e sim dedicar em um ofcio apenas, sendo mais produtivo do que na hiptese de fazer tudo o que necessita.

    Percebe-se, portanto, que dessa conciliao entre interesses e filosofia moral, no haveria propriamente ruptura, mas antes continuidade nas obras de Smith (AVILA, 2010).

    Luigi Bagolini cita Eckstein, responsvel pela edio crtica alem da Teoria dos sentimentos morais (I, Leipiz, 1926), para demonstrao dessa completa ausncia de antinomia: (BAGOLINI, 1953, pg. 112/113)

  • 33

    Entre a Teoria e a Riqueza das Naes no h antinomia de princpios fundamentais, porque no se pode dizer que uma esteja fundada no princpio altrustico e a outra no princpio egostico. Baseado nos textos, ECKSTEIN nos d a prova exata de que SMITH, conquanto no adote, em sua Teoria, como exclusivamente vlido o princpio da benevolncia, por outro lado, no somente reconhece, mas justifica, at certo ponto, a funo do princpio egostico (IB. p. LVIII).

    Dessa forma, a corrente de pensamento que mais tem prevalecido nos ltimos anos, principalmente aps as edies de mais escritos de Smith na dcada de 80, do sculo XX (cartas, anotaes de aulas feitas por alguns alunos, rascunhos, etc), a da continuidade, ou seja, do dilogo entre as suas ideias filosficas e econmicas.

    Alis, o distanciamento perpetrado pela economia poltica em relao filosofia moral, tem trazido conflitos considerveis ao atual modelo econmico capitalista (SEN, 1999). Para que haja tranqilidade revolver preciso.

    Apresentadas as defesas iniciais viso de continuidade entre as duas principais obras de Adam Smith, resta delinear mais uma das facetas desse egosmo moralmente condicionado, conforme citado em linhas anteriores. E a, novamente, volta-se ao processo simpattico. Pois justamente com o trabalho desenvolvido pelo espectador imparcial que se forma o juzo do que certo e do que errado. Participando da situao do outro est o fundamento de todo juzo moral. Simpatizando-se com a conduta alheia, o homem est aprovando suas prprias atitudes, merecendo dele recompensa; do contrrio, no houve propriamente simpatia, mas repugnncia passvel de punio.

    Por seu turno, merecem destaque interessantes apontamentos dados por Robert Iturriet vila aos escritos de Hugo Eduardo Arajo da Gama Cerqueira (VILA, 2010, pg. 20/21), no sentido de que a viso de continuidade entre as 02 (duas) principais obras de Smith estabelecem uma agenda poltica:

    Existe ainda outra interpretao apontada por Cerqueira (2003) e que est em acordo com a perspectiva de continuidade entre os dois trabalhos de Smith. Nela, Smith teria a inteno de em TSM estabelecer uma agenda poltica para fundamentar a moral em uma sociedade mercantil. Assim, como forma de contrabalanar as paixes inerentes ao funcionamento da economia, Smith estaria propondo polticas que direcionassem as aes individuais ao aprimoramento moral. Dito de outra maneira, para se seguir o interesse prprio na sociedade, imperativo existir uma fora moral que compense os aspectos destrutivos do egosmo. Uma espcie de humanismo cvico. Esta verso v a obra de Smith ainda mais unida e coerente entre si.

    Releva-se, ainda, o fato de que a Teoria dos sentimentos morais no o

  • 34

    material mais lido na formao padro do economista atual, em muitas escolas superiores de economia. O que pode, muito bem, aumentar o equvoco nas interpretaes do homem smithiano. E o mais grave que esta leitura parcelar acabou gerando equivocadamente uma verso descontextualizada de sua obra.

    A existncia de dilogo entre a Teoria dos sentimentos morais e a Riqueza das naes notria. Ainda mais considerando que Smith, em nenhum momento, manifestou dissonncia desta ideia. E oportunidade para isso ele teve, vez que a ltima edio de sua teoria moral foi lanada aps o tratado sobre riqueza e no foi indicada qualquer contradio. Referido acontecimento serve, ainda, para refutar a proposta de alguns poucos estudiosos de que a primeira obra foi escrita quando de sua imaturidade, pois poca era bastante jovem e que sua condio de pleno desenvolvimento intelectual s foi alcanada quando dos escritos da segunda.

    Como visto nas primeiras linhas desse trabalho de pesquisa, Adam Smith era erudito ao extremo; professor de filosofia moral e lgica durante muitos anos e adepto de uma vida pautada pelo autodomnio e pela busca da tranqilidade. Um homem virtuoso e de carter ilibado (ROSS, 1999) (OROURKE, 2008).

    Reduzir seu pensamento ao que consta (literalmente) na Riqueza das naes extremamente leviano. Ele produziu mais, muito mais. Sua influncia alcana o campo da moral, da economia, da administrao, do direito, da astronomia, etc.

    O interessante que muitos anais de histria da filosofia omitem suas contribuies para essa cincia; enquanto nos registros de economia, seu nome tem assento permanente. Hugo E. A. da Gama Cerqueira (CERQUEIRA, 2005, pg. 13) demonstra que novas abordagens tm sido construdas a partir da releitura das obras smithianas:

    Neste sentido, a reconstruo dos argumentos de Smith, de sua linguagem e contexto, tem contribudo para nos proporcionar um novo entendimento das relaes entre tica e economia, esforo que vem sendo reclamado por filsofos e economistas. No ocioso insistir sobre a atualidade dessa investigao e a relevncia que pode ter para os dois campos. A obra de um autor contemporneo como Amartya Sen oferece um testemunho inequvoco disso. Desde os anos 1970, ele vem desenvolvendo uma crtica abrangente a um dos princpios mais fundamentais e duradouros da teoria econmica convencional: o pressuposto de que os agentes se orientam apenas pela busca do seu auto-interesse (Sen, 1997). (...)

    justamente a partir das concepes de Adam Smith sobre a moralidade que possvel entender um pouco mais as relaes sociais e, dentre elas, as

  • 35

    relaes de troca e comrcio. Para ele, era possvel lucrar sem abusar (usurar); ganhar para si prprio sem explorar o outro; gerar riqueza individual e tambm coletiva.

    Tudo isso pode ser alcanado atravs da participao na situao alheia. O processo simpattico um processo imaginativo (no-racional), em que a imaginao na situao alheia gera juzos de fato sintticos a posteriori (racional), estabelecendo importantes instrumentos para a valorao prtica (BAGOLINI, 1953). possvel construir laos de moralidade por meio da dialtica de espelhos. Todos vivem em sociedade e so dependentes uns dos outros. To dependentes, que o outro serve at de paradigma para a construo do eu (GANEM, 2000).

    O ponto de vista tico em Adam Smith dependente de uma compreenso moral ordinria. No metafsico, muito menos teleolgico; empirista. No uma lei de validade universal. No estabelecido a priori. voltado para a prtica. situacional (observa condies sociais, econmicas, histricas, etc). No arbitrrio, pois quer partir de situaes particulares e aes concretas. Por ltimo, na compreenso de Ana Ganem, a tica em Smith discretamente normativa, porque gera uma conscincia moral; um autodomnio das aes concretas atravs das concluses do espectador imparcial (GANEM, 2000).

    O professor do departamento de filosofia da USP (Universidade de So Paulo), Rolf Kuntz (KUNTZ, 2000, pg. 02) sintetizou:

    Smith, como Marx, um autor infinitamente mais complexo e rico do que supem seus devotos, e isto vale tanto para o conjunto de sua anlise social quanto para os detalhes de sua teoria econmica. Hoje est na moda falar sobre o mercado como se esta noo fosse inteligvel por si mesma, independente de qualquer outra referncia, exceto, talvez, aos dados legais de garantia da propriedade e da segurana dos contratos. Tudo isso provavelmente soaria para Smith como um falatrio cmico, at porque ele se dedicou a estudar as noes de propriedade e de segurana legal como resultantes de uma complexa evoluo histrica. Ler a Teoria dos Sentimentos Morais e as Consideraes sobre a Primeira Formao das Lnguas pode ser um passo inicial para uma nova compreenso de Smith e, talvez, do mundo de hoje.

    Resumindo, a teoria de Smith singular e talvez seja a chave para a reaproximao necessria entre as prticas sociais (jurdicas, econmicas e polticas) hodiernas e a moralidade.

  • 36

    CAPTULO 2.

    O PROCESSO SIMPATTICO E AS OBRIGAES NEGOCIAIS

    2.1 A moral na contemporaneidade e o processo simpattico de Adam Smith

    A moral um dos temas mais comuns nas discusses do mundo contemporneo. Para Andr Comte-Sponville, a moral, desde os anos 80, tornou-se uma questo de atualidade. Ela se tornou, curiosamente, um tema na moda. (...) (COMTE-SPONVILLE, 2005, pg. 17).

    Isso, pois, a consolidao desmedida do sistema econmico capitalista no orbe terrestre, impulsionada pelo pensamento utilitarista (esttico, finalstico) formatado no sculo XVIII, levou o gnero humano a uma sria crise de identidade. (LOPES, 2005).

    Em contrapartida, as percepes morais foram aos poucos sendo absorvidas pelo direito. Se legal moral, eis a compreenso mais recorrente. Discusses morais antiqssimas foram positivadas pelo direito (proteo ao idoso e prpria prole; assistncia familiar; relacionamento homoafetivo; estatuto da igualdade racial; etc), Uma verdadeira jurisdicizao da moral (LOPES, 2005).

    Uma das conseqncias dessa emergncia de um ethos denso o reforo das normas de conduta pelo recurso imediato ao direito. Nesse sentido, as novas questes morais j emergem com o crivo jurdico (LOPES, 2005, pg. 121). E mais, essa aproximao to contundente, que Jlio Aurlio Vianna Lopes (LOPES, 2005, pg. 14) faz a seguinte observao:

    Tradicionalmente alheio moral, o direito contemporneo dela se aproxima, no para desloc-la, como vem fazendo com as regulaes poltica e mercantil, mas para fundir-se a ela. Assumindo os valores ticos, nicos, sempre considerados presentes em todas as relaes sociais (embora dependentes apenas da convico ntima dos envolvidos para seu cumprimento), o direito contemporneo torna equivalentes as noes de bem/mal e lcito/ilcito. Emerge um direito tico: de fato, uma moralidade abrangente e armada por sanes jurdicas.

    Desse modo, para referido autor existe uma fuso entre o direito e moral, que d vida a um direito tico (LOPES, 2005). Este estreitamente to importante, que Trcio Sampaz Ferraz Jr. elucida: O direito, em suma, privado da moralidade, perde sentido, embora no perca necessariamente imprio, validade, eficcia.

  • 37

    (FERRAZ JUNIOR, 2003, pg. 359). Percebe-se, desde j, que o direito penetrou nas esferas mais relevantes

    do espao de convivncia humana (poltico, comunitrio, familiar, econmico, etc), razo pela qual Jlio Aurlio Vianna Lopes, fazendo um paralelo com o superego cultural de Freud, denomina essa tendncia de: O direito como superego da sociedade (LOPES, 2005, pg. 137).

    Na clssica obra do professor Vicente Ro, O direito e a vida dos direitos, o mesmo raciocnio: (RO, 1991, pg. 49)

    Distino (entre direito e moral), contudo, j o advertimos, aqui no significa isolamento, nem separao total da Moral e do Direito. O positivismo jurdico, pretendendo caracterizar as normas de direito como normas rigorosamente objetivas, tcnicas, de h muito est condenado. Se em todos os tempos se proclamou que o Direito, ao se concretizar em normas obrigatrias, h de respeitar os princpios da Moral, hoje mais do que nunca se acentua a tendncia que as normas morais revelam no sentido de sua transformao em normas jurdicas; acentua-se, isto , a tendncia para a moralizao do Direito.

    Entrementes, e o capitalismo moral ou imoral? Poderia ser ele amoral? Para o professor francs Andr Comte-Sponville h um retorno da moral,

    no no sentido de que atualmente as pessoas sejam mais bondosas, honestas ou virtuosas, mas sim um regresso essencialmente no discurso. (COMTE-SPONVILLE, 2005). No decorrer de seu trabalho e conferncias possvel verificar muitas incompletudes entre o capitalismo e a moral. Alis, referido pensador, embasado nos escritos de Ludwig Wittgenstein, entende que: (COMTE-SPONVILLE, 2005, pgs, 77/78)

    Nessa primeira ordem (do mercado), nada nunca moral, nada nunca imoral, porque tudo amoral dando ao prefixo a seu sentido puramente privativo. As cincias no tm moral, dizia eu. O objeto delas tampouco. Isso vale tambm, notemos de passagem, para a prpria moral, considerada como objeto. evidentemente possvel uma cincia dos costumes que incluiria um estudo cientfico (sociolgico, psicolgico, histrico...) das representaes morais. Mas essa cincia consideraria a moral como um fato, que ela poderia explicar (por causas) mas no julgar (referindo-se a valores). Foi o que percebeu Wittgenstein, em sua Conferncia sobre a tica. Um livro, mesmo se infinito, que contivesse a descrio completa do mundo, logo o conjunto de todas as proposies verdadeiras, descreveria notadamente o conjunto dos nossos juzos de valor. Mas no os julgaria. S haveria nele fatos, fatos fatos, mas no moral. Conhecer no julgar: a moral no tem pertinncia alguma para descrever ou para explicar nenhum processo que se desenrole nessa primeira ordem. Isso vale em particular para a economia, que faz parte dessa primeira ordem, logo para o capitalismo.

  • 38

    primeira vista, os argumentos acima contrariam o pensamento smithiano, j que no reconhecem a importncia da solidariedade moral na construo de relaes econmicas (e sociais) mais produtivas.

    Entretanto, o prprio autor, guisa de concluses, apresenta ponderaes no sentido de que realmente o capitalismo no moral e nem imoral, mas que isso pouco importa, pois: (COMTE-SPONVILLE, 2005, pgs. 221/222)

    (...) Todos ns preferiramos que a economia fosse moral e que a moral fosse rentvel. Seria to mais cmodo! Seria to mais agradvel! Mas o fato de um pensamento ser insatisfatrio no prova que seja falso. Vejo nisso at, na falta de uma confirmao, uma espcie de incentivo. Reconheo nisso algo de dureza do real, da sua complexidade, da sua dificuldade. O mundo no um berrio, dizia Freud. E o que um berrio? Um lugar em que tudo feito para o prazer das crianas, para seu conforto, para sua segurana. Estamos longe disso! que no somos mais crianas. que o mundo no existe para nosso prazer. porque podemos e devemos transform-lo. Mas antes disso preciso pens-lo como ele , sem jogar poeira em nossos prprios olhos. O real no costuma ser satisfatrio. Por que um pensamento verdadeiro seria? o que eu chamava h pouco de o trgico, no sentido filosfico do termo no no sentido da tristeza ou do drama, mas para designar um pensamento que no esquiva o que o real tem de fato de insatisfatrio, um pensamento que no inventa falsas solues, um pensamento que no est a para consolar nem tranqilizar, um pensamento que no tem nada mais a propor, definitivamente, alm da lucidez e da coragem. Por que a verdade deveria nos satisfazer? Por que o futuro seria destinado ao repouso, ao conforto, satisfao? No apenas um incio (ao contrrio do que dizamos em 1.968), mas o combate continua, no cessar.

    Pois bem, deixando essa viso amoral do capitalismo de lado, cabe indagar se esse resgate da moral propriamente dita se fundamenta em alguma teoria universal? Ou seja, de que moral se trata? De qual conceito (dentre muitos) se valem as pessoas atualmente? Aristotlico? Cristo? Seria ela derivada da racionalidade ou da irracionalidade? Ou de ambas?

    Entre tantas hipteses e possibilidades, a teoria de Smith pode contribuir muito para apresentao de algumas respostas, vez que uma moral situacional, baseada na realidade, praticvel, formada por juzos de fato sintticos a posteriori (construdos pela experincia sensorial; empiristas; aps os fatos e, portanto, pedaggicos). Pode ser instrumento importante na confirmao de princpios caros ao espao jurdico social.

    Para entender as ideias propostas pelo homem smithiano preciso sentir o concerto de sua obra, no um soneto aqui e outro ali. As invenes de Smith sobre as relaes humanas foram metodologicamente simplificadas, o que empobreceu a

  • 39

    assimilao de sua genialidade; hora de resgatar a essncia de seu pensamento. Na sua concepo o senso de dever surge de uma atividade imaginativa,

    sendo esse o processo simpattico: (BAGOLINI, 1953). (GANEM, 2000) 1 Participao imaginativa na situao alheia, nos seus conflitos sociais,

    econmicos e polticos; 2 A responsabilidade desta atividade mental do espectador imparcial

    (um tribunal dentro de nosso prprio peito); 3 O espectador imparcial participa de maneira moderada (indireta e

    mediata) das paixes alheias, tentando perceber o que h de bom, de til, adequado, nas suas reaes, paixes;

    4 A par disso, toma concluses imparciais (positivas ou negativas) importantes e as repassa ao espectador originrio (real);

    5 Quando o espectador originrio (real) vivenciar situaes semelhantes que foram observadas no prximo, por seu espectador imparcial, ele usar aquelas concluses iniciais como referncia de sua prpria conduta, gerando, assim, um senso de convenincia (de dever).

    Na ltima fase desse processo inventivo possvel perceber uma verdadeira dialtica de espelhos: o homem como referncia do homem. Na primeira etapa o processo at certo ponto irracional, mas, no fim, passa a ser racional, porque produz efeitos prticos e pedaggicos.

    As vantagens do processo simpattico: ele no universal, metafsico, deontolgico e abstrato; reflete uma compreenso ordinria da moral, situacional, empirista e prtica; til (conveniente) para o estabelecimento de trocas, de experincias, para a construo de uma sociedade mais justa e menos infeliz. Resulta na produo de uma moral praticvel.

    No obstante, advirta-se que: Virtus est in medio. Ou seja, a virtude est exatamente no meio termo. A vida humana envolve tanto processos racionais como processos simpatticos, que na opinio de Luigi Bagolini: (BAGOLINI, 1.953, pg. 48)

    Se a natureza do homem fosse exclusivamente racional, o homem no poderia se comunicar praticamente com os demais homens. Se, por outro lado, a natureza humana fosse exclusivamente simpattica, o homem estaria constantemente aberto e sentimentalmente transparente a toda possibilidade de comunicao com os outros. E a vida social, com todos os seus valores e os seus significados seria um pressuposto, um dado, uma ddiva e no o resultado de uma busca de um autocontrole, de um empenho, de um esforo, de tal forma grvida de dificuldades e de absurdos.

  • 40

    Dessa forma, as ideias morais de Adam Smith envolvem uma tenso constante entre razo e emoo, que enriquecem a compreenso da natureza humana.

    2.2 A moral nas obrigaes contratuais

    A contratao privada acha-se envolvida por alguns princpios importantes, que lhe do sustentao e sentido. Quais sejam: funo social, boa-f, confiana, obrigatoriedade, autonomia privada, relatividade, liberdade, etc.

    Para a linha mais dogmtica do direito, os princpios contratuais designam fenmenos jurdicos bastante precisos e hermeticamente organizados. Inseridos nos estatutos legais e positivados pelo legislador, hoje so padres bem claros e trazem segurana normativa.

    Contudo, esse processo hermenutico mais complexo e exige uma investigao zettica, ou seja, uma abertura para o questionamento dos objetos em outras direes. (FERRAZ JNIOR, 2003).

    Para Carlos Alberto Bittar (BITTAR, 1993, pg. 15):

    Essas orientaes encontram suas razes, em ltima anlise, na Moral, que muito de perto influencia o Direito, a fim de que se preservem certos valores bsicos, postos pela sociedade como fundamentais para sua existncia e para seu desenvolvimento normal.

    So proposies incorporadas aos agrupamentos humanos na busca de aperfeioamento, em qualquer parte do mundo. Refletem o prprio iderio de justia. (BITTAR, 1993).

    Da a indissociabilidade entre a teoria moral e a teoria jurdica, em certos aspectos dos direitos obrigacionais e contratuais, em que ambas se cruzam, na consecuo dos objetivos colimados pela sociedade (...) (BITTAR, 1993, pg. 17).

    As prprias obrigaes civis tm muitas de suas razes nesses pressupostos morais. A venerao da tcnica e os pilares positivistas tradicionais no conseguiram obnubilar a fora tica por detrs dessas relaes jurdicas. No outro o raciocnio superior de George Ripert (RIPERT, 2009, pg. 385):

    A simples noo da obrigao implica uma crena no ideal moral, visto que necessrio explicar a submisso legtima do homem ao homem. O respeito pela promessa feita uma das bases da ordem social. A promessa no , sem dvida, obrigatria seno por ser sancionada pela lei civil, mas

  • 41

    esta lei pede regra moral o segredo da fora da promessa e os caracteres que a tornam respeitvel.

    Como no poderia ser diferente, nas relaes contratuais o peso da moral relevante. O vnculo jurdico estabelecido entre as partes contratantes bebe dessa fonte; a expectativa gerada pela promessa de uma pessoa no pode ser violada graas ao respeito (confiana) que se tem pela considerao da outra. Por mais que o direito imponha submisso s suas regras o sentido moral que perpassa todo o sentimento da pessoa humana. O direito domina (FERRAZ JNIOR, 2003), mas quem convence a moral.

    Novamente o pensamento reflexivo de George Ripert (RIPERT, 2009, pg. 23) esclarecedor:

    At que ponto o mundo jurdico se poder organizar fora de toda a preocupao moral, sobre os dados prticos e racionais? Quando se trata de regrar os efeitos legais das vontades e das atividades, de organizar a troca de capitais e de servios, poder-se- sobre um ideal bastante vago ou necessidade econmica fazer construes jurdicas abstratas, e depois divertir-se a escrever equaes de relaes jurdicas e a transform-las? No , pelo contrrio, preciso ter presente que o credor e o devedor, ligados um ao outro pela relao de direito, so homens que fazem parte da mesma comunidade, que uma moral sublime chama irmos e que no podem ter, um os direitos, outro as obrigaes seno na medida em que a lei moral permite tirar algum proveito e servios, ou no o impede em todo o caso de o prejudicar?

    A relao jurdica contratual no apenas interao entre patrimnios, um vinculo entre pessoas, seres humanos. A filosofia puramente tcnica e positivista de alguns jurisconsultos no direito contratual produziu resultados insatisfatrios para explicar a dinmica da vida humana, da sociedade e do direito, quanto mais das concepes morais impregnadas nesse processo dialgico (RIPERT, 2006).

    Portanto, notadamente os princpios contratuais da funo social dos contratos, da boa-f objetiva e da confiana so substratos jurdicos pintados pela criatividade mais sublime dos artistas morais. A arte, como o direito, serve para ordenar o mundo. (...). (CARNE