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P RÊMIO J ABUTI 2007 CATEGORIA B IOGRAFIA – 2º LUGAR 2ª edição REVISTA E ATUALIZADA RIO DE JANEIRO/SÃO PAULO 2017 Patrono da Educação Brasileira

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PRÊMIO JABUTI 2007 CATEGORIA BIOGRAFIA – 2º LUGAR

2ª ediçãorEvista E atualizada

rio dE JanEiro/são Paulo

2017

Patrono da Educação Brasileira

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Aos pais de Paulo,Joaquim Themístocles e Tudinha;e aos meus pais, Aluízio e Genove, educadores que ensinaram a Paulo as coisas fundamentais da vida, possibilitando-lhe que se fizesseo homem que foi.

A Paulo, com carinho e amor, a minha eterna paixão.

Nita Ana Maria Araújo Freire

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O meu muito obrigada a Alípio Casali, Becky H. Gon-çalves Milano, Claudius Ceccon, Cyro Lavieri Junior, Licínio C. Lima, Lula Ricardi, Ricardo Araújo Has-che, Tom Zimberoff e Vera Barreto, in memoriam, e de uma maneira especial a Jacques de Oliveira Pena, que de formas diferentes se empenharam, com carinho e cuidado, para que este livro se tornasse realidade.

Nita Ana Maria Araújo Freire

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Sumário

Nota da editora 15

ApresentaçãoPaulo Freire de forma particular e especial 17

por Jacques Pena

Prefácio à 1ª ediçãoEntre o íntimo e o histórico 21

por Alípio Casali e Vera Barreto

Prefácio à 2ª ediçãoUma biografia incontornável: Freire em seus textos e contextos 25

por Licínio C. Lima

IntroduçãoUm testemunho de amor e de verdade: a vida de Paulo Freire 31

por Ana Maria Araújo Freire“Como guardar a memória de alguém sem trair sua vida?” 32

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Parte I – O SEU MAIS AUTÊNTICO CONTEXTO DE ORIGEM

1. Infância e adolescência 41Sua primeira família 41Sua leitura da palavra 50Jaboatão: “Era como se estivesse morrendo um pouco. Hoje sei” 52Sua escolarização secundária: a importância do Colégio Oswaldo Cruz, do

Recife, na sua formação humanística 56Sua formação em nível superior: a Faculdade de Direito do Recife 63

2. As primeiras experiências profissionais e seu gosto em ser professor 67O professor de língua portuguesa, no Recife 67Sua práxis no SESI-PE 70Análise de Paulo sobre seu próprio trabalho no SESI-PE 75Algumas outras atividades pedagógicas importantes de Paulo Freire,

no Recife 76O professor universitário, na Universidade do Recife 86O técnico do Serviço de Extensão Cultural (SEC), da Universidade

do Recife 98

3. O educador revolucionário: II Congresso Nacional de Educação de Adultos 111Os relatórios pernambucanos 112O relatório preliminar do Tema III, de Pernambuco 114O relatório final do Tema III, de Pernambuco 116Análise crítica 121

4. O educador político dos movimentos socioeducacionais no Brasil 125O Movimento de Cultura Popular (MCP) 126A experiência de Angicos 136O Programa Nacional de Alfabetização (PNA) 143

5. O conflito ideológico brasileiro dos anos 1960 153

6. Prisão 165O inquérito da Universidade do Recife 170O inquérito policial militar no Quartel da 2ª Companhia de Guardas

do Recife 172O chamamento para um inquérito policial militar no Rio de Janeiro 174

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Parte II – O SEU CONTEXTO DE EMPRÉSTIMO

7. Exílio 179Bolívia 183Chile 184Estados Unidos 189Suíça 192África 198

8. O sonho da volta para o seu contexto de origem 207Entrevistas concedidas na Suíça antes da vinda ao Brasil 210A carta de Henfil ao general Geisel 220A luta pela “Anistia ampla, geral e irrestrita” 221

Parte III – O RETORNO AO SEU CONTEXTO DE ORIGEM

9. A volta para o Brasil 227Visitando São Paulo 228Visitando o Rio de Janeiro 231Visitando o Recife 232O retorno definitivo ao seu “contexto de origem” 233

10. O educador político: novamente na academia 235Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) 235Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) 240O Parecer de Rubem Alves 241Outras atividades acadêmicas 245A necessidade de desincompatibilização 247

11. O político educador 249Na Secretaria Municipal de Educação da cidade de

São Paulo (SME-SP) 249No Partido dos Trabalhadores (PT) 266Vice-presidente, ministro da Educação, senador 269No Instituto Cajamar (INCA) 273Na Unesco 276

Parte IV – O SEU FAZER TEÓRICO

12. O “Método Paulo Freire” de alfabetização da palavra e do mundo dentro da sua compreensão de educação 281Como se constituiu o Método 286A proposta ético-crítico-político-epistemológica 291Seus passos cognitivos 294

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13. As influências sobre sua vida e sua obra 299

14. A sua compreensão do ato de ler/escrever e o modo como escrevia 315

15. Sua obra teórica 325Algumas palavras sobre seus livros individuais 330Os livros falados: diálogos com outros autores 343Uma breve análise sobre sua literatura 345

16. Prefácios e outros papéis diversos 349

17. Correspondências importantes 369Cartas recebidas 369Cartas enviadas 382

18. Influência, repercussão e atualidade de sua obra e da sua práxis pelo mundo 4072016: pesquisas internacionais consagram o pensamento de

Paulo Freire 431

Parte V – O RECONHECIMENTO PÚBLICO NO BRASIL E NO MUNDO

19. Reconhecimentos públicos de governos e de diversas instituições do Brasil e do mundo a Paulo Freire 437Patrono da Educação Brasileira 437A anistia política concedida a Paulo Freire post mortem, em 2009 440Plataforma Freire 440Tendas Paulo Freire 440Homenagens ao homem e ao educador Paulo Freire 441Prêmios 445Homenagens diversas 446Estabelecimentos de ensino por unidade federativa com o nome

de Paulo Freire 446Estabelecimentos de ensino no exterior com o nome de Paulo Freire 447Diretórios e Centros Acadêmicos com o nome de Paulo Freire 447Teatros, Anfiteatros, Auditórios e Salas com o nome de Paulo Freire 447Emissora de televisão 449Revistas com o nome de Paulo Freire 449Praças, Avenidas, Ruas e Conjuntos Habitacionais com o nome de Paulo

Freire. 449Estação de Metrô, em São Paulo, com nome de Paulo Freire 449

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Associações Comunitárias com o nome de Paulo Freire 450Banco Comunitário Paulo Freire 450Bibliotecas com o nome de Paulo Freire 451Cátedras com o nome de Paulo Freire 451Centros de pesquisas, documentação, informação, divulgação e estudos

com o nome de Paulo Freire 452Bolsas de pesquisa de pós-graduação com o nome de Paulo Freire 453Monumentos, estátuas e pinturas 453Presidente honorário de instituições pelo mundo 455Letra de música popular brasileira 455Enredo de Escola de Samba do carnaval paulistano 455Medalhas, condecorações e prêmios com o nome de Paulo Freire 458

20. O educador para a paz 459Indicação para o Prêmio Príncipe de Astúrias 459Indicação para o Prêmio Nobel da Paz 462

21. Convites para lecionar em universidades pelo mundo 465Universidade de Cornell: Cátedra Andrew D. White 465Universidade de Loyola, em Nova Orleans 466Universidade de Delaware, Newark 466Seminário da União Teológica: Professor visitante, Cátedra Henry W.

Luce 467Universidade da Califórnia, Los Angeles 469Universdade de Girona: Cátedra Ferrater Mora de

Pensamento Contemporâneo 471Universidade de Harvard: Professor visitante, Cátedra Robert F.

Kennedy 472Universidade de Hamburgo: Cátedra Ernst Cassirer 475Universidade de Stanford: Cátedra Joaquim Nabuco 478Universidade de British Columbia 480

Parte VI – A GENTIDADE DE PAULO

22. O mais autêntico deste homem nordestino 483Sua vida com Elza 483Sua vida com Nita 489Sua recifencidade 499Suas virtudes, seus traços de gente, sua personalidade 503Sua fé religiosa e a Teologia da Libertação 531Sua saúde e seus limites físicos 535Seus últimos dias e sua morte 542

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Parte VII – BIBLIOGRAFIA

23. Bibliografia de Paulo Freire 565Livros em parceria ou coautoria 571Bibliografia citada 573

Índice onomástico 575

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Nota da editora

Esta edição de Paulo Freire: uma história de vida foi baseada na primeira edi-ção, publicada pela Villa das Letras em 2005, e faz parte de um ciclo de home-nagens ao Patrono da Educação Brasileira, no ano em que se completam duas décadas de sua morte.

Como o educador afirmou, “Não há vida sem correção, sem retifica-ção.” Portanto, ao texto original revisto e atualizado pela autora Ana Maria Araújo Freire, acrescentou-se um encarte que reúne manuscritos de poemas de Paulo Freire, além de ilustrações relacionadas ao trabalho do educador.

Como um desdobramento do livro, a leitora e o leitor poderão acessar no endereço <http://www.record.com.br/paulofreire> informações mais detalhadas, como fotos, documentos, cartas, discursos, homenagens, sobre a vida e o legado de Paulo Freire.

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Apresentação

Jacques Pena

Paulo Freire de forma particular e especial

A vida e a obra de Paulo Freire estão retratadas em dezenas de livros nas mais variadas línguas em todos os continentes, como demonstração do profun-do reconhecimento internacional de sua importância para a educação e para o pensamento contemporâneo. Mas este é um livro particular sobre a sua obra, e especial sobre sua vida. Ainda que seja difícil e arriscado, talvez impossível, pretender falar de sua vida e de sua obra, como coisas distintas, visto que sua obra foi, sobretudo, o resultado de seu compromisso de vida como educador.

Particular como publicação, considerando que passados quase dez anos de sua morte, foi escrito por Ana Maria Araújo Freire, que com ele viveu nos últimos dez anos de vida, como companheira de vida e obra. Composto como um mosaico, pela sua amplitude, de observações e análises que amadurece-ram nesses anos, período em que também amadureceu e ampliou-se o reco-nhecimento à contribuição intelectual de Paulo Freire.

Conhecedora profunda de sua obra, pois com ele partilhou como educa-dora em inúmeras oportunidades mundo afora dos debates e desafios sobre a educação, tendo trabalhado na publicação post-mortem de alguns de seus últi-mos escritos, a autora, além de trazer novas visões e contribuições ao debate e à compreensão da obra freireana, acrescenta um componente especial.

Especial é o que teremos nestas páginas de contribuição de Ana Maria Araújo Freire para conhecermos um pouco mais da vida de Paulo Freire.

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ida Além de compartilhar os sonhos de construir um mundo mais justo e huma-

no, de buscar realizá-los juntos no compromisso de vida comum com a edu-cação, a autora teve o privilégio de compartilhar o cotidiano de vida de Freire. Eles que tiveram vários encontros e reencontros pela vida. A educação, de variadas formas, lhes aproximou na vida desde Recife. É a paixão comum pela educação que inúmeras vezes lhes faz reencontrar os caminhos e lhes constrói o caminho de uma paixão que para Paulo será a última. E essa condi-ção de convivência cotidiana e paixão comum pela educação, vivendo um amor de maturidade, que nas palavras da autora “ao carinho, à amizade e a um mútuo fascínio de longa data sentido somavam-se agora a paixão e o amor”, que permite a Nita Freire uma condição singular de apresentar-nos a vida de Paulo Freire de forma muito especial.

Assim como Ana Maria Freire e Paulo Freire tiveram seus caminhos cru-zados pela vida e pelas paixões da vida, creio que nos últimos trinta anos a vida levou-me e trouxe-me a Paulo Freire. Recordo-me que, na década de 1970, minha geração, ainda na universidade, nas lutas por liberdades demo-cráticas, inspirava-se nos textos de Paulo Freire e descobria valores e adotava ideias já sistematizadas em Educação como prática da liberdade e Pedagogia do oprimido.

A atmosfera política produzida pelas mobilizações operárias e estudantis dos anos de 1976 e 1977, rompendo os limites da ditadura militar, criava um estado de espírito em todo o país, em particular na juventude, de que era pos-sível e necessário sonhar e lutar pelos sonhos. Então, ler os livros de Paulo Freire e suas entrevistas naquela época, como a do Pasquim, aumentava a identificação com o pensamento dos nossos intelectuais exilados e causava um orgulho do que produziam e de ser brasileiro junto com aqueles brasilei-ros. Seus escritos revigoravam nossas forças para lutar pela transformação do Brasil e por uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita.

No momento em que participamos da decisão de homenagear o Professor Paulo Freire na edição do Programa Memória, como presidente da Fundação Banco do Brasil, mais uma vez tive o privilégio e a oportunidade de conviver de forma particular com a história, a vida e a obra deste que nos orgulha de ser brasileiro. Nessas circunstâncias, desenvolvemos contatos com diversos fa-miliares e em particular com sua viúva, Ana Maria Araújo Freire, surgindo assim a oportunidade de apresentarmos para os milhares de admiradores de Paulo Freire mais esta publicação, para refletir sobre um dos maiores brasi-leiros do século XX, a partir de uma contribuição particular e especial de quem com ele viveu momentos de paixão e amor pela vida e pela educação.

Apresentar uma publicação que valoriza e mantém vivos os valores da vida e da obra de Paulo Freire deve causar profunda satisfação e prazer para

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idaqualquer brasileiro que viveu a segunda metade do século XX e conhece a

importância desse personagem. Para mim, que compartilho de suas ideias e propostas, na educação e na política, inclusive fazendo delas projeto de vida, é ainda maior essa satisfação.

Tenho a certeza de que este livro contribuirá para reafirmar Paulo Freire como um dos maiores educadores do Brasil e do Mundo, homem comprome-tido com causas e com a luta do povo, humanista e homem de esquerda que assume e empunha suas bandeiras.

Boa leitura!

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Introdução

Nita Ana Maria Araújo Freire

Um testemunho de amor e de verdade: a vida de Paulo Freire

Escrever a biografia de Paulo Freire após sua morte tem para mim um significado muito profundo. De dor, de muita dor ao rememorar os 60 anos de contato que tivemos nas diversas fases de nossas vidas, mas também de uma satisfação muito especial que ameniza essa dor. A satisfação de como viúva e conhecedora de quem foi verdadeiramente Paulo Freire dar o meu Testemu-nho para perpetuá-lo na história dos homens de bem do nosso país. Seja para os que o conheceram ou com ele trabalharam pessoalmente. Seja ainda para os que sequer o conheceram, mesmo que seus conterrâneos e contemporâneos. Escrevi esta Biografia, acima de tudo, para o apresentar e perenizar para as gerações mais jovens e as que de nós todos e todas virão, no futuro.

Vou, então, através de minhas lembranças dos tempos vividos paralela-mente, mas, sobretudo os vividos com ele, juntando a essas as suas envolven-tes histórias contadas a mim nas nossas conversas; com a extensa documenta-ção sobre fatos de sua vida, de escritos seus e de diversas pessoas que se relacionaram de alguma maneira com e em torno dele, escrever esta história de vida. Um exemplo de vida. Paulo Freire: uma história de vida.

Participei como pessoa privilegiada da vida de Paulo em várias e diferen-tes instâncias que o relacionamento humano pode possibilitar. Mudamos no decorrer dos anos a natureza de nossas relações, como ele gostava de dizer. De amiga à aluna. De aluna à mulher-amante. De mulher à colaboradora e per-petuadora de sua vida e obra.

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ida Vivi cada um desses momentos com respeito, admiração e fascinação por

ele. Agora que ele partiu ficando, entretanto, para sempre em mim, tomo esta tarefa de escrever sobre sua vida, ao lado da outra tarefa, a socialização de parte de sua obra,1 como fundamental para nós dois. A essas tarefas estou me entregando com todo o empenho, cuidado e seriedade, quase tanto quanto me dediquei a ele mesmo quando dividimos o cotidiano da vida. Espero cumprir mais este dever e este direito tal como ele desejava que eu o fizesse: reconsti-tuir com amor, com verdade histórica e com a proximidade de mulher, estu-diosa e sucessora de sua obra, detalhadamente, a sua vida e os seus feitos, através desta biografia.

“Como guardar a memória de alguém sem trair sua vida?”2

Guardar os tempos vividos com Paulo na minha memória, no córtex de meu cérebro, no meu corpo consciente, foi fácil. É fácil: foram tempos intensa-mente vividos, profundamente sentidos. Apaixonados. Impossíveis de serem esquecidos. Escrever sobre os tempos de nossa relação harmoniosa e feliz é prazeroso. É fácil, repito.

Perenizar sua figura de homem público, o seu legado de educador, de seus feitos por mais de 50 anos de luta e trabalhos, de esforços e dedicação, corro – como correm todos e todas que tomam para si esse dever de perenizar homens ou mulheres exemplares – o risco de não ser fiel nem ao “retrato” nem à “moldura” de quem se propõe biografar. Mais ainda quando o “retra-tado” foi e continua sendo objeto de admiração, fascinação e amor por parte de quem o retrata, por mim.

Há, sempre, em qualquer caso, o perigo de arbítrio quando escrevemos sobre alguém, porque a total imparcialidade de quem escreve não existe. Como autora desta Biografia eu não desejo e nem quero a imparcialidade da falsa neutralidade: decidirei o que dizer, como dizer, onde dizer, por que di-zer, por que não dizer consciente de que “aquele que é lembrado nem tem chance de escolher a moldura nem o retrato emoldurado”.3

Sinto-me livre de escolher a “moldura” e o “retrato” de Paulo porque o conheci, realmente. Conheci o seu corpo e sua alma, seus desejos e vontades, suas aspirações e necessidades, sua obra e práxis, sua inteligência e gentidade.

1 Fui nomeada por Paulo em documento de estatura jurídico-legal – Testamento – sua su-cessora legal/intelectual no que se refere à organização de todas as suas obras inéditas, além de ser a responsável pelos escritos dele a partir de nosso casamento, em 27/03/1988.

2 Jurandir Freire Costa, “Os que vencem após a morte” (texto sobre uma amiga psicanalista recém-falecida). Folha de S.Paulo, de 22 de setembro de 2002, Caderno MAIS, p. 9.

3 Jurandir Freire Costa, idem, p. 9.

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idaAssim, me considero apta a escrever sua biografia “sem trair sua vida”.

Com a certeza de que não estou negando-lhe a chance de escolher a moldura e seu retrato emoldurado. Que estou dando o meu testemunho de amor e de verdade sobre a vida de Paulo Freire.

Algumas vezes Paulo me disse, insinuando, porque jamais pediu a qual-quer pessoa uma “distinção especial”4 para ele:

“Sei que vais escrever sobre minha vida, tu sabes muito sobre ela não só pelo tempo que nos conhecemos e pelas diferentes naturezas das relações que mantivemos, mas, sobretudo, por tua capacidade de historiadora, de saberes observar e dizeres o que eu venho sendo enquanto homem e militante político na educação.”

Os leitores e leitoras deste livro já devem ter percebido que não escreverei uma Biografia desencarnada, “angelicalizada” ou caricata de meu marido. Escreverei uma história de vida, a de Paulo Freire, tanto a que ele viveu antes de nos casarmos e a que vivemos juntos como a que venho presenciando e participando sobre ele, sem ele – com os sentimentos e as emoções, sem per-der, entretanto, a capacidade do discernimento da razão pautada na transpa-rência lógico-pedagógica e no compromisso ético-político, que continua a sua história de vida.

Tomarei esse caminho claramente consciente porque tenho certeza de que me empenharei em dizer tudo aquilo o que eu sei sobre Paulo, que o engran-dece; tudo o que lhe faça justiça, tudo o que é verdadeiro sobre ele, e, tudo sobre o que meu marido gostava e se orgulhava de ter feito e/ou pensado e dito. Assim, vou dizer, intencionalmente, tudo que ele gostaria que eu disses-se, tudo que me está sendo possível dizer de sua vida. Registrar num discurso a sua vida sem me furtar, portanto do que vi, observei, estudei e vivi junto com ou sem ele porque fui protagonista e testemunha privilegiada de sua vida.

Portanto, escreverei este texto encharcado de minha paixão por ele como homem companheiro e amigo, como cidadão, como educador, mesmo por-que não haveria motivo de negar os meus sentimentos por ele. Estarei cuidan-do todo o tempo com a verdade para que a minha amorosidade subjetiva não mate a objetividade da minha consciência crítica acerca de quem foi, de quem continua sendo Paulo Freire.

Numa coisa os leitores e leitoras devem acreditar: procurei nessa busca do “retrato” de Paulo e da “moldura” que o envolveu, o mais autêntico que ha-bitou nesse extraordinário homem do Recife, do nordeste brasileiro. Sem in-

4 Paulo jamais pediu, sugeriu ou exortou qualquer pessoa ou instituição para que o homena-geasse. O enorme rol de ruas, escolas, títulos acadêmicos do mais alto grau, ou outras ins-tituições que o têm como patrono jamais foi iniciativa que partiu dele. Qualquer pessoa que o conheceu, minimamente, sabe que esse era o seu modo humilde de ser, o seu com-portamento baseado na ética autêntica.

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ida verdades, sem ambiguidades, sem engodos. 5 Com verdade e lealdade aos fa-

tos e a Paulo. Falarei de suas tramas6 no mundo, com o mundo e pela Vida, em seu sentido mais amplo, sem pretender a “neutralidade”, pois essa é impossí-vel, não existe, sabemos.

Se Paulo não falou por mim, não precisou dizer o que eu pensava ou tinha feito, enquanto fomos casados, porque ele sabia me respeitar e também por-que sabia que eu tinha minha voz própria, pois já a exercia ao seu lado, agora, por um “acaso do destino”, por uma fatalidade que não queria e não esperava – sempre pensei que morreríamos juntos numa queda de algum avião em al-guma parte do mundo numa dessas inúmeras viagens que fazíamos –, sou eu quem falo sobre ele, que tinha o pleno domínio da palavra e de si. Sobre o educador que sabia o que queria e precisava dizer e sabia como dizer. Entre-tanto, a minha voz não fica embargada, amedrontada ou inibida fazendo comparações. Direi o que posso e sei e como posso e sei dizer.

Devo confessar que escrever a vida e obra de Paulo tem uma outra dimen-são, a de dificuldade de acesso a tudo que ele fez e escreveu ou dele se disse e escreveu. Difícil porque Paulo foi pródigo em produzir e magnânimo em dis-tribuir os seus trabalhos e praticar sua práxis transformadora. Assim, reco-lhê-los não vem sendo tarefa fácil, mesmo que venha recebendo algum mate-rial, cartas, fotografias, documentos e outros escritos de pessoas que entendem que para perpetuá-lo como um agente de transformação da sociedade é preci-so conhecê-lo melhor divulgando a sua obra. Difícil, não. Impossível reco-lher tudo o que ele fez e disse e mais ainda o que se faz em torno de suas ideias e práxis diante da repercussão sempre crescente do que ele disse e fez nos seus 75 anos de vida.

A influência de Paulo na história dificilmente se completará. Vem se completando dinamicamente a cada ação-pensamento a partir do que ele dis-

5 Gostaria de registrar que não é tão pouco comum, infelizmente, mesmo entre intelectuais, algumas dessas posturas. O facsimile de uma carta de “próprio punho”, atribuída a Paulo, que, na verdade, foi escrita por alguém que não meu marido, em linguagem não brasileira, com conteúdo cheio de ingenuidades, com letra de menina criança, utilizando folhas de papel pautado, dizendo coisas que Paulo jamais diria nem escreveria nem disse, foi publi-cada por revista ligada a uma Universidade europeia. Nela também podemos ler que Pau-lo se asilou na Embaixada da Suécia, em 1973, na ocasião do Golpe de Pinochet contra o Chile, quando Paulo já estava em Genebra há mais de 3 anos, depois de quase 1 ano nos EUA. Na verdade, Paulo se asilou na Embaixada da Bolívia, no Brasil, em 1964. Ainda nessa Revista podemos ler sobre outros fatos afirmados, absolutamente infundados. Con-ferir na Revista Educação Sociedade & Culturas, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, n. 661, nas p. 5, 90, 92/93, 93, 175 e 177, de outu-bro de 1998, Porto: Edições Afrontamento.

6 Sobre esta categoria usada por Paulo consultar o interessante livro de Danilo R. Streck, Pedagogia no encontro de tempos: ensaios inspirados em Paulo Freire, sobretudo o ensaio “Pedagogia no encontro de tempos: a trama como metáfora para a educação”, p. 13 a 30.

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idase e fez; a partir do que se faça, se pense e se divulgue sobre seu ser no e com o

mundo; a cada nova práxis educativa progressista que se implante e se realize, não só no campo da educação popular e na educação de adultos, mas, no da educação no sentido mais amplo e em muitos outros campos do saber.

O que eu estou dizendo é que a interferência direta ou indireta de Paulo no mundo certamente não se completará jamais – ou se “completará” quando os sonhos possíveis, os “inéditos viáveis”,7 as utopias forem práxis reais e concretas –, pois, sua influência vem tendo cada dia mais ramificações numa progressão geométrica diretamente proporcional à busca que fazem às suas reflexões. Através das mais diversas áreas do conhecimento – da antropologia à educação ambiental; das ciências físicas, biológicas ou exatas às ciências po-líticas; das religiões à filosofia; da ética à estética; da museologia à educação musical; das práticas da medicina intuitiva e primitiva à medicina popular ou tradicional-científica etc.Paulo tem sempre alguma coisa a dizer para as nos-sas reflexões diante das necessidades sociais cada vez mais complexificadas no mundo tecnológico atual.

Em outras palavras, não há dúvidas, portanto, de que Paulo tem e terá sempre um papel de destaque na história das ideias, tal a profundidade e abrangência de seu pensamento, enquanto educador da consciência ético--político-crítica, mesmo que o mundo transforme os sonhos, as atuais utopias, em práticas da vida cotidiana. Neste caso, certamente, ele será estudado e lembrado como um dos pensadores que nos levou à possibilidade da concre-tização das utopias por milênios sonhadas por milhões de seres humanos.

Paulo também será sempre conhecido por sua gentidade amorosa. Como um educador crítico que amou apaixonadamente os homens e mulheres e a esses e essas esteve a serviço, dedicando toda a sua vida através de sua propos-ta de educação dialógica, questionadora, esperançosa, denunciadora e anun-ciadora, problematizadora e libertadora, portanto nascida e embrenhada na amorosidade. Paulo vai ser sempre lembrado como o homem que ao amar tão intensamente os outros e as outras estabeleceu uma nova ética, a ética da vida através de sua compreensão de educação tendo sido por isso chamado pelo filósofo Enrique Dussel como o “pedagogo da consciência ético-crítica”.8

7 Escrevi alguns trabalhos sobre esta categoria de Paulo. Ver os já publicados em Pedagogia da esperança, nota n. 1; e, em “Utopia e democracia: os inéditos-viáveis na educação ci-dadã”, p. 13-21, in Utopia e democracia na educação cidadã, organizado por José Clovis de Azevedo e outros, Porto Alegre: Ed.UFRGS/Secretaria Municipal de Educação, 2000.

8 Enrique Dussel. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 431.

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ida Quando, nos primeiros dias de abril de 1997, Paulo foi entrevistado9 por

Edney Silvestre, em Nova York, poucos dias antes de sua morte, ele nos pre-senteou com uma surpreendente resposta “molhada” de sua humildade e amorosidade, que, certamente, não por coincidência, o autor quis encerrar essa entrevista e o próprio livro que publicou, posteriormente:

– Professor, como o senhor quer ser conhecido?Paulo respondeu rindo, sem titubear:– Esta é ótima. Esta é ótima. Essa é uma pergunta muito gostosa. Eu até vou

aprender a fazer esta pergunta a outras pessoas. Sabe que eu nunca tinha pensado nisso? Mas agora que você me desafia, talvez a minha resposta seja um pouco humilde. Eu gostaria de ser lembrado como um sujeito que amou profundamen-te o mundo e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida.

Nos mais de 75 anos de vida certamente o sentimento que Paulo mais viveu foi esse: o amor. Recebeu o dom da amorosidade e foi construindo o seu existenciar-se em torno do amar os outros e as outras e oferecer-se ao amor na sua mais genuína autenticidade. Lutou toda a sua vida para construir “um mundo onde amar seja possível”. Essa foi, certamente, a sua virtude maior e o princípio fundante de sua vida e de sua obra.

Paulo defendeu sempre a vida, a vida para ser vivida por todos e todas com dignidade, com respeito. Assim, entregou a sua própria vida “aos esfar-rapados do mundo”,10 aos/às explorados/as e oprimidos/as. Com tolerância, generosidade e compromisso. Com amor. Sobretudo com o amor.

Assim, diante da complexidade e profundidade que esta tarefa deve, ne-cessariamente, abarcar, escrever esta Biografia não será fácil diante do enorme número de aspectos aos quais pretendo e necessito abordar da vida/obra de Paulo, repito. O que me acalenta é que os leitores e leitoras de Paulo, os quais os tomo de empréstimo, encontrarão informações as mais diversas, extenua-damente procuradas e seriamente estudadas por mim. São dados de sua vida; fotografias; citações, transcrições e ou fac-símile de documentos, títulos, pro-cessos jurídicos, ou de cartas e textos de Paulo ou a ele dirigidos; narração de vivências de suas emoções e sentimentos decorrentes de seu trabalho e das relações que estabeleceu com diferentes pessoas pelo mundo; sua compreen-

9 Entrevista concedida a pedido de Jorge Pontual a Edney Silvestre para a Rede Globo de Televisão, do Brasil, em Nova York. Soube por amigos que no dia 2 de maio de 1997 essa matéria foi repetida inúmeras vezes por este canal de TV, como uma homenagem a Paulo. Essa entrevista completa pode ser lida no livro organizado por mim: Paulo Freire, Pedago-gia da tolerância, transcrita do livro de Edney Silvestre, Contestadores, São Paulo: Francis, 2003, p. 329-342.

10 Parte da dedicatória da Pedagogia do oprimido.

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idasão de educação e leitura de mundo amalgamada por mim com a intenção de

dar unidade a esta profusão de conteúdos, pensamentos, saberes e sentires dele e meus, e, de outros e outras.11

Ler o mundo nos espaços/tempos de cada um dentro de nós, de cada um de nós em relação com as nossas sociedades, como Paulo nos ensinou, conti-nuará a ser a tarefa dos que querem construir um mundo mais justo, mais bonito e verdadeiramente democrático, seu sonho maior. Esta utopia não foi encerrada com sua morte, enfatizo, devemos ter isso bem claro. Os eventos, as instituições, sua obra, muitas pessoas que nos dias de hoje o recriam e que se espalham cada dia mais pelo planeta Terra, podem levar seus sonhos utó-picos a rincões distantes, a gentes diferentes. Conhecê-lo melhor é funda-mental para reinventá-lo, como ele tanto desejava porque sempre teve a pre-ocupação de não ter seguidores ou discípulos12, mas recriadores, sujeitos curiosos que possam dizer coisas sobre as coisas que ele disse e fazer coisas sobre as coisas que ele fez, renovando-o, atualizando-o, reinventando-o his-tórica, política e epistemologicamente, com seriedade ética. Sobretudo com seriedade ética, o perpetuar.

Convoco-os todos e todas a fazerem comigo o percurso da vida de Paulo Freire, sem a prioris preconceituosos dos intelectualismos da neutralidade científica positivista, pois, esta “moldura” não se enquadra no “retrato” de Paulo. Nem na minha.

Convoco-os a conhecerem ou re-conhecerem o Paulo “molhado” pelo amor e pela crença e respeito a todos os seres. Aquele que “[...] gostaria de ser lembrado como um sujeito que amou profundamente o mundo e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida”.

11 Assumo também a responsabilidade dos inúmeros documentos e cartas traduzidos do in-glês, do francês e do espanhol, muitos deles passando pelo crivo do meu professor e amigo Cyro Lavieri Junior.

12 Conferir em Pedagogia da esperança suas próprias palavras nas quais Paulo alerta seus (suas) leitores(as) para este problema: “Não posso ser responsabilizado, devo dizer, pelo que se diga ou se faça em meu nome, contrariamente ao que faço e ao que digo; não vale afirmar, como certa vez, alguém, com raiva o fez: ‘Você pode não ter dito isto, mas pessoas que se dizem discípulas suas disseram’” [grifos meus].

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ParteI

O seu mais autêntico contexto de origem

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caPítulo1Infância e adolescência

Paulo Reglus Neves Freire nasceu na Estrada do Encanamento, 724, no bairro de Casa Amarela, no Recife (PE), às 9 horas da manhã do dia 19 de setembro de 1921, filho de Joaquim Themístocles Freire e Edeltrudes Neves Freire. Morreu na UTI do Hospital Albert Einstein, na cidade de São Paulo (SP), às 6h30, do dia 2 de maio de 1997, de “enfarte agudo do miocárdio, in-suficiência coronariana e hipertensão arterial sistêmica”, segundo o laudo médico assinado pela Dra. Maristela Camargo Monachini.

Sua primeira família

O pai de Paulo, Joaquim Themístocles Freire, foi oficial da Polícia Mili-tar de Pernambuco,1 e era filho de Ceciliano Demétrio Freire e de Maria Aní-sia Freire. A mãe de Paulo, Edeltrudes Neves Freire (Dona Tudinha),2 de prendas domésticas, era filha de José Xavier Barreto das Neves e Adozinda Flores Neves.3

1 Num escrito dirigido ao seu pai, Ceciliano Demétrio Freire, o avô de Paulo, datado de 2 de novembro de 1909, Joaquim Themístocles se identifica como “segundo-sargento”, poste-riormente foi tenente e capitão.

2 Dados obtidos quando de minha pesquisa no Cartório de Registro Civil do 12º Distrito Judicial da Capital, Recife, em 11 de novembro de 2004.

3 A carta de pedido de casamento de Edeltrudes por Joaquim Themístocles Freire é datada de 14/5/1910:

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ida Joaquim Themístocles Freire nas-

ceu em Natal, no Rio Grande do Norte, em 31 de dezembro de 1879, e faleceu aos 54 anos de idade, em Jaboatão, Per-nambuco, no dia 31 de outubro de 1934. Dona Tudinha nasceu no Recife, Per-nambuco, em 28 de março de 1892, e faleceu em Campos, no Estado do Rio de Janeiro, na casa da filha Stella, em 8 de novembro de 1977. “Preso” no exí-lio, sem passaporte, Paulo não obteve permissão de vir vê-la antes de sua mor-te, quando já estava muito debilitada pelos seus sofridos 85 anos de idade.

Paulo foi o quarto e último filho do casal. Na sua literatura, falou algumas vezes e sempre com afeto dos seus irmãos, Armando, Stella e Temístocles. Foram irmãos-companheiros, não só nos tempos de infância no Recife, mas, sobretudo, nos momentos mais duros da pobreza vivida em Jaboatão, que, aliás, sedimentou uma grande amizade entre os irmãos, que eles nutriram en-tre si por todas as suas vidas.

“Ilmo. Sr. Neves. Saudações. Talvez que estas linhas que neste momento deliberei-me traçar vão incomodar-vos e aba-

lar mesmo a permanência feliz e despreocupada de vossa alma, mas assim julguei necessá-rio fazer.

Um dia Sr. um acaso feliz (eu o creio) fez-me conhecer uma moça por quem, desde então, senti-me consideravelmente atraído pelo mais sincero e santo amor. Essa criatura é D. Edeltrudes, uma das diletas filhas de V.S. que, como disse, tão bem soube arrebatar-me o coração e por quem tive a honra e a felicidade de ser correspondido neste sentimento.

Portanto, Sr. é este exclusivamente o assunto de minha humilhíssima [sic] carta, foi isto que convidou-me a falar-vos, foi absolutamente impelido por este sentimento eternamen-te grande e infinitamente sincero que inspirou-me a vossa digna filha, que tomei a grandís-sima liberdade, de cientificar-vos das minhas intenções. Amo-a, eis tudo.

Estou certo que a nossa união, um dia, trará eternamente a minha felicidade. Por conse-quência resolvi em não permanecer por mais tempo em silêncio e sem que mesmo pense na resposta que tenhais a dar-me, venho pedir-vos a sua mão para minha noiva. Reconheço mais que todos, que não me acho em condições de casar-me agora; porém não deixo de reconhecer que estou em condições de dar o nome de noiva à mulher que amo, pois assim, livrá-la-ei, ao menos de censuras e a mim também das mesmas. Confiamos, pois, nos belos dotes que crescem e iluminam o vosso espírito, espero que aprovará o meu procedimento, ainda mesmo que nos sejam negados todos os direitos de que gozem os que procedem como venho de fazer e são atendidos.

Com estima e consideração. Subescrevo-me o vosso [ilegível] J.Themístocles Freire”

I Dona Tudinha, mãe de Paulo.

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idaArmando, pouco afeito aos estudos, precisou abandoná-los muito cedo

para começar a trabalhar como funcionário público para ajudar a prover a mãe viúva aos 42 anos de idade4 e seus três irmãos. Foi casado com Sílvia e morreu pouco depois de Paulo ter voltado do exílio. O casal teve oito filhos.

Stella fez a Escola Normal, tendo sido professora primária por pouco tempo, pois se casou com Bruno e foram morar em Campos (RJ), de onde ele partiu no tempo da Segunda Guerra Mundial para servir como soldado no Recife. O casal teve sete filhos.

Temístocles, a quem Paulo devotou a mais alta estima de irmão,5 já muito doente quando Paulo faleceu, perdeu a vitalidade e o gosto pela vida, e dois anos depois, foi, em 27 de setembro de 1999, como sempre dizia querer ir des-de o dia 2 de maio de 1997, ao encontro de seu querido irmão Paulo. Foi o ir-mão-companheiro de dores e travessu-ras da infância. Quando Paulo e Elza se casaram, alugaram uma casa com ele e sua mulher Renilda – então também recém-casados – e viveram juntos por alguns anos. Temístocles reformou-se como sargento do Exército logo depois do golpe de Estado de 1964, em solida-riedade a Paulo: não podia se conceber dentro de uma organização que tratava seu irmão como um ser malvado, ateu, nazista e comunista. Temístocles e Renilda tiveram oito filhos.

Nas mais diferentes circunstâncias e momentos de sua vida, Paulo lem-brava com emoção desse seu irmão: “Eu usava a amenidade das sombras para estudar, brincar, conversar com meu irmão Temístocles sobre nós mesmos, nosso amanhã, sobre a saudade de nosso pai falecido ou então para curtir, mergulhado em mim mesmo a falta da namorada que partira” (À sombra des-ta mangueira).6

4 Sobre a viuvez de sua mãe, consulte-se também o livro de minha autoria Nita e Paulo, crônicas de amor; e em Nós dois.

5 Testemunhos sobre essa relação também podem ser conferidos em diversas passagens de Pedagogia da esperança e Cartas a Cristina, ambos de Paulo Freire.

6 As obras de Paulo Freire citadas apenas pelos títulos encontram-se listadas nas referências bibliográficas do autor.

I Sr. Themístocles, pai de Paulo

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ida A primeira família de Paulo in-

cluía também “tia Esther”, irmã de sua mãe, que morou por quase todo o tempo da infância e juventude dele em casa vizinha à sua. Paulo falava muito também do marido de sua tia, o “tio Monteiro”, que foi jornalista de oposição nos anos 1920, com quem ele teria iniciado o seu primei-ro “curso de realidade brasileira” ouvindo-o conversar com seu pai. Ele chegou a ser prefeito de Belo Jar-dim, no agreste pernambucano, após a ascensão de Vargas, onde Paulo foi muitas vezes passar férias. Morreu de tuberculose em 1935, em razão das sucessivas prisões em que esteve retido durante o governo pernambu-cano autoritário de Dantas Barreto. Assim, Adozinda (Dosa) e João Monteiro, filhos desse casal, foram

primos muito próximos, “quase irmãos”, pelos quais Paulo teve enorme des-velo e amizade. Dona Esther criou, anos depois, uma menina chamada Myrian, que, adulta, militante política, foi morta pelo regime militar,7 por quem Paulo também teve um enorme bem querer.

O tio Rodovalho foi o padrinho de batismo de Paulo. Como comerciante bem-sucedido no Rio de Janeiro, esse tio tornara-se o protetor financeiro da família. Com a queda da Bolsa de Nova York, em 1929, a família precisou hipotecar a casa na qual vivia no Recife; e tendo-a perdida por não ter podido saldar a dívida, a família resolveu mudar-se para Jaboatão. Tio Rodovalho morreu em São Paulo, destituído de quase tudo, menos de sua imensa gene-rosidade e capacidade de amar.

O tio Lutgardes,8 também irmão da mãe de Paulo, viveu com a sua famí-lia – Natércia, sua esposa, e os filhos Leda, Stênio e Naná – no Rio de Janei-ro. Por todos eles Paulo teve uma enorme amizade que se consolidou quan-do, a serviço do SESI-PE, vinha constantemente em viagem ao então Distrito Federal.

7 Sobre Myrian e esse fato, publiquei carta de Paulo em Pedagogia dos sonhos possíveis.8 O filho mais novo de Paulo recebeu também este nome em homenagem ao tio-avô.

I “O livro de bebê”, página 79.

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idaA “tia Lourdes” não se casou e viveu com a mãe de Paulo até a sua morte.

Tocava piano,9 garantindo à família o status de classe média quando toda a família,10 na verdade, passava fome.

Um dos melhores amigos de Paulo, e o mais antigo deles, foi Albino Fernan-des Vital, a quem ele dedicou – e à sua mulher, Jandira – o livro Professora, sim; tia, não, e interrompeu uma das Cartas a Cristina para dizer da dor de sua perda:

P.S. Perdi hoje, 5 de agosto de 1993, um dos meus melhores amigos, Albino Fernandes Vital.

Em tenra idade, quando devíamos ter cinco ou seis anos, começamos uma amizade jamais arranhada ao longo de tantos anos. Fundamos nosso querer bem num gramado macio e acolhedor que atapetava a frente de sua casa, pequena e humilde, quase vizinha à em que nasci, na Estrada do Encanamento, no Recife. Fomos colegas de escola primária e de ginásio, o Oswaldo Cruz...

Gostaria de destacar nessa biografia a importantíssima presença dos pais de Paulo, sobretudo da mãe, na sua vida e na formação de seu caráter. Os cuidados dela foram absolutamente surpreendentes para uma pessoa que foi mãe no início do século XX. Suas anotações em “O livro de bebê” de Paulo,11 apesar da linguagem pouco usual para os dias de hoje, dizem de seu carinho, respeito e dedicação; do seu poder de observação sutil e da aceitação da ma-neira de ser, das emoções do seu pequeno filho desde o nascimento e no seu desenvolvimento da primeira infância. É possível constatar, para aqueles que conheceram Paulo minimamente, alguns traços de sua personalidade de adulto se definindo na sua mais tenra idade. Ela o acolheu e dele cuidou ver-dadeiramente, sem as interferências indevidas, autoritárias, deterministas, como era comum na época.

Transcrevo, a título de ilustração, partes significativas desse livro com os registros de Dona Tudinha:

Paulo nasceu numa segunda-feira, foi um dia de tristeza e de aflições, pois o seu Papá [sic] estava muito mal sem esperanças de restabelecer-se, quase que o Paulinho seria órfão ao nascer, porém o bom Jesus livrou-o dessa desventura, presenteou-o restituindo a saúde ao seu Papá [sic]. (p. 12)

9 Conferir em Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis, a interpretação de Paulo sobre a função do “piano de tia Lourdes” e a “gravata de meu pai”, na Segunda Carta.

10 Sobre a relação de Paulo com sua mãe e seus tios, o leitor pode consultar, além dos livros do próprio Paulo, o que escrevi, Nita e Paulo: crônicas de amor, e no Nós dois, em várias crônicas.

11 O livro traz versos de Delfim Guimarães e ilustrações de Raquel Ottolini. Atualizei a gra-fia de seus pais nos registros desse livro, bem como em todos os documentos citados nesta biografia.

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ida

Com um mês de nascido apareceu com uma forte erupção na pele, sofreu bastante durante três meses, o médico que o tratou foi o Dr. Guilherme Cirne de Azevedo. Depois desse mal não sofreu mais coisa nenhuma até a data presente, 6 de outubro de 1922. É bem gordinho conforme se vê no seu retratinho com um ano. (p. 13)

Paulo nasceu com 2 kg e meio e ao completar 1 ano de idade pesava 9 kg e meio. (p. 14)

Media ao nascer 49 cm. E com 1 ano 69 cm. (p. 82)

No dia 10 de janeiro de 1923 adoeceu de um embaraço gástrico, apareceu muita febre... foi ele medicado por Dr. Luiz Loureiro, felizmente após dois dias estava restabelecido. Tem um afeto extraordinário pelo paizinho como o chama. Só adormece nos seus braços ouvindo-o cantar. (p. 16-17)

Deu o primeiro passeio no dia 2 de maio de 1922. O seu primeiro passeio foi à casa de sua tia Esther, cumprimentá-la por motivo de seu natalício. Veste-se sempre de branco. A primeira vez que andou em bonde foi no dia 25 de fevereiro de 1922, teve grande medo, chorou quase toda a viagem de Casa Amarela a Re-cife.12 No dia 8 de setembro de 22, deu um passeio de automóvel com os seus

12 Nós, recifenses, chamamos de “Recife” o centro da cidade, o “Recife Antigo”, e à Ilha de Santo Antonio, centro do comércio local.

I “O livro de bebê”, capa e página 10, no qual D. Tudinha anotou dados importantes da primeira infância de Paulo.

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idapais. Gostou muito. Chorou quando

desceu, e daí por diante queria tomar todo automóvel que via. (p. 18-20)

Foi batizado na igreja de Casa For-te no dia 5 de outubro de 1921, fregue-sia do Poço da Panela; recebeu o nome de Paulo tendo por padrinho Rodova-lho Neves e madrinha Adalgiza Neves, seus tios. (p. 26)

O vigário que o batizou foi o Sr. Pe. Donino da Costa Lima.13 (p. 28)

Sorriu pela primeira vez no dia 5 de dezembro de 1921. Tem um ar triste... A sua primeira lágrima foi notada no dia 8 de janeiro de 1922. A primeira rai-va: na noite de 28 de setembro de 1922 o Paulinho contrariou-se porque sua Mamãe não o tirou logo do berço, teve um grande acesso de raiva, pouco faltou para cair do berço tais os pontapés que dava auxiliado com os seus gritinhos. Foi preciso sua Mãezinha repreendê-lo. Apanhou a primeira palmadinha na noite de 11 de março de 1923, quem deu foi sua mamãe por não suportar mais tantas malcriações. É naturalmente carrancu-do, porém muito amável. Brinca pouco, fica sempre de largo apreciando os ir-mãos brincarem. (p. 30-3)

Nasceu o primeiro dente no dia 5 de abril de 1922. Não tem sofrido nada no período de dentição. (p. 38)

As vacinas pegaram ficou muito aborrecido e teve um dia de febre. (p. 42)

Comeu a primeira papinha no dia 15 de março de 1922 aos 6 meses. Até os 6 meses foi amamentado por sua Mamã. Aos 8 meses começou a tomar leite em copo. É muito viciado na chupeta. Gosta muito de banana assada. Deixou a chu-peta no dia 8 de outubro de 1922. (p. 46)

Fez um tem-tem14 no dia 2 de julho de 1922. Deu as primeiras passadas no dia 25 de setembro de 1922. Andou completamente desamparado no dia 16 de outubro de 1922. Depois de andar desamparado teve medo e voltou a andar de

13 Coincidentemente, esse mesmo sacerdote, irmão de meu padrinho, Luiz de França da Costa Lima, oficiou o meu batismo, na mesma Matriz de Casa Forte, em 30/11/1933.

14 Conforme o dicionário Aurélio, o “equilíbrio das criancinhas que dão os primeiros passos”.

I Foto de Paulo com pouco mais de um ano de idade.

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ida gatinhas; no dia 20 de dezembro de 1922 sem ninguém esperar ele levantou-se e

deu uma carreira, o que lhe causou grande alegria; desde esse dia não deixou mais de correr, quando cai chora de raiva principalmente quando se suja. É muito lim-po e vaidoso, não passa sem água de Colônia. Tem sempre um lencinho no bolso da sunga e o quer sempre limpo e perfumado. Fica muito tempo sentado apre-ciando os irmãozinhos correrem. (p. 50-2)

Calçou os primeiros sapatinhos no dia 18 de junho de 1922: Os primeiros sa-patinhos foram brancos. Causou grande admiração a ele e enquanto não os arran-cou dos pés não descansou. Tem grande inimizade a sapato, quer somente viver descalço. Aparou o cabelo pela primeira vez no dia 3 de outubro de 1922. (p. 54)

Usa sempre alpercata ‘Fradinho’ não gosta de outra qualidade, reclama que dói o pé. É muito sensível. A hora de adormecer chama o pai com os nomes mais amorosos possíveis e diz: ‘toca violão bem baixinho e canta para eu dormir’, o pai atende e só o deixa depois de adormecido. (p. 56)

A primeira palavra que disse foi Papá no dia 2 de março de 1922. Fala muito pou-co somente agora depois de 2 anos é que está se desenvolvendo mais. É muito afetuoso e ciumento não consente que seus irmãozi-nhos aproximem-se de mim, fica com rai-va... (p. 58)

Quando o pai insiste com ele para con-versar responde apenas: ‘Não sei falar’. É or-gulho só falará quando souber mesmo. (p. 60)

Amiguinhos com quem brinca: os seus irmãozinhos e seu priminho José Bosco. Tem especial predileção por sua irmã Stella que também lhe dedica igual afeto. (p. 62)

O pai de Paulo era de uma família de Natal (RN) e foi morar no Recife ainda jovem, impulsionado pela vontade de sua autonomia. Entrou no Exér-cito Nacional e, quando sargento, aproveitou a oportunidade aberta pelo go-verno de Pernambuco que, precisando organizar a sua Polícia Militar, abriu a possibilidade de suboficiais do Exército serem nela admitidos com a patente de tenente. Posteriormente, foi promovido a capitão e nesse posto reformou--se, por motivos de saúde, em 1924, vindo a falecer em 1934 quando Paulo tinha completado treze anos de idade.15 Com sua morte, os dias tornaram-se, então, mais difíceis, emocional e financeiramente, para a família Freire.

15 Conferir em Cartas a Cristina.

I Foto da casa onde Paulo nasceu, na Estrada do Encanamento, 724, no Recife.

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idaAinda desse “O livro de bebê”, transcrevo um depoimento do Sr. The-

místocles – mesmo que num momento carregado do pressentimento de mor-te, chegando ao limite do pieguismo –, porque nele é possível perceber o grau de ternura, carinho e valorização de seu filho Paulo, de um homem nascido no século XIX, dentro de uma cultura absolutamente machista na época, a nor-destina.

Ao meu filhinho Paulo, aos seus 4 anos.Chego à noite fatigado já pelas labutas aos folguedos de criança, ele, o meu

Paulinho manifesta à sua mainha16 o desejo de assumir e chama-a com aquela voz, profundamente doce e profundamente meiga de uma criança de sua idade... O nosso Paulo é interessante, inteligente e altivo, porém, naquele coraçãozinho que palpita dentro de seu peito há um mundo de afeto e de carinhos, de bondade e de amor, deste grandíssimo sentimento, desta centelha luminosíssima onde Deus começa e onde Deus acaba!...

E como me sinto feliz em estreitá-lo ao meu pobre coração já tão enfraqueci-do e tão exausto, cujas pulsações parecem contornar lentamente os últimos de-

graus do túmulo que nos marcará mais tar-de... pulsações lentas como as de um grande pêndulo que [ilegível] que marca constan-temente, infinitamente, as horas que vêm e se vão e que se perdem na imensa confusão do tempo!...

E eu sinto-me feliz em beijar muito e muito o rostinho adorado deste filhinho meu tão jovial e tão meigo...

Chega a noite e o seu leitozinho todo branco recebe, como que sorrindo sob os brancos lençóis, aquele corpinho amado de um anjo, cheio de fadiga e passo a acariciá-lo...

E ele tem ainda a sua oração que move esse especial coraçãozinho inocente, oração que ele cela para Deus com o seu pensa-mento divinamente – penso –, divinamente

miraculoso, enquanto que o doa a Jesus, na sublime expressão de sua grande dor simbolismos em cruzes e fé. Agradecem em prece as suas mãozinhas... E eu con-templando num quadro tão sublime sinto-me muito mais feliz em ser pai do meu filhinho... cheio de paz abraçado ao meigo e ao Nazareno! Recife. Em 1925. (p. 88-90)

16 Forma muito comum no Nordeste brasileiro de diminutivo de mãe, no lugar de mãezinha.

I Paulo com cerca de seis anos de idade, em seu triciclo.

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ida Paulo sempre falou de sua primeira infância como de um tempo muito fe-

liz. Admirava e valorizava a paciência, a tolerância e a capacidade de cuidar e de amar de seus pais. Com esses depoimentos aqui transcritos, podemos cons-tatar que as afirmações de Paulo não eram sonhos de um bom filho, foram as verdadeiras sementes das virtudes que ele desenvolveu em si, para si e que ofereceu em sua práxis e sua teoria ao mundo. Raízes da gentidade17 de Paulo homem e educador. Ele entendia que a relação entre seus pais e a que eles esta-beleceram com os quatro filhos, tendo sido de cumplicidade, tolerância e amor, deram ao ambiente familiar a harmonia familiar necessária para a vida sã, responsável e honesta. Eles viviam com naturalidade o sentir as emoções e o questionar sobre as inquietações infantis de toda sorte. Puderam viver, as-sim, a cotidianidade prazerosamente sentida ao lado do respeito às práticas religiosas e a outras opções de vida livremente escolhidas, que certamente abri-ram as portas, pelo exemplo, para a prática democrática de Paulo.

Sua mãe, mulher frágil e forte, doce e altiva, ao mesmo tempo, soube en-frentar com dignidade as provações, e foi também por isso uma figura extre-mamente importante, decisiva no desenvolvimento afetivo, intelectual e pro-fissional de Paulo. Na verdade, ela sempre acreditou nele como um ser que queria lutar pela vida, e deixava-o livre para sentir suas emoções de raiva e amor, quando a sociedade toda sob a influência da Igreja Católica pregava que os cristãos deveriam amar, nunca terem raiva. Sua mãe adivinhava, pres-sentia que o menino calado, teimoso e ciumento, cheio de amor e raiva, seria o homem que foi. Nos anos difíceis de sua viuvez e pobreza, lutou destemida e obstinadamente para que Paulo pudesse estudar, porque este era, desde tenra idade, o grande sonho desse seu filho.

Seu pai não só o fazia dormir cantando, como também lia livros de histó-rias infantis e mais tarde conversava com Paulo sobre suas convicções éticas e políticas. Paulo entendeu e respeitou a postura de seu pai diante da vida, des-de criança até o último dia de sua vida, e o que mais admirou nele foram suas práticas de tolerância e coerência. De religião e convicção espírita, kardecista, o Sr. Themístocles sempre acatou e respeitou a fé católica e todas as manifes-tações da religiosidade de sua esposa, e assim todos os filhos do casal foram educados segundo os princípios da religião católica.

Sua leitura da palavra

Paulo começou a leitura da palavra ensinado por seus pais, escrevendo palavras e frases de suas experiências de vida com gravetos caídos das man-

17 Conferir o que chamo de gentidade em Paulo, aliás fiel ao que ele mesmo entendia pelo termo, na Parte VI desta biografia.

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idagueiras, à sombra delas, no chão do quintal da casa onde nasceu – conforme

suas próprias palavras –, no bairro da Casa Amarela, como tanto ele gostava de lembrar e de dizer.

Eu fui um menino da geração dos lampiões, e uma das coisas que eu mais gostava na minha vida era ver o homem do lampião, como a gente chamava, com aquela vara no ombro, e que marchava com uma dignidade fantástica, com a sua chama na pontinha da vara dando luz à rua. Eu sou, portanto, de uma geração que viu e participou, como espectador, pelo menos, de um mundo de moderniza-ções. Mas vivíamos numa casa grande, com um quintal enorme, que na época dava para as duas ruas, uma era a do Encanamento e a outra era a rua de São João. No meio das duas, o quintal ligando-as, era o meu mundo. Cheio de árvores, de bananeiras, cajueiros, fruta-pão, mangueiras. Eu aprendi a ler à sombra das ár-vores, o meu quadro-negro era o chão, meu lápis um graveto de pau.18

Conforme dizeres de sua mãe em “O livro de bebê”, sem mencionar que fora a primeira professora, ao lado do marido, ela conta sobre a profissional que introduziu Paulo no “mundo das letras”:

Começou a aprender a ler no dia 15 de julho de 1925 aos 4 anos. Sua primei-ra mestra foi D. Amália Costa Lima, que juntamente com suas filhas o mimavam demais. Passou depois a estudar com a professoranda Eunice Vasconcelos, e de-pois nomeada para o interior, precisei botá-lo no Grupo Mathias de Albuquer-que. Foi sempre estudioso e cumpridor de deveres. Não se conformava em ir à aula sem as lições prontas. Chorava demais; sem ter a certeza que sabia, não com-parecia à aula, era difícil convencê-lo.” (p. 86 e 91)

Paulo, entretanto, sempre citava os pais e Eunice Vasconcelos,19 ao se re-ferir à sua educação na primeira infância:

Eu já sabia ler e escrever quando cheguei à escolinha particular de Eunice, aos 6 anos. Era, portanto, a década de 1920. Eu havia sido alfabetizado em casa, por minha mãe e meu pai, durante uma infância marcada por dificuldades fi-nanceiras, mas também por muita harmonia familiar. Minha alfabetização não me foi enfadonha, porque partiu de palavras e frases ligadas à minha experiên-cia, escritos com gravetos no chão de terra do quintal. Não houve ruptura algu-

18 Cf. depoimento de Paulo Freire dado a Claudius Ceccon e a Miguel Darcy de Oliveira para O Pasquim, ano IX, n. 462, Rio de Janeiro, 1978.

19 O depoimento de Paulo sobre Eunice Vasconcelos encontra-se na revista Nova Escola, ano IX, n. 81, dezembro de 1994, “Que saudade da professorinha” (p. 58).

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ida ma entre o novo mundo que era a escolinha de Eunice e o mundo das minhas

primeiras experiências – o de minha velha casa do Recife, onde nasci, com suas salas, seu terraço, seu quintal cheio de árvores frondosas. A minha alegria de viver, que me marca até hoje, se transferia de casa para a escola, ainda que cada uma tivesse suas características especiais. Isso porque a escola de Eunice não me amedrontava, não tolhia minha curiosidade. Quando Eunice me ensinou era uma meninota, uma jovenzinha de seus 16, 17 anos. Sem que eu ainda percebes-se, ela me fez o primeiro chamamento com relação a uma indiscutível amorosi-dade que eu tenho hoje, e desde há muito tempo, pelos problemas da linguagem e particularmente os da linguagem brasileira... mas é como se [ela] tivesse dito a mim, ainda criança pequena “Paulo, repara bem como é bonita a maneira que a gente tem de falar!...”

Em Cartas a Cristina, Paulo fala de outras professoras suas do curso primário:

Além de Eunice, a professora com quem aprendi a “formar sentenças”, so-mente Áurea, no Recife ainda, e Cecília, já em Jaboatão, realmente me marca-ram. As demais escolas primárias por que passei foram medíocre e enfadonhas, ainda que de suas professoras não guarde nenhuma recordação má, enquanto pessoas.

Jaboatão: “Era como se estivesse morrendo um pouco. Hoje sei”

Aos dez anos de idade, em abril de 1932, a família de Paulo foi morar nas vizinhanças da capital pernambucana, no Morro da Saúde, na Rua Virgílio Lamenha Lins, 70, em Jaboatão, uma cidadezinha a 18 quilômetros de Reci-fe, após ter sido impossível ao seu tio e padrinho Rodovalho auxiliar financei-ramente a família. Esse tio, como tantas pessoas outras no mundo, viu su-cumbir seu próspero negócio de secos e molhados na então capital do país, o Rio de Janeiro, como consequência da quebra da Bolsa de Nova York. Assim, a família que recebia, mensalmente, uma substancial ajuda do tio Rodovalho, não foi poupada pela pobreza extrema que a atingiu como um todo. Seu pai, que já estava reformado, percebia um soldo insignificante frente às despesas mínimas de sobrevivência da família. O cerco da pobreza estava sendo im-possível de ser rompido.

Com a perda da casa que era propriedade de sua avó, a família de Paulo decidiu, após várias e diferentes tentativas de driblar as dificuldades finan-ceiras, mudar de residência. Saíram do Recife e foram morar em Jaboatão, buscando a “salvação para a pobreza” da família numa cidade muito mais pobre do que o Recife.

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idaJaboatão teve, para Paulo, sabor de dor, conforme se pode ler sobretudo

em “A triste e traumática mudança para Jaboatão”, em Cartas a Cristina:

Um a um vi saírem os móveis. Mas não era somente a casa que ia se esvazian-do. Era eu também, ali parado, calado, no canto do terraço de onde só me movi para entrar na boleia de um dos caminhões com meu pai, também calado. Já den-tro do caminhão, que começava a marchar lentamente, ele olhou, pela última vez, o jardim de minha mãe que tantas vezes defendera da agressividade das formi-gas. Olhou apenas, sem dizer palavra como sem dizer palavra esteve durante quase todo o percurso entre o Recife e Jaboatão, naquela época, uma viagem.

Jaboatão foi o lugar onde Paulo começou a sentir com força trágica o so-frimento e a angústia. Lá, aos treze anos de idade, ele experimentou a dor da perda de seu pai, e pouco tempo depois a de Dadá, a fiel empregada da família que a acompanhou por muitos anos.20 Sentiu o sofrimento ao ver sua mãe, precocemente viúva aos 42 anos de idade, humilhada na pobreza e na luta para sustentar a si e a seus quatro filhos. Lá sentiu a fome e aprendeu a fazer “algumas incursões nos quintais alheios”.21 Assim, Jaboatão ficou em sua memória como a tristeza pelas perdas pessoais e as advindas das provações materiais.

Sobre sua dor maior de menino, a morte do pai, assim se expressou com ternura:

Trinta e um de outubro de 1934. Pôr de sol de um domingo de céu azul. Já fazia quatro dias que meu pai, com uma22 aneurisma abdominal que vinha se rompendo, sofria intensamente e se aproxima inapelavelmente da morte. Até nós, os mais jovens, pressentíamos o fim contra o qual nada podíamos... Quando voltei ao quarto entre dezessete e dezessete horas e trinta minutos da tarde vi meu pai, ao esforçar-se para sentar-se na cama, gritar de dor, a face retorcida, tombar para trás agonizante. Nunca tinha visto ninguém morrer, mas tinha a certeza, ali, de que meu pai estava morrendo. Uma sensação de pânico misturado com sauda-de antecipada, um vazio enorme, uma dor indizível tomaram meu ser e eu me senti perdido. Alguém me tirou do quarto e me levou para um outro canto da casa de onde ouvi, cada vez mais fracos, os gemidos finais com que meu pai se despedia do mundo... (Cartas a Cristina.)

20 Cf. Cartas a Cristina.21 Leia em Pedagogia dos sonhos possíveis, “A galinha pedrês e os filhos do capitão Themísto-

cles”, e, em Nós dois.22 Assim no original.

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ida Foi também em Jaboatão que Paulo conheceu a fome:

o real problema que nos afligiu durante grande parte de minha infância e ado-lescência – [foi] o da fome. Fome real, concreta sem data marcada para partir... [que] foi chegando sem pedir licença, a que se instala e vai ficando sem tempo para se despedir. Fome que, se não amenizada, como foi a nossa, vai tomando o corpo da gente, fazendo dele, às vezes, uma escultura arestosa, angulosa. Vai afinando as pernas, os braços, os dedos...Como aprender, porém, se a única geografia possível era a geografia de minha fome? A geografia dos quintais alheios, das fruteiras – mangueiras, jaqueiras, cajueiros, pitangueiras – geogra-fia que Temístocles – meu irmão imediatamente mais velho do que eu – e eu sabíamos, aquela sim, de cor, palmo a palmo. Conhecíamos os seus segredos e na memória tínhamos os caminhos fáceis que nos levavam às fruteiras melhores (ibidem).

Nesse tempo, Paulo percebeu o seu corpo entre os medos e receios que lhe marcaram por muitos anos. Esse é um trecho de Cartas a Cristina, no qual, falando das viagens diárias de Recife a Jaboatão, explicita essa percep-ção, que de certa forma o atormentou por grande tempo de sua vida:23 “Trem das sete da manhã, estudantes felizes... No meio deles e sem que eles e elas talvez percebessem, eu pobre, magro, desengonçado, feio, muitas vezes me senti inibido”.

Jaboatão não lhe ofereceu quase nenhuma opção que não fosse a de aceitar as carências impostas pela pobreza sua e da cidade: “Um cinema apenas. In-ferior ao nada bom cineminha do bairro vizinho ao em que nasci no Recife e em que aplaudia, como grande parte dos meninos de minha geração, a Tom Mix24 e seu cavalo branco, a Buch [sic] Jones e a Rim-Tim-Tim” (Cartas a Cristina).

Perguntado, em 1991, sobre como era a vida em Jaboatão,25 respondeu:

Muito dura, muito sofrida. Meu pai morreu quando eu tinha 13 anos, o que agravou ainda mais a crise. Eu me lembro de certos momentos da vida da minha mãe e quando eu me lembro deles tenho uma sensação de mágoa. Era, por exemplo, acompanhando-a, que eu pude ver com que rosto de vergonha, de

23 Sobre a percepção de seu próprio corpo, ler em Nita e Paulo, crônicas de amor; Cartas a Cristina; e na Pedagogia da tolerância; e em passagens deste livro.

24 Ler a propósito da imagem idealizada de Paulo sobre Tom Mix em Nita e Paulo, crônicas de amor, e em Nós dois.

25 Entrevista publicada em Pedagogia da tolerância, originalmente publicada no Jornal do Sinpro, ano IV, n. 30, dezembro de 1991, em encarte especial.

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idaintimidação ela ficava quando o sujeito da venda – minha mãe ainda não tinha

posto o corpo inteiro na porta – gritava por trás do balcão que não venderia a ela porque a dívida já era grande e que ele não acrescentaria mais. Ela nem balbu-ciava um “desculpe” ou “muito obrigada”, voltava-se para rua e saía e eu atrás, sem comentários também. Essa coisa me marcou profundamente. Eu cresci com um baita respeito por ela e também com o senso de muita responsabilidade perante ela. Eu acompanhei muito de perto a dor dela, o sofrimento dela e fiz tudo o que pude durante toda a minha vida em termos de ajudá-la, de mantê-la. Até a morte dela eu não a vi mais, porque estava no exílio e não podia voltar ao Brasil. Isso, na verdade, não tem muito a ver com a sua pergunta. Faz parte da minha trajetória, da minha rua, da minha estrada. Foi um beco em que entrei, agora.

Numa das Cartas a Cristina, Paulo fala da dificuldade da família em acei-tar a decadência de quem era de classe média, que vivia numa agradável casa com jardim de rosas e quintal cheio de pássaros e árvores frutíferas, em Reci-fe, e tornar-se pobre numa muito pobre “cidade do interior”. Ademais preo-cupada em não perder uma das poucas coisas que Jaboatão lhes oferecia nos primeiros anos de “exílio”: o status de classe média de que gozavam e, por consequência, a aparência de dignidade:

O piano de Lourdes e a gravata de meu pai acidentalizavam a nossa fome. Com eles, poderíamos nos endividar, mesmo com dificuldades: sem eles, uma tal hipótese seria quase impossível. Com eles, se descobertos, nossos furtos seriam vistos como puras trelas. No máximo, seriam como razão de desgosto para nos-sos pais. Sem eles, os nossos furtos teriam sido delinquência infantil. O piano de Lourdes e a gravata de meu pai faziam o mesmo jogo de classe que os jacarandás e as louças de alto requinte fazem ainda hoje no Nordeste brasileiro entre os aris-tocratas decadentes. Talvez hoje com menor eficácia do que tiveram nos anos 30 a gravata de meu pai e o piano de Lourdes.

A difícil vida em Jaboatão, contudo, ofereceu a Paulo também oportuni-dades fundamentais para que ele fortalecesse o seu caráter e sua preocupação com a justiça. Lá não viveu somente dores e privações. Lá conheceu o prazer de conviver com os amigos e conhecidos que foram solidários naqueles tem-pos tão difíceis. Espantou-se com o crescimento de seu corpo, começou a perceber a sua corporeidade mesmo que ainda cheio de medos e de receios diante de sua magreza excessiva. Cresceu sem rancor, sem lamuriar-se, sem deixar que o menino-empobrecido prevalecesse sobre o menino-que-se-fa-zia-feliz. Permitiu que este prevalecesse na sua existência de adulto e supe-rou a vivência do menino sofrido. Percebeu e sentiu um desejo enorme, uma

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ida paixão verdadeira para conhecer. Sonhou ser professor de língua portuguesa.

Ou cantor.26

Sobre os amigos dessa época tão difícil de sua vida, disse, constatando com tristeza: “possivelmente não lerão o livro que surgirá das cartas que lhe escrevo e não saberão que a eles agora me refiro com respeito e saudades: Toninho Morango, Baixa, Dourado, Reginaldo” (Cartas a Cristina). “Basta-va o piano para nos distinguir, como classe, de Dourado, de Reginaldo, de Baixa, de Toninho Morango, de Gerson Macaco, alguns amigos daquela épo-ca” (ibidem).

Paulo ainda devotou enorme amizade a companheiros de infância e ju-ventude, como Dino, parceiro das aventuras em Jaboatão: “um dos melhores amigos que fizemos e cuja amizade continua tão fraterna agora quanto em 1932, foi quem nos introduziu àquela gostosa aventura de cortar fronteiras de quintais que marginavam o ‘caminho de água’ do Duas Unas. Pescávamos nas suas águas; ‘caçávamos’ nos quintais banhados por ele. Jogávamos fute-bol em campos às vezes improvisados... Disputávamos animadíssimas parti-das de futebol e, depois, fazíamos natação...” (ibidem).

Numa das notas que escrevi para o livro Pedagogia da esperança disse o que julgo importante transcrever aqui sobre sua relação com Jaboatão:

Mas, foi também em Jaboatão que [Paulo] sentiu, aprendeu e viveu a alegria no jogar futebol e no nadar pelo rio Duas Unas vendo as mulheres, de cócoras, lavando e “batendo” nas pedras a roupa que lavavam para si, para a própria famí-lia e para as famílias mais abastadas. Foi lá que aprendeu a cantar e assobiar, coisa esta que até hoje tanto gosta de fazer, para se aliviar do cansaço de pensar e das tensões da vida do dia a dia; aprendeu a dialogar na “roda de amigos” e aprendeu a valorizar sexualmente, a namorar e a amar as mulheres e por fim foi lá em Jaboatão que aprendeu a tomar para si, com paixão, os estudos das sintaxes popular e erudita da língua portuguesa.

Assim, Jaboatão foi um espaço-tempo de aprendizagem, de dificuldades e de alegrias vividas intensamente, que lhe ensinaram a harmonizar o equilíbrio entre o ter e o não ter, o ser e o não ser, o poder e o não poder, o querer e o não querer. Assim forjou-se Freire na disciplina da esperança.

Sua escolarização secundária: a importância do Colégio Oswaldo Cruz, do Recife, na sua formação humanística

Foi em Jaboatão, com aulas de reforço de Cecília Brandão e Odete Antu-nes, que Paulo concluiu a escola primária, depois de ter frequentado as “esco-

26 Sobre sua vontade de ser cantor, ler “Vocação de cantor”, em Nita e Paulo, crônicas de amor, e em Nós dois.

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idalinhas” de Amália Costa Lima e de Eunice Vasconcelos, e, por pouco tempo,

o Grupo Escolar Matias de Albuquerque, no Recife.De Jaboatão ia diariamente de trem para a capital pernambucana, já com

dezesseis anos de idade, porque lá não havia escolas oferecendo o nível secun-dário de ensino, para frequentar as aulas do primeiro ano desse curso27 no Colégio Francês Chateaubriand, situado na Rua Harmonia, n. 150, no bairro de Casa Amarela. Na verdade, não sendo esse um colégio “equiparado” – a legislação da época exigia a equiparação de todos os cursos secundários do país ao Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, tido desde os tempos imperiais como o modelo de instituição secundária a seguir, obrigatoriamente –, o Co-légio 14 de Julho, que funcionava no bairro de São José, desobedecendo à lei e driblando a fiscalização, se prestava a ser a “casa oficial” onde se realizavam os “exames de admissão” e se submetiam aos exames finais do ano letivo os alunos do Colégio Francês Chateaubriand. Paulo, portanto, era aluno de um educandário que não tinha a “equiparação”, e que, para dar validade aos seus ensinamentos e diplomas, usava esse artifício.

Após esse primeiro ano do curso de nível médio é que Paulo ingressou no Colégio Oswaldo Cruz, do Recife, de propriedade de meu pai, Aluízio Pessoa de Araújo. Nesse educandário, comple-tou os sete anos de estudos secundários – cursos fundamental e pré-jurídico –, de 1937 a 1942, ingressando, aos 22 anos de idade, na secular Faculdade de Direito do Recife, tendo aí estudado en-tre 1943 e 1947.

Foi, portanto, somente aos dezes-seis anos que Paulo começou, tardia-mente, a segunda série do curso secun-dário. E foi nesse momento, nos corredores do Oswaldo Cruz, na Rua Dom Bosco, n. 1.013, no já tão distante Recife de 1937, quando eu contava pouco mais de três anos de idade, que conheci Paulo.

27 Somente na era Vargas, em 1930, foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública, quando se deu organicidade ao ensino no Brasil, na verdade quando começou a se criar o Estado Nacional brasileiro. Francisco Campos, o primeiro ministro, sistematizou, legis-lando, os cursos de nível médio, em 1931 e em 1932, após o ter feito sobre o de nível supe-rior. Dos ramos do ensino médio, o secundário era o único propedêutico ao superior, e fi-cou assim regulamentado: 1º Ciclo Fundamental, de cinco anos de duração, após o curso primário; e o 2º Ciclo Complementar, com três seções diferentes, destinadas às áreas do curso superior a seguir. Pré-Médico, Pré-Engenharia e Pré-Jurídico. Assim, a escolha da faculdade a seguir se dava, na verdade, quando os/as alunos/as ainda muito jovens tinham que escolher a área do 2º Ciclo Secundário a cursar.

I Fachada do prédio do Colégio Oswaldo Cruz, do Recife, onde Paulo estudou de 1937 a 1942.

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ida Sobre a sua escolarização secundária e a importância do Colégio Oswal-

do Cruz, do Recife, na sua formação humanística, declarou, ainda no exílio, na entrevista que deu a Claudius Ceccon e Darcy de Oliveira para O Pasquim:28

Eu me lembro, por exemplo, que já na adolescência, quando me foi possível entrar no ginásio, com 15 anos de idade. Quando os meus camaradas de geração, cujas famílias tinham condições, estavam começando a faculdade, eu estava co-meçando o meu primeiro ano de ginásio, escrevendo rato com dois erres... À fome e à impossibilidade total de entrar numa escola secundária. Me lembro muito bem da peregrinação que fez minha mãe pelas escolas à procura de um colégio particular que me recebesse gratuitamente. Finalmente ela encontrou o Colégio Oswaldo Cruz; é por causa dos seus responsáveis que eu estou dando essa entrevista hoje. O diretor era o Aluízio Araújo, por quem tenho uma profunda admiração. Ele vai fazer agora 80 anos, e eu vou chamá-lo pelo telefone para dar o meu abraço de gratidão. Ele me recebeu. Ele só queria que eu fosse estudioso. E era o que eu era... [grifos meus]

Em outra ocasião, Paulo lembra de como ficava mais fácil para ele vencer as suas inseguranças quando se percebia sabedor da sintaxe da língua portu-guesa adquirida no Colégio Oswaldo Cruz:

O trem das sete da manhã, o percurso da Estação Central ao Colégio Oswal-do Cruz, passando pelo Pedro Augusto e pelo Nossa Senhora do Carmo, onde ficava um pedaço de minha alegria.

Namoradas da juventude. Jamais pensei, no tempo em que, em diferentes momentos, sofria pela impossibilidade de com uma ou com outra conversar, que tantos anos depois guardaria a saudade sossegada e tranquila que delas guardo hoje. Mais ainda, a certeza que tenho da alegria que teria de revê-las.

Trem das sete da manhã, estudantes felizes ou preocupados com as pro-vas parciais – Dulce, Teo, Selma, Iracy, Carneiro Leão, Toscano. No meio deles e sem que eles e elas talvez percebessem, eu pobre, magro, desengonça-do, feio, muitas vezes me senti inibido. Se tinha uma dor de dente fazia o pos-sível para ocultá-la. Falar dela poderia provocar a sugestão de um deles de ir ao dentista e eu não poderia. E porque não ia ao dentista a situação se agrava-va. As dores se amiudavam na medida em que as cáries se aprofundavam. A minha inibição crescia e tomava novas formas com a deterioração de um ou outro dente. Mudava forçadamente a maneira de rir e alterava assim a minha própria expressão.

28 Cf. O Pasquim, op. cit. – Um semanário de um país que devia ter um diário de humor.

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idaNa minha luta contra a inibição explicá-

vel tive, na seriedade de meus estudos de por-tuguês, ajuda forte de que precisava. Não que nenhum deles ou que nenhuma delas tivesse jamais, por palavras ou gestos, revelado ou insinuado o mais mínimo destrato a mim. Não era preciso. Bastava que eu mesmo me sentisse inseguro. Não eram elas ou eles que me agrediam, era a realidade difícil em que me achava. Por isso tudo é que, resolver as suas dificuldades em torno da sintaxe do pro-nome se, suas dificuldades em torno do uso do infinitivo pessoal, falar-lhes sobre o em-prego da crase dava a mim a segurança que me faltava (Cartas a Cristina).

Ainda sobre a possibilidade de ter podido fazer o curso secundário numa escola conhecida no Nordeste brasileiro pelo seu alto padrão de qualidade, e consequentemente de ter tido o nível de escolaridade que facilitou o seu de-senvolvimento de intelectual humanista, engajado, declarou, em 1985, na entrevista publicada na revista Ensaio,29 quando instigado a falar sobre se ti-nha estudado em escola pública:

Fiz esse primeiro ano de ginásio num desses colégios privados, em Recife; em Jaboatão só havia escola primária. Mas, minha mãe não tinha condições de conti-nuar pagando a mensalidade e, então, foi uma verdadeira maratona para conseguir um colégio que me recebesse com uma bolsa de estudos. Finalmente ela encontrou o Colégio Oswaldo Cruz e o dono desse colégio Aluízio Araújo, que fora antes seminarista,30 casado com uma senhora extraordinária, a quem eu quero um imen-so bem, resolveu atender ao pedido de minha mãe. Eu me lembro que ela chegou

29 Cf. revista Ensaio, n. 14, de 1985, na entrevista concedida a J. Chasin, Rui Gomes Dantas e Vicente Madeira.

30 Meu pai, Aluízio Pessoa de Araújo (29/12/1897 – 1º/11/1979), completou os cursos Menor e Maior no secular Seminário de Olinda e já estava com as malas dentro do navio, que o levaria à Itália, quando desistiu de tornar-se sacerdote. Em Roma, ele faria um curso de aperfeiçoa-mento no Colégio Gregoriano, preparando-se para a sua ordenação pelo papa Bento XV (1854-1922; eleito em 6/9/1914, aos 59 anos), programada para realizar-se na Basílica de São Pedro, quando criou coragem de enfrentar a “decisão de sua mãe” (mais do que dele), de tor-ná-lo um padre, dentro da expectativa da época. Nesse dia 12 de dezembro de 1919, no mo-mento em que se despedia do arcebispo de Olinda e Recife, Dom Sebastião Leme, de quem tinha sido secretário particular, disse-lhe de sua dúvida e então recebeu o endosso de desistir da carreira eclesiástica; sem, contudo, jamais ter perdido a sua fé e a prática religiosa.

I Foto de Paulo que consta do livro de fun cio­ná rios do Colégio Oswaldo Cruz, do Recife.

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ida em casa radiante e disse: “Olha, a única exigência que o Dr. Aluízio fez é que fosse

estudioso.” Eu, poxa, eu gostava muito de estudar e fui então para o Colégio Oswal-do Cruz, onde me tornei, mais adiante, professor. Aluízio Araújo já morreu, mas Elza e eu tivemos a grande satisfação de recebê-lo e à mulher, durante 15 dias, em nossa casa em Genebra, em 1977. E, em 1979, depois de quase 16 anos de exílio, quando viemos visitar o Brasil, estavam os dois, Aluízio e Genove, no aeroporto em Recife, nos esperando. Ele já bem acabado, velhinho, e jantamos juntos depois. Na nossa volta para Genebra, ele faleceu. E eu não tenho dúvida de dizer aqui, nes-ta entrevista, que se não fossem eles, possivelmente esta entrevista não estaria sendo realizada. Foram eles que criaram as condições para o meu desenvolvimento... É evi-dente que eles não poderiam ter-me fabricado, as pessoas não são fabricadas, mas a dimensão de minha experiência individual tem a ver muito com eles [grifos meus].

Em outras oportunidades, Paulo declarou ainda sua gratidão e admiração a meu pai, por ele ter lhe oferecido a possibilidade de estudar:

Minha mãe teve que tentar encontrar uma escola secundária onde eu pudesse entrar sem pagar. Procurou muito. Todos os dias saía de casa para procurar escola. Eu ficava aguardando, cheio de esperanças, mas sem ter certeza, e ela não dizia nada. Mas, um belo dia ela chegou, fui recebê-la na estação do trem e ela estava sorrindo. E me disse: “Hoje consegui uma escola para você.” Até sinto uma profunda gratidão pelo casal – o diretor, Aluízio Pessoa de Araújo, e sua esposa, Genove, que me deram a possibilidade de estar aqui hoje, conversando com Myles. Isso tem a ver com estar aqui hoje porque os Araújo possibilitaram minha ida à escola. Ele era diretor de uma escola secundária excelente31 e muito conhecida em Recife na época. Gosto sempre de ex-pressar-lhe minha gratidão32 (O caminho se faz caminhado [grifos meus]).

31 Em 1999, a revista IstoÉ promoveu um concurso aberto aos seus leitores para eleger os vinte brasileiros/as mais importantes na área da ciência e educação. Os “Cientistas do século” a serem votados foram indicados por um júri composto por trinta experts que tiveram como tarefa escolher os trinta “candidatos”. Entre estes figuraram três nomes (10%) ligados ao Colégio Oswaldo Cruz (COC), do Recife, de meu pai. Na eleição promovida entre os assi-nantes da revista, esses três nomes permaneceram: Paulo Freire em 4º lugar, com 68,60% dos votos (aluno e professor do COC); Mario Schenberg, físico, 12º lugar, com 29,83% dos votos (aluno e professor do COC); e José Leite Lopes, físico, com 16,25% dos votos, 17º lugar (professor do COC) (cf. Encarte da revista IstoÉ, n. 1.557, de 4 de agosto de 1999). Assim, o Colégio Oswaldo Cruz contribuiu com 15% para o quadro dos considerados mais importan-tes cientistas/educadores de nosso país do século XX. Tal fato atesta por si só a importância da qualidade científica, humanística e ética do trabalho do diretor e dos professores do Colé-gio Oswaldo Cruz, do Recife. O médico brasileiro Oswaldo Cruz, que deu nome ao estabe-lecimento de ensino de meu pai, foi classificado em 1º lugar nesse concurso, com 83,09% dos votos. Devo esclarecer ainda que, apesar do mesmo nome, o Colégio Oswaldo Cruz do Re-cife, hoje extinto, não teve nenhuma ligação com a atual rede de ensino COC de São Paulo.

32 O diálogo se deu nos Estados Unidos, em fins de 1987.

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istória

deV

idaEm Cartas a Cristina, Paulo deu depoimento de reconhecimento a meu

pai, atestando ainda a importância dos seus professores:

Cecília Brandão e Aluízio Pessoa de Araújo têm muito o que ver com a mi-nha formação. Sem Cecília, dificilmente poderia ter chegado ao Colégio Oswal-do Cruz. Sem Aluízio, dificilmente poderia ter me experimentado na vida como te-nho feito. Foi Cecília quem despertou em mim o gosto quase incontido, que me acompanha até hoje, pela linguagem, que comportou, num primeiro momento, o prazer pelos estudos de gramática sem resvalar jamais para as gramatiquices. Gosto que seria reforçado e aprofundado, em seguida, já no Colégio Oswaldo Cruz, sob a influência do professor José Pessoa da Silva, do Recife.

Hoje, fincado nos meus setenta e dois anos e olhando para trás, para tão lon-ge, percebo claramente como as questões ligadas à linguagem, à sua compreen-são, estiveram sempre presentes em mim. É interessante notar, por exemplo, como a primeira influência marcante que recebi neste campo e que hoje facil-mente percebo foi a de Eunice Vasconcelos, já referida em uma de minhas cartas. Eunice, a minha primeira professora profissional, a que me ensinou a “formar sentenças”. Ela abre um caminho a que chegam depois Cecília, José Pessoa e Moacir de Albuquerque...

Moacir de Albuquerque, brilhante e apaixonado pelo que fazia, amoroso não só da literatura que ensinava – se é que se pode ensinar literatura – mas amoroso também do próprio ato de ensinar, aguçou em mim alguma coisa que Pessoa ha-via insinuado em suas aulas. Aguçou em mim o quão gostoso e fundamental era perseguir o momento estético, a boniteza da linguagem.

Mais adiante, no mesmo Cartas a Cristina, Paulo faz outro contundente depoimento sobre a importância do Colégio Oswaldo Cruz e dos meus pais na sua formação. Transcrevo-o mesmo correndo o risco de cansar os meus leitores e leitoras:

Era então aluno do Colégio Oswaldo Cruz, um dos melhores estabelecimen-tos de ensino do Recife, na época. Dr. Aluízio Araújo, seu diretor, após conversar com minha mãe, no fim de uma semana de peregrinações por educandários reci-fenses à procura de alguém que aceitasse seu filho como aluno gratuito, dera a ela o tão esperado sim.

Ela saía de Jaboatão, manhã cedo, esperançosa de, na volta, à tardinha, trazer consigo a razão de ser da sua e da minha ansiosa alegria, a de haver conseguido a matrícula gratuita para meus estudos secundários.

Ainda me lembro de seu rosto em forma de riso suave quando ela me disse, no caminho entre a estação de trem e nossa casa – sabia a hora da sua chegada e

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ida fui esperá-la –, a conversa que tivera com o Dr. Aluízio e sua pronta decisão em

oferecer-me a oportunidade de estudar. Ele fizera só uma exigência: que eu real-mente me aplicasse aos estudos.

Cedo me sentiria ligado ao colégio, a seus pátios, suas salas, às mangueiras em cuja sombra recreávamos, a alguns colegas a quem, por uma ou outra razão, comecei a admirar... Frígio Cavalcanti, Maria Lucia, Jaime Gamboa, Paulo do Couto Malta, Albino Vital, Euler Maia; a alguns professores como Amaro Quin-tas, Moacir de Albuquerque, Waldemar Valente, Pessoa da Silva, Julio de Melo, José Cardoso... mas sobretudo a Aluízio e a Genove, sua esposa e colaboradora.

Aprendi bastante de minhas relações com meus professores, de minhas relações com meus colegas e, depois, com as que mantive com os alunos de português, mas aprendi muito da bondade simples e sempre disponível de Genove e Aluízio. Apesar de ja-mais haver omitido a minha gratidão por eles, é possível, contudo, que ele tenha morrido sem imaginar a extensão do bem que ele e ela me ensinaram a querer-lhes (Cartas a Cristina, [grifos meus]).

Uma carta de minha mãe a meu pai, datada de 5 de maio de 1947, convi-dando-o a ir ficar com ela mais alguns dias do que o pretendido em Gara-nhuns, no interior pernambucano, comprova a confiança que eles tinham em Paulo, desde quando ele era ainda um jovem professor de apenas 25 anos de idade: “Por que não vem no trem de quarta-feira? Creio que Paulo Freire poderia lhe ajudar nessas poucas horas que você se ausentará do colégio. Pen-se bem que seria uma renovação de energia para si, poder passar mais dois dias aqui! Acho que seria ótimo para todos nós...”

Quando os filhos de Aluízio Pessoa de Araújo, sob a liderança de There-sinha, minha irmã mais velha, quiseram em 1990 prestar uma justa homena-gem a ele, que foi um dos educadores mais importantes deste país, sugerindo ao governo do Estado tê-lo como patrono de uma escola pública, o que infe-lizmente não se consumou, Paulo, juntando-se a todos nós os oito filhos, já como genro também e não só como um ex-aluno grato por tudo que recebera, escreveu este depoimento de próprio punho:

Theresinha Araújo, filha e antiga colaboradora de seu pai Aluízio Araújo, foi a primeira pessoa a me falar, de maneira livre e convincente: o de homenagear a memória de Aluízio Araújo. O de reconhecer seu importante papel na educação do Recife e do Nordeste brasileiro, à frente do Colégio Oswaldo Cruz que ele fundou e dirigiu com a colaboração inestimável de sua mulher, Genove Araújo.

I Genove e Aluízio Araújo, meus pais, pro prie tá­rios do Colégio Oswaldo Cruz, do Recife.

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idaEm certo momento de sua conversa comigo ela me pediu que escrevesse al-

gumas linhas em que desse o meu depoimento sobre a figura deste educador a quem devo, como um sem-número de outros jovens de minha geração, os meus estudos de ginásio.

Aluízio Araújo foi um professor competente, sério, um educador zeloso, cumpridor de sua tarefa, um homem bom, justo, dadivoso.

Nunca me esqueço de como me recebeu em seu gabinete nem do que me disse na manhã em que o procurei para falar-lhe de algo sério para mim.

– Que quer, Paulo? Perguntou.– Dr. Aluízio, comecei faz dois anos, quase, que estudo no Colégio de graça,

sem dar nada de mim e não me sinto bem assim, gostaria de fazer alguma coisa. Limpar as salas, se preciso, fazer mandados, ir ao banco, sei lá.

– Paulo, disse ele, risonho sem poder esconder uma certa alegria, você já dá uma boa contribuição ao Colégio. Você é estudioso e isto é importante para você, para mim, para o Colégio. Mas, aceito sua proposta. Na próxima semana você começará a trabalhar “tomando conta da disciplina” do curso de admissão.

Assumi, assim, dias depois, o cargo de “censor” do qual passei para o de professor de Português do Admissão e, em seguida, das demais séries do ginásio.

O importante deste fato foi a forma pedagógica como, atendendo a meu plei-to, abriu possibilidades ao adolescente, que juntava à percepção de feio e angulo-so que tinha de si mesmo, o mal-estar por nada fazer pelo Colégio que lhe dava ensino. Possibilidades para mim, adolescente magoado com a vida, de ganhar ânimo e acreditar em que podia fazer coisas.

À medida que o tempo passava, me aproximava mais de Aluízio e de Geno-ve, na vida do Colégio como na intimidade da família. E quanto mais me aproxi-mava mais me deixava tocar por seu exemplo de bondade, por seu testemunho de honradez, por sua seriedade de educador.

Como pernambucano me sentiria orgulhoso se Pernambuco, reconhecendo o valor deste homem singular, o homenageasse.

Paulo Freire

Sua formação em nível superior: a Faculdade de Direito do Recife

Paulo fez a “opção” de cursar a Faculdade de Direito do Recife por sua tendência humanista e porque, no fundo, sonhava continuar seu trabalho de “professor de sintaxe”, iniciado no Colégio Oswaldo Cruz, quando ainda muito jovem. À época não havia em Pernambuco curso superior de formação de professor para o curso secundário, que apenas se esboçava na capital do país, o Rio de Janeiro, o centro das decisões das políticas educacionais do Bra-sil. Assim, todos e todas que optavam profissionalizar-se na área das ciências

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ida humanas escolhiam essa Faculdade, e

Paulo não foi uma exceção. O curso de Direito, mais do que um curso jurídico, era voltado para o “humanismo” que lhe possibilitaria um aprofundamento maior nos estudos da língua portugue-sa, propiciando o exercício mais eficien-te de sua indiscutível vocação.

Concluiu o bacharelado em Direi-to33 em 1947, tendo-o iniciado no ano de 1943 nos tempos da plena ditadura varguista, no período chamado de rede-mocratização do Brasil.34 Colou grau, posterior e coincidentemente, em 8 de setembro de 1949, data que no futuro ficou consagrada como o Dia da Alfa-betização, com diploma registrado na E.D.Su. do Ministério de Educação e

Saúde sob o n. 12.965, Livro D-14, à fl.14, em 30/10/1953, conforme pro-cesso n. 92.159/53.

Paulo nunca chegou a completar uma causa sequer como advogando, em-bora tivesse aberto pequeno escritório com dois grandes amigos e tentado iniciar-se nas causas jurídicas. Desistiu na primeira, no momento mesmo em que conversou com um dentista, cujo credor representava, e sentiu que con-fiscar os instrumentos de trabalho do jovem pai e profissional era uma tarefa impossível à sua postura em razão de sua compreensão humanista de justiça.

“Me emocionei muito esta tarde, quase agora”, disse a Elza, com quem então era casado. “Já não serei advogado. Não que não veja na advocacia um encanto especial, uma necessidade fundamental, uma tarefa indispensável que, tanto como outra qualquer, se deve fundar na ética, na competência, na seriedade, no respeito às gentes. Mas não é a advocacia o que quero...” (Peda-gogia da esperança).

33 A Faculdade de Direito foi fundada pelo imperador Dom Pedro I, em 11 de agosto de 1827, no Mosteiro de São Bento, em Olinda (PE), junto com a congênere, a do Largo São Francisco, no Convento Franciscano, na cidade de São Paulo. As duas faculdades hoje pertencem, respectivamente, à Universidade Federal de Pernambuco e à Universidade São Paulo (USP).

34 Paulo nasceu em 1921, nos tempos da Primeira República, quando há cerca de dois séculos o Nordeste tinha entrado em decadência econômica. Aluno do curso de Direito, participou das lutas pela “redemocratização do Brasil” para destituir a ditadura do Estado Novo ins-taurado por Vargas, em 1937.

I Retrato de Paulo quando de sua formatura na Faculdade de Direito, do Recife.

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Na Faculdade de Direito, Paulo fortaleceu a formação humanística ini-ciada no Colégio Oswaldo Cruz, não só com os estudos nessa área do conhe-cimento, mas também nas relações de amizade de vínculos fortes nascidos nessa compreensão do mundo. Cito em primeiro lugar entre estas a que se estabeleceu entre ele e “o amigo de todas as horas” Odilon Ribeiro Coutinho, paraibano, mais escritor e boêmio do que usineiro do ramo açucareiro, que ajudou Paulo financeiramente no princípio de sua vida, quando ele teve pro-blemas de saúde na família e quando esperava na Embaixada da Bolívia para partir para o exílio. Odilon, fiel companheiro, também nunca deixou de en-dossar as práticas socialistas do amigo. Paulo Rangel Moreira foi seu sócio no escritório de advocacia, do qual Paulo participou por poucos meses, e a pes-soa que convidou Paulo para ir trabalhar no SESI.35 Mantiveram uma amiza-de fraterna, que jamais foi abalada, mesmo que tivessem tomado caminhos opostos em suas leituras de mundo. Luiz Bronzeado, deputado federal pela União Democrática Nacional (UDN), que, mesmo a favor do golpe de 1964, foi, com sua mulher Criselides, a pessoa que escondeu Paulo em seu aparta-mento, em Brasília,36 do dia 1o de abril, até quando houve um mínimo de se-gurança para que ele voltasse para o Recife, em 13 de maio de 1964.

35 Cf. Pedagogia da esperança.36 Todas as noites quando os golpistas iam conversar com Bronzeado em sua casa, a filha dele

com Criselides, muito menina ainda, dizia: “Paulo Freire está escondido aqui em casa, querem vê-lo?” Felizmente, todos alisavam a sua cabeça e não lhe levavam a sério.

I Alunos da Faculdade de Direito, do Recife, em torno de um dos professores. Paulo, o quarto da direita para a esquerda.

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