PARTE I Dando adeus

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PARTE I Dando adeus

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PARTE IDando adeus

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A esposa de Ellis Hock lhe deu de aniversário um novo celular. Um smartphone, ela disse. “E adivinha só?” Ela tinha um jeito falsamente tímido, teatral, de oferecer presentes, normalmente parando para uma pestanejada carente a fim de conseguir toda a sua atenção. “Vai mudar sua vida.” Hock sorriu, porque ia fa-zer sessenta e dois, não mais uma idade de grandes mudanças, mas de sutis diminuições, apenas. “Tem um monte de funções”, disse Deena. Ele achou o negócio frívolo, como um brinquedo delicado e caro. “E vai ser útil na loja” — a Hock’s Menswear, em Medford Square. Seu aparelho estava ótimo, ele disse. Um pequeno punho eficiente, com teclado de tampa e uma única função. “Você vai me agradecer.” Ele agradeceu, mas pesou o antigo celular na mão, como que para contradizê-la, para lhe mostrar que sua vida não estava mudando.

Para provar o que dizia (seu afã presenteador podia ser hostil, às vezes, e essa parecia uma delas), Deena ficou com o novo celular, mas registrou-o no nome dele, usando sua conta de e-mail pessoal. Depois de registrado, recebeu todas as mensagens dele no ano até esse dia, todos os e-mails que havia recebido e enviado, milhares, mesmo os que ele achara que havia deletado, muitos de mulheres, muitos afetuosos, uma revelação tão completa de sua vida privada que ele se sentiu como que escalpelado — pior do que escalpelado, sujeitado à magia negra daquela espécie de mgan-ga que conhecera muito tempo atrás na África, um curandeiro--adivinho virando-o do avesso, a mixórdia escorregadia e espirra-da de suas entranhas tresandando no chão. Agora era um homem sem segredos, ou melhor, com todos os segredos expostos para uma mulher com quem estava casado havia trinta e quatro anos, para quem seus segredos eram uma dolorosa novidade.

“Quem é você?!”, exclamou Deena, uma pergunta clichê que devia ter escutado em algum lugar — que filme? Mas era

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ela que parecia uma estranha, com os olhos gelatinosos cheios de ira, as mãos segurando o aparelho novo com força, como se fosse uma arma, as feições inchadas fixas nele, numa máscara arroxea-da de raiva. “Você me machucou!” E de fato parecia ferida. O destempero dela despertou sua compaixão e o deixou assustado, como se ela andasse bebendo.

Hock hesitou, a mulher furiosa queria saber tudo, mas na verdade já sabia tudo, os pensamentos mais íntimos dele esta-vam todos naquele telefone. Ela não entendia o motivo, mas ele também não. Gritava, pedindo detalhes e explicações. “Quem é Tina? Quem é Janey?” Como ele podia negar o que estava escan-carado no visor de seu novo celular, mensagens ocultas, enviadas e recebidas, sobre as quais ela nada sabia? “Seu fingido! Você assinou ‘com amor’ pra elas!”

Ele viu, primeiro com alívio, depois hilaridade, em se-guida horror, e finalmente tristeza, que nada mais na sua vida era certo a não ser que seu casamento havia terminado.

Atribuiu aquilo ao isolamento. Não queria dizer solidão. Tinha uma loja de roupas masculinas, e os negócios iam — podia-se dizer devagar, não mal — havia muitos anos. A loja estava falin-do. A história do estabelecimento era a história da sua família em Med ford, a inserção deles na cidade, o desejo de inclusão. O avô de Ellis, um imigrante italiano, fora aprendiz de alfaiate quando chegou a Nova York. Seu primeiro emprego remunerado foi com o primo desse homem, também alfaiate, na comunidade rural de Williamstown, Massachusetts, onde desembarcou do trem sem falar uma palavra de inglês. Ele ajudava a fazer os ternos dos alunos ricos da faculdade local. Embora não fosse mais velho do que eles, ajoelhava ao seu lado, desenrolando a fita métrica junto a seus corpos e falando timidamente suas medidas em ita-liano. Três anos disso e depois um emprego como cortador numa alfaiataria no North End, em Boston. Quando se casou, para começar seu próprio negócio pegou dinheiro emprestado com a sogra viúva (que iria morar com eles até morrer) e alugou um espaço em Medford Square, onde abriu sua alfaiataria.

A mudança para Medford envolveu outra modificação, mais considerável: tornou-se um novo homem, mudando seu

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nome de Francesco Falcone para Frank Hock. Pedira a um al-faiate do North End para traduzir falcone e o homem dissera “hawk”, à maneira local, e o homem semianalfabeto escrevera com giz de alfaiate em um pedaço de tecido, soletrando como se pronunciava. Este foi seu letreiro: Hock’s Tailors. Frank ficou conhecido como um mestre na profissão, com peças finíssimas de lã, linho, seda, algodão egípcio estocadas em suas pratelei-ras. Fumava charutos enquanto costurava e, mesmo antes dos quarenta, já empregava dois assistentes para cortar e alinhavar. Sua esposa, Angelina, lhe deu três filhos, o mais velho batiza-do Andrea, chamado Andrew, a quem ele escolheu para ser seu aprendiz. Os negócios iam bem e Frank Hock era tão frugal que economizou dinheiro suficiente para comprar sua loja e poste-riormente o prédio todo. Recebia uma renda dos inquilinos nos andares superiores e de outras lojas, entre elas uma lavanderia chinesa, dos Yee, no prédio ao lado. Joe Yee passava os ternos depois de finalizados e todo Natal o presenteava com uma caixa vermelha de lichias secas.

Quando Andrew Hock voltou da Segunda Guerra Mundial, Medford Square começou a se modernizar. O velho Frank passou o negócio para ele, que havia trabalhado junto com o pai. Mas Andrew não tinha nenhum interesse naquela chatea-ção minuciosa da costura. Sofrendo de artrite nas mãos, o velho se aposentou. Andrew vendeu o prédio e comprou um ponto numa série de lojas recém-construídas na Riverside Avenue — o rio Mystic passava logo atrás — e começou a Hock’s Menswe-ar, como um passo adiante em relação à alfaiataria de Frank na Salem Street.

Ellis nasceu um ano depois que a Hock’s Menswear foi inaugurada e mais tarde também passou a trabalhar na loja na maioria das tardes após a escola, pressionando o pedal e abaixan-do a tampa da máquina de passar roupa na alfaiataria do porão, junto com o alfaiate, Jack Azanow, um imigrante russo. Ellis também engraxava sapatos, dobrava camisas depois de os pale-tós terem sido manuseados pelos clientes, tornava a arrumá-los, ordenhando as mangas — expressão de seu pai. Os Natais eram cheios de serviço, e festivos, com o prazer frenético de pesso-as procurando o que presentear, gastando mais dinheiro do que o normal, pedindo que o item fosse embrulhado para presente,

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outra das funções de Ellis. A atividade da loja nessa época, e na Páscoa, e no Dia dos Pais — a vitalidade daquilo, e o óbvio lu-cro — quase o convenceu de que poderia fazer uma carreira no negócio. Mas a segurança dessa vida o assustou como uma prisão perpétua. Ele odiava a ideia de ficar confinado na loja, mas que alternativa havia?

Quando se formou na Universidade de Boston, em bio-logia, veio a convocação — Vietnã —, mas ele se candidatou ao Corpo de Paz e foi aceito. Enviaram-no para um país do qual nunca ouvira falar, Niassalândia, prestes a conquistar a indepen-dência como República do Malaui, e ele se tornou professor de uma escola rural em um distrito conhecido como Lower River — o Rio Inferior. Havia qualquer coisa de mística no nome, como se fosse um tributário — remoto, misterioso — do rio Es-tige, no submundo. Mas “inferior” significava apenas sul, e o rio era obscurecido por dois grandes pântanos, um chamado Charco do Elefante, o outro, o Dinde.

Ele foi feliz no Rio Inferior, completamente desligado de casa, e até da capital do país, naquela aldeia desconhecida e abandonada à beira do rio, Malabo, morando sozinho e vivendo como professor, o único estrangeiro; sumamente feliz.

Depois de dois anos, voltou a se alistar para mais dois, e certa tarde, perto do fim de seu quarto ano, uma mensagem lhe foi entregue por um motorista consular numa Land Rover, um telegrama que fora recebido pelo consulado norte-americano: Para Ellis Hock em Malabo. Pai muito doente. Favor ligar. Não havia telefone na aldeia e a linha para interurbanos no boma, o quartel-general do distrito, não estava funcionando. Hock voltou para Blantyre na Land Rover e lá, no telefone do próprio cônsul, falou com sua mãe, que estava aos prantos.

Sentia-se tão bem ali que nunca tinha parado para pen-sar nos detalhes de deixar o Rio Inferior e, no entanto, dois dias após o recebimento da mensagem, estava em um avião para a Rodésia, e depois, por laboriosas baldeações, para Nairóbi, Lon-dres, Nova York e Boston. Finalmente de volta a Medford, viu-se sentado junto ao leito paterno, no hospital.

O rosto do velho se iluminou de surpresa quando o viu, como se o regresso de Ellis fosse uma coincidência, sem relação com sua saúde deteriorada. Trocaram beijos, seguraram as mãos

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um do outro e, menos de duas semanas depois, lutando por res-pirar, com Ellis abraçando o corpo inerte, seu pai morreu. Eram três da manhã, e sua mãe fora para casa, descansar um pouco.

“Tudo bem com o senhor?”, perguntara a enfermeira, depois de confirmar que seu pai dera o último suspiro.

“Tudo bem”, respondeu Ellis, e desdenhou de si mesmo pela mentira. Mas estava assustado demais para dizer a verdade, pois seu sofrimento era maior do que podia suportar.

Foi para casa e, quando acordou, às sete, contou para sua mãe, que se desmanchou em lágrimas. Ele próprio não conseguia parar de chorar. Um velho amigo, Roy Junkins, sabendo que vol-tara da África, ligou no dia seguinte. Ellis soluçava quando lhe contou, incapaz de se controlar, mas sentindo tanta vergonha por seu pranto quanto teria sentido de sangrar de um ferimento. E alguma coisa no momento — o telefonema, as lágrimas — criou um laço mais forte entre os dois homens.

Após o enterro, houve a leitura do testamento: a Hock’s Menswear era dele. Sua mãe recebeu uma soma em dinheiro e a casa da família.

“Seu pai queria que você ficasse com a loja.”Havia partido da África de repente — tão de repente

que foi como se tivesse abandonado por lá uma parte irrecuperá-vel de si mesmo por lá. De fato deixara para trás uma casa intei-ra: sua cozinheira e todos os seus pertences, roupas, binóculos, rádio de ondas curtas, suas serpentes de estimação em cestos e viveiros. O que trouxera consigo era o que cabia em uma única mala.

Estava agora com vinte e seis anos, o único proprietário da Hock’s Menswear. Tinha funcionários — vendedores, o al-faiate Azanow, uma mulher que cuidava da contabilidade — e fregueses leais. Em alguns anos casou-se com Deena e, nem bem um ano depois, ela deu à luz sua filha, Claudia, que ambos cha-mavam de Chicky.

A prisão perpétua que tanto temera, ele agora a cumpria: o negócio da família, esposa, filha, casa nas Lawrence Estates, deixada por sua mãe como herança depois que morreu. Todos os dias, exceto aos domingos, ia para a loja às oito, estacionava nos fundos, de frente para o rio Mystic, verificava o estoque e as entregas com Les Armstrong e Mike Corbett, e abria às nove. Ao

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meio-dia, um sanduíche no Savage’s, a delicatéssen do outro lado da Riverside Avenue; depois do almoço, a loja. Às vezes Les ou Mike relembravam seus anos no Exército, com voz sonhadora, mas sempre falando sobre a guerra. Ellis sabia como se sentiam, mas não mencionava a África para ninguém a não ser seu amigo Roy, que às vezes aparecia por lá. Às cinco e meia, quando Les e os outros iam embora, trancava a porta e ia para casa jantar.

Era a vida que muita gente levava, e mais afortunada do que a maioria. Ter uma loja masculina em Medford Square tornava seu trabalho também social, e vender roupas caras signi-ficava que se vestia bem.

Foi assim durante trinta anos. Raramente tirava férias, embora Deena alugasse um chalé no Cabo, todo verão. Ele pe-gava o carro e descia nos sábados à noite para passar o domingo com ela e Chicky. E depois que os pais dela se mudaram para a Flórida, Deena passava semanas com eles. Chicky cresceu, graduou-se pelo Emerson College, casou e comprou um aparta-mento em Belmont.

Nada jamais mudaria, ele achava. Mas mudanças vie-ram, primeiro, como rumores, depois, como fatos. O negócio foi ficando fraco, Medford Square mudou, sua estrutura se des-fazendo, um restaurante vietnamita tomou o lugar da Savage’s Deli, depois foi a vez de a Woolworth’s e a Thom McAn fecha-rem as portas. As sapatarias, a lavanderia, as oficinas de consertar tevê se foram e o pior sinal de todos foram as lojas vazias, algu-mas vitrines quebradas. A antiga padaria que vendia pão fresco era agora uma loja de donuts, outra rede. Um novo shopping em Wellington Circle, com grandes lojas de departamento e muitas lojas menores, era agora o lugar onde fazer compras. A Hock’s Menswear estava mais calma, mas continuava digna, o que fa-zia o lugar parecer um pouco mais triste, como a relíquia que a alfaiataria havia sido — uma loja de roupas masculinas em um centro de cidade que encolhera e ficara obsoleto.

Mas o prédio — a propriedade — era sua garantia. Ellis via um tempo, não muito distante, em que poderia vender o lugar e viver aposentado com o que recebesse. Nesse ínterim, mantinha seu horário, das oito às cinco e meia. Ele mesmo aten-dia os fregueses, como sempre fizera, para dar o exemplo, sim-plesmente para conversar, escutar, inteirar-se da vida de outras

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pessoas, suas experiências no mundo, além da porta de entrada da Hock’s. Com apenas mais um vendedor nessa época, fazia isso com maior frequência, e gostava, na verdade ansiava por conversar com os clientes, cujas experiências passavam a ser suas.

Sabia que o negócio estava com os dias contados, mas o bate-papo mantinha o estabelecimento vivo, assim como a con-versa com um inválido acamado oferece a ilusão de esperança. Os shopping centers e as grandes cadeias de lojas, abençoados com espaço e estoque, prosperavam porque empregavam poucos funcionários, ou agentes de vendas, como agora eram chamados. A Hock’s era o tipo de loja onde o funcionário e o cliente discu-tiam a cor de uma gravata, o estilo de um terno, o corte de um casaco, o caimento de um suéter. “É para usar um pouco mais largo” e “Este sobretudo não é tão elegante quanto aquele”. As novas lojas tampouco ofereciam a qualidade da Hock — tweeds escoceses, camisas inglesas, meias argyle, peças tricotadas irlan-desas, produtos de couro italiano, até mesmo fedoras italianos, e sapatos produzidos pelos últimos grandes fabricantes de calçados dos Estados Unidos. A Hock’s ainda vendia coletes, plastrons e chapéus tiroleses de veludilho, com um enfeite de plumas na fita. A qualidade era sugerida nas próprias palavras para a mercadoria — trajes, melhor dizendo: hosiery, slacks, knitwear; um colete era um weskit.

Toda compra era uma conversa, às vezes demorada, so-bre o acabamento do tecido, o tempo, a situação do mundo. Esse toque humano, o bate-papo, aliviava a melancolia da loja vazia e espantava os males que pairavam no ambiente. O cliente era em geral um homem mais velho à procura de uma gravata, uma camisa boa ou um casaco esportivo. Mas muitas vezes era uma mulher à procura de um presente para seu marido, ou seu pai ou irmão. Ellis os segurava na loja, esticando a conversa, explicando as possíveis escolhas. “Estas meias nunca perdem o elástico” e “Esta camisa é de algodão Sea Island — a melhor” e “Este pelo de camelo na verdade vai ficar mais confortável com o tempo, fica mais macio após cada lavagem a seco”.

Nos últimos oito ou dez anos viera perguntando aos clientes mais simpáticos, a maioria mulheres, “Temos seu e-mail no nosso cadastro?” Como resultado, via-se ocasionalmente en-trando em contato, esclarecendo, oferecendo sugestões de uma

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nova compra, descrevendo itens para a venda, muitas vezes acres-centando uma nota pessoal, uma ou duas linhas, flertes sua ves. Se elas tinham comprado roupas para viajar, perguntava sobre essas viagens. Essa era a atividade do início da manhã, no com-putador do escritório, quando estava sozinho, sentindo-se peque-no em sua solidão, para elevar o ânimo, de modo que conse-guisse enfrentar a banalidade do dia. Os sussurros inofensivos o acalmavam, aliviavam uma fome em seu coração, não de sexo, mas um anseio obscuro. Muitas mulheres respondiam no mes-mo espírito: uma palavra agradável lhes era bem-vinda.

Ao longo dos últimos anos essas mensagens de e-mail haviam passado a representar uma constante em sua vida, uma narrativa de amizades, de cordialidade exuberante, inspirando confianças, alusões particulares, pedidos de ajuda ou conselhos. Mas como só se encontrava com essas mulheres quando iam à loja, o que era raro, tudo não passava de inconsequentes sussur-ros no escuro, embora, comparado à monotonia de seu dia na loja, fosse como o sopro do arrebatamento.

Havia cerca de vinte ou trinta mulheres de quem se aproximara dessa forma, de idades variadas, próximas e distan-tes, e entre elas incluíam-se velhas amigas, como sua paixão dos tempos de colegial e par no baile de formatura. Ainda morando na cidade onde nascera, ele estava impregnado pelo lugar. Ficara fora apenas durante aqueles quatro anos na África, como jovem professor no distrito do Rio Inferior.

Quando Deena lhe mostrou seus e-mails do ano inteiro, ficou mais chocado com a densidade deles do que com a cordia-lidade de suas confidências — embora só de olhar rapidamente algumas coisas que escrevera quase caíra para trás. Escrever era um modo de esquecer, e no entanto agora aquilo tudo lhe voltava para lembrá-lo de todas as coisas que dissera. Não sabia que um celular, nem mesmo um aparelhinho de alta tecnologia como aquele, quase um computador, podia acessar tantas mensagens, mensagens que enviara e recebera, doze meses delas, incluindo as que deletara (a maioria), que acreditara, após tê-las arrastado para o ícone da lixeira, desaparecidas para sempre.

Mas elas reapareceram, chegando numa longa lista de-sordenada, uma crônica de seu passado inapagável, grande parte do qual ele esquecera. E assim o interrogatório teve início, Deena

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dizendo, “Quero saber tudo” — outra fala de filme? Ela segurava toda a memória dele na mão, seu histórico secreto do ano ante-rior, e assim, “Quem é Rosie?” e “Quero saber dessa Vickie”.

Ele permanecia mudo de constrangimento e raiva. En-vergonhado, assustado, não tinha como explicar o número de mensagens ou esclarecer o tom galanteador, sua intimidade com estranhas, todos os detalhes irrelevantes. Conversava com elas sobre seu dia, sobre as viagens delas, sobre livros, sobre sua in-fância; e elas faziam o mesmo, relatando suas próprias histórias.

— Qual é o problema com você, Ellis!Ele não sabia. Curvou a cabeça, mais para se proteger dos

ataques dela do que como uma forma de expiação. No instante em que pisava em casa, após chegar do trabalho, por um mês ou pouco mais, ele e Deena brigavam. As últimas palavras dela na cama à noite vinham remoídas em recriminação. E quando ele acordava, bocejando, saindo de algum sonho ridículo, precário, mas antes que pudesse se lembrar da crise do e-mail, ela começava outra vez, martelando em cima dele, a língua como o badalo de um sino, o dedo em riste, gritando que fora traída. Algumas ma-nhãs, após uma noite de discussão violenta, com a troca de súpli-cas e abusos verbais, ele acordava meio fora de si, a cabeça doendo como que de uma terrível ressaca, e não conseguia trabalhar.

Deena queria saber os detalhes, mas os poucos fragmen-tos que ele oferecia só serviam para deixá-la mais furiosa; e ela não o perdoava, então qual o sentido daquilo? A coisa toda pare-cia inútil, um uivo de dor. Ela era o policial berrando que o pe-gara em flagrante com as mãos sujas de sangue, não gritava para extrair a verdade — já sabia de tudo —, mas como a razão estava do seu lado, sua única intenção era magoá-lo e humilhá-lo, vê-lo se encolher, fazê-lo sofrer.

E ele sofria, e percebeu que ela também estava sofren-do, de forma ainda mais doída, porque era a parte lesada. Mas ele sabia aonde aquilo ia dar. Era na verdade como um teatro; ela precisava vivenciar cada aspecto de seu papel, esgotar-se a si mesma e a ele, esmiuçando aquela pilha de lixo de confidências provocantes, e quando ele estivesse suficientemente punido, o fim era inevitável.

Começaram a frequentar sessões com um conselheiro matrimonial, que chamava a si próprio de dr. Bob, um afável ho-

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mem de meia-idade com formação em psicologia, modos de pro-fessor e roupas convencionais de faculdade — paletó de tweed, camisa de botões, calça cáqui e sapatos sociais, provavelmente comprados numa loja do shopping, pensou Ellis. O que incomo-dava Ellis e Deena tanto quanto as sessões em si eram os encon-tros fortuitos com um ou outro dos clientes do dr. Bob, algum sujeito problemático — drogas? álcool? — saindo do consultório quando chegavam, ou alguma pessoa igualmente angustiada, a cabeça curvada, no sofá da sala de espera ao saírem.

O dr. Bob os escutou atentamente na primeira sessão e disse que descobrir e-mails comprometedores não era incomum. “Tenho acompanhado outros casais em sua situação. Em todos os casos, é sempre o homem.” Não jogou a culpa em ninguém, foi solidário tanto com Ellis quanto com Deena, e a certa altura, perto do fim da primeira hora, enquanto ela chorava com as mãos no colo e Ellis se perguntava por que enviara tantos e--mails, ouviram o dr. Bob indagar, dizer suavemente, “Como é mesmo? Aquela velha música, ‘strumming my pain with his fin-gers’ — algo sobre arder de febre, não sei o que na multidão”, daí, erguendo a voz, mas ainda num tom confidente de cantor inti-mista, “‘I felt he found my letters, and read each one out loud…’, senti que ele achou as minhas cartas e que leu cada uma em voz alta.”

“Por favor”, disse Deena, “isso não tem graça”.“Estou tentando pôr a situação de vocês no contexto”,

disse o dr. Bob. “Existem outros precedentes. Depois que a espo-sa fuçou suas cartas particulares, Tolstoi fugiu de casa. E morreu numa estação de trem. Ele estava com oitenta e dois anos.”

Na sessão seguinte o dr. Bob fez algumas perguntas di-retas e atuou, no entender de Ellis, como um juiz numa partida. Não voltou a cantar. Eles apareceram para outras sessões.

Mas em vez de consertar o casamento ou acalmar Dee-na, a terapia piorou as coisas, oferecendo uma ocasião para ven-tilar antigas mágoas, conflitos que, antes do início das sessões, Ellis decidira deixar para lá. Mas por que não mencioná-los, as decepções, os lapsos, as fases ruins que haviam ficado por resol-ver? Ressentimentos havia muito tempo sepultados foram desen-terrados e discutidos. Com um juiz, uma testemunha, podiam ser diretos.

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Dr. Bob balançava a cabeça e sorria amavelmente, como o amigável padre das antigas na Saint Ray, o padre Furty — al-coólatra reformado, sempre simpático. Ele deixava Deena falar, depois Ellis, ambos lhe pedindo para compreender seu ponto de vista, a validade de suas queixas, como que a decidir “de quem é o ponto?” em um lance significativo.

Ele dizia, “O que estou escutando é…”Desapontamentos que nunca haviam sido mencionados

agora eram, e as sessões se tornaram acrimoniosas: as amizades de Deena, suas ausências; a frieza de Ellis, suas ausências.

“Vocês têm levado vidas separadas…”Ellis pensou, É mesmo, talvez seja por isso que consigo

aturar minha esposa. Não era um prazer, mas um alívio sair para trabalhar de manhã. A monotonia era um amigo inofensivo. Ele temia os domingos em casa; mais do que tudo, odiava as férias. Ellis nunca conhecera alguém que odiasse férias, então guardava seus sentimentos para si.

Embora a única coisa na cabeça de Deena fosse aquela questão — o negócio dos e-mails, numerosos e excessivamente afeiçoados —, a discussão levou Ellis a se defender com lembran-ças de outras discussões.

“Quero saber por que você estava mandando e-mails para aquelas mulheres”, disse Deena.

O dr. Bob sorriu para Ellis, que disse, “Eu mesmo tam-bém queria saber isso.”

“Meu nome não aparece em lugar nenhum naqueles e--mails. Você nem menciona que é casado. Eu não existo. Por quê?”

Ellis disse, num tom de voz admirado, que não sabia.Suplicando para o dr. Bob, Deena disse, “Ele conta para

elas o que está lendo! Conta o que comeu no almoço!”A essa altura, quase um mês de terapia (e a loja sofrendo

com suas ausências), todo contato com as mulheres dos e-mails fora interrompido. Deena continuara em posse do telefone, monitorando-o diariamente. Agarrava o celular com desgosto, como se segurasse o próprio Ellis, seu ódio patente; e Ellis tam-bém odiava aquele aparelho só de olhar.

Ellis, por insistência de Deena, criou um novo endereço de e-mail, e o usava apenas para os negócios. Sem contato com as mulheres, ficou entorpecido, mudo, desamparado, mas ainda

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era incapaz de explicar os e-mails que enviara, sua amizade com tantas mulheres, o estranho tom amoroso e inquiridor. Para uma ele dissera: “Você é o tipo de mulher de que eu gostava na selva africana”, e se encolheu com a lembrança.

“Acho que me interessei na vida delas”, disse. “Eu fiquei curioso. Tinha um certo enredo no jeito como elas viviam, uma trama em desenvolvimento. Sempre gostei de saber a história das pessoas.”

Com um gesto de quem batia no bolso muito cheio, o dr. Bob perguntou, “Mas você as estava guardando no bolso para mais tarde, ia levar alguma coisa adiante?”

Ellis disse que não, mas não tinha certeza. A solidão da loja, a insegurança do negócio, essas coisas o faziam sonhar. Não sabia como dizer isso para sua esposa — não mais magoada, mas furiosa — e o terapeuta que balançava a cabeça. Dr. Bob prova-velmente diria, “Sonhar com o quê?” E Ellis não tinha resposta.

“Há alguma coisa que queira falar para sua esposa?”, dis-se o dr. Bob.

Ellis fitou o rosto enraivecido de Deena. Disse, “Você está tirando vantagem da situação”.

Silenciando-a — Deena começara a objetar —, o dr. Bob falou para Ellis. “Percebo você como desgarrado”, e explicou o que queria dizer.

Ellis balançou a cabeça. A palavra era perfeita para o modo como se sentia, solto, sem um lugar próprio, vagando em um trabalho que assumira por ser o desejo do pai moribundo, para manter o negócio familiar. Mas sua alma não estava naquilo — nunca estivera.

Em que momento ele fora feliz?, perguntou o dr. Bob.Ellis disse, “Eu morava na África.”“Ai, Deus”, disse Deena.“Quero dizer, no seu casamento”, disse o dr. Bob.As mãos juntas sob o queixo, como em oração, Ellis fi-

cou pensativo e tentou recordar uma época distinta, um evento, algo alegre, uma pequena cena luminosa de orgulho e prazer. Mas nada lhe veio. Eram trinta e três anos de altos e baixos, tempo demais para resumir. Eram casados: anos para comparti-lhar, para suportar, para negociar, para superar. Sim, um boca-do de felicidade — mas ele simplesmente não conseguia pensar

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em nada específico. O casamento era uma viagem sem ponto de chegada.

Vendo Deena afundada na cadeira, aguardando o fim de seu silêncio, Ellis ficou triste outra vez. Só o modo como sen-tavam separados, oprimidos por uma espécie de pesar, com o doutor entre eles, já os tornava miseráveis. Era como se estives-sem na presença de um paciente terminal, seu casamento mor-rendo, e parecia que essas últimas semanas haviam sido assim, uma vigília junto ao moribundo — essa melancolia — ou uma dança macabra, a histeria com a perspectiva de a coisa terminar.

Tampouco conseguiam manter qualquer tipo de con-versa coerente sem a presença do dr. Bob. Ellis via a si mesmo, aos sessenta e dois anos, e Deena, com sessenta, como duas pes-soas velhas que agora, com o término do casamento, iriam seguir caminhos separados, figuras patéticas curvando o corpo diante do vento contra, ou pior, com desagradável jovialidade, falando sobre “novos desafios” e começar de novo, entrando em grupos de apoio, fazendo aulas de ioga, jardinagem, trabalho voluntário e caridade, ou pior, golfe.

As sessões de terapia continuaram, mais rancorosas, pro-vocando novas mágoas, afastando-os ainda mais. Mas junto com essa visão melancólica de separação, Ellis viu também alívio, a paz de estar sozinho. Imaginou que Deena sentia o mesmo, por-que um dia, no carro, após a sessão, voltando para casa, ela pa-receu cair em si e disse, “Quero ficar com a casa. Não vou abrir mão da casa. Minha cozinha, meus armários.”

“Eu posso ir para um apartamento”, disse Ellis. “Mas o negócio é meu.”

“Vou precisar de dinheiro”, disse Deena e, notando que Ellis não reagiu, acrescentou, “Bastante.”

E dessa maneira, de bocado em bocado, fizeram valer seus respectivos direitos. Por sugestão do dr. Bob, procuraram um advogado e dividiram seus bens.

Ao saber disso, Chicky disse, “E como eu fico?”“Vai ficar tudo bem com você”, disse Ellis.“Mas e se vocês casarem de novo?”Deena olhou para Ellis e riu, e ele correspondeu, rin-

do também, a primeira vez em meses que partilhavam um mo-mento assim de alegria. Pararam não porque ficaram tristes com

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a emoção vindo à tona, mas porque o amor em sua risada os deixou envergonhados, lembrando-os que em seu casamento ha-viam conhecido muitos momentos felizes como esse.

Chicky, confusa, e ficando ríspida com a própria confu-são, disse, “O Dougie provavelmente vai ser mandado embora. A gente pode precisar do dinheiro. Quero minha parte agora.”

“Parte”, disse Ellis, fazendo eco de sua palavra, “do quê?”“Seu testamento”, disse Chicky.“Eu estou vivo”, disse Ellis, os olhos arregalados de

indignação.“Mas e quando você morrer? Se casar outra vez, sua ou-

tra família vai ficar com tudo, e eu não ganho um centavo. Se eu não receber agora, nunca vou ver o dinheiro. E olha a mamãe. Ela tem a parte dela.”

Tivesse essa conversa ocorrido não em um sushi bar em Medford Square — outro exemplo das mudanças na cidade —, Ellis teria gritado com a filha e dado um soco na mesa. Mais tarde, ficou feliz por ter permanecido calmo e apenas abanado a cabeça para a jovem amuada à sua frente, que mastigava a comida com ar enfastiado. Repassou a conversa nessa noite, primeiro com amar-gura, depois num tom de resignação. Melhor acabar com tudo, pensou; melhor deixar um furacão levar tudo embora. Então ofe-receu a Chicky uma soma polpuda. Ela pediu mais, como ele adivi-nhou que faria, e ele lhe deu a quantia que já decidira de antemão.

O marido de Chicky estava junto quando fez o cheque. Dougie foi meramente um espectador na negociação familiar — Chicky já havia ficado irritada no passado quando Ellis, recusan-do-se a empregá-lo na loja, dissera, “Ele é bom em quê?”

“Creio que a gente não vai se ver muito mais, daqui pra frente”, disse, com a solene resignação de seu novo papel. “Acho que nem faço muita questão.”

“Por mim tudo bem”, disse Chicky.Com a cota do legado na mão da filha, e ela lhe dando

as costas, ele se sentiu como se já estivesse morto. Lamentou por ela não enxergar a tristeza daquilo.

Embora tivesse se mudado para um prédio na Forest Street — a antiga escola —, ele e Deena continuaram a se ver. Formalmente, às vezes timidamente, saíam juntos. Ainda não es-tavam prontos para conhecer outras pessoas, e mesmo as sessões

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com o dr. Bob não tinham afetado o apreço fundamental que nutriam um pelo outro. Os encontros terminavam com um beijo casto e, normalmente, desajeitado, e Ellis sempre ficava triste de-pois, sozinho em seu carro. Ele sabia que fizera Deena sofrer, que destruíra seu amor por ele, que a levara a perder sua confiança — talvez, perder a confiança em todos os outros homens. No sigilo e nas confidências de suas mensagens, ele a traíra. Podia ser amá-vel agora, mas não havia como remediar o passado. Em alguns desses encontros, ela ficava entorpecida e calada, sofrendo como um animal ferido e confuso. Ele não podia pensar em si mesmo, porque sabia que a dor que lhe infligira nunca mais seria sanada.

Ellis temia o dia em que Deena lhe diria, “Estou saindo com alguém”. Ele lhe contava como os negócios iam mal, e ela tentava consolá-lo, insistindo que vendesse o prédio, que o imó-vel valia alguma coisa, que era um ponto muito bom.

Num desses encontros, ela lhe deu o celular — o instru-mento da ruína deles, que agora lhe parecia uma coisa diabólica. Ou teria sido o instrumento de uma grande purificação? Fosse como fosse, aquilo expusera toda a sua vida privada, revelando seu lado sentimental, galanteador, sonhador, romântico, insatisfeito, desejoso. Mas de quê? O que significaram todos aqueles e-mails? O que, com toda aquela emoção, era essa coisa que ele queria?

Não sabia. Talvez nunca viesse a saber. Estava velho de-mais para esperar algo de novo. Nada importante jamais aconte-ceria com ele. Nenhuma paixão, nenhum grande amor, nenhu-ma nova paisagem, nenhum outro filho, nenhum risco, nenhum drama. O resto de sua vida seria um retraimento, uma diminui-ção, até finalmente chegar o esquecimento. O nome em sua loja seria trocado por outro. Seu casamento terminara, sua filha se fora. Não conseguia se lembrar de muita coisa do casamento, e no entanto sentia falta do caráter prosaico de tudo, de suas antigas rotinas, a monotonia que parecia um amigo. Havia uma certeza na rotina; o torpor que induzia nele era um conforto.

Um dia após ter pego o celular de volta, foi à loja e perma-neceu com o aparelho no bolso o dia todo. Depois de trancá-la, à noite (observava a si próprio fazendo isso, como em um ritual), an-dou até o fim do estacionamento, onde, além do alambrado, pas-sava o Mystic, atirou o telefone e ficou olhando enquanto ele caiu na água, afundou e sumiu no rio melancólico sob o céu escuro.