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  • Paul Czanne, Auto retrato. leo sobre tela, cerca de 1878-80. Neue Pinakothek, Munique.17

    Paul Czanne*

    Emile Bernard

    Bernard afirma (no final de seu texto) ter escrito este artigo em Aix em maro de

    1904. Na realidade este deve ter tomado sua forma definitiva mais tarde, pois contm

    importantes citaes tiradas das cartas de Czanne datadas de 12 e 26 de maio.

    Embora seja conhecido pelos especialistas, este artigo (p. 17 a 30 no nmero de

    julho de 1904 do Occident) foi algo eclipsado, nos estudos sobre Czanne, pelos dois

    textos do Mercure de France que compem os Souvenirs sur Paul Czanne... e suas

    diversas reedies em forma de livro. O artigo do Occident , em grande medida,

    consagrado s vises gerais de Bernard sobre a arte, mas, alm da famosa

    compilao das opinies de Czanne, oferece citaes aparentemente textuais

    do artista e algumas observaes s vezes profundas sobre seus mtodos de

    trabalho e sua evoluo como pintor. Os comentrios sobre Pissarro e o perodo

    de Auvers parecem exatos. Quanto autenticidade das opinies, devemos ter em

    mente, por um lado, que Bernard se preocupa em assinalar, vrias vezes, neste artigo,

    as ocasies em que cita as prprias palavras de Czanne e, por outro lado, que as

    opinies propriamente ditas so enriquecidas com trechos de cartas, o que permite

    supor que a seo inteira seria composta de citaes autnticas. P. M. Doran

    Bernard claims (in the end of his text) to have written this article in Aix in

    March 1904. Actually, it must have taken its final version later, since it contains

    important quotes drawn from Czannes letters of May 12 and 26. This article

    (pages 17 to 30 of the issue of July 1904 of Occident), although known among

    scholars, was somehow eclipsed, in the studies about Czanne, by the two texts

    from Mercure de France which constitute the Souvenirs sur Paul Czanne... and

    its various re-editions as a book. The article in Occident is mostly dedicated to

    Bernards general views on art, but it offers, beyond the famous compilation

    of Czannes opinions, apparently textual quotes of the artist and some

    observations, at times remarkable, about his working methods and his evolution

    as a painter. The comments on Pissarro and the Auvers period seem to be

    precise. As for the authenticity of the opinions, one must have in mind, on

    the one hand, that Bernard cares about signaling, many times in this article, the

    occasions in which he quotes Czannes own words and, on the other hand, that

    the opinions themselves are complemented with excerpts from letters, what

    allows one to suppose that the whole section is constituted of authentic quotes.

    P. M. Doran

    palavras-chave: arte moderna; pintura;

    Paul Czanne; Emile Bernard

    keywords: modern art; painting;

    Paul Czanne; Emile Bernard

  • ARS Ano 7 N 14 18

    Frenhofer um homem apaixonado por nossa arte, que v mais longe e mais alto que os outros pintores.Balzac, A obra-prima desconhecida

    Logo tero se passado vinte anos desde que jovens pintores, que atualmente esto no foco das atenes em Paris, iniciaram uma devota peregrinao a uma loja pequena e escura da rua Clauzel. Ao chegar l, pediam a um velho armoricano de semblante socrtico1 quadros de Paul Czanne. Apesar das paredes recobertas de telas rutilantes, eles apenas sossegavam quando os estudos solicitados por seu desejo de arte, dispostos sobre uma cadeira que oferecia seu espaldar como cavalete, lhes ensinavam o caminho a seguir. Religiosamente, consultavam aquelas pginas de um livro que escrevia a natureza e uma esttica contempornea como as tantas tbuas de um dogma cuja revelao, para eles desconhecida, afirmava-se, entretanto, soberanamente. Dali retornavam, em meio a muitos discursos admirativos, a suas prprias telas e pincis, tomados da necessidade que tinham os paralticos de andar quando repentinamente o Salvador operava o milagre por sua boa vontade. Assim nasceu, de obras praticamente arrebatadas a seu autor, que, sem dvida, se as julgasse no conformes sua viso, jamais teria permitido que elas deixassem sua guarda, uma escola de pintura que outros, ambiciosos demais ou artistas de menos, etiquetaram com nomes falsos, desviaram para a fantasia e a superfcie.

    Mas quo proveitosa teria sido a revelao, caso inteiramente amada e conhecida!

    Um louvvel esforo de personalidade deve diferenciar os pintores, mas que esse esforo seja profundo e no exterior, que sorva as ondas de sua vitalidade juvenil em fontes sadias. Dessa preocupao com a personalidade2, doentia, digamos logo, nasce toda deliquescncia, porque aquele zelo ter faltado. Assistimos anualmente, hlas!, ao descascamento de jovens caules providos de ramagens viris. Aqui estamos, diante do cair das folhas, em um outono de monotonia. Toda seiva se perde em vo diante de um inverno demasiado precoce. Um a um extinguem-se os sis, a luz do tempo se vai, declinante, e de nossos mestres, aps Manet, aps Puvis, resta apenas Czanne.

    Monet, olho de luz que abriu as portas da pintura sobre o infinito do cu, do mar e das plancies, deixou uma grande obra que s a ingratido desconsideraria. Nem Corot, nem Millet saram de uma arte de museu, sua superioridade inconteste perpetua gloriosamente as escolas de Claude Gell e de Correggio: Monet observou com determinao a natureza e viveu-a como pintor.

    Manet, admirando Monet, criou este smbolo: os mestres de outrora (que sua paleta representava, que sua obra venerava) reconhecem

    1. Trata-se de Pre Tanguy, como era

    conhecido o marchand cuja loja foi ponto de encontro de artistas

    ligados bomia parisiense dos anos

    1880-1890, entre eles Van Gogh e Gauguin.

    Vendia quadros e materiais artsticos; no

    incio dos anos 1890, Tanguy era o nico

    marchand a ter em sua loja obras de Czanne.

    * Este texto, original-mente publicado por Bernard no nmero de julho de 1904 do Occident, consta do

    volume Conversa-tions avec Czanne (DORAN, P. M. (Ed.).

    Paris: Editions Macula, 1978, p. 30-42), em que

    Doran colige diversos escritos de Czanne

    e de contemporneos como Joaquim Gasquet,

    Gustave Geoffroy, Ambroise Vollard, alm

    do prprio Bernard, que mantiveram dilogo

    relevante com o pintor. O editor acompanha

    cada um dos textos de pequenas introdues e numerosas notas expli-

    cativas. Conservou-se integralmente, aqui, a apresentao que Do-ran dedicou ao ensaio

    publicado por Bernard no Occident. A biografia de Bernard, igualmente

    de autoria de Doran, foi extrada pgina 22

    do livro. Por questes editoriais decidiu-se,

    nesta verso, suprimir trechos de notas de rodap onde o autor

    comenta outros textos publicados no mesmo

    volume, ou acrescent-los, quando as notas

    esclareciam passagens deste texto.

  • Emile Bernard Paul Czanne 19

    Frenhofer um homem apaixonado por nossa arte, que v mais longe e mais alto que os outros pintores.Balzac, A obra-prima desconhecida

    Logo tero se passado vinte anos desde que jovens pintores, que atualmente esto no foco das atenes em Paris, iniciaram uma devota peregrinao a uma loja pequena e escura da rua Clauzel. Ao chegar l, pediam a um velho armoricano de semblante socrtico1 quadros de Paul Czanne. Apesar das paredes recobertas de telas rutilantes, eles apenas sossegavam quando os estudos solicitados por seu desejo de arte, dispostos sobre uma cadeira que oferecia seu espaldar como cavalete, lhes ensinavam o caminho a seguir. Religiosamente, consultavam aquelas pginas de um livro que escrevia a natureza e uma esttica contempornea como as tantas tbuas de um dogma cuja revelao, para eles desconhecida, afirmava-se, entretanto, soberanamente. Dali retornavam, em meio a muitos discursos admirativos, a suas prprias telas e pincis, tomados da necessidade que tinham os paralticos de andar quando repentinamente o Salvador operava o milagre por sua boa vontade. Assim nasceu, de obras praticamente arrebatadas a seu autor, que, sem dvida, se as julgasse no conformes sua viso, jamais teria permitido que elas deixassem sua guarda, uma escola de pintura que outros, ambiciosos demais ou artistas de menos, etiquetaram com nomes falsos, desviaram para a fantasia e a superfcie.

    Mas quo proveitosa teria sido a revelao, caso inteiramente amada e conhecida!

    Um louvvel esforo de personalidade deve diferenciar os pintores, mas que esse esforo seja profundo e no exterior, que sorva as ondas de sua vitalidade juvenil em fontes sadias. Dessa preocupao com a personalidade2, doentia, digamos logo, nasce toda deliquescncia, porque aquele zelo ter faltado. Assistimos anualmente, hlas!, ao descascamento de jovens caules providos de ramagens viris. Aqui estamos, diante do cair das folhas, em um outono de monotonia. Toda seiva se perde em vo diante de um inverno demasiado precoce. Um a um extinguem-se os sis, a luz do tempo se vai, declinante, e de nossos mestres, aps Manet, aps Puvis, resta apenas Czanne.

    Monet, olho de luz que abriu as portas da pintura sobre o infinito do cu, do mar e das plancies, deixou uma grande obra que s a ingratido desconsideraria. Nem Corot, nem Millet saram de uma arte de museu, sua superioridade inconteste perpetua gloriosamente as escolas de Claude Gell e de Correggio: Monet observou com determinao a natureza e viveu-a como pintor.

    Manet, admirando Monet, criou este smbolo: os mestres de outrora (que sua paleta representava, que sua obra venerava) reconhecem

    2. Cf. carta de Bernard a sua me: Em arte ele fala apenas em pintar a

    natureza segundo sua personalidade e no

    segundo a prpria arte (In: DORAN, P. M. (Ed.).

    Conversations avec Czanne. Paris: Editions

    Macula, 1978, p. 24). Nesse momento, Bernard ainda no reinterpretou

    o carter artstico particular de Czanne para faz-lo concordar

    com as vises do pintor, e suas contradies so

    evidentes.

    um parente, um irmo3, em um aluno do sol, ornado com o mais delicado senso artstico. Enquanto os falsos clssicos, ou seja, os maus pintores, rejeitavam o desbravador com sua viso mais nova e radiosa, houve um clssico, no sentido preciso da palavra, que desmentiu, em nome dos ancestrais, esse ato de rejeio covarde, e estendeu sua mo e sua admirao, tal como a laada de uma trama se abre para atar a si a que lhe sucede. E a influncia de Claude Monet foi imensa, no importa de que ngulo a consideremos. O erro de seus alunos foi no compreend-la em seu princpio, ater-se ao puro pastiche; o de seus crticos foi limit-la; o de seus admiradores, circunscrever tudo nela. Convm proclamar o legado dessa obra, ver a observao aliar-se, nela, ao melhor dom, em suma, reconhecer-lhe o domnio sobre toda a pintura dos ltimos vinte anos, no apenas na Frana, mas em todo o mundo. Sob esse ponto de vista a vitria de Claude Monet foi completa, ela destronou a Escola de Belas-Artes; e partiu de um lugar to simples: do pequeno barco-ateli com o qual deslizava pelo Sena e do qual Manet nos deixou um registro em traos magistrais. Longe de mim a ideia pueril de que a arte antiga est ultrapassada! Os melhores pintores, quer se chamem Courbet, Manet ou Monet, no podem fazer esquecer Michelangelo, Rafael, Leonardo, Ticiano, Giorgione, Tintoretto, Veronese, Rubens; no faro sequer estremecerem os mestres menores franceses, flamengos ou holandeses; no apagaro os primitivos; e nem esta sua ambio. No se trata de anarquistas que desejam recomear o mundo e faz-lo datar a partir deles; nascidos talentosos, disseram a si mesmos: A pintura contempornea est viciada, a Arte, aps errar pelos museus, viveu frmulas acadmicas; todavia os Mestres, que conhecemos melhor que ningum, que admiramos mais que todos, nada tm desses dogmas frios, pesados e sem vida, pois hauriram seu classicismo da natureza4... Retornemos natureza! Esses bons rebentos colaram seus lbios aos beres mltiplos e cheios de leite da deusa e, tendo trabalhado como operrios nas aldeias e provncias longnquas ou prximas, na Normandia, em Oise, na Provena, na Creuse ou ao longo do Sena, do Oceano, do Mediterrneo, eis que aprofundaram o que desejavam fazer, diferenciaram-se. Em contato com a Criao, tornaram-se criadores. Depuraram a viso de seu olho e a lgica de seu esprito, por isso o trabalho que realizaram foi excelente e, apesar de sua simples aparncia documental, de capital importncia.

    Paul Czanne no foi o primeiro a tomar esse caminho, ele gosta de reconhecer que a Monet e a Pissarro que deve o fato de se ter libertado da influncia demasiado preponderante dos museus para entregar-se da Natureza. Apesar dessa proximidade, sua obra no se deixou prejudicar. Gigantescas como elas poderiam, de bom grado, ter

    3. Esta frase rene de maneira tortuosa, para

    servir aos prprios intentos doutrinrios de Bernard, o fato de

    que Manet, por um lado, adorava a pintura espanhola do sc. XVII, na qual se inspirava, e

    adaptava composies da Renascena italiana (em Olympia e Djeuner sur lherbe); e, por outro, de

    que ele se aproximara de Monet, que pintou certo

    nmero de quadros de si prprio e de sua famlia,

    entre os quais aquele em que Monet retratou sua

    mulher em um barco (atualmente em Munique) e que mencionado mais

    adiante.

    4. Czanne ser includo por Bernard, ao longo

    de seus escritos, em um movimento

    que ele interpretava como um classicismo

    renovado, haurido [...] da natureza, como diz

    aqui, e ao mesmo tempo relacionado tradio

    (BERNARD. Souvenirs. In: DORAN, P. M. (Ed.),

    op. cit., p. 80). Mas suas maneiras de ver evoluem

    e, em 1926, Bernard considerar Czanne

    anticlssico.

  • ARS Ano 7 N 14 20

    sido, as telas primitivamente escuras e rudes de Czanne recuaram a propores restritas, exigncia do trabalho ao natural. O mestre abandona o ateli, vai manh e noite ao motivo, acompanha o trabalho do ar sobre as formas e as localidades5, analisa, busca, encontra. Logo, no mais Pissarro que o aconselha, ele quem age sobre a evoluo da pintura deste ltimo. Ele no adota, portanto, a maneira de trabalhar de Monet ou de Pissarro; continua a ser o que era, ou seja, um pintor, com um olho que se clareia, que se educa6, se exalta diante do cu e dos montes, diante das coisas e dos seres. Refaz para si, segundo sua expresso, uma tica, pois a dele havia sido obliterada, arrastada por ilimitada paixo por um excesso de imagens, de gravuras, de quadros. Quis ver em demasia; seu insacivel desejo de beleza fez com que ele compulsasse muitas vezes o tomo multiforme da Arte; agora, ele percebe que necessrio limitar-se, encerrar-se em uma concepo e um ideal esttico; assim, se vai ao Louvre, se contempla longamente um Veronese, para, dessa vez, deslindar sua aparncia, escrutar suas leis: aprende ali os contrastes, as oposies tonais7, destila seu gosto, enobrece-o, eleva-o. Se vai rever Delacroix, para seguir nele o desabrochar do efeito na sensao colorida; pois, afirma, Delacroix foi imaginativo e sensvel em relao s coloraes, dom mais poderoso e mais raro; com efeito, o artista possui s vezes um crebro mas no um olho, s vezes um olho mas no um crebro; e assim Czanne cita Manet como exemplo: uma natureza de pintor, uma inteligncia de artista, mas uma sensibilidade medocre para as coloraes8.

    Foi em Auvers, junto a Pissarro, depois de pintar sob a gide de Courbet telas grandes e poderosas, que Czanne se retirou, para se desfazer de qualquer influncia, diante da Natureza; e foi em Auvers que iniciou a assombrosa criao da arte sincera e ingenuamente sbia que desde ento nos mostrou.

    to difcil falar do conjunto de sua obra hoje, com as telas do mestre dispersas em colees privadas, quanto era antes, quando ele no deixava que nada sasse de seu ateli e vivia solitrio; portanto mais sobre sua contribuio pessoal, sobre sua esttica, sobre sua viso, sobre suas tendncias que se pode discorrer.

    Desde o dia em que Paul Czanne se ps diante da natureza com a ideia de tudo esquecer, ele iniciou essas descobertas que, difundidas atualmente pela imitao superficial, tiveram sobre a compreenso contempornea o sentido definitivo de uma revoluo. Mas isso tudo se fez revelia dele, pois, despreocupado das pequenas glrias, de reputao, de sucesso, insatisfeito consigo mesmo, o pintor havia se embrenhado no absoluto de sua arte sem nada mais querer

    5. Para uma melhor compreenso do termo

    localidades, remetemos a um trecho da carta que Czanne enviou de Aix a Bernard, em 15 de abril

    de 1904: Ora, a natureza, para ns, homens, existe

    mais em profundidade do que em superfcie,

    da decorrendo a necessidade de introduzir

    em nossas vibraes de luz, representadas pelos

    vermelhos e amarelos, uma soma suficiente de

    azulados, de maneira que se faa sentir o ar (In: DORAN, P. M. (Ed.),

    op. cit., p. 27). Trata-se da formulao simples do

    princpio da perspectiva area o azulado dos

    objetos distantes to mais forte quanto as coloraes

    naturais destes sejam filtradas atravs de uma

    densidade atmosfrica maior. Mas a expresso

    vibraes de luz uma espcie de terminologia

    semicientfica, que seramos tentados a associar antes a

    Seurat e seu crculo. [...] Mesmo que os efeitos da

    atmosfera sobre a cor local sejam indubitveis [...], no menos certo

    que a integridade e a massa do objeto pintado devam a tudo dominar:

    toda pintura reside nisto: ceder ao ar ou a ele resistir. Ceder a ele negar s localidades

    sua fora, sua variedade. Ticiano e todos os

    venezianos lidaram com localidades; isso o que

    fazem os verdadeiros coloristas (CZANNE

    apud BERNARD, E. La technique de Paul

    Czanne. In: Lamour de lart. 1920, p. 277) [...].

  • Emile Bernard Paul Czanne 21

    ouvir do exterior, buscando o aprofundamento oculto de sua anlise, movimentando com lentido, reflexo e fora a picareta que um dia encontraria o filo maravilhoso de onde surgiria todo o esplendor.

    Tal seu mtodo de trabalho: primeiro, uma submisso completa ao modelo; com cuidado, o estabelecimento de uma ordenao, a busca dos contornos, as relaes de propores; depois, em sesses muito meditadas, a exaltao das sensaes coloridas, a elevao da forma a uma concepo decorativa9; da cor ao diapaso mais cantante. Assim, quanto mais o artista trabalha, mais sua obra se afasta do objetivo [lobjectif], mais ele se distancia da opacidade do modelo que lhe serve de ponto de partida, mais entra na pintura nua, sem outra finalidade alm dela mesma; mais abstrai seu quadro, mais o simplifica com amplido, depois de t-lo gestado pequeno, conforme, hesitante. Pouco a pouco a obra cresceu, chegou ao resultado de uma concepo pura. Nessa marcha atenta e paciente cada parte comandada de frente, acompanha as outras10, e se pode dizer que a cada dia uma viso mais exasperada vem se sobrepor da vspera, at que o artista fatigado sinta fundirem suas asas aproximao do sol, ou seja, abandona seu trabalho no ponto mais alto a que este pde elev-lo. De modo que, se ele houvesse tomado tantas telas quantas tivessem sido as sesses, teria resultado de sua anlise uma soma de vises ascendentes, gradualmente mais vivas, cantantes, abstratas, harmoniosas, das quais a mais plena supranatureza seria a mais definitiva; mas, ao lanar mo de apenas uma tela para essa lenta e fervorosa elaborao, Paul Czanne nos demonstra que a anlise no seu fim, que apenas seu meio, que se serve dela como de um pedestal e que se importa apenas com a sntese destruidora e conclusiva. Esse mtodo prprio de trabalho, ele o preconiza como o nico justo, o nico que deve levar a um resultado srio, e condena sem clemncia toda deciso de simplificao que no passe pela submisso Natureza, pela anlise arrazoada e progressiva. Se um pintor se contenta com pouco, porque, segundo Paul Czanne, sua viso medocre, seu temperamento de parco valor.

    Leonardo da Vinci emitiu ideia semelhante em seu tratado de pintura, quando disse:

    O pintor ao qual nada parece duvidoso no tira proveito de seu estudo. Quando a obra ultrapassa o alcance do julgamento do operrio, aquele que trabalha avana pouco; mas quando o julgamento ultrapassa a obra, esta cada vez mais se aperfeioa, se a diversidade no o impedir.

    Portanto, no ser pela pacincia, mas pelo amor, que d a vi-so e o desejo de aprofundamento, que o pintor chegar possesso de si mesmo e perfeio de sua arte. Ele precisa extrair da Natureza uma

    6. um olho [...] que se educa [...] diante das

    coisas. Cf. a carta 5 de Czanne a Bernard (In: DORAN, P. M. (Ed.), op. cit., p. 43): a natureza

    [...] o olho se educa a seu contato, escrita

    logo aps ter lido o artigo do Occident.

    7. Cf. DENIS, M. Journal. In: DORAN, P. M. (Ed.), op. cit., p. 94: Ele fala muito dos contrastes

    das Bodas de can [de Paolo Veronese]; fez um

    esquema desse quadro.

    8. A observao sobre Delacroix parece ser

    uma citao literal. Sobre Manet, comparar

    com a citao de Vollard (Paul Czanne. Paris: Vollard, 1914, p. 22): Ele cospe o tom!

    [...] Sim, mas ele carece de harmonia e tambm

    de temperamento.

    9. uma concepo decorativa. No se trata de uma noo estranha a Czanne. Cf. cartas a

    Zola, 24 de maio de 1883: temos o belo panorama

    de fundo de Marselha e as ilhas, tudo envolto,

    noite, em um efeito muito decorativo; em Camoin, 3 de fevereiro

    de 1902: Faa estudos a partir dos grandes

    mestres decorativos, Veronese e Rubens,

    mas tal como se voc os fizesse da natureza; e tambm a observao

    a Maurice Denis (op. cit., p. 94): Eu gostaria

    de fazer paisagens decorativas como Hugo dAlsi, sim, com minha pequena sensibilidade.

    Para um dos sentidos correntes do termo cf. BRACQUEMOND (Du

    dessin et de la couleur. Paris: Charpentier, 1885,

  • ARS Ano 7 N 14 22

    imagem que ser, a bem dizer, a sua; e apenas pela anlise, se tiver a fora de lev-la at o fim, que ele lograr significar a si mesmo, definiti-vamente, abstratamente.

    As snteses11 expressivas de Czanne so estudos minuciosos e obedientes. Tomando a natureza como ponto de apoio, ele se conforma aos fenmenos e os transcreve lentamente, atentamente, at descobrir as leis que os produzem. Ento, com lgica, apossa-se deles e conclui seu trabalho com uma sntese imponente e viva. Sua concluso, em conformidade com sua natureza meridional e expansiva, decorativa; ou seja, livre e exaltada.

    Madame de Stal escreve, em seu livro sobre a Alemanha: Os franceses consideram os objetos exteriores como o mvel de todas as ideias e os alemes, as ideias como o mvel de todas as impresses. Paul Czanne justifica essa opinio de Madame de Stal sobre os franceses, mas sabe chegar a uma profundidade da arte pouco comum em nossos contemporneos. Como bom tradicionalista, afirma que a Natureza nosso ponto de apoio, que no se deve tomar nada que no seja unicamente dela, dando-se a ns, todavia, a liberdade de improvisar com aquilo que lhe emprestamos...

    Em primeiro lugar, o pintor precisa, segundo Czanne, de uma tica pessoal, tica esta que se pode obter apenas pelo contato obstina-do da viso do universo.

    Claro, preciso ter frequentado o Louvre, os museus, a fim de se dar conta da elevao da natureza arte. So as palavras do prprio Czanne12: O Louvre um bom livro a consultar, mas no deve ser mais que um intermedirio: o estudo real e prodigioso a empreender a diversidade do quadro da natureza.

    Sem a viso da arte, a cpia da natureza seria uma tolice, evidente; mas deve-se temer limitar sua inveno a repeties ou pastiches, perder o p em abstraes ou reiteraes; preciso manter-se no terreno da anlise e da observao, esquecer as obras j feitas para criar, a partir delas, imprevistos, tirados ao cerne da obra de Deus.

    Paul Czanne considera que existem duas plsticas13, uma escultural ou linear, a outra decorativa ou colorista. O que ele chama plstica escultural teria, em termos gerais, o tipo de significado da Vnus de Milo. A chamada plstica decorativa estaria ligada a Michelangelo, a Rubens. A primeira, uma plstica servil, a outra, livre: uma em que o contorno domina, a outra em que domina a protuso, a cor e o ardor. Ingres pertence primeira, Delacroix segunda.

    Eis algumas opinies de Paul Czanne14:

    12. Emprestadas carta 2 de Czanne a

    Bernard (In: DORAN, P. M. (Ed.), op. cit., p. 28).

    13. Trata-se talvez de um relato bastante

    exato de uma distino feita por Czanne: cf. DENIS (op. cit., p. 94):

    [Czanne diz] Degas no suficientemente pintor, ele no tem aquele algo mais (um gesto nervoso

    de desenhar como Michelangelo).

    p. 192): Por extenso, poderamos dizer que

    ela [a decorao] a suprema expresso

    das artes; que, em seu domnio, as artes gozam

    da plenitude e da livre manifestao de todas

    as suas qualidades, de sua essncia, o

    princpio ornamental, libertando-as da imitao

    servil da natureza e permitindo-lhes haurir

    delas mesmas as formas que elas estudaram e

    criaram.

    10. Cf. carta de Bernard a sua me, op. cit., nota 4.

    11. snteses. preciso lembrar da

    relao de Bernard com o sintetismo.

  • Emile Bernard Paul Czanne 23

    Ingres um clssico nocivo, como em geral todos os que, negando a natureza ou copiando-a com opinio formada, buscam o estilo na imitao dos gregos e romanos.A arte gtica essencialmente vivificante, de nossa estirpe.15

    Leiamos a natureza; realizemos nossas sensaes em uma esttica a um s tempo pessoal e tradicional. O mais forte ser aquele que tiver visto mais fundo e que realizar plenamente, como os grandes venezianos.Pintar do natural no copiar o objetivo [lobjectif], mas realizar suas sensaes.No pintor h duas coisas: o olho e o crebro, um deve ajudar o outro preciso trabalhar para o seu desenvolvimento mtuo; do olho pela viso sobre a natureza, do crebro pela lgica das sensa-es organizadas, que fornece os meios de expresso.Ler a natureza v-la, sob o vu da interpretao, como manchas coloridas sucedendo-se segundo uma lei de harmonia. Essas gran-des manchas analisam-se assim pelas modulaes. Pintar regis-trar nossas sensaes coloridas.16

    No existe linha, no existe modelado, h apenas contrastes. Esses contrastes no so dados pelo preto e o branco, mas pela sensao colorida. Da relao exata entre os tons resulta o modelado. Quando eles so harmoniosamente justapostos e esto todos ali, o quadro modela-se sozinho.No deveramos dizer modelar, deveramos dizer modular.A sombra uma cor como a luz, mas menos brilhante; luz e sombra no so mais que uma relao entre dois tons.Tudo na natureza modela-se conforme a esfera, o cone e o cilindro. preciso aprender a pintar a partir dessas figuras simples, e em seguida pode-se fazer o que se quiser.17

    O desenho e a cor no so distintos; medida que pintamos, desenhamos; quanto mais a cor se harmoniza, mais o desenho se define. Quando a cor se manifesta em sua riqueza, a forma atinge a plenitude. Os contrastes e relaes entre tons, eis o segredo do desenho e do modelado.O efeito constitui o quadro, ele o unifica e o concentra; sobre a existncia de uma mancha dominante que se deve estabelec-lo.18

    preciso ser operrio em sua arte. Saber desde cedo seu mtodo de realizao. Ser pintor pelas prprias qualidades da pintura. Servir-se de materiais grosseiros. preciso voltar a ser clssico por meio da natureza, ou seja, por meio da sensao.Tudo se resume nisto: ter sensaes e ler a Natureza.Em nossa poca no existem mais verdadeiros pintores. Monet deu uma viso. Renoir fez a mulher de Paris. Pissarro aproximou-se muito da natureza. O que vem depois no conta, tratando-se apenas de farsantes que nada sentem, que fazem acrobacias... Delacroix, Courbet, Manet fizeram quadros.Trabalhar sem preocupar-se com ningum, e tornar-se forte, tal a finalidade do artista, o resto no vale sequer a palavra de Cambronne.19

    15. Cf. DENIS (op. cit., p. 93): Ah! A

    Idade Mdia; tudo est nas catedrais!

    e tambm BERNARD (Souvenirs, op. cit.,

    p. 54): Foi um velho cortador de pedras da

    regio que os fez, h muito tempo; ele j

    morreu. A significao deste ltimo

    comentrio sobre os santos esculpidos de Saint-Sauveur

    foi-me assinalada por Lawrence

    Gowing: podemos interpret-lo como

    sendo parcialmente humorstico. [...]

    meu quinho de idade mdia (Ibidem, p. 62)

    continua a brincadeira.

    16. A este respeito e sobre o pargrafo

    anterior, o estudo de Lawrence Gowing

    (The logic of organized sensations. In:

    RUBIN, William (Org.). Czanne: the late work.

    Essays... Nova Iorque: Museum of Modern Art,

    1977; trad. francesa Macula, n. 3/4, 1978)

    14. Lawrence Gowing (Watercolour and pencil

    drawings by Czanne. Newcastle: Laing

    Art Gallery; Londres: Hayward Gallery, 1973,

    p. 24) observou, de maneira muito refinada, que as quinze mximas que se seguem (at ler

    a natureza) parecem formar um discurso

    contnuo, cclico, com a dcima quarta opinio que remete primeira e redefine o classicismo, e a dcima quinta no papel

    de resumo e concluso. Seguem-se duas

    observaes sem relao com o resto e algumas

    citaes tiradas de cartas de Czanne [...].

  • ARS Ano 7 N 14 24

    O artista deve desdenhar a opinio que no repousa sobre a observao inteligente do carter. Ele deve temer o esprito literrio, que tantas vezes faz com que o pintor se afaste do verdadeiro caminho para perder-se por tempo demasiado em especulaes intangveis: o estudo concreto da natureza.O pintor deve consagrar-se inteiramente ao estudo da natureza e esforar-se por produzir quadros que sejam um ensinamento. As conversas sobre arte so algo inteis. O trabalho que faz realizar um progresso em seu prprio ofcio uma compensao suficiente incompreenso dos imbecis. O literato se exprime com abstra-es, ao passo que o pintor concretiza, por meio do desenho e da cor, suas sensaes, suas percepes.No somos nem demasiado escrupulosos, nem demasiado sinceros, nem demasiado submissos em relao natureza; mas somos mais ou menos mestres de nosso modelo e, sobretudo, de nossos meios de expresso. Penetrar o que se tem diante de si e perseverar em exprimir-se o mais logicamente possvel.

    Tal Czanne, tal sua lio de arte. Como vemos, ele se diferencia essencialmente do impressionismo, do qual deriva, mas no qual no pode aprisionar sua natureza. Longe de ser espontneo, Czanne refletido, seu gnio um relampejar em profundidade. Resulta disso ento que tal temperamento de pintor o conduziu a criaes decorativas novas, a snteses inesperadas; e essas snteses foram em verdade o maior progresso nascido das apercepes modernas; pois elas esmagaram a rotina das escolas, mantiveram a tradio e condenaram a fantasia apressada dos excelentes artistas de que falei. Em suma, Czanne, pelo fundamentado de suas obras, provou ser o nico mestre no qual a arte futura poderia transplantar sua fruio. Todavia, como foram mal apreciadas suas descobertas! Consideradas injustamente por alguns, devido a seu inacabado, como pesquisas sem concluso; por outros, como extravagncias sem futuro, devidas unicamente fantasia de um artista doentio; por ele prprio que ergueu diante de si um ideal de absoluto , mais como ruins do que boas, sem dvida porque provocava-lhe despeito ver-se trado nelas (ele as destruiu em grande nmero, no as mostrou); tais como so, entretanto, constituem o mais belo esforo para um renascimento pictrico e colorista que, desde Delacroix, a Frana j pde ver.

    No temo afirmar que Czanne um pintor de temperamento mstico e que equivocadamente sempre foi includo na deplorvel escola inaugurada pelo sr. Zola, que, a despeito de suas blasfmias contra a natureza, outorgara-se hiperbolicamente o ttulo de naturalista. Digo que Czanne um pintor de temperamento mstico em razo de sua viso puramente abstrata e esttica das coisas. Ali, onde outros se preocupam, para se fazer traduzir, em criar um assunto, ele se contenta com algumas harmonias de linhas e tonalidades tomadas a objetos quaisquer, sem se deter nesses objetos em si mesmos20, tal como um

    constitui um comentrio sutil e aprofundado. A modulao uma noo fundamental

    para Czanne (ver abaixo, nas opinies: No deveramos dizer

    modelar, deveramos dizer modular), o que

    implica uma gradao obtida por pequenos

    toques, por quantidades discretas, e no por uma

    mudana contnua de tom e cor: as aquarelas dos ltimos anos, com

    seus empilhamentos de manchas de cor

    distintas mas vizinhas, ilustram perfeitamente o

    princpio.

    17. Cf. a carta 1 a Bernard (In: DORAN, P. M. (Ed.), op. cit., p.

    27): Trate a natureza conforme o cilindro,

    a esfera, o cone, o todo disposto em

    perspectiva, de maneira que cada lado de um objeto, de um plano, se dirija a um ponto

    central. As linhas paralelas ao horizonte

    do a extenso, ou, a saber, uma

    seco da natureza, se voc prefere o Espetculo que o

    Pater omnipotens, oeterne Deus [Pai

    onipotente, Deus eterno] instala diante

    de nossos olhos. As linhas perpendiculares a esse horizonte do a

    profundidade.

    18. uma mancha dominante: a noo

    de dominante era fundamental para

    Seurat e seu crculo (cf. COQUIOT, Gustave.

    Seurat. Paris: Albin Michel, 1924, p. 232 e

    HOMER, William Innes. Seurat and the science of painting. Cambridge,

  • Emile Bernard Paul Czanne 25

    msico que, ornamentando um libreto com desdm, se satisfizesse em sobrepor sries de acordes cuja natureza refinada nos mergulhasse infalivelmente em um alm de arte inacessvel a colegas habilidosos. Czanne um mstico precisamente por esse desdm de todo assunto, pela ausncia de viso material, pelo gosto mais nobre e mais elevado que testemunham suas paisagens, naturezas mortas, retratos: o estilo. E a natureza mesma de seu estilo confirma o que eu dizia, em razo de uma qualidade de candor e graa toda giottesca, que mostra as coisas na essncia de sua beleza. Tome-se tal pintura do mestre, ela , em sua cincia e sua qualidade verdadeiramente superlativas, uma lio de interpretao sensvel e sentimental. Ao entrar em contato, no com nosso instinto grosseiro, vido de imitao, mas com a parte contemplativa de nosso ser, movida somente pela misteriosa influncia das harmonias difusas neste mundo, ela desperta o retorno das mais raras sensaes experimentadas ao divino modelo. Somente um mstico considera assim a beleza que reveste o mundo, antes de deixar-se aprisionar na materialidade desse mesmo mundo, isto , ele o nico a bem ver. O vulgo certamente os [sic] v de outra forma, donde a diferena e a inverso.

    Quanto mais o homem se afasta das mistagogias, mais certamente perde essa penetrao no campo do esplendor e do sentimento, mais se inclina para a realidade exterior. A arte, que fora a princpio a linguagem das aspiraes divinas, tornou-se, pouco a pouco, atravs dos sculos, igual a esse homem mesmo, factcia e cavilosa; ela no mais busca inserir em seu tecido uma expresso particular da alma ou do pensamento, no se apraz nem diante da beleza pura, mas se contenta com a imitao. Disso resulta a triste catstrofe fotogrfica que nos inflige diariamente a Escola de Belas-Artes e que obstrui a fundo nossa compreenso esttica. Por outro lado, as palavras vs humanidade, vitalidade, realidade, emprestadas ao vocabulrio de uma poltica insana, e repetidas larga por crticos patenteados, terminam por persuadir uma prognie animalizada de que a arte progride pela imitao. Esses preconceitos, reunidos a outros que se elevam por toda parte, seja do seio de uma escola oficial, seja dos cenculos de jovens vidos por pequenas glrias, perecero todos, miseravelmente, aniquilados com as frentes que os abrigam. preciso admitir sem rodeios que no que toca pintura a obstruo encontra-se bastante generalizada. A democracia crescente no ser tudo o indica a salvadora dos raros crebros que conservam em estufa, nesta poca hiemal, as flores de uma primavera possvel. Hbil em deformar, ela ter certamente muitos impostores e charlates para desviar a ateno para as deliquescncias que lhe so caras, deliquescncias sem charmes, anmicas, ignorantes e de uma barbrie assaz repugnante.

    MA: The MIT Press, 1964, passim). Mas pode ser que Czanne enuncie

    aqui simplesmente uma doutrina tradicional

    que recomenda, para certos tipos de pintura,

    uma composio organizada em torno de

    um ponto de interesse central, doutrina esta

    que talvez no seja til aplicar a seus quadros tardios. Ou ainda, mais

    provavelmente, pode ser uma maneira de definir

    sua lei de harmonia (sexta opinio, acima):

    ou seja, uma mancha de cor (e forma?)

    particular a base a partir da qual, por uma

    srie de variaes, o quadro se desenvolve. Dessa forma, a partir

    apenas das relaes de tons [...] aplicados com

    exatido, a harmonia se estabelece sozinha.

    Lawrence Gowing, em uma interpretao particular da lei de

    harmonia (op. cit., 1977, p. 58-59; op. cit., 1978,

    p. 87-88), cita uma passagem de Bernard

    (Souvenirs, op. cit., p. 59) que poderia apoiar essa

    explicao da mancha dominante. Mancha, palavra empregada de

    maneira significativa nesta passagem de

    Bernard, importante em si na terminologia

    de Czanne, e sua utilizao cobre uma grande parte de sua

    evoluo tcnica. Como outros, ele vira a Olympia

    de Manet e, segundo Vollard (que no o soube de fonte direta) chamara

    o quadro de uma bela mancha (op. cit., p. 34). Muitos pintores,

    diante da ausncia do modelado em claro-escuro e do carter

    plano que lembrava as

  • ARS Ano 7 N 14 26

    Assim, entre os pintores que so grandes, pode-se situar Paul Czanne como um mstico, em razo da lio de arte que nos d, em razo de ver as coisas no por elas mesmas, mas por sua relao direta com a pintura, isto , com a expresso concreta de sua beleza. Ele um contemplativo, ele observa esteticamente, no objetivamente; ele se exprime pela sensibilidade, isto , pela percepo instintiva e sentimen-tal das relaes e acordes. E uma vez que, dessa maneira, sua obra faz fronteira com a msica, podemos repetir irrefragavelmente que um mstico, este ltimo sendo o recurso supremo, o do cu. Toda arte que se musicaliza est no caminho de sua absoluta perfeio. Na linguagem, ela se torna poesia, na pintura, torna-se beleza.

    Esta palavra, beleza, pronunciada a respeito da obra de Paul Czanne requer explicaes. Eu gostaria que nesse caso ela fosse entendida assim: a expanso absoluta da arte a que se consagra. Certamente, em seus retratos, por exemplo, o mestre pintor pouco se preocupou em escolher um modelo. Ele trabalhou a partir da primeira pessoa de boa vontade que se encontrava junto a ele, sua mulher, seu filho e, com mais frequncia, gente do povo, um jardineiro ou uma leiteira, de preferncia a um dndi ou a um cultivado qualquer, que ele abomina por seus gostos corrompidos e sua falsidade mundana.

    No se trata mais aqui, fique claro, de buscar a beleza fora dos prprios meios da pintura; as linhas, os valores, os coloridos, a matria pictrica, o estilo, a apresentao, o carter. Estamos longe, certo, de uma beleza conveniente ou material, e a obra s ser bela para ns medida que possuirmos uma sensibilidade muito elevada, capaz de fazer-nos perder de vista a coisa representada para aprazermo-nos enquanto artistas [artistement]. preciso ver muito seu modelo, sentir com muita justeza, e ainda exprimir-se com distino e fora. O gosto o melhor juiz. Ele raro. A arte se dirige apenas a um nmero excessivamente restrito de indivduos21. So as palavras do prprio mestre, corroboradas por sua obra; elas exprimem suas preocupaes. O gosto o sentido especial (to pouco e mal cultivado, hlas!) ao qual, unicamente, ele se volta.

    O mestre se compraz em evocar a tradio; conhece o Louvre melhor que qualquer pintor, olhou mesmo em demasia, como diz, os velhos quadros. O que cr que se deve indagar aos antigos a maneira clssica e sria, deles, de organizarem logicamente sua obra. A natureza que intervm no trabalho do artista animar o que a razo deixaria mor-to; ele recomenda principalmente partir da Natureza.

    Por certo, cumpre ser terico para que se tenha posse de si mesmo e se leve a cabo a prpria obra; mas preciso ser terico das prprias

    imagens dpinal ou as estampas japonesas, fizeram comentrios semelhantes: assim

    Courbet: plano, no modelado, dir-se-ia

    uma dama de espadas de um baralho, saindo do banho (citado por

    Albert Wolff no Figaro de 1 de maio de 1833); e

    Daumier: Regressamos a Lancelote. O prprio

    Czanne pintou uma Mulher deitada,

    atualmente perdida (cf. Souvenirs, op. cit., p. 68

    e a nota 33 referente), que lembrava Manet pelo

    tratamento e pela cor e que, aparentemente,

    representava uma imagem dpinal no

    fundo. Certas cartas a Pissarro, datadas de

    25 de junho de 1874 e de 2 de julho de 1876,

    pareciam ainda indicar um interesse equvoco

    pela mancha plana que j o antpoda

    do modelado. Essa limitao da mancha

    era, porm, largamente reconhecida, de modo

    que Bracquemond (que participara, com Czanne, da primeira

    exposio impressionista de 1874) destaca, em

    seu tratado de 1885 (op. cit., p. 42), o fato de que quanto mais a mancha

    assume importncia em si mesma, mais o

    modelado desaparece. Czanne dir, todavia, no

    final da vida: Procuro [...] representar o

    aspecto cilndrico dos objetos (cf. RIVIRE, R. P.; SCHNERB, J. F. Latelier de Czanne.

    In: DORAN, P. M. (Ed.), op. cit., p. 88). E se queixa, antes disso,

    provavelmente em 1904, da falta de modelado ou de graduao nas

    imagens chinesas

  • Emile Bernard Paul Czanne 27

    sensaes, no apenas dos prprios meios. A sensao exige que os meios sejam constantemente transformados, recriados, a fim de exprimi-la em sua intensidade. No preciso, ento, tentar fazer com que a sensao penetre em um meio preestabelecido, mas pr o prprio gnio inventivo de expresses a servio da sensao. De um lado estaria a Escola de Belas-Artes, que reconduz tudo a um molde uniforme; de outro, h a renovao constante. Organizar suas sensaes, eis o primeiro preceito da doutrina de Czanne, doutrina no absolutamente sensualista, mas sensvel. O artista ganhar ento em lgica sem perder em expresso; poder ser imprevisto sem deixar de ser clssico pela Natureza.

    Bem considerada, essa doutrina parece a mais sadia, a melhor, a mais desconhecida; ela entra em oposio direta ao que os oficiais impuseram e a tudo o que os criadores de gneros (seja impressionismo, simbolismo, divisionismo etc.) sempre buscaram. Aqueles ofereciam mtodos rotineiros, estes, convenes cientficas ou pessoais; nenhum deles uma direo de conduta segura, que resguardasse o estudo aprofundado e o respeito pela Natureza. Claro, era bem cmodo encontrar receitas para se tornar algo mais que um pompier22; e a Escola de Belas-Artes est atualmente mais avanada nesse caminho que os mais revolucionrios pintores de outrora; mas nenhum de seus alunos jamais se deu conta de que s existe uma doutrina vlida da arte, aquela que diz ao pintor: Sinta a Natureza, organize suas percepes, exprima-se profundamente e com ordem, isto , classicamente.

    Em um momento em que estamos fartos de borradores de telas, de artesos sutis, desde o sr. Carrire23, que acha de bom tom comparar-se a Velzquez, at os impostores que pretendem criar uma arte nova, a lio de Paul Czanne surge como uma redeno possvel para a pintura francesa.

    Esse grande artista um humilde, ele compreendeu a ignorncia e a obstruo reservadas a seus contemporneos; fechou ento sua porta para mergulhar no absoluto. Unicamente possudo pelo amor de pintar, cuja tenacidade tirnica e benfazeja preenche sua vida, ele considera que o trabalho um prazer suficiente em si para no desejar aprovao ou elogio. Ele detesta o esprito literrio que fez tantas intruses malss na pintura e desfigurou-lhe a mais simples compreenso. Conhece apenas sua tela, sua paleta, suas tintas, e certo que no teria deixado jamais sair de seu ateli o mais nfimo estudo, se apreciadores inteligentes, mas raros, no os tivessem levado, quase contra sua vontade. Desde ento, o sr. Ambroise Vollard, o simptico especialista da rua Laffitte, satisfez nossos desejos de conhecer mais completamente a obra de Czanne, e ainda trabalha o melhor que pode nisso (ele prepara diligentemente um catlogo ilustrado da obra de Czanne24).

    de Gauguin (Souvenirs, op. cit., p. 62-63).

    Definitivamente, a modulao a inveno tcnica

    primordial de Czanne, reconciliando a mancha

    com o volume na imagem pintada (cf. a nota 16, acima). Para

    sua ltima opinio sobre essa 19. reconciliao (em um outro pintor

    Rafael e por meios um pouco diferentes),

    cf. DENIS, op. cit., p. 94. (O contexto geral

    e grande parte da documentao detalhada

    dessa discusso do termo mancha foram tirados de BADT, Kurt

    (The art of Czanne. Londres: Faber, 1965, p. 114-17), REWALD, John (The history of

    impressionism. Nova Iorque: Museum of

    Modern Art, 1961, p. 207-10) e BOIME, Alfred

    (The academy and French painting in the

    nineteenth century. Londres: Phaidon, 1971,

    p. 152).)

    19. O resto desta seo inteiramente composto de citaes

    tiradas das cartas 2 e 3 de Czanne a Bernard

    (cf. op. cit., p. 28).

    20. sem preocupar-se. Isso bem discutvel. Cf.

    GEFFROY, Gustave (La vie artistique... troisieme

    srie. Histoire de limpressionnisme. Paris:

    Dentu, 1894, p. 253): o ardor de sua curiosidade, de seu desejo de possuir

    as coisas que v e que admira; e a carta

    a Gasquet de 21 de julho de 1896: Venho

    recomendar-me ao sr. e a suas lembranas para que os grilhes

    que me prendem a este

  • ARS Ano 7 N 14 28

    O que quer que dela pense o mestre, demasiado severo consigo mesmo, ela domina toda a produo contempornea, impe-se pelo sabor [saveur] e originalidade de sua viso, pela beleza de sua matria, pela riqueza de seu colorido, pelo seu carter srio e durvel, pela sua amplido decorativa. Ela nos atrai por sua crena e sua doutrina sadia, ela nos persuade da evidente verdade que anuncia e, na degenerescncia atual, oferece-se a ns como um osis salutar. Ligada por sua refinada sensibilidade arte gtica, ela moderna, nova, francesa, genial. Distante dos pintores, dos mundanos, dos intrigantes e dos cabotinos de nosso miservel sculo, Czanne deixa que se aproxime de si to somente o menor nmero possvel de indivduos. A escola da vida foi-lhe bastante ingrata para faz-lo temer a intruso. O exemplo que nos d portanto duplo, de um homem mais do que de um mestre. Uma vida simples, regular, toda distribuda nas horas do dia para o trabalho, um olho incessantemente em viglia, um esprito sempre em contemplao, este Paul Czanne. Sua pintura franca, ingnua, honesta, precisa diz de seu gnio de artista; a existncia retirada das vaidades das pequenas glrias diz de sua bondade e humildade de homem. O que espera provar por sua obra que sincero e que trabalha para a melhor arte. Muitas glrias contemporneas, orgulhosas e estpidas, cairo quando a cincia se erguer; ento como cristo e artista ele assistir realizao destas palavras do Magnificat25: Os poderosos sero depostos e os humildes sero exaltados.

    (Escrito em Aix-en-Provence, maro de 1904)

    velho solo natal, to vibrante, to spero e reverberante de luz a

    ponto de fazer piscarem as plpebras e enfeitiar-

    se o receptculo das sensaes, no venham

    a se romper e afastar-me por assim dizer da terra

    em que senti, mesmo sem perceber.

    21. Extrado da carta 2 a Bernard, op. cit., p. 28.

    22. O termo pompier refere-se a uma vertente da pintura e da escultura

    que emergiu na Frana durante o sculo XIX, marcada pela adeso

    aos cnones e frmulas dos quais a Academia

    francesa de Belas Artes tornara-se, ento, um

    baluarte; a arte pompier caracteriza-se pelo

    virtuosismo com que restitui ou recombina

    estilos passados. Louis-Adolphe Bouguereau

    (1825-1905) e Alexandre Cabanel (1823-1889) so alguns expoentes dessa

    escola. [Nota dos editores].

    23. Eugne Carrire (1899-1906) pintou,

    no final de sua carreira, telas quase

    monocromticas, em tons quentes, nas quais

    as figuras parecem fluidas ou difusas, como se aureoladas de nvoa.

    Vollard atribui a Czanne esta reflexo trocista

    sobre Carrire (em um dia enevoado): Ele

    tem o tempo sonhado para entregar-se a

    suas orgias de cores! (VOLLARD, op. cit.,

    p. 118); ver tambm GASQUET, Joaquim

    (Latelier. In: DORAN, P. M. (Ed.), op. cit., p. 152).

    Emile Bernard (1864-1941) foi pintor, ilustrador, poeta e terico da arte. Antes de passar pela fase do impressionismo, do pontilhismo e do sintetismo, havia sido discpulo todavia rebelde do pintor Cormon. Em 1887 esteve muito prximo de Van Gogh; em seguida, entre 1887 e 1890, trabalhou em Pont-Aven junto a Gauguin, na formulao da esttica sintetista. Foi o artista mais amplamente representado na exposio do Caf Volpini, em 1889, na qual o pblico pde ver, pela primeira vez, uma mostra de certa envergadura da obra de Gauguin e seu crculo. Em Pont-Aven, em 1889-90, Bernard passou a defender um catolicismo mstico, e, nos anos seguintes, seu crescente fervor religioso foi de par com seu encaminhamento a uma arte idealista. [...] Passou a mostrar, cada vez mais, rejeio arte contempornea e a preconizar um retorno aos ideais da Renascena. De 1893 a 1904 passou a maior parte do tempo no Egito, fazendo, no perodo, algumas viagens Espanha e Itlia.

    Traduo de Julia Vidile.

  • Emile Bernard Paul Czanne 29

    24. As publicaes de Vollard no

    compreendem um catlogo exaustivo.

    Matisse fala favoravelmente

    de Vollard em sua entrevista com Jacques Guenne (1925) e o louva

    por haver mandado fotografar as telas de Czanne que detinha:

    Ambroise Vollard prestou a elas um

    [servio] maior, ao tomar a iniciativa de

    mandar fotografar as telas. Essa medida

    teve uma importncia considervel, pois,

    sem isso, no se teria deixado de terminar

    todos os Czanne, assim como se tinha o

    costume de acrescentar rvores a todas as telas

    de Corot (MATISSE, H. Ecrits et propos sur

    lart. Texto, notas e ndice estabelecidos por

    Dominique Fourcade. Paris: Hermann, 1972,

    p. 87).

    25. Do verbo magnificare, a palavra

    latina Magnificat aparece no cntico em louvor

    Virgem Maria, Magnificat anima mea Dominum

    (Minha alma magnifica o Senhor); o termo

    pode tambm designar o livro de oraes

    popularmente usado pelos fiis na liturgia

    das igrejas crists, no qual so reproduzidos os cnticos de louvor

    Virgem Maria. [Nota dos editores].

    Ao lado, Paul Czanne, Auto retrato com barrete. leo sobre tela, cerca de

    1898-1900. Museum of Fine Arts, Boston.