Pastoral da juventude

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32 SALVADOR DOMINGO 29/3/2015 COTIDIANO VITOR PAMPLONA [email protected] «No fundo, o ateísmo racionalista parece com a militância política: limita» Pastoral da juventude I rmãos, em verdade vos digo: muito antes de dar em praia, al- moço em família, futebol ou revista de jornal, o domingo era um dia santo. Ao menos até a era conhecida como anos 90, antes de pedir cachimbo o domingo obrigava milhões a acordar cedo, soltar um muxoxo e ir esquentar um banco de igreja. Nin- guém me contou. Eu estava lá. E ainda sinto o gosto da hóstia. F elizmente, prevaleceu o cheiro da galinha cozida de vovó. Com outra avó recitando salmos na Igreja Batista, cheguei a ser mantido herege para evitar rusgas eclesiásticas. Deus interveio. E acabei batizado depois de um câncer de útero decidir a parada a favor do Vaticano. Contragolpe armado, aos onze anos me converti ao budismo para não mais ir à igreja. Prevendo que eu jamais meditaria um segundo, minha mãe não levou a sério e ofereceu uma vitória de Pirro: me liberava da missa das sete da manhã se eu fosse à das cinco da tarde. Não dava sempre certo apelar à força maior do futebol na televisão. E nquanto eu capitulava, no altar um padre discursava sobre justiça social, num dos últimos suspiros da teologia da li- bertação. Isso atraía à igreja gente que não dava a mínima para Jesus, Maria ou José. A ideologia arregimenta, mas a po- lítica depende de um caldeirão em ebulição. E evapora. A religião é um enorme lago, onde sopra um vento cortante que vem de outro mundo. Por isso, em meio ao anticlericalismo, a beleza da liturgia me encanta. Tendo na estante o que Christopher Hitchens escreveu em Deus não é grande e Sam Harris em A morte da fé, não julgo que os crentes vivam num tipo de hipnose. N o fundo, o ateísmo racionalista parece com a militância política: limita. No pequeno ensaio travestido de biogra- fia a que Paulo Leminski deu o genial título de Jesus a.C., uma profecia fala a fiéis e infiéis: “Mal-aventurados os que se rendem a verdades absolutas”. Ao buscar a semente do cristia- nismo entre beduínos, pastores e lunáticos do fim do mundo, o livro deságua na linguagem cifrada das parábolas. Leminski não vê em Jesus só um profeta, mas um superpoeta que fez uma re- volução com palavras. Você pode odiar ir à igreja, não crer em Deus e ainda assim se comover com um filho de marceneiro que fulmina a realidade aparente e sugere a existência de um uni- verso secreto quando diz: “Olhai os lírios do campo. Não traba- lham nem tecem. E olha só como crescem”. «

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32 SALVADOR DOMINGO 29/3/2015

COTIDIANO VITOR [email protected]

«No fundo, o ateísmoracionalista parece com amilitância política: limita»

Pastoral da juventude

Irmãos, em verdade vos digo:muito antes de dar empraia, al-

moço em família, futebol ou revista de jornal, o domingo era

um dia santo. Ao menos até a era conhecida como anos 90,

antes de pedir cachimbo o domingo obrigava milhões a acordar

cedo, soltar um muxoxo e ir esquentar um banco de igreja. Nin-

guémme contou. Eu estava lá. E ainda sinto o gosto da hóstia.

Felizmente, prevaleceu o cheiro da galinha cozida de vovó.

Comoutra avó recitando salmos na Igreja Batista, cheguei

a sermantidoheregeparaevitar rusgas eclesiásticas.Deus

interveio. E acabei batizado depois de um câncer de útero decidir

aparadaafavordoVaticano.Contragolpearmado,aosonzeanos

me converti ao budismo para nãomais ir à igreja. Prevendo que

eu jamaismeditaria umsegundo,minhamãenão levoua sério e

ofereceu uma vitória de Pirro: me liberava da missa das sete da

manhã se eu fosse à das cinco da tarde. Não dava sempre certo

apelar à força maior do futebol na televisão.

Enquantoeu capitulava, noaltar umpadrediscursava sobre

justiça social, num dos últimos suspiros da teologia da li-

bertação. Issoatraía à igreja gentequenãodavaamínima

para Jesus, Maria ou José. A ideologia arregimenta, mas a po-

líticadependedeumcaldeirãoemebulição. Eevapora.A religião

é um enorme lago, onde sopra um vento cortante que vem de

outromundo. Por isso, emmeio ao anticlericalismo, a beleza da

liturgiameencanta. TendonaestanteoqueChristopherHitchens

escreveu em Deus não é grande e Sam Harris em Amorte da fé,

não julgo que os crentes vivam num tipo de hipnose.

No fundo, o ateísmo racionalista parece com a militância

política: limita.Nopequenoensaio travestidodebiogra-

fia aquePaulo Leminski deuogenial título de Jesus a.C.,

uma profecia fala a fiéis e infiéis: “Mal-aventurados os que se

rendem a verdades absolutas”. Ao buscar a semente do cristia-

nismo entre beduínos, pastores e lunáticos do fim do mundo, o

livro deságua na linguagem cifrada das parábolas. Leminski não

vê em Jesus só um profeta, mas um superpoeta que fez uma re-

volução com palavras. Você pode odiar ir à igreja, não crer em

Deus e ainda assim se comover com um filho demarceneiro que

fulmina a realidade aparente e sugere a existência de um uni-

verso secreto quando diz: “Olhai os lírios do campo. Não traba-

lham nem tecem. E olha só como crescem”. «