Patrimônio Histórico Cultural_aspectos Histórico-conceituais

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BRANCO, Patrícia Martins Castelo. MAGALHÃES, Leandro Henrique; ZANON, Elisa Roberta. Patrimônio Histórico Cultural: Aspectos Conceituais. In.: EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: Da Teoria à Prática. Londrina: UniFil, 2009. PATRIMÔNIO HISTÓRICO CULTURAL: ASPECTOS CONCEITUAIS Apesar da discussão central deste livro ser a Educação Patrimonial, faz-se necessário tratar de aspectos que constituem o conceito de Patrimônio Histórico e Cultural. Devido à diversidade de possibilidades, e da necessidade de escolha daí decorrente, optou-se: pelo aspecto histórico do conceito; pela transformação jurídica que este conceito vem vivendo e; pelo vínculo que o patrimônio histórico e cultural possui com o conceito de memória. Aspectos Históricos Segundo Marilena Chauí (2000, p. 1619), o conceito de patrimônio está vinculado ao nascimento do conceito de Estado-Nação, aliado às ideias de soberania política, unidade territorial e legal, com a nação passando a indicar o conjunto de indivíduos nascidos em um mesmo lugar. A princípio, a noção de patrimônio esteve vinculada aos bens materiais familiares, voltados para o consumo, adequada à lógica absolutista, quando o conceito de pátria se vinculava à de monarquia. Neste sentido, o termo pater significa o senhor, chefe ou proprietário, o dono do patrimônio e com poder patriarcal. A partir do século XVIII, patrimônio passou a ser entendido como elementos protegidos e nomeados como bens culturais de uma nação, visando criar uma referência comum, uma identidade nacional. Esta noção de patrimônio está vinculada às classes proprietárias que, além da centralização dos meios de produção e da expropriação do resultado do trabalho, possuíam a propriedade cultural, que deveria ser preservada (RODRIGUES, 2001). O patrimônio adquire assim uma lógica includente, atuando na resolução do grande problema na formação do Estado no século XVIII, ou seja, a inclusão de todos na esfera

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Patrimônio Histórico Cultura: aspectos Histórico-conceituais

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  • BRANCO, Patrcia Martins Castelo. MAGALHES, Leandro

    Henrique; ZANON, Elisa Roberta. Patrimnio

    Histrico Cultural: Aspectos Conceituais. In.:

    EDUCAO PATRIMONIAL: Da Teoria Prtica.

    Londrina: UniFil, 2009.

    PATRIMNIO HISTRICO CULTURAL: ASPECTOS CONCEITUAIS

    Apesar da discusso central deste livro ser a Educao Patrimonial, faz-se necessrio

    tratar de aspectos que constituem o conceito de Patrimnio Histrico e Cultural. Devido

    diversidade de possibilidades, e da necessidade de escolha da decorrente, optou-se:

    pelo aspecto histrico do conceito; pela transformao jurdica que este conceito vem

    vivendo e; pelo vnculo que o patrimnio histrico e cultural possui com o conceito de

    memria.

    Aspectos Histricos

    Segundo Marilena Chau (2000, p. 1619), o conceito de patrimnio est vinculado ao

    nascimento do conceito de Estado-Nao, aliado s ideias de soberania poltica, unidade

    territorial e legal, com a nao passando a indicar o conjunto de indivduos nascidos em

    um mesmo lugar.

    A princpio, a noo de patrimnio esteve vinculada aos bens materiais familiares,

    voltados para o consumo, adequada lgica absolutista, quando o conceito de ptria se

    vinculava de monarquia. Neste sentido, o termo pater significa o senhor, chefe ou

    proprietrio, o dono do patrimnio e com poder patriarcal. A partir do sculo XVIII,

    patrimnio passou a ser entendido como elementos protegidos e nomeados como bens

    culturais de uma nao, visando criar uma referncia comum, uma identidade nacional.

    Esta noo de patrimnio est vinculada s classes proprietrias que, alm da

    centralizao dos meios de produo e da expropriao do resultado do trabalho,

    possuam a propriedade cultural, que deveria ser preservada (RODRIGUES, 2001). O

    patrimnio adquire assim uma lgica includente, atuando na resoluo do grande

    problema na formao do Estado no sculo XVIII, ou seja, a incluso de todos na esfera

  • da administrao estatal, garantindo a lealdade dos cidados ao sistema, colocando-se

    acima dos conflitos de classes e dos sociais.

    Com a constituio de elementos ideolgicos como a histria e o patrimnio, a nao

    passa a ser vista como algo que sempre existiu, desde tempos imemoriais, identificada

    pela sua ancestralidade e pelas razes da nacionalidade. A Revoluo Francesa deve ser

    entendida como um marco neste processo, pela ruptura com o que era considerado

    passado nacional e pela promoo de novos modos de existncia deste passado. No era

    o caso de destruir todos os seus testemunhos, mas de criar espaos de reinterpretao e

    preservao a partir de uma triagem: os museus. Neste espao seria resguardado aquilo

    que pudesse servir de ornamento, trofu e apoio liberdade e legalidade, valores que

    precederiam revoluo. Da a possibilidade de tratar de grandes feitos e homens que,

    mesmo em sistemas maus, tinham princpios bons, sendo possvel a identificao de um

    caminho em direo civilizao.

    Estes elementos definem os critrios de preservao daquilo que deveria ser lembrado e

    entendido como patrimnio, motivando a realizao, na Frana, de um inventrio

    nacional do patrimnio, em 1837 (RBRIOUX, 1992, p. 47-48). O patrimnio e o

    museu adquirem papel de constituio e legitimao de uma identidade burguesa, como

    no caso do Museu do Louvre, de 1793, do Arco do Triunfo, de 1836 e do Museu d Orsay,

    de 1900, marcos do processo de Revoluo Francesa. Estes elementos levaram

    constituio de uma memria homognea, de um discurso histrico sem conflitos ou

    resistncias, favorecendo a construo de identidades e a legitimao das relaes de

    poder a partir da unicidade da memria, que se apresenta sem opositores ou alternativas.

    Ter controle sobre o patrimnio ter controle sobre a lembrana e sobre os processos de

    ocultamento, tornando-se elemento estratgico na constituio de uma memria histrica

    do Estado (SILVA, 1995). A ideia de patrimnio aproxima-se, assim, com a de

    monumento, entendido como o ato de memorizar, dando sentido ao que se quer lembrar,

    estando quase sempre vinculado a interesses nacionais ou comunitrios. Geralmente o

    monumento marca momentos fundadores, possibilitando a construo, ou a destruio,

    de identidades (DE DECCA, 1992, p. 129). A memria francesa se d, assim, a partir da

    construo de uma memria nacional, de uma variedade de elementos produzidos desde

    o processo revolucionrio at sua consolidao, no sculo XIX (DE DECCA, 1992, p.

    129).

  • H o interesse na construo de um ideal de cidadania a partir desta memria e de seus

    momentos fundadores, partindo de elementos como a bandeira, o calendrio, o hino, datas

    comemorativas e monumentos como o Panthon e o Monumento aos Mortos, alm de

    uma pedagogia escolar e no escolar, marcada especialmente pelo grand dictionaire

    latousse. a constituio de uma modernidade, de um presente que rompe com a tradio

    e com o passado:

    Enfim, os suportes da memria coletiva, que sempre foram elementos

    principais da criao do sentimento de continuidade e de preservao das

    sociedades pr-industriais, foram paulatinamente destrudos e hoje o cidado

    se sente cada vez mais mutilado em seus sentimentos coletivos com relao

    ao passado (DE DECCA, 1992, p. 130).

    possvel encontrar elementos semelhantes aos aqui apresentados quando tratamos do

    Patrimnio Histrico Nacional Brasileiro, tendo em vista que sua constituio esteve

    marcada pelo ideal europeu de civilizao. Podemos dividir, de maneira esquemtica, esta

    identificao em trs momentos: a vinda da Famlia Real, processo conhecido como

    interiorizao da metrpole (DIAS, 2005), que tem como marcos, dentre outros, o Jardim

    Botnico e a Biblioteca Nacional; a Independncia do Brasil, podendo ser identificados

    como monumentos o Museu Nacional (Quinta da Boa Vista), o Museu Imperial

    (Petrpolis) e o Museu do Ipiranga; e a Proclamao da Repblica, podendo ser

    representado pelo Museu da Repblica (Catete). So criaes de lugares de memrias,

    que ganham espao com a chegada da corte lusitana, em 1808 e, a partir da independncia,

    assumem papel de instrumentos de constituio de uma identidade nacional, o que pode

    ser exemplificado pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro IHGB e pelo Arquivo

    Nacional, que tinham por objetivo compor uma Histria do Brasil que possibilitasse a

    formao de uma nao branca e europeia, tendo no Estado seu elemento constituinte

    (ODLIA, 1974, p. 15). Nas palavras de Lucia Maria Paschoal Guimares: Significou

    dotar o pas, carente de unidade e recm-sado da condio de colnia, de um passado

    comum (1998, p. 474).

    Partindo destas reflexes, o monumento, e assim o patrimnio, passam a ser possuidores

    de uma funo primordial, ou seja, dar sentido e ordem memria, como delimitadores

    de momentos fundadores, invariavelmente vinculados a interesses e composio de

    identidades (SILVA, 1995, p. 50). So marcas daquilo que se convencionou lembrar,

  • preservar, e assim, ocultar. Os momentos fundadores, denominados por Marilena Chau

    de mitos fundadores (CHAU, 2000 p. 09) esto vinculados com a origem, com um

    passado que no cessa e que sempre presente, buscando e encontrando novos meios de

    expresso, novas linguagens, valores, ideias, levando repetio do mesmo, em um

    processo de atualizao e sobreposio na construo de identidades.

    No Brasil, a preocupao com o patrimnio histrico iniciou-se efetivamente no sculo

    XX, quando o pas passou por uma crise de identidade, marcada pelo processo de

    urbanizao no sudeste brasileiro e pela ascenso das elites industriais (RODRIGUES,

    2001).

    As diferenas entre o serto e as cidades podem ser demonstradas por movimentos como

    Canudos, o coronelismo e o cangao. Esta oposio est expressa tambm, segundo Jos

    Carlos Reis (1999), na historiografia brasileira, que teria em Gilberto Freire um defensor

    das elites agrrias tradicionais e em Srgio Buarque de Holanda um autor que exalta a

    sociedade urbana, consolidada em meados do sculo XX.

    Outros elementos so a proliferao de escolas para imigrantes, a disputa de poderes entre

    o governo federal e as oligarquias regionais, que culminou na chamada Revoluo de 30,

    e o modernismo de 1922, que buscou conhecer, compreender e recriar o Brasil. Este

    debate ganhou destaque em dois momentos especficos da repblica brasileira: no Perodo

    Vargas, em especial no Estado Novo, e no chamado Perodo Militar Brasileiro. No

    primeiro momento, a cidade de Ouro Preto recebe status de patrimnio nacional sendo

    criado, em 1937, o Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional SPHAN, que

    entendia como patrimnio o conjunto de bens mveis e imveis (...) cuja conservao

    seja de interesse pblico, quer por sua vinculao a fatos memorveis da histria do

    Brasil, quer por seu excepcional valor arqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou

    artstico (RODRIGUES, 2001, p. 20).

    Este foi o momento que marcou a construo de uma identidade nacional, em um

    movimento que, segundo Marilena Chau, inicia-se com o fim da Primeira Guerra

    Mundial (1914-1918) e se manteve at a dcada de sessenta, perodo este vinculado

    politicamente ao populismo e ao nacional desenvolvimentismo (CHAU, 2000). Alm

    disso, h a afirmao da nao em detrimento de um possvel federalismo, favorecendo o

    culto aos smbolos nacionais, dentre eles o patrimnio, alm da tentativa de vincular a

  • cultura de massa a este ideal de nao. neste perodo que as escolas de samba passam a

    ser obrigadas a definirem temas nacionais para seus desfiles e que ganha espao um dos

    intrpretes mais importantes da msica popular brasileira, Ary Barroso, que se dedica a

    cantar as belezas da nao.

    H ainda a busca de valorizao do povo brasileiro, marcado por uma unidade nacional

    demonstrada pela histria e, em especial, pelo patrimnio. A insero da noo de povo

    seria fundamental neste momento, servindo como estratgia de insero e controle dos

    trabalhadores, incorporando a questo de classe como questo nacional e neutralizando

    assim sua base poltica (CHAU, 2000, p.32).

    O Estado Novo pode ser entendido ainda como um marco da modernidade brasileira que,

    assim como ocorrera na Europa no sculo XVIII, visava reatualizar os elementos

    tradicionais para legitimar a repblica, tendo como principal ator o Estado no papel de

    produtor e definidor de memrias (CHAU, 1992), com as elites brasileiras buscando

    dotar o Brasil de condies de entrar nos trilhos do progresso e da modernidade, tida

    como nica possibilidade histrica (CUNHA, 1992, p. 09). Com isto, tem-se a

    cristalizao de uma memria que reside em poucos lugares e que pertence tambm a

    poucos. O Estado Novo voltou seu olhar para o patrimnio com uma preocupao central,

    a modernidade, elemento fundamental na construo de uma identidade burguesa. Da

    sua poltica de preservao patrimonial estar vinculada afirmao do triunfo do novo e

    de uma Histria do Estado que se transforma em Histria de todos.

    Neste sentido, a criao do SPHAN, em 1937, tornou-se um marco, cujas intenes eram

    abrasileirar os brasileiros, reforando os vnculos com o modernismo, e, com Mrio de

    Andrade, adequando-os aos objetivos do Estado Novo de definio de uma identidade

    nacional a partir da identificao, defesa, restaurao e conservao de monumentos e

    obras de arte que valorizassem a cultura nacional. Com esse objetivo, so eleitos como

    elementos dignos de preservao as sedes do poder poltico, religioso, militar e das classes

    dominantes, assim como seus feitos e modos de vida que, at os dias de hoje, mantm-se

    como patrimnio oficial da nao, apesar da maior parte da populao no se reconhecer

    nesses smbolos.

    Esta perspectiva, que foca a unidade e a identidade nacional, foi fator de marginalizao

    das contradies reais e tira da memria o significado da luta social por ela, e assim, pelo

  • patrimnio (FENELON, 1992, p. 29-30). As cidades histricas mineiras foram escolhidas

    pelo Estado Novo como lugares de memria e de histria, como espaos emblemticos

    de heris e da memria nacional coletiva, passando a receber cuidados especiais no que

    diz respeito preservao, numa necessidade de tornar visvel uma identidade cultural do

    pas (ALBANO, 2002, p. 273-274).

    Como era necessrio garantir a nacionalidade por meio de uma continuidade histrica

    com o perodo colonial, estes espaos foram escolhidos como lugares de memria, tendo

    em vista a representatividade da regio na poltica nacional do sculo XX, alm de ser

    considerado um dos primeiros focos de rebelio republicana contra a monarquia,

    elementos levados em considerao j no momento de construo de um ideal legitimador

    na proclamao da repblica, que passa a ter em Tiradentes seu principal heri. Estes

    elementos ajudam a explicar o motivo pelo qual as cidades mineiras foram identificadas

    como Patrimnio Nacional, e no cidades como Antonina, no Estado do Paran, ou So

    Francisco do Sul, em Santo Catarina, locais que possuem um rico patrimnio

    arquitetnico, oriundos do perodo colonial brasileiro, mas que se localizam em regies

    perifricas tanto quando nos referimos a dcada de 30, como quando pensamos na

    dinmica colonial. Ou seja, Minas Gerais passa a ser entendido como lugar representativo

    de uma memria nacional, de uma identidade marcada pela riqueza e pela continuidade

    colonial com vis republicano, alm do fato da regio sudeste ser importante, naquele

    momento, para a constituio da identidade nacional, apesar do vnculo de Getlio Vargas

    com o estado do Rio Grande do Sul.

    Ao tratar da temtica Patrimnio Histrico Nacional, deve-se entender as cidades como

    monumentos e, ao mesmo tempo, como um tecido vivo. Caso contrrio, corre-se o risco

    de congelar-se estes espaos, tirar deles suas manifestaes espontneas, como se quando

    apagssemos as luzes, a cidade desaparecesse (ALBANO, 2002, p. 276). Alm disso, no

    se deve ignorar o fato de que o que foi preservado foram os elementos importantes para

    a constituio de um ideal de nao, prprio da dcada de trinta e, desta forma, lugares

    de afirmao de uma identidade burguesa. Assim: Preservam-se as igrejas barrocas, os

    fortes militares, as casas-grandes e os sobrados coloniais. Esqueceram-se, no entanto, das

    senzalas, dos quilombos, as vilas operrias e os cortios (ORI, 1997, p. 131).

    O segundo momento a ser destacado o que se convencionou denominar de Perodo

    Militar, inaugurado em 1964, quando houve uma interveno crescente na cultura e

  • educao. H, aqui, uma aproximao efetiva das noes de patrimnio e turismo,

    marcado pela participao do Brasil, em 1967, de um encontro no Equador, em que se

    definiu a importncia do patrimnio na valorizao do desenvolvimento nacional e, no

    ano seguinte, com a criao do Conselho de Defesa do Patrimnio, sendo este entendido

    como mercadoria, vinculando-se definitivamente com o Turismo, em especial aps a

    criao da Embratur, que ganha fora como elemento de manipulao simblica em

    relao memria e ao patrimnio.

    Nos dois casos, predominava uma perspectiva autoritria, tendo como papel legitimar um

    status, visando manuteno de um determinado grupo no poder. Apesar do esforo

    varguista em dotar o Brasil de uma identidade nacional, esta ainda estava em construo

    na dcada de setenta, em especial, segundo Marilena Chau (CHAU, 2000, p. 27-28),

    ausncia de uma burguesia nacional completamente constituda de uma classe operria

    autnoma e organizada e a existncia de uma classe mdia que oscila entre interesses

    burgueses e proletrios.

    A consequncia foi a incapacidade das classes sociais de constiturem ideologias, o que

    acarreta um vazio poltico que suprido pelo Estado, entendido como nico agente

    poltico e histrico. Constri-se a imagem de um Brasil grande, de natureza exuberante e

    povo ordeiro, pronto a receber recursos, visando integrao nacional, a segurana e o

    desenvolvimento, ou seja, a modernidade (CHAU, 2000, p. 32). neste momento que

    se intensificam os debates em torno de polticas pblicas em relao memria e ao

    patrimnio, acirrando-se medida que o Brasil caminha para um processo de

    redemocratizao, quando se coloca em jogo nossa memria e nossa identidade

    (PEREIRA, 2002, p.122).

    Patrimnio e modernidade so elementos que devem ser pensados em conjunto, a partir

    de uma poltica de Estado e de elementos ideolgicos que levam a uma crescente

    individualizao, rompendo com os elos de memria autnoma ou tida como tradicional

    (DE DECCA, 1992, p. 131), resultando numa perda de referncia e dos vnculos com o

    passado, numa crescente destruio dos suportes de memria, sejam eles materiais ou

    imateriais. A modernidade adquire aqui um duplo significado: vnculo com a sociedade

    burguesa e, ao mesmo tempo, com o novo e a superao do passado, da tradio,

    desarticulando experincias, memrias e, assim, grupos sociais (PAOLI, 1992, p. 25).

  • Aspectos de Legislao

    Como visto, foi a partir dos sculos XIX e XX que ocorreu uma consagrao institucional

    do monumento histrico, e assim, a necessidade de legislar sobre o tema. O conjunto

    desta legislao conhecido como Cartas Patrimoniais, e sero brevemente aqui

    apresentadas. A Frana foi a primeira a criar oficialmente, nos moldes modernos, em

    1837, uma Comisso de Monumento Histrico, que classificava monumentos da

    Antigidade, Igrejas e Castelos da Idade Mdia. Tambm da Frana a primeira lei sobre

    Monumento Histrico criada em 1913, concentrada nos conjuntos arquitetnicos de vista

    histrica. Ou seja, a legislao acompanha a necessidade de formao de uma memria

    do Estado, e assim, de uma identidade nacional. No que se refere preservao do

    patrimnio, acaba-se por optar pela conservao dos elementos que representassem a

    grandeza histrica edificado, como o caso da Igreja de Notre Dame, de estilo gtico

    medieval, que teve construo iniciada em 1163.

    Portanto, foi nos sculos XIX e XX que a preocupao de preservar o passado se

    estendeu para o Estado, que passou a estimular a produo de leis de conservao e

    restaurao, transformando-se em uma problemtica mundial. A princpio a legislao

    patrimonial se concentrou no Patrimnio Arquitetnico, para somente em meados da

    dcada de 1970 alcanar o Patrimnio Cultural, ampliando as caractersticas daquilo que

    deveria ser considerado fundamental para a formao da identidade de um povo e que

    deveria, assim, ser preservado. Considera-se assim intangvel como patrimnio,

    caminhando para o que chamamos hoje de Patrimnio Cultural Imaterial. No Brasil, a

    categoria de bem imaterial tem validade apenas aps a Constituio de 1988, garantida

    no ano de 2000 com a criao do Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial do

    IPHAN. O primeiro registro foi o das paneleiras de goiabeira do Esprito Santo, em 2002,

    apesar do esforo de alguns para que fosse escolhido o ritual fnebre Quarup, das tribos

    do Alto Xing do Mato Grosso (CRTES, 2007, p. 27).

    Segundo o IPHAN (2008):

    A Unesco define como Patrimnio Cultural Imaterial as prticas,

    representaes, expresses, conhecimentos e tcnicas e tambm os

    instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes so associados e as

    comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivduos que se reconhecem

  • como parte integrante de seu patrimnio cultural. O Patrimnio Imaterial

    transmitido de gerao em gerao e constantemente recriado pelas

    comunidades e grupos em funo de seu ambiente, de sua interao com a

    natureza e de sua histria, gerando um sentimento de identidade e

    continuidade, contribuindo assim para promover o respeito diversidade

    cultural e criatividade humana.

    O Patrimnio Imaterial est agrupado, no IPHAN, em:

    Livro de Registro dos Saberes: conhecimentos e modos de fazer enraizados no

    cotidiano das comunidades;

    Livro de Registro de Celebraes: rituais e festas que marcam vivncia coletiva,

    religiosidade, entretenimento e outras prticas da vida social;

    Livro de Registros das Formas de Expresso: manifestaes artsticas em geral;

    Livro de Registro dos Lugares: mercados, feiras, santurios, praas onde so

    concentradas ou reproduzidas prticas culturais coletivas.

    Esta a relao de bens registrados pelo IPHAN, at o ms de dezembro de 2008:

    1. Ofcio das Paneleiras de Goiabeiras

    2. Arte Kusiwa Pintura Corporal e Arte Grfica Wajpi

    3. Crio de Nossa Senhora de Nazar

    4. Samba de Roda do Recncavo Baiano

    5. Modo de Fazer Viola-de-Cocho

    6. Ofcio das Baianas de Acaraj

    7. Jongo no Sudeste

    8. Cachoeira de Iauaret Lugar sagrado dos povos indgenas dos Rios Uaups e

    Papuri

    9. Feira de Caruaru

    10. Frevo

    11. Tambor de Crioula

    12. Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-

    Enredo

    13. Modo artesanal de fazer Queijo de Minas, nas regies do Serro e das serras da

    Canastra e do Salitre

  • 14. Roda de Capoeira e Ofcio dos Mestres de Capoeira

    15. O modo de fazer Renda Irlandesa produzida em Divina Pastora (SE).

    No incio do sculo XX, especialistas (arquitetos, engenheiros, arquelogos, historiadores

    e outros) ficaram responsveis por auxiliar os Estados na seleo de monumentos que

    deveriam ser eleitos como patrimnio, alm de disponibilizar ferramentas para definir a

    identidade cultural das naes, principalmente as ocidentais. Para isso, aconteceu em

    Atenas no ano de 1931 a I Conferncia Internacional para Conservao dos Momentos

    Histricos (em que s participaram especialistas europeus). Esta Conferncia redigiu a

    primeira carta internacional com recomendaes sobre conservao e restaurao de

    monumentos histricos, a chamada Carta de Atenas.

    As principais caractersticas da Carta de Atenas foram:

    Eleger o Estado como responsvel pela salvaguarda dos monumentos;

    Aconselhar a criao de legislaes visando coletividade;

    Para restaurar, usar todos os recursos materiais e tcnicas modernas, desde que se

    mantivessem o aspecto antigo do edifcio.

    Este um fragmento da Carta de Atenas:

    A conferncia convencida de que a conservao do patrimnio e

    arqueolgico da humanidade interessa comunidade dos Estados, guardi da

    civilizao, deseja que os Estados, agindo no esprito do Pacto da Sociedade

    das Naes, colaborem entre si, cada vez mais concretamente para favorecer

    a conservao dos monumentos de arte e de histria. (...) (IPHAN, 2007)

    A citao demonstra a conscincia patrimonial da poca, em que o Estado se torna o

    responsvel por construir a identidade da nao. Ainda pode-se dizer que nesse momento

    histrico, incio do sculo XX, estava ocorrendo a ascenso do sistema capitalista nas

    principais naes ocidentais. Mas foi quase 30 anos depois que ocorreu o II Congresso

    Internacional de Arquitetos e Tcnicos dos Monumentos Histricos, realizado na cidade

    de Veneza, em maio de 1964. Neste encontro tambm foi produzida uma carta

    internacional que visava conservao e restaurao de monumentos e stios, a Carta de

    Veneza. Esta foi redigida em outro momento histrico, a dcada de 60, e empregava um

    discurso diferenciado em relao antiga Carta de Atenas, escrita na dcada de 30: no

  • era mais o Estado que deveria se responsabilizar pela escolha e conservao dos

    monumentos, e sim a humanidade.

    Este um trecho da Carta de Veneza:

    Portadoras de mensagem espiritual do passado, as obras monumentais de

    cada povo perduram no presente como o testemunho vivo de suas tradies

    seculares. A humanidade, cada vez mais consciente da unidade de valores

    humanos, as considera um patrimnio comum e, perante as geraes futuras,

    se reconhece solidariamente responsvel por preserv-las, impondo a si

    mesma o dever de transmiti-las na plenitude de sua autenticidade. (IPHAN,

    2007)

    Essa Carta de Veneza era dividida em artigos, e sua primordial contribuio foi deixar

    registrada que no somente grandiosos monumentos deveriam ser destacados para

    preservao, mas tambm criaes modestas com significado cultural. O artigo 1 afirma

    que: A noo de monumento histrico compreende a criao arquitetnica isolada, bem

    como o stio urbano ou rural que d testemunho de uma civilizao particular, de uma

    evoluo significativa ou de um acontecimento histrico. (IPHAN, 2007). Houve ainda

    outros encontros na Amrica. Um deles ocorreu em 1967 na cidade de Quito, de onde

    resultou as Normas de Quito. Nela foram realizadas indagaes referentes conservao

    e utilizao dos monumentos e lugares de interesse histrico no Continente Americano.

    Este documento demonstrou a preocupao por parte dos profissionais das reas

    patrimoniais com o empobrecimento de vrios pases, os chamados subdesenvolvidos, da

    Amrica Central e do Sul, e consequentemente, ao abandono dos seus monumentos. Desta

    forma, os pases considerados ricos discutiram a importncia da preservao e o incentivo

    na busca de stios arqueolgicos referentes aos Amerndios anteriores colonizao

    europeia. Observem trecho desta carta de Quito:

    V - Valorizao Econmica dos Monumentos.

    Partimos do pressuposto de que os monumentos de interesse arqueolgico,

    histrico e artstico constituem tambm recursos econmicos da mesma

    forma que as riquezas naturais do pas. Consequentemente, as medidas que

    levaram a sua preservao adequada utilizao no s guardam relao com

  • os planos de desenvolvimento, mas fazem ou devem fazer parte deles.

    (IPHAN, 2007)

    Sobretudo, estas normas discutiam a utilizao econmica de monumentos para a prpria

    sobrevivncia dos mesmos, soluo a muito empregada pelos europeus.

    Memria, Histria e Patrimnio: Reflexes Complementares

    A reflexo at aqui apresentada identifica o patrimnio como elemento fundamental para

    a constituio de determinada identidade, vinculado a grupos sociais que o monopolizam,

    articulando-o a partir de um projeto de sociedade, que necessita de vrios suportes como

    personagens, comemoraes, monumentos, objetos, iconografias e narrativas que daro

    base a uma interpretao inaugural, geralmente manipulatria e excludente. O discurso

    oficial tende a desconsiderar a diversidade de memrias, por estar pautada numa

    diversidade de identidades, o que pressuporia a constituio de alternativas (SILVA,

    1995:65-67), numa busca de controle e manipulao da memria. Parte-se, assim, da

    tentativa de constituio de uma sociedade sem memria, de uma nao desenraizada,

    sem tradies, passvel de manipulao.

    Essa questo vem sendo abordada no apenas pelas cincias humanas, mas tambm pela

    literatura. Algumas obras importantes como A Revoluo dos Bichos (1994) e 1984

    (1978), de Geogre Orwell, Admirvel Mundo Novo (1980), de Aldous Houxley, e

    Fahrenheit 451 (1985), de Ray Bradbury, demonstram a tentativa de controle e

    manipulao pela memria, sendo este o ponto central para o domnio total dos

    indivduos. A supresso da lembrana, nestes livros, o ponto de partida para a instalao

    de regimes totalitrios, sem referncias exteriores, com a figura do Estado, das elites ou

    do ditador aparecendo como recurso substitutivo, como um referencial estvel e original.

    Em 1984, George Orwell apresenta a manipulao da memria por meio da reescrita

    contnua da histria, eliminando tudo aquilo que apresente alguma discordncia e

    incoerncia quanto imagem oficial desejada de personagens, pases e quaisquer outros

    temas (SILVA, 1995:61). Este controle dava-se tambm pela vigilncia constante dos

    cidados e pela simplificao do vocabulrio, o que resultaria numa reduo da

    capacidade reflexiva, algo semelhante ao que vem ocorrendo, atualmente, na linguagem

    ciberntica. Em A revoluo dos bichos, o autor destaca a manipulao da memria

    pelos lderes revolucionrios, ou seja, os porcos, que alteram seus documentos, seus

  • discursos e sua histria visando consolidao de seu poder. J em Admirvel Mundo

    Novo, o controle d-se por outros meios: no pela reelaborao constante da memria,

    mas pela sua eliminao. O autor nos apresenta uma sociedade extremamente

    hierarquizada, sem possibilidade de mobilidade social. A reproduo humana realizada

    em laboratrio e o envelhecimento retardado por meio de drogas. Neste contexto, no h

    preocupao com o passado ou com o futuro, mas apenas com o presente, tendo em vista

    a impossibilidade de um futuro melhor ou de um passado diferente. Em Fahrenheit 451,

    apresentada uma sociedade em que livros foram eliminados e a funo do Corpo de

    Bombeiros era queimar os restantes, juntamente com as casas de seus donos. Enquanto

    isso, a diverso era garantida pelo Estado, que oferecia populao jornais, revistas em

    quadrinhos e a televiso, em tamanho natural e em formato de paredes, que dialogavam

    com seus donos, evitando assim a solido e a infelicidade.

    Tal preocupao em relao memria est intimamente vinculada ao debate em torno

    do patrimnio histrico e sua preservao. salutar questionar quais os motivos que

    levam alguns prdios ou artefatos a serem considerados histricos, e assim merecedores

    de preservao, em detrimentos de outros. Seguindo os caminhos apontados por Marcos

    Silva (1995), sabemos que no raro a histria e, em consequncia, as polticas em relao

    ao patrimnio, buscam garantir unanimidade, numa tentativa de construo de uma

    memria nica e de um passado homogneo, sem conflitos ou contradies,

    desconsiderando a diversidade de tradies, de manifestaes culturais que poderiam

    ameaar a uniformidade que garante a manuteno dos poderes (ORI, 1997). Tal

    perspectiva leva a um processo de excluso material e simblica que privilegia apenas

    um tipo de patrimnio, impossibilitando que classes populares se identifiquem

    materialmente, negando-se a possibilidade de construo ou confirmao de identidades

    (SILVA, 1995).

    Faz-se assim necessrio a reapropriao dos espaos e a criao de novos, entendendo

    que preservar deve ser diferente de congelar, levando em considerao seus usos, olhares

    e fazeres sociais. Ou seja, deve-se garantir que os patrimnios j consolidados adquiram

    novos olhares, e que estes sejam respeitados e levados em considerao, alm do fato de

    que novos patrimnios possam ser identificados. Sabemos, no entanto, da dificuldade de

    garantir esta diversidade de olhares e de possibilidades, por significar espao de expresso

    identitria, apontando suas contradies, ou jogos de interesses e os conflitos decorrentes.

  • Da a necessidade de uma educao patrimonial que leve no a informao, mas

    reflexo, ao questionamento, ao contraditrio e que aproxime as comunidades nos

    processos de tomadas de decises. Deve-se considerar as disputas pela retomada do

    passado como disputas pela constituio, retomada ou consolidao de identidades,

    pautada tambm aqui na oposio tradio e modernidade, questes que marcam o debate

    contextual sobre a memria e o patrimnio. Neste caso, deve-se evitar que o vnculo do

    popular com a tradio desqualifique personagens e grupos sociais como produtores e

    interpretadores de memria, como agentes formadores de um imaginrio coletivo sobre

    o passado, levando em conta o fato de que a memria construda a partir da

    contemporaneidade, pois toda lembrana pertence ao mesmo tempo ao passado e ao

    presente, mostrando-se pelo presente (PEREIRA, 2002). a reposio dos produtos do

    passado, que sobrevivem, sendo assim condio do hoje, pois o passado s ser lembrado

    quando possuir uma existncia material, quando est inscrita, de alguma forma, no

    presente (GUARINELLO, 1994). Neste caso, h uma representao seletiva do passado

    de um indivduo que social, pois pertencente a uma comunidade. Entende-se que toda

    memria coletiva, pois visa a continuidade e a resistncia a mudanas. um elemento

    de identidade, ao ser entendida como componente de coeso de grupos e instituies,

    sendo definidora, e tambm questionadora, de lugares de memria. Da entendermos os

    motivos pelo qual os donos do poder preocupam-se tanto com o que ser lembrado e o

    que ser esquecido (PEREIRA, 2002).

    A relao aqui apresentada entre memria coletiva e histria cientfica, inseridas nas

    questes vinculadas ao patrimnio. Esta relao, segundo Guarinello, pode tanto ser

    positiva, ao enriquecer as representaes sobre a memria, fornecendo smbolos e

    instrumental para a sociedade pensar-se, como negativa, quando se volta contra suas

    representaes. A tendncia que os produtores oficiais da memria, sejam eles

    historiadores, arquitetos, turismlogos ou agentes culturais, neguem legitimidade aos

    produtores espontneos da memria, entendendo o seu saber como nico possvel e

    verdadeiro (GUARINELLO, 1994). No entanto, apesar da ao dos detentores de poder

    sobre a memria, h uma dinmica de preservao, que acaba por se refugiar em lugares

    quase imperceptveis tais como gestos, saberes, hbitos, festividades, dentre outros,

    denominado de patrimnio imaterial (DE DECCA, 1992:130). A memria coletiva est

    vinculada permanncia e continuidade, e assim a identidade reconstri constantemente

    o velho a partir de esquecimentos e revitalizaes. atual, espontnea e vivida, entendida

  • como representao diluda do passado. A memria institucionalizada, por sua vez, est

    sujeita a manipulaes e ideologias, correndo-se o risco de tornar-se elemento

    desestabilizador da memria coletiva, ao congelar a histria por meio de sua oficializao

    e da construo de espaos de memria, como os museus e o patrimnio. Outro

    movimento o fato de que muitos grupos, excludos da representao, passam a produzir

    seus lugares de memria, numa resistncia massificao miditica, ao presentismo e a

    globalizao, tornando-se assim, para muitos grupos, refgio do popular e do tradicional.

    A histria memria, que foi institucionalizada em nome de uma memria nacional, est

    sendo apropriada pelas minorias, tornando-se, para muitos, a nica esperana dos grupos

    em manter seu elo com o passado. O perigo, no entanto, a eliminao da espontaneidade

    devido lgica preservacionista, ao estabelecer uma distino entre especialistas

    preparados para decidirem o que ser memorvel e os demais, tidos como incompetentes

    para tal (DE DECCA, 1992).