PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas
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PASSOS, José Luiz. Romance com pessoas: a imaginação em Machado de
Assis.
"a justa visão do outro desmantelada pelo império do autoengano" p. 31
"A introspecção imobiliza o olhar, vitrifica-o." p. 39
"enquanto no primeiro Machado a inconstância é uma falta moral que a
narrativa pune pelo isolamento ou pela ironia, na sua segunda fase tal
característica passa a dominar a composição do enredo e o caráter do próprio
narrador, oferecendo-lhe método e vantagem" p. 49
"incapaz de formar uma família pela sua humilhante inconstância e pela
debilidade da sua força de vontade" p. 51
"Os amantes em Machado são de dois tipos: há aqueles que olham para fora
do eu, buscando consolar-se da solidão, da vergonha ou de ambições
privadas; e há os que tomam o amor como método de mergulho dentro de si.
Para estes, o autoconhecimento, mesmo iludido, é um modo de estar removido
do mundo, cativando ou acusando seus pares pela memória ou introspecção.
Esse é o caso dos heróis de cepa desalentada - não raro, quase trágica (...).
Buscam a redenção dentro do eu, armando ou refazendo acordos com o que
foram." p. 54
"Há, por outro lado, um tipo de amor que marca protagonistas de tendência ou
intenção cômica, na sua determinação em integrar-se ao mundo. Esses olham
para adiante. são representados, em geral, pelos personagens femininos ou
heroínas, para quem certa racionalização do amor lhes oferece a possibilidade
de superar seu passado." p. 54
"o amor em Machado possui uma disjunção ao mesmo tempo cronológica e de
gênero" p. 54
Se toda literatura machadiana desenvolve "o tema do contrato do indivíduo
consigo mesmo (...) como os heróis se imaginam e se enfrentam às limitações
da própria consciência que têm de si" p. 59, a forma só se desenvolve
completamente quando a narração nega ao leitor a informação precisa de
quem o personagem é, deixando-nos apenas com o que ele pensa ser. Os
heróis de Machado enfrentam os "três impasses morais clássicos: conhecer o
outro, conhcer-se e deixar-se conhecer" p. 59
"me parece estar no cerne da relação entre personagem e pessoa: a
capacidade essencial que atribuímos a uma pessoa moral de dar-se conta de
si, assumir seus próprios desígnios e imaginar-se diferente" p. 64
A segunda exigência filosófica do conceito da pessoa humana elaborado pelo
século XX é de quem pessoa é um ser racional (primeira exigência) capaz de
assumir diversos estados de consciência, o que faz dota suas ações de
intencionalidade p. 65
"A dissimilaridade é a raiz do conceito da pessoa humana" e se realiza na
"aptidão do protagonista para imaginar-se desigual a si mesmo" p.66
"A ação social não é equivalente a toda e qualquer espécie de ação humana; é
uma atitude orientada pela expectativa de atuação dos demais." p. 75
"na narrativa a 'ação' tem pelo menos dois níveis de significado. Primeiramente,
|aquele que se refere às próprias atitudes dos personagens; aquilo que eles
realizam em determinado instante (...)" p. 76-77 O segundo nivel é o da
organização dessas decisões pontuais pelo enredo. Isso dota as ações de
sentido p. 77
Enquanto nos dois primeiros romances o desenlace negativo enforma uma
condenação moral à dissimulação, em A mão e a luva e Iaiá Garcia “o cálculo e
o caráter dissimulado das heroínas são responsáveis pelo estabelecimento de
famílias estáveis, transformando o desenlace num momento de conciliação
entre motivações românticas e necessidades práticas” p. 83. Isso sinaliza um
acolhimento da dissimulação como componente necessário para a ordem
social.
“A dissimulação (...) é mais do que mero fingimento; é uma habilidade, um
modo particular de perceber e organizar motivações.” P. 84
“a conversa dos adultos denuncia o adolescente a si mesmo, oferecendo-lhe
uma visão mais complexa de seu eu. Ambos, Iaiá e Bentinho, amadurecem
pelos olhos e pela boca dos outros.” P. 89 Há nesse motivo a triangulação de
olhares de que trata ROCHA que permite o conhecimento, pois há uma
confirmação objetiva de uma percepção. Algo que os personagens apenas
intuíam, num nível pré-consciente, é lhes apresentado em nível consciente e
alarga sua capacidade de ver. Esta triangulação repete-se na velhice de Bento,
que se descobre Casmurro na fala do jovem.
“cisma como separação da coletividade, divagação perquiridora, prevenção
contra o outro e receio da má-fé.” p. 90
Iaiá Garcia “é a primeira protagonista de Machado a desenvolver agudeza
moral e capacidade de fingimento ― portanto, de multiplicação do eu ―
apenas observando a possibilidade da malícia alheia.” P. 90
“Machado propõe uma variante importante dentro da lógica que equaciona, em
Alencar e na sua própria primeira fase, a perspicácia das heroínas às suas
humilhações passadas e presentes. E tal variante é representada pelo fato de
que o desenvolvimento da jovem Iaiá Garcia não depende dos percalços de
uma experiência social instável, variada, ou mesmo desconfortável.” P. 104
Parafraseando Passos (p. 105), se as heroínas da primeira fase buscam no
controle racional de si e dos outros a forma de estabilizar as relações sociais;
os heróis da segunda fase denunciam a falha no projeto, pois a razão não lhes
garante nem mesmo a sanidade.
“Esses protagonistas almejam saber o que motiva seus pares, ao mesmo
tempo que se esforçam por mascarar as próprias intenções.” P. 113
Mascarar = ocultar (como o crânio em Os embaixadores)
nos termos de sua própria linguagem, na qual somos expostos a
informações e percepções que nem sempre são claras para aquele
mesmo indivíduo.” P. 126
Passos (p. 107) crê que a crítica de Machado a O primo Basílio baseia-se no
critério da capacidade de a ficção induzir a uma experiência cognitiva. Essa
proposta consideraria que “o mérito ou demérito moral e a indução do bem não
são critérios nem necessários nem suficientes para o sucesso de um romance
enquanto obra de arte” (Id., ibid.). Já Rocha discorda desse posicionamento.
Passos (p. 110) também afirma que o argumento de Machado contra O primo
Basílio fundamenta-se na oposição entre emoções morais e sensações físicas.
Acreditamos que a questão seja menos fundamentada na ideia de oposição e
mais na ideia de hierarquização. Seguindo raciocínio de Passos, mas
ampliando e corrigindo algumas noções que nos parecem problemáticas,
poder-se-ia afirmar haver quatro tipos de estados psicológicos humanos, sendo
que três seriam provocados por emoções e um por sensações físicas. Entre
esses estados, parece haver uma hierarquia cuja concepção poderia se fundar
tanto em noções ético-culturais como em noções científicas. Os estados das
sensações físicas, como o sofrimento, a satisfação, a ansiedade e a volúpia,
são originados pela relação do homem com o corpo. Tanto numa organização
ético-cultural como científica do mundo, esses estados corresponderiam à base
da hierarquia, já que são experiências que os seres humanos compartilham
com as formas menos evoluídas de vida animal. Por sua vez, os estados
provocados por emoções podem ser diferenciados pelo objeto a quem se
direcionam. Há estados psíquicos provocados por emoções que têm como
objeto um ser definido fora do sujeito: amor, ódio, piedade e medo são algumas
dessas emoções. Por essa característica, podemos chamá-los de estados
psíquicos empáticos (envolvendo, nessa noção, tanto as emoções simpáticas
como antipáticas). Por também serem experiências que seres humanos
compartilham com algumas espécies animais, principalmente entre os
mamíferos, os estados psíquicos empáticos estariam acima dos estados
provocados pelas sensações, mas na camada inferior daqueles provocados por
emoções.
Restam dois estados psíquicos emocionais a se descrever. Um deles
corresponde àquele conceituado por Passos (p. 110 - 111) como sendo
provocado por emoções de autoexame. O outro, associamos a emoções
transcendentes. O primeiro tem como objeto o próprio eu; o segundo não tem
um objeto específico. Passos elenca como exemplos do primeiro a vergonha, a
culpa, o remorso e o arrependimento ― todas emoções de cunho reprovativo.
Acrescentamos à lista a vaidade, o orgulho e a arrogância ― emoções
fundadas na autoaprovação. Exemplificamos o segundo com a felicidade, a
melancolia e a serenidade, emoções que não se dirigem a um objeto nem são
necessariamente provocadas por um estímulo externo específico.
Identificados esses dois estados como hierarquizá-los? Se
fundamentarmos essa tarefa tomando como base os valores ético-culturais da
sociedade judaico-cristã Ocidental, possivelmente as o estado psíquico
provocado pelas emoções transcendentes seria considerado superior, já que
tais valores reprovam o egotismo e a mesquinharia envolvidos nas emoções de
autoexame. Não obstante, se fundamentarmos essa tarefa tomando como base
critérios científicos, a situação parece inverter-se. As emoções de autoexame
envolvem capacidades cognitivas complexas que, mesmo entre humanos são
aprendidas. Enquanto crianças muito pequenas são capazes de entrar em
estado de serenidade ou de tristeza, apenas a partir de certas etapas do
desenvolvimento são capazes de vivenciar a vaidade ou a culpa. Isso porque
as emoções de autoexame envolvem a capacidade de se identificar como
indivíduo entre todos os outros, analisar-se, comparar-se com o outro, avaliar
as expectativas do outro sobre si, revisitar ações passadas e projetar sucessos
ou insucessos futuros. Envolvem, por isso, a capacidade de assumir
responsabilidade sobre sucessos e insucessos. Estão, portanto, ligadas à
autorreflexividade que a filosofia romântica tanto explorou.
Numa e noutra forma de hierarquização, as emoções de autoexame que
tematizam a obra machadiana ficariam acima das sensações físicas e das
emoções empáticas que, segundo sua crítica, movem a trama de Eça de
Queirós. Não porque os estados psíquicos produzidos pelas emoções de
autoexame sejam moralmente superiores aos outros, mas por serem
experiências específicas da vivência do humano. Considerando as ideias e
produção machadianas em conjunto, e as ideias e produções de Eça (no
momento da escritura da crítica do futuro autor de Memórias Póstumas) e do
movimento de que na literatura lusófona são representantes, arriscamos
afirmar que os estados emocionais que fundamentam esses autores
constituem as margens opostas desse sistema hierárquico. No entanto, é
preciso que fique claro, isso não determina a superioridade do cabedal literário
de um sobre o do outro. Assinala, apenas, o grau de disparidade das visões de
mundo e de projeto artístico desses contemporâneos.
“O crime do padre Amaro e O primo Basílio possuem um enredo análogo:
tratam das consequências da chegada de um jovem solteiro a uma
comunidade (...) cujos valores são subvertidos pela irresponsabilidade moral
desse homem de fora.” P. 108
“não são punidos, nem exibem nenhum sinal de arrependimento ou remorso” p.
108
Machado “requeria um sentido de propósito para o ato, um contexto no qual
escolhas fizessem sentido e expressassem um encaixe entre crenças,
intenções e ações” p. 114
“a ficção realista nasce do esforço do romantismo para constituir universos
complexos e detalhados do ponto de vista histórico” p. 117
Machado dessemelhante de si (fases)
Passos (p. 119) recordando a função pedagógica das representações visuais
no ensino às crianças dos objetos e seres que compõem o mundo, aventa a
possibilidade de as representações verbais ― destacadamente o romance ―
ter socialmente funcionalidade análoga: “identificar ou nomear emoções,
perspectivas e mesmo experiências antes desconhecidas”. Essa funcionalidade
não faria, necessariamente, dos leitores seres humanos nem mais nem menos
éticos, nem mais nem menos empáticos com outras pessoas. Mas faria dos
seres humanos melhores leitores de outras pessoas: as de papel e as de carne
e osso (e entre elas, o próprio sujeito). E isso, concordamos com Passos (p.
120) já não é pouco.
“no romance acompanhamos o desenvolvimento de vidas com uma minúcia
impossível a qualquer outro gênero. (...) às vezes dentro de sua cabeça, nos
termos de sua própria linguagem, na qual somos expostos a informações e
percepções que nem sempre são claras para aquele mesmo indivíduo.” P. 126
A questão da semelhança e da dessemelhança consigo está diretamente
ligada à ideia de herança, de hereditariedade, de unicidade, virtude e beleza.
Passos (p. 129) lembra que para a tradição cristã, o homem alienado da
santidade, isto é, a virtude, beleza do espírito, aliena-se de Deus, torna-se
dessemelhante daquele que o criou à sua imagem e semelhança; torna-se
dessemelhante do que realmente é. A relação de semelhança criador-criatura
se estende, por sua vez, à relação de semelhança entre pais e filhos, a qual
muitas vezes fundamenta não só o reconhecimento da hereditariedade como o
do direito de herança.
Dom C-> superposição de tempos (como o crânio sobre o retrato?)
“é diante do que fomos ou do que fizemos que nos medimos aos olhos dos
outros” p. 131
“o sujeito se conhece apenas quando capaz de se rever” p. 132
Discordamos da leitura de Passos (135) de que a dissimulação é herdada da
primeira fase, mas que é na segunda que se acrescenta no texto “uma
explicação que envolva o leitor num juízo sobre os motivos do narrador”.
Acreditamos ser justamente o contrário, a elipse dessa explicação um dos
fundamentos das novas feições da obra machadiana a partir de 1880, como,
inadvertidamente, o próprio Passos (p. 138 e p. 141) demonstra ao analisar a
retirada da epígrafe da primeira versão de Memórias Póstumas, a do folhetim e
ao concluir que Machado substitui o comportamento irônico pela narração
irônica.
“A dissimulação é uma estratégia de elaboração de algo dessemelhante | a si
mesmo.” P. 137 – 138
No mundo inaugurado por MPBC “a falsidade, a mentira e o uso da máscara
são exigências da vida social em geral” p. 150
“A construção irônica da ação, que caracteriza a narração machadiana, pode
ser tomada em dois níveis: ao nível estilístico, como forma narrativa inovadora;
e ao nível histórico ou político, como desmontagem de discursos e perspectivas
comuns ao ideário cientificista que marcava os projetos de modernização
nacional no final do século XIX.” P. 154
Até Sílvio Romero recorre a termos cognatos na sua controvertida análise da
escrita machadiana, denominando-a por fotografia (1992 p 122)
“A autobiografia supõe o interesse ostensivo do sujeito na sua própria pessoa:
um interesse em sondar-se ou publicar-se com fins à nomeada ou à lição. A
exemplariedade, pela virtude ou pelo vício, motiva, na grande maioria dos
casos, o gesto da rememoração pública.” P. 183 Gênero problemático – não é
exemplariedade pelo vício, pois não é biografia de Capitu. Não é pela virtude,
pois o esposo não mostra a superação do caso, pela indiferença ou perdão.
1 fase: eventos que duram de 1 a 10 anos “apontavam em direção à unidade
da ação no tempo e à integração das protagonistas à sociedade” p. 189
“alegorias e comparações com outras obras de arte como modo efetivo,
embora às vezes enganoso, de solucionar o enigma da falta de unidade em
suas próprias vidas.” P. 189
“A melhor página não é só a que se relê, é também a que a gente completa de
si para si.” P. 198 e 199
Machado de Assis – primeira edição de Quincas Borba
A partir de MPBC “Há um método para explicar os mecanismos da escolha
humana e a formação do caráter; o recurso a mundos imaginados ― com
frequência expresso por digressões alegóricas ― é o principal deles.” P. 203
“Certos seres humanos não podem ou não devem ser considerados pessoas
plenas: crianças e deficientes mentais, por exemplo, não podem responder aos
mesmos | critérios de atribuição de responsabilidade que usamos para mim e
para você (...). Há também, por outro lado, personagens que não forma
concebidos como pessoas: penso nos protagonistas do naturalismo.” P. 206 –
207
“a vida interior robusta é prerrogativa de sujeitos a quem podemos chamar de
pessoas. Ora, nem sempre o romance tem por objeto a vida interior.” P. 208
Dom Casmurro:
“auge da produção criativa de Machado” p. 210
“contado pelo mais sofisticado e inteligente dos narradores machadianos” p.
210
“escrito com vaga, ao contrário dos outros, escritos a passo de folhetim” p . 210
“composto quase integralmente no ineditismo” “Uma versão inicial, contendo
fragmentos dos capítulos 3, 4, 5 e 7, apareceu sob o título ‘Um agregado
(capítulo de um livro inédito) no jornal República, no número do dia 15 de
novembro de 1896” ”p. 211
“O final da redação do romance coincidiu com a organização do volume
Páginas recolhidas, saído poucos meses antes” p. 214 “Apesar de nem todos
os textos terem sido escritos por volta de 1899, sua seleção e a necessidade
de revisá-los para publicação em livro são suficientes para que se possa
argumentar em favor de uma ativa coincidência ― senão de uma influência ―
entre alguns desses contos e os temas afins explorados em Dom Casmurro.” P
214
“O caso da vara” = seminarista fugitivos = relações de favor e dependência
“O dicionário”, “Um erradio”, “Eterno!” = triangulação amorosa
“Missa do galo” – 1894
São Bernardo, Avalovara e A hora da estrela “comungam da mesma
característica nascida com o narrador machadiano Bento Santiago: a memória
de ficção restaura o narrador ― ou o protagonista ― no confronto com as
próprias limitações, que expõem sua consciência moral pela fidúcia num
sentimento gorado, geralmente associado a uma mulher-enigma.
Curiosamente, em quase todas essas narrativas a autoanálise do herói ou o
escrutínio de suas motivações chega a ponto de invocar metáforas do sagrado
e uma reflexão contumaz sobre a relação entre benevolência e malícia, entre
viver e narrar-se” p. 224
Otelo foi muito popular no teatro brasileiro na primeira metade do século XIX. O
texto base foi a versão francesa, de leitura neoclássica de Jean-Françoise
Ducis. No entanto, essa versão, lida pela companhia de João Caetano, re-
romantizou o personagem, higienizado e embranquecido pelo adaptador
francês, devolvendo-lhe a energia emocional e a cor da pele (PASSOS, p.
232). O drama shakespeariano inaugurou um ciclo de peças sobre o ciúme,
responsável por fomentar “o primeiro drama romântico de qualidade ― a peça
Leonor de Mendonça, de Gonçalves Dias” (PASSOS, p. 233). Essa peça
baseia-se num episódio histórico português, no qual o duque de Bragança
acusara e condenara a esposa por adultério com um serviçal, punindo-a com a
morte. Analisando o texto, Passos (p. 233 – 234) observa que ele contém uma
postura crítica bastante avançada contra a opressão feminina e levanta
interessantes questões a respeito da origem da vilania na alma humana, já que
um diálogo entre a duquesa e o duque opõe o aprendizado social e o inatismo
de comportamentos e de valores éticos. Por esse motivo, a peça de Gonçalves
Dias seria “o primeiro momento em que a literatura brasileira medita, através do
tema do adultério, sobre a relação entre malícia e sociedade na composição da
motivação dos personagens” (PASSOS, p. 235).
“Gonçalves Dias dissolve Iago no ambiente social que envolvia os
protagonistas, tornando a heroína uma vítima de relações das quais ela não
pode escapar. A condenação de Leonor não pode ser explicada
exclusivamente pelo ciúme cego do duque, já que o casamento não estava
baseado no amor entre ambos. A duquesa foi vítima da sua posição” P. 235
Destacando o papel do teatro na formação literária de Machado, Passos (p.
241) chama atenção para o papel do teatro realista, movimento que se
desenvolveu muito antes da literatura realista livresca, antecipando
características do realismo literário em cerca de vinte e cinco anos. Esse
movimento estético predominou na cena carioca entre 1855 e 1865, sendo
representado pelo Teatro Ginásio Dramático, para o qual Machado contribuiu
com a tradução de Suplício de uma mulher1, peça de Dumas Filho encenada
em 1865. A proposta realista debateu-se contra o teatro romântico,
representado pela companhia de João Caetano, e contra a comédia musical.
Do seu antecessor rejeitou a fantasia, a ambientação histórica e a teatralidade
exagerada, propondo a representação da sociedade contemporânea e da
família burguesa não só como tema, mas como forma, inclusive na técnica de
atuação (p. 237 – 238). Essa atualização temática foi responsável por um
descompasso no projeto do teatro realista que pode ter sido responsável pelo
seu curto fôlego: a pretensão de correspondência entre tema e realidade não
se realizava no Brasil, já que a família burguesa “autônoma, monogâmica,
formada por profissionais liberais, caracterizada por uma ética de conduta
racional e organizada pelos princípios de igualdade, liberdade e fraternidade”
não correspondia à família “patriarcal, semirrural, baseada no princípio de
apadrinhamento e organizada, em sua economia e intimidade pelo trabalho
escravo” (PASSOS, p. 240).
“Por causa de sua ansiedade em representar situações racionais e
transparentes, o realismo no teatro procurou punir o vício e condenar a
dissimulação. A capacidade de enganar (...), de fingir-se (...), era um dos usos
impuros e antiéticos da razão” P. 241
Machado, então, teve que rever sua própria formação. Ele foi mais realista
que o realismo que o formou, pois representou a família brasileira tal
como era, mas só atingiu seu gênio quando foi menos realista que esse
realismo, quando passou a questionar a razão.
1 Passos (p. 239) destaca similitude entre o enredo dessa peça e o de Dom Casmurro: esposa e o melhor amigo da família cometem adultério e concebem uma criança que o marido traído crê ser sua filha. Descoberta a aleivosia, o marido pune os amantes expondo-os à opinião pública como exemplos da ingratidão e da infâmia.
Treino para o romance = tradução Os trabalhadores do mar (Hugo, 1866) e
Oliver Twist (1870)
De Os trabalhadores do mar, parece que Machado reteve principalmente o
“repertório de imagens associadas ao motivo do vilão” (p. 251). No entanto,
como o romance foi concebido imediatamente após a publicação de seu ensaio
sobre Shakespeare, pode ter sido o francês também imediatamente afetado
por imagens do dramaturgo inglês, que associa a aleivosia à vaga. Segundo
Passos (p. 253) Machado conhecia a imagem antes de trabalhar com o texto
de Hugo, pois, orientado pela tradução francesa, emprega na crônica
Conversas com mulheres a expressão “Pérfida como a onda”, declarada por
Otelo após a morte de Desdêmona. A crônica foi publicada quase um ano
antes da tradução do romance francês.
O tempo, nos romances machadianos, é, em si, um deslocamento sutil: nem é
o tempo do passado histórico, nem é o tempo contemporâneo do escritor e de
seu público imediato.
Nos romances, as referências literárias são usadas por Machado “como modo
de aprofundar, por analogia e contraste, as motivações e o autoconhecimento
dos protagonistas (...) como usar a intertextualidade como maneira de imaginar
mundos em que a inocência não exclui a máscara” p. 260
Enquanto os romances da primeira fase de Machado têm um recorte temporal
mais estreito, os romances da segunda fase, como lembra Passos (p. 270)
ampliam tanto esse tempo narrativo como a função do passado. Na primeira
fase, o passado criou tensões que são resolvidas no presente. Na segunda
fase, o passado criou tensões que foram resolvidas no passado, mas cuja
resolução permaneceu insatisfatória, fazendo com que o tempo ido permaneça
vivo na impotência do protagonista diante de suas faltas.
Segundo Passos (278) a tradução de Shakespeare constante na biblioteca de
Machado é de Émile Montégut, considerada a mais acadêmica da época, pois
trazia muitas informações sobre o original e os caminhos da tradução. No caso
de Otelo, Montégut esclareceu as alterações por Shakespeare feitas no texto
do poeta italiano Giovanni Battista Giraldi, o Cíntio. Passos destaca duas
alterações shakespearianas: o deslocamento da revelação da malícia de Iago
para o início da diegese e a introdução do pai de Desdêmona. Esta dá ao
drama um subtexto social e político que não havia no original, pois vincula
Desdêmona à elite da república italiana e torna sua decisão de casar Otelo
sem o reconhecimento da família uma afronta às leis implícitas e explícitas do
organismo social. Este elemento faz Passo ver a figura de Desdêmona reviver
não apenas em Capitu, como é de costume, mas também em Bentinho. A
personagem shakespeariana e o narrador machadiano compartilhariam a
transgressão dar ordem social ao firmarem o relacionamento sem o
consentimento da família e ao se casarem “como quem estende um favor e
obtém, ou espera obter, em retorno a devoção do outro” (p. 280) a quem olham
de cima. Assim, a fusão de Desdêmona e Otelo em Bento tornam-no, em certo
ponto de vista, “vítima de si mesmo” (p. 281).
O romance, e aqui reduzimos a leitura de Passos (p. 280), tem como mola,
como tema a agonia da razão que tenta explicar a vida de modo a fazê-la uma
totalidade coerente: uma figura simétrica, dotada de unidade, como é a vida
nas narrações tradicionais. E essa é a agonia da própria ideia de que a arte
pode ser realista ou naturalista.
“Stanley Cavell interpreta Otelo como uma tragédia epistemológica”
“a relação entre autor e obra se apresenta para Bento, ou Dom Casmurro,
como uma relação de descendência; como a conexão entre criador e criatura,
na qual a última herda do primeiro os traços de sua própria natureza” p. 305
“Lida em concordância com o desenlace da obra, a ironia que Dom Casmurro
reverte ao inoportuno poeta da abertura do romance (...) revela o traço mais
amargo desse narrador: ‘Há livros que apenas terão isso [o título] dos seus
autores; alguns nem tanto’ ” p. 305 – 306
“Talvez, ser inexplicável (...) seja desafiar relações de semelhança e
continuidade” p. 326