Patrimônios Vivos de Pernambuco - 2ª edição

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Publicação da Secretaria de Cultura e da Fundação do Patrimônio Histórico de Artístico de Pernambuco lançada em dezembro de 2014.

Transcript of Patrimônios Vivos de Pernambuco - 2ª edição

2014

Recife

2ª EDIÇÃO REVISADA E AMPLIADA

Patrimônios

dePernambuco

Fundarpe

Copyright © Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco

Governo do Estado de Pernambuco

Governador | João Lyra Neto

Secretaria de Cultura

Secretário | Marcelo Canuto Mendes

Diretor de Gestão | Maria de Lourdes Mergulhão Nunes

Diretor de Políticas Culturais | André Brasileiro

Diretor de Projetos Especiais | Félix Farfan

Gestores de Comunicação | Michelle de Assunção e Tiago Montenegro

Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico

de Pernambuco (Fundarpe)

Presidente | Severino Pessoa dos Santos

Diretora de Gestão | Sandra Simone dos Santos Bruno

Diretor de Gestão do Funcultura | Thiago Rocha Leandro

Diretor de Gestão de Equipamentos Culturais | Ascendina A. da Lapa Cyreno

Diretora de Preservação e Patrimônio Cultural | Celia Campos

Diretor de Produção | Luiz Cleodon Valença de Melo

1ª Edição:

Coordenação editorial: Maria Acselrad

Supervisão: Eduardo Sarmento

2ª Edição:

Coordenação editorial: Jaqueline de Oliveira e Silva

Supervisão: Janine P.C. Meneses

Assistência: Gabriel Navarro de Barros

Pesquisa e textos: Maria Alice Amorim

Fotografia: Aguinaldo Leonel,

Clara Gouvêa, Costa Neto, Cristiana Dias,

Daniela Nader, Edmar Melo, Eric Gomes,

Flávio Barbosa, Luca Barreto, Marcelo Lyra, Mateus Sá,

Passarinho, Priscilla Buhr, Renato Spencer, Ricardo Moura,

Roberta Guimarães, Rodrigo Ramos, Lívia Froes,

Luiz Henrique Santos e Jaqueline Silva

Projeto cartográfico: Luís Bulcão

Projeto gráfico: Gilmar Rodrigues

Diagramação: Flávio Barbosa da Silva

Revisão: Maria Helena Pôrto

Impressão: Companhia Editora de Pernambuco - Cepe

A981pAmorim, Maria Alice.

Patrimônios Vivos de Pernambuco /Amorim, Maria Alice; 2. ed. rev. e ampl. - Recife: FUNDARPE, 2014.

176 p.: il.ISBN 978-85-7240-093-0

1. Patrimônios vivos – Pernambuco. 2. Patrimônio imaterial. 3. Salvaguarda. I. Amorim, Maria Alice. II. FUNDARPE. III. Título.

CDD 363.69

TEXTO INSTITUCIONAL Marcelo Canuto eSeverino Pessoa

PATRIMÔNIO VIVO EM CONTEXTO · 17

Maria Acselrad

· 20CARTOGRAMA DE MESTRES E GRUPOS

Jaqueline Silva e Gabriel Navarro

NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO · 7 BANDA MUSICAL CURICA

CAMARÃO

DILA

J. BORGES

LIA DE ITAMARACÁ

MANUEL EUDÓCIO

MARACATU LEÃO COROADO

ZÉ DO CARMO

HOMEM DA MEIA-NOITE

ÍNDIA MORENA

JOSÉ COSTA LEITE

CONFRARIA DO ROSÁRIO

ZEZINHO DE TRACUNHAÉM

CABOCLINHO SETE FLEXAS

SELMA DO COCO

TEATRO EXPERIMENTAL DE ARTE

CLUBE INDÍGENA CANINDÉ

MARACATU ESTRELA BRILHANTE DE IGARASSU

MAESTRO NUNES

CAPA-BODE - EUTERPINA JUVENIL NAZARENA

DIDI DO PAGODE

MAESTRO DUDA

MARIA AMÉLIA

MESTRE GALO PRETO

MARACATU ESTRELA DE OURO DE ALIANÇA

ASSOCIAÇÃO MUSICAL EUTERPINA DE TIMBAÚBA

BANDA REVOLTOSA

LULA VASSOUREIRO

MAESTRO FORMIGA

VIVA OS PATRIMÔNIOS VIVOS!

· 10 TEXTO INSTITUCIONAL

Luciana Azevedo

10 ANOS DE APLICAÇÃO DA LEI DE REGISTRO · 12

· 23 · 27

· 31

· 35

· 39

· 43

· 47

· 51

· 55

· 59

· 63

· 67

· 71

· 75

· 79

· 83

· 87

· 91

· 95

· 99

· 103

· 107

· 111

· 115

· 119

· 123

· 127

· 131

· 135

· 9

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

ANA DAS CARRANCAS

CANHOTO DA PARAÍBA

MESTRE SALUSTIANO

MESTRE NUCA

FERNANDO SPENCER

ARLINDO DOS 8 BAIXOS

JOÃO SILVA

PATRIMÔNIOS VIVOS IN MEMORIAM · 139

REFERÊNCIAS · 170

· 141

· 145

· 149

· 153

· 157

· 161

· 165

2005

2012

2007

Na presente obra Patrimônios Vivos de Pernambuco, 2ª Edição Revisada e

Ampliada, a autora, Maria Alice Amorim, nos contempla com as histórias

dos vinte e nove Patrimônios Vivos eleitos até 2013, acrescidos de outros

sete textos sobre os patrimônios in memoriam. Dentre estes, contamos

com os vinte e quatro textos da primeira edição e mais doze textos

inéditos. Às fotografias originais, foram acrescentadas imagens de autoria

do fotógrafo Costa Neto e do acervo de documentação da Fundarpe.

Nota à Segunda Edição

07

09

instituição, em 2 de maio de 2002, pela Lei Estadual nº

12.196 e regulamentada pelo Decreto nº 27.503, de 27 de

dezembro de 2004, do Registro do Patrimônio Vivo de

Pernambuco – RPV-PE. Em 2014 teremos a 10ª edição do

concurso, com a escolha de mais três novos patrimônios

pelo Conselho Estadual de Cultura.

Atualmente, estão registrados vinte e nove Patrimônios Vivos

(além dos sete falecidos, em caráter in memoriam). São

pessoas e grupos situados na Região Metropolitana, na Zona

da Mata, no Agreste e no Sertão. Entre eles estão

ceramistas, poetas, xilogravuristas, cirandeiras, coquistas,

sanfoneiros, artistas circenses, grupos de teatro, agremiações

carnavalescas, bandas de música, maracatus, caboclinhos e

uma irmandade religiosa.

Agradecemos à sensibilidade da Companhia Editora de

Pernambuco (CEPE), que entendeu a importância do projeto,

possibilitando a impressão deste novo catálogo. Desejamos

que esta iniciativa leve cada vez mais longe a história desses

reconhecidos mestres da cultura pernambucana. Boa leitura.

Marcelo CanutoSecretário de Cultura

Severino PessoaPresidente da Fundarpe

Registro de Patrimônio Vivo de Pernambuco tem como

missão reconhecer, valorizar e apoiar mestres e grupos

que detenham os conhecimentos ou as técnicas necessárias

para a produção e a preservação de aspectos da cultura

tradicional ou popular (formas de expressão, saberes, ofícios e

modos de fazer). A transmissão desses conhecimentos,

valores, técnicas e habilidades possibilita o reconhecimento,

acesso, difusão e fruição dos diversos bens, memórias,

saberes e histórias presentes nas culturas populares.

O Governo do Estado, através da Secretaria de Cultura e da

Fundarpe, ciente desta responsabilidade, apresenta a versão

atualizada e ampliada do livro Patrimônios Vivos de

Pernambuco. Esta publicação reúne informações históricas e

culturais sobre pessoas e grupos registrados como Patrimônio

Vivo de Pernambuco, desde o primeiro ano deste concurso,

em 2005. A primeira edição foi escrita em 2009, pela

pesquisadora Maria Alice Amorim. De 2010 a 2013, mais

doze patrimônios foram eleitos, e ocorreram cinco

falecimentos, o que torna necessariamente importante uma

nova edição, no propósito de dar continuidade à valorização e

difusão do Patrimônio Cultural Pernambucano.

Pernambuco está entre os estados pioneiros ao adotar uma

legislação própria para reconhecimento dos saberes dos

mestres e mestras da cultura popular e tradicional, com a

O

ocumentar, através deste livro, a trajetória dos

“Patrimônios Vivos de Pernambuco” e, consequentemente,

seus múltiplos saberes, histórias e memórias, representa

para nós, da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico

de Pernambuco – Fundarpe –, um momento oportuno de

reconhecer, salvaguardar e difundir parte da diversidade

cultural que constitui Pernambuco. Mais do que isso, reforça

o nosso compromisso em promover e proteger o patrimônio

cultural imaterial, contido nas tradições, no folclore, nos

saberes, nas línguas, nas festas e em diversas outras

manifestações, fortalecendo as “referências culturais” dos

grupos sociais em sua heterogeneidade e complexidade.

Cientes da importância dessa categoria do patrimônio,

temos, nos últimos anos, nos esforçado para criar e

consolidar instrumentos e mecanismos, de maneira coletiva

e compartilhada, que visam garantir o seu reconhecimento,

defesa e, acima de tudo, viabilidade. Assim, no ano de

2002, o Governo do Estado de Pernambuco lançou,

de maneira pioneira no Brasil, a “Lei do Registro do

Patrimônio Vivo”, possibilitando o reconhecimento e o

apoio aos mestres e grupos da cultura popular e tradicional,

avançando para uma concepção do patrimônio entendido

como “o conjunto dos bens culturais, referente às

identidades e memórias coletivas”. Nesse contexto, formas

de expressão, saberes, ofícios e modos de fazer ganharam

um novo espaço, quanto à apreensão dos seus sentidos e

significados.

Hoje, nosso desafio é asseverar a inserção dos nossos

patrimônios vivos na Política Cultural do Estado, o que

temos feito através da realização de oficinas de transmissão

de saberes, exposições, apresentações culturais, palestras,

entre outras ações, que para nós significa a apropriação

simbólica e o uso sustentável dos recursos patrimoniais

direcionados à preservação e ao desenvolvimento

econômico, social e cultural do Estado. Nessa trajetória,

articulamos diversas ações institucionais que possibilitaram

investir em atividades como pesquisa, documentação,

proteção e promoção desses patrimônios vivos.

Portanto, ao dar corpo a testemunhos de pernambucanos

e pernambucanas, este trabalho ousa servir como um

memorial, um “pergaminho identitário” fundamental para a

construção do futuro. Um futuro que começa na percepção

do que fomos e de quem somos, possibilitados pela

“consciência patrimonial”.

Sem dúvida, esta valiosa e inédita publicação é mais um

fruto desses desafios! Queremos compartilhar com vocês,

leitores – e por que não “patrimônios vivos”? –, um pouco

das nossas descobertas e redescobertas. Saibam, desde já,

que o livro em mãos é resultado de um trabalho de pesquisa

e registro, de um olhar atento e sensível, e incompleto,

por essência, pois a cada ano serão incorporados novos

patrimônios vivos. Mais do que registrar, portanto, estas

linhas e imagens que seguem nos possibilitam mergulhar

num mosaico de experiências que marcaram e marcam

as vidas de grandes mestres e grupos da cultura popular

e tradicional, verdadeiros tesouros vivos, guardiões e

sacerdotes de memórias e saberes. Em seus testemunhos,

são revelados o simbólico, o imaginário e o real, numa

dinâmica objetiva e subjetiva que articula um saber fazer,

conhecimentos e empreendimentos sociais desafiadores à

nossa maneira de pensar e agir. Um rico universo em que

as pessoas se expressam e se relacionam com o mundo;

que comunica vida, fatos, pensamentos, sonhos, ideias e

sentimentos. Boa leitura!

Luciana Azevedo

Histórico e Artístico de Pernambuco. (Exercício de 2007 a 2010)

Diretora-presidente da Fundação do Patrimônio

10

D

15

A lei de RPV prevê, além do incentivo financeiro mensal, uma

série de outras ações, de forma a potencializar a transmissão

de saberes, o acesso, a fruição e a majoração da visibilidade

da instituição, dos mestres e das mestras. Neste intuito, os

Patrimônios Vivos de Pernambuco são convidados a participar

das ações culturais realizadas pela Fundarpe, como o Festival

de Inverno de Garanhuns, os Festivais Pernambuco Nação

Cultural e a Semana do Patrimônio, esta última promovida

anualmente pela Diretoria de Preservação Cultural da

Fundarpe. Aqueles que trabalham com artesanato, desfrutam

da possibilidade de comercializar e exibir seus trabalhos no

Centro de Artesanato de Pernambuco e na Alameda dos

Mestres, situada na Feira Nacional de Negócios e Artesanato

(Fenearte).

Entretanto, constatamos alguns desafios concernentes à lei,

relacionados de forma estreita com o contexto sócio cultural

do estado. Pernambuco é repleto de expressões culturais

populares, de forma que a quantidade de “patrimônios vivos

no cotidiano da cultura” é consideravelmente maior do que a

possibilidade que o Estado possui em registrá-los de acordo

com os ditames da Lei do RPV. Um dado significativo é o

número de inscrições que a Fundarpe vem recebendo desde as

primeiras edições do Concurso. No ano de 2013 foram

setenta e sete instituições, mestras e mestres inscritos, sendo

vinte e três reconhecidos como inabilitados sob a justificativa

de ausência de documentação. Sendo assim, constatamos ao

fim do processo uma média de dezoito candidatos e

candidatas para cada uma das três vagas.

Porém, tendo em vista o fato de que a política de registro dos

Patrimônios Vivos faz parte de uma ação mais ampla de

Viva os Patrimônios Vivos!

Pernambuco é o estado brasileiro precursor em adotar uma

legislação própria para as ações de reconhecimento e

valorização dos saberes de mestres e mestras do patrimônio

cultural imaterial. Em 2004, realizou-se a primeira edição do

concurso, sendo registrados, em 2005, doze patrimônios vivos

(referente aos anos de 2002, 2003, 2004 e 2005). O ano de

2014, neste sentido, se consolida como o responsável pela 10ª

edição do concurso. Atualmente, além de Pernambuco, 2

apenas seis estados brasileiros e sete municípios possuem leis

específicas de valorização de seus mestres e mestras da cultura

popular tradicional. A nível nacional está em tramitação,

desde 2010, um projeto de lei que institui a “Politica nacional

de proteção e fomento aos saberes e fazeres das culturas

tradicionais de transmissão oral do Brasil”, conhecida como

“Lei Griô Nacional”.

1 Jaqueline de Oliveira e Silva. Antropóloga pela Universidade Federal de

Pernambuco. Gabriel Navarro. Mestrando em História pela Universidade

Federal de Pernambuco.

2 Bahia (Lei dos Mestres de Saberes e Fazeres. Lei n° 8.899/2003), Ceará,

(Lei dos Mestres/ Tesouros Vivos da Cultura. Lei 13.427/ 2003), Alagoas

(Lei do Patrimônio Vivo. N° 6.513/2004), Paraíba (Lei Mestres das Artes

Canhoto da Paraíba. Lei n° 7.694/ 2004), Rio Grande do Norte. (Lei do

Patrimônio Vivo. Lei n° 9.032/2007) e Piauí (Lei do Patrimônio Vivo. Lei n°

5.816/2008). Os municípios de Cachoeira do Itapemirim, (ES); Irará (BA);

Belém (PA), Fortaleza (Ceará), Belo Horizonte (MG), Laranjeiras (SE) e

Tracunhaém (PE), também contam com leis próprias de registro e

salvaguarda de seus Patrimônios Vivos.

Jaqueline de Oliveira e Silva1Gabriel Navarro

12

10 anos de aplicação da Lei de Registro.

valorizar a memória do homem. A memória de um

pode ser a memória de muitos, possibilitando a

evidência dos fatos coletivos (THOMPSON, 1992: 17)

Nesta ação nos valemos também do método etnográfico, com

o objetivo de compreender as histórias contidas nas falas, nos

gestos, na memória, de uma maneira que possibilitou

perceber as condições de saúde, o modo como utilizam os

recursos provenientes da política, as condições de trabalho em

seus estúdios, galpões e ateliês, e ainda acessar percepções

dos mesmos acerca das ações de registro e salvaguarda.

De maneira geral, a maioria ostenta com muito orgulho o

título, declarando o sentimento de reconhecimento e respeito

aos seus trabalhos e trajetórias. Uma fala bastante significativa

foi feita por Ricardo, filho da artesã Maria Amélia, de 91 anos,

residente em Tracunhaém e eleita Patrimônio Vivo em 2007.

Em suas palavras:

“artesanato em Pernambuco é igual a futebol no

Brasil: todo mundo sabe um pouquinho e tem

muito jogador bom. Mas o Patrimônio Vivo é como

se fosse a seleção brasileira. Estão lá alguns

escolhidos para representar a todos”.

Luiz Adolpho, presidente do Clube de Alegoria e Crítica

Homem da Meia Noite, ressalta: “O Patrimônio Vivo foi um

divisor de águas na vida do Homem da Meia Noite. A gente

dá valor ao prêmio, está na entrada da sede”.

Com relação a aplicação do benefício do Patrimônio Vivo, foi

possível perceber que grande parte dos mestres e mestras,

gozando de saúde e disposição, utilizam os recursos para

3valorização do patrimônio imaterial , considera-se que uma

maneira de diminuir esta discrepância é a contemplação de

uma multiplicidade de expressões culturais, de forma que a

salvaguarda dos bens imateriais pernambucanos esteja

garantida. Dentre os trinte e seis Patrimônios Vivos registrados

(sendo sete em caráter in memoriam), estão artistas do barro,

cordelistas, instrumentistas, bandas de música, representantes

das artes cênicas, maracatus, caboclinhos, entre outros, de

forma a compor uma pequena amostra da diversidade cultural

que caracteriza o estado.

No que diz respeito à documentação e ao diagnóstico, ações

também previstas na Lei do RPV foram realizadas nos anos de

2013 e 2014, como visitas de acompanhamento nas

residências dos mestres, mestras e nas instituições. Tendo

como princípio o fato de que as tradições culturais se

perpetuam em grande parte mediante a tradição oral e a

forma mais profícua de alcançar este conhecimento é através

dos relatos e memórias de seus detentores, nos pautamos na

metodologia da história oral, tendo como princípio o fato que

[...] a história oral pode dar grande contribuição para

o resgate da memória nacional, mostrando-se um

método bastante promissor para a realização de

pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a

memória física e espacial, como também descobrir e

3 O documento de referência para as ações de reconhecimento e

valorização dos saberes de mestres e mestras da cultura popular é o

Programa Tesouros Humanos Vivos, aprovado pela Organização das

Nações Unidas para Educação, Ciências e Cultura (UNESCO) em 1993, a

partir de uma proposta da República da Coréia, notoriamente inspirada na

legislação japonesa em vigor desde 1950 (principal referência para a

proteção das culturas orais e modos de fazer tradicionais).

13

envolverem em mais apresentações, de participarem de

encontros periódicos com outros Patrimônios Vivos e de

sentirem, de forma mais acentuada, o crescimento da

visibilidade de seus trabalhos.

Destaca-se, portanto, a necessidade de alguns avanços, no

sentido de promover uma legítima expansão do alcance das

ações do RPV, assim como aprofundar o debate e a

participação popular em um sentido mais amplo, o que nos

direciona a uma efetiva democratização das políticas públicas.

No intuito de erigir estratégias de incentivo às expressões dos

Patrimônios Vivos, o estado de Pernambuco, a partir do

reconhecimento das histórias de vida dessas pessoas, de seus

anseios, necessidades e potencialidades, têm respeitado as

trajetórias percorridas por cada um dos mestres e mestras,

assim como das instituições culturais, que são os arcabouços

da cultura popular do estado.

A segunda edição do presente livro se pauta numa perspectiva

de valoração da diversidade cultural que se revela em terras

pernambucanas, bem como de assegurar o prestígio que nos

enlaça em contribuir para a continuidade de políticas públicas

que assegurem o fomento a um leque de expressões que

emprestam brilhantismo e vislumbre aos habitantes do estado

e visitantes.

Desejamos uma boa leitura, firmada com o prazer que advém

da imaginação sonora, visual e táctil, impossível de não vir à

tona através das palavras inscritas neste livro e que reforçam a

riqueza cultural do estado de Pernambuco.

impulsionar seus trabalhos, estruturando seus ateliês,

comprando equipamentos ou mesmo reformando suas casas.

Outros, já em idade avançada, vivenciam problemas de saúde

que, por vezes, os impossibilitam de dar continuidade às suas

atividades. Assim, a verba a eles destinada passa a se

configurar como a principal renda, substituindo aquela que

antes era conseguida por meio do trabalho.

Já os grupos e agremiações, em sua maioria, aplicam o

benefício de um modo a proporcionar a continuidade de suas

tradições culturais. O discurso do vice-presidente da Sociedade

Musical Euterpina Juvenil Nazarena, João Paulo, opera para

reforçar a positividade do RPV: “Com esse prêmio, hoje nós

estamos tendo uma ajuda para fazer com que essa história de

126 anos não venha a ruir, que os nossos instrumentos não

possam vir a ser calados. Foi muito bom, está sendo muito

boa essa ajuda”. Já a irmandade religiosa Confraria do

Rosário, da cidade de Floresta, efetivou a reforma da sua

sede, a gravação de um documentário e a produção de um

calendário anual, além de custear, em parte, a sua

tradicional festa, que acontece no dia 31 de dezembro,

desde 1972.

É importante ressaltar que as políticas públicas norteadas pela

concepção de patrimônio imaterial lidam diretamente com

pessoas e, por conseguinte, seus sentimentos e valores, que

dizem respeito às suas trajetórias de vidas em uma estreita

conexão com o meio social e cultural em que vivem, de forma

que as visões dos mestres e mestras não são consensuais.

Muitos desses indivíduos declararam o desejo de se

14

Recife, julho de 2014.

15

916

10

1Maria Acselrad

Um dos instrumentos mais relevantes das políticas públicas

voltadas para o reconhecimento das culturas populares

desenvolvidas no Brasil, nas últimas décadas, tem sido as

patrimonializações de bens culturais imateriais. É inegável que para

o enriquecimento desse processo a circulação de documentos,

como a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Popular e

Tradicional, de 1989, e, mais tarde, a Convenção para Salvaguarda

do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, ambas promulgadas

pela UNESCO, e das quais o Brasil é signatário, foram decisivas

para a reverberação de um debate público sobre o assunto.

A resposta a esse movimento, por parte dos órgãos gestores

de cultura, deu-se através da criação de instrumentos jurídicos

apropriados que procuravam atender à demanda que se impunha

em relação à lacuna gerada pelas políticas patrimoniais até aquele

momento, no que diz respeito à dimensão imaterial do patrimônio

cultural brasileiro.

A repercussão dessa discussão, no cenário brasileiro, ganha

destaque com a criação do Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000,

ápice de um longo processo de debates políticos e intelectuais, que

institui o Registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial e cria

o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, abrindo um espaço

para o reconhecimento, por parte do Estado, de bens de caráter

processual e dinâmico como patrimônio cultural do Brasil, tendo

“como referência a continuidade histórica do bem e sua relevância

nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade 2brasileira”.

1 Antropóloga e professora do Depto. de Teoria da Arte e Expressão

Artística da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE.

2 Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000 in: Patrimônio imaterial no

Brasil – legislação e políticas estaduais.VIVEIROS DE CASTRO e FONSECA,

Vale ressaltar, de acordo com Barbosa e Couceiro (2008), que

Maria Laura e Maria Cecília Londres. Brasília: UNESCO, Educarte, 2008.

algumas experiências, consideradas exemplares, de programas

nacionais de salvaguarda – realizadas por países como Japão,

Tailândia, Filipinas e Romênia, conhecidas como Tesouros

Humanos Vivos – em prática desde o fim da Segunda Guerra

Mundial, contribuíram de forma significativa para a ampliação

das agendas políticas patrimoniais no mundo, inserindo o tema

da salvaguarda através da transmissão de saberes e apoio direto

a mestres e grupos, na pauta de diversos debates públicos de

âmbito nacional. Num mundo cada vez mais globalizado, em

constante e acelerado processo de transformação, a preocupação

com as especificidades culturais alçava a um novo patamar a

discussão sobre o patrimônio cultural.

Nesse contexto, as políticas de patrimonialização de pessoas

ou grupos da cultura popular e tradicional, amparadas por

leis de registro estaduais, surgem no rastro de uma série de

discussões acerca da salvaguarda do patrimônio imaterial que

encontram repercussão no âmbito local. Em Pernambuco, a

Lei do Patrimônio Vivo3 surge como uma tentativa pioneira,

no contexto brasileiro, de instituir no âmbito da administração

pública estadual, o instrumento do registro, procurando

fomentar diretamente as atividades de pessoas e grupos culturais

representantes da cultura popular e tradicional, contribuindo

para a perpetuação de suas atividades. O registro prevê a

implantação de ações de formação, difusão, documentação e

acompanhamento das atividades desenvolvidas pelos premiados.

Nesse conjunto de ações, o processo de transmissão de saberes

assume papel de destaque na salvaguarda das expressões,

celebrações e ofícios aos quais os mestres e grupos encontram-se

vinculados, através do repasse de seus conhecimentos às novas

gerações de alunos e aprendizes, em sua comunidade ou fora

dela.

3 LEI nº 12.196 de 02 de maio de 2002. Idem.

17

O Patrimônio Vivo em Contexto

11

saúde debilitado, para continuar efetivamente trabalhando, já têm

em seus filhos um caminho que aponta para o futuro da tradição.

O universo dos mestres e grupos contemplados abrange

expressões das diversas linguagens artísticas, dos ofícios artesanais,

da religiosidade popular, entre outras manifestações culturais.

Dentre os grupos registrados até o momento, podemos encontrar

de forma predominante manifestações culturais ligadas ao

Carnaval: um clube de frevo, dois maracatus de baque virado

e dois caboclinhos. Também foram registrados: uma banda de

música, um grupo de teatro e uma irmandade religiosa. Entre

os mestres, encontramos uma diversidade de tradições culturais,

através do registro de representantes da ciranda, do coco, da

xilogravura, da cerâmica, do forró, do cordel, do circo, da pintura,

do cinema, entre outras.

Segundo Gonçalves (2003), se relativizarmos a noção moderna de

patrimônio – criada no século XVIII, com o surgimento dos estados

nacionais –, podemos encontrar correspondência na experiência

universal do “colecionamento”, prática comum entre muitos povos

e comunidades, ao longo da história da humanidade. A atribuição

de valor, onipresente nos processos de identificação e registro do

patrimônio, faz com que essa tendência ao “colecionamento”

venha a oferecer um panorama daquilo que de mais representativo

e singular compõe o patrimônio cultural de um povo. São histórias

de vida, processos de aprendizado, dinâmicas de trabalho, escolhas

estéticas, processos criativos e de transmissão de saberes de nossos

patrimônios vivos, compartilhados com a pesquisadora Maria

Alice Amorim e com o fotógrafo Luca Barreto que, através desta

publicação, temos o imenso prazer de apresentar.

Sendo assim, é com muita alegria que oferecemos aos nossos

patrimônios vivos este trabalho, em retribuição a toda uma vida

dedicada à cultura.

Recife, novembro de 2009.

Nos últimos anos, o Governo de Pernambuco, através da Fundação

do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe –,

vem realizando oficinas, palestras, aulas-espetáculo, apresentações

culturais, homenagens, exposições, numa experiência inédita de

inserção dos patrimônios vivos na política de cultura do estado.

Essas ações, cujos formatos diferem de acordo com a expressão

cultural, idade e disponibilidade do mestre, revelam algumas

questões importantes para a reflexão sobre a transmissão de

saberes populares e tradicionais, quando fomentada pelas

políticas públicas de cultura, por exemplo: 1) o reconhecimento da

importância de serem preservadas as singularidades das tradições

culturais representadas pelos mestres e grupos contemplados;

2) a valorização da diversidade de técnicas, conteúdos e formas

de repasse praticadas pelos mestres, características de processos

pedagógicos identificados com os princípios da educação não

formal; e 3) o entendimento de que o processo de aprendizado

do mestre é fator relevante para compreensão do seu processo

de transmissão de saberes, entre outros aspectos. Todos esses

fatores implicam na concepção de que ações de salvaguarda não

devem prescindir dos atores sociais que se encontram em foco e

que isso vem a ser decisivo para que a própria produção de sentido

das tradições por eles representadas se atualize e se perpetue no

tempo e no espaço.

Em Pernambuco, entre 2005 e 2010, foram registrados 24

patrimônios vivos. Dentre eles, 16 mestres e oito grupos, através

da publicação de cinco editais. O lançamento do primeiro edital 4rendeu excepcionalmente a premiação de 12 mestres . Nos anos

subsequentes, três patrimônios vivos foram eleitos a cada edital

publicado, através de um processo de inscrições que já soma mais

de 250 candidaturas ao registro. Em 2008, Pernambuco perdeu

três mestres – Ana das Carrancas, Canhoto da Paraíba e Manoel

Salustiano –, e hoje conta com 21 patrimônios vivos, a maioria em

atividade; e mesmo aqueles que se encontram com o estado de

4 A publicação tardia do Decreto nº 27.503, de 27 de dezembro de

2004, que traz a regulamentação da Lei, gerou este acúmulo.

18

19

Cartograma dos Mestres e Grupos contempladospelo Registro do Patrimônio Vivo

Pernambuco (2005-2013)

Tracunhaém

Condado

Goiana

Igarassu

Ilha de Itamaracá

Olinda

Recife

Jaboatão dosGuararapesBezerros

Caruaru

FlorestaPetrolina

1 2

Timbaúba

Aliança

Nazaréda Mata 3

3 35

25

26

35

33

6

87

9

10

1112 34

13

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Paulista

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Legenda Nome Artístico Tradição cultural Data de nascimento CidadeAno da

titulação

Artesanato em cerâmica

8 Baixos / Forró

Banda filarmônica

Banda filarmônica

Banda filarmônica

Caboclinho

Forró

Choro

Caboclinho

Irmandade Religiosa

Samba e Pagode

Xilogravura e Cordel

Cinema

Clube de Frevo

Circo

Xilogravura e Cordel

Música / Forró

Xilogravura e Cordel

Ciranda

Artesanato

Frevo

18/02/1923

16/04/1942

09/02/1928

08/09/1848

14/01/1915

Fundado em 1973

23/06/1940

17/03/1931

05/03/1897

Fundada provavelmente em 1777

12/12/1943

23/09/1937

17/01/1927

02/02/1932

13/07/1943

20/12/1935

16/08/1935

27/07/1927

12/01/1944

02/11/1944

15/10/1942

Petrolina

Recife

Timbaúba

Goiana

Nazaré da Mata

Recife

Recife

Recife

Recife

Floresta

Recife

Caruaru

Recife

Olinda

Jaboatão dos Guararapes

Bezerros

Recife

Condado

Ilha de Itamaracá

Bezerros

Recife

Ana das Carrancas

Arlindo dos 8 Baixos

Associação M. E. de Timbaúba

Banda Musical Curica

Banda Revoltosa

Caboclinho Sete Flexas

Camarão

Canhoto da Paraíba

Clube Indígena Canindé

Confraria do Rosário

Didi do Pagode

Dila

Fernando Spencer

Homem da Meia-Noite

Índia Morena

J. Borges

João Silva

José Costa Leite

Lia de Itamaracá

Lula Vassoureiro

Maestro Ademir

2005

2012

2012

2005

2013

2008

2005

2005

2009

2007

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2007

2006

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Frevo

Frevo

Artesanato em cerâmica

Maracatu de baque virado

Maracatu de baque solto

Maracatu de baque virado

Artesanato em cerâmica

Coco e Embolada

Artesanato em cerâmica

Rabeca, Cavalo-Marinho e Maracatu

Cult. Popular/ Coco de roda

Música/ Banda filarmônica

Teatro

Pintura e escultura

Artesanato em cerâmica

23/12/1935

22/06/1931

28/01/1931

Fundado provavelmente em 1824

01/01/1966

08/12/1863

18/04/1923

08/10/1935

05/08/1937

12/11/1945

10/12/1929

01/01/1888

16/07/1962

19/11/1933

05/07/1939

Recife

Recife

Caruaru

Igarassu

Aliança

Olinda

Tracunhaém

Paulista

Tracunhaém

Olinda

Olinda

Nazaré da Mata

Caruaru

Goiana

Tracunhaém

Maestro Duda

Maestro Nunes

Manuel Eudócio

Maracatu Estrela Brilhante

Maracatu Estrela de Ouro

Maracatu Leão Coroado

Maria Amélia

Mestre Galo Preto

Mestre Nuca

Mestre Salustiano

Selma do Coco

Sociedade M. E. Juvenil Nazarena

Teatro Experimental de Arte

Zé do Carmo

Zezinho de Tracunhaém

2010

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2005

2009

2011

2005

2011

2011

2005

2005

2008

2010

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2005

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Legenda Nome Artístico Tradição cultural Data de nascimento CidadeAno da

titulação

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Banda Musical CuricaBanda Musical Curica

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urica, do tupi ku’rika, é pássaro de canto estridente, da família

de papagaios e araras, que canta pelas matas e mangues.

Talvez por isso o nome da centenária sociedade musical goianense,

numa alusão ao papagaio trombeteiro. Melhor explicando,

existem, de fato, duas versões que apontam tal escolha para o

nome da banda, fundada em 1848. Segundo uma delas, a senhora

chamada dona Iria perguntou ao mestre João José, que passava

pela rua da Conceição: “Seu João, por que é que a música grita

tanto, que até parece uma curica?” A outra versão, variante da

primeira, conta que dona Iria era irmã do padre José Joaquim

Camelo de Andrade, e morava à rua Direita, em companhia das

próprias escravas. Estando, certa vez, na porta de casa, o maestro

José Conrado executava uma polca do musicista Francisco Tenório,

e ela teria dito, em voz alta, a uma de suas escravas: “Ô Rosa,

aquela música só parece dizer cu-ri-ca-cá”. A outra respondeu com

uma gargalhada, e assim ficou o apelido que, supõe-se, era usado

em tom depreciativo.

A Sociedade Musical Curica oferece, justamente por ser antiga, um

repertório de tradições, de histórias contadas pelos mais velhos,

dentre eles os nonagenários Antônio Secondino de Santana,

Meia Noite, e João José da Silva, Calixto, dois dos mais antigos

participantes da banda – falecidos após a banda conquistar o título

estadual de patrimônio vivo, concedido em 2005. Uma dessas

histórias diz respeito a uma tocata para o Imperador. Conforme

consta nos anais de Goiana, a Curica, sob a regência do mestre

Ricardinho, participou das festas em homenagem a D. Pedro

II, durante visita à cidade, em 6 de dezembro de 1859. Quatro

dias depois, ou seja, 10 de dezembro, o Diario de Pernambuco

noticiava a visita da autoridade máxima do país e dizia que a

Guarda Nacional “esteve reunida com mais de 700 praças e boa

música”. A Curica, naquele período, era a banda do batalhão.

Com um repertório musical cheio de sofisticação e variedade, o

grupo também marcou presença nas comemorações da Abolição

da Escravatura, da Proclamação da República, ajudou em

campanhas políticas do Partido Conservador e, então militarizada,

fez parte da Guarda Nacional. Criada com o objetivo de realizar

tocatas em festas religiosas, a banda foi fundada em 1848,

por José Conrado de Souza Nunes, primeiro regente do grupo

musical. Do Rio Grande do Norte, era conhecido como o filho do

marinheiro, Boca de Cravo. Segundo o historiador Álvaro Alvim

da Anunciação Guerra, cujo pseudônimo era Mário Santiago –

conforme pesquisado e publicado, na ocasião do centenário, em

1948, no livro Elementos para a história da Sociedade Musical

Curica – tudo começou com um grupo de 12 a 15 músicos que

se reuniu no consistório da igreja de Nossa Senhora do Amparo

dos Homens Pardos e resolveu criar uma orquestra sacra,

apresentando-se pela primeira vez numa tocata, no Amparo,

durante as comemorações da natividade de Nossa Senhora, ou

seja, no dia 8 de setembro de 1848. À época da fundação, era

chamada de corporação musical. Assim começa a história da

Panorâmica da rua da sede da banda.

Luca Barreto

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Curica, a mais antiga banda de música, em atividade ininterrupta,

do Brasil e da América Latina.

O abolicionista e senador do Império João Alfredo Corrêa de

Oliveira dá notícia, na biografia que escreveu sobre o 2º Barão de

Goiana – Bernardo José da Gama –, que “cada partido tinha a

sua banda de música a estafar-se em ajuntamentos e passeatas”.

Deduz-se que a outra banda era a rival Saboeira, de 1855, ainda

hoje em atividade, fundada com o objetivo de acompanhar o

Partido Liberal, oposicionista do Partido Conservador, ao qual

pertencia a Curica. As histórias da inimizade figadal entre as duas

bandas foram escritas com sangue. Entre pontapés e lances de

capoeira, gritava-se: “Viva a Curica! Morra a Saboeira!” E vice-

versa. Em 1928, visitou a capital da Paraíba, o que teve enorme

repercussão na imprensa local. Entre os sócios honorários, constam

os nomes do então presidente Getúlio Vargas e de Flores da

Cunha, interventor no Rio Grande do Sul. Durante a 2ª Guerra

Mundial, participou de passeata antinazista em agosto de 1942.

Vista aérea de Goiana (autor desconhecido).

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Títulos e premiações conquistadas pela banda. Fotografia de antigos mestres e componentes.

Músicos da Banda Curica.

No dia 1º de dezembro de 1944 recebe a visita do famoso

musicólogo uruguaio, professor Francisco Curt Lange, que,

demonstrando grande interesse pelos arquivos de composições

musicais, obteve uma relação das peças escritas no século 19, mais

uma fotografia da corporação. A banda executou, em homenagem

ao visitante, a Sonata Patética, de Beethoven; a valsa Obstinação,

de Nelson Ferreira, e o dobrado Conselheiro João Alfredo. Na data

do centenário, em 1948, Antonio Correia presenteou a Curica com

uma sede própria, a mesma onde o grupo desenvolve as atividades

até hoje, à rua do Rosário. Naquele ano, a banda também decidiu

criar estatuto próprio, ainda em vigor, em que se estabelecia a

fundação de uma escolinha de música, a fim de gratuitamente

serem transmitidos os conhecimentos musicais, pelos mais antigos,

para as novas gerações. De meados de 1960 a 1970, a banda

manteve uma formação denominada Curica Jazz, que é retomada

no início de 2009. São 29 componentes, escolhidos entre os mais

talentosos alunos da escolinha e integrantes da banda. Em meio às

novas realizações, a diretoria está organizando o primeiro registro

fonográfico, tanto da banda, quanto da jazz, para a gravação de

dois CDs a serem lançados ainda em 2010.

A Curica é um dos grandes patrimônios culturais de Goiana

e sempre marca presença em solenidades cívicas e religiosas,

inclusive nas viagens pelo Brasil. No Carnaval, subdivide-se em

duas orquestras de frevo, para tocar no centro, nos distritos e

vizinhança. Em variados eventos e inaugurações, apresenta-se

sob a forma de orquestras menores. O acervo musical conta com

mais de 800 títulos, de todos os gêneros, entre clássicos, barrocos,

dobrados, marchas de procissão, músicas religiosas, MPB, para

execução por cerca de 60 a 70 músicos. A catalogação do arquivo

histórico e musical foi realizada pelos estudantes da escolinha, em

regime de voluntariado. Resultante de um trabalho filantrópico

de maestros, diretores e instrumentistas, a banda é responsável

pela contínua preparação de novos artistas, pela renovação dos

próprios integrantes e traz no histórico a passagem de nomes

consagrados, como o famoso capitão Zuzinha, ou José Lourenço

da Silva, e os maestros Duda e Guedes Peixoto. É inegável que

a Curica tem colaborado com o despertar de talentos, com a

formação de músicos. E mais: toca a sensibilidade dos goianenses,

que a veem passar pelas ruas, despertando-lhes o amor à música e

às vivas tradições da cidade.

Edson Júnior, músico

e presidente da banda.

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Componentes da Curica, durante ensaio na sede do grupo.

CamarãoCamarão

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uando Antonio Ferreira da Silva e Josefa Alves Freire viram

nascer o filho, não imaginavam que ali começava a trajetória

de um grande sanfoneiro do agreste. Na verdade, o início de

tudo tem a influência do pai, exímio tocador de oito baixos, a

quem o filho, desde criança, passou a acompanhar nas andanças

musicais. Na labuta cotidiana, enquanto o sanfoneiro ia para a

roça, o filho de sete anos matreiramente ia experimentando os

sons da sanfoninha pé-de-bode, até o dia em que o pai descobriu

as artes da criança engenhosa, emocionou-se e passou a cultivar

o talento do herdeiro, levando-o para as festas, onde o garoto

prestava atenção nos músicos e depois, em casa, tirava os mesmos

sons no instrumento. O menino conquistou definitivamente o

pai executando, de ouvido, os acordes de Maria Bonita, um dos

maiores sucessos àquela época. E o mestre Camarão, ou Reginaldo

Alves Ferreira, tem consciência de que foram decisivos esses

primeiros momentos da infância dedicados à música. Natural de

Brejo da Madre de Deus, é também emblemático o próprio dia do

nascimento: 23 de junho de 1940, véspera de São João.

Foi em Caruaru – a mais importante cidade do Agreste

pernambucano, protagonista de uma das mais tradicionais festas Camarão ministra aula de acordes.

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juninas do Estado e contemplada, ainda na década de 1970, com

o título de Capital do Forró – que Camarão construiu as bases

da carreira artística. Começou a trabalhar, aos 20 anos, na Rádio

Difusora daquela cidade, por onde passaram importantes nomes

da música brasileira, como Sivuca e Hermeto Pascoal. Foi na mesma

rádio que ganhou o apelido, dado por Jacinto Silva. Luiz Gonzaga

o conheceu na difusora, tocando como profissional. Tinha 18 anos.

Graças à amizade surgida entre ambos, o rei do baião produziu

dois discos de Camarão, pela RCA Victor, em 1969 e 1970.

Gonzaga foi, na verdade, o seu grande mestre, embora nunca

esqueça a importância dos ensinamentos paternos. Na discografia,

o artista contabiliza, ao lado dessa feliz parceria com Luiz Gonzaga,

28 discos, entre long plays, compactos, 78 rotações e CDs, a

maioria fora de catálogo. É de 1998 o CD Camarão Plays forró,

produzido na Inglaterra e com circulação exclusiva na Europa.

Inventivo desde o princípio, foi o mestre quem criou, em 1968, a

primeira banda de forró no país, a Bandinha do Camarão; quem

introduziu sopros (tuba, clarinete, trombone e piston) em banda

de forró; quem criou a Orquestra Sanfônica de Caruaru, em que

diversas sanfonas executam não só variados ritmos juninos, mas

também frevo e maracatu. Norteando-se pela música desde

a primeira infância, o mestre chegou a acompanhar o rei do

baião, após conhecê-lo num programa da Difusora de Caruaru,

mesma rádio por onde passaram músicos renomados e onde

surgiu o seu primeiro conjunto musical, ou seja, o primeiro trio

de Camarão, o Trio Nortista, liderado por ele, um dos maiores

sanfoneiros nordestinos, tocador de forró nas latadas das fazendas

e arraiais juninos, experiente forrozeiro de animados grupos

pés-de-serra. O trio era formado com os músicos Jacinto Silva e

Ivanildo Leite. Afinadíssimo na sanfona, acompanhou grandes

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O músico e seu instrumento, em detalhe.

nomes da música nordestina, a exemplo de Sivuca, Dominguinhos,

Santanna, Marinês, Jackson do Pandeiro, Arlindo dos Oito Baixos.

O repertório de Camarão é, como manda a tradição da sanfona

nordestina, generoso nos ritmos regionais – xote, xaxado, forró,

baião e arrasta-pé.

O nome do Maestro Camarão corre mundo. Em 1961, foi

a sanfona dele que representou Pernambuco no primeiro

aniversário de Brasília, a convite do presidente Jânio Quadros. Viaja

acompanhado do Trio Nortista, que toca, então, em vários eventos

comemorativos. Tem participado de encontros de acordeonistas

pelo país, graças ao talento e maestria com que empunha a

sanfona. Em 2004, participa do projeto O Brasil da Sanfona, de

Myriam Taubkin, que produziu dois CDs, um livro de fotografias

e um DVD. Fixado no Recife há quase 30 anos, mantém a Escola

Acordeon de Ouro, fundada há uma década no bairro de Areias,

onde já formou diversos músicos nas artes dessa invenção vienense

de 1829, que, no Brasil, ganhou um sotaque bem nordestino e

fez fama. Para facilitar a transmissão de conhecimentos, elaborou

uma cartilha, em que registra importantes informações acerca

dos instrumentos de fole, do manejo do fole, como escolher e

manusear o acordeom, além de noções elementares de música.

Marcelo de Feira Nova, Julinho do Acordeom, Ellan Ricard, Gleyson

Alves, Juquinha, Deivison, Diego Reis e Cezinha do Acordeom são

alguns dos reconhecidos sanfoneiros que passaram pela escola do

mestre. Em parceria com Salatiel d’Camarão, desenvolve o projeto

De pai para filho, com a realização de shows musicais, e, ainda,

Sanfona nas escolas, voltado para oficinas em escolas públicas.

Certamente inspirado na atitude do próprio pai, Camarão estimula

e oferece contribuição decisiva à carreira de iniciantes e, inclusive,

à do próprio filho, parceiro e continuador mais que legítimo da

obra do mestre.

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DilaDila

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angaço e peripécias diabólicas são os temas predominantes

no universo do mestre em fabulações, gravador de capas

de folheto e álbuns em policromia, autor de rótulos de bebida

e remédios, ilustrador de livros e publicações variadas. O nome

de batismo do marechal do cordel do cangaço, conforme se

autodenomina, é José Soares da Silva, ou Dila, nome emblemático

no mundo da gravura popular. Nascido em 23 de setembro de

1937, em Bom Jardim, e estabelecido em Caruaru, o filho de

Domingos Soares da Silva e Josefa Maria da Silva testemunha que,

dos anos 1950 em diante, mergulha no mundo do cordel e da

xilogravura, quando passa a comercializar folheto nas feiras de

Pernambuco, Alagoas, da Paraíba e do Ceará.

Municiado de generosa fabulação, Dila compartilha com amigos

e visitantes a riqueza do seu mundo imaginário, as invenções e

reminiscências de mais de cinco dezenas de anos dedicados às

artes gráficas, à poesia de cordel e à xilogravura. No limiar entre

realidade e imaginação, tão bem-cultivadas pelo poeta, rememora

a chegada em Caruaru, em 1952, e as primeiras xilogravuras, que Lu

ca B

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Mestre Dila e seu processo de trabalho.

foram para folhetos dele mesmo, de Francisco Sales Arêda e de

outros poetas de meio de feira, tais como Vicente Vitorino, Chico

Sales, Jota Borges, Antônio Ferreira de Morais e João José da Silva.

E, finalmente, a facilidade para com os desenhos credita ao pai

que, segundo ele, foi caricaturista. Em 1974, em plena atividade

de poeta, gravador, impressor, aparece no documentário de Tânia

Quaresma, Nordeste: cordel, repente, canção, em que figura a

profissão registrada em letras garrafais pintadas na fachada do

mesmo endereço onde ainda hoje reside, em Caruaru: Art Folheto

São José. Romances e folhetos. Do autor e editor: Dila é aqui.

A partir da experiência na fabricação de carimbos, substitui

as matrizes de madeira pela borracha, obtendo um resultado

de impressão que o pesquisador Roberto Benjamin batizou de

folk-off-set. Utiliza cores diversas numa mesma matriz, ou faz

inúmeras combinações de gravura a partir de detalhes elaborados

em matrizes diferentes. As figuras são preparadas separadamente

para permitir isso. Irrepreensível no desenho e na invenção, a

gravura limpa, bem-talhada, complexa exibe narrativa imagética

absolutamente original, sob ângulos inusitados, sem contato

sistemático com os cânones do desenho clássico. A partir dos anos

1970, inova em publicações coloridas e no formato cordel. Em

1973, edita o álbum de gravuras em policromia Rasto das histórias,

utilizando-se de azul, vermelho e amarelo sobre fundo branco.

Em 1974, publica A bagagem do Nordeste, com a capa em preto,

vermelho e amarelo sobre fundo branco. Viver do cangaceiro sai

em 1975, pela Art folheto São José. O álbum Réstias do cangaceiro

é editado em 1981.

O fabricante de rótulos de bebida instala na própria casa máquinas

de tipos móveis e prelo, a fim de publicar folhetos e imprimir

gravuras. Além disso, as ferramentas manuseadas para cavar

a matriz são faca, peixeira, canivete, lâmina de barbear, que

cortam a borracha, ou neolite, para fazer capas de cordel, rótulos

e carimbos. Abre letreiros e desenhos do cordel numa mesma

matriz, em borracha ou ainda na madeira, reinventando o tipo

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Detalhe de seu ateliê, em sua residência na cidade de Caruaru.

fixo, conforme lembra Roberto Benjamin, no texto Aparatos dos

livros populares – Dila editor popular. E o registro da própria

editora é tão mutante quanto o caudaloso fluxo narrativo do

poeta. A Art folheto São José virou Gráfica São José, ou Gráfica

Sabaó, ou Preéllo Santa Bárbara, ou Fhòlhéteria Càra d’Dillas.

Nesse registro, o nome da folheteria aparece na contracapa do

cordel, com um autorretrato de Dila vestido de cangaceiro.

E, mais, o registro de autoria do texto e da xilogravura é sempre

tão variável quanto o do editor. Dila: o marechal do cordel do

cangaço. Dila Soares da Silva. Dila Ferreira da Silva. Dyyllas Sabóia.

Dila Sabaó Sabóia. José Cavalcanti e Ferreira, José Soares da

Silva, Dila ou Dillas. Recorrentes num universo poético expresso

em ininterrupto fluxo criador, e também na atual invenção da

“literatura de cordel em contos”, da “literatura de cordel em

prosas” que vem engendrando e editando, os motivos passam

por ciganos e cangaceiros, Chico Heráclio, Lampião, Padre

Cícero, o Pai Eterno, Pessoa e Dantas, Ariano Suassuna, “xylgra

e cordel”, Dyylas Sabóia. Se, em vez de cordel e xilogravura,

produzisse um filme de cangaço, deliberou, de antemão: seria o

protagonista, o cangaceiro Relâmpago. Assim, em meio a fantasias

e criação poética, Dila vai recebendo visitas diárias de estudantes,

pesquisadores, turistas, todos ávidos em conhecer o mundo

maravilhoso do artista que está sempre a exibir, com o maior

prazer, as mais recentes invenções de poesia e xilogravura.

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O trabalho detalhista do entalhe em madeira.

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J. BorgesJ. BorgesLu

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Prensa alemã, utilizada na

impressão dos cordéis.

rtesão de cestinhas de cipó e brinquedos de madeira,

oleiro, pedreiro, carpinteiro, pintor de parede, marceneiro,

trabalhador da palha da cana, passador de jogo de bicho. Esses

foram alguns dos ofícios que Jota Borges experimentou, antes

de se decidir pela venda de cordel nas feiras de Pernambuco,

Paraíba, Ceará e, principalmente, na Praça do Mercado de São

José, no Recife, o que aconteceu a partir de 1956. Matuto

esperto e comunicativo, logo descobriu ser exímio talhador

de madeira e criador de histórias em versos. E o tempo de

permanência na escola foi de apenas 10 meses. Da experiência

com as artes manuais, sobretudo marcenaria e miniatura de

móveis, desenvolveu habilidades que não seriam de jeito nenhum

desperdiçadas mais adiante, conforme atestam as publicações

impressas, as gravuras inconfundíveis, as inúmeras capas de livros

e discos, exposições, oficinas.

O primeiro folheto é de 1964, com capa do poeta e xilógrafo

Dila: O encontro de dois vaqueiros no sertão de Petrolina. A partir

de 1965, incentivado pelo amigo cordelista Olegário Fernandes,

resolve fazer a capa dos próprios folhetos, e então escreve e faz a

capa de O verdadeiro aviso de Frei Damião. Nascido no Sítio Piroca,

Bezerros, agreste pernambucano, a 20 de dezembro de 1935,

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José Francisco Borges nem avaliava o significado dessas decisões

profissionais, apenas se deixava levar pela intuição criadora. Em

1976, faz uma das gravuras mais famosas: A chegada da prostituta

no céu. A vida do sertanejo, o imaginário nordestino, as fabulações

dos contos populares, o cenário rural e as narrativas de cordel

declamadas pela boca do pai, tudo foi misturado na cabeça e nas

memórias afetivas do artista, e o resultado é a plena vitalidade

conferida à famosa e premiada obra, que tem sido traduzida em

outras línguas e linguagens artísticas, a exemplo de peça de teatro,

telenovela, filme, coleção de roupa.

Se o nome dos pais – Joaquim Francisco Borges e Maria Francisca

da Conceição – está inscrito irremediavelmente na vida de J.

Borges, também não podem ser desprezados os nomes do

artista plástico Ivan Marchetti, do escritor Ariano Suassuna e

do pesquisador Roberto Benjamin, que fizeram as primeiras

encomendas de gravuras maiores, escreveram sobre o artista e

deram-lhe ampla divulgação. Suíça, Estados Unidos, Venezuela,

França, Alemanha, Portugal, Cuba foram países para onde

viajou, além dos lugares aonde tem ido a obra do artista: Itália,

Espanha, Holanda, Bélgica, México, Argentina. Para Caracas, foi

em 1995. Visitou Cuba em 1997, num avião russo dos anos 1950,

onde permaneceu 12 dias, ministrando oficina num festival de

cultura caribenha. Na década de 1970, uma exposição de Borges

percorreu 20 países. Em 1964, ilustrou a novela Roque Santeiro,

da TV Globo, e fez a primeira viagem de avião.

Daí por diante não mais parou de percorrer o mundo. Há décadas

tem viajado quase que ininterruptamente dentro e fora do país.

Em 2005, comemorou os 400 anos do D. Quixote, de Miguel

de Cervantes, com uma versão em cordel da referida novela de

cavalaria. E foi para a França participar da exposição itinerante

O universo da literatura de cordel, na condição de principal

homenageado. Graças ao talento e à amizade que cultiva há

anos com importantes galeristas, artistas plásticos, jornalistas e

pesquisadores, Borges tem obras no acervo da Biblioteca Nacional

de Washington e no Museu de Arte Popular do Novo México

(em Santa Fé, EUA); é divulgado no New York Times, participou

Familiares de J. Borges auxiliam na impressão das gravuras.

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da revista suíça Xilon em número especial (1980) dedicado aos

xilógrafos nordestinos, ilustrou o livro As palavras andantes, do

uruguaio Eduardo Galeano (1993), figurou no calendário da ONU

de 2002 com a gravura A vida na floresta, tem participado de

exposições na Galeria Stahli, Suíça, entre outras notáveis aparições

internacionais no circuito artístico mundial.

É importante mencionar, ainda, a atuação da Gráfica J. Borges,

em plena atividade, que, durante quatro décadas, utilizou tipos

móveis e prensa manual na produção de cordéis e xilogravuras,

e vem construindo desde então parte da história da literatura de

cordel. Borges à frente, claro, contando com a participação dos

filhos J. Miguel, Ivan, Manassés, Cícero, Pádua, Jerônimo (falecido);

irmãos, cunhada, sobrinhos, como Amaro Francisco (falecido),

Severino Borges, Nena, Joel, Lourenço, Givanildo; dos três mais

novos, os filhos Pablo e Baccaro e o neto Williams. O filho George

vive de serigrafia e Ariano é gráfico. Ao todo, foram gerados 18

filhos. E um grande projeto de vida e arte, de que é testemunha o

Memorial J. Borges, em Bezerros, onde o visitante pode apreciar as

obras gráficas, plásticas, poéticas do mestre e, ainda, desfrutar de

um dedo de prosa com o artista bom de papo.

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O trabalho de pintura, para gravação de xilogravuras coloridas, um diferencial a obra do artista.

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Lia de ItamaracáLia de Itamaracá

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oberana, feito uma deusa surgida das águas do mar ou uma

rainha plena de realeza, é assim que Lia sempre aparece,

levando-nos ao prazer de ouvir e dançar uma ciranda. Sim,

porque ninguém fica imune ao ritmo da ciranda, muito menos

aos encantos da filha de Iemanjá, que se habituou a cantar desde

criança, na praia de Jaguaribe, localidade da Ilha de Itamaracá

onde nasceu em 12 de janeiro de 1944 e vive até hoje. Cheia

de familiaridade com a música e a dança, Maria Madalena

Correia do Nascimento começou a carreira artística muito jovem,

cantando ciranda desde os 12 anos. A filha de Severino Correia do

Nascimento e Matildes Maria da Conceição é a mesma Maria, ou

Lia, da música que se transformou num hino: Essa ciranda / quem

me deu foi Lia / que mora na Ilha de Itamaracá.

A história dessa deusa de ébano, de um metro e oitenta, não é

só feita de glamour. Após permanecer quase duas décadas no

ostracismo, lança em 2000 o CD Eu sou Lia, que recebe selo de

world music, graças à mescla de instrumentos de percussão e

sopro aos ritmos populares, e, por isso, chega a ser comercializado

nos Estados Unidos e na Europa. Nessa nova etapa de divulgação

do trabalho, Lia passa a viajar constantemente pelo Brasil e pelo

continente europeu, e, ainda assim, não é difícil vê-la nas rodas

de ciranda do Recife e Olinda, ou em Jaguaribe, onde funciona, à

beira-mar, o Espaço Cultural Estrela de Lia, sob o efeito mágico da

envolvente paisagem marinha, com direito a lua, pancada do mar,

cheiro de maresia e brisa balançando os coqueiros.

Nesse ambiente, Lia tem recebido, aos sábados – e desde

novembro de 2004 –, diversos artistas, como Cátia de França,

Célia coquista, a Ciranda de Baracho (das filhas do mestre, Dulce

e Severina Baracho), Antúlio Madureira. Mas, diferentemente

do bem-sucedido ressurgimento, antes a artista havia produzido

apenas um LP, A rainha da ciranda, gravado pela Rozemblit

em 1977, do qual lembra não ter recebido nada. Quando foi

cozinheira de um restaurante na ilha, também cantava no local.

Frequentava outras rodas de ciranda, esporadicamente, sem

Espaço cultural é dedicado a Iemanjá.

O neto Misael

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nenhuma projeção fora do restrito circuito de aficcionados da

cultura popular. A partir dos anos 1980 passa a ser merendeira

da Escola Estadual de Jaguaribe, profissão que seguiu exercendo,

paralelamente à carreira artística.

A volta triunfal ao mundo da música se deu graças à atuação do

produtor Beto Hees, que a levou, em 1998, a participar do festival

recifense Abril pro Rock, no qual foi aplaudida por 12 mil pessoas.

Daí em diante, sobretudo a partir de 2000, passou a fazer turnês

pelo Brasil e exterior, com os shows do primeiro CD, gravado

pela Ciranda Records, que contém composições dela própria,

de cirandeiros do Recife, de compositores renomados e algumas

de domínio público. Cinco músicas foram gravadas ao vivo em

1998, no Rio de Janeiro, durante participação no projeto Vozes do

Mundo, do Centro Cultural Banco do Brasil. Quase uma década

depois desse lançamento, sai em 2008 o segundo CD, Ciranda

de ritmos, com direção musical de Carlos Zens, e destaque para

Bezerra do Sax, as filhas de Baracho e uma composição de Capiba.

Conforme indica o título, o disco contempla outros ritmos

pernambucanos para além da ciranda: frevo, coco, maracatu.

Mas, claro, quem permanece reinando é a majestosa cirandeira.

Habituada, há mais de 50 anos, ao convívio com mestres da

ciranda, Lia sempre faz questão de lembrar que Baracho era um

grande amigo. É dele a ciranda: Morena vem ver / que noite tão

linda / a lua vem surgindo / cor de prata. // Faz-me lembrar / da

minha Maria / quando pra ela / eu fazia serenata. No embalo da

ciranda e das afinidades eletivas, Baracho e Lia compartilhavam

três importantes aspectos: boa voz, presença marcante na hora de

puxar a roda e habilidade no tratamento dos temas, como o do

amor.

O convívio artístico, entretanto, não se resumiu aos experientes

cirandeiros. Teca Calazans, Edu Lobo, Clara Nunes, Geraldo de

Almeida, Ney Matogrosso e Paulinho da Viola, entre outros, são

alguns dos grandes nomes da música brasileira que já cantaram Lia

em versos próprios, em composições da cirandeira ou de outros.

Essa ciranda quem me deu foi Lia é a mais antiga, de 1960 para

1961, e foi gravada por Teca Calazans. Paulinho da Viola também

ofereceu versos bonitos para a negra mais elegante dentre todos

os ilhéus: Eu sou Lia da beira do mar / morena queimada do sal e

do sol / da Ilha de Itamaracá (...), música incluída no primeiro CD.

O convívio artístico também levou a dama da ciranda por outras

veredas, como a de estrela do curta-metragem Recife frio, de

2009, dirigido e realizado por Kleber Mendonça Filho.

Com o porte e a realeza da soberana Iemanjá, a artista comanda

as atividades do Centro Cultural Estrela de Lia, transformado

desde 2008 em Ponto de Cultura, onde são oferecidas oficinas

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Lia, na Praia de Jaguaribe, Itamaracá.

de arte, cerâmica, percussão, fotografia, malabares, rabeca,

teatro, cavalo-marinho. Permanecem, ainda, as temporadas de

apresentação artística: recitais poéticos, bandas alternativas,

duplas de violeiros, filhas de Baracho, e, claro, a tradicional

ciranda de Lia. Toda a programação cultural é gratuita e

sempre conta com o envolvimento da comunidade local, ou

seja, os habitantes da Ilha de Itamaracá e, especificamente, os

da praia de Jaguaribe. Em franca ebulição, o Ponto de Cultura

foi contemplado, no início de 2009, com o prêmio Interações

Estéticas e Residências Artísticas, numa parceira da Fundação

Nacional das Artes (Funarte) com o Ministério da Cultura (Minc).

Quem mais se beneficiou foram os habitantes da localidade, com

as oficinas promovidas pelo mestre rabequeiro Luiz Paixão e pela

atriz Cinthia Mendonça.

Por onde viaja, Lia de Itamaracá vai somando os elogios que

tem recebido também na própria terra. É chamada de deusa,

rainha. Na França, um jornal comparou-a à cabo-verdiana Cesária

Évora. No Brasil, é constantemente relacionada a Clementina

de Jesus, sobretudo no sul e Sudeste. No mesmo local em que

nasceu, frequentou a escola primária e assistiu a muito coco

de roda, ciranda, pastoril e bumba meu boi. Não teve iniciação

musical com ninguém, foi aprendendo sozinha, inspirando-se

na paisagem iluminada da ilha, nos jangadeiros que saem para o

alto-mar e vêm trazendo peixes, nas ondas salgadas que quebram

na praia, na brisa marinha que tem lhe soprado aos ouvidos umas

rimas, sussurrando-lhe quantas estrelas tem o céu e quantos

peixes tem o mar. Versos e balanço encadeados pela percussão e

sopro realçam a voz rascante de Lia, “uma diva da música negra”,

conforme noticiou o New York Times. A deusa da ciranda sabe

envolver-nos todos, plena de generosidade e magnetismo, até

quando empresta a voz ao genial Capiba: “minha ciranda não é

minha só, é de todos nós, é de todos nós”.

As filhas de Baracho cantam ciranda com Lia.

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Manuel EudócioManuel Eudócio

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om voz pausada e dedos firmes na modelagem, é assim que o

primeiro galante do reisado vai debulhando os grãos de uma

vida dedicada à arte e à agricultura. É pelas mãos e pela oralidade

que saem as imagens trazidas da memória de um tempo em

que conviviam os amigos Vitalino, Zé Caboclo e Manuel Eudócio

Rodrigues. Sentado num banco de madeira, tem sempre diante

de si uma mesa, barro molhado e ferramentas para fazer as

esculturas, que, começadas no início do dia, por volta das cinco

da manhã, precisam ser concluídos ao final da mesma jornada.

As mãos não param, enquanto as lembranças emergem. Quase

aos 80 anos, o narrador, mestre Eudócio, exibe o vigor mental e

as habilidades manuais invejáveis de quem teve sempre uma vida

regrada, dedicada à família, ao plantio e, sobretudo, à catarse da

atividade artística iniciada ainda na infância, com a avó louceira

Tereza Maria da Conceição. De 28 de janeiro de 1931, nascido e

criado no Alto do Moura, Caruaru, o filho de Eudocio Rodrigues

de Oliveira e Maria Tereza da Conceição desde criança trabalha na

agricultura e ocupa as mãos esculpindo o barro.

Frequentou apenas seis meses de escola e é com o auxílio

das mãos e das experiências que vai descrevendo o que tem

vivido esses anos todos no Alto do Moura. São sete décadas de

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Peças de Manuel Eudócio.

aprimoramento, de adaptação ao gosto da freguesia e de convívio

com fregueses alemães, franceses, portugueses, americanos. De

viagens ao Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Portugal. Lembra

que as primeiras peças foram pintadas a dedo e, onde o dedo não

cabia, pintadas com auxílio de uma varinha. Mais adiante, resolveu

deixar peças ao natural, depois voltou a pintá-las. Gosta de fazer

bonecos grandes, coloridos, embora menos vendáveis. A queima

das esculturas sempre foi num forno do quintal, quinzenalmente,

exceto quando há encomenda urgente. De preferência, o forno

deve estar cheio, pois do contrário fica muito dispendioso.

O que não admite, sob hipótese alguma, é a utilização de fôrma

para moldar as esculturas. As experiências cotidianas sempre

serviram de fio condutor nas criações inspiradas: batizado,

enterro, casamento matuto, casamento forçado, casal andando

em boi manso, violeiro, sanfoneiro, banda de pífano, cangaceiros,

padre Cícero. Mergulhado no universo da cultura tradicional,

uma das inspirações recorrentes é o reisado, com os respectivos

personagens do folguedo natalino do qual participou: dona

Joana, diabo, doutor, padre, mascarado. Em 1948, quando

começou a fazer os bonecos, resolveu fazer um reisado. Fez vários

personagens e conseguiu vender a uma pessoa do Rio de Janeiro. Ateliê no Alto do Moura, em Caruaru.

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Depois, com a dificuldade de comercializar o conjunto, foi fazendo

as figuras individuais. O reisado já não sai no Alto do Moura, o

mestre sente saudade e tenta recuperar, no barro, as práticas

culturais da infância e juventude.

Eudócio sabe que é um criador, um perfeccionista. Jamais

desperdiçou os anos de convivência com Vitalino e Zé Caboclo.

Quando Vitalino saiu do Sítio Campos para o Alto, em 1948,

Eudócio tinha 17 anos. Conheceu os trabalhos do mestre na rua:

naquela época ninguém vendia escultura em casa, o local de

exposição era o buliçoso espaço da feira. Do professor, Vitalino,

lembra-se de muitas coisas: por exemplo, que passou dois anos,

com o cunhado Caboclo, trabalhando para o afamado ceramista

e nem sequer assinavam as próprias peças. Lembra, ainda, que

em 1957 já fazia questão de dizer aos compradores que aqueles

bonecos chamados de “Vitalino” também eram criação de

outros artistas. Com o desaparecimento do mestre, Eudócio não

acreditava na continuidade do ofício. Mostra-se impressionado

com a permanência da atividade e o aumento quantitativo de

artesãos.

A família, uma das pioneiras no ramo, tem na nova geração os

continuadores. Os irmãos Eudócio, Celestina e Josué herdaram o

ofício da avó e da mãe, e se veem sucedidos pelos filhos. Dos nove

filhos de Eudócio, Carlos e José Ademildo, e as respectivas esposas,

vivem do barro. Do casal Celestina Rodrigues e Zé Caboclo, as

filhas Marliete, Socorro, Carmélia e Helena “puxaram ao pai, que

era um artista de mão cheia”, segundo o tio Eudócio. Lembra,

inclusive, das miniaturas que fazia, quando jovem, e guardava

numa caixa de fósforos, esculturas em tamanho minúsculo que são

uma das especialidades das irmãs Rodrigues. A linha de sucessão

também se repete na família Vitalino, na família Rodrigues, na

família Galdino.

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A riqueza de detalhes nas peças de Eudócio.

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Maracatu Leão CoroadoMaracatu Leão Coroado

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écada de 1950 do século 20. O respeitado oluô (sacerdote

máximo) Luís de França recebe a incumbência de dirigir uma

brincadeira de carnaval, que havia sido fundada pelo pai, um

africano ex-escravo. O brinquedo era o Maracatu Leão Coroado.

Morto um dos coordenadores, corria-se o risco de não haver quem

o substituísse. Herança de família e de tradição religiosa, o baque

virado daquela nação nagô precisava continuar. Desafio aceito, a

vigorosa liderança de seu Luís proporcionou aos brincantes manter

a atividade ininterrupta desde 8 de dezembro de 1863, data

considerada como a de fundação, apesar de a memória oral indicar

a possibilidade de o Leão já existir desde 1852. Mesmo mantendo-

se a dúvida quanto ao marco fundador, o contexto político e

social no qual nasce o grupo é marcado pelo debate em torno da

abolição da escravatura e os maracatus eram folguedos de negros

escravos. Ressalte-se, ainda, que, no Recife, o dia 8 de dezembro é

dedicado a Iemanjá e a Nossa Senhora da Conceição, esta última,

a representação católica, no sincretismo religioso, daquele orixá do

culto nagô e padroeira da grande festa do morro, que acontece

anualmente na mesma data, em Casa Amarela.

Luís de França dos Santos é de 1º de agosto de 1901. Nasceu na

rua da Guia, bairro do Recife, filho de Laureano Manoel dos Santos

e Philadelpha da Hora. Segundo contava, durante a juventude

vendeu jornais ao longo da via férrea, até Palmares, o que o levou

a conhecer senhores de engenho e chefes políticos da região.

Ganhou muito dinheiro revendendo produtos importados, trazidos

nos navios, quando trabalhava de estivador, profissão exercida até

aposentar-se. Cresceu no bairro de São José, espécie de gueto de

escravos libertos, local onde aconteciam cultos africanos. Guardava

na memória a participação intensa em terreiro de candomblé, o

Sítio do Pai Adão, em Água Fria, embora a sua iniciação religiosa

não tenha acontecido lá. Os pais de santo de Luís de França foram

Eustachio Gomes de Almeida e Maria Júlia do Nascimento, a Dona

Santa do Maracatu Nação Elefante.

Apresentação na cidade de Goiana, 2003. Rei do Maracatu Leão Coroado.

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O líder começou a participar do maracatu quando a sede ficava no

bairro da Boa Vista, numa rua que hoje se chama Leão Coroado.

Foi membro da Irmandade de São Benedito da Igreja de São

Gonçalo da Boa Vista e da Irmandade do Rosário dos Homens

Pretos de Santo Antônio. Um dirigente desta última, José Luís, foi

quem passou ao afilhado Luís de França a direção do folguedo.

Daí em diante, o decidido líder passou a cuidar da organização

do grupo, das obrigações religiosas e da direção da batucada,

cujo baque secular aprendera com o pai e com os avós. Passado

por Luís de França, continua mantido o mesmo baque tradicional,

conforme garante o babalorixá Afonso Aguiar, que integra o

grupo a partir de 1996 e conduz a agremiação desde a morte de

França, em 1997.

Na função de rei e rainha, o Leão Coroado teve Estanislau, João

Baiano, José Nunes da Costa, José Luís, Gertrudes Boca-de-Sola,

Martinha Maria da Conceição e Dona Santa. Esta última, uma das

mais imponentes rainhas de maracatu, filha e neta de africanos,

marcou presença, sobretudo no Maracatu Nação Elefante. As

calungas são pretas, de madeira, e existem desde a fundação do

grupo: uma delas representa Oxum, é Dona Clara; a outra, que

representa Iansã, chama-se Dona Isabel. Durante mais de quatro

décadas – provavelmente de 1954 até a morte, em 3 de maio de

1997 – o mestre Luís de França guiou o grupo com dedicação

extremada, a ponto de provocar elogios da pesquisadora norte-

americana, antropóloga Katarina Real, que, no início dos anos

1960, realizou pesquisa sobre o folclore no carnaval do Recife.

À época, Katarina considerava o Leão Coroado a única legítima

nação de maracatu ainda existente. São desse período diversos

troféus conquistados pela agremiação.

Em outubro de 1996, França convida Afonso Gomes de Aguiar

Filho para sucedê-lo na liderança do grupo. Após amargar uns

anos de isolamento e consequente retração do maracatu, o filho

de Xangô acerta em adotar a sugestão do presidente da Comissão

Pernambucana de Folclore, pesquisador Roberto Benjamin, quanto

à indicação de Afonso Aguiar, que, desde então, tem conseguido

realizar importantes viagens e apresentações em São Paulo, Rio de

Janeiro, Bahia, Paraná, Santa Catarina, França, Holanda, Bélgica,

Suíça, Espanha, Itália, Timor Leste, Ilhas Canárias. A comemoração

dos 140 anos, em 2003, foi marcada pela gravação de CD, ao vivo,

com as toadas tradicionais do grupo. Voltando, ainda, a 1997,

o mesmo ano da morte de Luís de França, em 22 de dezembro

é instituído o Dia Estadual do Maracatu: pela Lei 11.506, fica

escolhido o 1º de agosto, em homenagem à data de nascimento

daquele mestre. Mestre Afonso e o centenário bombo-mestre.

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Nascido na Campina do Barreto, Recife, em 15 de março de

1948, o mestre Afonso comanda há mais de 20 anos um terreiro

em Águas Compridas, Olinda, para onde transferiu a sede do

maracatu e todo o acervo do grupo. Ao longo do ano, desenvolve

dinâmica de ensaios, aulas de percussão e toque de candomblé,

oficinas de feitura e manutenção dos instrumentos musicais, de

confecção do vestuário do maracatu, além de outras atividades

educativas, como a preparação de um corpo de baile de danças

afro. Todas as ações, tanto as preparatórias ao Carnaval quanto

as pedagógicas envolvem continuamente a comunidade, sob

a coordenação geral de Afonso Aguiar, que, inclusive, tem

comandado oficinas de percussão e de confecção de instrumentos

no Brasil e no exterior, a exemplo do Festival do Caribe, em

2009, na cidade de Santiago de Cuba. Seguidor fiel do mestre

Luís de França, empolgado com a repercussão do primeiro CD e

preocupado com a manutenção do grupo, o dedicado Afonso

anuncia que o master do segundo disco está pronto e que as

comemorações do sesquicentenário já estão sendo planejadas.

Na primeira edição do Prêmio Cultura Viva (2005/2006), do

Ministério da Cultura, o maracatu foi uma das iniciativas

contempladas, na categoria manifestação tradicional. A partir

de maio de 2008, o grupo é transformado em Ponto de Cultura.

Instalado no mesmo endereço da sede do maracatu, lá funciona

um telecentro, com cursos básicos de informática e acesso 24

horas à internet, para atendimento de demandas da comunidade,

em todas as faixas etárias. Com firmeza, o mestre mantém rotina

semanal de ensaios e de trabalho. A triagem de novos integrantes

obedece a exigentes normas de conduta social. Provavelmente, o

sucessor das tradições do terreiro e do maracatu será Afonsinho,

o neto nascido em 1997, que toca nas obrigações da seita e

tem comandado, quando necessário, a batucada do maracatu.

Entretanto, como frisa o mestre Afonso, o Leão Coroado é mais

religião do que carnaval. Com as bênçãos todas de Olorum, eguns

e orixás.

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As diferentes gerações no batuque do Maracatu.

Dama do Paço e sua Calunga.

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Zé do CarmoZé do Carmo

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asseando pelos labirintos da memória do artista e pelos objetos

mais recônditos do ateliê de José do Carmo Souza, conhecido

internacionalmente pelas estátuas de anjos cangaceiros, descobre-

se uma encantadora obra poética, uma narrativa visual do barro

massapê, que não se sabe exatamente quando e com quem

começa em Goiana, mas registra, com certeza, a importância

do legado materno de Joana Izabel de Assunção e dos filhos

talentosos. A mãe – oleira, artesã, costureira – fazia figuras de

barro e de pano, mané-gostoso e rói-rói. O pai, padeiro, fazia

máscaras em papel machê para vender aos foliões, o molde era

em barro e a modelagem em papel e grude. Manuel de Souza

dos Santos e Joana Izabel de Assunção chegam a Goiana no ano

de 1930, vindos de Igarassu, onde nasceram. Casados a partir de

1932, é um ano depois, em 19 de dezembro de 1933, que nasce o

primogênito, Zé do Carmo.

Conhecido desde 1947 no circuito artístico, autor de respeitável

conjunto de esculturas cerâmicas tão originais quanto às da mãe,

Escultura de anjo cangaceiro seria presenteada

ao Papa e a Igreja Católica se recusou a receber.

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foi com apenas sete anos, em 1940, que Zé do Carmo começa a

fazer figurinhas de barro, pintar com tinta d’água, como faziam

os pais artistas, e vender nas feiras de Goiana. Os dois irmãos,

João Antônio de Souza e Manuel Miguel de Souza, também

aprenderam o ofício dos pais. Das peças mais antigas de Zé,

destacam-se figuras de mendigo, agricultor, carregador de açúcar,

Preto Velho, anjo cangaceiro, apanhador de papel, apanhador

de água, vendedor de couro, jornaleiro, Lampião, Maria Bonita,

carregador de água, tocador de bandolim, Padre Cícero, Nossa

Senhora Artesã, São Pedro Pescador (o padroeiro de Goiana). No

acervo pessoal, conta com peças autorais feitas há cerca de 40 e

50 anos. Há uma rendeira que criou entre 1949 e 1950, quando,

segundo confessa, ainda copiava as figuras da mãe. A iniciação,

obviamente, foi com ela e o pai, mas o aluno atento, que cursou

apenas o Ensino Fundamental, sempre se valeu da observação e do

autodidatismo para aperfeiçoar a técnica e dar vazão às invenções

artísticas.

Depois que a mãe morreu, em 1972, Zé do Carmo inaugura uma

nova fase criativa, a que chama de “transfiguração humana”,

pois transforma anjos em cangaceiros, a despeito da vontade da

própria mãe, que não queria que o artista modelasse anjos com as

vestimentas do cangaço. Daí por diante, ganham asas, espingarda

e ares nada angelicais os beatos de movimentos messiânicos, os

cangaceiros Lampião e Maria Bonita, entre outros personagens da

cultura regional – o que resultou em polêmicas, sobretudo quando

Zé do Carmo ofereceu ao papa um monumental anjo cangaceiro

e o presente foi recusado. Medindo cerca de dois metros, a

escultura é mantida no ateliê, além de uma outra, em menor

proporção, também rejeitada pela Igreja, e mais um Papai Noel

nordestino, de gibão, alpercatas e chapéu de couro. Em 1982,

criou o Vovô Natalino, um velho simpático de aspecto messiânico

medindo 1,80 m, que faz Gilberto Freyre escrever artigo no Diario

de Pernambuco, de 2 de janeiro de 1983, louvando “bom e bravo

repúdio ao Papanoelismo que vem descaracterizando os bons

Natais castiçamente brasileiros...”.

Sobre a engenharia das peças gigantescas, o artista explica:

constrói um bloco até a cintura e espera secar. Depois que

está enxuto, torna oco esse bloco e levanta o restante. Em

seguida, modela os detalhes do corpo e do rosto. As peças ficam

alicerçadas numa base de barro e pousam sobre um suporte de

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Zé do Carmo e suas obras: um negro recém-liberto, pela "Princesa Isabel".

madeira com rodízios. Para ele, os primeiros trabalhos eram populares

demais. Depois disso, acredita que conseguiu modelar figuras de proporções

acadêmicas, como o Padre Cícero que mantém no acervo exposto no ateliê.

Tem, ainda, um busto de São Pedro jovem, que fez seguindo o padrão de

escultura neoclássica: proporção seguida à risca, com detalhes do rosto

bem-delineados. Durante muitos anos, foi professor de modelagem em

barro e de proporção. Escultor também em pedra, prova isso com um

busto exposto em meio às peças mais antigas. É inegável que, além da

observação do artista, o talento sobressai, garantindo a qualidade e a

adesão de discípulos. E não foram poucos os ceramistas que passaram pelo

ateliê de Zé do Carmo, na condição de aluno: Irene, Mário Pintor, Severino,

George, Tog, Luiz Carlos, Luiz Gonzaga, Précio Lira, Dica, Andréa Klimit

e Tiner Cunha. O único filho que possui não é discípulo, mas, segundo o

próprio pai, tem talento para a arte. Dedicado desde 1980 à pintura, o tema

preferido nas telas é o mesmo das esculturas: anjo cangaceiro.

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Zé do Carmo hoje e as obras Zumbianjo e o anjo-cangaceiro.

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Homem da Meia-NoiteHomem da Meia-Noite

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e fraque, cartola, gravata borboleta, dente de ouro, lá vem o

Homem da Meia- Noite, vem pela rua a passear, enfeitiçando

os céus olindenses e arrancando suspiros de amor. Claro, é o mais

afamado galante, o grande Don Juan do carnaval de Olinda e não

é, de maneira alguma, simplesmente um boneco, é calunga, com

todos os atributos e segredos que essa palavra suscita. A figura

do sorridente cavalheiro, envolta em mistérios e rituais próprios, é

associada ao candomblé, pois foi no dia 2 de fevereiro de 1932,

data dedicada a Iemanjá, que o calunga de madeira desfilou

pela primeira vez na tradicional folia. O Homem da Meia-Noite,

com cerca de quatro metros de altura, é o mais antigo boneco

gigante de Olinda. Nascido na categoria “troça” em 1932, passa

a clube de alegoria e crítica a partir de 1936. É de muitos anos,

portanto, que o galanteador vem arrancando suspiros de moças e

senhoras postadas à janela para ver o amado passar: ele próprio

em figura de gentleman anima as ladeiras do sítio histórico desde

a madrugadora invenção na longínqua década de 1930.

As ruas estreitas, sobretudo a do Amparo, e o Largo do

Bonsucesso testemunham a alegria e irreverência dos foliões

que gastam pelos menos quatro horas para acompanhar um

dos desfiles mais cobiçados da folia olindense. O percurso

é praticamente o mesmo desde o princípio, e o boneco vai

desfilando trajado de verde e branco, com um relógio na lapela

e a chave da cidade nas mãos. A saída acontece pontualmente

à meia-noite do sábado de Zé Pereira, partindo da sede, que

fica em frente à igreja do Rosário dos Homens Pretos, no

Bonsucesso. O local é marcado pela prática de tradições culturais

de negros escravos, desde a construção do templo religioso na

segunda metade do século 17, e, inclusive, foi essa a primeira

igreja em Pernambuco a ter irmandade de homens pretos.

Nenhuma estranheza, portanto, quanto à ligação do calunga

com o candomblé, mesmo que a aura de misticismo se misture à

irreverente balbúrdia momesca, em meio a orações e oferendas

com cachaça na troca de roupas do calunga, nos preparativos do

sábado à tarde.

Saída do Homem da Meia Noite, Estrada do Bonsucesso, Olinda, 1998.

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Fotografia da sede da banda nos anos 1990.

A existência do grupo carnavalesco se deveu a uma dissidência

de integrantes da Troça Carnavalesca Mista Cariri, fundada em

1921 e que àquela época era quem abria o carnaval, saindo às

quatro da manhã do domingo. O exímio entalhador Benedito

Bernardino da Silva, ou “Benedito Barbaça”, o encadernador

Cosmo José dos Santos, o pintor de paredes Luciano Anacleto

de Queiroz, acompanhados de Sebastião Bernardino da Silva,

Eliodoro Pereira da Silva e do sapateiro Manoel José dos Santos,

apelidado “Neco Monstro”, ao se sentirem excluídos da diretoria

daquela troça decidiram criar uma nova agremiação que “desse

uma rasteira no Cariri”, conforme conta o pesquisador Olimpio

Bonald Neto, no livro Os gigantes foliões em Pernambuco. O autor

refere, aliás, que esse não foi o primeiro gigantone a aparecer no

carnaval pernambucano: o mais antigo registro é creditado a Zé

Pereira e Vitalina, bonecos nativos da cidade sertaneja de Belém

do São Francisco, criados respectivamente em 1919 e 1929.

Quanto ao surgimento do boneco olindense, pelo menos duas

versões explicam a genealogia do fenômeno: uma delas credita

Saída oficial do Homem da Meia Noite, no Carnaval de 2003.

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ao cinéfilo e fundador Luciano Anacleto de Queiroz a inspiração a

partir do filme O ladrão da meia-noite; a outra atribui a Benedito

Bernardino, fundador e autor do hino da agremiação, a construção

do calunga a partir de alegado flagrante de certo namorador, alto,

elegante e sorridente, que andava principalmente na madrugada

do sábado para o domingo, sempre de verde e branco, com

chapéu preto e dente de ouro.

A dissidência do Cariri foi tramada em dezembro de 1931. Para

dar forma ao boneco que ganharia as ruas à meia-noite do sábado

de Momo, os fundadores Benedito Barbaça e Luciano de Queiroz

tomaram todas as providências de marcenaria e pintura, na

modelagem daquele que seria o boneco dos primórdios do grupo.

Originalmente, o calunga pesava mais de 55 quilos, porque, além

da armação em madeira, a cabeça, o busto e as mãos eram feitos

em papel gomado; os braços, recheados com palha de colchão;

nas mãos, areia para dar peso e equilíbrio às evoluções executadas

ao som do frevo. Evidente que o boneco passou por um processo

de reengenharia, a fim de perder peso e, assim, aliviar a carga do

carregador ou “chapeado”. Um dos mais ilustres carregadores foi

Alcides Honório dos Santos, Cidinho, que durante mais de quatro

décadas deu vida e alma ao boneco. Bastos “Botão”, Henrique

Alabamba, Amaro de Biluca, Paulo 19, Pedro Garrido compõem a

galeria dos chapeados do Homem da Meia-Noite.

Esses históricos nomes animam, há décadas, a algazarra de

foliões inveterados, além dos novatos que são acrescidos às

ladeiras estreitas de Olinda, a cada ano. E o mais animador é

saber que a alegria repercute durante todos os meses, com o

projeto social Gigante Cidadão – Ponto de Cultura nacional desde

2005 – que oferece, de segunda a sábado, na sede do clube,

oficinas de música, dança, teatro e vídeo a cerca de 50 crianças da

comunidade. Apreciando de dentro ou de fora do boneco, quem

haveria de resistir a esse fogoso e ao mesmo tempo sóbrio cidadão

olindense, a esse magnético sorriso de manequim, a essas gigantes

pernas de pau dançando na multidão?

Saída dos clarins à cavalo na frente da agremiação, década de 1980.

O atual presidente da agremiação, Luiz Adolpho.

O relógio. Carnaval de 2014.

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Índia MorenaÍndia MorenaLu

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ontorcionista, trapezista voadora, acrobata, cantora, ginasta,

atriz circense. Eis aí alguns dos atributos da grande dama do

circo pernambucano: Margarida Pereira de Alcântara. Ou, Índia

Morena, nome artístico deliberadamente escolhido por serem

índios o pai e a avó paterna. Destacada pela dedicação profissional

exclusiva à vida circense, Margarida convive desde os 10 anos

com o magnetismo do mundo dos mágicos, palhaços, humoristas,

rola-rola, malabaristas, equilibristas. Na verdade, a estreia na vida

artística foi inaugurada, a partir de 1952, em shows de calouros,

nas matinês infantis promovidas pelo Circo Democratas, que

aconteciam na Vila de São Miguel, bairro de Afogados, Recife,

onde àquela época o circo estava montado. Aos 12 anos, a

cantora mirim já interpretava, com alma, canções de Vicente

Celestino, Ângela Maria, Núbia Lafayete.

Filha de Eloy Pereira de Alcântara e Maria das Dores de Alcântara,

Margarida nasceu no Recife, em 13 de julho de 1943. Órfã de pai

aos nove anos, interrompeu os estudos no terceiro ano primário

e não havia grande expectativa de desenvolvimento profissional,

sequer de realização artística, para essa criança nascida e criada

dentro da maré, pescando crustáceos nos mangues de Afogados

para ajudar na sobrevivência da família. Adotada por Severino

Ramos de Lisboa – o palhaço Gameloso – e afilhada de crisma de

Maria Tenório Cavalcanti – a dona do antigo circo Itaquatiara Real,

no qual Índia se engajou a partir de 1º de julho de 1953, contra a

vontade materna –, essas confluências resultaram, claro, do talento

evidente da jovem circense e contribuíram para o florescimento

de singular trajetória artística. E mais: vieram acrescentar novos

elementos à história dos circos populares do Brasil.

Além de realizar viagens pelos Estados Unidos, Argentina,

Paraguai, Uruguai, Bolívia, trabalhando em diversos circos – dentre

os quais o Gran Bartolo, o Garcia, o Itaquatiara, o Edson, o Águia

de Prata, o Coliseu Mirim, o New American Circus –, Índia Morena

organizou, com a participação de Albemar Araújo, a coletânea

Dramas Circenses, em que foram transcritos seis tradicionais

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dramas encenados nos circos populares, tais como A louca do

jardim e Lágrimas de mãe. As peças teatrais, cedidas por Índia,

fazem parte do acervo da Associação dos Proprietários e Artistas

Circenses do Estado de Pernambuco (Apacepe), organização

fundada em 1993 por Índia Morena e pelo marido, Maviael Ribeiro

de Barros. O livro, contendo 161 páginas, foi publicado em 2006,

pela Fundação de Cultura Cidade do Recife.

Índia Morena considera o circo “o palácio onde vive com alegria”

desde os 13 anos, quando decidiu largar totalmente a mãe e

entregar-se de vez ao picadeiro: passou no teste de caloura e foi

contratada para trabalhar no Itaquatiara. “Ali, eu vi o mundo”:

foi assim que nasceu para a vida artística, ao mergulhar desde

a primeira vez na lona de um circo e depois sagrar-se como

trapezista voadora e melhor contorcionista pernambucana. Depois

do Itaquatiara, trabalhou como ginasta e cantora num circo de

Olinda, o Circo do Palhaço Violino. Atuou no Circo Águia de

Prata, de propriedade de Euclides Águia de Prata que, depois,

passou a ser o Circo Edson. Ainda participou do Coliseu Mirim,

pertencente a um funcionário da prefeitura do Recife, conhecido

Apresentadora do próprio circo,

Índia Morena inicia mais um espetáculo,

dessa vez no subúrbio de Jaboatão.

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por Benigno. Em meio ao talento e à dedicação integral à carreira,

ia consolidando-se um contínuo processo de aprendizagem no

próprio meio circense, a partir do convívio com grandes nomes

do circo e da ousadia de cada nova experiência. Entretanto, em

meio aos prazeres e conquistas da biografia artística, um grande

desgosto na vida de Índia Morena quase a leva à bancarrota:

a traição do ex-marido com uma menina de circo resultou em

doença e lesão pulmonar, com prolongado internamento no

hospital Otávio de Freitas. Foi aí onde conheceu o atual marido,

que nada sabia de circo e, entretanto, aceitou abraçar o ofício,

acompanhando-a ainda hoje.

Desde 1977 possui, com Maviael, o Gran Londres Circo, pois o

antigo proprietário do Circo Edson, falido, e para quem Índia

Morena trabalhava, doou parte do negócio a título de pagamento

pelos serviços prestados por ela à companhia circense. Índia nele

injetou experiência e recursos próprios e é no Gran Londres que,

desde essa época, vai exibindo as múltiplas habilidades aprendidas

em todo o percurso artístico, cantando e apresentando os

espetáculos. Em meio a uma trupe com mais de 20 integrantes,

contracena com um palhaço cantor e compositor de músicas

irreverentes, com equilibristas, contorcionistas, transformistas,

engolidores de faca, malabaristas, pernas-de-pau, escada giratória

e mais quatro palhaços. A temporada em cada local é variável,

conforme a aceitação do público. Os espetáculos são geralmente

noturnos, mas há também matinês nos finais de semana e

feriados. A folga é sempre na segunda-feira.

O Gran Londres, itinerante como deve ser todo circo de

tradição, circula, sobretudo, pelos arredores do Recife e Região

Metropolitana, a exemplo de Jaboatão, Paulista, Abreu e Lima.

Aonde o circo vai, agrega as bandas de música locais, fisga o

público com espetáculo tradicional e ainda oferece uma atração

única: um bode pagador de promessa, que sobe uma rampa,

ajoelha-se e beija uma imagem de Nossa Senhora Aparecida,

padroeira do Brasil. “Eu só tenho o terceiro ano primário, mas

quem tem o primeiro ginasial não vai comigo, não, porque eu

aprendi muita coisa em teatro”, vangloria-se a artista, que também

não esquece a dureza da infância mergulhada na lama, catando

caranguejo. Apesar de todas as mazelas, Índia segue cantando

e louvando a magia do circo, com a elegância e o magnetismo

próprios de uma grande dama circense.

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José Costa LeiteJosé Costa Leite

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versatilidade tem marcado a trajetória do cordelista, xilógrafo

e autor de almanaque popular. Nascido a 27 de julho de

1927, em Sapé, na Paraíba, o filho de Paulino Costa Leite e Maria

Rodrigues dos Santos radicou-se em Condado, Pernambuco, a

partir de 1955. José Costa Leite estreou na literatura de cordel

em 1947, vendendo, declamando e escrevendo folheto de feira.

O primeiro almanaque foi feito em 1959, para o ano de 1960,

e chamava-se, àquela época, Calendário brasileiro. As primeiras

xilogravuras são de 1949, para os folhetos, de própria autoria, O

rapaz que virou bode e a Peleja de Costa Leite e a poetisa baiana.

Na infância e adolescência, trabalhou na cana, plantou inhame,

foi cambiteiro, cambista, mascate, camelô de feira. Xilogravador

primeiramente por obra da necessidade, ou seja, a de produzir

a capa dos próprios folhetos, Costa Leite conseguiu aprimorar o

talento para as artes plásticas nessas seis décadas de familiaridade

com a madeira, quicé, goiva e formão. Como acontece a diversos

autores de cordel, o talento extrapola o mundo da escrita. É ele

quem desenha e talha na madeira e depois imprime no papel as

ilustrações de capa dos próprios folhetos. Conforme tradição dos

gravadores populares pernambucanos, que se iniciaram a partir do

diálogo com a poesia, aprendeu sozinho a arte da gravura, vendo

fazer e experimentando.

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Os primeiros cordéis chamavam-se Eduardo e Alzira – “uma

historinha de amor”, conforme classificação do próprio poeta – e

Discussão de José Costa Leite com Manuel Vicente, cujos temas

eram “se não casar perco a vida” (Costa Leite) e “eu morro e não

caso mais” (Manuel Vicente). Essas primeiras publicações não tinham

ilustração de capa, apenas os letreiros. Voz imortalizada, na década

de 1970, em três LPs gravados no Conservatório Pernambucano de

Música, nos quais deixou registradas grandes histórias de cordel,

Costa Leite já cantou muito na feira da cidade onde vive e na vizinha

Goiana. Atualmente continua indo, sozinho, de madrugadinha

e em transporte coletivo, vender folheto em Itambé, cidade

pernambucana em que o outro lado da avenida principal é Pedras

de Fogo, Paraíba. São duas cidades, dois estados numa mesma

geografia, espécie de síntese da vida do poeta. Assim que se encerra

a feira, por volta do meio-dia, segue para Itabaiana, Paraíba, dorme

lá, e, dia seguinte, passa a manhã cumprindo um ofício que exerce

há mais de seis décadas. Cantava e vendia bem nas feiras. Ainda

dá voz a uma ou outra estrofe. Às vezes, recita e canta trechos de

folheto da própria autoria, como O sanfoneiro que foi tocar no

inferno, e mais alguns versos de outros autores, a exemplo de O

navio brasileiro, clássico de Manoel José dos Santos.

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A diversidade de temas na obra de Costa Leite: o amor, o sertão e a beleza da mulher.

Costa escreve diariamente. Aventura, discussão, exemplo

são alguns dos temas preferidos. Criou pelejas fictícias com

importantes personagens do mundo da cantoria de viola, como

Preto Limão, Severino Borges Silva, Patativa do Assaré, Ivanildo

Vila Nova. Publica versos fesceninos sob pseudônimo para,

segundo ele próprio, não manchar a reputação do restante

da obra. Assina H. Renato, João Parafuso, Seu Mané do Talo

Dentro, Nabo Seco nos folhetos de safadeza, cheios de picardia

e duplo sentido, como A mulher da coisa grande, A pulga na

camisola. Frequentador assíduo da capital, semanalmente vem

ao Recife entregar originais ou receber edições produzidas

na Editora Coqueiro. Viajava muito a Olinda, entre os anos

1970 e 1990, quando editava os folhetos na Fundação Casa

das Crianças. Tem, também, folhetos impressos na editora

Tupynanquim (Fortaleza, Ceará), do poeta e artista gráfico

Klévisson Viana.

Entretanto, independentemente de quem imprime, todas as

publicações autorais recebem o selo A voz da poesia nordestina,

de José Costa Leite. E recebem, na capa, xilogravuras do próprio

autor. No campo da astrologia, continua a escrever o Calendário

nordestino, distribuído para todos os estados do Nordeste, Rio

de Janeiro e São Paulo. Sobre os cordéis, não tem a menor ideia

da quantidade de histórias que fez chegar a leitores e ouvintes,

além dos muitos manuscritos inéditos que guarda nas gavetas.

Contudo, para além de todas essas rememorações, há muito

mais: Costa Leite, andarilho das tradições, é testemunho vivo

de mais de 60 anos de peregrinação por feiras e mercados de

Pernambuco, da Paraíba, do Ceará. São mais de oito décadas

com vigor físico e memória suficientes para comercializar os

folhetos que produz e recapitular parte da história das edições

populares brasileiras, da qual é um dos protagonistas.

Acervo pessoal de JCL contém

manuscritos, matrizes, xilogravuras,

estoque de cordéis variados.

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Confraria do RosárioConfraria do Rosário

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o som de caixa, zabumba e pífanos, o último dia do ano em

Floresta é solenemente comemorado: a secular irmandade

denominada Confraria do Rosário reservou, no calendário

religioso, o 31 de dezembro para festejar Nossa Senhora do

Rosário, a patrona dos confrades. Paralelamente, a cidade

comemora a festa do padroeiro, o Bom Jesus dos Aflitos. Assim,

no início da manhã, os fogos logo denunciam: é chegado o dia do

desfile e coroação dos reis, que, em azul e branco, se apresentam

ornados com manto, cetro e coroa. Acompanhados de vistoso

cortejo, com estandarte, guarda de honra armada de espada e

séquito de juízes, todos trajados de branco, os componentes da

confraria cantam, louvando a Senhora do Rosário: Virgem do

Rosário, sois uma alta rosa / Que entre as mais flores sois a mais

formosa – ou com antigas loas, como a registrada, em 1957, por

Álvaro Ferraz, no livro Floresta: Memórias duma cidade sertaneja

no seu cinquentenário: Oi Quenda, oi Quenda, / Oi Quenda,

Maravi’a! / Hoje é dia do Rosário / Do Rosário de Maria. Pequenos

agricultores e criadores das Fazendas Paus Pretos e Boqueirão,

empregados de um curtume e funcionários públicos compõem o

grupo, formado por habitantes da zona rural e também da sede

do município.

A comunidade é, sobretudo, formada por quilombolas e, por

isso mesmo, é símbolo de resistência negra. Nesse contexto

socioeconômico e cultural floresceu a irmandade religiosa, que,

conforme registros datados de 1792 e depoimento de João Luiz da

Silva, rei perpétuo desde 2007 e representante legal da instituição,

há mais de 200 anos a confraria existe na cidade de Floresta

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dos Navios, sertão de Itaparica. Composta por 36 membros,

sobretudo antigos guardiões da tradição, a cada ano o ritual se

repete sempre no mesmo dia, com a missa matinal e mesa farta

à base da culinária regional para todos os que estiverem na festa,

e entra pela tarde, quando são coroados os novos reis para o ano

seguinte, conforme escolha das juízas (às vezes, a decisão decorre

da necessidade de pagamento de promessa). À noite, a irmandade

prestigia a missa do padroeiro e sempre faz questão de que o dia

dedicado aos negros seja o melhor do novenário.

A Igreja do Rosário é o ambiente onde se desenrola parte da

festa. Construída em 1777, pelo capitão José Pereira Maciel,

em homenagem ao Senhor Bom Jesus dos Aflitos, na localidade

denominada Fazenda Grande, de onde se originou a cidade

de Floresta, sabe-se que somente em 1792 é que a igreja foi

inaugurada, e, segundo tradição oral, desde essa data a confraria

existe, embora somente a partir de 1897 o templo passe a ser

dedicado a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, quando

o padroeiro da cidade, o Bom Jesus dos Aflitos, ganhou novo

templo defronte. Tais irmandades, a exemplo da Confraria do

Rosário, incluem-se, conforme defende o pesquisador Veríssimo de

Melo, entre as “várias formas de reações contra-aculturativas dos

negros no Brasil”. A existência de irmandades religiosas de homens

pretos e suas respectivas cerimônias estão sempre intimamente Reprodução de fotografias antigas do acervo do grupo.

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associadas às festividades de coroação de reis e rainhas e é uma

recorrência em folguedos e danças brasileiros, a exemplo de

reisados, congadas, maracatus, cambindas, pretinhas do congo.

A 500m das duas igrejas, está a sede da Confraria do Rosário,

de onde sai a rainha para, com o rei, seguirem à igreja. São

precedidos por oito espadachins e acompanhados de 11 juízes.

Há cinco juízas principais, estas são as mais antigas integrantes

do grupo, a quem todos devem obediência, inclusive rei e rainha.

Entre elas, uma é juíza do rei, outra é da rainha. Há, ainda, dois

juízes do andor, dois para as espadas e duas juízas são do altar.

O cortejo, segundo antigos relatos, era composto por quatro

espadachins, sendo dois velhos e dois jovens. Conforme dá conta

João Luiz, Manuel Preto foi um grande espadachim que ocupou a

função desde criança e por mais de 70 anos. Entretanto, antes de

morrer, passou o cargo para Manuel Caetano, ou Jubileu, que tem

33 anos. Hoje, os espadachins são todos jovens, menos Seu João,

que tem 80 anos. Cabe aos espadachins a proteção do cortejo

real, cruzando as espadas a fim de que rei e rainha possam passar

por todas as portas que estiverem no caminho até à igreja. Eles

também realizam movimentos que se assemelham a um imaginário

combate ou luta de espadas. Na procissão, São Benedito abre o

cortejo dos santos, acompanhado da imagem histórica de Nossa

Senhora do Rosário e do Bom Jesus dos Aflitos. Uma banda de

pífanos, composta por quatro músicos – dois pífanos, uma caixa

e uma zabumba –, vai executando músicas religiosas. Apenas na

volta da missa, alterna repertório variado com a banda de música

da cidade, tocando inclusive frevo, forró, maracatu. João Grande,

que foi rei perpétuo durante cerca de duas décadas, certamente

estaria satisfeito vendo perpetuar-se a festa dos ancestrais.

Tesoureiro Quinca Leocádio e Rei Perpétuo João Luiz. Rainha Perpétua Lúcia de Amaro, falecida em junho/2010. Juiz das Espadas Manoel Cassiano e Espadachim Fernando.

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Zezinho de TracunhaémZezinho de Tracunhaém

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e cambiteiro, cortador de cana e agricultor chegou a pedreiro

e barbeiro, num tempo em que, nos anos 1960, de dia

labutava na construção civil e à noite, na cerâmica. Para aumentar

o orçamento, também se virava nas artes da barbearia. O estalo

que desencadeou toda a carreira artística aconteceu no dia 20 de

abril de 1966, conforme registrado no jornal Gazeta de Nazaré,

em artigo escrito pela jornalista Marliete Pessoa e publicado a 27

de agosto de 1966: “No cortiço do velho prédio do Acadêmico,

nasce mais um artista do povo”. Soldado, boêmio, músico,

valentão, vendedor de milho assado e de amendoim, mendigo de

braço cotó, marceneiro, pedreiro, ferreiro: essas são as primeiras

figuras que reinam na gênese da estatuária do mestre Zezinho.

Os primeiros ensaios de modelagem resultam de inquietações e

descobertas próprias de artista, a partir da observação do trabalho

de Lídia Vieira nas visitas inspiradoras à vizinha Tracunhaém. O

artista lembra, entretanto, que a primeira peça foi um par de

namorados, encostado na porteira de um engenho de açúcar,

com cerca de 20 cm de altura. Nessa época ele vivia em Nazaré,

era trabalhador rural e o barro que esculpia vinha de um engenho

próximo, o Alcaparra.

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Zezinho, ao lado da escultura de São Francisco de Assis.

Detalhes da obra do autor.

A estreia no cenário artístico aconteceu na 1ª Exposição de Arte

Popular em Nazaré da Mata, na biblioteca municipal, organizada

pela jornalista que escreveu o artigo, e inaugurada a 1º de outubro

de 1966, mesmo ano em que o escultor se inicia e é descoberto

pela jornalista. Exibe 60 bonecos. Nessa mesma década, dois

anos depois, ou seja, em 1968, decide morar em Tracunhaém

e dedicar-se exclusivamente ao trabalho de ceramista. Era a

época em que os famosos da região eram José Antônio e Lídia

Vieira, então viúva do renomado santeiro Severino. O filho de

Júlia Batista da Cruz, que nasceu em Vitória de Santo Antão, a 5

de julho de 1939, jamais havia pensado que antes dos 30 anos

fosse viver em Tracunhaém e se sustentar do ofício de ceramista.

Nem mesmo imaginou que receberia o título de cidadão daquele

município, o que aconteceu em novembro de 2002. Honraria que

vem se somar à comenda Troféu Construtores da Cultura Cidade

do Recife, recebida em 1992, e ofertada pelo então prefeito da

capital pernambucana. Além da jornalista Marliete Pessoa, um

dos principais incentivadores e divulgadores da obra do santeiro

foi o colecionador pernambucano Abelardo Rodrigues, que

frequentemente visitava o artista e encomendava trabalhos.

Há mais de 40 anos radicado naquela cidade da Mata Norte, José

Joaquim da Silva não calculava que conquistaria alguma fama

com os gigantescos santos de barro, pois sequer tinha parentes

envolvidos com a arte cerâmica, quando optou pelo ofício.

Constituída a fama de homem talentoso, calcada na inventividade

de peças como José e Maria Grávida, Lampião, Maria Bonita, São

José de Bota, Pietà, é que os filhos e a esposa também passaram a

viver do artesanato em barro, cuja matéria-prima vem da Paraíba.

A esposa, Maria Marques, mais quatro dos nove filhos – José

Carlos, Josenildo, Cláudio e Fernando –, e dois dos13 netos –

Lucas (filho de Carlinhos) e Bruno (filho de Cláudio) –, todos eles se

inspiraram na labuta de Zezinho e passaram a trabalhar as próprias

peças em regime semicoletivo, envolvendo-se com o conjunto

Filhos se dedicam ao mesmo ofício.

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das etapas, que vão desde o preparo do barro até à modelagem,

secagem, queima em forno a lenha e coloração das esculturas.

Nelas, predominam os motivos sacros, dondocas e namoradeiras.

Algumas das obras do mestre recebem dele mesmo uma

certificação de autenticidade, como é o caso da peça São Francisco

sentado olhando para o céu, registrada como peça única e com

data de conclusão em 1º de setembro de 2004. A temática

preferida do artista é a sanfranciscana, em que o santo e pássaros

são esculpidos em grandes proporções. Especialista em imagens

sacras, grandioso é o aspecto visual da obra de Zezinho, que adora

modelar peças com dois metros de comprimento e prefere pintá-

las com tinta terracota. Na Mata Norte, Tracunhaém, topônimo

indígena que significa panela de formiga, testemunha há décadas

o florescimento de diversos artistas do barro, tais como Antônia

Leão, Lídia Vieira, Severino Gomes de Freitas, Nuca, Maria Amélia.

O mestre Zezinho, um dos mais antigos ceramistas vivos naquela

cidade, tem obras espalhadas pelo mundo, em museus, igrejas,

coleções particulares. Sua obra tem figurado em inúmeros salões

de arte, coroando décadas de habilidades manuais e invenção.

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Zezinho, em seu ateliê na cidade de Tracunhaém.

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Caboclinho Sete FlexasCaboclinho Sete Flexas

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uem são vocês que vêm da jurema?” Esta é pergunta

que pode ser feita a um mestre daqui, mais precisamente

a José Severino dos Santos Pereira, o Mestre Zé Alfaiate, sócio

fundador do Caboclinhos 7 Flexas, desde 7 de setembro de 1971,

no bairro de Água Fria, Recife. Com a finalidade, expressa no

estatuto, de “promover e desenvolver atividades carnavalescas,

recreativas, sociais e culturais”, Alfaiate lembra que criou a

brincadeira no ano de 1969, em Alagoas. Nessa época, em

que frequentava terreiro de umbanda, certa vez sonhou com o

Caboclo Sete Flexas – “cacique, pajé, deus do sol e deus da lua,

moreno, alto, foi criado sozinho nas matas e é curandeiro” – a

quem fez pedido. Portanto, graças a promessa, e como oferenda,

decidiu que criaria o clube, sob a proteção daquele guia,

exatamente por considerar unha e carne caboclinho e jurema.

Nascido em São Lourenço da Mata, em 25 de julho de 1924,

Alfaiate volta para Pernambuco em 1971 e, embora à época

mantivesse vínculo com o antigo Caboclinhos Carijós (de 1896),

em que começou a brincar aos 10 anos, funda o grupo que se

mantém exuberante, graças à dedicação integral que dispensa

ao brinquedo, das mais triviais demandas às mais invisíveis,

como bordar fantasia e levar comida para o caboclo da mata. Os

caboclinhos, da linha da jurema, são uma das belas e tradicionais

expressões do carnaval pernambucano.

Mais do que somente com pajelança, é à base de muito sacrifício

e trabalho que o caboclinho se mantém firme e vigoroso. Paulo

Sérgio dos Santos Pereira, ou Paulinho 7 Flexas, é filho e parceiro

incansável de Alfaiate, ao lado da mãe, Marlene Francisca

Neponucena. Figura importante na organização do grupo e um

dos mais respeitados dançarinos tradicionais do país, Paulinho 7

Flexas dança desde os dois anos. Nascido em Maceió, Alagoas,

a 28 de outubro de 1968, a partir dos 14 anos passa a dar aulas

no Teatro Brincante, na capital paulista, a convite do multiartista

Antônio Carlos Nóbrega. Paulinho e o sobrinho Carlos André

Rodrigues Pereira são os guias Jupi e Agaci, puxadores dos

Mestre Alfaiate.

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irmã Carla dos Santos Pereira são as guias Taquaraci e Jupiara, dos

cordões das caboclas. Alfaiate, além de tudo, comanda desenhos

e bordados da vestimenta. No caboclinho, o núcleo familiar lidera

todas as atividades: onde há a casa, há a sede do brinquedo, a

oficina de dança com os ensaios semanais, as sessões de costura

e bordado, as reuniões, os preparativos de cada carnaval, enfim,

a colorida e melodiosa alegria, a firmeza dos gritos de guerra do

folguedo, mesmo quando em repouso tocadores e bailarinos.

Guerra, baião, perré, toré de caboclo, guerra: alternam-se as

batidas ou toques executados pelo baque, assim denominados

os músicos. Ouvidos atentos à execução das loas ou versos

gritados – os gritos de guerra, e das loas ou versos declamados,

improvisados ou não, sincronizados com a regular batida das

Paulinho Sete Flexas, Oficina de Transmissão de Saberes, FIG 2012.

preacas (conjunto de arco e flecha em madeira), tarol, atabaque,

caracaxá marcam a melodia executada pelo gaitista. Reginaldo

Caetano do Nascimento, ou Nadinho da Gaita, é o músico que

executa as melodias no instrumento também chamado flauta ou

inúbia. O tirador de loa pode ser o cacique, o puxante, o guia,

o morubixaba. Nesse caso, é Paulinho 7 Flexas quem puxa as

loas. Enquanto isso, os olhos se maravilham com as flutuações

de penachos e plumas, com o saltitar das coreografias. Cacique,

cacica, pajé ou curandeiro, os curumins, os guias Jupi e Agaci, a

ala dos caboclos, os contraguias ou substitutos dos guias, as guias

Taquaraci e Jupiara, a ala das caboclas são as figuras que enchem

de graça as ruas e os olhares, aprendizes ou não. É obedecendo

aos sons dos caboclos do baque que os brincantes exibem

coreografia aeróbica, plena de leveza e agilidade. Impossível não se

encantar com a sonoridade e as coreografias de um caboclinho.

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O terno do Caboclinhos: o bumbo, a gaita e o caracaxá.

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Soar

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cordões dos caboclos. A sobrinha Adriana Rodrigues Pereira e a

Conforme depoimento de Paulinho, o grupo pertence à mesa

branca, espírita, aos orixás de caboclo, à mesa da jurema. Entre

os ritos, há a saída de caboclo. Uma semana antes do Carnaval,

é necessário preparar uma oferenda, ou seja, levar comida para

o caboclo da mata. Um prato virgem, sete bifes, sete qualidades

de fruta, uma vela e mel. O pedido é sempre pedido de paz:

contra brigas e desavenças. O pajé porta um cachimbo e dá

fumaçadas para limpar a frente do clube, quando os brincantes

estão dançando. A jurema, bebida preparada à base de vinho,

champanha, mel, liamba, semente e folha de alfavaca de

caboclo, é alcoólica, entretanto tem a função de limpar o corpo

dos brincantes – as ervas cortam as dores e os males físicos.

Muita lantejoula, semente de ave-maria, cocar de pena de

ema, machadinha, cabaça, cipó, lança e preaca são alguns dos

elementos que compõem o deslumbrante vigor da cabocaria. Nas

manobras e evoluções, as coreografias apontam para a dança do

cipó, a dança da rede, a caça do caboclo, o casamento de uma

tribo com outra. Os dois puxantes Jupi e Agaci marcam com apito

a virada dos ritmos. E o porta-estandarte sai na frente, anunciando

a chegada do clube: Caboclinhos 7 Flexas, um nome de respeito.

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Altar em homenagem ao Caboclo Sete Flexas.

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Selma do CocoSelma do CocoLu

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s cocos nordestinos, conforme escreveu Mário de Andrade,

“São ardentes. São expressivos. São profundamente

humanos e sociais”. Assim é que, entre tapiocas e coco, canta a

ex-tapioqueira da Sé de Olinda: O coco me adotou, me chamam

rainha do coco, o povo é meu amor. Filha de Maria Valentina

da Conceição e José Teodósio da Silva, Selma Ferreira da Silva

nasceu em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, a 10 de

dezembro de 1929. As lembranças mais antigas envolvendo a

brincadeira do coco de roda remontam à infância, claro, quando

pais e avós levavam aquela criança esperta e de voz melodiosa

para dançar e se divertir nos terreiros de chão batido e luz

de candeeiro. Frequentemente cantavam coco nas casas dos

compadres, sobretudo para comemorar o São João. As memórias

e experiências, aliadas ao talento artístico, deram o mote e Selma

vem glosando, com classe. E não deixa de ter importância saber

que a alegria da tradição familiar foi mantida, no desfiar de todas

essas décadas dedicadas ao ritmo.

Ainda criança, aos 10 anos, transferiu-se para o Recife, bairro

da Mustardinha, onde se casou, teve 14 filhos e, mal saía da

juventude, ficou viúva. Há 50 anos, decidiu morar em Olinda,

tradicional reduto de samba de coco, e daí por diante cultivou o

hábito de promover concorridas rodas para animar os finais de

semana da família e ganhar uns trocados. Quando foi tapioqueira

no Alto da Sé, jogava charme para os turistas com o feitiço da voz,

do temperamento e ritmo envolventes. Cantava coco na Sé, no

Carmo e na frente da própria casa, aos domingos. E, bom para

Selma, bom para todos, integrantes da geração manguebeat se

encantaram com a coquista, o que certamente contribuiu para a

consolidação da carreira da cantora. O filho José Ferreira da Silva,

pandeirista, foi o produtor, parceiro e diretor musical da mãe

famosa.

Morena do dente de ouro, qual é o teu feitiço? Cantando e

dançando um coco sincopado, matreiro e cheio de duplo sentido,

Selma sabe que agrada. E gosta do que faz. Embrenhando-se

Selma do Coco em frente à Igreja de Guadalupe, Olinda.

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no meio poético-musical do coco de roda, entramelando-se

nas devoções de um coco que sutilmente também batuca, o

grito de guerra “a-há” antecede o canto e faz a amarração de

uma performance cheia de ginga, simpatia e irreverência. Na

malemolência foi expandindo-se, conquistando o mercado.

Segundo a própria artista, o “a-há” não tem nenhuma relação

com orixás e outras entidades, o grito acontece enquanto o

pensamento vai rodando, procurando no repertório o próximo

coco a ser executado. Com três coletâneas gravadas na Alemanha

e uma na Bélgica, Selma do Coco também já cantou no Lincoln

Center Festival, em Nova Iorque, Estados Unidos, no ano de

2003. Tem feito shows Brasil afora: no Rio de Janeiro, em São

Paulo, Salvador, Natal, Fortaleza, Limoeiro do Norte, Itamaracá,

Garanhuns, citando apenas alguns dos locais por onde tem

passado. Os trabalhos se espalham em muitos países, como

França, Espanha, Suíça, Portugal.

No Recife, em 1990, quando ainda nem tinha um nome

consolidado no cenário nacional, participou do I Festival de

Cantadores de Praia do Nordeste, na praia de Boa Viagem. Em

1997, o festival recifense Abril pro Rock ajudou-a a deslanchar a

fama. Nesse mesmo ano, a Câmara de Vereadores concedeu-lhe

Netas fazem backing vocal do grupo.

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o título de cidadã olindense em reconhecimento à artista que

mora naquela cidade desde o final da década de 1950. O carnaval

pernambucano de 1998 ficou marcado pelo sucesso da música

A rolinha, gravada em Berlim, Alemanha, no estúdio Ufa Fabrik,

entre agosto e outubro de 1997, para o disco Cultura viva. E o

refrão Pega, pega a minha rola reinou quase absoluto naquela

folia. Em São Paulo, fez show no Instituto Itaú Cultural, no ano de

1998 e, na casa de espetáculos Tom Brasil, apresentou-se em 1999

com a banda de pífanos de Caruaru e Zeca Baleiro. Em 2006,

volta a se apresentar no Itaú Cultural. Recebeu a comenda 2007

“Ordem do Mérito Cultural”, diploma concedido pelo Presidente

da República Luiz Inácio Lula da Silva.

Dos vários CDs produzidos, foi com Minha história, gravado

na Alemanha e depois lançado pela Paradoxx em 1998, que

conquistou o Prêmio Sharp de 1999, concedido à música de

mesmo título do disco. Há, ainda, na discografia, Coco de roda,

o elogio da festa, gravado ao vivo em Olinda, em 1996, que,

após masterização na Bélgica, ficou pronto em 1999. Em 2000,

o filho Zezinho fez a produção geral e direção musical do disco

Jangadeiro. Outro trabalho é Raízes da cultura, gravado em Olinda

e lançado em 2003. Dona Selma: Bodas de ouro em coco, com

faixa multimídia, foi gravado e produzido entre 2008 e 2009.

Há, ainda, a registrar, a participação em várias coletâneas. Todos

os discos são independentes, e sempre sob a coordenação do

incansável Zezinho, à época o único filho vivo, lamentavelmente

falecido em abril de 2010.Pris

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Teatro Experimental de ArteTeatro Experimental de Arte

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que há por trás de um nome? Teatro Experimental de Arte

é o nome que resume toda uma vida dedicada às artes

cênicas e à formação de jovens e estudantes. Sociedade civil de

caráter puramente artístico cultural, é assim que se autodefine a

organização fundada em Caruaru, a 16 de julho de 1962, pela

pedagoga, atriz e encenadora Arary Marrocos Bezerra Pascoal

e pelo contador, ator e autor teatral Argemiro Pascoal, cuja

nomenclatura primeira – Movimento Teatral Renovador – foi

logo substituída pela atual, na ocasião da assembleia inaugural

para aprovação do estatuto. Ao lado de Arary e Argemiro, a

lista de fundadores inclui Antonio Paulino de Medeiros, Carlos

Fernandes da Silva, José Gustavo Córdula, Fernando Gomes de

Oliveira, Edvaldo Pereira de Castro, Antonio Silva, Margarida

Miranda, Maria José Bezerra, Abias Amorim, Paulo Roberto e

Sá, Maria Ezinete de Melo, Inácio Tavares e Jonas Mendonça.

Filiado à Federação de Teatro de Pernambuco (Feteape), o TEA é

considerado, por lei municipal, um órgão de utilidade pública.

Quando Argemiro se muda de Bezerros para Caruaru, em 1951,

de modo intermitente atuava na cidade o Grupo Intermunicipal

de Comédia, com a participação dos atores Rui Rosal, Joel Pontes,

Pedro Valença. Em 1956, o declarado apreciador da linguagem

cênica decide fundar o Teatro de Amadores de Caruaru (TAC),

com Cosme Soares, Creuza Soares, Antônio Medeiros e Wilson

Feitosa. Entretanto, é em julho de 1962, ocasião em que a

cidade recebe o I Festival de Teatro de Estudantes do Nordeste,

coordenado por Joel Pontes, caruaruense radicado no Recife,

que surge o TEA, justamente a partir da breve, mas instigante,

experiência e da constatação de que algo precisava ser feito

quanto à cena teatral local.

Marcado pela ininterrupta atuação no agreste pernambucano,

o grupo é o criador do Festival de Teatro Amador e Estudantil

do Agreste (Feteag), promovido desde 1988, e do Festival de

Teatro do Estudante de Pernambuco (Festep), que acontece a

partir de 2002. Tais eventos contam com a participação de alunos

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Peça Teatral "A Hora Marcada" de Isaac Gondim Com Arari sentada ao fundo da foto e Argemiro Pascoal, atrás da personagem central ao fundo da foto.

Peça teatral "A Derradeira Ceia" de Luiz Marinho, 1970, com o ator Argemiro Pascoal, atuando como o Soldado.

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São José do Rio Preto, em São Paulo; Feira de Santana e Salvador,

na Bahia; São Cristóvão, em Sergipe; Maceió, em Alagoas;

João Pessoa e Campina Grande, na Paraíba; Recife, Garanhuns,

de colégios privados e escolas públicas municipais e estaduais

daquela região, visto que um dos principais objetivos do grupo é

exatamente contribuir com o desenvolvimento de jovens talentos e

promover intercâmbios artísticos mediante a promoção de festivais

e mostras de artes cênicas. Outro importante projeto é o Teatro na

Comunidade, que consiste em apresentar espetáculos populares

em palco ou praças públicas da cidade e zona rural, inclusive

promovendo debate acerca de questões de interesse das próprias

comunidades.

Construída com recursos próprios, a sede fica no bairro de

Indianópolis. Chama-se Teatro Lício Neves, em tributo ao poeta

pernambucano. Anualmente, são oferecidas oficinas de iniciação

teatral, ministradas por Arary Marrocos, Jô Albuquerque, José Carlos

da Silva e Carlos Alves, sob a coordenação de Argemiro Pascoal. O

TEA é considerado um dos principais responsáveis pela renovação

da cena teatral do interior do estado. Além de já haver encenado

diversos textos de qualidade inquestionável, tais como A bruxinha

que era boa, O Baile do Menino Deus, Cancão de fogo, Morte e vida

severina, e os clássicos Antígona, Romeu e Julieta, A metamorfose,

entre os anos de 1967 e 1979 o grupo registrou participação

contínua no espetáculo da Paixão de Cristo, em Fazenda Nova. O

primeiro seminário do teatro de Caruaru foi promovido pelo TEA.

Desde a fundação, mais de 50 espetáculos foram encenados pelo

grupo que, inclusive, vem acompanhando o despertar de novos

talentos, a exemplo do premiado teatrólogo Vital Santos.

Sede do TEA, em Caruaru.

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Argemiro Pascoal, in memoriam.

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Arary Marrocos.

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Serra Talhada, Arcoverde, São José do Egito, Bonito, Limoeiro,

Pesqueira, Belo Jardim e Gravatá, em Pernambuco, são algumas

das cidades nas quais o grupo participou de festivais, mostras de

teatro e com as quais estabeleceu intercâmbio cultural. Ao longo

de todas essas décadas, o TEA se ocupa, igualmente, em promover

palestras, debates, seminários, simpósios. Diversos cursos têm

sido ministrados por importantes profissionais da cena teatral

e das artes, a exemplo de Clênio Wanderley, Marco Camarotti,

Luiz Maurício Carvalheira, Isaac Gondim Filho, Didha Pereira,

Rubem Rocha Filho, Romildo Moreira, Ivan Brandão, Valdeck de

Garanhuns, Roberto Benjamin, José Manoel, Zélia Sales, José

Francisco Filho, Feliciano Félix, Ivonete Melo, Valdi Coutinho,

Antonio Miranda Cavalcanti, José Soares da Silva (poeta e xilógrafo

Dila), ceramista Manoel Galdino, Vavá Paulino, Jorge Clésio, Joel

Pontes, Luiz Marinho Filho.

Obstinação: este é o motor que move o casal cheio de amor pelas

artes cênicas. O que resulta daí são as muitas trajetórias artísticas

que vêm ganhando o mundo, com a decisiva colaboração de Arary

e Argemiro.

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Atual elenco do TEA, 2014.

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CanindéCanindéLu

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onumental, com quase dois metros, a escultura guarda a casa,

imperturbável e acolhedora. É o Rei Canindé, o encantado que

livra de todos os embaraços e semeia o ânimo. É ele quem comanda

“a famosa Tribo Canindé do Recife, a campeonísssima do Carnaval”

e razão de viver de Juracy Simões, a se desmanchar em alegria

e lágrimas sempre que convidada a discorrer sobre o grupo de

caboclinhos, do qual é presidente e herdeira por tradição de família.

Praticamente desde os primórdios, pai e tios de Juracy comandaram

a agremiação carnavalesca, vinculada ao culto da jurema.

Sabe-se pela história oral que, na antiga Rua das Jangadas, no

bairro de Afogados, alguém conhecido por Elesbão ou “Libão”,

com a ajuda de um amigo, identificado apenas como Eduardo,

decidiu criar um grupo de caboclinhos. Ambos eram estivadores. A

data de fundação é 5 de março de 1897, e uma característica do

grupo, inicialmente denominado “Príncipe do Rio do Rei Canindé”,

era a participação exclusiva de curumins ou crianças. Em 1909,

quando passa a ser conduzido por Manuel Batista da Silva, ou

Manuel Rufino, a agremiação começa a aceitar a presença de

adultos (apenas homens), transfere-se para a Bomba do Hemetério,

bairro onde está ainda hoje, e a denominação muda para Canindé

do Recife.

Em 20 de fevereiro de 1957, sob a direção de José Silva Araújo,

o estatuto é registrado com o nome Club Indígena Canindé,

embora a brincadeira fosse conhecida por Tribo Canindé do Recife.

Poucos anos depois, dois irmãos de Rufino – Miguel e Severino

Batista da Silva – tomam a frente do grupo e é Severino quem

passa a comandá-lo. Tratado entre os colegas por “Criança” e em

família como “Bibiano”, Severino assume a missão de conduzir

o brinquedo, sem perder de vista a íntima relação com a jurema

sagrada. O símbolo do grupo é um índio com arco e flecha. As

cores oficiais são o vermelho e o branco. Desde essa época, década

de 1950, registros orais dão conta da participação feminina, o que

terminou se transformando num diferencial em favor do sucesso

conquistado nas décadas seguintes.

Reprodução de fotografia do aniversário de 106 anos do Canindé:

na imagem, Juracy Simões, sentada, de blusa branca e óculos,

comemora com o grupo

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Estandarte da Tribo Canindé.

É o que testemunha e comprova a bisneta, neta e filha de

juremeiros Juracy Simões da Silva que, pela vida devotada aos

cabocolinhos, honra a filiação. Nascida no Recife, em 15 de julho

de 1945, o pai era o mestre carpinteiro Bibiano, ou Severino

Batista da Silva, e a mãe, Lucila Simões da Silva. Guardiã das

tradições religiosas da família e do caboclinho, Juracy vive imersa

no grupo desde que nasceu, e coordena, de fato, todas as

atividades desde 1985, quando o pai, por problemas de saúde,

fica impossibilitado de atuar no comando da agremiação. Em

1994, com o falecimento de Bibiano, funcionário da Prefeitura do

Recife, a única filha assume oficialmente a presidência, tornando-

se a primeira mulher a presidir um caboclinho, alçando, portanto,

à condição de destaque na história do carnaval do Recife, em

decorrência tanto desse pioneirismo quanto da marcante liderança.

A mãe, Lucila, devotada à jurema, enquanto tem saúde segue

colaborando na empreitada da filha. Falece em 2006.

Totalmente familiarizada com o cotidiano da Tribo Canindé,

Juracy conhece não apenas histórias da formação do grupo, mas,

sobretudo, a maneira como se desenvolviam as apresentações.

Para cada toque, ela sabe cantar e recitar as linhas, os pontos de

caboclo, as loas que vêm sendo excluídas do repertório devido

à exiguidade de tempo nas exibições públicas. Relembra, ainda,

que, na infância e adolescência, via e ouvia muito mais do que se

oferece hoje nas performances da tribo. Executado pelos caboclos

homens e por algumas caboclas, o característico e rápido bater de

flechas do grupo – a exemplo da guerra de uma, de duas e de três

–, declara Juracy que só o Canindé faz. Ao som do terno ou dos

caboclos do baque – gaita, tarol e maracaxá, aliados à batida seca

das preacas (arco e flecha) dos caboclos –, os toques ou gêneros

musicais executados são guerra, perré, baião, toré ou macumba,

sob os quais se apresentam bandeirista, casal de caciques, os

puxantes Jupi e Agaci, dois perós, dois cordões de curumins, dois

cordões de caboclos e caboclas, o rei e a rainha. São eles que

exibem a beleza das fantasias, a cadência do ritmo frenético da

percussão e sopro, a leveza dos corpos ágeis a exibir aeróbico

bailado.

Preocupada com a transmissão da memória do Canindé, sobretudo

direcionada aos jovens, Juracy tem promovido oficinas de

confecção de figurinos, de dança e de música, auxiliada por Dado,

ou Ednaldo Manuel dos Santos, um dos brincantes mais antigos e

uma espécie de show-man, que ocupa a função do puxante Jupi.

Zelosa quanto às características do Canindé, Juracy cuida para que

as fantasias tenham bordados primorosos, tenham vistosas plumas

e penas de ave, e que as manobras ou danças sejam executadas

Encontro de Caboclinhos, semana pré-carnavalesca, Recife 2010

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com vivacidade, exuberância. Os ensaios ou treinos, momentos

preciosos de interação e aprendizagem, acontecem sempre

defronte da sede, e sempre na noite dos domingos, a partir do

mês de julho, estendendo-se à semana pré-carnavalesca. Há,

tradicionalmente, em todos os eventos e reuniões da agremiação,

principalmente nas semanas anteriores ao Carnaval, uma mesa

de frutas, oferenda aos encantados, das quais se servem os

brincantes, ao final.

Certamente esse rito propiciatório abre caminhos. O Canindé

esmera-se em todos os quesitos, sempre atraindo olhares

admirados. Em 1960, Bibiano levou o grupo a se apresentar em

Brasília, durante a inauguração do Sesi. Sem jamais perder a

realeza, foi campeão nove vezes consecutivas, de 1996 a 2004,

no concurso de agremiações do carnaval do Recife. Em 2003,

a TV Viva produziu o documentário Três rainhas e um reinado

de Momo, em que são apresentadas mulheres no comando de

agremiações, entre elas a carismática Juracy. O primeiro registro

fonográfico do secular caboclinho – No traçado do guerreiro – é de

2005, realizado pelo músico e produtor cultural Adriano Araújo.

Graças à importância do tradicional caboclinho – inclusive este era

um dos grupos carnavalescos já existentes à época de fundação da

Federação Carnavalesca de Pernambuco (1935) –, a Prefeitura do

Recife promoveu a exposição comemorativa Canindé: 110 anos de

resistência, realizada entre 13 de abril e 1º de maio de 2007, na

Casa do Carnaval, Pátio de São Pedro.

Concorrendo a edital público do Ministério da Cultura, Canindé

conquista, no ano seguinte, o Prêmio Culturas Populares 2008

– Mestre Humberto de Maracanã. Em 2009, sai o Batuque Book

Cabocolinho, de Climério Santos e Tarcísio Resende, com textos,

fotos, partituras, mais a gravação de sete faixas de áudio e faixa

multimídia dedicadas ao Canindé. Sem perder de vista a cidade tão

linda e os caminhos distantes de um reino encantado, em fevereiro

de 2010 o caboclinho foi homenageado na abertura do carnaval

do Recife, juntamente ao centenário maracatu Estrela Brilhante

de Igarassu. Com a firmeza própria do temperamento de Juracy,

sete caboclos flechando e a devida proteção do rei, as demandas

vão se desmanchando e a tribo resplandece. Salve o Rei Canindé

na Jurema, mestre que garante essa Nação. Quem for Canindé,

sustente o penacho: este é um rio que não deixará de correr, o rio

do Rei Canindé.

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Estrela Brilhante de IgarassuEstrela Brilhante de Igarassu

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ma estrela para nos guiar, canta a loa. Uma Nação muita

antiga, vinda da África para morar em Igarassu. É o que

pronuncia a voz firme de Olga e Gilmar, encantando nossos

ouvidos com as toadas herdadas dos antepassados. Pela voz deles

remontamos aos avós e pais da centenária dona Mariu, chegamos

ao tempo presente, aos seguidores de um baque triunfante a

iluminar toda a família. Se fosse para seguir uma das versões da

história oral relacionada ao grupo, 1730 poderia ter sido o início.

Entretanto, a data oficializada é 8 de dezembro de 1824. O local

era Vila Velha, em Itamaracá, à época pertencente a Igarassu. De

lá, os antepassados do maracatu migraram para o Alto do Rosário.

Mas da cidade de Igarassu o grupo não saiu e é a antiga Rua do

Rosário, no sítio histórico, quem testemunha, há décadas, o canto,

a dança e o batuque de descendentes de escravos. Às mulheres

cabe a dança, os homens ficam com a percussão.

Olga de Santana Batista, filha de dona Mariu, agora é a matriarca,

guardiã da tradição, desde que a mãe, centenária, faleceu em

2003. Olga, nascida em Igarassu a 28 de fevereiro de 1939,

começou a brincar aos 10 anos, como rainha, e com o pai também

brincava cavalo-marinho e fandango. Auxiliada pelo filho caçula,

mestre Gilmar, é com firmeza que os dois lideram rei, rainha,

vassalos, ministros, princesas, dama-regente, dama do paço, porta-

estandarte, porta-candeeiros, porta-símbolo, baianas, batuqueiros.

Gilmar de Santana Batista é o mestre dos batuqueiros. Rogério

Raimundo de Sousa, o contramestre. Gilberto de Santana Batista

é o porta-estandarte. Dona Rita, a dama-regente, é herdeira de

uma função – a de conduzir a calunga – que coube a dona Mariu

durante os anos todos em que participou da Nação.

Mariu, ou Maria Sérgia da Anunciação, nasceu no dia 8 de

dezembro de 1898 e morreu no dia 8 de outubro de 2003, na

mesma cidade – Igarassu. Sempre na função de dama-regente,

começou a participar do maracatu aos 12 anos. O apego a “dona

Emília”, a calunga de madeira feita pelo carpinteiro Minervino do

Ó, era tanto, que a boneca dormia com ela. Afinal, dona Emília é

Foto vencedora do Concurso de Fotografia Pernambuco Nação Cultural - 2008.

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Os componentes da agremiação.

quem manda, cantam as toadas do grupo fincado nas tradições

do candomblé, para quem a calunga – a evocar ancestrais e

orixás – desempenha primordial função de protetora do folguedo:

trata-se de um objeto ritual. O pai, João Francisco da Silva, passou

a liderança do maracatu para o marido de Mariu, Manoel Próximo

de Santana. O seu Neusa, como era conhecido Manoel, ficou

incumbido das funções de rei do maracatu e mestre do batuque.

A mãe de Maria Sérgia, dona Mariassu, morreu aos 115 anos.

Com o marido, era quem comandava o maracatu e costurava

manualmente as roupas do grupo. A filha Mariu, que chegou a

quase 105 anos, ganhou a festa “100 anos de uma rainha negra”,

organizada em dezembro de 1998 pela prefeitura de Igarassu. No

centenário, Sérgia relembrou, em entrevista concedida ao Jornal

do Commercio, em 6 de dezembro de 1998, que, no cortejo real,

havia antigamente os lanceiros, ou duas crianças que iam à frente

da corte fazendo a ordenança do rei e da rainha. Outra ausência,

lamentada ainda hoje por dona Olga, é a da calunga Joventina,

que não mais se encontra no acervo do grupo.

Os instrumentos utilizados no batuque tradicional do Estrela

Brilhante são zabumba (o mesmo que tambor ou alfaia), tarol

(ou caixa de guerra), mineiro (ou ganzá) e gonguê. Os tambores,

que antigamente eram feitos com barrica de transportar o peixe

bacalhau, agora talhados no tronco de macaíba, são tocados com

uma baqueta (ao invés de duas) e uma vareta ou galho de árvore,

chamado bacalhau, o que confere um toque diferenciado ao

baque do Estrela, “um suingue muito mais gostoso”, conforme

demonstra, orgulhoso, o mestre Gilmar, que puxa, entre

outras toadas, a seguinte: Toque o gonguê / toque o tambor

/ vem mineiro e caixa / foi o mestre que mandou. Os ensaios

tradicionalmente ocorrem a partir de setembro e se prolongam

até a semana pré-carnavalesca. E no período junino, os brincantes

também se divertem, mas é com o centenário samba de coco e o

banho ou “batismo” de São João pela madrugada do dia 24 de

junho.

Entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, o maracatu

passou quatro anos sem se apresentar, conforme registrado

numa reportagem do Diario de Pernambuco, em 11 de fevereiro

de 1982, intitulada: “Maracatu volta a desfilar”. Adiante, após

mais alguns anos desativado em decorrência do falecimento

de seu Neusa e da impossibilidade de locomoção de dona

Mariu, um grupo de estudiosos da Comissão Pernambucana de

Folclore, presidida pelo pesquisador Roberto Benjamin, realizou,

durante 1993, um levantamento das toadas e da história do

grupo e, assim, foi responsável pela retomada do grupo, em

janeiro de 1994. A seguir, o grupo não mais parou. Em 1997,

foi o homenageado do carnaval de Igarassu. No mesmo ano,

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Músicos: cantores e batuqueiros.

16mm, colorido, no projeto Som da Rua, intitulado Maracatu

Estrela Brilhante. Em 1998, dona Mariu ganhou destaque com o

aniversário de 100 anos, conforme mencionado acima.

O primeiro registro fonográfico aconteceu em 2003, com

gravação ao vivo e ao ar livre, resultando no CD Maracatu Estrela

Brilhante de Igarassu – 180 anos. No início de setembro de 2008,

o grupo viaja a Portugal, para participação no XII Festival Folclore

Internacional Alto Minho, em Viana do Castelo, cidade-irmã de

Igarassu, por esta ter sido fundada pelo capitão Afonso Gonçalves,

natural daquela cidade portuguesa. Ponto de Cultura Estrela

Para Todos desde 2008, o grupo passou a promover oficinas

de percussão e dança e colocou no ar uma home page, em três

línguas. Conquistou o Prêmio Culturas Populares 2008 – Mestre

Humberto de Maracanã, do Ministério da Cultura (Minc), com o

qual realizou a remasterização e reedição do CD comemorativo

aos 180 anos. Foi contemplado com o projeto Cine Mais Cultura

(Minc), edição 2008. O tradicional Coco de Olga também foi

contemplado com o Prêmio Culturas Populares 2009 – Edição

Mestra Dona Isabel. Em fevereiro de 2010, juntamente à

centenária Tribo Canindé do Recife, ganhou homenagem na

abertura do carnaval do Recife, no Marco Zero. Com tantas ações

importantes, com tantas vozes e loas bonitas, sustente o baque,

dona Emília, que o Estrela vai continuar!

Roberto Berliner dirigiu um documentário de três minutos, em

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Batuqueiros.

Catirinas, Batuqueiro, Estandarte, Dama do Paço, Rei e Rainha: Personagens do Maracatu.

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Largo de Santa Cruz é testemunha: os acordes do arranjador,

compositor e maestro atiçam ouvidos e olhos em direção

ao sobrado de número 438, no bairro da Boa Vista. É ali onde

funciona a Escola de Frevos do Nordeste Maestro Nunes e aonde

o artista vai diariamente para compor, dar aulas, receber pessoas.

Vem da infância o gosto pela música: aos nove anos, tornou-se

clarinetista e já sabia orquestrar. Aos 12, compunha dobrados,

tocava num pastoril religioso. O pai, que era músico, pedreiro e

mestre de obras, não tinha tempo nem paciência para ensinar ao

filho e ainda queria enviá-lo para o seminário. Mas a criança, que

sonhava ser instrumentista, sempre chorava ao ver passar a banda

de música de Angélica, o povoado onde nasceu e viveu a infância.

Graças a Sebastião Luís, mestre da banda e amigo da família, o

garoto se livrou de ser padre e passou a receber aulas de iniciação

musical.

Filho do clarinetista e violonista José Francisco Nunes e de Maria

Apolônia Nunes, José Nunes de Souza é da cidade de Vicência,

Pernambuco, e a data de nascimento é 22 de junho de 1931. Em

1950, por problemas políticos relacionados ao pai – que perdeu o

cargo de diretor da Banda 1º de Novembro, do distrito de Angélica

–, muda-se com toda a família para o Recife, onde decidiu

aprimorar as habilidades musicais. Foi aluno do Conservatório

Pernambucano de Música (CPM). Estudou música sacra e regência

na Faculdade de Filosofia do Recife, em 1960. Cinco anos depois,

concluiu o curso de licenciatura em Belas Artes, pela UFPE.

Frequentou aulas de canto gregoriano e canto coral, harmonia,

regência, teoria e solfejo, contraponto, fuga e orquestração. O

principal orientador, conforme depoimento do próprio Maestro

Nunes, foi o professor Mário Câncio Justo dos Santos, além do

padre Jaime Diniz. No rol dos principais mestres, com quem

aprendeu grandes lições, situa Capiba, Nelson Ferreira e Zumba.

Quando fala da formação musical, o maestro ressalta a

importância de ter estudado os períodos barroco, clássico e

romântico da música ocidental, dos quais os artistas preferidos

são Bach e Beethoven. Com formação política de esquerda,

filiou-se desde jovem ao Partido Comunista Brasileiro (PCB),

engajando-se no Movimento de Cultura Popular (MCP), o que lhe

rendeu perseguição política e afastamento da Banda Municipal

do Recife (BMR), no início da década de 1960. Havia assumido

em 1958, por meio de concurso, o cargo de primeiro clarinetista

da BMR. Entretanto, continuou na militância apesar da censura

e da repressão, e as conquistas artísticas fizeram sobressair o

talento do compositor que, a partir dos anos 1970, foi campeão,

consecutivas vezes, na categoria “frevo de rua”, dos concursos

Leda de Carvalho, Frevança, Recifrevo. Entre as músicas premiadas

estão: Formigueiro, uma homenagem ao maestro Formiga, ou

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Maestro Nunes e seu instrumento.

Ademir Araújo; É de perder o sapato, relembrando o fato de

um músico ter perdido o sapato enquanto tocava na banda do

maestro, durante o desfile da troça carnavalesca mista O cachorro

do homem do miúdo; Mosquetão, em alusão a um colega que foi

baleado durante a ditadura; É de rasgar a camisa, dedicado à troça

Camisa Velha; Bomba-relógio, em parceria com Mário Orlando,

após a explosão de uma bomba, no Recife, durante a ditadura

militar. Interessante notar que o próprio maestro faz questão de

sempre registrar a gênese de cada criação musical.

Outras composições importantes, independentemente da

conquista de prêmios, há décadas têm-lhe rendido fama de “rei

do frevo de rua”, sobretudo o clássico Cabelo de fogo, feito para

um amigo, apelidado de Birino, que pintava os cabelos. Coquinho

no frevo, Fubica, Folhas que não caem, Santa, Ecos do Carnaval,

Balançando a pança, Segurando a peteca, entre tantos outros

célebres frevos, corroboram o talento do artista e enriquecem

o repertório de diversas agremiações carnavalescas, a exemplo

de Cachorro do Homem do Miúdo, Vassourinhas, Lenhadores,

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Girassol da Boa Vista, Lavadeiras de Areias, Amantes das Flores,

Pás Douradas, Beija-flor em Folia, Pão Duro, Seu Malaquias.

Compôs e gravou para os tradicionais clubes Leão e Camelo, do

carnaval de Vitória de Santo Antão.

Em 1972, na condição de assessor musical da Federação

Carnavalesca de Pernambuco, abriu a Escola Musical do Frevo,

destinada a crianças de baixa renda e aos filhos dos presidentes

das agremiações; e foi a partir desse ano que passou a ser o

principal e mais prolífico criador de frevo para os grupos foliões

pernambucanos. Em 1984, criou a Banda de Frevos do Nordeste.

Foi fundador do Centro de Educação Musical de Olinda (CEMO)

e regente da banda de música 10 de Agosto, da cidade de São

Lourenço da Mata. Integrou a banda de música do Liceu de Artes e

Ofícios, da Universidade Católica de Pernambuco; a Banda Manoel

do Óleo, da União Operária da Macaxeira; a Orquestra Cassino

Americano, da concorrida boate do Recife, à época. Antes de

transferir-se para a capital, Nunes foi músico da Euterpina Juvenil

Nazarena, a Capa Bode, de Nazaré da Mata.

Na discografia, os trabalhos mais recentes são os CDs Locomotiva

do frevo 1 e 2, de 2002, em que oferece a remasterização de

repertório dos vinis lançados desde 1975. O CD Maestro Nunes:

60 anos de frevo, feito em 2008, apresenta-se também em dois

volumes, um com frevo de rua e o outro com frevo-canção e frevo

de bloco. Em 2009, sai o CD Homenagem ao criador: Maestro

Nunes, o mestre do Cabelo de Fogo, em que todas as músicas

gravadas – frevos de rua – são de autoria dele. Possui valioso

acervo de mais de duas mil partituras musicais e, exatamente com

a proposta de preservar tais preciosidades, conquistou o Prêmio

Culturas Populares 2007 – Maestro Duda, 100 anos de frevo,

concedido pelo Ministério da Cultura (Minc). Nesse mesmo ano, foi

o homenageado do carnaval do Recife.

Além da prolífica produção de frevos, o maestro compõe, ainda,

diversos outros gêneros: samba, bolero, rumba, forró. Mantém,

inclusive, a Banda Junina do Maestro Nunes, que interpreta

repertório próprio e dos mestres Luiz Gonzaga, Jackson do

Pandeiro, Zé Dantas, Humberto Teixeira. A coordenação da

agenda e das produções do maestro compete à compositora e

musicista Fátima Lapenda. Em meio ao processo criativo, entre

shows, gravações e aulas, o maestro Nunes faz questão de estar

sempre engajado em trabalhos comunitários, ministrando oficinas

a crianças e jovens, de comunidades dos bairros dos Coelhos e

Ilha do Leite, entre outros. Professor de maestros celebrados, a

exemplo de Spok e Forró, Nunes continua incansável na missão

de descobrir e incentivar novos talentos. Vida longa ao centenário

frevo, assim seja!

Reprodução de fotografia antiga do acervo do maestro.

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Maestro Duda e Maestro Nunes durante apresentação em 2010.

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Musa Euterpe, aquela que sabe agradar, desde muito espalha

melodias em Nazaré da Mata. Os ouvidos da cidade, cheios

de música, deliciam-se com alvorada, tocata de natal, com as

retretas de ano novo, carnaval. A dona da música assim orquestra

memórias afetivas, habita a história, percorre o imaginário coletivo

pelas artes da centenária Euterpina Nazarena. O renome vem de

longínqua data, século XIX. Passeios, saraus, danças estão na

gênese da sociedade musical, cheia de frescor desde o princípio,

que rapidamente conquista simpatia e fama. O Recreio Juvenil

Nazareno, fundado em 1886, é a origem de tudo: a partir desse

clube de lazer a associação foi criada em 1º de janeiro de 1888,

constituída por jovens comerciários, sob a regência do Mestre João

Tomé. E, como acontece às filarmônicas no interior, plena

vitalidade quer dizer compor cenas urbanas, conduzir celebrações

e formas de expressão das mais festivas às mais pesarosas.

Enterros, folguedos, troças, cavalhadas, noites de maio, novena à

padroeira, festas de São João, aí sempre correm todos à rua pra

ver a orquestra passar, segundo bem registrou a poeta e cronista

nazarena, Clélia Raposo. O poeta Mauro Mota, que foi orador

desta filarmônica e viveu a infância na cidade, homenageia-a com

o poema "Valsinha da banda de música municipal", assim

iniciado:

Música da Banda Euterpina

Juvenil de

Nazaré da Mata

tocando ao

luar de prata.

(O seresteiro

achando a rima

da serenata.)

Cheia de histórias interessantes, contemporânea do Grêmio

Musical 22 de Novembro – a então aclamada Cabeluda – eis que a

Euterpina Juvenil Comercial Nazarena se estabelece na condição

de rival à altura e, no mesmo ano de fundação, ganha todos os

aplausos na missa solene da padroeira, Nossa Senhora da

Conceição, dia 8 de dezembro. E isto foi apenas o início. Na

cronologia do grupo, que abandona a seguir o designativo

"comercial", ilustres ouvidos se deleitam com o repertório.

Quando realizou dois comícios no distrito eleitoral de Nazaré, o

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O maestro João Paulo a frente do ensaio da Euterpina Juvenil.

abolicionista Joaquim Nabuco foi saudado com composições de

Heitor Villa-Lobos, Carlos Gomes, Beethoven, Verdi, executadas

por hábeis instrumentistas da Euterpina. Em junho de 1906, na

cidade de Carpina, tocou o dobrado Águia da Mantiqueira para o

então presidente da República, Afonso Pena, composto

especialmente para homenageá-lo. No final de 1908, a Euterpina

integrou as festividades de posse, no governo estadual, do

nazareno Herculano Bandeira. Ex-senador e duas vezes prefeito

da cidade, o político nomeia a praça, no centro da cidade, onde

fica a sede da banda.

Quando começou, a sociedade ganhou um apelido: Capa-Bode. A

motivação para a escolha é controversa. Pelo menos três histórias

tentam justificá-lo. Uma delas diz que os sócios fundadores

frequentemente se reuniam para comer buchada de bode castrado.

Outra dá conta de um costume antigo, que era o hábito de desfilar

acompanhada de mascote. Fala-se que a Euterpina era guiada por

um bode, chamado Elamir ou Alamir, doação do sócio Joaquim

Coutinho Maranhão. A terceira variante registra que certo grupo

visitou Nazaré para conceder diploma de sócio benemérito a João

Hermógenes, comerciante cujo apelido era Capa-Bode. Como o

fardamento de ambas as filarmônicas era parecido, também a

Euterpina passou a ser tratada por este nome-fantasia. Essas, as

versões que circulam oralmente. No entanto, em meio a

documentos colecionados pela secular nazarena, consta artigo do

pesquisador Evandro Rabello, escrito em comemoração ao

centenário da sociedade musical, em 1988, comentando que a

recifense Banda Matias Lima, com sede no Pátio do Livramento,

tinha o apelido de Capa-Bode. Havia, ainda, vinculada a ela uma

agremiação carnavalesca chamada Clube Capa-Bode, cujos foliões

saíam pelas ruas da capital pernambucana trajados à portuguesa.

Rabello acrescenta outra informação importante: a Capa-Bode do

Recife Antigo andou excursionando por várias cidades do interior,

inclusive Nazaré da Mata.

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Sobre os destacados músicos que a integraram, há o regente

pernambucano José Lourenço da Silva, ou Capitão Zuzinha,

compositor que está para o frevo de rua assim como Donga está

para o samba. Houve, ainda, Lourenço Tomás da Silva, irmão do

Capitão Zuzinha; Manoel Martins de Morais, que dá nome à sala de

instrumentos, inaugurada em 1985 na sede; os maestros e irmãos

José Jandir Penaforte de Oliveira e Josaphat Penaforte de Oliveira.

Jandir se destacou como maestro e professor, enquanto o irmão

Josaphat ganhou reconhecimento como compositor de sinfonia,

frevo, dobrado, valsa, fox, maracatu, coco de salão. O maestro

Severino Hermes comandou a retreta comemorativa ao centenário

da Capa-Bode, no dia 1º de janeiro de 1988, para uma platéia de

cerca de cinco mil pessoas, conforme registrou o Diario de

Pernambuco. Na ocasião, igualmente apresentou-se a Revoltosa,

conterrânea que sobrepôs o tributo à secular rivalidade. Euterpina

100 anos de música é o título da revista comemorativa então editada,

sob o patrocínio da Fundarpe. Entre as inúmeras apresentações em

que prestigiou diversas bandas marciais do interior, registram-se

homenagens ao sesquicentenário da Saboeira, de Goiana, em 1999;

ao centenário da Nova Euterpe, de Caruaru, e da Novo Século, de

Santa Cruz do Capibaribe.

O atual maestro é João Paulo Ferreira da Hora, conhecido como

"João Minuto", e é quem lidera os músicos profissionais e a escola

de iniciação. Assim, com os júbilos da Musa, a Euterpina vai

seguindo, vibrante, como em serenata, pelas ruas de Nazaré da

Mata, achando antigas e novas rimas para o luar de prata.

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aldemir de Souza Ferreira, quarto zagueiro canhoto na perna

e destro na mão, foi do Santa, do Vovozinha, do Íbis. E por

causa do jogador Didi, da seleção brasileira campeã na Copa do

Mundo de 1958, na Suécia, ganhou o apelido. Apaixonado por

futebol, a paixão maior que entretanto se firmou, para nunca mais

largá-lo, atende pelo nome de música. E mais especificamente

samba, pagode. A mãe, Erundina de Souza Ferreira, era cantora. O

pai, Elpídio de Souza Ferreira, tocava violão, integrava um grupo

musical de violonistas. O próprio Didi, no entanto, criado em

ambiente musical, no bairro recifense de Caxangá, zona oeste da

cidade, somente aos 38 anos escolhe dedicar-se exclusivamente à

profissão artística. Antes disso, foi gerente de casas de show,

almoxarife, datilógrafo, auxiliar de escritório até finalmente decidir

inaugurar no centro do Recife, em 1981, o Bar do Didi, e, dois

anos depois, 1983, transformá-lo no aclamado reduto de

pagodeiros e sambistas, o Pagode do Didi.

"Quartel-general do samba na terra do frevo", o pagode oferece

ambiente para rodas de samba ao ar livre, de quinta a sábado, e,

que, em outras temporadas, chega a realizar-se de segunda a

sábado, ou seja, quase todos os dias da semana. Acolhedor, o

dono do estabelecimento recebe os pagodeiros com violão,

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Dos tempos de jogador de futebol, em 1969.

Em frente a sede de seu bar, o Pagode do Didi.

pandeiro, reco-reco, cavaquinho: quem vai chegando vai cuidando

de pegar algum instrumento e, pronto, está feita a roda de

bambas. Muitos são os artistas e grupos tarimbados que passaram

e adoram passar por ali. A casa já recebeu Bezerra da Silva,

Jovelina Pérola Negra, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Leci

Brandão e grupos de pagode famosos nos anos 1990, como o

Exaltasamba e o Art Popular. No disco Cacique de Ramos, o Fundo

de Quintal rende homenagem ao tradicional reduto, com a música

Pagode do Didi. Arlindo Cruz, Bira do Cavaco, Sereno, Ademir

Bateria, Almir Guineto, Gera da Vila Isabel, Só pra contrariar,

Grupo Raça, Negritude Júnior, Vanderson Martins, Samba Chic,

Raça Brasileira, Peninha, Wellington do Pandeiro fazem vibrar a

nata dos apreciadores do samba de raiz, das rodas de pagode, das

rodas de choro e samba.

É na rua Ulhôa Cintra, bairro de Santo Antônio, por trás da

movimentada avenida Guararapes, em pleno centro do Recife,

onde transborda de vibrações o reduto de amantes dessa boa

música bem brasileira. Quando tudo começou, Didi era professor

de violão e tinha um grupo de chorinho que se apresentava em

rodas de choro e seresta no mesmo local em que passou a

funcionar o pagode. Tal é a vibração do ambiente que o lugar se

firmou como ponto de convergência de amantes do ritmo e,

também por isso, endereço certo de profissionais em busca de

novos parceiros. No Pagode do Didi, por exemplo, o compositor

Belo Xis tem fisgado talentosos pagodeiros. Cheio de vitalidade, o

local se estabeleceu, enfim, como escola de pagode, escola onde

se aprende e se curte o samba de velha guarda lado a lado com

a produção mais recente de sambistas, chorões, pagodeiros.

Compositores, instrumentistas e intérpretes às vezes é ali que se

descobrem e são descobertos, inaugurando alianças artísticas,

estreando no mundo da música, atraindo as atenções de críticos

e produtores.

A história do pagode em Pernambuco passa obrigatoriamente por

este que é um dos mais famosos redutos do gênero musical.

Especialmente porque ao proprietário se credita considerável

parcela de estímulo à produção de artistas locais, às trocas culturas

com artistas de outras paragens, à criação e manutenção de

múltiplos espaços pernambucanos dedicados ao ritmo. Em terras

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Rodas de samba.

pernambucanas, onde empolgam os metais do frevo e os tambores

do maracatu, Didi ousa dizer, e com razão, que aqui também o

samba fez morada. Inúmeros pontos na capital protagonizam

encontro de sambista e pagodeiro, cujos grupos contabilizam

centenas, conforme enumera. A Terça Negra encontrou nesse

habitat as condições básicas para aflorar, firmando-se a seguir como

atração do Pátio de São Pedro. Os ritmistas das escolas de samba

contratam pagodeiros para os dias de carnaval. Os assíduos

compositores de pagode são às vezes os mesmos compositores de

samba-enredo das escolas de samba, e que, com frequência,

igualmente se dedicam a composições carnavalescas de frevo,

caboclinho, maracatu.

Na Zona Norte do Recife, estes ritmos pernambucanos explodem

com semelhante intensidade de ritmos outros, como o coco de

roda, a música de ursos e bois de carnaval, o hard core, o hip hop.

Por esses gêneros transita expressiva quantidade de sambistas que

passam frequentemente pelo Pagode do Didi, sustentando, com

talento poético movido pelo improviso e sem improviso, as rodas de

samba e de pagode, seja na base da crítica social, do lirismo, da

crônica urbana. E há suficiente espaço, naquele terreiro, para a

explosão criativa tanto quanto para a alegre expansão de

dançarinos cheios de ginga no corpo e no pé. A mais importante e

duradoura contribuição de Didi tem sido justamente essa celebração

da alegria, do poder da criação. Há três décadas consecutivas vem

formando músicos, criando condições para o desabrochar de

talentosos compositores, intérpretes, grupos: "e o poeta se deixa

levar por essa magia / e o verso vem vindo e vem vindo uma

melodia / e o povo começa a cantar la laia laiá".

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axofonista sapeca, este texto é seu: é para o arranjador, o

instrumentista, o regente, o diretor artístico, o compositor

prolífico, um dos grandes do Brasil, diversas vezes escolhido

melhor arranjador do Nordeste e um dos melhores do país, cujo

repertório criativo constitui-se de frevo, sinfonia, canção, choro,

samba e muito mais. Maestro Duda, ou José Ursicino da Silva, é da

cidade histórica de Goiana, Pernambuco, onde nasceu a 23 de

dezembro de 1935. Iniciou-se na música aos oito anos, na

condição de aluno do regente Alberto Aurélio de Carvalho,

passando, já a partir de então, a integrar a Saboeira, histórica

banda filarmônica daquela cidade, da qual era maestro o seu

professor, da qual participaram o pai e o avô. Começou tocando

trompa, depois clarinete, embora a preferência recaísse sobre o

piston. Talentoso, aos dez anos compõe o primeiro frevo, Furacão,

e desde o princípio da carreira vem obtendo destaque e

premiações. Aos 18 anos já trabalhava como arranjador e regente

de orquestra na capital pernambucana. A mais famosa obra de

Duda, conforme registra o Dicionário Cravo Albin de Música Popular

Brasileira, é a peça sinfônica Fantasia Carnavalesca, já gravada, entre

outras, pela Orquestra Sinfônica do Recife e Coral Ernani Braga.

Ano de 1950, participa da Jazz Band Acadêmica, liderada por

Capiba, e da Orquestra Paraguari, além de trabalhar na recifense

Rádio Jornal do Commercio. Quando é contratado para a

orquestra principal da TV Jornal, César Guerra Peixe era o maestro

e Clóvis Pereira, um dos músicos. Quando, na mesma década,

dirige o departamento de música da TV Jornal do Commercio,

assume as funções de músico, arranjador e maestro da orquestra

principal da emissora. Na década 1960 estudou regência e música

sacra na Escola de Artes da UFPE. Musicou trabalhos dirigidos por

Graça Melo, Lúcio Mauro e Wilson Valença. Passa a integrar a

Orquestra Sinfônica do Recife (OSR) em 1962, tocando oboé e

corne-inglês. Ano seguinte, 1963, cria orquestra de baile, e em

1967 assina contrato com a TV Bandeirantes, de São Paulo, onde

viveu três anos, e lá também trabalhou na TV Tupi. Ao voltar do

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Maestro Duda e seu saxofone soprano.

Sudeste em 1970, reassume participação na Orquestra Sinfônica do

Recife e assume, ainda, o cargo de professor-arranjador do

Conservatório Pernambucano de Música. O maestro foi, inclusive,

regente-arranjador e instrumentista da Orquestra Paraibana de

Música Popular. Em 1971 foi premiado com o frevo de rua Quinho,

e no mesmo ano cria uma orquestra carnavalesca, que passa a ser

sucessivamente premiada como a melhor do ano.

Na discografia de quem um dia foi assistente de Nelson Ferreira,

quatro volumes formam uma coleção de frevos de rua, lançados em

1999, sob o título Maestro Duda e Orquestra de frevo. Antes disso,

em 1997, participa do projeto Memória Brasileira, no CD,

Arranjadores, com a Suíte Nordestina, em regência própria. Nesta

composição, que tem sido executada por orquestras internacionais –

americana, japonesa, alemã – Duda se debruça sobre ritmos

nordestinos e, mais especificamente, pernambucanos, tais como

frevo, maracatu, oferecendo peça musical construída com apuro e

sensibilidade sobre bases da cultura tradicional do estado. É com o

referido projeto, coordenado pela Secretaria de Cultura do Estado

de São Paulo, que Duda é aclamado como um dos doze melhores

arranjadores do século XX. Compôs frevos que foram gravados por

Severino Araújo e Oscar Milani, da Orquestra Tabajara. Tem sambas

gravados por Jamelão. Composições para quintetos de sopro,

quintetos de metais, bandas e orquestras. Taradinho é o nome do

primeiro frevo gravado pela Jazz Band Acadêmica, sob o selo Harpa.

Pelo selo Mocambo, da recifense Rozenblit, Duda participou em

1962 da gravação do disco instrumental Velhos Sucessos em Bossa

Nova, tocando sax tenor, com Clóvis Pereira ao piano, nos arranjos

e direção musical.

Da prolífica obra, muitos são os destaques. Está no repertório de

orquestras e bandas sinfônicas, de bandas filarmônicas. Está em

mais de uma centena de discos, inclusive gravações internacionais.

Para cada filho compôs um frevo, montando a série de frevos

Familiar, dos quais Nino Pernambuquinho é o de maior sucesso.

Com o maracatu Homenagem à Princesa Isabel, obteve, em 1953,

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ou seja, antes de completar vinte anos, o segundo lugar no festival

de música carnavalesca promovido pela Câmara Municipal do

Recife. Era, então, arranjador e regente da Orquestra Paraguari. Em

1971, com o frevo de rua Quinho, vence festival de frevo da Rede

Tupi. Entre as principais obras, vários frevos de rua, suítes,

concertinos, fantasias. Sobressaem, entre outras, a Suíte Recife,

Suíte Pernambucana de Bolso, Suíte Nordestina; a Música para

Metais nº 1, a nº 2, a nº 3; Concertino para Trompete, Concertino

para Trombone; Fantasia Carnavalesca, Fantasia para Cinco

Trompetes. Entre os choros, compôs Trombonista Sapeca, Este é

seu, Este é para dançar. O repertório inclui, igualmente, valsa,

bolero, baião, xote, ciranda. A grande inspiração de Duda sempre

extrai sofisticada seiva das profundas raízes da rica musicalidade

brasileira, sobre cujos mistérios do ouvir o teatrólogo Peter Brook

escreve, em Os fios do tempo: vivem os maestros buscando

"harmonizar o corpo, a emoção e o pensamento. O esforço de

ensaiar e de apresentar-se exige deles todas essas partes – os seus

corpos como atletas ou dançarinos, os seus sentimentos como

cantores e amantes, as suas mentes como matemáticos e

pensadores – simultaneamente e em proporções iguais". Assim,

com ouvidos sensíveis, Duda se debruça sobre a tessitura, sobre o

brilho dos instrumentos, buscando a mais íntima e sensível

melopeia, compondo e regendo com a exuberância de gestos

precisos e expressivos, com a clareza de quem sabe conjugar

simplicidade e beleza, explosiva alegria e mansidão.

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Apresentação durante o carnaval de 2010.

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poética do olhar transforma a vida em desejo de

contemplação e de ação criadora: assim os oleiros quando

modelam esculturas, representações de mundo; assim os

admiradores dessas obras quando contemplam e se extasiam com

mundos representados; assim Maria Amélia quando inventa

esculturas, sobretudo em torno de temas sacros, cujas faces se

voltam para o alto, fixando-se na imensidão cósmica. Certamente

as experiências afetivas de infância, imitando o pai oleiro,

acompanhando o dia a dia da cidade oleira, entranharam-se nas

vivências sensoriais particulares de Amélia frente ao mundo do

barro que, não por acaso, traz em si os quatro elementos da

natureza – terra, ar, fogo, água – e que, num amálgama mágico,

sensível, engendra bonecos, bichos, mitos, a própria vida, o cosmos.

Nascida em Tracunhaém, região canavieira da Zona da Mata

pernambucana, a pouco mais de 50 quilômetros do Recife, Maria

Amélia da Silva é do ano de 1923, mais precisamente do dia 18 de

abril. Até os anos 1980, partilhou experiências com escultores que

deixaram importante legado para a história das artes daquele

lugar, a exemplo de Severino de Tracunhaém, Antônia Leão,

Severina Batista e da família Vieira – Lídia Vieira, Antônia Vieira,

José Antônio Vieira. Aos oito anos Amélia já acompanhava a

produção cerâmica do pai, João Bezerra da Silva, louceiro

conhecido por José Dunde: “meu pai era um oleiro que conhecia

de tudo”. Primeiro foi orientada a alisar as panelas que ele

modelava. Ao mesmo tempo, menina naturalmente irrequieta,

foi instigada a modelar bichinhos, panelinhas, brinquedinhos

para consumo próprio e para transformar nuns trocadinhos nas

feiras da redondeza.

Com a exuberância da força criadora, Maria Amélia constrói uma

plasticidade singular, possibilitando identificar a assinatura da

artista: “meu trabalho é todo na mão”. E o olhar de cada boneco

de barro é um desses vórtices de singularidade e impulso de

clarividência, de expansão cósmica, como bem refere, no livro A

poética do devaneio, o filósofo francês Gaston Bachelard: "o olhar

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Detalhes da produção da artista.

é um princípio cósmico (...) quantos textos não poderíamos citar

que afirmam ser o olho um centro de luz, um pequenino sol

humano que projeta a sua luz sobre o objeto observado, bem

observado, numa vontade de ver claramente!" Assim, a artista,

com sensibilidade, modela a existência em alquímicas combinações

criativas dos elementos vitais – terra e céu, fogo e água. E, movida

pela modéstia, pela reverência paterna, declara considerar a

própria arte como uma espécie de missão herdada do pai e

escolhe incluir o fazer artístico pessoal na categoria de artesanato,

como se fosse excessivo qualificar-se a si mesma com o que

considera estabelecido num patamar superior.

Rainha do Céu, São Francisco, São João do Carneirinho, São José,

São Pedro, Santa Luzia são alguns dos santos católicos recorrentes

na obra de Maria Amélia. O repertório é mais amplo, claro, mas os

elementos que o compõem ajudam a identificar o conjunto da

obra, seja no panejamento do vestuário, seja nos detalhes das

incisões em florais e variadas texturas, seja na longa vestimenta

que deixa à mostra apenas as mãos, o rosto, às vezes apenas parte

do cabelo, os dedos dos pés. As figuras que, no percurso criativo

da ceramista, eram sempre bojudas, arredondadas, ganham ares

mais longilíneos a partir da parceria que estabelece com o filho

Ricardo Félix da Silva. Nos primórdios da carreira, bichos, carrancas

e bonecos de variedade temática conviviam com os santos,

entretanto estes foram os que mais contribuíram para consolidar a

fama da artista por todo o país e fora dele.

Talvez esta preferência se explique, de alguma maneira, pelo

princípio cósmico que rege a vitalidade e ancestralidade das artes

cerâmicas. O certo é que a grande alegria de Maria Amélia

consiste na feitura da Rainha do Céu, catolicamente traduzida por

Nossa Senhora, miticamente traduzida pelas deusas todas de

variadas religiões e mitologias. O aspecto mais comovente dessa

escultura é a cumplicidade estabelecida entre o céu e a terra, por

meio de um detalhe recorrente: a cabeça e o olhar sempre

voltados para o alto, como que a suplicar proteção, inspiração,

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Maria Amélia, ao fundo: as peças de São João e a Rainha do Céu.

força, vigor; como que a intermediar e facilitar o fluxo entre céu

e terra, entre fogo e água. Sábia e intuitivamente, a artista elege

o traço mais poderoso e representativo da própria obra, que é

este princípio vital feminino a conduzir, a manejar, a mediar as

forças da natureza.

Ao debruçar-se sobre múltiplas mitologias, Lévi-Strauss, no livro A

oleira ciumenta, interpreta ser a olaria motivo de combate

cósmico: conflito entre as potências de cima e as potências de

baixo, representadas mitologicamente por grandes aves e

serpentes. "A ideia de que o oleiro ou a oleira, e os produtos da

sua indústria, têm um papel de mediadores entre as forças celestes

de um lado, e as terrestres, aquáticas ou ctonianas, por outro, faz

parte de uma cosmografia que não é exclusiva da América." É,

pois, Maria Amélia – possivelmente a mais antiga oleira

pernambucana em atividade – guardiã de segredos ancestrais,

inclusive de técnicas tradicionais de preparo, manejo e queima das

peças em forno a lenha. Modela manualmente uma a uma e

sempre opta pela cor natural do barro. Assim, em tudo o que faz

vai imprimindo a energia vital das próprias mãos, reverentes ao

impulso criador do cosmos e capazes de extasiar-se e extasiar-

nos a todos.

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canto do galo desperta os sentidos, acorda a alegria. O galo é

preto e explode em cores, cantando à vida com voz fluente e

sedutora, plena de carisma e modulações cromáticas. Foi assim

desde o princípio. E uma das primeiras testemunhas, fisgada

casualmente por este jogo sedutor, era "apenas" o poeta Ascenso

Ferreira, que, a partir da janela de casa, se sentiu completamente

rendido à graça do adolescente de 12 anos que gritava na rua o

seguinte pregão, de própria autoria: "Batata inglesa, quer hoje,

freguesa? / Não dá pra pobreza, só pra riqueza / É uma beleza

minha batata inglesa". O ano era 1947, quando Tomaz Aquino

Leão acabava de migrar para o Recife, e, “achado” por aquele

poeta atento e declaradamente apaixonado pela poesia popular,

de imediato é conduzido ao programa de Zil Matos, Divertimentos

Guararapes, na Rádio Clube de Pernambuco. “Comecei já

prestando um serviço, sem saber, a Pernambuco e à cultura de

Pernambuco”, isto é o que compreende hoje o poeta improvisador,

que naquelas circunstâncias inaugurava trajeto de fama pelas artes

de poesia tradicional que desde os nove anos exercitava com

inteligência, talento e sagacidade: o coco improvisado.

Repentista, coquista, cantador, embolador, compositor. Variados

são os qualificativos e ainda maior é a poesia de Galo Preto, que

transita, à vontade, pelo repertório tradicional, pelos cânticos,

também tradicionais, da Jurema Sagrada, e por repertório autoral,

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Mestre Galo Preto com seu instrumento personalizado.

do samba de coco, de improviso ou não: “o cantador autêntico faz

a rima, faz o coco, e canta o coco que é dele”. Coco de roda, coco

brejeiro, coco praieiro, coco de embolada, coco sertanejo, coco de

umbigada, coco de parelha, coco de trupé integram o repertório

versátil do mestre, parceiro de artistas como Jackson do Pandeiro,

Fome, Luiz Boquinha, Ary Lobo, Coruja e seus Tangarás, Cauby

Peixoto, Arlindo dos Oito Baixos, Luiz Gonzaga, Jacinto Silva, Zé

Brown. Quando nasceu, em 8 de outubro de 1935, a localidade

de nascimento, Taquari, ou Quilombo da Rainha Isabel, na

cidade pernambucana de Bom Conselho, era tradicional reduto

de coco – a dança, o ritmo, o canto, a poesia, o repente, a rima.

Galo Preto, filho caçula de agricultores, nasce numa família de

poetas e já nasce irmão dos emboladores Curió e Preto Limão,

com os quais aprendeu o ofício pela convivência e observação:

“a família toda tem o dom”.

Na década 1950, foi garoto-propaganda de empresa

pernambucana, e, por isso, percorreu o Brasil cantando improvisos

para a então renomada fábrica de tecidos. Nos anos 1960, Galo

Preto e seu Trio de Ouro faziam shows apresentando repertório

bem pernambucano: embolada, ciranda, frevo. Em 1966, aparece

na TV Record, em programa de auditório gravado com Geraldo

Vandré. No ano de 1969, é o grande vencedor de festival de

repentistas organizado por Rubens Teixeira no Teatro Popular do

Nordeste (TPN), Recife, cabendo o segundo lugar ao irmão Curió.

Em 1970, apresenta-se no programa Fora de Série, de Flávio

Cavalcanti. No ano de 1971, fazia shows no restaurante Adega du

Bocage, Recife. E no final do mesmo ano participa de exibição de

caráter educativo – um "desafio amistoso" com Garoto de Ouro –

no Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, a convite do Ministério da

Educação e Cultura (MEC/RJ). Em 1979, vai ao programa do

Chacrinha. Na década 1980, mantém o Centro de Tradições

Pernambucanas, no bairro de Ouro Preto, Olinda, espaço cultural

próprio no qual promovia shows. Nos anos 1980, mais de uma vez

participa do Som Brasil, da TV Globo, cujo apresentador era o ator

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A vitalidade é uma das marcas do Mestre Galo Preto.

Lima Duarte. Em 1989, integra a campanha de Fernando Henrique

Cardoso para governador de São Paulo. “Final de 60 até a década

de 80 eu era o galo preto da história”, comenta, a propósito do

intenso percurso artístico, e, ainda assim, assegura: “sou um

mestre aprendiz”.

Reconhecido nacional e internacionalmente, Galo Preto, além de já

ter viajado por todo o país, foi à Europa, chegando a se apresentar

em Berlim, Alemanha, no Sabadão do Pagode. Integrou conjunto

musical em que o sanfoneiro era Arlindo Moita; o zabumbeiro,

Maurício da Zabumba, e Novinho da Paraíba tocava o triângulo.

Conquistou reconhecimento pela ampla atuação, inclusive com as

casas de shows que manteve entre 1973 e 1982. Na casa de

espetáculos Folclore do Minho, Recife, fazia shows ao vivo. Pisa na

Fulô era casa de forró em Olinda, onde Galo Preto era sócio

majoritário, apresentador e animador. Na beira-mar olindense de

Rio Doce, a Casa do Repentista Galo Preto consistia numa grande

sala de coco, em que o repertório também incluía forró, ciranda,

repente e frevo. Reverenciado pelo incontestável talento, o poeta

tem sido tema de filme, trabalho acadêmico, pesquisa, como o

livro O coco praieiro, de Altimar Pimentel, e o documentário Galo

Preto, o Menestrel do Coco, do cineasta Wilson Freire.

Recentemente lançou o disco Mestre Galo Preto: 65 anos de coco.

A cada apresentação, e também oficinas, entusiasma-se: “eu me

sinto bem em saber que aonde eu canto hoje os jovens gostam e

ficam querendo aprender”. Nos shows, partilha o palco com seis

pessoas, inclusive uma filha no back vocal. Entretanto, quem

chama mesmo a atenção de todos é ele, o mestre, porte elegante,

língua afiada, mente veloz.

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strela de Ouro, Aliança, Chã de Camará. Chã é campina,

terreno plano, planície. Da família das verbenas, camará, ou

cambará-de-jardim, lantana-cambará, camarazinho, é flor tropical,

flor em cachos que, agrupada em hastes aromáticas, desabrocha

pelos campos o ano inteiro, generosamente atraindo para si

abelhas, borboletas, insetos, pássaros. Multicoloridas, as flores de

camará preferem o sol pleno. Assim poeticamente, sobre

exuberante chão de flores, sob sol pleno – esta estrela de ouro –,

florescem, multicoloridos, deslumbrantes, folgazões do baque

solto, festejando os dias e as noites de carnaval e outras alegrias

desde 1º de janeiro de 1966, quando a família Batista inaugura

uma brincadeira cheia de brilho, o Maracatu de Baque Solto

Estrela de Ouro.

A história deste maracatu é uma história de tradição e resistência

cultural. Narrativa de amorosos obstinados, conta a história oral

que o folguedo remonta a 1882, sob o nome de Nação Maracatu

Cambinda Nova, originário de Santa Luzia, em Tupaóca, distrito de

Aliança, município geograficamente situado na Zona da Mata

Norte de Pernambuco e cuja subsistência dependia quase que

exclusivamente, desde o século XVI, da economia açucareira.

Severino Lourenço da Silva, o fundador do Estrela de Ouro, nasceu

ali, cresceu mergulhado nas expressões culturais lideradas pela

família e foi assim, pelos laços familiares, que aprendeu a cultivá-

las, sobretudo com o tio, José Batista, e com o avô, Antônio

Lourenço da Silva. A importância simbólica do grupo extrapola,

portanto, o que o segundo artigo da ata de fundação explicitava

naquele momento inaugural: "festejar os dias de carnaval e

promover festas para os sócios e admiradores".

Trabalhador rural, comerciante tropeiro, fiscal de campo,

comissário de polícia. Submetido à necessidade de sobreviver de

múltiplas maneiras, Severino Lourenço se estabelece em Chã de

Camará em 1965, após a morte de José Pereira, proprietário do

sítio e pai de criação da mulher, Sebastiana Maria da Silva. O local,

na rodovia PE-62, próximo à entrada do distrito de Upatininga,

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Caboclos de lança, símbolo máximo do Maracatu de Baque Solto.

mantinha um chalé avarandado e acolhedor, construído na década

1930, e ali foi morar o agricultor Severino Lourenço, com a mulher

e filhos. Assume o cargo de administrador do sítio e, um ano

depois, em 1966, cria o maracatu, acompanhado por mais quatro

fundadores, Sebastião Frei de Carvalho, Manoel Francisco de Lima,

Sebastiana Maria da Conceição e Luís Rosa da Silva. Líder da

brincadeira, Severino Lourenço passa a ser tratado, daí em diante,

por Mestre Batista, e o ambiente aglutinador dos integrantes do

brinquedo fica sendo o chalé e o amplo terreiro frontal, cenário

ainda hoje de grandes e festivos momentos do maracatu.

Filho único, Batista nasceu em 1934, em Aliança, e foi criado pela

mãe, tio e avós maternos. Funda o Maracatu Estrela de Ouro um

ano após a morte da mãe, pois a mesma não admitia vê-lo

transformado em folgazão, vê-lo envolvido em brincadeira à época

socialmente discriminada, ainda que liderada pela própria família.

Já tinha havido o antigo maracatu e havia ainda o cavalo-marinho,

heranças do tio e avô maternos. Neste contexto, o Estrela de Ouro,

agremiação carnavalesca, não chegava naquele momento como

invenção artística solitária. Folguedo enigmático, híbrido, o

maracatu de baque solto é originário da Mata Norte onde, ao lado

do cavalo-marinho, representava, então, uma das mais vigorosas

expressões da cultura tradicional. Além disso, a comunidade

também desfrutava de outras práticas arraigadas, como coco de

roda, coco de embolada, cantoria de viola, ciranda. O Estrela de

Ouro se firma, assim, por 25 anos entre as tradições do lugar, até

que morre Severino Lourenço, em 1991, e o grupo é quase

desativado. Poucos anos após, em 1995, o herdeiro da família

Batista, o filho José Lourenço da Silva, acompanhado de alguns

membros da comunidade, assume a liderança do maracatu,

reatando a tradição de família, e vai mais além, fundando o Coco

Popular de Aliança e a Ciranda Rosas de Ouro.

«Um leque de signos que, ao se abrir e fechar, nos deixa ver e

oculta, alternativamente, seu significado”. O maracatu de baque

solto é esse "leque de signos", no dizer do poeta Octavio Paz. A

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Zé Lourenço, atual presidente da agremiação.

Sede do Maracatu em Aliança.

elegância do brinquedo alia-se à complexidade de elementos

fundadores, personagens e ritos. O caboclo de lança é umas das

figuras centrais no folguedo, como o mestre de poesia é o grande

líder. Mestre Batista foi o primeiro mestre caboclo do novo

maracatu, e seguiu na função até 1990. Aprígio Gabriel, tocador

de viola, foi o primeiro poeta. Pouco depois, em 1969, o talentoso

José Bernardo Pessoa, conhecido por Zé Duda, passa a comandar o

apito e a poesia do maracatu. Quando fica afastado entre 1991 e

1997, outros mestres atuam no folguedo: Juriti, Cosmo Antônio,

João Júlio. Zé Duda, que nasceu em 1939, na pernambucana Buenos

Aires, desde 1950 é mestre de maracatu e mantém-se até hoje no

grupo, destacando-se pelas habilidades no improviso poético, as

quais o levaram a protagonizar nos anos 2000, com Jorge Mautner,

o disco e o documentário Maracatu Atômico Kaosnavial.

Integrando um dos núcleos de personagens – o cortejo real, o rei

da brincadeira é o babalorixá Pai Mário, que, mais do que se vestir

de realeza, cuida espiritualmente dos folgazões, com segredos

religiosos da Jurema, das linhas de caboclo, dos ritos propiciatórios

e atua diariamente no Centro Nossa Senhora da Conceição,

instalado vizinho à sede do brinquedo.

O maracatu, quando funcionou como Ponto de Cultura Estrela de

Ouro, pôde providenciar o restauro da casa-grande e instalar

estúdio de gravação, biblioteca, escola de informática. Pôde

gravar, em 2006, o primeiro CD, comemorativo aos 40 anos de

existência do grupo, e vem conseguindo realizar apresentações em

diversos estados e capitais do país, em países da Europa e das

Américas. Com o reconhecimento conquistado nos últimos anos,

têm surgido frequentes oportunidades de participação em

projetos, festivais e encontros, como o Festival Canavial, Festas de

Terreiro, Toques e Trocas, Maracatu Maracatuzeiros, como a

viagem que foi feita à cidade francesa de Murat, para um festival

de danças e músicas do mundo. Que "definição viva, estética e

não etnográfica da nossa arte popular", conforme reflete o

português Ernesto de Sousa, poderíamos propor a esta exuberante

expressão cultural? Compartilhando saberes com ciranda, coco,

cavalo-marinho, as flores de Camará conjugam canto, poesia,

dança, música, teatro, artes plásticas, artesanato, religião. No

êxtase criativo de maracatus, resplandece uma Estrela de Ouro,

alumiando o mundo com a cultura do baque solto. Carnaval,

paixão, alegria, arte.

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A preparação dos brincantes do mararacatu; pequena dama segurando a estrela, símbolo da agremiação, em apresentação no Marco Zero, Recife.

Associação MusicalEuterpina de TimbaúbaAssociação MusicalEuterpina de Timbaúba

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o reino da música e da memória, com todas as bênçãos da

Musa Euterpe, há quase um século brilha uma "deusa

estrelar": a Associação Musical Euterpina de Timbaúba. O poeta e

jornalista Balthazar de Oliveira presidiu a sessão solene de

fundação, a 9 de fevereiro de 1928. Dez meses depois, sob as

notas vibrantes de dobrados regidos pelo maestro Augusto

Rezende, sob os esforços e dedicada alegria dos professores José

Mendes da Silva e José Francisco Ribeiro, acontece a primeira

apresentação, daquela sociedade cujo nome José Mendes foi

quem propôs. Cultivar e desenvolver o gosto pelas artes da Musa

Euterpe é o que desde o princípio defende o estatuto da banda.

Tradição na cena cultural daquela cidade da Zona da Mata Norte

de Pernambuco, a filarmônica, que inicialmente se chamava

Sociedade Musical Euterpina Comercial de Timbaúba, por décadas

vem preenchendo com alegria e dignidade as ruas da antiga Vila

dos Mocós, nos mais variados momentos do calendário oficial e

não-oficial da comunidade. Por décadas, vem mantendo o firme

propósito, perante os associados, de "organizar recreios de várias

espécies, como sejam concertos, convescotes, passeios, retretas

etc., além de festas internas para diversões de seus associados".

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Foto da banda em 1997.

Momentos de recreio, de lazer, de festa, estes ritos de socialização

desdobram-se em múltiplas circunstâncias, de retumbante alegria

à mais profunda tristeza, e incluem a participação de históricos

personagens, como a do escritor Balthazar de Oliveira, pai do

pintor, escultor, ilustrador e poeta Montez Magno, e que depois

foi prefeito de Afogados da Ingazeira, no Sertão do Pajeú. Retreta,

tocata, procissão, aniversário, funeral vêm garantindo à Euterpina

inscrição na memória coletiva da cidade e nas lembranças afetivas

de indivíduos e respectivos clãs familiares. E, seguindo o ritmo do

calendário, maio é tradicionalmente o mês das retretas. No

carnaval, apresenta-se como orquestra de frevo, como que

rendendo homenagens ao próprio aniversário, o dia nove de

fevereiro, em que também é celebrado o dia do frevo. Além das

músicas religiosas e carnavalescas, o repertório geral do grupo

compõe-se de bolero, valsa, choro, dobrados, ritmos tradicionais

pernambucanos e o que possa haver de mais pop e ousado na

cena musical, como Chico Science e o Maestro Forró. A oportuna

adequação do repertório vem funcionando como atrativo a

músicos e público jovens.

Ao divulgar históricas apresentações protagonizadas pela

filarmônica, o Timbaúba Jornal noticiou a audição de gala na Rádio

Tamandaré, Recife, em abril de 1954, quando foram "o maestro

Francisco Carneiro e os componentes da Euterpina delirantemente

aplaudidos por numerosa e seleta assistência". Esse regente, de

que fala a reportagem, é quem nomeia a Escola de Música Mestre

Carneiro, mantida para atender crianças, adolescentes e jovens em

processo de iniciação e profissionalização. E, aliás, é devido a essas

atividades pedagógicas que as filarmônicas se constituem em

verdadeiros conservatórios e, ainda, “equivalem às orquestras

sinfônicas das grandes metrópoles", conforme escreveu em artigo

o pesquisador Renan Pimenta, um dos grandes defensores das

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Detalhes dos instrumentos.

filarmônicas, articulador do Encontro de Bandas de Música da

Mata Norte e integrante da Federação de Bandas de Música de

Pernambuco, associação criada em 1996.

Mesmo conquistando tanto sucesso ao longo de décadas, a

Euterpina permaneceu inativa por quase trinta anos, entre 1962 e

1989, até que, no dia 2 de março de 1989, na sede do Lions Clube

de Timbaúba, um grupo de antigos admiradores – José Mário de

Albuquerque Rodrigues, Braz Coutinho Filho, Teófanes Martins,

Osvaldo Xavier Pedrosa, Ismael Vasconcelos, Nilson Neves Perrelli –

decidiu restaurar as atividades da associação, sob a presidência

deste último. Assim, após dois anos de preparativos e ensaios, a 31

de março de 1991 a Euterpina ressurge, exuberante, em alvorada

festiva e retreta com a participação de outros grupos tradicionais,

entre elas a Sociedade de Cultura Artística 22 de Novembro, de

Paudalho, a terceira mais antiga do Brasil e América Latina,

fundada em 1852; a centenária Sociedade Musical Comercial

Caruaruense, de 1900; a Filarmônica 28 de Junho, de Condado,

criada em 1905; a Sociedade de Cultura e Musical 1º de

Novembro, ou Pé-de-Cará, de Timbaúba (1922).

Retomar as atividades significou renovar antigas alegrias, e

igualmente acrescentar novas emoções, como aquela que, há

alguns anos, toda a cidade presenciou e a imprensa local registrou:

a execução do dobrado Sonhador, tocado em praça pública pelas

históricas rivais Euterpina e Pé-de-Cará, como se formassem uma

só orquestra, como se jamais tivesse havido renitente disputa entre

as duas aclamadas filarmônicas timbaubenses. Tal acontecimento,

extraordinário, foi noticiado pelo jornal A Província, em janeiro de

1997. Hoje, mantendo-se em contínua atividade desde a

retomada, mais de quarenta músicos atuam, sob a regência de

Josivânio Rique de Lima, Mestrim, e assim segue reinando a

Euterpina de Timbaúba, esta estrela de alegria, para júbilo até

mesmo da Musa Euterpe.

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evoltosos do Inferno: se o apelido guardava propósitos pouco

nobres, os fundadores, dissidentes da rival Euterpina,

alcançaram o que de mais louvável poderia haver. Com a

participação de músicos tarimbados criaram a Sociedade Musical 5

de Novembro, ou Revoltosa, estabelecendo mais uma interlocutora

para as pelejas musicais protagonizadas em Nazaré da Mata, com

o Grêmio Musical 22 de Novembro, popularmente conhecido

como Cabeluda, e a Euterpina Juvenil Nazarena, ou Capa-Bode,

ambos fundados no século XIX. Na gênese de tudo, já havia a

Cabeluda, que cuidava desde o cultivo de ouvidos afiados ao

preparo de virtuosos instrumentistas, desde a aprendizagem de

partituras à educação orquestral, sinfônica, até surgir a rival Capa-

Bode. As duas, que se enfrentavam em pelejas musicais, faziam a

cidade encher-se de alegria e vitalidade, e terminaram colaborando

para que mais uma banda se firmasse, desta vez no início do

século XX: assim nasceu a Revoltosa, fundada em Nazaré a 14 de

janeiro de 1915, tradicional desde o princípio.

O primeiro maestro líder dos revoltosos foi o regente Joquinha, ou

João Alves Cantalice, cujo nome é homenageado numa rua do

bairro do Sertãozinho. O primeiro presidente chamava-se Francisco

Salustiano Correia e a primeira apresentação, que aconteceu no

dia 5 de novembro do mesmo ano em que a banda foi fundada,

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Lápide dos antigos presidentes da Banda. Detalhe, da sede do grupo.

Seu Zé Dias, antigo componente da banda e Josenildo, atual presidente.

teve a referida data escolhida para oficialmente nomear a

associação. O maestro Joquinha, ex-aluno do primeiro regente da

Capa-Bode, o músico João Tomé, também chegou a reger a

Euterpina, antes de passar a integrar a dissidência. Foi Joquinha

quem protagonizou histórica disputa entre essas duas rivais, e,

liderando a Capa-Bode, a outra banda do enfrentamento, estava o

Maestro Brigada Carneiro. Além do talento indiscutível, figura no

currículo do mestre Joquinha a iniciação musical do regente,

arranjador, compositor e instrumentista nazareno José Menezes

(1923-2013), que começou a carreira estudando e tocando na

banda Revoltosa, consagrando-se depois como um dos maiores no

carnaval pernambucano.

Localizada à Praça Carlos Gomes, em casarão antigo de tradicional

endereço, em pleno centro, e quase aos pés da antiga Igreja do

Bom Jesus e casario histórico que enfeita rua homônima, a

Revoltosa mantém ainda hoje a saudável rivalidade com a Capa-

Bode: igualmente participa de desfiles cívicos, desfiles religiosos,

encontros de banda, carnavais, outras festas de rua e, ainda,

desenvolve atividades de educação musical, cujo público não se

restringe aos moradores de Nazaré, abrangendo alunos que se

deslocam de cidades vizinhas, como Aliança, Buenos Aires,

Carpina, Tracunhaém, atraídos pela envolvente musicalidade da

região, a exemplo dos ritmos locais – ciranda, coco, frevo,

maracatu – incluídos no vasto acervo de partituras da quase

centenária banda, lado a lado com o repertório, bastante eclético,

de tradicionais marchas e dobrados, de MPB e clássicos. Diversos

ritmos e estilos musicais são contemplados.

Para atrair os ouvidos sensíveis desta cidade "plena de música",

conforme definiu o maestro José Menezes em artigo publicado nos

anos 1980 e, sobretudo, para atrair adolescentes e jovens

naturalmente irrequietos, múltiplos são os cursos oferecidos pela

banda, sob a direção de Josenildo Dias de Melo e regência musical

de Rubens Luiz de Oliveira Santos. Cursos de editoração de

partituras, de ritmos regionais, de percussão compõem a grade

pedagógica simultaneamente ao ensino de técnica instrumental,

teoria e solfejo. E é histórica a contribuição da banda na formação

e encaminhamento de estudantes e músicos ao Conservatório de

Música de Pernambuco, aos centros profissionalizantes, centros de

arte e universidades, bandas e orquestras do país. O projeto

pedagógico inclui o atendimento a crianças e adolescentes

socialmente carentes. Para melhor executar esse projeto, o espaço

físico foi estruturado de modo a oferecer cinco salas destinadas a

aulas teóricas, à prática de instrumento, aos cursos e oficinas. Há,

ainda, auditório para concertos e audição musical, um pátio de

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Ata de fundação.

eventos para espetáculos e comemorações, um salão nobre onde

os músicos ensaiam semanalmente.

Ao longo da história é possível confirmar as qualidades da

instituição sem fins lucrativos. Em 1958 apresenta-se no auditório

da Rádio Clube de Pernambuco e conquista o título de campeã em

concurso promovido pela emissora. Bem antes, na comemoração

de mais um aniversário, especificamente o de 25 anos, o jornalista

nazareno João Manoel Vieira de Melo publica, em 5 de novembro

de 1939, "programa social, noticioso e humorístico" consistindo

em edição única de O Revoltoso, o qual o próprio Vieira de Melo

qualifica como "lembrança deste dia em que Nazareth em peso

comemora gostosamente a nossa data aniversária". O registro

noticia a programação do dia de festa, preenchido com alvorada,

salva de tiros, retreta, leilão de prendas oferecidas por amigos e

admiradores, mamulengo, pastoril, barraquinhas, coroado pelo

noturno chá dançante com a Jazz Band Almirantes do Ritmo,

"importante conjunto composto de elementos da 5 de

Novembro". O jornalista também dedicou espaço para traçar perfil

do então diretor da Revoltosa, Joel de Lima, e reverenciar o

maestro, naquela ocasião há 25 anos no cargo, declarando que

"aos vários sucessos da Revoltosa o mestre Joquinha tem o nome

profundamente associado. Uma geração de músicos deve-lhe a

sua formação artística".

Sempre em busca de um nível de excelência, a Revoltosa

conquistou em 2008 o Prêmio Maestro Duda 100 Anos de Frevo,

oferecido pelo Ministério da Cultura (Minc). É, ainda, a partir do

ano seguinte, 2009, que passa a funcionar como Ponto de

Cultura, mantido pela parceria entre o Governo Federal e o

Governo do Estado de Pernambuco (Minc/Fundarpe). E se o

ponto de partida foi uma disputa de poder, faz um século que

Nazaré, e todo o entorno, é quem permanece ganhando esta

saudável e musical peleja.

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Membros da banda durante ensaio.

Lula VassoureiroLula Vassoureiro

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a receita prosaica que mistura pedaços de jornal e grude de

goma nasce o objeto com que Lula Vassoureiro transfigura o

humano, evoca antigos sentidos. E que objeto é este? A máscara

de carnaval, mais especificamente a máscara de papangu, figura

emblemática da cultura de Bezerros, carnavalesca cidade

encravada no agreste pernambucano. "O nascimento da máscara

está ligado ao ato criativo de um escultor", lembra Ludovico Zorzi,

conferindo dignidade a cada inventor deste objeto e, portanto,

conferindo dignidade a quem de direito em Pernambuco vem

construindo para si e para o mundo um potente legado com este

"instrumento universal cuja origem no tempo é indeterminada"

conforme descreve Luis da Câmara Cascudo. O amor ao carnaval

se multiplica por arte das próprias mãos de artista que já foi

construtor de brinquedos populares nordestinos, como rói-rói e

mané gostoso, que desde a infância domina as artes circenses de

palhaço e de mágico, e há muito ocupa posição relevante na

cena cultural pernambucana, nordestina, brasileira: “toda a vida

fui criativo”.

Nascido em Bezerros a 2 de novembro de 1944 e conhecido na

cidade como "pai dos papangus", "mestre das máscaras

gigantes", “Lula, o gigante”, Amaro Arnaldo do Nascimento

começou a lidar com a técnica aos seis anos, quando fez a

primeira máscara, inspirada no contemporâneo personagem de

cartum O amigo da onça. Herdou do pai e do avô não apenas o

apelido, sobretudo o amor ao carnaval e a essa peça carregada de

símbolos que, segundo o teatrólogo Peter Brook, "é a mais

extraordinária experiência de liberação que se pode imaginar". O

pai de Lula, José Arnaldo do Nascimento, ou Zé Vassoureiro,

ensinou ao filho a arte de fazer máscaras, por sua vez aprendida

com o próprio pai, o artesão e vendedor de vassouras, Antônio

Vassoureiro. O resultado disso tudo é que, embora o pai nunca

tenha permitido o filho frequentar escola (mesmo assim ele

aprendeu sozinho), por causa das máscaras já viajou até aos

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Fotos antigas do Carnaval de Bezerros, arquivo do artista.

Estados Unidos para ministrar oficina em duas universidades, como

artista convidado. As obras artísticas que produz estão espalhadas

pelo mundo. Andam pelo México, Estados Unidos, Canadá,

França, Itália, Etiópia, Japão. Se a simbologia mostra-se em

contínuo processo de revisitação e renovação de sentidos, também

constantemente se renova o ofício artesanal da construção das

máscaras de Lula Vassoureiro, sem, entretanto, se romperem os

fios de alegria e irreverência que seguem tecendo a tradição

carnavalesca local.

Entre as características estéticas adotadas por Lula na manufatura

das caras, há a construção de tipos regionais, conforme

tradicionais modelos de rosto masculino e feminino, e,

simultaneamente, máscaras de deliberado estilo veneziano que se

firmaram em meio à tipologia recorrente na infância de Lula.

Modelos que, conforme descreve o próprio artista, são

classificados como antigo, moderno e estilizado. Aquelas mais

sugestivas de terror e desconforto foram propositadamente sendo

preteridas às que inspiram mais ingenuidade, alegria, e não

assustam criancinhas como acontecia em décadas passadas. A

máscara, mediadora entre forças – bem e mal, alegria e tristeza – é

objeto mágico de cerimônias rituais, é símbolo de identificação, de

organização dos sentidos da vida, de catarse. Por isso mesmo, as

máscaras de papangu não são objetos a serem simplesmente

apreciados de maneira isolada, ainda que o artesão se debruce

sobre os materiais para construí-las uma a uma, ainda que sejam

postas à vista separadamente. A exuberância dessas figuras

enigmáticas se apreende no espetáculo de catarse coletiva, que é o

carnaval. O mistério, o terror provocados pelas máscaras

comunicam, tanto quanto a alegria, os sentidos do efêmero e da

fragilidade da vida.

Objeto carregado de símbolos, as máscaras faciais não são a única

especialidade de Lula. O artista é sempre convidado a produzir

grandes máscaras para ornamentação da cidade durante o período

momesco, além de outros ícones do carnaval pernambucano,

como boi, burrica e boneco gigante. A cada ano, e com a

colaboração de equipe de artesãos auxiliares, Vassoureiro produz

em torno de 1.500 peças, das quais cerca de trezentas

correspondem a rostos gigantes e painéis ornamentais. Sobre as

técnicas de criação, menciona o uso de papier mâché, papier

encollé, materiais reciclados. Na Casa de Cultura Popular Lula

Vassoureiro, espaço criado por ele mesmo em 1985 para

produção, divulgação e repasse da técnica, há um auditório, uma

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As máscara de Lula Vassoureiro: marca do carnaval de Bezerros.

loja, e o acervo, permanentemente exposto, consiste em peças

artesanais, troféus, memórias várias da trajetória artística. Há peças

em exibição tanto no tamanho natural, quanto em miniatura e

formato ampliado. Aliás, o artista integra o Guiness Book por ter

produzido em 1997 a maior máscara do mundo, com cinco metros

e meio de altura. Participa anualmente, no Recife, de feira

internacional de artesanato, a Fenearte, onde ocupa lugar de

destaque na ala dos mestres.

É por amor ao carnaval que certamente o artista se destaca pelas

vibrações de mãos hábeis e de todos os sentidos sincronizados

com as tradições. Verdadeiro folião, Lula Vassoureiro também

herdou do pai o Bacalhau na Vara do Zé Vassoureiro, fundado em

1956, e que, pela persistência do herdeiro, continua saindo toda

quarta-feira de cinzas. Por este motivo e ainda mais pela

criatividade de papangus e outros objetos carnavalescos que

inventa, em 2002 e em 2014 Lula foi o homenageado do carnaval

de Bezerros, ciclo festivo em que igualmente conquistou muitos

louros – por vinte e uma vezes recebeu o prêmio de melhor

fantasia. A vida do artista sempre foi pautada pela criatividade,

pela alegria, pelo desafio da novidade. Passando-se por órfão, dos

7 aos 13 anos viajou acompanhando um circo, o que lhe rendeu

aprendizado nas artes circenses e mágicas. Observando o

artesanato do pai, e à revelia deste autor e proprietário dos

moldes, aventurou-se na criação de rosto de papangus, assim

articulando permanente diálogo com a própria comunidade e

com o mundo, fazendo ressoar a reflexão antropológica de Lévi-

Strauss: "as máscaras não são menos indispensáveis, para o

grupo, que as palavras".

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Maestro FormigaMaestro Formiga

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uero ser sempre o primeiro dia de carnaval". É assim que o

maestro gosta de viver, possuído pela melodia, braços

movendo-se para os lados e para o alto, expandindo-se feito frevo

de rua que começa derramando alegria. É a coerência entre vida e

obra o que expressa o artista, Maestro Formiga, elegendo o modo

maior como a forma por excelência para conduzir o ritmo da obra,

o ritmo da vida. A paixão por viver está tão entranhada nele

quanto a paixão pela alegria de viver mergulhado na música,

expressão artística que o emociona sempre: seja repente de viola,

seja frevo, seja Beethoven. Autodidata visceralmente ligado à

musicalidade popular de frevo, maracatus de baque solto e virado,

ciranda, caboclinho, bumba-meu-boi, suas composições incluem,

além de ritmos tradicionais, poemas sinfônicos, estudos para

piano, flauta e oboé. Ademir de Souza Araújo, que nasceu no

Recife em 15 de outubro de 1942, é formiguinha incansável da

cena musical pernambucana a partir da década 1950, e desde

então escreve significativa parcela da história cultural brasileira

com a versátil e talentosa arte.

Compositor, arranjador, instrumentista, regente, professor de

música, Maestro Formiga foi aluno de José Otávio dos Prazeres e

de José Gonçalves Lima. Estudou contraponto e fuga com Jaime

Diniz. Com o maestro César Guerra-Peixe estudou música

folclórica. A base da formação está na experiência vivenciada em

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Apresentação do maestro Ademir Araújo e Orquestra, no Festival de Inverno de Garanhuns 2012.

bandas de música. Aos 20 anos funda, com amigos, a Banda

Municipal do Recife, onde estreia tocando saxofone e onde, anos

depois, de 1970 a 1977, assume o cargo de regente titular. Diretor

da Federação das Bandas de Música do Estado de Pernambuco,

Formiga atuou como arranjador em bandas do interior, foi regente

da Banda Sinfônica Juvenil Pernambucana e, entre 1984 e 1991,

comandou a Banda Sinfônica da Cidade do Recife. Este sobrinho

do renomado maestro Severino Araújo, da Orquestra Tabajara, traz

no sangue o talento e no caráter irrequieto e criativo uma torrente

de melodias, arranjos, invenções traduzidas em jogos harmônicos

de metais e percussão, transformando-se, ele mesmo, numa das

mais importantes referências em composição e arranjo musical de

múltiplos gêneros populares e eruditos. A partir da exuberância da

obra e do ensino a jovens iniciantes, sobretudo nas bandas de

música, Formiga vem não apenas formando, sobretudo

influenciando gerações de artistas.

Logo no início da carreira, Ademir Araújo é vencedor, durante três

anos quase consecutivos – 1965, 1967, 1968 –, do concurso de

carnaval da Prefeitura do Recife, na categoria maracatu. A cheia de

1966 inspirou-o a compor a música Frevo na Tempestade. Em

1971 conquista o prêmio máximo no festival de frevo dos Diarios

Associados, com Alô, Recife. Em 1980, acompanhado da

Orquestra Popular do Recife e do cantor Claudionor Germano,

participa do lançamento da Frevioca, orquestra volante de frevos

criada pelo pesquisador Leonardo Dantas Silva. Aliás, há cinco

décadas Formiga é amigo de Claudionor, intérprete de premiadas

composições suas: os dois se conhecem desde 1964. Diversas

vezes vence o Frevança, encontro nacional do frevo e do maracatu

promovido pela Fundação de Cultura Cidade do Recife e Rede

Globo Nordeste. No ano de 1980, com Águia de Ouro,

composição de maracatu de baque solto. Em 1981, 1982 e 1989,

respectivamente com os frevos de rua Formiga está de volta,

Tonico está de volta e Andréa no Frevo.

Formiga é quem cuida da regência e direção musical da Orquestra

Popular do Recife, idealizada e criada por Ariano Suassuna, em

1975, como um dos ramos de atuação do Movimento Armorial.

Constitui-se, desde o princípio, como uma das mais importantes

orquestras de Pernambuco, pioneira na pesquisa e transcriação de

gêneros tradicionais, a exemplo de maracatu, coco, ciranda,

reisado, caboclinho. Conforme dito acima, foi a primeira a tocar na

Frevioca, em 1980. Em 2003, lança o disco O som dos

Caboclinhos, fiel a esse espírito de pesquisa, transcriação e

salvaguarda do tradicional gênero carnavalesco. Ao longo de

décadas de atuação, a OPR chegou a acompanhar, entre outros,

Luiz Gonzaga, Lenine, Gonzaga Leal, Balé Popular do Recife, e já

viajou por países como Alemanha, Bélgica e Cuba. É nessa

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Maestro Ademir e Claudionor Germano, década de 1970. Estreia da Frevioca em 1985.O primeiro frevo composto pelo maestro, 1966.

orquestra que Ademir mais potencializa e materializa as suas

criações artísticas, com "o timbre visceral dos metais e da

percussão (...) mestiçado, gingado e estabelecido em estilos

diversos", segundo aponta Renata Amaral, com propriedade, no

encarte do CD Olha o Mateus, de 2009, o primeiro da OPR.

No festival de música carnavalesca de 2010, realizado no Recife,

viu premiadas três composições das quais foi o arranjador: o frevo

de bloco Salu Rabequeiro, de Getúlio Cavalcanti, com

interpretação do Bloco da Saudade; o frevo-canção O molejo do

passo, de Roberto Cruz e Beto Ortiz, interpretado por Nonô

Germano; o maracatu Rainha do Morro, de Braulio de Castro e

Marcelo Varella, intérprete Gerlane Lops. Em 1982, com

o selo Mocambo produz o disco Carnaval do Nordeste nº 2,

distribuído pela Sudene em diversos países. Sua excelência o frevo

de rua é lançado em 1996 pela Polydisc e, em 2002, lança Release

- Música Erudita Pernambucana, disco que reúne quatro poemas

sinfônicos, produzidos entre 1976 e 1978: Festa do Carmo, Poema

Índio, Poema Negro, Abertura do Diario de Pernambuco.

Homenageado do carnaval do Recife em 2008, Formiga nos

convida a adotar o mote que ele mesmo vem glosando, a seguir

ao ritmo da própria música da vida, regendo-a em modo maior:

"queira ser sempre o primeiro dia do carnaval".

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Ergui um monumento mais duradouro que o bronze, mais elevado que as pirâmides dos reis. Nem a chuva cortante nem o vento devastador; nem a seqüência inumerável dos anos nem a passagem das eras conseguirão destruí-lo. Não morrerei de todo, pois de Libitina [deusa da morte] grande parte de mim escapará.

Horácio

Patrimônios Vivos

in memoriam

139

16

Ana das CarrancasAna das Carrancas

141

o extremo oeste pernambucano, espiando as terras do

Piauí, saiu a louceira Ana Leopoldina Santos à procura de

sobrevivência, e o que conseguiu cavar foi bem mais que isso:

inspiração, talento, fama. Nascida em 18 de fevereiro de 1923,

no distrito de Santa Filomena, povoação encravada na Serra do

Inácio, à época pertencente ao município de Ouricuri, foram

as verdes águas do Velho Chico que mais tarde viram nascer a

artista. Serviu de mote criador a paisagem exuberante povoada

de nego d’água, maus espíritos, vapor, paquete, remeiros. De um

lado, Pernambuco. Do outro, a Bahia. No meio, o jorro inspirador.

Nas margens, a lama sagrada. Era corriqueiro apreciar esculturas

zoomorfas e antropomorfas na proa das embarcações, imagens

que se repetiam nos barcos, há mais de um século, e no artesanato

do Vale do São Francisco. Delas, um ícone se chamava Guarany,

outro atende por Ana, a filha de Joaquim Inácio de Lima e Maria

Leopoldina dos Santos.

Ainda criança, tinha sete anos e já sabia fazer e vender louça

utilitária – pote, moringa, panela, cuscuzeiro, jarro –, uma das

tradições ouricurienses, que se mantém com as ceramistas da

comunidade do Pradicó. Vendia “panelinha de guisado, boi zebu,

cavalinho com vaqueiro amontado, santinho de lapinha”. Ou seja,

moldava as peças de louça e mais uns tantos brinquedinhos para

ganhar uns trocados e ajudar a mãe louceira, com quem teve os

Pris

cilla

Buhr

142

Maria da Cruz dá continuidade ao estilo da mãe,

primeiros ensinamentos na modelagem do barro. Aos 22 anos

casou-se, teve duas filhas – Ana Maria e Maria da Cruz – e em

seguida ficou viúva. Um ano depois de enviuvar, Ana se casou com

o piauiense José Vicente de Barros. Moravam, então, em Picos.

A vida não era fácil naquelas terras do sertão do Araripe, em que

alternavam bom inverno e longos períodos de estiagem. Por esse

motivo, incluiu-se no rol de migrantes que corriam para Petrolina

em busca de um oásis.

Era 1954. Chegou à cidade e começou vendendo aribé, panela,

pote, presépio, burrinho, pato, boi, cabra. Depois da inspiração

saída das águas do Velho Chico, nunca mais foi a mesma. As

emblemáticas carrancas começaram a ganhar força e, a partir de

1970, tornaram-se disputadíssimas, graças, inclusive, ao trabalho

de pesquisa sobre o artesanato pernambucano que os técnicos

em turismo Olímpio Bonald Neto e Francisco Bandeira de Melo

estavam realizando pelo sertão, a serviço da Fundarpe. Ambos

ficaram impressionados com as carrancas da ceramista. A trajetória

artística de Ana Leopoldina ficou marcada, daí por diante – e para

sempre – pela mitopoética ribeirinha, a ponto de adotar o nome

artístico que correu mundo: Ana das Carrancas.

Ana das Carrancas, com quem aprendeu o ofício.

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A carranca mais antiga, da própria produção, data de 1963, quando

ainda era conhecida por Ana Louceira ou Ana do Cego. Sobre a

primeira peça, a carranca cangula, ela mesma contou: estava na

beira do rio e pensou que poderia fazer um barco, colocar um

velho, vendedor de jerimum, com um menino ajudante, umas

bolinhas para fingir que era o jerimum, uma cobertura de palha e,

claro, a carranca na proa do barco. Segundo Ana, essa invenção

“deu sorte”. E assim, de tão bem-sucedida, a cangula ganha

réplicas ainda hoje. Outras peças, igualmente difundidas, também

trouxeram sorte: carranca-cinzeiro, com três caras, jardineira,

totem. Aliás, não se pode falar em Ana sem associá-la às figuras

totêmicas modeladas no barro, em forma de animal e de gente,

alvo de chacota dos feirantes, quando circularam a primeira vez na

feira livre de Petrolina. Ana não se intimidou. Ao contrário, valeu-se

do imaginário da comunidade ribeirinha para moldar na cerâmica

um dos ícones da cultura local. Um casamento bem-sucedido

entre temática e talento. Nesse mesmo ano, 1963, inaugura-se

a Biblioteca Municipal e as carrancas de Ana fazem sucesso,

distribuídas a título de suvenir.

Após levar o nome de Petrolina para feiras de artesanato nacionais

e internacionais, figurar em galerias de arte e museus, alternar

fama e ostracismo, o grande sonho da mulher oleira tornou-se vivo

e palpável em setembro de 2000, mesmo ano em que conquistou

o título de cidadã petrolinense. É inaugurado o Centro de Arte

e Cultura Ana das Carrancas, com loja, ateliê e exposição de

antigas carrancas, inclusive a de 1963. Tudo no ambiente ressalta a

trajetória da ceramista. O olho vazado homenageia o marido, cego

de nascença, Zé Vicente, o amassador do barro. As filhas Ângela

Aparecida de Lima – adotiva – e Maria da Cruz Santos modelam

esculturas, tal qual a mãe. A filha Ana Maria é casada com o

escultor de carrancas em madeira, Domingos Lopes, ou Lopes de

Petrolina, um dos seguidores do estilo de Guarany. Mesmo tendo

falecido em 1º de outubro de 2008, na cidade de Petrolina, a família

vive imersa no rico imaginário da ceramista, que sempre afirmava,

orgulhosa: “meu sangue é negro, mas minha alma é de barro”.

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Canhoto da ParaíbaCanhoto da Paraíba

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avô tocava clarinete. O pai, violão. O filho, Francisco Soares

de Araújo, tinha a certeza de que adorava música, e isto era

o que não faltava em casa, reduto dos principais instrumentistas

da cidade. Ainda criança, já sabia apreciar um bom repertório,

habituado aos saraus e serenatas na própria residência. Com o

pai, Antônio Soares de Lima, aprendeu, aos 12 anos, a tocar a

tabuinha, que era como apelidava o violão. O avô, o clarinetista

Joaquim Soares, também exerceu grande influência sobre ele. Com

o maestro Joaquim Leandro, regente da banda local, conheceu as

primeiras notas musicais. Mas, outros instrumentistas da infância,

a exemplo dos violonistas Zé Micas e Luiz Dantas, do saxofonista

Manoel Marra e do acordeonista Zé Costa, foram decisivos, pois,

por causa deles, manteve os primeiros contatos com um repertório

de choros e valsas que o marcaram para sempre. Alguns chorinhos

fizeram-no cultuado por músicos do porte de Radamés Gnatali,

Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Paulinho da Viola.

Nascido em 17 de março de 1931, em Princesa Isabel, alto

sertão paraibano, o filho de Quitéria Lopes de Araújo, lá mesmo,

foi o tocador do sino da igreja, fez iniciação musical e partiu

amadurecido à procura de outras cidades em que pudesse

expandir os dotes artísticos. Ainda adolescente veio ao Recife

apresentar-se na Rádio Clube, mas somente aos 25 anos é

que conseguiu realmente sair de Princesa Isabel. Foi para João

Pessoa, em 1952, onde morou alguns anos e brilhou na Rádio

Tabajara. Em seguida, 1958, transfere-se definitivamente para

Pernambuco e é imortalizado como Canhoto da Paraíba, um dos

mais importantes compositores de choro. O diferencial no uso

da tabuinha aconteceu assim: por necessidade de compartilhar

com os irmãos destros o mesmo instrumento, desenvolveu uma

técnica especial de dedilhar o violão, tocando os acordes com a

mão direita e usando a esquerda para o dedilhado das cordas, sem

invertê-las. Ou seja, um violão “tocado pelo avesso”, como diz o

título de um dos seus discos gravados.

Reprodução de ilustração e antigas imagens de Canhoto da Paraíba,

fotografadas na residência do artista, em Maranguape.

146

Não só a forma de tocar o instrumento, sobretudo o vigor das

composições de Canhoto é que o fizeram chegar ao panteão

dos grandes instrumentistas brasileiros. O repertório passa pelos

ritmos regionais – xote, xaxado, baião, frevo – e pela bossa nova,

predominando o choro e a valsa. Para a grandiosidade com que

compunha e tocava o violão, poucos foram os discos gravados por

Canhoto: Único Amor, de 1968, é gravado pela Fábrica Rozemblit,

no Recife. Um dos músicos, escolhido à época por Canhoto, foi

o jovem Henrique Annes, hoje violonista consagrado. O produtor

do disco foi o maestro Nelson Ferreira. Em 1974, também pela

Rozemblit, sai Um violão direito nas mãos do Canhoto. Em

1977, é a vez do álbum Com mais de mil, selo Marcus Pereira,

produzido por Paulinho da Viola e festejado pela crítica musical

do país. No repertório, as músicas Pisando em brasa e Com mais

de mil. Além de produzir o primeiro disco de Canhoto, Paulino da

Viola viajou com o violonista pelo país, no Projeto Pixinguinha, e

gravou, no seu primeiro trabalho, de 1971, o choro Abraçando

Chico Soares, seguindo o estilo de composição do paraibano. Em

1990, Geraldino Magalhães e Lula Queiroga produzem o disco

independente Fantasia nordestina: Violão brasileiro tocado pelo

avesso. E, pela Caju Music, lança, em 1993, o último trabalho solo,

Pisando em brasa, com participação especial de Raphael Rabello

147

e Paulinho da Viola. Ainda em 1993, pelo Tom Brasil, sai o CD

Instrumental no CCBB: Canhoto da Paraíba e Zimbo Trio. Em

1999, Canhoto é ladeado por Annes, Rafael Rabello, Baden

Powell na coletânea Os bambas do violão, lançada pela Kuarup.

Radicado durante meio século em Pernambuco, Canhoto foi

agraciado, em 1984, com o título de cidadão pernambucano.

Reverenciado por Baden e outros grandes nomes da música

popular brasileira, apresentou-se com Luperce Miranda,

João Bosco, Sivuca, César Camargo Mariano, para citar

apenas alguns. Em 2004, recebeu uma homenagem do

presidente Lula, em Brasília. Na Paraíba, foi homenageado

com a publicação da Lei Canhoto da Paraíba, que, a partir

de 2005, concede a artistas o título de Mestres das Artes (Lei

7694/2004, Registro de Mestres das Artes – Rema) e ele foi um

dos primeiros agraciados. Após sofrer isquemia cerebral em

1998, interrompe-se a carreira do artista, que passa os últimos

anos de vida em Maranguape, Pernambuco, com uma filha,

falecendo em 24 de abril de 2008.

A importância musical desse requintado artista inspirou o Trio

de Câmara Brasileiro a produzir, em 2009, o disco Saudade de

Princesa – Sobre a obra de Canhoto da Paraíba, do selo Crioula

Records. O recifense Caio Cezar assina a direção musical do

CD e está organizando um livro com as partituras musicais de

Canhoto. A genialidade do mestre, de viva memória, perpetua-

se com ações desse porte, e, ainda, ao ser constantemente

revisitada nas gravações originais do instrumentista e em

regravações ou releituras de outros virtuoses.

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Mestre SalustianoMestre Salustiano

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inda menino, sete anos, brincava cavalo-marinho pelos

engenhos de Aliança. Foi arriliquim, dama, galante, cantador

de toada, nove anos de Mateus, depois foi ser mestre. O pai era um

tocador de rabeca, aprendeu com ele. Os folguedos e brincadeiras

eram vistos e experimentados desde criança: maracatu, ciranda,

coco, forró, mamulengo, improviso de viola. Estudou até a 4ª série

primária. Trabalhou em casa de família, vendeu sorvete, picolé, foi

ambulante. Conforme declarações próprias, considerava-se o maior

dançador de cavalo-marinho e, nos versos de maracatu, inspirava-se

no mestre Antônio Baracho. Manoel Salustiano Soares, ou mestre

Salustiano, artista múltiplo e produtor de espetáculos e folguedos

tradicionais organizados e mantidos em família, nasceu a 12 de

novembro de 1945, em Aliança, e foi lá, na Zona da Mata Norte,

que se iniciou no universo cultural de que é um dos mais afamados

representantes. O filho de Maria Tertunila da Conceição aprendeu

a ler, escrever e sempre teve inteligência suficiente para tirar o

máximo proveito dos dotes artísticos.

Começou a morar em Olinda em 1965, mesmo ano em que

começou a tocar rabeca profissionalmente, aprendida pelas mãos

do pai e professor, João Salustiano, que ensinou o filho a fazer e

a usar o instrumento. Passou a ser mais conhecido na década de

1970 e em 1977 participa de um comercial de TV. Foi entrevistado

em 1989 no programa televisivo Som Brasil e, nessa época,

segundo ele mesmo, só conhecia a Mata Norte, nem sequer outras

regiões de Pernambuco. Em 1997, integrou comitiva de artistas

locais que foi a Cuba. Durante mais de 10 anos organizou o festival

da rabeca e coordenou a Casa da Rabeca do Brasil. Por quase

20 anos participou, na condição de fundador, da Associação de

Maracatus de Baque Solto de Pernambuco. Recebeu o título de

reconhecido saber em 1990, concedido pelo Conselho Estadual de

Cultura, e o título de doutor honoris causa, na UFPE. Foi agraciado

com o título de Comendador da Ordem do Mérito Cultural, em

2001, pela Presidência da República. Percorreu todos os estados

brasileiros e outros países, como Bolívia, Cuba, França, Estados

Unidos.Maciel Salu e Barachinha

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Com a casa repleta de filhos, o mestre Salustiano sempre manteve

a liderança da família e conseguia envolver todos nos projetos

culturais que constantemente articulava no entorno da própria

residência, no bairro olindense de Cidade Tabajara, reunindo

a comunidade, os vizinhos, turistas e pesquisadores de cultura

popular. Inicialmente, era no espaço Ilumiara Zumbi que as

apresentações aconteciam. Depois, as festas foram transferidas

para a Casa da Rabeca do Brasil, espaço inaugurado pela família

para oficinas, danças, encontros de maracatu rural e de cavalo-

marinho, shows de música regional. No Natal, vários grupos de

cavalo-marinho se reúnem e brincam a noite toda. Tem também

pastoril, ciranda, o cavalo-marinho Boi Matuto, fundado pelo

mestre em 1968, e o Mamulengo Alegre, outro brinquedo da

família, cujos bonecos eram feitos por Salu mesmo. Dublê de

artista e artesão, esculpia no mulungu os bichos do bumba

meu boi, cavalo, boi, burra. Fazia em couro de boi e de bode as

máscaras do cavalo-marinho. No domingo de carnaval, chegam

ao terreiro da família troças, ursos, caboclinhos, boi, burra, além

do grande acontecimento da tarde: a trincheira do maracatu rural

Piaba de Ouro, que fundou em 1977, e hoje é estruturado com

mais de 300 componentes. Na segunda de carnaval, acontece o

encontro de todos os maracatus rurais de Pernambuco.

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Graças à sensibilidade artística e às invenções de homem

inteligente, Salustiano cultivava a memória da infância, povoada

de cavalo-marinho, maracatu, mamulengo, pastoril, ciranda,

forró de oito baixos, reisado, marujada, fandango, poesia

improvisada, ao mesmo tempo em que gerenciava os próprios

folguedos e temática casa de espetáculos. Depois de tentar a

vida como ambulante e empregado doméstico, foi funcionário

da prefeitura de Olinda e professor de arte popular. Por fim,

conseguiu certa dignidade financeira com o terreiro enorme para

apresentações, serviço de bar, salão para dança e uma loja, onde

são comercializados produtos de confecção própria, como rabeca,

alfaia, mineiro, bagem de taboca, pandeiro, mamulengo e os

discos. Foram quatro CDs gravados, movidos pelas sonoridades

de ciranda, maracatu, mamulengo, coco, forró, frevo: O sonho

da rabeca, As três gerações, Cavalo-marinho, Mestre Salu e a sua

rabeca encantada. Dos 15 filhos, dois fabricam rabeca: Wellington

e Cleiton Salu. O bailarino Pedro Salustiano montou o espetáculo

Samba no canavial. O músico, compositor, poeta improvisador

e MC Maciel Salu lançou o CD A pisada é assim, entre outras

importantes gravações, e é um dos integrantes da Orquestra

Contemporânea de Olinda.

Salustiano faleceu no Recife, em 31 de agosto de 2008.

Entretanto, confortável é saber que o legado se perpetua nas

produções culturais e criações artísticas dos filhos, legítimos

herdeiros e continuadores da obra do Mestre Salu.

Filhos Maciel, Cleiton e Manuelzinho.

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Mestre NucaMestre NucaLu

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uca é apelido de infância: Nuca de Tracunhaém ou Nuca dos

Leões. Tracunhaém – topônimo indígena, que quer dizer

panela de formiga – é a cidade de adoção do artista, desde os

três anos. Leão é o signo de Nuca, ou Manoel Borges da Silva,

que nasceu em 5 de agosto de 1937, no engenho Pedra Furada,

Nazaré, Mata Norte pernambucana, filho dos agricultores Francisco

Costa Mariano e Josefa Borges da Silva. O pai, da roça, criou-

se nos engenhos de cana-de-açúcar. Vivendo a infância num

ambiente de ceramistas descobre-se um admirador do ofício e,

desde os 10 anos, um continuador da tradição, modelando em

barro elementos do cotidiano. O ano em que foi morar na cidade é

o mesmo da estréia de Zé do Carmo na cerâmica. Quando estreou,

havia em Tracunhaém o povo de Lídia, fazendo santo. Antônia

Leão era referência da geração mais antiga, Maria Amélia já se

destacava pela santaria. Zezinho chegou depois, de Vitória. Nilson,

de Goiana. Nuca passou a conviver com diversos ceramistas em

feiras e salões de arte popular, entre eles, Ana das Carrancas e

alguns netos de Vitalino. Foi ao Rio de Janeiro participar de uma

exposição e lá conheceu o mestre Vitalino.

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Embora desde a década de 1940 já vendesse esculturinhas

de cerâmica nas feiras, principalmente na vizinha Carpina, é

sobretudo a partir de 1968, quando esculpe o primeiro leão,

que se reconhece artista, consagra-se com o efeito visual da juba

leonina e se entrosa com ceramistas renomados. O motivo da

consagração veio da ideia de esculpir leões e floristas. A mulher,

Maria Gomes da Silva, ou Maria de Nuca, inventou de botar os

cabelos cacheados, também no leão. A moda da juba encaracolada

se difundiu tanto, que artesãos aderiram à onda, substituindo pena

de galinha pelos cachos. Além destes, que consistem nuns rolinhos

de barro aplicados um a um, há o leão de listra, o escamado e o

de tranças. Finas ou grossas, as escamas também são colocadas

individualmente, em leões e girafas. Sobre a escolha da temática

dos leões, cogita-se que pode estar vinculada à memória recente

da estatuária de louça portuguesa decorativa dos sobrados ou,

ainda, à memória ancestral daquele que é considerado o rei

dos animais. Entretanto, não podemos deixar de lembrar que o

símbolo de Pernambuco é o leão, tampouco menosprezar a força

do imaginário de ascendentes negros africanos presente na Zona

da Mata, nem esquecer que a antiga denominação de Carpina era

Floresta dos Leões.

Se a família de Nuca era de agricultores, e não de louceiros, o

mesmo aconteceu com a família de Maria, que também era da

roça, não tinha ninguém no barro. Pode-se dizer que a obra de

Nuca é quase obra de dois artistas, originalidade a quatro mãos.

O leão e as bonecas foram criação dele e da mulher. O talento de

ambos para as esculturas cerâmicas desabrochou no convívio com

artistas e artesãos de Tracunhaém, terra das figuras em cerâmica

e das panelas de barro. Depois de brinquedos, bonecas e anjos,

os leões vieram para imortalizá-los. As esculturas são sempre ao

natural, nunca pintadas, exceto sob encomenda. O forno, feito

por ele próprio, fica no quintal de casa e testemunha o fato de

que é indispensável ter ciência para saber construí-lo e usá-lo.

E Nuca foi exímio nisso: na hora de queimar, sabia precisar a

caldeação, a fim de não rachar a escultura, nem cair o cabelo.

Outro importante segredo é o da aplicação dos detalhes: como

fazer para não ressecar, enquanto vai modelando e colocando

simetricamente um a um.

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Guilherme de Nuca, filho do Mestre que dá continuidade ao seu trabalho.

Após afastar-se do ofício, por problemas de saúde, dois dos

seis filhos dão continuidade às artes dos pais, Nuca e Maria: o

primogênito Marcos Borges da Silva, ou Marcos de Nuca, faz os

leões e José Guilherme Borges da Silva, o filho mais novo, faz

as bonecas. Apesar de não terem sido muitas as viagens – Lima,

Peru (1980), São Paulo, Rio, Brasília, Bahia –, Nuca dos Leões

criou os filhos com a arte saída das próprias mãos, festejou a

alegria de viver fazendo sempre o que gosta e também ofereceu

todas as condições necessárias ao aprendizado e exercício

artístico dos filhos seguidores. A obra do artista pode ser

apreciada em antiquários, galerias de arte, e enfeitando praças

do Recife, como a do 1º Jardim de Boa Viagem e a Tiradentes,

no Cais do Apolo.

Em 27 de fevereiro de 2014, o ceramista morre no Recife e é

sepultado, dia seguinte, na cidade onde viveu desde a primeira

infância e da qualganhou parte do nome artístico. As obras

variavam entre formatos de 30 centímetros a um metro,

entretanto, invariavelmente nas esculturas assinava “Nuca de

Tracunhaém”, desenhando um nome de artista que enche de

beleza o mundo.

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Marcos de Nunca, trabalhando no leão no mesmo estilo consagrado pelo pai.

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Fernando SpencerFernando Spencer

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ilho de Nicodemes Brasil Hartmann e Maria Serafina Spencer

Hartmann, o cineasta Fernando José Spencer Hartmann nasceu

no Recife, em 17 de janeiro de 1927. Aposentado como analista

em ciência e tecnologia da Fundação Joaquim Nabuco, o cineasta

coleciona prêmios e títulos que tem recebido ao longo de mais

de cinco décadas dedicadas à sétima arte. Recebeu o título de

Memória Viva do Recife, em 1997, quando completou 70 anos.

Aos 80, foi o homenageado do Cine PE, quando então apresentou

o novo filme Almery, a estrela. Tanto no Museu da Imagem e do

Som de Pernambuco (MISPE) quanto no Cinema Rosa e Silva,

há a Sala Fernando Spencer, franca homenagem ao incansável

cinéfilo/cineasta, cuja estreia se deu com um curta-metragem

experimental, a ficção A busca, em 1969.

Jornalista profissional, exerceu a crítica de cinema durante

quatro décadas no Diario de Pernambuco, exatamente de 1958

a 1998. Spencer também foi repórter do Jornal Pequeno, em

1951, e revisor do Jornal do Commercio em 1957. Foi produtor e

realizador do programa Falando de Cinema, entre os anos de 1963

e 1978, na TV Rádio Clube, Rede Tupi. Foi produtor, realizador e

apresentador de Filmelândia, programa veiculado na Rádio Clube

de Pernambuco e Rádio Tamandaré do Recife. No ano de 1985,

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coproduziu, com Ivan Soares, o projeto Coisas Nossas: Cinema

Pernambucano, em oito capítulos de 30 minutos. O cineasta e

pesquisador foi diretor da Cinemateca da Fundação Joaquim

Nabuco, membro do Centro Brasileiro de Pesquisadores do Cinema

Brasileiro, vice-presidente da Fundação Nordestina de Cinema,

sócio-fundador da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD),

fundador e primeiro presidente do grupo Cinema Super-8 de

Pernambuco.

Acumulando as funções de roteirista, diretor, jurado, palestrante,

debatedor, presidente de júri, professor, Fernando Spencer tem,

ainda, no currículo, diversos livros publicados, a exemplo de

Histórias do tio Joca, editado em 1990 pela Bagaço. Esse foi o

primeiro título que lançou no gênero literatura infantil. Sobre

cinema, escreveu o texto Ciclo do Recife: 60 anos, publicado pela

Massangana, em 1983. Ainda pela Massangana, lançou em 1985

o catálogo de filmes da Cinemateca da Fundaj. E, pela Bagaço,

produziu em 1989 a publicação 20 anos de cinema (1969 – 1989):

Filmografia. No Quase catálogo, organizado por Heloísa Buarque

de Holanda e publicado em 1991 no Rio de Janeiro, escreveu

verbetes sobre estrelas do cinema mudo de Pernambuco. Em

1995, publicou textos sobre os 100 anos de cinema. No mesmo

ano, publicou, em parceria com a bibliotecária Lúcia Gaspar, da

Fundaj, O Nordeste no cinema: uma contribuição bibliográfica,

para a revista Ciência & Trópico.

Em 1974, recebeu o prêmio de melhor Super-8 na III Jornada

Brasileira de Curta-Metragem, no estado da Bahia, com o filme

Valente é o galo. No mesmo ano, o cineasta fez a estreia no

gênero documentário com o filme Caboclinhos do Recife. Aliás,

Fernando Spencer, com carretéis e latas de filme 16mm.

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a temática dos folguedos tradicionais é recorrente na obra de

Spencer. Em 1999, realizou A arte de ser profano, vídeo sobre

os pastoris, e em 2004 volta ao tema, dessa vez com Os irmãos

Valença, em que o pastoril religioso é um tema incontornável.

No VI Festival Nacional de Cinema, realizado em Aracaju, pela

Universidade Federal de Sergipe, no ano de 1978, recebeu o

prêmio de Melhor Filme de Comunicação para As corocas se

divertem. Com o filme Estrelas de celulóide, recebeu um troféu

candango no Festival de Cinema de Brasília, em 1987. No III

Festival de Cinema dos Países de Língua Portuguesa, realizado na

cidade de Aveiro, Portugal, em 1988, Fernando Spencer ganhou,

em parceria com Flávio Rodrigues, o prêmio de melhor curta,

na categoria documentário, pelo trabalho Evocações de Nelson

Ferreira.

O percurso de Spencer ganha ainda mais sentido quando ele

recapitula o princípio desse amor antigo: cedo, apaixonou-se pelo

cinema, precisamente aos 12 anos, quando o pai lhe oferece um

projetor alemão para filmes de 35mm, o suficiente para inaugurar,

de forma decisiva e em grande estilo, a trajetória deste cineasta

das três bitolas. Assim conhecido no meio cinematográfico pela

produção tanto em Super-8 quanto em 16 e 35mm, a criatividade

e o amor às tradições pernambucanas selam a produção de

Fernando Spencer, com os documentários acima mencionados

e, ainda, Frei Damião: Um santo no Nordeste? (1977), Santa do

Maracatu (1981), Trajetória do frevo no Recife (1987). Sobre

literatura de cordel, realiza o documentário O folheto (1971),

na bitola 16mm, em parceria com Liêdo Maranhão, João José e

Esman Dias.

Na produção mais recente, de 2009, está o curta Nossos ursos

camaradas, em que o cineasta compõe uma abordagem

antropológica de fogosos ursos e La ursas na cultura pernambucana,

a partir de pesquisa encomendada ao amigo folclorista Mário Souto

Maior. Com esse filme, Spencer estreia em nova bitola, a digital, e é

promovido a cineasta das quatro bitolas! Maria Bonita e Lampião

seriam personagens de novos projetos, interrompidos com a morte

do artista, a 17 de março de 2014, no Recife. A família planeja abrir

uma fundação como justa homenagem à memória desse cineasta

que assina uma obra autoral, prolífica, incansável.

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Arlindo dos 8 BaixosArlindo dos 8 Baixos

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ito baixos: para Arlindo, um sobrenome e infinitas

possibilidades de voar. Fole de oito baixos, acordeon de botão,

pé-de-bode, concertina: para o instrumento, muitos são os

apelidos, mas o designativo nem importa tanto quanto saber o

valor histórico e artístico, a fim de melhor compreender e apreciar

o exímio Arlindo Ramos Pereira, que, pelas astúcias do "acaso",

conheceu Luiz Gonzaga, justo o filho de grande tocador de

concertina e inspirador da canção Respeita Januário (1952),

expresso manifesto de Gonzagão ao legado musical do Nordeste

do Brasil que visceralmente se vincula à prática dos oito baixos. A

escolha proposta pelo rei do baião mostrou-se vital, decisiva:

sanfona, sim, mas não mais aquela em voga, o acordeon de 120

baixos. Escolher, portanto, agarrar-se à sanfoninha pé-de-bode

prenuncia, nos primórdios da talentosa carreira, o que o Mestre

Arlindo conseguiria galgar rumo à consagração. Ouvido

sofisticado, hábil manejador das 42 notas da concertina, assim

rapidamente ganha nome e imortaliza-se, abraçado àquele

instrumento, alicerce de um dos complexos ramos da tradicional

musicalidade popular nordestina.

Foi o próprio pai de Arlindo quem o iniciou no mundo da música.

Chamava-se José Ramos Pereira, sanfoneiro e carpinteiro

especializado em cangas e rodas de carroça. Contudo, o encontro

emblemático com o rei do baião foi quem desencadeou os

contatos e trocas artísticas, agilizou a fama. Era 1969 quando o

sanfoneiro de Coruja e seus Tangarás atraiu o ouvido de Gonzaga

que, imediatamente, sugeriu a dedicação de Arlindo ao instrumento

quase fora de moda e ainda o convidou a viajar, para acompanhá-lo

tocando oito baixos e cuidando da afinação e conserto dos

instrumentos. Fora de cogitação imaginar que tudo se arranjaria fácil

assim, como num passe de mágica, pelas artes do famoso Luiz, a

quem o genial Arlindo acompanharia por mais de duas décadas. A

música chegou bem antes disso, ainda na infância, provocando o

florescimento e o exercício de habilidades que, num futuro

próximo, o consagrariam para sempre: começou pelos dez anos,

aos treze estava tocando, aos quinze já ganhava dinheiro.

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Arlindo dos 8 Baixos e Mestre Camarão em apresentação conjunta na VI Semana do Patrimônio Cultural de Pernambuco em 2013.

Longe de qualquer glamour, o ambiente de meninice, cercado de

cana-de-açúcar, era duro lavor. Nascido na área rural, a 16 de abril

de 1942, no Engenho Rubi, pertencente à Usina Trapiche,

município de Sirinhaém, Zona da Mata Sul de Pernambuco, o

mestre logo cedo se viu enredado nas árduas tarefas de canavieiro:

limpou mato, cortou cana, cambitou no engenho. Quando se

transferiu para a vida urbana – primeiro em Ponte dos Carvalhos,

no Cabo; depois em Água Fria, no Recife – Arlindo se dedicou às

artes da barbearia, antes mesmo de escolher, definitivamente,

morar no mundo musical e transitar, à vontade, nos rumos

traçados pelo virtuosismo de instrumentista, restaurador, afinador,

professor. A estreia em long play se dá em Pernambuco. O Mestre

do Beberibe, designativo do artista que dá título ao primeiro disco

gravado pela RCA (mas não o inaugural), consegue registrar em LP

o primeiríssimo dos seus trabalhos pela recifense Rozenblit. O disco

gravado pela RCA foi feito em 1981, época em que Luiz Gonzaga

dirigia o departamento de música nordestina da gravadora, e

contou com a participação de Dominguinhos na produção e

direção artística. O zabumbeiro era o reverenciado Quartinha, ou

Reginaldo Pereira de Melo. O título do disco e o nome artístico

adotado a partir de então foram sugeridos por Gonzaga e

imediatamente acatados pelo autor da obra. Antes disso, durante

os anos 1970, o sanfoneiro era conhecido pelo nome artístico de

Arlindo do Acordeon.

Daí por diante, rapidamente conquistou a fama de grande solista

de oito baixos, a fama de expert em restauro e afinação de

sanfona, para além da cumplicidade e trocas musicais

estabelecidas durante os 22 anos com Gonzaga. O músico firmou

importantes parcerias com Sivuca, Hermeto Pascoal,

Dominguinhos, Marinês, Elba Ramalho, Camarão, Quinteto

Violado, Genaro, Alcymar Monteiro, Flávio José, Novinho da

Paraíba, Nando Cordel, entre outros. Tocou, e foi aclamado, em

concorridos festejos juninos, como o de Caruaru, e o do Pátio de

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São Pedro e Sítio da Trindade, no Recife. Nos anos 1980 ensaiou

umas domingueiras de forró no quintal da própria casa, no bairro

de Dois Unidos, Olinda, que vieram a se firmar como atração

festiva semanal a partir de setembro de 1999, com o nome de

Forró do Arlindo. Misto de residência, casa de shows, oficina,

escola, assim era caracterizado o ambiente em que Arlindo

escolheu viver até os últimos momentos, e por onde passaram

exímios tocadores, ouvintes, dançarinos, atraídos por sedutor ritmo

nordestino e, ainda, outros gêneros musicais igualmente

executados com maestria pelo dono do terreiro.

Quase duas dezenas de discos foram lançadas, entre os quais

Merengue dela; Arlindo e Amigos dos 8 Baixos; Forró pra 500

anos; Dançando na Chuva; Choro, Forró e Frevo; Mistura

Harmônica; Oito Baixos no Frevo. O mais recente, No Forró do

Arlindo, saiu também em DVD e livro, com registros da carreira do

antigo barbeiro e ex-trabalhador rural. Já pelos títulos percebe-se a

variedade de ritmos deliciosamente interpretados com o

instrumento que, no Nordeste, ganhou afinação diversa da

afinação diatônica adotada em outras regiões do país: a afinação

"chorada" ou "transportada", que amplia as possibilidades de

modulação musical. Presenteando-nos, em meio ao consistente

legado musical, com os renomados filhos músicos, o percussionista

Raminho e o baixista Adilson, e a promissora neta Daiane nos oito

baixos, o Mestre Arlindo não resistiu às múltiplas complicações

acarretadas pelo diabetes, falecendo no dia 23 de outubro de

2013, aos 71 anos. Talvez, pela gradativa cegueira que acometeu

o mestre, a sensibilidade auditiva do artista tenha desenvolvido

ainda maior rigor, ainda mais apuro, premiando-nos, assim, com

o virtuosismo e a sofisticação de um instrumento possuído por

dedos velozes e ouvidos absolutamente sensíveis.

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ua dos Amores, Várzea da Alegria. Aí morou João Leocádio da

Silva, endereço assim pleno de poesia, como que

harmonizando a verve do artista talentoso que já na infância

dedilhava violão e tocava pandeiro, acompanhando um tio

paterno, o cavaquinista Aprígio, e um primo, Luiz Grande, tocador

de oito baixos. "Danado de bom" era este compositor, que, a

partir da década 1960, se transformaria em um dos principais

parceiros de Luiz Gonzaga, tornando-se o autor que mais

conseguiu gravar com o Rei do Baião. Entretanto, é bom que se

diga: o legado artístico de João Silva não se restringe à aclamada

parceria. Autor, intérprete, produtor musical, pesquisador de

música popular nordestina, João nos deixou cerca de duas mil

composições construídas durante quase oito décadas buliçosa e

intensamente vividas em terras pernambucanas e outros estados

do Brasil. Nascido a 16 de agosto de 1935, nascido e criado num

ambiente de tradicionais rodas de coco das Caraíbas, na Serra das

Varas, Arcoverde, Pernambuco, João Silva migrou em 1953 para o

Recife e, em 1958, época de ouro do rádio, se muda para a então

Capital Federal, o Rio de Janeiro, onde começou apresentando-se

em programas de rádio e TV. O difícil caminho de auto-afirmação

e reconhecimento artístico que aí tomava corpo não caiu no vazio.

A sintonia que estabeleceu com Luiz Gonzaga é um dos pilares

desta construção. João atraiu para si os olhares do famoso

sanfoneiro por causa da amizade com um casal, cuja principal

contribuição se concentrou no desenvolvimento artístico do

iniciante: Abdias dos oito baixos e a mulher, a cantora Marinês.

Esta, ao gravar composições suas, das quais Milho Verde

repercutiu bastante, catalisou para Silva as atenções de Gonzaga,

iniciando-se a grande afinidade de 25 anos, inaugurada em 1964 e

mantida até o fim da vida de Luiz, em 1989. A música Não foi

surpresa, que Silva fez com João do Vale, foi o primeiro trabalho a

aparecer em disco de Luiz Gonzaga: o baião está em Sanfona do

povo, de 1964. No ano seguinte, 1965, nova gravação. Desta vez

Rober

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a escolhida é a marcha junina Piriri, de João Silva e Albuquerque.

Finalmente em 1967, no disco Óia eu aqui de novo, Luiz Gonzaga

grava a primeiríssima obra dele com João Silva, Garota Todeschini,

além de também gravar a faixa Crepúsculo sertanejo, de Silva com

Rangel. Esta última foi, aliás, a que primeiro exibiu ao público

carioca, quando, logo que se estabeleceu no Rio, esteve no

programa Domingueira, apresentado por Arnaldo Amaral, na

Rádio Mayrink Veiga. No LP de 1968, São João do Araripe,

Gonzaga grava mais canções de ambos: Madruceu o milho, Lenha

verde e Meu Araripe, esta última conquistando grande sucesso.

Em meio às tantas composições criadas por Gonzaga e Silva, como

Pagode Russo, Vou te matar de cheiro, Sanfoninha choradeira,

Sangue nordestino, Nem se despediu de mim, importante

compreender que João Silva provocou uma guinada decisiva

quanto à retomada do nome de Gonzaga na boca do povo e nas

paradas de sucessos. Com o humor, a alegria, a galhofa das letras

de música de João, o tom lírico e saudoso se deslocou para o

satírico, reavivando a presença do Rei do Baião na vida de

nordestinos, migrantes ou não. O disco Danado de bom (1984),

por exemplo, com seis canções e produção de Silva, vendeu 1,6

milhão de cópias. Em 1989, mesmo ano em que morreu,

Gonzagão grava dois LPs instrumentais, nos quais mantém as

trocas com João Silva, resultando na co-autoria de mais de vinte

músicas. E é ainda em 1989 que Gonzaga grava o último disco,

cujo título – Vou te matar de cheiro – foi tomado de empréstimo

de uma das letras com João Silva, cuja participação, neste

derradeiro trabalho de Luiz Gonzaga, aparece em mais outras

faixas: Uma pra mim, uma pra tu; Vê se ligas para mim; Arcoverde

meu; Já era tempo. A troca criativa serviu de mote, inclusive, para

a escrita e titulação da biografia de João Silva Pra não morrer de

tristeza: o maior parceiro de Luiz Gonzaga, de autoria do poeta

José Maria Almeida Marques e publicada em 2008 pela editora

Bagaço. O título da obra – que alude, na verdade, a uma

composição de Silva com o renomado sambista Wilson das Neves,

o K-Boclinho – sobretudo reverencia a fértil trajetória de João, sem

negligenciar a cumplicidade pela qual resultaram, segundo o

biógrafo Marques, 107 músicas de João (com Luiz e com outros

autores) gravadas na voz do Gonzaga.

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Para além de exuberante troca artística, foram estabelecidas

parcerias, múltiplas, de João Silva com Dominguinhos, Onildo

Almeida, João do Vale, Rosil Cavalcanti, Severino Ramos, Bastinho

Calixto, Pedro Maranguape, Anatalício, Ney Matogrosso, Gilberto

Gil, Ivete Sangalo, entre outros artistas e grupos, incansáveis

intérpretes das canções de sucesso deste inventivo João, canções

consagradas pelo lirismo e alegria executados em diversos gêneros

musicais – samba, merengue, bolero, baião, guarânia, marcha

junina, lamento, carimbó. A primeira gravação autoral, conforme

registra o biógrafo Zé Maria, se deu num disco de 78 rotações, o

arrasta-pé Ó Lia. Entre os discos gravados, há o LP de 1976,

Carimbó e Cia. - João Silva e seus convidados, selo Olimpic, da

Crazy; em 1980, entra com participação especial no LP Forró com

malícia, de Chiquinha Gonzaga, e reedita o LP João Silva, que

havia gravado em 1971. Outro LP, de 1987, Trinta anos de forró:

João Silva e convidados, tem participação de Luiz Gonzaga, Maria

Alcina, Trio Nordestino. Em 1991, no CD O rei e eu, grava quinze

músicas. Ano seguinte, 1992, grava em Fortaleza o CD Inéditas de

João Silva e Luiz Gonzaga. Em 1995, grava o CD João Silva no

forró pé-de-serra e, em 2010, lança o CD João Silva sertão puro,

em que todas as faixas são de própria autoria e a maioria, inéditas.

Poucos anos depois, no dia 6 de dezembro de 2013, morre em

casa, no Recife, aos 78 anos, alegremente imortalizado nas

ondas sonoras de tantas canções, de tantas palavras plenas de

lirismo e encantamento.

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