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O branco suprassensorial de Hlio Oiticica*1Paula Braga

A cor branca, que Hlio Oiticica apreende de Kasimir Malevitch, aponta um caminho para percorrer a obra do inventor dos Parangols, desde a pesquisa sobre a cor da virada da dcada de 1950 para 1960 (branco-luz) at a relao do artista com txicos (branco-coca). O branco para Oiticica a sntese inventiva, criadora do novo. Hlio Oiticica, Cosmococas, Bergson. O incio da carreira de Hlio Oiticica dedicado ao estudo da cor como* Artigo recebido em maro de 2010 e aceito para publicao em maro de 2010. 1 Este texto parte da tese de doutorado A trama da Terra que treme: multiplicidade em Hlio Oiticica. Agradeo a Celso Favaretto pela orientao preciosa que recebi durante a escrita da tese e a Gonzalo Aguilar, cujo artigo publicado em Fios soltos: a arte de Hlio Oiticica (So Paulo: Perspectiva, 2008) foi fundamental para a anlise que fao aqui sobre o branco em Hlio Oiticica.

possibilidade de transmutao da arte para alm do quadro de cavalete. Liberando a cor do suporte bidimensional, Oiticica libera tambm o espectador para outra dimenso de envolvimento com a arte. Investigando os limites dessa expanso do comportamento do participador, o artista chega ao conceito de suprassensorial, aquilo que incita a liberao comportamental mxima e o contato do participador com seu ncleo criativo e transformador. A cor branca aponta um caminho para percorrer essa contnua pesquisa de Oiticica sobre o envolvimento do corpo do participador na expanso da arte para novas dimenses, desde a pesquisa sobre a cor da virada da dcada de 1950 para 1960 (branco-luz) at a relao do artista com txicos (branco-coca). O estado de inveno que passa a ser o cerne de sua obra a partir de meados de 1970 , at o final da carreira do artista, associado ao branco sobre branco de Malevitch: (...) o branco no s um quadro do Malevitch, o branco com branco um resultado de inveno, pelo qual todos tm que passar; no digo que todos tenham que pintar um quadro branco com branco, mas todos tm que passar por um estado de esprito, que eu chamo branco com branco, um estado em que sejam negados todo o mundo da arte passada, todas as premissas passadas e voc entra no estado

2 Oiticica, Hlio. udio da entrevista a Ivan Cardoso transcrito com imprecises em Lucchetti, R. F. Ivampirismo : o cinema em pnico. Rio de Janeiro: Editora Brasil-Amrica, Fundao do Cinema Brasileiro, 1990, p. 6870, 73. Agradeo a Ivan Cardoso pela cesso do udio da entrevista. 3 Let rejection of the old world of art be traced on the palms of your hands. Malevitch, K. S. On new systems in art. In: _________ Essays on art: 1915-1933. vol. 1. Xenia Glowacki-Prus e Arnold McMillin (trad.), Andersen, Troels (ed.) (London; Chester Springs, Pa. : Rapp & Whiting: Dufour Editions, 1969), p. 83.

de inveno.2 Branco no branco a procura do novo, da mobilidade da arte rumo a um estado inaugural, que negue premissas estticas passadas. Em ao menos dois textos de 1979, O q Fao MSICA e Memorando Caju, Oiticica cita a frase que abre o ensaio de Kasimir Malevitch, On new systems in art, escrito em 1919: que o repdio ao velho mundo da arte fique inscrito nas palmas de suas mos.3 Nesse ensaio, Malevitch defende que a arte crie signos distintos dos estabelecidos pela arte do passado. Rejeitar o velho mundo da arte homologava-se a rejeitar a velha ordem social. Para Oiticica, importava acima de tudo que a arte incitasse uma transformao tico-comportamental. Pode-se

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dizer que, para ele, a atitude poltica das vanguardas dos anos 60 no Brasil traa uma imagem da arte como atividade em que no se distinguem os modos de efetivar programas estticos e exigncias tico-polticas4. Branco no branco o ttulo de um dos blocos de Newyorkaises, livro que Oiticica compe durante sua estada em Nova Iorque (1970-1978). Nunca publicado, Newyorkaises armazena trechos de escritos de outros artistas. Nomes como Malevitch, John Cage, Ezra Pound, Friedrich Nietzsche atravessam os vrios blocos do livro, criando um arquivo em forma de teia muito similar estrutura hipertextual que hoje orienta nossa busca por informao. No livro, o bloco Branco no Branco uma homenagem inaugurao, detonada por Malevitch, de algo estranho ao processo criador ocidental -> no desconhecido: estranho: to conhecido do oriental5. O elemento estranho introduzido por Malevitch foi, para Oiticica, a premonio da descoberta do corpo / primeira apario do comportamento como elemento maior / no espectador: a impossibilidade do espectador como tal6. Temos aqui o Malevitch de Oiticica, feito apenas dos fragmentos que interessam ao brasileiro, a saber o radicalismo da reinveno da arte. No h no Suprematismo essa nfase no corpo que Oiticica deriva dos textos de Malevitch. Partir do Suprematismo e chegar ao corpo foi um percurso alinhavado por Oiticica. O Suprematismo de Malevitch desvincula o sentimento dos sentidos o [artista] Suprematista no observa e no toca, ele sente.7 Por Suprematismo eu entendo a supremacia do puro sentimento (feeling)8 na arte criativa. Para o Suprematista, os fenmenos visuais do mundo objetivo so, neles mesmos, insignificantes; a coisa significante o sentimento, como tal, bastante separado do ambiente no qual ele invocado.9 Oiticica, no entanto, pode ter lido esse texto em traduo para o portugus que no lugar de feeling (sentimento) usou sensibilidade, conforme publicado no Jornal do Brasil em 1959, palavra que implica uma nfase maior nos aspectos sensoriais do que sentimento. Nessa traduo para portugus, l-se: Por Suprematismo entendo a supremacia da pura sensibilidade na arte. Do ponto de vista dos suprematistas, as aparncias exteriores da natureza no apresentam nenhum interesse: essencial a sensibilidade em si mesma, independentemente do meio em que teve origem.10 interessante que o Malevitch traduzido para o portugus em 1959 auge da querela dos concretistas e neoconcretistas sobre o corpo e ano da publicao do Manifesto Neo-concreto enfatiza a sensibilidade. A traduo para o ingls enfatiza o sentimento, a emoo abstrata.117 Malevitch, K. S. Suprematism in Theories of Modern Art, CHIPP, H.B. (ed.) Berkeley, Los Angeles and London: University of California Press, 1984, p. 345. Traduo da autora desta verso em ingls onde se l: the Suprematist does not observe and does not touch he feels. 8 Usamos uma traduo para o ingls do texto de Malevitch, na qual a palavra usada neste trecho feeling. 9 Ibid., p. 341-344. Traduo livre da autora a partir da verso em ingls onde se l: Under Suprematism I understand the supremacy of pure feeling in creative art. A traduo para o ingls continua a usar sempre feeling e feels e nunca sensibility or senses. 10 Jornal do Brasil, 1959 apud Projeto Construtivo Brasileiro na Arte: 1950-1962. AMARAL, Aracy (org.) Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna; So Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977, p. 32. O texto nesse livro termina com a seguinte referncia: Transcrito do Jornal do Brasil, 1959, sem data. 11 Uma anlise comparativa de tradues dos textos de Malevitch e Kandinsky para ingls e portugus e consequncias das tradues nas obras de artistas brasileiros seria um trabalho revelador e que ainda est para ser feito. Textos sobre o Suprematismo na lngua inglesa enfatizam os aspectos espirituais da obra de Melivitch, e no sensoriais, como a traduo para o portugus publicada no Jornal do Brasil sugere. 5 Oiticica, Hlio. Branco no Branco, 28/05/1974. Programa HO (PHO) 095/74, LAGNADO Lisette (ed.) So Paulo: Ita Cultural; Rio de Janeiro: Projeto HO, 2002, disponvel em http://www.itaucultural.org.br/ aplicexternas/enciclopedia/ho/ 6 Ibid. 4 Favaretto, Celso. Inconformismo social, inconformismo esttico, Hlio Oiticica. In: Revista Gaia. So Paulo, USP, Ano I, n. 2 , set-dez. 1989, p. 24-32. Republicado na revista Educao e Filosofia. Universidade Federal de Uberlndia, v. 4, n. 8, jan-jun. 1990, p. 151-158 e em Fios soltos: a arte de Hlio Oiticica. Braga, Paula (org.) So Paulo: Perspectiva, 2008.

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Mote do bloco Branco no Branco, o branco, por ser a fuso de todas as cores, reflete a prpria estrutura de Newyorkaises, que fuso de vrios inventores. O branco aqui , alm de cor, aquilo que inflama com luz e transforma a estrutura da arte. Cores luz, nos textos de Oiticica, so aquelas s quais se pode dar um sentido de luz, especificamente o branco, amarelo, laranja e vermelho-luz. A cor-luz no a cor prismtica da fsica, que divide o espectro eletromagntico em diferentes comprimentos de onda e a cada faixa de comprimento associa o nome de uma cor. Essa definio de cor exclui a durao, conceito de Henri Bergson importante para o entendimento da cor-luz de Oiticica, depois chamada de cor-tempo, cor metafsica ou cor ativa. A cor que interessa12 Em 1960, Oiticica demonstra seu interesse por Bergson ao transcrever para seu fichrio um trecho de Matria e memria (PHO 0182/59. Cf. tambm PHO 0014-59, que outra verso da primeira pgina desse documento, com pequenas variaes que conduzem o leitor a um entendimento mais completo das reflexes de Oiticica sobre o tema da durao da cor):Para obter a transformao do corpo ou da imagem em representao, no necessrio, por isso, iluminar o objeto, mas obscurecer ao contrrio certos lados, diminulo da maior parte de si mesmo, de maneira que o resduo, em vez de ficar encaixado naquilo que o rodeia, como uma coisa, dele se desprenda, como um quadro. Essa passagem est em BERGSON, Henri. Matria e memria: ensaio sobre a relao do corpo com o esprito. So Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 24-5. No sabemos se Oiticica leu realmente esse texto de Bergson ou se o citou a partir de algum comentador. 13 Oiticica, Hlio. Cor-Tempo. Dezembro de 1959. PHO 0017/59, publicado em _________. Aspiro ao grande labirinto: Luciano Figueiredo; Lygia Pape; Waly Salomo (orgs.). Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p.16-17 (sem ttulo e sem a frase que colocamos entre colchetes a partir da consulta ao manuscrito).

ao artista leitor de Bergson12 a cor pura como ao, imbuda de movimento, aquela que o intelecto afeito a decompor o todo para analis-lo em estados imveis no apreende. Assim, quando pinta suas Invenes em camadas sucessivas de cores, das quais nosso intelecto apreende apenas a camada mais externa, Oiticica aponta a limitao do entendimento especulativo. Uma inveno no simplesmente amarela ou vermelha: um todo construdo a partir de camadas e camadas variadas. Quando reno, portanto, a cor na luz no para abstra-la e sim para despi-la dos sentidos [esvazi-la dos sentidos passados], conhecidos pela inteligncia, para que ela esteja pura como ao, metafsica mesmo. Na verdade o que fao uma sntese e no uma abstrao (...) a estrutura vem juntamente com a ideia da cor, e por isso se torna, ela tambm, temporal. No h estrutura a priori, ela se constri na ao mesma da cor-luz.13 O contraponto da sntese, nesse trecho, no a anlise, mas sim a abstrao. A cor prismtica considerada uma abstrao, pois foge da concretude da cor como matria e adentra o campo do conhecimento intelectual e especulativo, ou seja, das abstraes. A sntese, ao contrrio, favorece o conhecimento sensrio e intuitivo. Na poca desses escritos, Oiticica l e cita textos de Henri Bergson, e a partir dessas leituras dedica-se a conferir cor uma durao (e no apenas uma extenso no plano do quadro). A cor entendida como onda contnua, em passagens sutis entre tons de vrios amarelos, e no como faixa de uma escala prismtica, para Oiticica a cor-tempo, a cor contnua, que tem durao. Para Bergson, durar atravessar mudanas de estados contnuos. Tudo que tem existncia psicolgica, tem durao, isto , transforma-se continuamente, num escoamento sem fim que em nada se assemelha a uma justaposio de estados fixos, a forma preferida com que nosso entendimento tenta compreender o movimento de mudana. A durao um fluir, um estado desembocando no outro. A cor, para Oiticica, o elemento que melhor iria conferir mobilidade s formas artsticas. Na busca pela durao da cor, o artista fez amarelos, brancos, vermelhos e alaranjados

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flutuarem para fora do plano da parede. A cor saiu para o espao nos planos suspensos dos bilaterais, ncleos e nas placas dos penetrveis. Ao lanar a cor para fora do retngulo, Oiticica envolve o espectador numa nova experincia com a obra de arte. Conferir cor uma dimenso especial na obra acarreta como consequncia a criao de uma nova percepo do que seria o espectador, que passa a circular nos relevos espaciais e a se envolver nas placas de ncleos e penetrveis. Esticando o fio da cor no caminho que comea com as experincias do Suprematismo do branco sobre branco, Oiticica chega ao corpo, ao participador, ao comportamento como chaves da experincia esttica. O comportamento eis o que me interessa: como al-lo mxima liberdade, diria Oiticica em busca do suprassensorial, de 1967. A participao no deveria ser um novo esteticismo, mas uma concreta mudana de comportamento que liberasse uma instncia criadora no indivduo e a participao ativa em sua prpria vida. Da participao inicial, simples, estrutural, sensorial, ou ldica (da maior importncia), tende-se a chegar prpria vida participao interior na prpria vida diria.14 O suprassensorial seria um alargamento das capacidades perceptivas capaz de alar o comportamento mxima liberdade. Ao longo do texto, o artista discorre sobre efeitos de substncias intoxicantes nesse processo e prope que investigar o efeito dos txicos poderia dar pistas sobre a possibilidade de uma arte causadora tambm de efeitos suprassensoriais. Continuamos aqui no mesmo registro de expanso do entendimento que, a partir das leituras que Oiticica faz de Bergson, orientou as experincias com a cor-tempo no incio da dcada de 1960. Quer ele provocar com a obra de arte um estado que s com algo paralelo podemos comparar. Os elementos paralelos que se aproximariam da arte incitadora de estados suprassensoriais seriam a msica rtmica, o mito, a dana e o efeito de txicos e de elementos hipnticos. Oiticica considera que para chegar arte incitadora do suprassensorial seria necessrio uma investigao que comeasse por explorar esses elementos paralelos, abrir um parnteses e criarem-se experincias paralelas, ousar algo afim ao que quer o artista. Pensando nas experincias paralelas de efeito detonador do suprassensorial, que buscam a raiz da criao, Oiticica detecta o carter coletivo comum a todas elas. No entanto, a descoberta dessa potencialidade criativa individual e cada um a experimenta de uma maneira diferente. Coletivizar o resultado de uma experincia suprassensorial seria criar um novo condicionamento. O sentido ambiental assim um efeito no comportamento de um indivduo, alcanado em experincias usualmente coletivas, pela expanso dos sentidos a um nvel suprassensorial, num ambiente especfico. A partir de 1972, Hlio Oiticica une o ambiental, a cor-luz e o suprassensorial em Cosmococas Program in progress, que nome tanto de um bloco de Newyorkaises quanto de uma instncia experimental da pesquisa com estados que incitam o comportamento14 Oiticica, Hlio. Busca do Suprasensorial, 10/10/1969. PHO 0192/67 8-9.

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descondicionado. Essa parte concreta e vivencial de Cosmococas Program in progress so os Block-Experiments CC1 a CC9, que s comearam a ser realizados em locais pblicos 30 anos depois de sua concepo. Circularam em forma de texto, no entanto, ao longo de trs dcadas. Em Newyorkaises, o bloco-seo Cosmococa seria precedido por ber Coca, um poema que escreveu em junho de 1973. ber Coca tambm ttulo do artigo que Sigmund Freud publicou em 1884 sobre a histria da coca e usos teraputicos como anestsico, antidepressivo, substituto para dependncia da morfina e regulador15 Freud escreveu trs artigos sobre cocana: ber Coca (1884), Contribuio ao conhecimento sobre o efeito da cocana (1885) e nsia e temor pela cocana (1887), que ficaram por muito tempo fora de circulao. Em 1963, foram publicados em Viena, em traduo para o ingls, em uma compilao de poucos exemplares (Freud, Sigmund. The cocaine papers. Donoghue, A. K. & Hillman, J. (org). Viena e Zurique: Dunquin Press, 1963). Em 1974, Robert Byck organizou outra compilao, com comentrios da filha de Freud, Anna Freud (Freud, Sigmund. Cocaine Papers; By Sigmund Freud. BYCK, Robert (ed.). New York: Stonehill Publishing Co., 1974). O poema de Oiticica de 1973. No Brasil, a coletnea organizada por BYCK recebeu o ttulo de Freud e a cocana. Rio de Janeiro: Espao e Tempo, 1989. Agradeo a Beatriz Scigliano Carneiro por me ceder essa traduo. Sobre a pesquisa de Freud com cocana, cf. tambm BURNS, John E. Freud, cocana e sua noiva em http://www.rubedo.psc.br/artigosb/frdcocai.htm, acessado em 18/06/2007. 16 Herkenhoff, Paulo. Arte e crime em Cosmococa Programa in progress, Buenos Aires: MALBA, 2005. 17 Mortimer, W. Golden. History of coca: the divine plant of the Incas. Honolulu: University Press of the Pacific, 2000. A primeira edio desse livro de 1901. Agradeo a Beatriz Scigliano Carneiro por me indicar e ceder esse livro. 18 Oiticica, Hlio. CC4 Nocagions, 24/08/1973, reproduzido no catlogo Cosmococa Programa in progress. Op. cit., p. 224. Texto escrito em ingls e traduzido pela autora.

de desordens intestinais15. Neville de Almeida, em entrevista a Paulo Herkenhoff, afirmou que o artigo de Freud era parte do programa conceitual das Cosmococas16. Outra referncia provavelmente usada pelo artista na poca em que tentava incluir a cocana em sua pesquisa artstica o livro History of coca: the divine plants of the Incas17, que aparece em fotografias em seu arquivo pessoal. Tanto neste livro quanto no artigo de Freud h referncias a Manco Capac, o heri incaico associado ddiva da folha de coca ao povo Inca, cujo nome inspirou o termo Mancoquilagens para definir as mscaras de cocana feitas por cima das fotografias dos artistas que aparecem nas projees de slide dos Block-Experiments in Cosmococa. CC4, Nocagions, a mais branca das CCs. O branco da coca sobre o branco da capa do livro Notations de John Cage retoma o branco sobre branco. Nas anotaes sobre esse block-experiment, Oiticica homenageia Malevitch, inaugurador do espao Suprematista, no como um revival do Suprematismo, mas como uma assero de sua prpria existncia, levada adiante de forma chance-play e cndida (puro branco).18 CC4 branco no sentido de ser uma fuso de todas as cores, pois sumariza diversas questes investigadas por Oiticica sobre a potncia da arte em incitar comportamentos descondicionados e expandir-se na concretude do corpo. Em CC4 o participador incitado a entrar em uma piscina rasa, cercada de pequenas lmpadas azuis. No fundo da piscina, um tringulo feito de pontos de luz verde determina a rea verde. A ponta do tringulo imerso e das facas e canivetes usados para fazer as trilhas remetem aos ngulos agudos dos Secos, guaches do final da dcada de 1950, quando a cor ainda no sara do papel. Em alguns slides, a cocana ocupa toda a capa do livro de Cage e constri a mesma textura das pinceladas curtas dos monocromticos de Oiticica (as Invenes). O participador v as pontas secas e agudas das facas enquanto sente o no menos cortante frio da gua. Acompanhada dessa sensao ttil, o branco da cocana nos slides toma mais do que nunca aspecto de neve, o que reforado pelas luzinhas que inusitadamente cercam uma piscina e no uma janela, como costume durante os meses mais frios em cidades do hemisfrio norte, quando o branco da neve iluminado noite pela decorao das festas de final de ano. A piscina toma ento o lugar da tela quadro, canvas, screen, monitor de vdeo: janela para o mundo.

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Marshall McLuhan, o terico da mdia que conceituou meios quentes e meios frios, citado recorrentemente nos escritos de Oiticica dos anos 1972-73. O frio da piscina a sensao ttil da frieza-abertura dos slides, no sentido proposto por McLuhan19. O quase-cinema dos slides das CCS um meio frio, com menos informao do que o filme em 24 quadros por segundo, e que exige a participao mais intensa e processos mais intuitivos do que lgicos para conduzirem ao conhecimento. O frio refrescante da piscina e a sensao de diminuio de peso do corpo na gua relacionam-se ainda sensao de frescor e leveza que Freud descreve no artigo ber Coca a respeito da ingesto de cocana em soluo oral: Alguns minutos aps ingerir a cocana, experimenta-se uma sbita exaltao e uma sensao de leveza. Os lbios e o palato ficam saburrosos, seguindo-se sensao de calor nas mesmas reas. Se, nesse momento, tomarmos gua fria, ela parece quente aos lbios e fria garganta. Em outras ocasies, a sensao predominante um frescor bastante agradvel na boca e na garganta.20 A trilha sonora com trechos de composies de John Cage sugerem tambm a ideia de sons cortantes: rudos metlicos de vrios tipos, o piano preparado demanda esforo na juno dos fragmentos de sons21. Na piscina de CC4, esse esforo menor, como se o corpo todo, e no s os ouvidos, se empenhasse na tarefa.

Block Experiment in Cosmococa, CC4 Nocagions. Hlio Oiticica e Neville de Almeida, 1973. Foto da montagem na Galeria Nara Roesler, So Paulo, 2006. 19 Ver Oiticica, Hlio. Bloco-Experincias em Cosmococas programa in progress em Hlio Oiticica. Catlogo da exposio itinerante 1992-1997. Roterd: Witte de With Center for Contemporary Art; Paris: Galerie Nationale du Jeu de Paume; Barcelona: Fundacin Antoni Tpies; Lisboa: Centro de Arte Moderna da Fundao Calouste Gulbenkian; Minneapolis: Walker Art Center; Rio de Janeiro: Centro de Arte Hlio Oiticica. p. 179: segundo Mcluhan a TV q possui menor definio visual abre brechas para q o espectador se invista em participador e preencha o q lacuneia: o cinema no: super definido na fotografia-sequncia e se apresenta completo. 20 Freud, Sigmund. ber Coca in Freud e a cocana, op.cit., p. 73. 21 Oiticica cogitou solicitar a John Cage uma composio especfica para CC4. Na montagem de CC4 que experimentamos, na Galeria Nara

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Roesler, So Paulo, em outubro de 2006, foram usadas peas de piano preparado de John Cage. A respeito do piano preparado, ver Cage, John. Silence. New England: Wesleyan University Press, 1973, p. 149: cada piano preparado preparado diferentemente. Objetos so colocados entre as cordas (...) Msica uma ultra-simplificao da situao em que realmente nos colocamos. Um ouvido sozinho no um ser; msica uma parte do teatro. Foco quais aspectos algum est notando. Teatro todas as vrias coisas acontecendo ao mesmo tempo. Tenho notado que msica mais viva para mim quando escutar por exemplo no me distrai de ver. (trad. livre da autora). 22 Oiticica cita vrias vezes esse verso de Villes(I) em seus escritos de 1973. No rascunho do bloco Cosmococas de Newyorkaises, porm, indica que incluiria a primeira estrofe de Veilles, que o poema seguinte a Villes(I) no livro Illuminations. Outras anotaes de Oiticica no dirio 2 de 1973 citam Veilles. No mesmo dirio, desenvolve alguns pargrafos sobre a viglia, um estado entre o sono e o estar acordado. Viglia tambm o ttulo de uma proposio que enviaria a Silviano Santiago para ser feita no Rio de Janeiro. Cf. Oiticica, Hlio. ntbk 2/73 p. 105-108. (AHO e PHO 189.73) 23 Oiticica, Hlio. Riscado etc continuao, 02/12/1974. AHO 0180.74 24 A primeira parte de Assim falou Zarathustra termina com Da virtude que d. Zarathustra quer que seus discpulos o deixem prosseguir s em sua caminhada. Os discpulos oferecem a ele um cajado que tem no alto um sol dourado cercado por uma serpente. Zaratustra discursa para eles e menciona o grande meio-dia, quando o homem posiciona-se a meio caminho entre a besta e o alm-do-homem e o sol de seu conhecimento que estar no alto do meio-dia para ele. Nietzsche, Friedrich. The Portable Nietzsche (ed.) Walter Kaufmann. New York: Penguin Books, 1976, p. 190.

Na mesma poca em que projeta com Neville de Almeida o frio de CC4, Oiticica associa neve e cocana na traduo livre que faz da ltima frase do primeiro verso de Rimbaud em Villes (I)22, de Illuminations: cho de neve eterna. Lacropole officielle outre les conceptions de la barbarie moderne les plus colossales. Impossible dexprimer le jour mat produit par le ciel immuablement gris, lclat imprial des btisses, et la neige ternelle du sol. A alterao na traduo (de neve eterna do cho para cho de neve eterna) ocorre segundo Oiticica porque o original e o que quero como traduo acima referem-se (e do algo) a algo planetrio: UMA/ou A/ CONDIO DA TERRA (CHO E PLANETA): e jamais neve q cai sobre a terra, como se a uma descrio e/ou rememorao de paisagem urbana23. O cho de neve eterna o branco que precisa ser lido no como ausncia, mas pausa que encobre e revela, existncia simultnea de duas intensidades, como amor e morte, arte e vida. Esse trecho ainda associado livremente por Oiticica ao sol do meiodia de Nietzsche24. O artista quer que sol no poema de Rimbaud seja sol e no solo. Por fim, mantm-no como cho na traduo.

CHO DE NEVE ETERNA mas eu quero q SOL seja SOL (SILVIANO juntou SOL-SOLO q tambm tem a ver com isso: e porisso me pergunto: q fuses-frissons se passam nessas pensantes poticas de SOL SOLO CHO NEVE SOLEIL ETERNO NEIGE TERNELLE DU SOL !!! no pergunto!

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respondo e digo:) digo o q quero quero NEVE-COCA SOL NIETZSCHE MEIO-DIA CHO-RIMBAUD SOL-NEVE BRANCO SOBRE O BRANCO SOL MALEVITCH o brilho q diamanta o P cado NEVE de BRANCO-LUZ q inunda do CHO ao SOL todos recantos vistos e no-vistos visveis invisveis palpando impalpabilidade o q eu quero lhe dar algo assim irrepetvel como o SONHO DE SOL DE NIETZSCHE oBRANCO-MALEVITCH o CHO DE RIMBAUD a NEVE-LUZ q indissolvel no dilui e q divina MANTOS como o q HAROLDO DE CAMPOS me abriu do ANJO HAGOROMO japons q funde LUZ no CU DO CU q algo q vibra NIETZSCHE RIMBAUD136 concinnitas ano 11, volume 1, nmero 16, junho 2010

de otimismo25 Oiticica, Hlio. Carta para Waly Salomo, 23/01/1974. AHO 318.73-p20 a p37. Publicado na revista Plem, Editora Lidador, 1974 (cf.AHO 896.74). Ver tambm comentrio de Silviano Santiago em O Globo, 3/11/1974 em AHO 897.74.

SONHADO-INTOXICADO25

Neve indissolvel, como escreve Oiticica no texto reproduzido acima, o cho de neve eterna talvez seja a prpria inveno, o eterno novo. Eterno, mas no esttico, pois a inveno entendida aqui como matria dotada de durao, que se transforma continuamente, movimento que percebemos apenas atravs de alguns estados discretos (por exemplo, Malevitch, Rimbaud, Haroldo de Campos e Nietzsche, para ficarmos apenas com os estados que Oiticica cita na passagem acima) mas que so estgios de um processo contnuo de escoamento de um estado a outro, constituindo um fluir, uma durao: pro26 Bergson, Henri. A evoluo criadora. Bento Prado Neto (trad.). So Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5.

gresso contnuo do passado que ri o porvir e que incha ao avanar26. Nossa durao irreversvel, escreve Bergson: Nossa personalidade, que se edifica a cada instante a partir da experincia acumulada, muda incessantemente. Ao mudar, impede que um estado, ainda que idntico a si mesmo na superfcie, se repita algum dia em profundidade. por isso que nossa durao irreversvel. No poderamos reviver uma sua parcela, pois seria preciso comear por apagar a lembrana de tudo aquilo que se seguiu. Poderamos, a rigor, riscar essa lembrana de nossa inteligncia, mas no de nossa

27 Ibid., p. 6.

vontade.27 Ao conferir arte-inveno uma durao, Oiticica vibra em otimismo: a evoluo inventiva do novo indissolvel como a neve eterna. A inveno do novo irreversvel, escreve, e: os BLIDES so importantes no porque sejam caixa-OBJETO mas porque fazem parte desse furaco estrutural --> dessa emergncia irreversvel do NOVO (...) HOJE no q fao e no correr daquilo a q chamo de meu processo de desmitificao (no confundir desmitificao com desmistificao) q vem comandando esses anos 70, a

28 Oiticica, Hlio. Texto feito a pedido de Daisy Peccinini como contribuio para uma publicao sobre o objeto na arte brasileira nos ano 60. PHO 101.77. 29 Oiticica cita em 1/09/1971 o artigo de Dcio Pignatari, Marco zero de Andrade (O Estado de So Paulo, 24/10/1964, Suplemento literrio, p. 5): o projeto geral de que fala dcio a definio mais feliz do conceito [de anti-arte], alis usado como ser anti-arte,

posio desses BLIDES (e consequentemente do assunto do OBJETO) se pe to claro quanto o sol do meio dia num dia glorioso de sol: considero-os como parte fundamental no q hoje vejo como PRELDIO AO NOVO: tudo o q veio antes desse processo de desmitificao no passa de PRELDIO quilo q h de vir e q j comea a surgir a partir desse ano na minha obra: ao q antes chamei de OVO h de seguir o NOVO e j era tempo!28

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Oiticica percebe-se como um dos estados de um processo contnuo de mudana e tambm como um estado seguinte, autodefinindo-se como transformao. Um ser arte (ou ser anti-arte29) grvido daquilo que novo, irreversvel, irrepetvel. Mas que retorna sempre. Misturar arte e vida talvez seja, para ele, entender a arte como algo que possui a durao daquilo que vida. O suprassensorial foi uma busca, um questionamento das potencialidades da prpria arte e expanso do conceito de participao. A busca foi um percurso sem um ponto de chegada final, mas com muitos achados no caminho, das experincias com a cor-tempo aos Block-experiments in Cosmococas, nos quais a cor branca descobre outra estrutura, para alm das placas suspensas no ar, e pulveriza-se como cor intoxicante nas trilhas de cocana.

e, a, oposto s divagaes pseudo-crticas, de saber se anti-arte existe como tal ou se passa a ser arte, etc., comuns na parafernlia bestialgica de crticos (oides), etc. anti-arte pois ser anti-arte (ali, claro, dcio se refere a oswald de andrade), um problema que se refere mais ao sujeito do que ao objeto). No texto de Dcio Pignatari, l-se: Esse ser antiarte est intimamente vinculado ao estabelecimento de uma linguagem, de um projeto geral ou de um roteiro, para utilizar um termo oswaldiano. Envolve um problema de comunicao com a massa, por via imediata e direta. Em oposio portanto ao sistema vigente de administrao da cultura (complexo editorial, ensino, museus, exposies, concertos, etc.) que de natureza classe-consumista, impondo os ditames de seus interesses s fontes de criao artstica.

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concinnitas ano 11, volume 1, nmero 16, junho 2010

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Paula Braga (So Paulo, Brasil) doutora em Filosofia da Arte pela Universidade de So Paulo e mestre em Histria da Arte pela University of Illinois, EUA. Organizou o livro Fios soltos: a arte de Hlio Oiticica (So Paulo: Perspectiva, 2008). / [email protected]

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