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Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro A aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes às relações de consumo Patrícia Ferreira de Almeida Monteiro Rio de Janeiro 2014

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  • Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

    A aplicao da Teoria do Dilogo das Fontes s relaes de consumo

    Patrcia Ferreira de Almeida Monteiro

    Rio de Janeiro

    2014

  • PATRCIA FERREIRA DE ALMEIDA MONTEIRO

    A aplicao da Teoria do Dilogo das Fontes s relaes de consumo

    Artigo Cientfico apresentado como exigncia

    de concluso de Curso de Ps-Graduao Lato

    Sensu da Escola da Magistratura do Estado do

    Rio de Janeiro.

    Professores Orientadores:

    Artur Gomes

    Mnica Areal

    Nli Luiza C. Fetzner

    Nelson C. Tavares Junior

    Rio de Janeiro

    2014

  • 2

    A APLICAO DA TEORIA DO DILOGO DAS FONTES S RELAES DE CONSUMO

    Patrcia Ferreira de Almeida Monteiro

    Graduada pela Universidade Gama Filho.

    Advogada. Assessora Jurdica do Ministrio

    Pblico do Estado do Rio de Janeiro. Ps-

    graduanda em Direito Lato Sensu pela Escola de

    Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

    Resumo: O presente trabalho visa analisar o conceito, a origem e a aplicao da Teoria do Dilogo das

    Fontes no ordenamento jurdico ptrio, em especial, s relaes de consumo, por meio da ideia de que,

    diante da pluralidade de normas existentes, e da constante e acelerada modificao do cenrio social atual,

    as fontes no mais se excluem, revogando-se mutuamente, pelo contrrio, falam umas com as outras, coordenando-se entre si, uma vez que o sistema jurdico uno.

    Palavras-chave: Dilogo das fontes. Teoria alem. Direito Civil-Constitucional. Proteo Constitucional

    dos Direitos Fundamentais do Consumidor. Antinomias Jurdicas. Microssistema. Complementao das

    normas. Funcionalidade. Pluralismo das fontes legislativas.

    Sumrio: Introduo. 1. Origem da Teoria do Dilogo das Fontes. 2. Ordenamento jurdico unitrio. 3.

    Introduo da Teoria do Dilogo das Fontes no sistema jurdico brasileiro. 4. Aplicao da teoria s

    relaes de consumo. Concluso. Referncias.

    INTRODUO

    O trabalho ter como objeto de anlise a Teoria do Dilogo das Fontes no

    ordenamento jurdico brasileiro, com enfoque especial em sua aplicao s relaes

    consumeristas.

    Cuida-se de uma teoria idealizada na Alemanha pelo jurista Erik Jayme, professor da

    Universidade de Heidelberg, e trazida ao Brasil pela Dra. Claudia Lima Marques, professora

    titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

    A aludida teoria revela a tendncia futura de que o ordenamento jurdico ptrio

    deveria ser interpretado como um sistema nico, harmnico e coordenado entre si, no qual a

    criao de uma norma no suplantaria a outra, como previu Norberto Bobbio por intermdio

  • 3

    dos critrios clssicos de soluo das antinomias jurdicas, mas estabeleceria uma relao de

    complementariedade.

    Busca-se, assim, observar se o dilogo entre as fontes, seja em razo da aplicao

    conjunta de duas normas simultaneamente e para o mesmo fato, seja permitindo a opo pela

    fonte prevalente que, de fato, ensejar a adoo da melhor soluo aos conflitos com os quais

    a sociedade brasileira, ante as transformaes da vida cotidiana, das relaes econmicas e

    interpessoais, se depara, principalmente, no que diz respeito s relaes reguladas pelo

    Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990).

    Pretende-se despertar a ateno dos operadores do Direito para o pluralismo

    legislativo que se vive atualmente, de modo a demonstrar que somente o dilogo entre as

    normas, mormente quando possuem campos de aplicao convergentes, levar coordenao

    das fontes jurdicas, imprescindvel nesses tempos ps-modernos, como bem definiu Erik

    Jayme. De igual forma, busca-se afastar a ideia de que o Cdigo de Defesa do Consumidor

    um microssistema jurdico totalmente isolado das demais normas e codificaes.

    Para tanto, sero estudadas a origem e a maneira como se desenvolveu a teoria no

    direito aliengena; a possibilidade de se solucionar as antinomias jurdicas pelos critrios

    clssicos, no obstante a tendncia atual de coordenao e harmonizao das normas do

    ordenamento jurdico, concebido com um sistema nico; alm da forma de se evitar que a

    inflao legislativa culmine em um estado de insegurana jurdica, sobretudo nas relaes de

    consumo.

    Assim, em sntese, o trabalho procura trazer tona a discusso sobre a aplicao da

    Teoria do Dilogo das Fontes, em especial nas relaes de consumo, dentro de um contexto

    de exploso de leis que, vale dizer, tem deixado os operadores do Direito reticentes quanto

    aplicao casustica de cada norma. Caminha-se, assim, rumo era do solidarismo

  • 4

    constitucional, no qual a proteo dignidade da pessoa humana deve estar sempre frente

    das tendncias imediatistas do mundo moderno.

    Os objetivos especficos desse trabalho so discorrer acerca da origem e

    desenvolvimento da teoria no direito alemo, bem como demonstrar ao intrprete nova

    ferramenta hermenutica no sentido de interpretar as normas de forma conjunta e de acordo

    com os preceitos, postulados e princpios constitucionais, operacionalizando, assim, a

    interpretao e aplicao das normas caso a caso.

    A metodologia que se pretende adotar nesse trabalho a do tipo bibliogrfica e

    histrica, qualitativa, parcialmente exploratria.

    1. ORIGEM DA TEORIA DO DILOGO DAS FONTES

    De incio, tem-se que a tese do Dilogo das Fontes foi desenvolvida na Alemanha

    por Erik Jayme, na Universidade de Heldberg, apresentada em 1995 na cidade de Haia na

    Holanda, e importada para o territrio nacional por Claudia Lima Marques, doutora pela

    Universidade de Heldberg e professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    (UFRGS).

    A base dessa teoria, segundo a qual as normas jurdicas no se excluem, mas, ao

    contrrio, se complementam, a tica unitria do sistema jurdico.

    Nota-se que as transformaes socioeconmicas, a evoluo tecnolgica, as novas

    formas de compreenso do mundo, caractersticos dos tempos ps-modernos, traduzem a falta

    de compatibilidade entre o Direito Positivo e os fatos sociais, ratificando o que o civilista

    Gaston Morand1 j denominara de revolta dos fatos contra os cdigos.

    1 Recasns Siches apud DINIZ, Maria Helena. Compndio de introduo cincia do direito. 15. ed. So Paulo: Saraiva, 2003.

    p. 57. In: MELO, Liana Holanda de. Hermenutica jurdica: a escola da exegese e o mito da neutralidade. Disponvel em:

    . Acesso em: 23 abr. 2014.

  • 5

    O Direito tem como um de seus papis principais a harmonizao dos conflitos

    sociais, necessitando, assim, se adequar s necessidades e aspiraes da sociedade que, repita-

    se, encontra-se em constante mutao, sob pena de se tornar obsoleto e ferir a segurana

    jurdica.

    Com tal finalidade, o Direito procura acompanhar os novos fatos surgidos atravs da

    criao de leis, que apesar de regular os diversos setores da sociedade, formam um

    ordenamento jurdico inchado e no raras as vezes contraditrio, o que culmina no fenmeno

    da inflao legislativa.

    Conforme brilhantemente citou o Ministro do Superior Tribunal de Justia, Antonio

    Herman Benjamin2, no prefcio do livro Dilogo das fontes: Do conflito coordenao das

    normas do direito brasileiro, parafraseando Erik Jayme:

    Os direitos do homem, as constituies, as convenes internacionais, os sistemas

    nacionais: todas estas fontes no mais se excluem mutuamente; elas conversam uma

    com a outra. Os juzes so necessrios para coordenar estas fontes, escutando o que

    elas dizem.

    No Brasil, a teoria foi desenvolvida, ab initio, atravs da propositura da Dra. Claudia

    Lima Marques de um dilogo entre o Cdigo Civil de 2002 e o Cdigo de Defesa do

    Consumidor de 1990, especialmente desde 2003, ante a clara similitude principiolgica de tais

    sistemas, ganhando intenso relevo no julgamento da Ao Direta de Inconstitucionalidade

    2591, em 2006, que entendeu constitucional a aplicao do cdigo consumerista s atividades

    bancrias, no obstante existisse lei complementar regulamentadora de tais relaes.

    Em seu voto, o Ministro da Suprema Corte, Joaquim Barbosa3, entendeu que o

    regramento do sistema financeiro e a disciplina da defesa do consumidor poderiam

    perfeitamente conviver.

    2 JAYME, Erick apud MARQUES, Cludia Lima. Dilogo das Fontes: do conflito coordenao de normas do direito

    brasileiro. 2 Tiragem. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

    3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 2591/DF. Relator: Ministro Eros Grau. Disponvel em: <

    http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=188&dataPublicacaoDj=29/09/2006&incidente=19905

    17&codCapitulo=5&numMateria=31&codMateria=1>. Acesso em: 21 abr. 2014.

  • 6

    Com efeito, com a chegada dos tempos ps-modernos,4 citado anteriormente,

    entendeu-se que os critrios clssicos de soluo das antinomias jurdicas (hierrquico,

    cronolgico e de especializao), em parte inseridos na Lei de Introduo s Normas de

    Direito Brasileiro, no so mais suficientes, alertando o criador da tese em questo, que,

    diante desse novo cenrio, no mais possvel esse modelo nico de soluo dos conflitos,

    devendo-se preservar a coerncia do sistema.

    Destaca-se, ainda, que essa preocupao no exclusivamente do direito brasileiro,

    uma vez que a complexidade do ordenamento jurdico, seja nacional, seja internacional,

    versus as transformaes sociais e a multiplicidade de leis decorrente de tais mutaes, so

    desafios atualidade das leis, assim como da coordenao, interpretao e aplicao das

    fontes normativas.

    Como teve a oportunidade de afirmar o mestre Erik Jayme5, em relao teoria, ora

    objeto desse estudo, o sistema jurdico pressupe uma certa coerncia o direito deve evitar

    a contradio. O juiz, na presena de duas fontes... com valores contrastantes, deve buscar

    coordenar as fontes, num dilogo das fontes (Dialog der Quellen).

    Nesse ponto, esclarece a Dra. Claudia Lima Marques6 que, o dilogo das fontes, no

    direito brasileiro, deve ser entendido como a aplicao, coerente e coordenada das plrimas

    fontes legislativas, leis especiais e gerais, de origem internacional e nacional, que possuem

    campos de aplicao convergentes. Atente-se que justamente a ausncia da retromencionada

    coerncia que enseja as antinomias e os conflitos de leis no tempo.

    A professora, ainda, defende, na introduo de sua obra Dilogo das fontes: do

    conflito coordenao das normas do direito brasileiro, que mais uma vez aqui citamos, que o

    dilogo das fontes mais do que teoria mtodo, ou seja, trata-se de um dos instrumentos mais

    4 JAYME, Erick. Vises para uma teoria ps-moderna do direito comparado. Revista dos Tribunais, v. 759. So Paulo: Revista

    dos Tribunais, jan. 1999, p. 24 et seq. 5 Id. Direito internacional privado e cultura ps-moderna. Cadernos do PPGD/UFRGS 1, n. 1, p. 59-68, mar. 2003, p. 109.

    6 MARQUES, Cludia Lima. Contratos no Cdigo de Defesa do Consumidor. 6. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.

    615 e ss.

  • 7

    importantes, j criados, aos desafios que se apresentam nos novos tempos, tendo em vista que

    sua profundidade proporcional sua utilidade e praticidade hodiernamente.

    importante ressaltar que a Teoria do Dilogo das Fontes de Erik Jayme no se

    funda unicamente em um debate sobre teorias positivas, pelo contrrio, transcende. No custa

    lembrar que Hans Kelsen7 chegou a afirmar que justo seria apenas um sinnimo de jurdico e,

    ainda, que para a cincia do Direito s existiria um direito, o positivo ou positivado. Nesse

    diapaso, tem-se que o Dilogo das Fontes no se limita anlise das antinomias de textos

    legais, mas tambm de costumes e princpios gerais.

    Dilogo das Fontes, ento, seria uma expresso simblica de um novo paradigma de

    interpretao do sistema jurdico, tanto no mbito nacional quanto internacional, sendo, como

    afirmou a Dra. Claudia Lima Marques8:

    [...] dilogo em virtude das influncias recprocas, dilogo porque h aplicao conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja

    complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opo voluntria das

    partes pela fonte prevalente (especialmente em matria de convenes internacionais

    e leis modelos) ou mesmo a opo por ter uma soluo flexvel e aberta, de

    interpenetrao, ou a soluo mais favorvel ao mais fraco da relao.

    Por derradeiro, conclui-se, como bem destacou o nobre professor Flvio Tartuce9,

    que a Teoria do Dilogo das Fontes nasceu para substituir e superar os critrios clssicos de

    soluo das antinomias jurdicas, retromencionados, sendo que, certamente, esse ser o seu

    papel no futuro, j que no h sombra de dvida que essa tese tenha sido aceita pelo

    ordenamento jurdico ptrio.

    2. ORDENAMENTO JURDICO UNITRIO

    7 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7. ed. Traduo J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. So Paulo: Revista dos Tribunais,

    2011. p. 78. 8 MARQUES, Claudia Lima. Dilogo entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o novo Cdigo Civil: do dilogo das fontes no

    combate s clusulas abusivas. Revista de Direito do Consumidor, v. 45, jan.-mar. 2003, p. 71 e ss. 9 TARTUCE, Flvio. Manual de Direito Civil. 3. ed. So Paulo: Mtodo, 2013. p. 66.

  • 8

    O ordenamento jurdico ptrio consiste em um conjunto de normas jurdicas que,

    embora complexas, compem um sistema unitrio. Para Norberto Bobbio10

    , a complexidade

    de um ordenamento jurdico no exclui a sua unidade. Com efeito, no territrio brasileiro,

    adotou-se a teoria de Hans Kelsen, segundo a qual as normas no esto todas no mesmo

    plano, devendo, para serem vlidas, estarem em consonncia com a imediatamente superior.

    Atente-se que, para Kelsen11

    , existem normas superiores e inferiores, derivando, cada

    norma inferior de uma superior, de maneira que se chegue at a norma suprema que no

    deriva de nenhuma outra, e sobre a qual repousa a unidade e coerncia do sistema. Essa

    norma suprema a norma fundamental, cujo papel primordial conferir a unidade necessria

    para se formar um ordenamento jurdico.

    importante esclarecer que sem essa norma suprema, as demais normas formariam

    um amontoado de regras, dispersas entre si. Ou seja, a presena de normas superiores e

    inferiores dispostas em ordem hierrquica constitui a estrutura do ordenamento. Dessa forma,

    a unidade do ordenamento d-se pela possibilidade constante de se reportar a uma norma

    fundamental.

    Para Bobbio12

    , o ordenamento deve alm de representar uma unidade, ser dotado de

    coerncia e completude. Por coerncia, deve se entender a existncia de uma certa ordem

    entre as normas, o que, contudo, no inibir a ocorrncia de antinomias, cujos critrios

    clssicos de soluo nem sempre encontram um deslinde adequado para o caso concreto. Por

    completude, entende-se a previso de normas para solucionar quaisquer conflitos.

    Em relao possvel ocorrncia de antinomias acima mencionadas, mister tecer

    algumas consideraes.

    10 GASPERIN, Antonio Augusto Tams. Sntese comentada teoria do ordenamento jurdico de Norberto Bobbio. Disponvel

    em: . Acesso em: 21

    fev. 2014.

    11 SILVA, Eduardo Almeida Pellerin da. A unidade do ordenamento jurdico segundo Bobbio. Disponvel em:

    . Acesso em: 21 fev. 2014.

    12 SILVA, op. cit. p. 2.

  • 9

    De incio, destaca-se que, para o Professor Flvio Taturce13

    , antinomia consiste na

    presena de duas normas conflitantes, vlidas e emanadas de autoridade competente, sem

    que se possa dizer qual delas merecer aplicao em determinado caso concreto (lacunas de

    coliso). Por meio da Teoria do Ordenamento Jurdico, da pena de Norberto Bobbio, a

    soluo desses choques se daria atravs de trs critrios, quais sejam: cronolgico, da

    especialidade e hierrquico.

    O primeiro indica que a norma posterior prevalece sobre a norma anterior; o

    segundo, que a norma especial prevalece sobre a norma geral; e o terceiro, que a norma

    superior se sobrepe norma inferior. Fato que o critrio cronolgico, a par de estar

    disposto no artigo 2 da Lei de Introduo s Normas de Direito Brasileiro14

    (No se

    destinando vigncia temporria, a lei ter vigor at que outra a modifique ou revogue), o

    que possui menos fora, sucumbindo diante dos demais.

    Em relao ao critrio da especialidade, cumpre destacar que tambm possui

    previso legal, conforme ensina o autor Flvio Tartuce15

    , no caput do art. 5 da Carta

    Constitucional, em sua segunda parte, segundo a qual a lei deve tratar de maneira desigual os

    desiguais, consoante o princpio da Isonomia, possuindo, assim, carter intermedirio.

    Por fim, tem-se que o critrio hierrquico o de maior relevncia, justamente pela

    importncia do texto constitucional.

    Pode-se, ainda, subdividir as formas de antinomias atravs de duas classificaes

    bsicas, a saber: antinomia de primeiro ou de segundo grau; e antinomia aparente ou real.

    A primeira classificao quanto ao nmero de critrios envolvidos para a soluo,

    ao passo que o segundo quanto possibilidade ou no de soluo de conflitos. Assim, a

    13

    TARTUCE, op. cit.. p. 37. 14

    BRASIL. Decreto-lei n. 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introduo s normas do Direito Brasileiro. Disponvel em: . Acesso em: 22 fev. 2014. 15

    TARTUCE, op. cit. p. 38.

  • 10

    antinomia pode ser de 1 grau, quando o conflito envolve apenas um dos critrios de soluo,

    ou de 2 grau, nos casos em que o conflito envolve dois dos critrios apresentados.

    Pode, ainda, ser uma antinomia aparente, em que o choque entre as normas passvel

    de deslinde pelos critrios de soluo clssicos ou, uma antinomia real, na qual a soluo no

    se encontrar nos metacritrios retromencionados. Nesse ponto, como bem expe Maria

    Helena Diniz16

    :

    No conflito entre o critrio hierrquico e o de especialidade, havendo uma norma

    superior-geral e outra norma inferior especial, no ser possvel estabelecer uma

    metarregra geral, preferindo o critrio hierrquico ao da especialidade ou vice-versa,

    sem contrariar a adaptabilidade do direito. Poder-se-, ento, preferir qualquer um

    dos critrios, no existindo, portanto, qualquer prevalncia. Todavia, segundo

    Bobbio, dever-se- optar, teoricamente, pelo hierrquico; uma lei constitucional

    geral dever prevalecer sobre uma lei ordinria especial, pois se se admitisse o

    princpio de que uma lei ordinria especial pudesse derrogar normas constitucionais,

    os princpios fundamentais do ordenamento jurdico estariam destinados a esvaziar-

    se, rapidamente, de seu contedo. Mas, na prtica, a exigncia de se adotarem as

    normas gerais de uma Constituio a situaes novas levaria, s vezes, aplicao

    de uma lei especial, ainda que ordinria, sobre a Constituio. A supremacia do

    critrio da especialidade s se justificaria, nessa hiptese, a partir do mais alto

    princpio da justia: suum cuique tribuere, baseado na interpretao de que o que igual deve ser tratado como igual e o que diferente, de maneira diferente. Esse princpio serviria numa certa medida para solucionar antinomia, tratando igualmente

    o que igual e desigualmente o que desigual, fazendo as diferenciaes exigidas

    ftica e valorativamente.

    Por outro lado, no custa lembrar que a tendncia atual pelo dilogo das fontes,

    cujo primeiro pensamento diz respeito essncia dessa teoria, segundo a qual as normas

    jurdicas no se excluem, mas se complementam, havendo nesse ponto, igualmente, a

    premissa de uma viso unitria do ordenamento jurdico17.

    No se olvide, ainda, que a primeira tentativa de aplicao da tese do dilogo das

    fontes ocorreu por meio da subsuno ao Cdigo de Defesa do Consumidor e ao Cdigo Civil

    de determinadas relaes jurdicas, de forma concomitante, por fora da similitude da base

    principiolgica dos sistemas em questo.

    16

    DINIZ, Maria Helena apud TARTUCE, Flvio. Manual de Direito Civil. Volume nico. 3. ed. So Paulo: Mtodo, 2013. p.

    39-40. 17

    TARTUCE, op. cit. p. 59.

  • 11

    A esse propsito, interessante trazer colao, trs dilogos possveis citados pela

    professora Claudia Lima Marques18

    :

    a) Em havendo aplicao simultnea das duas leis, se uma lei servir de base

    conceitual para a outra, estar presente o dilogo sistemtico de coerncia.

    Exemplo: os conceitos dos contratos de espcie podem ser retirados do Cdigo Civil

    mesmo sendo o contrato de consumo, caso de uma compra e venda (art. 481 do CC).

    b) Se o caso for de aplicao coordenada de duas leis, uma norma pode completar a

    outra, de forma direta (dilogo de complementaridade) ou indireta (dilogo de

    subsidiariedade). O exemplo tpico ocorre com os contratos de consumo que

    tambm so de adeso. Em relao s clusulas abusivas, pode ser invocada a

    proteo dos consumidores constante do art. 51 do CDC e ainda a proteo dos

    aderentes constante do art. 424 do CC.

    c) Os dilogos de influncias recprocas sistemticas esto presentes quando os

    conceitos estruturais de uma determinada lei sofrem influncias da outra. Assim, o

    conceito de consumidor pode sofrer influncias do prprio Cdigo Civil. Como

    afirma a prpria Claudia Lima Marques, a influncia do sistema especial no geral e do geral no especial, um dialogo de doubl sens (dilogo de coordenao e

    adaptao sistemtica).

    Esclarea-se, por fim, que, embora os critrios clssicos de soluo das antinomias

    jurdicas ainda sejam aplicados, o papel da Teoria do Dilogo das Fontes, no futuro, de

    substituir e superar tais mtodos de soluo, possibilitando, assim, a concretizao de um

    sistema unitrio, em que h mtuos dilogos e o reconhecimento de interdisciplinaridade19.

    3. INTRODUO DA TEORIA DO DILOGO DAS FONTES NO SISTEMA

    JURDICO BRASILEIRO

    A evoluo jurdica recente, como visto anteriormente, tem demonstrado que os

    critrios de soluo de antinomias, mesmo para preenchimento das lacunas legais, se tornaram

    insuficientes. A jurisprudncia aliada identificao de valores jurdicos busca encontrar uma

    concepo valorativa dominante. Os princpios, por sua vez, embora no possam se submeter

    18

    MARQUES, Claudia Lima. Manual de direito do consumidor. Antonio Herman V. Benjamim, Claudia Lima Marques e

    Leonardo Roscoe Bessa. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 91. In: TARTUCE, Flvio. Manual de Direito Civil.

    Volume nico. 3. ed. So Paulo: Mtodo, 2013. p. 61. 19

    TARTUCE, op. cit. p. 67.

  • 12

    s situaes fticas, devem ser concretizados, de modo a fundamentar e nortear o sistema

    jurdico, os critrios de interpretao e a aplicao do Direito20

    .

    justamente nesse ponto que a Teoria do Dilogo das Fontes encontra lugar para se

    desenvolver no direito brasileiro, conforme afirma o Dr. Bruno Miragem21

    , advogado, doutor

    e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no captulo

    Eppur si muove: Dilogo das Fontes como mtodo de interpretao sistemtica no direito

    brasileiro.

    Ressalte-se que a expresso dilogo das fontes foi cunhada no Direito Internacional

    pelo professor Erik Jayme, de nacionalidade alem, em 1995. Com efeito, a coluna de

    sustentao dessa teoria a necessidade de coordenao das normas pelo intrprete, em uma

    era de plrimas fontes jurdico-normativas. Sob sua tica, um mtodo que se destine a

    coordenar as fontes prefervel a uma soluo hierrquica22.

    A repercusso dessa teoria alem no direito brasileiro ocorreu atravs dos trabalhos

    da Dra. Claudia Lima Marques, nos quais foi desenvolvido um mtodo de interpretao

    baseado na coordenao de diversas fontes normativas, cujo incio se deu com a tentativa de

    soluo de eventuais antinomias entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil.

    Atente-se que essa tese visa no s eliminar as possveis antinomias entre as normas,

    mas tambm fundamentar a possibilidade de influncias recprocas entre as duas leis, geral

    (Cdigo Civil) e especial (Cdigo de Defesa do Consumidor).

    O mtodo, ora em anlise, admite trs espcies de dilogos entre as normas do

    Cdigo Civil e do Cdigo de Defesa do Consumidor, quais sejam: (a) dilogo sistemtico de

    20

    TARTUCE, op. cit. p. 73-74. 21

    TARTUCE, op. cit. p. 74. 22

    JAYME, Erick. Identil culturelle et intgration: Le droit internationale prive postmoderne. Cours general de droit

    international prive (Tir part Du Recueil ds Cours, tome 251). Hague: Nijhoff, 1995. In: MARQUES, Cludia Lima. Dilogo

    das Fontes: do conflito coordenao de normas do direito brasileiro. 2 Tiragem. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.

    74.

  • 13

    coerncia; (b) dilogo sistemtico de complementaridade e subsidiariedade; e (c) dilogo de

    coordenao e adaptao sistemtica. A esse respeito, percebe-se que23

    :

    (a) no caso do dilogo sistemtico de coerncia, preserva-se o mbito de aplicao

    de ambas as leis, evitando a sobreposio, utilizando como critrio o fundamento

    teleolgico das normas (no caso da comparao entre o Cdigo Civil e o Cdigo de

    Defesa do Consumidor, expressando o primeiro um direito de iguais, segundo a tradio moderna do direito civil, e o segundo um direito entre desiguais, fundado no reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor como fundamento para sua

    proteo). Portanto, uma divergncia quanto ao seu campo de aplicao, a fomentar,

    inclusive, interpretao mais restrita de consumidor (denominada interpretao

    finalista), e consequente reduo do mbito de aplicao do Cdigo de Defesa do

    Consumidor a situaes em que presente a vulnerabilidade do sujeito a ser

    protegido.

    J no caso (b) dilogo sistemtico de complementaridade e subsidiariedade, resulta,

    primeiro, a concluso sobre a no revogao do Cdigo de Defesa do Consumidor

    de 1990 pelo Cdigo Civil de 2002, ademais pelo fato de no dispor sobre relaes

    de consumo. Mas, para alm dessa concluso, sustenta a possibilidade de aplicao

    de normas do Cdigo Civil s relaes de consumo, hiptese esta que, alis,

    expressamente admitida pelo art. 7., caput, do CDC, ao dispor: Art. 7. Os direitos previstos neste Cdigo no excluem outros decorrentes de tratados ou convenes

    internacionais de que o Brasil seja signatrio, da legislao interna ordinria, de

    regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como

    dos que derivem dos princpios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. A compatibilidade entre a lei geral posterior e a lei especial anterior reconhecia-se

    mediante o critrio da lex posterior generalis non derrogat legi priori speciali, j

    mencionado. A possibilidade de aplicao das duas normas que se revela, contudo,

    distinta dos critrios tradicionais de soluo de antinomias. Assim, nas situaes em

    que a aplicao de norma do Cdigo Civil se revelar mais benfica ao consumidor

    tutelado pelo Cdigo de Defesa do Consumidor, pode afastar topicamente a norma

    originalmente prevista, mediante aplicao daquela prevista no sistema geral. o

    que ocorreu, por exemplo, em matria de prescrio, em caso no qual o Superior

    Tribunal de Justia afastou o prazo prescricional no art. 27 do CDC, para fazer

    incidir regra do Cdigo Civil vigente data do nascimento da pretenso, prevendo o

    prazo prescricional de vinte anos.

    Por fim, (c) o dilogo de coordenao e adaptao sistemtica pressupe o Cdigo

    Civil e suas normas com base conceitual para interpretao e aplicao do Cdigo de

    Defesa do Consumidor. Neste sentido, ao tratar da prescrio, ou de domiclio, ou de

    indenizao, a interpretao das normas da lei especial depende do sentido que se

    retira desses conceitos na lei geral (Cdigo Civil). Todavia, esta coordenao de

    fontes se realiza no apenas mediante a influncia da lei geral sobre a lei especial,

    mas mediante influncias recprocas o que, na relao entre essas normas, se realiza com destaque para o desenvolvimento do sentido e alcance das normas do

    Cdigo de Defesa do Consumidor, mediante sua crescente interpretao

    jurisprudencial no perodo que precede a promulgao do Cdigo Civil, estendendo-

    se aos dias atuais. Assim, a preciso conceitual definida pela jurisprudncia, para

    princpios ou institutos comuns dos dois sistemas normativos, pode se aplicar em

    ambos, sem prejuzo da autoridade da lei. o que Claudia Lima Marques denomina

    de transposio do Richtrecht, ou seja, da jurisprudncia que, produzida a partir das

    normas de proteo do consumidor, serve igualmente interpretao e aplicao das

    normas civis. So exemplos, sempre mencionados neste caso, o sentido e efeitos do

    princpio da boa-f no direito das obrigaes, o abuso do direito e a compreenso

    contempornea que lhe d o Cdigo de Defesa do Consumidor.

    23

    MARQUES, Cludia Lima; BENJAMIN, ntonio Herman; MIRAGEM, Bruno. Comentrios ao Cdigo de Defesa do

    Consumidor, 3. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 34/35. In: MARQUES, Cludia Lima. Dilogo das Fontes: do

    conflito coordenao de normas do direito brasileiro. 2 Tiragem. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 75-77.

  • 14

    Vive-se, hodiernamente, um momento de crise de confiana no direito como

    instrumento de pacificao e soluo de conflitos, que, vale dizer, no se trata de mero senso

    comum, pelo contrrio, tem integrado o cerne de preocupao de inmeros tericos.

    Nesse diapaso, o advento de um mtodo de interpretao e aplicao de normas

    jurdicas, que alia a viso sistemtica de um ordenamento jurdico, mediante coordenao de

    inmeras fontes normativas, contribui no apenas para a afirmao de uma unidade lgica do

    sistema jurdico, mas tambm para a reconstruo da confiana em sua autoridade.

    Como bem ressalta a Dra. Claudia Lima Marques24

    , a doutrina atualizada, porm,

    est procura hoje mais da harmonia e da coordenao entre as normas do ordenamento

    jurdico (concebido como sistema), do que a excluso, embora antes essa fosse apresentada

    como nica soluo dos conflitos entre normas, de sorte a conferir clareza e certeza ao

    ordenamento jurdico.

    No custa lembrar, por oportuno, que o professor Erik Jayme25

    buscou observar na

    Carta Constitucional as antinomias jurdicas modernas e a complexidade dos sistemas legais

    descodificados, exatamente como no caso brasileiro, em que a Magna Carta26

    preocupou-se

    em elencar os direitos fundamentais, entre eles, a defesa do consumidor, em seu art. 5, inciso

    XXXII: O Estado promover na forma da lei a defesa do consumidor.

    A esse propsito, importante transcrever as palavras de Marco Fbio Morsello27

    ,

    segundo o qual:

    24 MARQUES, Cludia Lima. Trs tipos de dilogos entre o cdigo de defesa do consumidor e o cdigo civil de 2002 :

    superao das antinomias pelo dilogo das fontes. Cdigo de defesa do consumidor e o cdigo civil de 2002: convergncias e assimetrias. Roberto A.C. Pfeiffer; Adalberto Pasqualotto (Coord.). So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 13.

    25 MARQUES, Claudia Lima. Superao das antinomias pelo dilogo das fontes: o modelo brasileiro de coexistncia entre o

    Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil de 2002. Disponvel em:

    . Acesso em: 9 mar. 2014.

    26 BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em:

    . Acesso em: 9 mar. 2014.

    27 VIANNA, Jos Ricardo Alvarez. A Teoria do Dilogo das Fontes. Disponvel em: . Acesso em: 17 mar. 2014.

  • 15

    Sob a tica constitucional, a defesa do consumidor foi considerada direito

    fundamental (art. 5, XXXII), de modo que a existncia de norma em antinomia com

    aquelas que tenham implementado a mencionada defesa naturalmente no poder

    prevalecer, levando-se em conta a fora normativa que promana da Constituio

    Federal, ensejando, pois, preponderncia, inclusive sob o critrio hierrquico.

    Nesse sentido, seguindo o caminho mental exposto, considerando uma relao

    jurdica sobre a qual incidam tanto normas consumeristas, quanto normas civilistas, com igual

    fora, a soluo adequada ser a prevalncia da norma mais favorvel ao consumidor, ainda

    que esta esteja prevista formalmente no Cdigo Civil ou outros diplomas legais, pois somente

    assim estar atendido o comando constitucional.

    Atente-se, por outro lado, que, embora parea ter sido violado o princpio da

    Especialidade, aqui se encontra a essncia do Dilogo das Fontes, j que foi atendida a tutela

    do bem jurdico, de forma eficaz e efetiva, em consonncia com os postulados constitucionais,

    no contrariando o princpio retromencionado, pelo contrrio, implementando-o, apesar de

    no no modelo clssico.

    Dessa feita, extrai-se que a Teoria do Dilogo das Fontes se revela como instrumento

    para a boa aplicao do Direito, no sendo, contudo, o nico mtodo e tampouco infalvel,

    considerando-se, inclusive, que se trata de fruto de atividade humana, porm, como esclareceu

    Jos Ricardo Alvarez Vianna28, seguramente, de utilidade inquestionvel, ao permitir e

    viabilizar um olhar mais afiado para a realidade dos casos concretos como mais um

    instrumento de Justia, objetivo, por excelncia, da atividade judiciria.

    4. APLICAO DA TEORIA DO DILOGO DAS FONTES S RELAES DE

    CONSUMO

    No captulo que ora se inicia, sero tecidas consideraes acerca do significado e da

    importncia da Teoria do Dilogo das Fontes para a aplicao das normas insertas no Cdigo

    28 VIANNA, op. cit. p. 1.

  • 16

    de Defesa do Consumidor em conjunto com outros diplomas normativos, com anlise crtica

    sobre as decises do egrgio Superior Tribunal de Justia acerca da matria, ao final,

    considerando-se que, apesar de j decorridos 14 (quatorze) anos de sua edio Lei n.

    8.078/1990 , a lei consumerista ainda apresenta divergncias quanto ao seu mbito de

    incidncia.

    Antes de adentrar no cerne da questo, contudo, cumpre apresentar breves

    consideraes histricas acerca da defesa do consumidor.

    Historicamente, a defesa do consumidor se dava no mbito econmico, mas a

    necessidade de proteo da parte vulnervel ou hipossuficiente, somada efetiva necessidade

    de regulao do mercado, especialmente, no que se refere aos contratos de adeso, fez nascer

    o desejo por um cdigo especfico para tal fim, de sorte a estabelecer um equilbrio entre as

    partes contratantes, incentivando, desta feita, o consumo.

    Nesse prumo, aps a promulgao da Carta Constitucional de 1988, que previu

    dentre os direitos fundamentais, a defesa do consumidor, e determinou no art. 48 do Ato das

    Disposies Constitucionais Transitrias (ADCT) a elaborao de uma microcodificao,

    adveio o Cdigo de Defesa do Consumidor Lei n. 8.078/1990.

    Com efeito, a partir do sculo XX, tem-se que, com a perda da centralizao de

    normas do Cdigo Civil aliada crescente edio de fontes legislativas, a Constituio

    Federal passou a exercer um papel unificador do sistema, de modo a conferir coerncia e

    harmonia a essa multiplicidade de fontes normativas.

    O Cdigo de Defesa do Consumidor norma especial em relao ao Cdigo Civil de

    2002, no obstante o caput do artigo 7 da Lei n. 8.078/9029

    seja expresso no sentido de que

    no cuida com exclusividade dos direitos do consumidor, podendo, desta forma, outras

    29 BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispe sobre a proteo do consumidor e d outras providncias.

    Disponvel em: . Acesso em 21 abr. 2014.

  • 17

    normas serem invocadas e aplicadas, quando mais vantajosas ao consumidor, buscando-se

    sempre, repita-se: coerncia e harmonia nas concluses.

    A esse propsito, Gustavo Tepedino30

    teve oportunidade de se pronunciar no sentido

    de que o Cdigo Civil e o Cdigo de Defesa do Consumidor no podem ser considerados

    diplomas contrastantes, seno complementares, no mbito da complexidade do ordenamento,

    instrumentos para a promoo da solidariedade e do personalismo constitucionais.

    Nesse ponto, aduzem Nelson Jnior e Nery31

    :

    Dilogo das fontes. O CC aplica-se s relaes de consumo, naquilo em que suas

    normas no conflituarem com as do CDC. possvel, por exemplo, aplicarem-se s

    relaes de consumo as clusulas gerais, notadamente as contidas no CC 421

    (funo social no contrato), no CC 422 (boa-f objetiva), no CC 187 (abuso de

    direito) etc. Quanto prescrio, nada obstante clara a regra clara do CDC 27 sobre

    a prescrio quinquenal, o STJ tem aplicado o prazo geral do CC (CC 205 dez anos; CC/1916 177 vinte anos) relao jurdica de consumo, nas situaes que

    especifica.

    Assim, entende-se que a incidncia do CDC no afasta a aplicao de outras normas

    especiais quanto ao objeto, tais como: planos de sade, mensalidades escolares, incorporaes

    imobilirias, advocacia, atividades bancrias, transporte areo, locao de imveis,

    consrcios, servios pblicos, que convivem harmonicamente com a lei consumerista.

    O Pretrio Excelso, no julgamento da Ao Direta de Inconstitucionalidade 259132

    ,

    em 7/6/2006, j reconhecera a importncia e necessidade atuais do dilogo das fontes,

    conforme se extrai de trecho do voto do Ministro Joaquim Barbosa:

    Entendo que o regramento do sistema financeiro e a disciplina do consumo e da

    defesa do consumidor podem perfeitamente conviver. Em muitos casos, o operador

    do direito ir deparar-se com fatos que conclamam a aplicao de normas tanto de

    uma como de outra rea do conhecimento jurdico. Assim ocorre em razo dos

    diferentes aspectos que uma mesma realidade apresenta, fazendo com que ela possa

    amoldar-se aos mbitos normativos de diferentes leis.

    30 TEPEDINO, Gustavo. Cdigo de Defesa do Consumidor, Cdigo Civil e complexidade do ordenamento. Rio de Janeiro:

    Padma, 2005 (Editorial).

    31 REVISTA JURDICA DO MINISTRIO PBLICO, Minas Gerais: DE JURE, v. 6, 26/5/2006. Disponvel em: <

    https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/295/dialogo%20das%20fontes_Gon%C3%A7alves.pdf?seque

    nce=1>. Acesso em 27 abr. 2014.

    32 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 2591/DF. Relator: Ministro Eros Grau. Disponvel em: <

    http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=188&dataPublicacaoDj=29/09/2006&incidente=19905

    17&codCapitulo=5&numMateria=31&codMateria=1>. Acesso em: 21 abr. 2014.

  • 18

    De igual forma, o Superior Tribunal de Justia (STJ) tem procurado solues

    hermenuticas para soluo de determinados conflitos entre as normas que, muito embora

    sejam denominadas com outro nomen iuris, nada mais so do que um verdadeiro dilogo das

    fontes. Neste particular, entre as ocasies em que se utilizou a expresso de forma expressa,

    tem-se a seguinte passagem do voto da Ministra Nancy Andrighi33

    :

    O mandamento constitucional de proteo do consumidor deve ser cumprido por

    todo o sistema, em dilogo das fontes, e no somente por intermdio do CDC. O

    denominado direito do consumidor tem muitas fontes legislativas, tantas quantas assegurem as diversas normas que compem o ordenamento jurdico. Ciente disso, o

    legislador inseriu o art. 7., caracterizando o CDC como uma codificao aberta, sem

    a pretenso de ser exaustiva, para sua interao com as demais regras do

    ordenamento que possam vir a beneficiar o consumidor. Em outras palavras, sempre

    que uma lei garantir algum direito para o consumidor, ela poder se somar ao

    microssistema do CDC, incorporando-se na tutela especial e tendo a mesma

    preferncia no trato da relao de consumo. (...) Nesse contexto, no o CDC que

    limita o Cdigo Civil, o Cdigo Civil que d base e ajuda o CDC, de modo que, se

    aquele for mais favorvel ao consumidor do que este, no ser a lei especial que

    limitar a aplicao da lei geral, mas sim dialogaro procura da realizao do

    mandamento constitucional de fazer prevalecer a proteo da parte hipossuficiente

    da relao de consumo. Na espcie, no cabe dvida que o prazo mais favorvel ao

    consumidor aquele do art. 117 do CC/1916, que fixa um prazo prescricional de 20

    (vinte) anos, devendo, tambm por esse motivo, prevalecer sobre o prazo de 5

    (cinco) anos previsto no art. 27 do CDC.

    Recorreu, ainda, a Ministra Nancy Andrighi34

    ao dilogo das fontes para aplicao

    simultnea da Carta Constitucional, do Cdigo de Defesa do Consumidor e do Cdigo Civil,

    de sorte a assegurar a proteo dos direitos da personalidade de uma criana de apenas 3 (trs)

    anos de idade. Confira-se trecho do decisum:

    As crianas, mesmo de mais tenra idade, fazem jus proteo irrestrita dos direitos

    da personalidade, entre os quais se inclui o direito integridade mental, assegurada a

    indenizao pelo dano moral decorrente de sua violao, nos termos dos arts. 5., X,

    in fine, da CF e 12, caput, do CC/2002. Mesmo quando o prejuzo impingido ao

    menor decorre de uma relao de consumo, o CDC, em seu art. 6., VI, assegura a

    efetiva reparao do dano, sem fazer qualquer distino quanto condio do

    consumidor, notadamente sua idade. Ao contrrio, o art. 7, da Lei 8.078/1990 fixa o

    chamado dilogo das fontes, segundo o qual sempre que uma lei garantir algum

    direito para o consumidor, ela poder se somar ao microssistema do CDC,

    33 BRASIL. Superior Tribunal de Justia. REsp n. 782.433/MG. Relatora: Ministra Ftima Nancy Andrighi. Disponvel em:

    . Acesso em: 21 abr. 2014.

    34 BRASIL. Superior Tribunal de Justia. REsp n. 1.037.759/RJ. Relatora: Ministra Ftima Nancy Andrighi. Disponvel em:

    . Acesso em: 21 abr. 2014.

  • 19

    incorporando-se na tutela especial e tendo a mesma preferncia no trato da relao

    de consumo. Ainda que tenha uma percepo diferente do mundo e uma maneira

    peculiar de se expressar, a criana no permanece alheia realidade que a cerca,

    estando igualmente sujeita a sentimentos como o medo, a aflio e a angstia. Na

    hiptese especfica dos autos, no cabe dvida que a recorrente, ento com apenas

    trs anos de idade, foi submetida a elevada carga emocional. Mesmo sem noo

    exata do que se passava, certo que percebeu e compartilhou da agonia de sua me,

    tentando, por diversas vezes, sem xito, conseguir que sua filha fosse atendida por

    clnica credenciada ao seu plano de sade, que reiteradas vezes se recusou a realizar

    os exames que ofereceriam um diagnstico preciso da doena que acometia a

    criana. Recurso especial provido.

    Na mesma linha de raciocnio, o STJ35

    j teve oportunidade de decidir que a

    legislao relativa incorporao imobiliria Lei n. 4.591/1964 , deve ser aplicada em

    consonncia com o Cdigo de Defesa do Consumidor, no que toca aos negcios relativos

    compra de imvel durante a construo, embora no faa, na maioria dos julgados, referncia

    expressa Teoria do Dilogo das Fontes, ora em estudo. Confira-se parte da ementa de um

    julgado:

    Em que pese o contrato de incorporao ser regido pela Lei 4.591/1964, admite-se,

    outrossim, a incidncia do Cdigo de Defesa do Consumidor, devendo ser

    observados os princpios gerais do direito que buscam a justia contratual, a

    equivalncia das prestaes e a boa-f objetiva e vedam o locupletamento ilcito.

    Em relao s questes relacionadas a plano de sade, outra no tem sido a posio

    do Tribunal da Cidadania, entendendo que ao lado da legislao especial Lei n. 9.656/1998

    , deve-se aplicar o Cdigo de Defesa do Consumidor.

    Destaca-se que o prprio enunciado de smula 302 do STJ, segundo o qual

    abusiva a clusula contratual de plano de sade que limita no tempo a internao hospitalar do

    segurado, baseou-se na redao do artigo 51, inciso IV da Lei n. 8.078/199036, in verbis:

    Art. 51. So nulas de pleno direito, entre outras, as clusulas contratuais relativas ao

    fornecimento de produtos e servios que:

    (...)

    IV - estabeleam obrigaes consideradas inquas, abusivas, que coloquem o

    consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatveis com a boa-f ou a

    equidade.

    35 BRASIL. Superior Tribunal de Justia. REsp n. 747.768/PR. Relator: Ministro Joo Otvio de Noronha. Disponvel em: <

    https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=6614214&num_registro=20050074

    6456&data=20091019&tipo=5&formato=PDF >. Acesso em: 21 abr. 2014.

    36 BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispe sobre a proteo do consumidor e d outras providncias.

    Disponvel em: . Acesso em 21 abr. 2014.

  • 20

    Em maio de 2004, o STJ editou o enunciado de smula 297, que reza que o Cdigo

    de Defesa do Consumidor aplicvel s instituies financeiras, o que indica a forte

    tendncia deste Tribunal em conciliar as normas relativas s atividades bancrias, de um

    modo geral, como, por exemplo, aquelas que estejam ligadas ao setor de financiamento

    habitacional (SFH), com as disposies do CDC.

    Apesar de a postura contempornea ser a de conciliar os diversos diplomas legais

    existentes, nas hipteses em que no for possvel encontrar uma interpretao harmnica entre

    eles, pensar-se- em conferir prevalncia a um deles.

    Questo relevante a ser abordada no que diz respeito a essa dificuldade de dilogo a

    autorizao de indenizao limitada constante no Cdigo Brasileiro de Aeronutica Lei n.

    7.565/1986 , e na Conveno de Varsvia, em que pese o princpio da indenizao integral

    inserto no bojo do Cdigo de Defesa do Consumidor (art. 6., VI; 24; 25; e 51, I), em que,

    aps inmeras discusses, o STJ terminou por dar prevalncia Lei n. 8.078/1990,

    considerando-se a previso constitucional de necessidade de defesa do consumidor (art. 5.,

    XXXII, CRFB/1988).

    Nesse mesmo enfoque, tem-se os servios de advocacia e a locao imobiliria.

    Quanto s relaes entre cliente e advogado, em que pese haja decises para todos os lados,

    infere-se que a tendncia maior da Corte Superior37

    no sentido de que no se aplica o

    Cdigo de Defesa do Consumidor a tais servios, seja porque incide norma especfica no

    caso a Lei n. 8.906/1994 , seja porque no se trata de atividade fornecida no mercado de

    consumo.

    Em relao locao predial urbana, o STJ manifesta-se pela inaplicabilidade do

    Cdigo de Defesa do Consumidor sob o argumento de existncia de lei especfica Lei n.

    37 BRASIL. Superior Tribunal de Justia. REsp 532.377/RJ. Relator: Ministro Csar Asfor Rocha. Disponvel em:

    . Acesso em: 21 abr. 2014.

  • 21

    8.245/1991 , em clara dissonncia com a linha do dilogo das fontes adotada em outras

    situaes. A esse propsito, recente deciso38

    , in verbis:

    DIREITO EMPRESARIAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM

    RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE LOCAO FIRMADO POR

    SOCIEDADES EMPRESRIAS. INAPLICABILIDADE DO CDC. 1. A

    jurisprudncia do STJ firme ao negar a aplicao das normas do CDC aos

    contratos de locao, uma vez que estes so regulados por lei prpria, a Lei n.

    8.245/1991. 2. No caso em questo, tem-se um contrato locatcio firmado por duas

    sociedades empresrias, cujo objeto era o aluguel de um espao que seria usado pela

    locatria para exerccio de sua atividade-fim - realizao de eventos. No h,

    definitivamente, como enquadrar tal contrato no conceito de relao de consumo. 3.

    A deciso agravada no interpretou clusula contratual nem reexaminou o conjunto

    ftico-probatrio dos autos, mas apenas reconheceu, apoiada em vrios precedentes

    do STJ, a tese jurdica de que o CDC no se aplica a contratos de locao. 4. Agravo

    regimental desprovido.

    Outra questo polmica e que, portanto, merece destaque diz respeito legalidade da

    suspenso de fornecimento de servios pblicos, notadamente energia eltrica e gua, face o

    inadimplemento do consumidor. De um lado, o Cdigo de Defesa do Consumidor, que trata

    da importncia da dignidade humana, cujo assento tambm constitucional; dos direitos

    existenciais; da continuidade dos servios essenciais; e da exigncia de que o consumidor no

    seja submetido a constrangimentos por ocasio da cobrana de dbitos.

    De outro lado, o art. 6., 3 da Lei n. 8.987/199539

    que prev, no se caracteriza

    como descontinuidade do servio a sua interrupo em situao de emergncia ou aps prvio

    aviso, quando: II - por inadimplemento do usurio, considerado o interesse da coletividade.

    Para o deslinde da controvrsia, no caso concreto, ser necessrio aferir se h ofensa

    dignidade da pessoa humana, no se baseando o critrio unicamente no fato de se tratar de

    consumidor pessoa jurdica ou fsica, considerando-se que, a depender da hiptese, o corte do

    fornecimento do servio a uma pessoa jurdica pode trazer graves consequncias, como, por

    exemplo, no caso de um hospital.

    38 BRASIL. Superior Tribunal de Justia. AgRg no AREsp 41.062/GO. Relator: Ministro Antonio Carlos Ferre ira. Disponvel

    em:. Acesso em: 21 abr. 2014.

    39 BRASIL. Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispe sobre o regime de concesso e permisso da prestao de servios

    pblicos previsto no art. 175 da Constituio Federal, e d outras providncias. Disponvel em:

    . Acesso em: 21 abr. 2014.

  • 22

    Outro argumento que o no pagamento ou atraso das contas relativas gua ou luz

    enseja seus prprios encargos, alm da possibilidade de inscrio do nome do devedor nos

    bancos de proteo ao crdito, tudo, de modo, a no ver permitido a frustrao do mnimo

    existencial. Assim, o dilogo das fontes, a partir da proteo constitucional dignidade da

    pessoa humana, autorizar a continuidade do servio - Lei n. 8.078/1990 -, ou a possibilidade

    do corte Lei n. 8.987/1995 -, quando no houver violao a este postulado constitucional.

    Outra questo controvertida a que surgiu com a edio da smula 194, STJ.

    Ainda sob a gide do Cdigo Civil de 1916, o STJ editou o retromencionado

    enunciado de smula, segundo o qual prescreve em vinte anos a ao para obter do

    construtor indenizao por defeitos da obra, sendo que, com o advento da legislao

    consumerista Lei n. 8.078/1990 , o art. 27 passou a regular que, em relao idntica

    pretenso reparatria, prescreve em cinco anos a pretenso reparao pelos danos causados

    por fato do produto ou do servio prevista na Seo II deste Captulo, iniciando-se a contagem

    do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.

    Como ponto de partida, deve-se ter em mente que o objetivo do enunciado de

    smula, ora em estudo, favorecer o consumidor com a norma de campo de aplicao

    material mais benfico, o que revela um autntico dilogo das fontes entre o Cdigo Civil de

    2002 e o Cdigo de Defesa do Consumidor. Nesse sentido, assevera a Dra. Cludia Lima

    Marques40

    :

    Observando-se o texto do art. 7 do CDC conclui-se que representa uma clusula de

    abertura uma interface com o sistema maior: os direitos dos consumidores podem

    estar em outras leis que e no s no CDC. Funcionalmente, ou pela teleologia do

    prprio CDC e da Constituio Federal h que se utilizar a norma mais favorvel

    aos direitos do consumidor. Sendo assim, parece-me que o NCC/2002 trar tambm

    novos direitos aos consumidores. Tambm suas clusulas gerais, de responsabilidade

    sem culpa pela atividade do risco (art. 927, par. n.), responsabilidade sem culpa das

    empresas empresrios individuais pelo fato do produto (art. 931), da reduo da

    prestao ou alterao da forma de execuo do contrato de mtuo por onerosidade

    excessiva (art. 480), de reduo da clusula penal (art. 413) podero complementar

    a aplicao do CDC ou mesmo super-la se forem mais favorveis aos

    40 REVISTA JURDICA DO MINISTRIO PBLICO, op. cit. p. 321.

  • 23

    consumidores (imagino, por exemplo, o caso de prescrio da ao ou de

    excludente especfica do CDC, que no esteja presente no sistema geral do

    NCC/2002 e uso, pois do NCC/2002 como lei mais favorvel.

    Dessa forma, o STJ adotou o entendimento mais favorvel ao consumidor, ao editar a

    smula 194, prevendo o prazo prescricional de 20 (vinte) anos para a ao reparatria, em

    claro abandono ao que dispe o art. 27, CDC. Trata-se, pois, de legtimo dilogo das fontes.

    Isso tambm se deve ao fato de que a Lei n. 8.078/1990 no uma lei geral nem uma lei

    especfica, mas sim uma lei principiolgica, com base na qual o prprio diploma legal admite

    a coordenao de outras fontes legislativas.

    Nesse diapaso, acertadamente, a Dra. Cludia Lima Marques41

    sustenta que o

    dilogo entre o Cdigo Civil e o Cdigo de Defesa do Consumidor um dilogo de duas vias,

    onde a transposio entre si das conquistas que um e outro diploma alcanaram no sistema s

    faz fortalecer a finalidade para a qual o microssistema foi concebido.

    Outro ponto que merece especial ateno nessa discusso a adoo da Teoria da

    Impreviso no mbito das relaes de consumo.

    A Teoria da Impreviso tem aplicao quando uma situao nova e extraordinria

    surge durante a vigncia do contrato, colocando uma das partes em extrema dificuldade que,

    se conhecida a possibilidade de sua ocorrncia antes da celebrao do pacto, no teria levado

    a efeito. O amparo legal dessa teoria est nos art. 478 e 317, ambos do Cdigo Civil.

    Ou seja, a reviso dos contratos s encontra guarida nos casos em que o fato ocorrido

    foge totalmente esfera de previsibilidade, com o consequente abrandamento do princpio

    pacta sunt servanda que, em linhas gerais, quer significar que o contrato a lei entres as

    partes. Some-se a isso, a necessidade de que tal fato desencadeie uma situao de

    desequilbrio econmico entre os contratantes.

    41 Ibid., p. 322.

  • 24

    A esse propsito, importante transcrever as lies de Silvio Venosa42

    :

    O princpio da obrigatoriedade dos contratos no pode ser violado perante

    dificuldades comezinhas de cumprimento, por fatores externos perfeitamente

    previsveis. O contrato visa sempre uma situao futura, um porvir. Os contratantes,

    ao estabelecerem o negcio, tm em mira justamente a previso de situaes futuras.

    A impreviso que pode autorizar uma interveno judicial na vontade contratual

    somente a que refoge totalmente s possibilidades de previsibilidade.

    No que toca ao Cdigo de Defesa do Consumidor, diz-se que a Teoria de Impreviso

    est inserta no art. 6., inciso V, Lei n. 8.078/1990, a saber, So direitos do consumidor: V

    a modificao das clusulas contratuais que estabeleam prestaes desproporcionais ou sua

    reviso em razo de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.

    Neste particular, h quem entenda que a exigncia da imprevisibilidade dos

    acontecimentos dispensada no mbito das relaes consumeristas. Data venia, no esse o

    melhor entendimento a ser adotado. Isso porque se infere da leitura do dispositivo legal

    retrotranscrito que a adoo da teoria, ora em anlise, ocorreu na segunda parte do artigo, na

    qual a exigncia da ocorrncia de fatos supervenientes expressa.

    Nesse sentido, Arruda Alvim43

    sintetiza:

    [...] conhecida como teoria da impreviso (artigo 6, V, segunda fase), ou ainda, no

    brocardo latino, denominada clusula rebus sic stantibus, que a supervenincia de

    onerosidade excessiva, vindo a sobrecarregar o consumidor, decorrente de

    acontecimentos sucessivos contratao. Insusceptveis de haverem sido previstos.

    No se olvide, por oportuno, que o legislador ptrio, com o advento do Cdigo de

    Defesa do Consumidor, acolheu a Teoria da Impreviso, com o escopo de atingir uma maior

    equidade entre os contratantes, de sorte a evitar desequilbrios, injustias sociais e alcanar o

    almejado bem comum.

    Por outro lado, no obstante os casos concretos apresentados e comentados nesse

    trabalho cientfico, no custa lembrar que aqueles que so contrrios adoo da Teoria do

    42 VENOSA, Silvio Slvio. Direito Civil. 3. ed. So Paulo: Atlas, 2003, v. 2, p. 462.

    43 ALVIM, Arruda apud CAEIRO, Marina Vanessa Gomes. O Cdigo de Defesa do Consumidor e a teoria da impreviso.

    Disponvel em: . Acesso

    em: 22 abr. 2014.

  • 25

    Dilogo das Fontes, argumentam que a aplicao simultnea e coordenada do Cdigo de

    Defesa do Consumidor, do Cdigo Civil e da legislao especial confere ao magistrado o

    poder de criar o Direito, o que levaria a sociedade a um estado de absoluta insegurana

    jurdica.

    Em sentido diametralmente oposto, tem-se que, apesar de essa tese ampliar, de certa

    forma, a margem da atividade jurisdicional, a exigncia constitucional de motivao das

    decises judiciais (art. 93, inciso IX, CRFB/1988), com a exposio do raciocnio jurdico

    percorrido para a tomada dessa ou daquela deciso, coloca uma p de cal sobre o receio do

    qual lana mo a corrente contrria adoo da Teoria do Dilogo das Fontes pelo

    ordenamento jurdico brasileiro.

    CONCLUSO

    Em tempos ps-modernos, o operador do Direito encontra srias dificuldades para

    interpretar o ordenamento jurdico, considerando-se as plrimas fontes legislativas, de modo

    que o dilogo das fontes se prope justamente a auxili-lo na busca por uma interpretao

    harmnica e coordenada das normas que informam a unidade do sistema.

    Dessa forma, ao invs de simplesmente retirar do sistema leis que, em tese, no

    podem conviver por tratarem de temas idnticos de forma diversa, busca-se a convivncia de

    tais paradigmas, como preconiza o Cdigo de Defesa do Consumidor, em seu art. 7., ao

    viabilizar a aplicao de outros diplomas legais s relaes de consumo, desde que guardem

    relao com o esprito de proteo da lei e com a ordem principiolgica do microssistema.

    Destaca-se, assim, que a Teoria do Dilogo das Fontes no se confunde com os

    critrios clssicos de soluo das antinomias jurdicas, em especial, no que toca s relaes

    consumeristas, na medida em que o prprio estatuto protetivo autoriza a aplicao de outras

    normas quando mais benficas ao consumidor.

  • 26

    Ademais, por se tratar de um tema relativamente novo, ainda h muito a ser

    desenvolvido, no sendo cedo, entretanto, para afirmar que a jurisprudncia ptria se inclina

    tendncia de conjugao das normas, ao invs de exclu-las, de sorte a viabilizar a

    coexistncia delas no sistema, tudo em prol de melhor defender o consumidor.

    Por fim, no custa lembrar que a melhor soluo para o caso concreto dever ser

    aquela na qual se considere o ncleo de proteo que reveste e caracteriza o bem jurdico em

    conflito, sempre com amparo nos mandamentos constitucionais.

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