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Abby Barnes tem um plano. Ela sabe o curso que vai fazer, a faculdade em que vai estudar e até o lugar onde vai trabalhar. Mas pequenas decisões podem mudar uma vida inteira, e, na véspera de seu aniversário, Abby está questionando suas escolhas. No dia seguinte, ela acorda num lugar completamente diferente, um ano mais velha, sem saber como tudo mudou da noite para o dia. A resposta é mais inesperada do que poderia imaginar: uma colisão de universos paralelos que a faz viver uma versão alternativa de si mesma. Com a ajuda da melhor amiga, Caitlin, e dividida entre dois caras que poderiam muito bem ser o amor de sua vida, Abby se depara com o desafio de redescobrir a si mesma enquanto lida com a confusão em que sua vida se transformou.

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Setembro

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1(Aqui)terça-feira,8desetembrode2009(umdiaantesdomeuaniversáriodedezoitoanos)

Hesito,entãoapontoaarmaparaeleepuxoogatilho.Faz-seuminstantedesilêncioprecioso.Depois:

–Corta!Suspiro,baixandoaarma.Todosvoltamàação.Maisumavez.Fechoosolhos, lembrando-meemsilênciodequeestouamando todos

osminutosdissotudo.Depoismedesculpocomigomesmapelamentira.–Abby?Nosso diretor, Alain Borneau, um homem com o ego de Narciso e o

temperamentodeZeus,estáparado tãopertoquepossosentir seuhálitomentolado no rosto. Forço um sorriso e abro os olhos. Seu nariz, refeitocomumaplástica,estáamilímetrosdomeu.

–Estátudobem?– Ah, sim – balanço a cabeça com entusiasmo. – Está tudo ótimo. Só

estourepassandoacenamentalmente.–Douumabatidinhanatestaparaenfatizar. – Issomeajuda a focar. –Aúnica imagememminhamentenomomento é a do x-búrguer com bacon que pretendo pedir no quarto dohotelhojeànoite(commuitopicles,mostardaesemketchup).MasseAlainacha que estou lhe dando menos de cem por cento, ele vai me mandarpara a copapara tomar umestimulante potente, umpreparadomarrom-esverdeadocomgostodegiz,quefazmeuxixificarcomcheirodepimenta.

Eleapertameuombro.–Éissoaí,garota.Agora,vamosrepetirtudomaisumavez.Sóquecom

maissensualidade.Certo.Éclaro.Estamosfalandodeumacenaemqueatironacabeçade

um homem gordo que está na cozinha, preparando um sanduíche demortadela.Possoimaginarcomofazerissocommaissensualidade.

Minhavidasetornouoficialmenteirreconhecível.Quando estava no jardim de infância, minha mãe decidiu que eu era

uma criança prodígio. O fato de não conseguir identi icar de cara meutalento extraordinário não serviu para diminuir sua certeza de que eu

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tinhaum.Quatromesesevinteeduasanálisesdedesenvolvimentodepois,ela continuava longe de descobrir minha suposta genialidade, mas haviaaprendido algo sobre sua ilha que a deixou extremamente orgulhosa:parecia que eu, Abigail Hannah Barnes, era dotada de um “forteautoconhecimento”.

Nãotenhoideiadecomoumacriançadecincoanospodedemonstraraforça de seu autoconhecimento com um lápis preto e um formulário demúltiplaescolha,masaparentementeeuconseguivinteeduasvezes.

Atéumanoatrás,euteriaconcordadocomaqueladeclaração.Eu sabiaquemeuera.Doquegostava(escreverecorrer),noqueeraboa(inglêsehistória),oquequeriaser(jornalista).Então,meapegavaàscoisasparaasquais tinha facilidade e icava longe de todo o resto (em especial, dequalquercoisaquepudesseexigircoordenaçãovisual-motoraouousodeum bisturi). Essa foi uma estratégia e icaz de sucesso. Quando chegou oúltimo ano, eu era editora-chefe do jornal da escola, capitã da equipe decross-country, e estava prestes a me formar entre os cinco por centomelhoresalunosdeminhaturma.Meuplano–partedoplano,aquelequeinformava todas as decisões acadêmicas que iz desde o sétimo ano, anoemquedecidiquequeriaser jornalista–erameinscrevercedonocursodejornalismodaNorthwestern,depoismedestacarnosegundosemestre.

O centro dessa estratégia era o primeiro semestre: uma combinaçãoperfeitadeaulasavançadaseoptativastotalmentetriviaiscomnomesqueparecessemválidos.Tudoestavafluindodeacordocomoplano,atéque:

–Abby, a senhoraDeWittquer falar comvocê. Suagradehorária temalgumproblema.

Primeiro dia do último ano. Estava sentada na sala da coordenação,discutindoopçõesdejantardeaniversárioenquantoaguardavaoiníciodosorteiodevagasdoestacionamento.

–Problema?– É tudo o que eu sei. – A senhora Gorin, minha coordenadora,

balançavaumpequenopedaçodepapelcor-de-rosa.–Poderesolver isso,porfavor?

–Maseoestacionamento…?–Vocêpodenos encontrarno auditório. –Ela sacudiuopapel cor-de-

rosasempaciência.Pegueiabolsaeseguiparaaporta,torcendoparaesse“problema”não

levar mais de cinco minutos. Se eu não estivesse no auditório quandosorteassemmeunome,dariamminhavagadeestacionamentoparaoutrapessoa e eu passaria o último ano na terra de ninguém que é o

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estacionamentoanexo.Quatrominutos emeio depois, estava sentada na sala da orientadora,

olhandoparaumalistamuitocurtadeoptativas.Aparentemente,osenhorSimmons, homem que criara e ministrava História da Música, disciplinaextremamente fácil, havia decidido cancelar repentinamente as aulas,obrigando-me a escolher outra optativa para o quinto horário. Sei quepode não parecer nada importante, mas se você tivesse passado tantotempo quanto passei elaborando a grade horária perfeita e se tivesse seconvencido de que seu futuro sucessodependia de cursar seis disciplinasmuitoparticulares,ocontratemposeriacatastrófico.

–Aboanotíciaéquevocêtemduasdisciplinasparaescolher–gorjeoua senhoraDeWitt. –TécnicasdeEncenaçãoePrincípiosdeAstronomia. –Elasorriu,olhandoparamimporsobreoarodeseusóculosazuis.Oarderepentepareceuficarmuitoescasso.

–Não!–Ela icoucomaqueleolharassustadonorostoquandoeudisseisso. Eunãopretendia gritar,mas amulher tinha acabadodepuxarmeutapete. Além disso, seu terninho fúcsia estava me dando dor de cabeça.Pigarreeietenteinovamente.–Temdehaveroutraopção.

– Receio que não – ela respondeu com satisfação. Então, em umsussurro infantil, como se estivéssemos falando de algo muito menosimportantedoquetodoomeufuturoacadêmico:–Euiriadeencenaçãosefossevocê.

Devo mencionar algo sobre minha escola: é o que chamam deespecializada em artes e ciências, o que signi ica que, além de seguir ocurrículo regular das escolas públicas, a Brookside High oferece doisramosespecializados:umparaaspirantesaatoreseartistaseoutroparajovensEinsteinsdesucesso,seduzidospelapromessadeumcursodeníveluniversitário. No segundo ano, cometi o erro de presumir que “níveluniversitário” signi icasse equivalência às matérias do primeiro ano dafaculdade,masdepoisde cursaroito semanasda inofensiva IntroduçãoàBotânica, iqueisabendoqueaprova inalseriaamesmaqueoprofessorhaviaaplicadonoanopassado.ParaosuniversitáriosdaGeorgiaTech.

Então,enquantodisciplinascomoTécnicasdeEncenaçãoePrincípiosdeAstronomia seriam, semdúvida, aulas fáceisnasescolasnormais,quandose estuda em uma especializada em artes e ciências e, por acaso, não setem inclinações para artes nem para ciências, essas preciosidades comtítulos inofensivos são cansativasdetonadorasdemédias.Ah, e cheguei amencionaracurvaobrigatóriadenotas?

Eraumaescolhaentreruimepior.

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–Técnicasdeencenação–escolhi,porfim.Efoiisso.Na quinta aula daquela tarde, nossa professora informou que havia

selecionadoArcádia, de Tom Stoppard, para ser produzida por nossaturma.Eutinhalidoapeçanoanoanteriornaauladeliteraturaeadorado(principalmente porque meu trabalho, “Pessoas que gostam de pessoas:determinismo emArcádia”, ganhou o prêmio de redação), então quandochegou a hora dos testes, tentei o papel de Thomasina Coverly, aadolescenteprecocequeéapersonagemprincipal.Nãoporquerealmentequisesse o papel principal (ou qualquer outro, diga-se de passagem –estavafazendo lobbypara icarcomodiretoradecena,emsegurançanosbastidores), mas porque as falas de Thomasina eram as mais fáceis dedecorar. E como amesmamenina sempre ganhava o papel principal emtodasaspeçasdaescoladesdeo jardimdeinfância, imagineique,napiordashipóteses, icariacomosuasubstituta.Alémdisso, fazerotesteparaopapelprincipaltinhaavantagemdeirritaraquelamenina,aautointituladaabelharainhadagaleradoteatroeminharivaldesdeojardimdeinfância,a insuportável Ilana Cassidy, que imaginava que faria o teste semconcorrência.

Mas, dois dias depois, lá estava meu nome no alto da lista do elenco.Tinhaconseguidoopapel.

Essegolpecausoualvoroçoentreopessoaldoteatro.Todosesperavamque Ilana icasse com o papel. Meus colegas de elenco estavamconvencidos de que eu, a intrusa inexperiente, arruinaria o espetáculo“deles”, e eu suspeitava que estavam certos.Mas as decisões da senhoraZiffren no que dizia respeito à seleção de elenco não estavam abertas àdiscussão,eminhanotadependiademinhaparticipação.

Oauditórioestavalotadonanoitedeestreia.Sentava-senaprimeira ilaumaimportantediretoradeelencoquehaviapegadoumaviãoparaverosobrinhonopapeldeSeptimusHodge.Essetipodecoisaaconteciaotempotodonaquela escola especializada, entãoera fácil ignorar (principalmenteporquetodaminhaenergiaseconcentravanapossibilidaderealdequeeuesquecesseminhasfalase,sozinha,arruinasseoespetáculo).

Mas depois recebi uma ligação daquela mesma diretora de elenco,convidando-me para fazer um teste paraAssassinos cotidianos, ilme deação de alto orçamento que começaria a ser rodado em maio, em LosAngeles. Segundo a diretora, estavam em busca de uma adolescente decabelosescuroseolhosclaros,iniciante,paraopapeldecúmplicemudadoator principal e, commeus cabelos castanhos e olhos azuis-acinzentados,eu tinha o visual perfeito. Por acaso eunão estaria interessada em ir até

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Los Angeles fazer o teste para o papel? Imaginando que a experiênciapudesseacrescentarmuitoemminhainscriçãonaNorthwestern,convencimeuspaisamedeixaremtentar.

Tudo aconteceu muito rápido. Alain me ofereceu o papel na mesmahora.Eleeosprodutoressabiamdosmeusplanosdeentrarnafaculdadee garantiu que a produção terminaria no inal de julho, restando temposu icienteparaqueeufosseparaaNorthwesternantesdoiníciodasaulas,emsetembro.Surpresa,eumtantoquantolisonjeada,aceiteiaproposta.

A vida acabou acelerando a partir de então. Em fevereiro, viajei deAtlanta para Los Angeles para provas de igurino, leituras (muitoempolgantequandonão se tem falas) e treinamento comarmas.Perdi asférias da primavera. Perdi o baile de formatura. A produção estavamarcada para começar na terceira semana de maio, então, enquanto orestante de minha turma aproveitava as festividades do im do ensinomédio,euestavaen iadaemumquartodehotel,compenetradanaleituraderascunhosrevisadosdeumroteirocadavezmaisintrincado(haviaumanovaversãoacadadia),totalmentecientedofatodequeeuNÃOTINHAIDEIAdoque estava fazendo. Um semestre de técnicas de encenação nãotransformaninguémemator.

A essa altura, ainda achava que as ilmagens terminariam antes dosemestreletivo,entãomeconcentreiemaproveitaraomáximo.Edaíseeunão participasse da colação de grau com a minha turma? Estavacompartilhando água vitaminada com o cara mais sexy do mundo, eleitopela revistaCosmopolitan. Há jeitos piores de passar o verão. Nuncamepassou pela cabeça que eu teria de adiar a faculdade ou fazer algodiferentedoque jáhaviaplanejado.Masentãoaproduçãofoiempurradapara junho… depois julho… e agosto… momento em que fomoseducadamente informados por nossos produtores que ilmaríamos emoutubro.Devidoaumcontratomuitobemredigido,euestavapresaaliatéo im.Edeumahoraparaaoutra,meuplanometiculosamenteconstruído– (a) quatro anos escrevendo para um jornal universitário premiado, (b)um incrível estágio de verão, (c) um diploma do melhor curso dejornalismo do país e, por im, (d) um emprego em um grande periódiconacional, tudo antes de completar vinte e dois anos – foi vítima de umamorterápida.

É di ícil não culpar o senhor Simmons. Se ele não tivesse canceladoHistóriadaMúsicaemsetembro,tudoteriacorridocomodeveria,eontemteria sidomeuprimeiro dia de aula naNorthwestern. Emvez disso, aqui

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estou, presa em um estúdio de Hollywood, usando um macacão tãoapertadoquemeutraseiroestáadormecido.

Sim,euseiqueéotipodecoisacomqueaspessoassonham,otipodecoisa pela qual Ilana Cassidy daria um braço: a chance de estar em umilme de alto orçamento com um ator de primeira linha e um diretorpremiado,e ter tudo issodebandeja, semomínimoesforço.Coisasassimnuncaacontecemcomigo.Preciseimeempenharnascoisasqueconquistei– todas as notas, todos os prêmios, todas as vitórias. O que foi parte doproblema, eu acho. Quando veio com tanta facilidade, não pude deixarpassar.

Mas nunca desejei uma carreira de atriz, nem nada parecido, entãoessesonhoqueestouvivendonãoéomeusonho.Eéporissoque,nessesmomentos – quando estou cansada, com calor e com fome, e estamos natrigésimanonatomadadeumacenaque,seentrarno ilme,teráaincrívelduraçãodeseissegundosnatela–,édi ícilignoraravozemminhacabeçamelembrandodeque“umaveznavida”nemsempreéobastante.

Quando inalmente encerramos o dia, volto para o meu quarto. Os

produtores hospedaram todo mundo no Culver, um hotel antigo, bemdescolado,deHollywood,que jápertenceua JohnWayne.Muitagente,deGretaGarboaRonaldReagan, já sehospedouaqui.Decertomodo,o fatodeoestúdioestarpagandoparaeumoraraquiparecemaisnotáveldoqueestaremmecolocandonofilme.

O sol está baixo no céu quando atravesso a rua para ir ao hotel. Apoluição em Los Angeles deixa o céu com umas cores bem legais, mas apaleta desta noite está especialmente incomum. O horizonte está riscadocom vermelhos vivos e alaranjados, turbinados com tons brilhantes debronze e dourado. Mas essa não é a parte incomum. Em meio às coresdistintamente brilhantes, existem partesmais escuras – em que as coressãotãointensasquepraticamentedesaparecemjuntoaopreto.Parecequeanoitejácaiunessaspartes,enquantoaindaédiaemtodooresto.Apesardoclimaagradável,estremeço.

EnquantocaminhopelosaguãoladrilhadodepretoebrancodoCulver,meucelulartoca.Sempreàs20h,comoumrelógio.

– Oi, mãe. – Passo pelos elevadores e subo a escadaria, acelerando opasso conforme piso nos degraus. Os três andares do saguão até o meuquartoconstituematotalidadedosmeusexercíciosaeróbicos,então,tentotirar proveito. Eu costumava correr quase dez quilômetros por dia

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(sempreaoarlivre,atémesmonosmesesdeinverno);agora,tenhosortese andar seis quarteirões. Alain não quer que suas assassinas iquemmuitomagras,porissopediramaosnossostreinadoresquesuspendessemosexercíciosaeróbicos.Nãocorrerestásendocruelparamim.

–Oi,querida!Comoestãoascoisas?Estásedivertindo?– Estou! – respondo com entusiasmo, tentando parecer animada. A

única coisa pior do que admitir para si mesmo que cometeu um errogigantesco é admitir amesma coisa para os pais. Principalmente quandovocê está se arrependendo de uma coisa à qual eles eram indiferentesdesde o início. Não era essa coisa de atuar que deixava meus paisdescon iados, mas o fato de o ilme para o qual fui escalada não ter umenredocoerente.

–Estáaprendendobastante?–Eraaperguntapadrãodeminhamãe.–Ah,sim.Comcerteza.–Liçãodehoje:comoarrumaracalcinhacomo

cantodeumabanqueta.–Estátudobemcomvocês?– Bem, com saudades de você, é claro –minhamãe responde. –Mas,

fora isso, está tudo bem. Seu pai vai ao tribunal na segunda-feira, então,tem trabalhado feito louco. – Nosmeus dezessete, quase dezoito anos devida,apenascincodoscasosdemeupaiforamajulgamento,oqueétriste,pois iraotribunaléumadasúnicascoisasdequeelegostanapráticadodireito. Meu pai era pintor quando conheceu minha mãe. Na verdade, aarte foi o que os uniu. Eles estavam lado a lado diante do quadroApersistênciadamemória, deDali, emumaexposição surrealistanoMoMA,quando ele olhou para aminhamãe e disse (de uma forma nada brega,segundoelainsiste):“OproblemaemverDaliéqueédi ícilolharparaseutrabalhosempensarquevocêpoderiaviverumavidainteiraenãosentirnada com tanta profundidade quanto ele sentiu tudo”. Eles se casarammenos de um ano depois, no dia seguinte à formatura daminhamãe naBarnard. Meu pai batalhou como pintor durante mais alguns anos, masinalmentecedeuese inscreveunafaculdadededireito,emgrandeparteporquemeusavósdisseramquepagariam.Oplanoeraadvogarporalgunsanos para juntar dinheiro. Vinte anos depois, ele é diretor doDepartamentodeLitígiosdeumgrandeescritóriodeadvocaciadeAtlanta,etrabalhamaisdesessentahorasporsemana.Enamaiorpartedotempo,estátotalmenteentediado.

–Comoestãoascoisasnomuseu?–pergunto.–AexposiçãodoPicassojáabriu?–Minhamãeécuradora-chefedoHighMuseum,trabalhoqueelaamadepaixão.Noúltimooutono,umaexposiçãodeSeuratorganizadaporela teve grande repercussão no mundo da arte, e museus maiores

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começaram a cortejá-la, mas ela respondeu que não tinha nenhuminteresse em deixar a coleção que havia passado os últimos dez anostentando construir. Em vez disso, aproveitou sua nova reputação paralevarumasériedeexposiçõesimportantíssimasaAtlanta.

–Sóabreamanhã–elaresponde.Possoescutarseusorriso.–Falandoemcoisasqueacontecemamanhã…

–Algunsdemeuscolegasdeelencovãomelevarparajantaramanhãànoite. Em algum lugar da moda em Hollywood – comento rapidamente,sabendoondeissoiaparar.Nãoeraverdade,masseioquantominhamãedetestaa ideiademedeixarsozinhaemmeuaniversáriodedezoitoanos,semninguém comquem comemorar. Também sei que ela não pode icarlongedomuseunessemomento.

–Quenotíciaótima,querida.–Elapareceualiviada.–Queriaqueeueseupaipudéssemosestaraítambém.Dezoitoanos!Minhanossa,estoumesentindovelha.

Alinhaapitaquandoestoudestrancandoaporta.–Ei,mãe,éaCaitlin.Estamos tentandonos falara semana toda,então

achoqueémelhoreu…–Ah,éclaro,querida.Digaqueeumandeiumoi.Desligamos,atendoaligaçãodaminhamelhoramiga.–Aindabem.Acheique teriaquedeixarumamensagemraivosapara

obrigarvocêaretornarminhasligações.–Desculpe.Fiqueiodiatodonoset.Comovai?Tudobem?–Melhordoquebem–Caitlin responde.–Anerddentrodemimmal

consegueseconter.Minha melhor amiga é, certamente, uma nerd de carteirinha – pelo

menosquando se tratade ciência.E suanerd interior vive, por acaso, nocorpo de uma supermodelo. Ela puxou amãe, uma ex-modelo que viroudesignerdebolsas.Ainteligência,poroutrolado,puxoudopai,engenheiroestruturale,provavelmente,ocaramaisboboqueeuconheço.Emboranãotenha herdado a a inidade que ele tem com sandálias de velcro, Caitlinherdou o amor do inteligentíssimo pai por coisas excessivamentedetalhadasecomplicadasatédizerchega.Nocolégio,elapassavaosfinsdesemana trabalhandoemum laboratóriodeastro ísicanaGeorgiaTech (odiretordodepartamentoéumvelhoamigodopaidela), ajudandoalunoscom suas pesquisas e aproveitando para pesquisar também. Nossoscolegasdeturmanaescolanãosabiammuitobemoquepensardela.Achoqueelaseenturmaumpoucomelhorcomopessoaldafaculdade.NãoqueCaitlin se preocupe com isso. Nunca se importou. Na escola, ela e eu

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orbitávamosnaperiferiadogrupodospopulares.Ahierarquia social eraum pouco deturpada devido a essa coisa de escola especializada – osatletas costumavamdominara cena,masumalunoquesedestacasseemciênciaouparticipassedogrupodeteatroetivesseaaparênciaumpoucoacimadamédiaeumbomtraquejosocialtambém icavaporcima.Então,ogrupodopessoal“legal”eraumamisturabemecléticadeadolescentesdecadalinha.Caitlineeufazíamospartedessaturma,mascomoandávamoscom a equipe de golfe, e não com os jogadores de futebol, e às vezesdeixávamos de ir a festas para fazer a lição de casa, não pertencíamos àrealezasocial.

–AmelhorparteéqueYalenãotemgradeobrigatóriadedisciplinas–Caitlin está falando–,por isso,posso fazerpraticamenteoqueeuquiser.Hoje fuidarumaolhadaemTermodinâmicaEstatísticaeemIntroduçãoàAstro ísica Relativística, e as duas são incríveis. Adoraria fazer as duas,masoshoráriossesobrepõememquinzeminutos.Alémdisso, IAR temumpré-requisito… do qual talvez eu conseguisse uma dispensa…mas, sei lá.AchoqueestouinclinadaaescolherTermo.

SóCaitlin icariatãoempolgadacomessetipodeaula.Sério!Nemseioqueessascoisassignificam.

–Mas não preciso decidir isso hoje – ela acrescenta por im parandopararespirar.–Tenhoatéofimdasemanaparadecidir.

–Asaulasnãocomeçaramnasemanapassada?– Sim, mas temos duas semanas para inalizar nossa grade horária –

Caitlin explica. – Eles chamamde período de teste. É possível frequentarqualqueraulaquequiser,eagradehorárianãoédefinitivaatéofimdesseperíodo. Jádisseoquantoeuamoeste lugar?–Comose restassealgumadúvida;CaitlinsemprequisirparaYale,desdeoensinofundamental.

–Avidadeviaterumperíododeteste–eupondero.–Impediriaqueaspessoas icassem presas a decisões que não queriam tomar de verdade,massãocapazesdemudaravida.

–Ab…– Como estão as coisas com Tyler? – pergunto, mudando para um

assuntomaisfeliz.Trêssemanasatrás,nossomelhoramigosubiuemumacadeiraemumafesta lotadaeproclamouseuamorporCaitlin,numestilode animação de torcida (não seimuito bem como funciona omecanismo,mas, aparentemente, algumas líderes de torcida o ajudaram naempreitada). Como eu estava fora durante o verão, Caitlin e Tylerpassaram quase todos os dias juntos. Ela devia saber o que Tyler sentia

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por ela, mas diz que estava ocupada demais ingindo que as coisas nãotinhammudadoparanotaro tamanhodamudança.Para falaraverdade,achoqueCaitlinnão icoutãochocadacomograndeanúncioquantoIlana.Não sei o que a chocou mais – eu ter roubado seu papel, ou Caitlin terroubadoseunamorado.

Depoisdeesperarquatrodiasparamarcaroprimeiroencontro(Caitlinqueria que houvesse um “intervalo respeitável” entre o im dorelacionamento de Tyler com Ilana e o início de seu relacionamento comela; além disso, embora nunca tivesse dito a ele, ela estava estranhandomuito a ideia de beijá-lo, questãoqueTyler resolveu trêsminutos após oiníciodoprimeiro encontrodosdois, quandoparou a vande suamãenotrecho de cascalho da Kent Road e puxou Caitlin para o banco de trás),meusdoismelhoresamigosprosseguiramcomdezessetediasdeumlancecompletamenteintenso.

Eraminseparáveisatéiremparaafaculdade–CaitlinparaYaleeTylerparaMichigan,semnuncade iniremseurelacionamento.Caitlinserecusaachamá-lodenamorado,apesardofatodeconversaremaotelefonetodasas noites e não saírem com outras pessoas. Tyler, por outro lado, usa aspalavras “namorada” e “amor” sempre que possível. Ir com calmaaparentementenãofazpartedaestratégiadeleparaesserelacionamento.Nanoitepassada,elemedeixouumamensagemdevozdedoisminutosequarentaeseissegundos,naqualcantavaaplenospulmõesaletradeumaversãoinspiradaemCaitlinde“LoveStory”,daTaylorSwift.

–AscoisascomoTyvãobem–eladiz.–Elequervirmevisitarno imdomês,maseudissequeémuitocedo…émuitocedo,nãoé?

Antes de conseguir responder, alguémbate com força na porta. Espiopelo olho mágico, esperando que seja a camareira. Mas Bret Woodwardestá no corredor, usando um blazer e segurando lores. Ele é o ator deprimeira linha que está gerando toda essa agitação sobre o ilme, aquelecujo rosto está na capa de quase todas as principais revistas do mês,promovendo ooutro longa-metragem de ação de oitomilhões de dólaresdo qual faz parte, que estreia na sexta-feira. E ele está na minha porta.Comflores.

–Droga!–Sussurrocomviolêncianotelefone.–Droga,droga,droga!–Oquefoi?–Caitlinsussurratambém.–Porquevocêestásussurrando?–Desculpe–eladizcomavoznormal.–Quemestábatendonaporta?Ouve-seoutrabatida.–Abby.Quemestánaporta?

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–Bret–consigodesabafar.–BretWoodward?!–Shhhh.–Peçosilêncio.–Estoufingindoquenãoestouaqui.–Ei,Superfurtiva–Bretfaladocorredor.–Dáparaverseuspéssoba

porta.–Baixoosolhosatéochão.Háumvãodemaisdecincocentímetrosentreaportaeopisodemadeira.Drogadehotelantigo.

Caitlincomeçaarir.– Eu te ligo depois –murmuro. Aperto o botão para desligar e abro a

porta.– Está se escondendo demim? – Bret pergunta com uma piscadinha.

Sim,comumapiscadinha.Ocaramaissexydomundoestánaminhaporta,segurandofloresepiscando.

– Escondendo? Ah! Por que eume esconderia? –Mostro o telefone. –Minhaamigaestavanomeiodeumahistóriaeeunãoqueriainterromper.– Dou um sorriso que espero que pareça espontâneo e totalmentedesencanado.Oopostodecomoestoumesentindo.

Bretforçaumsorriso.– Que bom. Então isso é para você. – Ele me oferece as lores. Eu as

pego,afastando-meparadeixá-loentrarnoquarto.Uma rápida informação sobre o cavalheiro que está me visitando:

o icialmente, ele acabou de completar trinta e três anos, o que signi icaque, na vida real, deve estar se aproximando dos quarenta. Ou seja, namelhordashipóteses, o cara temquinze anos amais doque eu.Napior,eletemidadesuficienteparasermeupai.

–Qualéaocasião?–pergunto,admirandooecléticobuquê.Voudizerumacoisa:eletemumótimogostoparaflores.

Bretreviraosolhos.–Muitoengraçado.–Masmeuaniversárioésóamanhã–observo.–Seidisso–elea irma.–Masacomemoraçãocomeçaagora.Por isso,

vátrocarderoupa.–Comemoração?– Isso mesmo. Sem discussão. – Ele vai até o meu armário e abre as

portas.Está vazio.Bret olhaparamim, confuso.Apontoparaminhamala,encostadaemumcanto,comroupassaindodela.

–Aindanãodesfizamala–explico.–Vocênãodesfezamala?Estáaquidesdeoiníciodoverão!–Bretolha

paraaexplosãoderoupas.–Comoconsegueviverassim?–Nãogostode icaramarrada?–Tentoexplicar.Nãocheganemperto

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daverdade,masparecemenosidiotadoquemeusreaismotivos–quetêma ver com minha ixação obsessiva por ir embora daqui para podercomeçar a faculdade a tempo e seguir commeuplano. Bret acena com acabeça,comosetivessecompreendido.

–Entendo–eledizemvozbaixa,oqueeuachoqueerapara ser seutomexpressivo.–Apermanênciaésufocante.–Concordo,esperandoqueogestosejaigualmenteexpressivoenquantoBretcolocaminhamalasobreacamaecomeçaarevirá-la,examinando todasaspeçasderoupaantesdedobrá-las e colocá-las de lado. Sim, dobrá-las.Bret Woodward estádobrandominhasroupas .–Oqueachadesta?–elepergunta,segurandoablusapretadomeupijama.Eurio.Bretnempisca.

Ah.Certo.Eleestáfalandosério.– Hum, está bem… com o quê? – pergunto, com medo de escutar a

resposta. Bret atira a blusa do pijama naminha direção, depois pega asbotasdecaubóiqueestãoembaixodacama.

–Comisso–elediz,segurandoasbotas.–Agoravátrocarderoupa–eleordena,meempurrandonadireçãodobanheiro.–Precisamoschegaremquinzeminutos.

Em defesa de Bret, a blusa do pijama é um pouco parecida com umvestido. Um vestido muito, muito curto. Só que é umablusa de pijama.Pondero,dizendoaBretquenãopossosairusandoisso,maslogoalgoemmim cede. Completo dezoito anos em menos de cinco horas. Depois detantos anos tendo um comportamento exemplar, conquistei o direito demudarumpouco as regras (neste caso, emespecial, a regraquediz queumagarotaderespeitonãodevesairempúblicousandoapenasapartedecimadopijamaebotas).EestouemLosAngeles;nãosereiapessoamenosvestida da rua – nem de longe. Tiro a calça jeans, borrifo um pouco deperfume, façoumapequenaoraçãodeagradecimentopor terdepiladoaspernaseenfioopija...–err,ovestido–pelacabeça.

Embora tenhausadoessablusaparadormirummilhãodevezes, nãoestoupreparadaparaore lexoquemesaúdanoespelhodecorpointeiroatrásdaportadobanheiro.O “vestido”émais longodoqueme lembroeserve direitinho. Vestida assim, com as ondas escuras de meu cabeloalisadaseaindausandoamaquiagemdafilmagem,malmereconheço.Pelaprimeira vez desde que cheguei a Los Angeles, pareço alguém quepertence a este lugar. Apenas meus olhos – redondos, com um quê depânico–meentregam.

– Já está quase pronta? – Bret grita do lado de fora. – Estamosatrasados.

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– Só um segundo! – respondo, bochechando com o conteúdo dosfrasquinhosdeenxaguantebucalqueestãosobreapia.

Quando saímosdohotel, omanobrista está esperando como carrodeBret, umPrius vermelho-cereja combancos de couro importado. Ficomeperguntando quanto Bret pagou para forrar o interior de seu carroambientalmente responsável com pele de ilhotes de vaca. O funcionáriosaidocarroecorreparaabriraportado ladodopassageiro,masBretémaisrápido.

–Bemnahora–eledizquandoentronocarro,contorcendo-mequandootecidogrudanaminhacoxa.

– Mas há poucosminutos você disse que estávamos atrasados – digoquandoBretsejuntaamimnocarro.

– Foi um exagero necessário – Bret responde com um sorrisobrincalhão. – Descobri que as mulheres são muito mais rápidas quandopressionadas. – Ele pisa no acelerador e nos afastamos da guia em altavelocidade.Mulheres. Penso no des ile de mulheres com que ele serelacionou no passado: atrizes, modelos e, mais recentemente, umaestilista. Essasmulheres são, bem,mulheres. De repente, o fato deminhapessoa virgem que ainda-nem-completou-dezoito-anos ter acabado deentraremumcarrocomessecaradesupostamentetrintaetrêsanos,masprovavelmentepertodosquarenta(usandoapenasumablusadepijamaebotas)pareceumapéssimaideia.

BretolhaparamimenquantovoamospelaVeniceBoulevard.–Emqueestápensandoneste exatomomento?– elepergunta. –Está

comumacaraestranha.–Ediminuiavelocidadeapenasosu icienteparafazermosacurva,depoisvoltaaacelerar.

– Simplesmente não acredito que fareidezooooito anos em algumashoras–digo,esticandoapalavra.–Aindamesintotãonova,sabe?

Bretri.–Vocêénova.–Eleviraovolantedeformabruscaepisanosfreios.–

Chegamos.Estacionamos em uma viela estreita, próxima a um prédio de tijolos

pretos, sem janelas, com uma porta azul elétrica.Um restaurante? Aprincípio, achei que sim, mas não tem nenhuma placa, nenhum toldo,nenhumcardápionaporta.Nadaqueindiqueoquehádoladodedentro.

Ah,meuDeus.Nãoéumrestaurante.Éalgumacasadeswingbizarra.– Espero que esteja com fome – Bret diz, debruçando-se sobre mim

paraabriraportadopassageiro.–Tudooquetemnocardápioéincrível.–Nãoéumacasadeswingbizarra!Estouexultante.Bretsorriparamim.–

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Bem-vindaàsuafesta,Aniversariante.Paraminhasurpresa,umasvintepessoasestãoesperandopornósdo

ladode dentro, o bastante para encher a área reservada do restaurante.Reconheço a maioria, todos do ilme. Bret se afasta para falar com ogarçom e alguémme entrega uma taça de champanhe. Viro a bebida deumavez,comoseestivesseacostumadaarecebertaçasdechampanheemáreasreservadasderestaurantessuperluxuosos,esperandoqueajudasseaacabarcomaestranhezadaquelanoite.

– Abby! – Kirby, a mais jovem (e, ao que parece, mais bêbada) doelenco se aproxima demim, equilibrando-se nos saltos altos. – Consegueacreditar?–elasussurra,agarrando-seemmeuombroparanãocair. Uau.Olá,vodca.VejoquejáconheceuKirby. –Issoaquié,tipo,aimeuDeus... tipoo lugar do momento – diz, empolgada, com um carregado sotaque deBoston que eu não sabia que ela tinha. – Ninguém, tipo, nem conseguefazerreservasenãoforfamoso.

–Uau!–OlhoparaBret,queestáocupadodandoinstruçõesdetalhadasaumdosgarçons.Elepercebequeestouobservandoepisca.

– Precisamos de bebidas – Kirby anuncia, soltando meu ombro esegurandoemmeucotovelo.ElamearrastaatéamesarepletadegarrafasnocantodosalãoeseservedeRedBullcomvodca.Euavejotomartudodeumavez,elogoservirmaisumadose.–RBV?–elapergunta,balançandoagarrafadevodcanaminhacara.

–Não,obrigada.Jáestousentindoachampanhe.– Você que sabe. – Ela dá de ombros, depois sai andando, levando a

garrafa.–Eentão,comomesaí,Aniversariante?–OuçoBretperguntar,falando

emmeuouvido.Eumeviroeperceboimediatamenteoquantoseuslábiosestãopertodosmeus. – Sabe, vocênãoéumapessoa fácil de sacar – elemurmura, tirando o cabelo domeu rosto. –Mas não estou reclamando. –Quando seus dedos percorremmeu queixo, gotículas de suor se formamsobre meu lábio superior. Luto contra o ímpeto de exterminá-las com alíngua.

A intensidade domomento está aumentando a cada segundo,mas eunãoconsigodesviaroolhar.OsolhosdeBretsão TÃOAZUIS(lentesdecontatocoloridas, sem dúvida) e seu perfume é ridiculamente bom. Como nuncahavia notado isso antes? Aproximo a cabeça para sentir melhor. Bret,certamente menos embriagado do que eu e, assim, ainda operando noâmbito do comportamento normal, presume que estou me aproximando

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para umbeijo. Por que, sério, quem se aproxima para cheirar? Ameninaloucadepijamaebotas,éclaro.

Então, ele me beija. É mais o prelúdio de um beijo, na verdade. Seuslábios mal roçam nos meus, e logo termina. Um segundo depois, ouço onítidocliquedacâmeradeumcelular.Nãoprecisonemolharparasaberdequemé.TerceiroRBVemumamão,celularnaoutra.

– Sorriam! – Kirby diz em um tom cantado, tirando outra foto. EumedoucontadequeháumaenormechancedeeuacabarnaUSWeekly, ideiaaomesmo tempo terrível e empolgante.Aperto os dentes e sorrio para acâmera,jáensaiandoexplicaçõesracionaisnacabeça.Ah,isso.Estávamossóensaiandoumacenaparao ilme,pai.Não,nósnãonosbeijamosdeverdadeno ilme,masodiretorquisvercomo icariasenosbeijássemos…Sim,elefazo papel do meu tio, mas o roteirista estava brincando com um enredo deincesto…DROGA!

– Não se preocupe com a foto – Bret diz, colocando o braço emmeuombro. –Não tem sinal aqui, então ela não podemandar a imagemparaninguématésairmos.Eaessaaltura,todasasfotosincriminadorasjáterãosido apagadas. –Ele acena coma cabeçaparao cara ao ladodeKirby.Obícepsdeleédo tamanhodaminhacoxa,masnãodeve termaisdevinteanos. –Aquele é o Seth,meu treinador. Sempreque saímos comaKirby,ela vira a louca da câmera. Então Seth é o encarregado de “pediremprestado” o celular dela e apagar tudo antes que ela possa fazerqualquer estrago. – Ainda com os braços nos meus ombros, Bret meconduzaumsofádeveludodooutroladodosalão.

– Mas você não respondeu a minha pergunta – ele diz quando nossentamos.–Comoeumesaí?

–Estábrincando?Issoéótimo.Omelhoraniversáriodetodos.–Masaindanãoéseuaniversário.–Bretapontaparaorelógio.–Ainda

são21h30min.–Hummm...bem lembrado.Entãoachoqueéomelhordiaanterior ao

meuaniversáriodetodos.–Brinco.– Imaginoque tenhasidobomeuguardaraverdadeiradiversãopara

amanhã–dizBretcomumsorrisomisterioso.Euergoassobrancelhas.–Essaspessoasmalmeconhecemevocêvaimeobrigaracomemorar

meuaniversárioduasvezes?– Amanhã à noite seremos só você e eu, garota. Jantar na praia em

Malibu. – Ele toma um gole de champanhe. – Amenos, é claro, que você

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tenhaoutrosplanos…–Bretfazumapausa,tomandooutrogoleenquantoesperaqueeumemanifesteecon irmequenãotenho.Éoqueeleespera.Maseunãovou,de jeitonenhum,sairpara jantarcomessecara.Claro,aideia de participar de um jantar íntimo com o caramais sexy domundotemseuapelo,masele(a)évelhodemaisparamim,(b)é famosodemaisparamim,e(c)parecemuitoinclinadoaquerersexonoprimeiroencontroparamim.Alémdisso,ainda tenhoospésmuito irmesnarealidadeparasaberque isso–osespaçosreservadosparatrintaepoucascelebridadesde Hollywood em restaurantes damoda – não faz parte domeumundo.Estouapenasdepassagem.

Bret ainda está esperando minha resposta quando o primeiro pratochega.

–Estoufaminta–anuncio,praticamentecorrendoparaamesa.–Vamoscomer!–Bretgritaparaaspessoas,etodossesentam.Três horas, quatro pratos e um delicioso bolo com cobertura de

chocolate depois, estou bebericando a quarta taça de champanhe ere letindosobreadiferençaentreesseaniversárioeoúltimo.Háumano,comemorei o grande dia com um bolo de sorvete e jantar com Caitlin emeus pais. Agora, aqui estou, do outro lado do país, festejando comcelebridadesetomandochampanhe.Aomeulado,BretWoodward–oBretWoodward–estáconversandosobrefuteboluniversitáriocomocaraquefaz o papel domeu irmão, com o braço pendurado nas costas daminhacadeiracomoseaquelefosseseulugar.

– Ei,BW! – Seth grita para Bret do outro lado da mesa. – Acho quechegouahoradecolocaraBarbieHollywoodnacama.–EleapontaparaKirby,debruçadasobreamesa,roncando.–Possopegarumdoscarros?–Seth pergunta. Ao ouvir a palavra “cama”, sou atingida por uma onda deexaustão. Estou acordada há vinte e uma horas, depois de ter dormidoapenasquatro.

– Você se importa se eu for com eles? – pergunto a Bret,repentinamente impressionadacomopesodeminhaspálpebras.–Tenhoqueestarnosetàs6hamanhã.

–Vamostodos–elediz, ixandoosolhosazuisnosmeuscansadosolhosacinzentados. Fico corada com o olhar, mas não viro o rosto, encorajadapor todo o açúcar, álcool e endor inas. Por um segundo, me imaginobeijando-o – beijando-o de verdade. –Apenas diga que vai jantar comigoamanhãànoite.–Euoouçodizer.

–Voujantarcomvocêamanhãànoite.

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– Sério? – Para um cara que parecia tão con iante, ele pareceextremamentesurpreso.

– Ei, Jake, espere só um minuto – Bret diz ao motorista quando alimusineparanafrentedoCulver.–VouacompanharAbbyatéoquarto.

–Ah,nãoprecisa–digo. –Euvou icarbem.Vocêprecisa levarKirbyparacasadequalquermodo.–Douumtapinhaamigávelnobraçodeleesaio rapidamente da limusine, fechando a porta antes que Bret tenhatempo de argumentar. Dois segundos depois, estou batendo na janela,sentindo-meumaidiota.

OtetosolarseabreeBretcolocaacabeçaparafora.–Esquecideagradecer–digo.–Anoitefoiincrível.– Você merece coisas incríveis – ele responde, levantando a taça de

champanhevazia.Atrásdele,océunoturnotemumtomespantosodeazul-índigo.Meuprimeiropensamentoéque se trataapenasdepoluição.Maslogo vejo as estrelas. Estão tão brilhantes. Tipo… brilhantes de um jeitoestranho.Inclinoacabeçaparatrásparavermelhor.Oventobateemefazestremecer,masnãoconsigoparardeolharparaasestrelas,quesão tãobrilhantesquequase cegam. –Anoite é sua,Aniversariante. –OuçoBretdizer.Abaixoosolhos, esquecendodas estrelas edo arrepio,masBret jávoltou para dentro da limusine, desaparecendo atrás do vidro escuroenquantoocarroseafasta.

Quando chegoaoquarto, nemmepreocupoemacender as luzes.Tiroasbotas,pensoemcomoéconvenientejáestardepijama,ecaionacama.

Sonho com terremotos. Sacudindo tanto que a porta bate, as janelasrachameoespelhodaantigacômodaseestilhaçanochãodemadeira.Masissosóduraumsegundo.Depoisomundoficapreto.

Pulo da cama com uma luz clara e quente e uma rajada de ar frio.

Tremendo,abroosolhos,depoisosfechoimediatamente,recuandodiantedaclaridade.Levoalguns segundosparamedar contadequeaquela luzofuscanteéosol.

Merda,merda,merda.Se o sol já nasceu, ou não acordei com a ligação que pedi para a

recepção fazer às cinco horas, ou eles não ligaram. Sinto que começo aentrar em pânico. Que horas são? Eu tinha que estar fazendo cabelo emaquiagemàs6h05min.Alainvai icarfuriososeeumeatrasar. Porfavor,

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quenãotenhapassadodasseis,porfavor,quenãotenhapassadodasseis,porfavor, que não tenha passado das seis. Ainda acostumando os olhos à luz,roloatéocriado-mudoemeobrigoaolharparaorelógio.

Masnãotemrelógionenhum.Ondedeviaestarocriado-mudo,háumaparede.Umaparedemalpintadadebranco.

Omedotomacontadomeucorpo.Asparedesdomeuquartonohotelsãocobertasdepapeldeparededourado,comtextura.Eacamanãoétãopróxima da parede. Com o coração acelerado, olho para o cobertor queestousegurando.Umcobertorquedeviacombinarcomoestofamentocordemarfimdacadeiravitorianapróximaàjanela.

Ocobertoréazul.

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2(Lá)segunda-feira,8desetembrode2008(umdiaantesdomeuaniversáriodedezesseteanos)

–Abby?Abby,querida,acorde.Abroosolhos.Minhamãe,aindadepijama,estásentadanabeiradada

minha cama, extremamente calma. Aprecio o esforço, mas logo perceboqueháalgoerrado.Temmuitaluznomeuquarto.

–Quehorassão?–Cincoparaasoito.Eu pisco. Por um instante, ico parada, calculando o número exato de

minutosentreagoraeahoraquetocaoúltimosinal.Treze.–Abby?–Minhamãeestáclaramenteconfusacomminhaimobilidade.

Ambassabemosquenãotemcomoeuconseguirchegaràescolaatempo,oque signi ica que vou perder o sorteio das vagas de estacionamento doúltimo ano. Eles começam com as vagas mais próximas ao prédio e vãoafastandonadireçãodarua,tirandonomesdeumacaixanavelocidadedaluz.Paragarantiravaga,éprecisoestarpresentenomomentoemqueseunomeéchamado.Senãoestiver, imde jogo.Éautomaticamenterelegadoaoterrenodooutroladodarua.

Pulodacama.– Por que o alarme não tocou? E por que meu despertador está no

chão?–Apontoumdedoacusatórioparaabasedomeucriado-mudo,ondemeu rádio-relógio está virado para baixo sobre o carpete.Minhamãe seabaixaparapegá-lo.

–Teveumterremotoontemànoite–elaresponde,colocandoorelógiodevoltano criado-mudo.Estápiscando12:00. –Pelomenos todos achamquefoiumterremoto.

– Um terremoto? EmAtlanta? – Fico olhando para ela. – Como épossível?

–Aparentemente,nãoéaprimeiravezqueacontece.Etambémnãofoisó aqui. – Ela aperta o botãodo rádio emmeu relógio.O som familiar domeuprogramamatutinodenotíciaspreferidoencheoquarto:

Não foi relatado um número signi icativo de avarias e feridos, mas as

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pessoasestãorelatandoquedasdeenergiaemváriaspartesdacidade.Esseéo terceiro terremoto que atinge Atlanta desde 1878. Sismólogos estãodesnorteadoscomotremor,que,apesardetersidorelativamentepequeno–apenas5.9naescalaRichter–parece terdesencadeadoatividadesísmicanomundotodo.

Por um instante, imagino se ainda estou dormindo. Um terremotosentidonomundotodo?

– Viu preparar o seu café, tudo bem? – minha mãe perguntou,levantando-se.

Façoquenãocomacabeçaenquantosaiodacama.–Nãodá tempo.Mas obrigada. – Puxo o elástico do cabelo, desejando

quetivessetidoa ideiade lavá-lonanoiteanterior,emecontraioquandomeus dedos encontram um nó. – Será que as aulas foram canceladas? –Grito.

Minhamãereaparecenaporta.Negacomacabeça.–Jáanunciaramquenão.–Eosabalossecundários?–Perguntoenquantomeolhonoespelhoda

cômoda,tentandodecidirseémesmonecessáriotomarbanho.– Imaginoqueelesachemque todosestarãomais segurosnaescola–

minhamãeresponde.–Menosjanelas.Ignoroobanhoeborrifoneutralizadordeodoresdelavandanocorpo.

Prendooscabelossujosemumrabodecavalo,pegominhabolsaedesçoasescadasatéacozinha.

– Está empolgada com o primeiro grande dia? – Meu pai perguntaquandoeuapareço.

–“Empolgada”éumapalavraforte.–Bem, tente aproveitar – ele diz em tomansioso. – Só se faz o último

anoumavez.–Possodizerpeloolhardelequeestáse lembrandodoseupróprio último ano de colégio, quando passava um tempo no estúdio deAndy Warhol em Manhattan depois da aula (sim,aquele Andy Warhol),fazendoserigra iase litogra ias,eprovavelmenteusandoumaquantidadeenorme de drogas. Eleme disse que, embora sua vida tenha icadomaisfeliznosanosseguintes,nuncasesentiutãovivocomonaquelaépoca.

–Nãoesqueçaoalmoço!–dizminhamãe,indoatrásdemimcomosacode papel pardo na mão. Como sempre, tem um adesivo colorido paramantê-lo fechado. Eu disse uma vez, anos atrás, que o adesivo eradesnecessário porque o saco sempre ia parar no lixo. No dia seguinte,havia um bilhete dentro do saco, escrito em um belo papel artesanal:Querida Abby, a beleza da vida está na beleza da vida. Aprecie os detalhes.

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Comamor,mamãe.Oadesivopermaneceu.–Nãocorra!–meupaiaconselha.–Podedeixar–mintoecorroparaaporta.Minha escola ica a exatamente seis quilômetros e cinco semáforos de

distância.Nosúltimostrêsanos,aprendiqueotempoquelevoparachegarlávariadrasticamente,dependendodohorárioedoclima.Antesdasseteda manhã, em um dia claro, levo quatro minutos. Em dias de chuva,durante a hora do rush, levopelomenosdoze.Hoje é a primeira “manhãpós-terremoto”pelaqualjápassei,entãonãoseimuitobemoqueesperar,mascertamentenãoestoupreparadaparaoengarrafamentoqueencontroassimquesaiodomeubairro.Ninguémsemove.Parecequetodosemumraiodequinzequilômetros resolveramentrarno carro aomesmo tempo.Olhoparaorelógionopaineleresmungo. Jásão8h25min,eainda faltamcincoquilômetros.

– Se estou atrasada, signi ica que muita gente também está. Tenhocertezadequevãoadiarosorteio–pensoemvozalta,tentandoacreditarem mim mesma. Ah, até parece. O diretor, um cara grande e feio cujoarsenaldeclichêsecicatrizesdeacne lherendeuoapelidode“OQueijo”,certamentesaboreariaaoportunidadedeproferir suamáximapreferida:“Depende de vocês fazer o que for preciso”. Em outras palavras: nãoculpem o terremoto – se chegar na escola no horário certo é importanteparavocês,arrumemumdespertadorapilha(foioqueeledisseatodososalunos, sem ironia, totalmente sério, depois que um tornado destruiu aredeelétricalocalhádoisanos).

Às8h54min,estaciononaescola.Peloquevejo,oscarrosqueentupiamasruasnãopertenciamaosmeuscolegasdeclasse.Nãohánenhumavagavazia.

–Umaprévia–balbucio,indoatéoterrenoanexo,dooutroladodarua.– É melhor eu me acostumar. – Estaciono em uma das poucas vagasrestantesecorroparaoprédio.Osinaldasegundaaulaestátocando,altoe agudo, quando abro a porta. Não vejo nenhum aluno do último ano nocorredor lotado, o que considero um bom sinal: o sorteio pode não teracabadoainda.

Quandome aproximo do auditório, sou recebida pela voz abafada doQueijo. Passo pela porta e me sento na última ileira. O auditório temassentos no estilostadium, demodoquepossoverperfeitamenteopalco.Atrásdotablado,existeumdiagramagigantedoestacionamentosobreumcavalete.Mesmonãodandoparaleraessadistância,todasasvagasestãopreenchidascomnomes.Droga.

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– Este é o ano de vocês – o senhor Queijo está dizendo. – Tiremproveito. – Ele cerra os punhos para dar ênfase. Pelo mar de corposafundadosnascadeiras,éóbvioqueeleestásendoignoradocomsucesso.

Procuro Caitlin e Tyler na multidão. É fácil encontrar Ty. É o únicomoreno em uma ileira de brancos (nosso time de golfe). Depois acaboencontrandoCaitlin do lado esquerdo, ao lado de um assento vazio pertodo corredor, certamente guardado para mim. Meus olhos estão ixos noalto de sua cabeça loira, desejando que olhe para mim, mas ela estáconcentradaemalgoemseucolo.

Doissegundosdepois,meutelefonevibracomumamensagemdetexto.Caitlin:KDVC???Respondo rapidamente.ATRÁS DE VC. NO FUNDO. Logo depois que aperto

“enviar”,elasevira.Acenoeelasorri,aliviadapormever,depoisseviranovamenteparaotelefone.

TDBEM?SIM.DESPERTADORNÃOTOCOU.VIXE.QUEDROGA.NEMFALE.QUENOVOCÊPEGOU?27

QUESORTUDA!SEGUNDAFILEIRAMAISPRÓXIMADOPRÉDIO.LEGAL!EEU?Caitlin levantaosolhosemeolhacomempatia.Meu telefonevibraem

minhamão.A7:(AdeAnexo.Queótimo.– Sinto muito – Caitlin sussurra. Dou de ombros. A essa altura, nem

estoumaissurpresa.Nãoseibemoquegostariadesaber,masperguntoassimmesmo:QDCHAMARAMMEUNOME?Outroolharsolidário.FOIONO19Naprimeirafileira.Éóbvio.–Esperamosquecadaumdevocêsseresponsabilizeporseufuturo–o

Queijo continua sua lengalenga. – Nossos coordenadores são um ótimorecurso,usem-nos,masasdecisõessão,emúltimainstância,devocês.Paraonde vão a partir daqui, depende de vocês. Não peguem a Estrada paraLugar Nenhum. – Todos reviram os olhos. Os prisioneiros estavamatingindo seu limite de Queijo. Felizmente, ele estava terminando. – São

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9h05min–eleanuncia,apontandoparaorelógionaparede.–Esperamosque todos estejam na sala para a segunda aula, em seus lugares, às9h15min.Estãodispensados.

VouparaocorredordaesquerdaparaencontrarCaitlin.Usandojeansjustos, sapatos de salto e um blazer de seda curto, aparentemente deviaestar na capa daTeen Vogue , e não atravessando os corredores de umaescoladebairro.

– Oi – Caitlin diz, passeando pelo corredor. – Esqueceu de trocar aspilhasdoseudespertador?

– Como você sabe? – Ando ao lado dela. – Perdi alguma coisaimportante?

Elasacodeacabeça.–ApenaspérolasdesabedoriadoQueijo.Seiqueestáarrasadaporter

perdido.–Otelefonedelavibracomumamensagemdetexto.–Tyler?Elafazquenãocomacabeça.– É omeu pai. Ele está no escritório regional do SGEU. Fiz ele prometer

quememandarianotíciasdehoraemhora.–SGEU?–ServiçoGeológicodosEstadosUnidos.Estãopreocupadoscomdanos

estruturaisdevidoaotremor.– Já descobriram a causa? – pergunto. – Desde quando terremotos

fazemomundotodotremer?–Terremotosnãofazemisso.AntesqueeutenhatempodeperguntaroqueCaitlinquisdizer,alguém

dáumtapinhaemmeuombro.–Abby?–É a senhoraDeWitt, umadenossasorientadoras. Fui à sua

salatãopoucasvezesqueestousurpresaporelasabermeunome.–Temumminuto?

–Hum,claro.–OlhoparaCaitlin.–Vejovocêdepois?–Caitlinconcorda,depoisseguenadireçãodaporta.EumeviroparaasenhoraDeWitt,quefazumsinalparaqueaacompanhe.

–EnvieiumbilheteparaasenhoraGorinhojecedo,pedindoquevocêpassassenaminhasalaantesdosorteio,masvejoquenãoconseguiu iràsaladacoordenaçãohoje.

–É... não, acabeide chegar. Fiquei semenergiadevidoao terremoto–explico. Ela está alguns passos na minha frente, então me apresso paraalcançá-la.–Hum,estátudobem?

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Chegamosàsaladelaeelameconduzparadentro.– Está tudo bem – responde, fazendo um gesto para eu sentar. – Só

temosdefazerumamudançaemsuagradehorária.Ficoparalisada.–Quetipodemudança?–OsenhorSimmonscancelouHistóriadaMúsica–eladiz,sentando-se

atrás de suamesa. Há fotos de um gato siamês com cara demalvado noquadro de avisos. – O que deixa seu quinto período vazio. – Sua voz ébrusca,comoseestivessecompressa.–Maiscedohaviavagasemalgumasoptativas,mas,comojárealocamosvinteedoisalunosdesdeentão,receioquenãotenhamsobradomuitasopções.

Droga.HistóriadaMúsicaeraumcomponentefundamentalparaminhagrade horária perfeita. O nome parece válido o bastante, mas é umadisciplina facílima. A prova inal consiste em ouvir à lista de músicas“essenciais” selecionadas pelo senhor Simmons e escrever um trabalhosobreaimportânciadamúsicaparaaculturapopularamericana.

– Então, como eu ico? – pergunto, esperando que ela me diga que osenhorSimmonscriouumanovamatéria,algoquefaçaHistóriadaMúsicaparecerciênciaavançada.

– Princípios de Astronomia. – Ela nem tentou dar a entender que setratavadeumaboanotícia.

Eunãovousurtar,eunãovousurtar.–Éminhaúnicaopção?– A esta altura, sim – ela diz, desculpando-se. – Se estivesse aqui

quando a chamamos, podia ter escolhido a aula de teatro da senhoraZiffren…mas acho que agora não temoutro jeito, não é? – Ela sorri comtranquilidadeaomeentregarminhanovagradehorária.–Aboanotíciaéqueastronomiavaisedestacarmuitoemseuhistóricoescolar.–Olhoparaapáginarecém-saídadaimpressora,aindamorna.

É.Asnotasbaixassempresedestacam.

– Abby, pare de surtar. – Caitlin espeta um pepino com o garfo e ocolocanaboca.–Eufizessamatérianoprimeiroano.Nãoédifícil.

– Diz amenina que passou os últimos dois verões fazendo estágio naNasa. – Estamos sentadas na colina atrás do refeitório, com o almoço aolado.Ogramadoestácheiodealunosdoúltimoanodesfrutandodaluzdosol e de um dos poucos bene ícios de estar no último ano: comer ao arlivre.

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Caitlinreviraosolhos.–Abby,neméumaauladeastronomiadeverdade.Estoufalandosério.

Sehouveralunosdaáreadeciênciaslá,serãodoprimeiroano.–Que ótimo – digo com sarcasmo. – Então umbando demoleques de

catorze anos podem me fazer parecer burra. Estou me sentindo muitomelhoragora.

–Éoúltimoano,galera!–Olhamosparacima.Tylerestásorrindoparanós,acompanhadodequatrocarasdaequipedegolfe.

–Porqueestátãofeliz?–resmungoenquantoTylersesentanagramaaoladodeCaitlin,comoalmoçonamão.Osoutroscarassesentamàmesadepiqueniquea algunsmetrosdedistância, certamentepreocupados emnãoamassarascalçascáqui.

Caitlin, Tyler e eu almoçamos juntos todos os dias desde o sexto ano.MeuspaisconheceramospaisdeTyler–ambosmúsicosclássicos–emumeventoparaarrecadardinheiroparaoFundodeDoaçãoNacionalparaasArtesduassemanasdepoisquesemudaramparacá,demodoqueeueTyparticipamos de churrascos e noites de jogos juntos desde bebês. Houveumperíodo,noensinofundamental,emque ingíamosmenosprezarumaooutro,masapartirdoquintoano já éramos inseparáveis. Só conhecemosCaitlinno sexto ano, quando sua família semudoude SãoFranciscoparacá.Nóstrêssomosmelhoresamigosdesdeentão.Hojeemdia,Caitlineeusomosmais próximas do que somos de Tyler, principalmente porque elepassaotempotodojogandogolfeesaindocomosjogadoresdevôlei.Ecomaslíderesdetorcida.

Tylerse livradoblazereopenduranacercaatrásdenós.Sim,elevaipara a escola de blazer. Esse é o Tyler. Uma contradição ambulante. Ogaroto do coral que usa identidade falsa para comprar cerveja todos osins de semana, mas que se recusa a atravessar a rua fora da faixa depedestres.OatletacomumaobsessãoporCarrieUnderwood.Omeninodacidadequeusablazerejogacroqué.

– Estamos no último ano. Quer motivo maior para icar feliz? – Tylervira o saco do almoço e derruba seu conteúdo no gramado. Quatrosanduíches, duas maçãs, uma laranja, dois sacos de batatas fritas, umiogurtedemirtiloeumpacoteinteirodebiscoitosdoces.

–Abbyestásurtandoporquevaiterquefazerastronomia–Caitlindizaele.

–Nãoestousurtando.Elameolhacomassobrancelhaserguidas.–Credo,eutambémestariasurtando–dizTyler.

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Caitlinocutucacomocotovelo.–Ignoreele.–Caitlinordena.–Vaidartudocerto.OsenhorKangéum

ótimoprofessor.–Nãoéelequevaidaressamatéria–digoaela.–Doquevocêestáfalando?AmatériaédoKang.– Este semestre não – respondo, entregando a ela a folha comminha

novagradehorária.Caitlinbateoolhoereageimediatamente.–Nãopodeser!–Oquê?–indago.–AmenosquesejaoutroGustavP.Mann,ocaraqueestáministrando

suaauladeastronomiaéumganhadordoprêmioNobel.Lembranças de Introdução à Botânica do nono ano voltaram em alta

velocidade.–Porfavor,digaqueestábrincando–resmungo.–Aindatemvagaemtodasasminhasaulas–dizTylercomcompaixão.

–HistóriadaNarrativadoSul,DesigndeObjetoCenográ ico,IntroduçãoaRitmo e Andamento, Física Aplicada, Matemática Avançada e Espanholpara Conversação. – Ouvindo-o recitar essa lista risível, sinto inveja deTyleredesuaprofundafaltadeambiçãoacadêmica.Eleéinteligente,masquandoseéumastrodogolfe,oprocessodeinscriçãonafaculdadeéumpoucodiferente.

–Essasmatériasexistemmesmo?–perguntoaele.–Maisoumenos–Tylerresponde,terminandooúltimosanduíche.– Por que ele está dando aula aqui? – Caitlin ainda está olhandopara

minha grade horária. – Sei que houve uma pressão para ele pedirdemissão,mascomoveiopararaqui?

–Pedirdemissãodeonde?–pergunto.– De Yale. Ele é professor efetivo de lá. – Ela franze a testa. – Era

professorefetivo.– Por quê? Ele molestou algum aluno ou algo assim? – Tyler brinca.

Caitlinolhafeioparaele.– Não, ele não molestou nenhum aluno. Ele publicou um livro que a

comunidade cientí ica não conseguiu engolir, principalmente porqueparecia um enredo de icção cientí ica. Quando não foram capazes dederrubarateoria,riramdela.Edele.

–Qualéateoria?–pergunto.– Tem a ver com universos paralelos – Caitlin responde. – O doutor

Mannalegaqueépossívelqueeles…–Oiiii,Tyler!–AexpressãodeCaitlinazedaemum instante.Ninguém

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precisaolharpara saberdequeméavoz. IlanaCassidy,possivelmenteapessoa menos agradável e mais genuinamente mesquinha do mundo.Aparentemente,ofatodeIlanaserodemônioencarnadonãoerasuficienteparaimpedirTylerde icarcomelanafestaanualde imdeverãodeMaxLevine,dandoaimpressãoerrôneadequeelesagoraformavamumcasal.Ilana está parada ao pé do morrinho, com as mãos na cintura, posandocomoseestivessenotapetevermelho.

–Elaestáesperandoospaparazzi?–Caitlinmurmuraemvozbaixa.AúnicapessoaquegostamenosdeIlanadoqueeuéCaitlin.

Os olhosde Ilana voampara cimadeCaitlin. Emuma estranha viradadodestino,CaitlinéaúnicapessoacujaaprovaçãoIlanabusca,oquetemmuitoavercomseuguarda-roupadignodepassarela.Ilanavêqueaestouobservandoeolhacomraiva.

–Oqueestáolhando?–Seiqueémelhornãoresponder.–Falocomvocêdepois,estábem?–TylerdizparaIlana.–Estamosno

meiodeumaconversa.Um olhar de irritação toma conta do rosto de Ilana, mas ela disfarça

comumsorrisoforçado.–Estácerto!–elaresponde.–Depoisvocêmemandaumamensagem

detexto!Tylerdáumacenoesquivo,depoisvoltaaseconcentrarnoalmoço.–Aindanãoacreditoquevocê icoucomela–CaitlindizparaTylercom

avozásperaquandoavêseafastar.–Nãoseiporquevocêaodeiatanto.Elanãoétãoruimassim.–Ah,ésim.–Sabedeumacoisa,vocêsduassãomeioparecidas–Tylerdiz,abrindo

o iogurte. Ele lambe a parte interna do alumínio, depois faz uma bolinhacomelee joganalatadelixomaispróxima, ingindonãonotarqueCaitlinestáolhandofeioparaele.

–Nãosomos,não.– Cabelos loiros, olhos azuis… – Tyler sorri. – Vocês podiam até ser

irmãs.Não consigo conter o riso. É verdade que Caitlin e Ilana têm cabelos

loiroseolhosazuis,masnãoseparecememnada.Caitlinéumaréplicadamãe – alta,magra, bonita demodo natural. Ilana, por outro lado, sempreparecia ter passado duas horas na frente do espelho (e umas quatro naacademia)tentandoconquistarovisualdebonecaBarbie.Seu1,58metrode altura comporta roupas do departamento juvenil, e os cabeloscastanhos e encaracolados foram descoloridos e alisados, de modo a

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caíremesticadossobreseusombrosmagros.Caitlin fazcara feiaedáumsoquinhonoombrodeTyler.Eleagarrao

punhodelaeoseguraporalgunssegundosamaisdoqueserianecessário.É quando acontece. Algo se passa entre os dois. Algo que eununca tinhanotadoantes.Algotãosutilqueéquaseimperceptível…

Química.Assimqueopensamentopassaporminhacabeça,tenhocertezadeque

é isso. Não consigo explicar como eu sei. Simplesmente sei. É como umpressentimento intenso, uma intuição tão fortequequasepareceumdéjàvu. Será que foi por isso que Tylerme perguntou ontem se Caitlin haviaconhecido alguém no laboratório durante o verão? Imaginei que fosseporque ele queria importuná-la (Tyler não se cansa de fazer piadas denerd), mas agorame pergunto se ele não tinha outrosmotivos. E Caitlinestava criticando essa coisa da Ilana com uma intensidadedesproporcional,deformamaliciosa–coisaquenãocostumafazer.

–EntãoestádizendoqueCaitlin faz seu tipo?–eudigo,mantendoumtomdevozcasual.–Comonãopode icarcomCaitlin,estáseconformandocomIlana.

TylereCaitlinolharamparamim,ambossurpresos.Não fazemosessetipo de brincadeira. Nunca.Estou enganada ou as bochechas de Tylericaramaindamais coradas? O constrangimentoduraum instante.DepoisTylersorri,eoestranhamentoevapora.

–Sim,éissomesmo–elediz,puxandoCaitlinemsuadireção,entrandona brincadeira. – Ilana está preenchendo o vazio que Caitlin deixou emmim.

–Nãomelembrodeserfresca–Caitlinretruca,empurrando-o.Seutomde voz é áspero e malicioso, nada a ver com ela. – Desculpe, isso foimaldade.

–Amenina temfotosdeMary-KateOlsennaportadoarmário–Tylerobserva.–Tenhoquasecertezadeque“fresca”éoqueelaalmejaser.

Caitlinolhaorelógio.–Émelhoreuir–eladiz.–TenhodepassarnasaladasenhoraDeWitt

antesdaaula.–Amençãoaonomedaorientadoramefazvoltaraoestadodepânico.Aauladeastronomiacomeçaemdezminutos.

– Por favor, diga que vai mudar para a minha turma – imploro. –Poderáestudarcomseuídoloemeajudaraomesmotempo.

– Bem que eu gostaria – ela responde. – Mas eu já iz com o senhorKangnoprimeiroano.Elanãovaimedeixarfazerduasvezes.

–Entãooquepretendetrocar?

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–Nãovoutrocar.Sóvouacrescentar.Queroversemedeixamdobrarasextaaula.

– Quer fazer duas matérias de uma vez? – pergunto. Já vi a gradehoráriadeCaitlin.Épesada.

– Nenhuma das duas será oferecida no próximo semestre – ela dizcomosefosseacoisamaisnormaldomundo.–Então,sim,porquenão?

OlhoparaTyler.Eleapenasdádeombros.–Quenovidade,Barnes.Elaémaluca.Chegonaquintaaulaalgunsminutosmaiscedo,masasalajáestácheia.

Caitlinestavacertasobreosalunosdoprimeiroano;cercademetadedosrostos parecem jovens e assustados. Do resto, um terço é de gente queconheço, provavelmente outros refugiados de História da Música. Osoutros, reconheço como geninhos da área de ciências, que certamentedestruirãoamédiaeasnotasdetodos.Procuroumlugarvazio.

Encontro um na última ileira, perto de um cara que nunca vi antes.Cabelos loiros e bem curtos, olhos castanho-escuros, traços comuns.Camisetaazul-clarodentrodecalças cargoverdes cheiasdebolsos.Tênisbrancos estilo All Star (cano baixo) que parecem ter acabado de sair dacaixa. Tem jeito de bobo, mas é bonitinho. Como Max Levine antes dedeixar o cabelo crescer e começar a fumar toneladas demaconha. Comoparece velho demais para estar no primeiro ano, imagino que seja alunonovo.

O Garoto Astronomia me vê olhando para ele e sorri. Aponta para olugarvazio.

–Ei–eledizquandomeaproximo.–MeunomeéJosh.–OmeuéAbby.–Porquefiqueinervosaderepente?–Matériapopular–Joshobserva,olhandoparaasalalotada.–Signi ica

queéboa,oumuitofácil.–Certamentenãoé fácil–respondo.–Amenosquevocêsejadaárea

deciência.Nessecaso,“fácil”éumtermorelativo.–Ah,certo–Joshdiz.–Aquelacoisadeescolaespecializada.Vocêestá

noprogramadeciência?–Não,nemchegoperto.Nuncaestudeiumadisciplinadeciênciasque

nãotenhaodiado.–Entãooqueestáfazendonaauladeastronomia?– Um infeliz capricho do destino – respondo, distraída pela pequena

pintasobseuolhoesquerdo,bemabaixodalinhadocílio.Éminúscula,não

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passa de um pontinho, mas a marquinha de certo modo faz seu rostopassarde comumaadorável.Ou talvez sejamaspoucas sardas clarasnonariz.Ouaformaperfeitadolábioinferior.

Apintadançaumpoucoquandoeleergueassobrancelhas.–Destino?Entãoessadeveserumaaulamuitoimportanteparavocê.–

Nãoconsigodeterminarseeleestábrincando.–Evocê?–Pergunto.–Estáaquipordestinoouporescolha?– Hum, acho que terei de dizer que é por escolha. Foi a primeira

disciplinaemquemeinscrevi.–Ah,entãovocêgostadesetorturar.Josh ri alto. Sua risada, mais grave do que a voz, me faz pensar na

doçuradopãodegengibredaminhamãe.Viroos joelhosnadireçãodosdele,desejandoqueestivessempróximosobastanteparasetocarem.

–Ah, pense bem, o que émais legal do que o universo? – ele diz. – Éesse enormemistério in inito que os astrônomos e cosmólogos passam avida tentando decifrar. E depois de toda essa descoberta e revelação, hásempremaisparaentender.–Eledáumsorrisopueril.–Euamoisso.

Sorriotambém.–Apostoquevocêeraumdessesmeninoscomumtelescópionoquarto.

–Eubrinco. –Edeixe-meadivinhar…adesivosquebrilhamnoescuronoteto?

–Culpado!–Elediz,easluzesescurecem.– Bem-vindas a Princípios do Astrrronomia! – retumba uma voz com

sotaquealemãoecomalgunserros.–Quecomeceodiverrrsão!–OdoutorMannjuntaasmãoscomalegria,recebendorisadasabafadasdofundodasala.

Nossoprofessorémaisbaixodoqueeuesperava,mas separece comtodas as fotogra ias que já vi de Albert Einstein: cabelos grisalhosdesgrenhados, olhos arredondados enormes, sobrancelhas rebeldes.Usandoumternomarromde lãcomremendosdecamurçanoscotovelos,eleéapersoni icaçãoperfeitadoprofessormaluco.SeráqueseuscolegasdeYaleririamdeleseparecessemaisnormal?

OdoutorMannlevantaumapilhadepapéis.– Aqui está o programa para esse curso – ele diz ao entregar a pilha

para uma menina na primeira ileira. – Nossa tarefa não é dominar osassuntosdessalista,emboracertamentesejaumabuscaválidaedignaquea disciplina requer. – Ele faz uma pausa, analisando a sala. Conseguiunossa atenção. – Em vez disso, nosso trabalho terá como foco umaperspectiva mais ampla. As grandes questões. Só peço uma coisa:

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independentemente do conceito, vocês devem se comprometer com esseprincípio. – Ele dá meia-volta e se aproxima do projetor, onde começa aescrevercommovimentosnítidoseprecisos.Quandotermina,acendealuz.Quatropalavras,emmaiúsculas,aparecemnatelabranca:

OLHEMMAISAFUNDO–Não teve treinodecross-country?–Minhamãeestá sentadaàmesa

dacozinhapagandocontasquandoentropelaportadosfundos.–Otreinadorcancelou–digoaela,colocandoabolsaeaschavessobre

obalcão.–Achoque icouassustadocomoterremoto.Oqueestáfazendoemcasatãocedo?

– O museu icou fechado hoje – minha mãe responde. – Tivemos umvazamentodeágua.–Elatiraosóculosdeleituraeesfregaosolhos.

–Ah,qualfoiotamanhodoestrago?–Nãofoitãograndequantopoderiatersido,felizmente.Umaalainteira

icoualagada,mashaviaapenasdoiscentímetrosdeágua,demodoqueacoleção não foi afetada. Demos muito mais sorte do que o MoMA – elaa irma. – Eles tiveram um incêndio provocado pelos cabos elétricos eperderamquatroobras.

–Nossa!Issoéterrível.– Eu sei. Mas ouça isso: as quatro obras que perderam estavam

penduradasdosdoisladosdaPersistênciadamemóriadoDali.Vocêsabe,oquadroqueeueseupaiestávamosvendoquandonosconhecemos.Ofogocomeçouatrásdaparede.

– Mas o Dali sobreviveu? – Posso dizer por seu tom de voz que arespostaépositiva.

Elaconfirma.– Além de ter sobrevivido, não sofreu dano nenhum. Nem com a

fumaça. – Ela sorri. – Seu pai, é claro, acredita que isso signi ica algumacoisa.Sónãosabeaindaoquê.–Elaselevantadamesaeesticaascostas.NaTV instalada sobos armáriosda cozinha, um repórter está falandodosterremotos.Afaixanaparteinferiordateladiz:TERREMOTOABALAOMUNDO.

– Eles sabem qual foi a causa? – pergunto, apontando com a cabeçaparaaTV.

– Estão chamando de “casualidade”. Pode acreditar? O que, eu diria,signi icaquenão fazemamínima ideia. –Ela abre a geladeira e examinaseuconteúdo.–Querumlanchinho?

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– Claro – respondo, percebendo que estou faminta. Subo no balcão,depoismeabaixoparatirarasbotas.

–Eaí?–minhamãepergunta, colocandohomusna tigeladecerâmicaquemeupaipintounoMéxiconoúltimoverão.Temosdezenasde tigelas,masminhamãe sempre pega essa. – Posso perguntar os detalhes? – Elajogaumsaquinhodeminicenourasnaminhadireção.

–Sobremeudia?Claro.–Mordoumacenoura.–Chegueibematempodeperdertodoosorteiodasvagasdeestacionamento.Aboanotíciaéquenão terei que me preocupar com exercícios este ano, porque vou meexercitarmuitoindoevoltandodoterrenoanexo.

–Sintomuito,querida.–Ah,tudobem–respondo,pegandooutracenoura.–Eorestodoseudia?–minhamãepergunta.–Estáfelizcomagrade

horáriaqueseesforçoutantoparamontar?Abroabocaparareclamardaindesejadaauladeastronomia,masJosh

surgeemminhacabeça.Josh,cujosobrenomeeunemseiqualé.OGarotoAstronomia.Meuestômagodáumareviradaquandopensonele.

– Tive que mudar – conto a ela. – Adeus, História da Música. Olá,PrincípiosdeAstronomia.

Minhamãeficaconfusacommeusorriso.–Éumacoisaboa?–Sei lá–admito.–Oprofessorparece legal,e…–Hesito,sabendoque

semencionarJosh,elevaisetransformarnoassuntododia.–E…?Meutelefonetocadentrodabolsa.–Diga“oi”paraaCaitlinpormim–minhamãediz,voltandoasesentar

àmesa.– Pode deixar. – Pego uma última cenoura, depois saio do balcão. –

Obrigadapelolanche.–Tirootelefonedabolsaeatendoaligação.–Oi.–AI. LiteralmenteACABEI de sairdo estacionamento. –Combolsa ebotas

nasmãos,acenoparaminhamãeesuboparaoquarto.– Tenho certeza de que vão deixar você trocar sua vaga por uma no

anexo – digo, brincando, sabendo que Caitlin preferiria icar uma horasentada no carro do que caminhar os quatrocentosmetros até o terrenoanexo,pordoismotivos:elavivesobresaltosdedezcentímetrosecarregamaisdedezquilosdelivrosdeciênciasnabolsa.

– Muito engraçado. Como foi a aula de astronomia? O que achou dodoutorMann?

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– O cara usou a palavra “grilo” e “paspalhice” com o rosto sério –respondo.–Comonãogostar?

–Eledisseporqueestánanossaescola?–PorcausadeumgrilocomaadministraçãodeYale.–Sério?–Não.Maséumapalavraótima,nãoé?–Jogoabolsaeasbotassobreo

carpetedoquartoemedeitodebarrigaparabaixona cama.–Achoqueestava certa sobre apressãoparaque elepedissedemissão. Ele sódisseque a academia não eramais o que costumava ser e que queria passaralgum tempo com “mentes puras”. Escolheu Atlanta porque a ilha delemoraporaqui.

–Euqueriaser ilhadele–Caitlindiz,desejosa.–TodoaqueleDNAdignodeumNobel.

– Voume lembrar de contar isso ao seu pai. – Eume viro de costas,apoiando-meemmeuenorme travesseirodo gatodeCheshireque tenhodesdeosnoveanos.Eledeviatersidodoadoquandorepinteioquarto,noano passado, mas ainda está aqui, enorme, cor-de-rosa e desgastado,ocupandoocentrodeminhacamalistradadeazulebranco.

– Ei, você sabe onde posso arranjar aquelas estrelas que brilham noescuro?–pergunto.–Sabe?Aquelasquegrudamnoteto?

–Umdianaauladeastronomiaejáquerestrelasnoteto.–Essasoueu,abraçandoaciência.Aceite.– Suas estrelas podem esperar até quinta-feira? – Caitlin pergunta. –

Vou ao museu Fernbanck para um evento de jovens cientistas. Possocomprarnalojinhadoplanetário.

–Obrigada!Podesermeupresentedeaniversário.–Nadadisso.Opresenteeu já comprei, embrulhei, eestáprontopara

ser levado ao jantar de amanhã, junto com seu bolo. – Caitlin compra omesmobolodesorvetedementacomgotasdechocolateemtodososmeusaniversáriosdesdeosétimoano.Etodososanosodevoramosdeumavez.Éumritodepassagemaltamente calóricoquemerecusoaabandonar.Oresto do dia é sempremeio frustrante, uma vez que quando chegameuaniversário, todos os meus colegas já passaram por isso. Completardezessete anos (ou dezesseis, ou quinze) é muito menos empolgantequandojáaconteceucomtodomundo.–Ei,estouestacionandonaentradadecasa–Caitlinavisa.–Conversamosdepois?

– Está bem. – Ouve-se um clique e ela desliga. Com o telefone aindapressionado à orelha, olho para o teto, visualizandominha futura galáxia

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deneon.Naquelanoite,tivedi iculdadesparadormir.Quandoera00h10,desisti.

Commuitocuidadoparanãoacordarmeuspais,passopelacozinhaevouaté a porta que dá para o deque. Do lado de fora, estámais frio emaissilencioso do que eu esperava. Bate um vento gelado emminhas pernasdescobertas,eeu–quevistoapenasumacamiseta–estremeço.Envolvoocorpocomosbraços.

–Felizaniversário–sussurronaescuridão.Sobre mim, o espaço negro e sem luz está repleto de estrelas. Não

consigo me lembrar da última vez que observei o céu noturno. Quandomais nova, era fascinada por ele, espantava-me com seu tamanho e seusmistérios. Em noites sem nuvens, eu me sentava aqui durante horas,ligandoospontoscomasmãos,formandoanimaiseobjetosnacabeça,commeu pai ao lado, desenhando minhas criações em seu caderno,descrevendoaexata localizaçãodecadaumaparaquenãoseperdessemoufossemesquecidas.Minhascriaturasestãoláemcimaagora,nomesmolugarondeasdeixei.Jogandoacabeçaparatrás,traçoseuscontornoscomapontadosdedos,desejandoconhecerasverdadeirasconstelações.

Minhavisãoembaçaenquantoolho,sempiscar,paraocéuestrelado.Eentão, do nada, uma estranha motivação toma conta de mim. Como umatrovoada, as palavras “É isso” reverberam em meu cérebro. Pisco comforça e o céu entra em foco. Pisco novamente, tentando entender o queestousentindo.Oqueéisso?Masasestrelasnãorevelamnada.

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3(Aqui)quarta-feira,9desetembrode2009(meuaniversáriodedezoitoanos)

Meucoraçãobatecomtantaforçaqueascostelasdoem.Viro a cabeça para a direita e vejo uma cama de solteiro a alguns

centímetros de distância, encostada em outra parede branca, que estádecorada com uma fotogra ia em preto e branco do Obelisco Espacial deSeattle. A cama está desarrumada, parece que alguém dormiu sobre oslençóis loridos,eorelógionabeiradada janelapiscamarcandomeio-dia.Nãohásinaldodonodacama.

Ondeestou?Examinoorestodopequenoquarto:duasescrivaninhasidênticas,duas

cômodas idênticas, duas portas fechadas. Por ummomento, pergunto-mese estaria na prisão, concluindo depois que lençóis loridos e fotogra iasartísticasprovavelmentenãosãocoisadogoverno.Minhamentepercorreumalistadeoutraspossibilidadeshorríveis.Talvezasduasportasestejamtrancadas.Talvezeutenhasidodrogadaesequestrada,eéaquiquemeuscaptoresestãomemantendo.Pensonanoiteanterior. Lembreidetrancaraporta?Ascalçasde lanelaea camisetacinzadaequipedecross-countrydaBrooksidequeestouusandosãominhas,masnãome lembrode tê-lastrazidoparaLosAngelese,de initivamente,nãoasestavausandoontemànoite.Emnenhummomentotireimeupijama.Quediabosestáacontecendo?

Hávozesdo ladode fora.Pessoas conversando.Alguémrindo. Saiodacama e vou até a janela que, para meu alívio, não tem grades nem estátrancada, mas entreaberta, e claramente é a fonte tanto da luz do solquantodoargelado.Abroajanelatodaeponhoacabeçaparafora.

A janela icano segundoandardeumedi íciode tijolos aparentes emformadeU,defrenteparaumpátiofechado.Asvozesqueouçopertencema um grupo de estudantes que carregam mochilas e bolsas de lona,reunidosemvoltadeumbancodemadeira.Oquarto,oprédio,os jovensdo ladode fora.Sópodeserumcampusdeuniversidade.Masonde? EsselugarnãotemnadaavercomasfotosquevidaUCLAoudaUSC.E,alémdisso,o ar está muito frio para aqui ser o Sul da Califórnia. Meu medo se

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transformaempânico.Tenhodesairdaqui.Andoatéumadasportas,torçoparaquenãoestejatrancada,eaabro.

Éumarmário.Quandoexaminoseuconteúdo,meubraçoficaarrepiado.Asroupasqueestãoalisãominhas.

Dooutroladodasegundaporta icaumcorredorcurto,quelevaaumapequena sala comunitária. Vejo o canto de um sofá verde e a beirada deumamesadecentro.Umalareiradesativadaquefuncionacomodespensa,comumacaixadeaveiaorgânica,doispacotesdebiscoitodecanelaeumpotedemanteigadeamendoim.Umamáquinadecaféespressoestilosanochão.UmpardetênisNikeroxospertodaporta.Eumtornozelo.

O tornozelo – ligado a um pequeno e delicado pé feminino descalço –está suspenso no ar, paralelo ao chão, como se sua dona estivessebalançando a perna. Chegomais perto, tentando vermelhor essa pessoaantesqueelameveja.

–Abby?O pé despenca no chão, e uma bela garota oriental aparece no meu

campodevisão.Primeiroachoqueémaisnovaqueeu,masentãoperceboqueéapenasbaixinha.Nãotemmaisqueummetroemeiodealtura,masparece forte. Seu corpo pequeno e musculoso veste calça de ioga ecamisetaregata,eelaestáempésobreumtapetedeioga.Quandomevê,sorri.

–Nãoacordeivocê,né?Tenteinãofazerbarulho.Euqueriagritar:QUEMÉVOCÊEOQUEESTOUFAZENDOAQUI???Masporalgumarazão,

nãofizisso.Simplesmenteretribuíosorrisoebalanceiacabeça.–Bom–elaresponde,pegandoagarrafadeáguapertodosseuspés.–

Depoisdanoitepassada,acheiquevocêprecisavadescansarumpouco.Noitepassada?Elasorrinovamente,destavezumsorrisomaior.–Felizaniversário,amiga!Meu aniversário. Tinha esquecido. O que, considerando a manhã que

tive,nãocheganempertodesertãoestranhoquantoessameninaqueeununcavinavidamechamandodeamiga.

–Obrigada.A garota pega um pote opaco de vitaminas que estava na mesa de

centroejogadoiscomprimidosnapalmadamão.–Cascadesalgueiro?–elameoferece.Respondocomumolharvazio,

levementeconfuso,queresumebemomeuestadomentalnomomento.–Éparadordecabeça–elaexplica.–Acordeicomumamonstruosa.

– Hã, não, obrigada – respondo. Considerando as circunstâncias,

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provavelmente é melhor não aceitar comprimidos não identi icados deestranhos. E, por incrível que pareça, embora minha cabeça não estejaleve,tambémnãoestálatejando.Apesardoslitrosdechampanhequebebiontemànoite,nãoestoucomamínimaressaca.

Ameninacolocaoscomprimidosnabocaetomaumgoledeágua.– Bom, acho que vou tomar um banho – ela diz. – Tenho aula de

economiaàsonze.Elapassapormimemdireçãoaoquarto.Uma pessoa educada sairia do caminho, mas ico ali, paralisada,

tentando encontrar uma explicação razoável para tudo isso. Ainda estouparadanomesmolugarquandoelasaidoquarto,algunsinstantesdepois,enroladaemumatoalhaecarregandoumnécessaire.

–Vejovocêdaquiapouco–eladiz,sorrindo,enquantovaiatéaporta.Quandoaabre,vejoderelanceumaentradaoctogonal,cercadaporquatroportasescurasdemadeira,todascomnúmerosmetálicosdetrêsdígitos.Aportasefechaquandoelasai,eficosozinha.

Vou até o sofá e não me sento, mas sim despenco nele. Meu coraçãoestá acelerado. Estou comuma sede absurda e não tenho amínima ideiadeondeestououcomochegueiaqui.Orelógiodoaparelhode TVacabodizque são10h10min, o que signi ica quenoperíododas últimas oito horaseu,etodososmeuspertences,dealgumaformasaímosdoquarto316doHotelCulverechegamosaqui.Ondequerque“aqui”seja.

Meus olhos esquadrinham o quarto, buscando alguma evidência, eparamemum livro azul, compáginasmarcadas, sobre amesade centro.Demoroumpoucoparaassimilarotítulo:Programadeestudos2009-2010–YaleUniversity.

EstouemYale.Fecho e aperto bem os olhos e tento acordar do que só pode ser um

sonho.Mas,quandoabroosolhosnovamente,aindaestouaqui,nestesofáaveludado, segurandoo catálogode cursosdeYale comasmão trêmulas.Respirofundo,esforçando-meparamanteracalma.

Umtelefone toca, edouumsalto.Entãoperceboqueéomeu telefone,tocandonoquarto.Pulodosofáecorropelocorredor.Meucelularestánaescrivaninhapertodacamaemqueacordei.

PAPAIEMAMÃE–CASA.Sem dúvida estão ligando para me desejar feliz aniversário, mas não

consigo lidar comeles agora.Não vou conseguirmanter a calma.Deixo achamadacairnacaixapostaleimediatamenteligoparaCaitlin.

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–GraçasaDeus–digoassimqueelaatende.–Felizaniversário!–elagrita.Relaxonomomentoemqueouçoavoz

dela.Caitlinexplicarátudoparamim.Daráumjeitodefazersentido.–Vocêtemquemeajudar.–Aressacaestátãoruimassim?–elapergunta,rindo.–Minhacabeça

estálatejando,mas,foraisso,estoubem.–Estoufalandosério,Caitlin.Estoudesesperada.–Oquefoi?–elapergunta,alarmada.–Ondevocêestá?–Nomeuquarto.Porquê?– Em Yale? – prendo a respiração, torcendo. Por favor, que ela esteja

aqui,queelaestejaaqui.–ÉclaroqueestouemYale,boba.Ondemaispoderiaestar?–Sintoum

breve lampejo de alívio.Caitlin está aqui . Caitlin, que tem resposta paratudo.Elateráumarespostaparaisso.Tudovai icarbem.–Abby?–AvozdeCaitlincarregacertapreocupação.–Oqueestáacontecendo?

Respirofundo.–Seiquepareceloucura–começoadizer.–Mas...achoqueestouaqui

também.EmYale.Caitlinri.–Vocêmedeixoupreocupadaporumsegundo.Acheiquetinhaalguma

coisa muito errada. – A voz dela parecia suave agora. Leve. – É meiosurreal,né?Estarmosjuntasaqui?

–Háquantotempoestouaqui?–sussurro.–Oquequerdizer?Chegamosaquiháumasemana,sexta-feira.Ei,está

tudobem?–Apreocupaçãovolta.Estou tonta.Caitlinestáagindocomoseo fatodeeuestaraqui fossea

coisamaisnormaldomundo.Caitlin, apessoamais racionalqueconheço.Meupânicologosetransformaempavor.Algumacoisaestámuitoerrada.Éisso,ou:

–Éalgumtipodebrincadeira?– O que é brincadeira? – Caitlin parece realmente confusa agora. –

Abby,oqueestáacontecendo?Vocêestábem?De initivamente, não estou bem. Minha cabeça acelera, passando por

todasaspossibilidadesimagináveis.Oproblemaéquenãoexistemmuitas.Ou estou sonhando, ou alucinando, oumaluca.Ou todoo resto domundoestá.

–Estouindoparaaí–dizCaitlin.–Chegoemcincominutos.– Não! – digo rapidamente, mais alto do que pretendia. – Quer dizer,

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não... tudo bem. Estou bem. – Eu minto. Quero a ajuda de Caitlin, masprimeiroprecisodeumtempoparapensar.

–Vocênãoparecebem.–Estoubem–insisto.–Sótiveumsonhomuitoestranho,ésóisso.–Um

sonhodoqualnãoconsigoacordar.–Abby.– Estou bem! – repito, lutando para manter a voz o mais tranquila

possível.–Encontrovocêdepois,estábem?–NósvamosexperimentaraauladeHistóriadaArteàs11h15min,né?

–Elaaindapareceemdúvida.–Vamos!–digo,comtodooentusiasmoqueconsigoreunir.–Certo,legal.–Avozdelavoltaaonormal.–Querodarumaolhadaem

uma aula de química às 10h30min. Tudo bem se eu encontrar você noMcNeil?

– Claro – respondo, já distraída. São 10h15min. Issome dámais umahoraparaentenderqueraiosaconteceuontemànoite.

–Tá,vejovocêlá.Assimquedesligo,ummensagemdetextopulanaminhatela.Tyler:FELIZNÍVER,BARNES.BEM-VINDAAOMELHORANODESUAVIDA.Depoisdedezminutosnele,“melhor”nãoéapalavraqueeuusaria.Pego o que parece ser meu laptop e o en io na mochila que está

pendurada nas costas da cadeira, juntamente com minha carteira e ocelular. Estou prestes a sair do quarto quando percebo que talvez sejamelhormetrocarprimeiro.Depoisdevasculharoarmário,escolhoojeansqueganheinoúltimonatal,minhacamisetacomgolaemVpreferidaeumaconchegante cardigãmarrom que nunca vi antes. Quando estou saindo,minhacolegadequartovoltadobanho.

–Nosso jantar de hoje ainda está de pé, né? – ela pergunta. – EstavapensandoemconvidarumamigodoBenparairjunto.

– Claro, parece ótimo. – Não tenho tempo para fazer planos deaniversário.OudescobrirqueméBen.

–Às20hnoSamuraiSushi?OtremdoBenchegaàs19h30min.Con irmo, distraída, olhando para o quarto para garantir que tenho

tudooquepreciso.Meusolhosrecaemsobreumachave-cartãocomminhafotoeumcódigodebarraseapego.

–Certo,maravilha!–ameninaestádizendo.–Voufazerareserva.Ah!Antes de ir… –Ela pegaumenvelopepardoda gaveta da escrivaninha eme entrega. – Isso é para você. – Viro o envelope nasmãos. As palavras

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ParaAbby, comamor,Marissa estãoescritas em letraspretasna frente. –Abra–dizMarissa,cutucando-mecomocotovelo.–E,por favor,nãodigaqueeunãoprecisava ter compradonada.Edaí se sónosconhecemoshádoze dias? Quando meu aniversário chegar, em fevereiro, já estaremosmorando juntas há cinco meses, e mesmo se nos odiarmos, você vai sesentirobrigadaacompraralgumacoisaparamim.Sóestoumepoupandodainconveniênciademesentirumaidiotaquandoissoacontecer.

Retribuo o sorriso, esquecendo momentaneamente do fato que nosúltimos seteminutos adquiri, de alguma forma, uma vida completamentenova, complementada comroupasdeoutonoeumacolegadequartoquegostadedarpresentes.

Dentro do envelope há uma única fotogra ia em preto e branco deCaitlineeu,sentadasladoaladonogramadoemfrenteaoquepareceserumacatedral,rindodealgumapiada.Afotogra iaparecealgoqueseveriaemumarevista.

–Quefotolinda!Vocêquetirou?–pergunto,olhandoparaMarissa.Elameolha,achandograça.

–Nofimdesemanapassado,lembra?Nopiqueniquedosalunosnovos.–Ah,émesmo.Nossa.–Forçoumsorriso,desejandoquemeucoração

desacelere.Como essa menina, que eu nem conheço, tem uma fotogra iaminhatiradanofimdesemanapassado?

– Como icou tão boa, imaginei que pudesse querer uma versãoampliada para pendurar na parede. Então imprimi em 20 cm x 25 cm evoumandaremoldurarcomvidrofosco.Deveficarprontaamanhã.

–Uau…obrigada!Quepresentelegal.–Ficosinceramentetocadacomopresente, mas estou desesperada para sair daqui. Abro meu melhorsorrisoparamedesculpar.–Euprecisomesmo ir.Querodarumaolhadaem uma disciplina que começa logo mais. – Sigo na direção da porta,esperandoqueelanãopergunteonomedadisciplina.

–Nãosepreocupe–elaresponde.–Vejovocêhojeànoite!–Elaacena,depoisdesaparecenoquarto.Pegoagradehoráriaqueestásobreamesadecentroecorroparaaporta.

Quandochegoaopátio,medoucontadequenãotenhoplanonenhum.Precisodeumlugarparapensar,depreferênciaumlugarsilencioso,comacesso à internet. Folheio o programa do curso e encontro ummapa docampus. Não é excepcionalmente detalhado, mas as palavras “SterlingMemorialLibrary”sedestacam.Perfeito.Agora,comofaçoparachegarlá?

Opátio,comooprédioaoseuredor,temformadeU.AparteabertadoU icade frenteparauma ruamovimentada,masháumagradede ferro

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ocupando toda a extensãoda abertura.Quemdáaalguémumavistaparauma rua grande, mas nenhuma forma de chegar a ela? Por um instante,penso em gritar para alguém pelas grades, mas logo mudo de ideia. Émelhornãomecomportarcomolouca,pelomenosporenquanto.NabasedoU,háumtúnellargoquepassapelosprédiosepareceserminhaúnicasaída.

O túnelme levaaumquadrilátero totalmente fechado.Umaolhadanomapaé tudooqueprecisoparadescobrirmeuparadeiro.Odesenhodosprédios,otamanhodopátio…temqueseroAntigoCampus,oquesigni icaque acabei de sair do Vanderbilt Hall, construção em forma de U, naextremidade sul. A biblioteca ica a apenas algumas quadras a nordestedaqui, então eu sigo para o portão arqueado no outro extremo doquadrilátero. Quando estou passando pelo arco, um grupo de meninassurge de uma porta a alguns metros de distância, carregando copos decaféepãezinhos.Meuestômagoroncadeinveja.AplacaacimadaportadizDURFEE’S e tem a imagem de uma caneca de café. Procuro a carteira namochila, torcendo para ter dinheiro. Encontro quatro dólares e algumasmoedas,osuficienteparacomprarcaféeumbagel.

ADurfee’sestámovimentada.Ninguémprestaatençãoemmim,oqueéótimo, e o lugar é muito barato. Compro um café grande, um bagel comgergelim,umagarrafadeáguaeumabarrinhadecereaisparamaistardeeaindasobraumdólar.EstoubemlongedeLosAngeles,issoécerto.

Quando estou saindo, dois caras, ambos usando camisas polo com ocolarinhoviradoparacimaecheirandoacervejadeontem(certo,cervejada semana passada) entram. Eles me veem, olham um para o outro, esorriem.

– Ei, ei – um deles diz paramim. Seus cabelos ruivos e despenteadosnão devem ver xampu há um bom tempo. – Você parecia estar sedivertindoontemànoite.

–Ontemànoite?Elesriem.–É. Está tudomeionebuloso, não é? –diz o outro. Seus cabelos loiros

estão arrepiados, como se tivessem secado quando ele estava de cabeçaparabaixo.

CabeloEnsebadoapontacomacabeçaparameucaféeparaasacolinhadecompras.

– Vou adivinhar: café, água e um bagel. – Fico olhando para ele. –Acertei.–Con irmo,semsabersedevo icarassustadaouimpressionada.–

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Éokitessencialpararessaca–eleexplica.–MasvocêesqueceuoAdvil.–Ah…certo.–Douumsorrisoqueesperopareceramigável, tentando

não fazer cara feia quando sintomeu estômago queimar. Ficar tão pertodeles e de seus poros que emanam cheiro de cerveja está me deixandoenjoada.

– Acabou o Advil – diz o loiro, apontando para a caixa vazia. – Nossa,deveteralgoerradocomapressãoatmosférica.Todoscomquefaleiestãocomdorde cabeça. –Elemostraa iladepessoasesperandoparapagar.Todosestãosegurandocaixasdeanalgésicos.–QuerumTylenol?–elemepergunta.

–Hum, não. Estou bem, na verdade.Mas obrigada. – Cabelo Espetadodádeombros.

– E aí, o que você vai fazer hoje? – Cabelo Ensebado pergunta, comhálitofedendoaálcool.Estoucommuitavontadedevomitar.Agoramesmo.

–Hum,vocêsabe…nadademais.Ei,precisocorrer.–Nãomepreocupoem esperar pela resposta. Talvez tenha sido grosseira, mas imagino queumasaídaapressadasejamenossocialmenteprejudicialdoqueesvaziaroconteúdodemeuestômagosobreseussapatosdecamurça.

Alguns minutos depois, estou mostrando meu cartão de identi icaçãoparaosegurançanaentradadaSterlingMemorialLibrary,quereconheçoda fotogra ia queMarissame deu. Parecemais uma igreja gótica do queuma biblioteca. O exterior é impressionante, mas o interior é de tirar ofôlego. A entrada principal, adornada com símbolos e textos em váriaslínguas antigas, dá para uma nave no estilo de uma catedral, compassagens abobadadas, iluminação com janelas de clerestório, e tantosvitrais que nem dá para contar. Sigo na direção do balcão de retiradas,que,combinandocomotemadecatedraldorestodabiblioteca,pareceumaltar.Abibliotecárialevantaosolhosquandomeaproximo.

–Olá–eladiz.–Possoajudar?–Oi…Eu,hum…Elameinterrompeeducadamente.–Alunanova.–Pareçotãosemnoçãoquantomesinto,aparentemente. –

Os alunos do primeiro ano são os únicos que vêm à biblioteca durante operíodode testedasdisciplinas–elaexplica comumsorrisogentil. –Éaprimeiravezquevemaqui?–Con irmoquesim.Elacolocaamãodebaixodamesaepegaummapadabiblioteca.–Entãoéprovávelqueprecisedeumdesses–eladiz,passandoomapaparamim.–Apolíticadabibliotecaestánoverso.

Passoosolhossobreomapa.

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–Qualéomelhorlugarparaeuficar?– Depende de quanta privacidade deseja – ela responde. – Há cinco

salas de leitura neste andar, algumas outras espalhadas pelo prédioprincipaleseisbaiasdeestudoemcadaandardasestantes.

–Andardasestantes?Abibliotecáriaapontaparaomapaemminhasmãos.– Nossos quinze andares de livros. Se está procurando privacidade,

seriasuamelhorescolha.–Ecomoeu…?Elaseviraparaocomputadorepressionaalgumasteclas.–Sóvouprecisardoseucartãodeidenti icaçãoparareservarumabaia

– ela me diz. Eu entrego a ela, que escaneia o código de barras e medevolve.–Prontinho.Baia3M-06.–ElasedebruçaefazumXvermelhoemmeu mapa da biblioteca, depois aponta para a esquerda, para outraestaçãodesegurança.–Apenasmostreaidentificaçãoaoguarda.

“Baia”, logo aprendo, é o eufemismo da biblioteca para os cubículosridiculamentepequenoscomportascorrediçasdeplásticoquecircundamasparedesinternasdoprédio.Enquantoesperomeulaptopligar,fechoosolhos e repasso as últimas vinte e quatro horas na cabeça, tentandorelembrar todos os detalhes dos acontecimentos da noite passada. SeráqueBret pode ter colocado alguma coisa naminha bebida?Mas por queelemedrogaria eme levaria aYale?E seacabeide chegaraquiontemànoite, comoMarissa temuma fotominhaque, supostamente, foi tiradanasemana passada, e por que eu tenho um cartão de identi icação deestudantecommeunomeeminhafoto?

Eususpiro,abrindoosolhosassimquemeucomputadorliga.Qualquerdúvidasobrequemseriaodonodo laptopdesaparecequandovejoa telade início. A imagem de fundo é uma foto minha com Caitlin e Tyler nocampo de futebol da Brookside, usando beca e capelo, sorrindo como setivéssemos acabado de ganhar o Super Bowl. É uma foto da formatura,obviamente.Masdeondesaiu?Euperdiacolaçãodegrau.Nessadata,eujáestavaemLosAngeles,participandodapré-produçãodo ilme. Sábado,6de junhode2009.Eume lembrode ter ligadoparaCaitlinnaquela tardeparaperguntarcomofoi.

Comoháumafotominhanaformaturaseeunãoestavalá?Olhoparaafotografia,tentandomelembrardaquelemomento,masnão

consigo. Não tenho lembrança nenhuma de estar lá, o que faz sentido,porqueEU NÃO ESTAVA. De repente, ico irritada. Irritada porque o que está

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acontecendo, seja láoque for,me fazduvidardaminhasanidade,me fazduvidar da realidade. Estive em Los Angeles, vivendo no Hotel Culver,gravando um ilme comBretWoodward desdemaio. Isso eu sei.Disso eumelembro.Issoéreal.

Nãoé?Confrontada com inconsistências que não consigo explicar, entro em

“modo jornalista”. Veri icaria os fatos deminha vida domesmo jeito quefaria emumartigode jornal, começandopelo ilmequepasseiosúltimosquatromesesgravando.Entronainternet,eonavegadormeredirecionaauma tela de log-in da rede de Yale, com espaços para meu número deestudante e senha. Sem desanimar, pegomeu cartão de identi icação e oexamino.Sobocódigodebarras,háumnúmerocomdezdígitos,quedevesermeunúmerodeestudante.Digitoosnúmerosnoespaçodecima.Agoraa parte mais di ícil, a senha. Venho usando a mesma senha desde quelemosAliceatravésdoespelho,nosétimoano.

Digito p-a-í-s-d-a-s-m-a-r-a-v-i-l-h-a-s no espaço da senha e prendo arespiraçãoao clicarnobotãode log-in.Depoisdealguns segundos, a teladelog-indesaparece.

Estoudentro.Animada, digito as palavras “ ilmeAssassinos cotidianos” na barra de

busca. Os primeiros resultadosme dizem o que eu quero saber. Dirigidopor Alain Bourneau e protagonizado por Bret Woodward, Assassinoscotidianoséumsuspensedinâmicosobreumatiradordoexércitodesertoreseu bando de assassinos adolescentes. Desço a tela. O nome de Bret estáexatamenteondeesperoqueesteja,noaltodalongalistadoelenco.Ostrêsnomesseguintessãoconhecidos.Atéagora,tudoestáexatamentecomomelembro.Continuodescendo,procurandomeunome.LáestáKirby.LáestáocaraquefazopapeldooutrocompanheirodeBret.Meunomedeveseropróximo.

Porfavor,façacomqueestejalá.Nãoestá.Paro para pensar, lembrando-me do teste. Daquela pequena sala do

estúdio.Ozumbidoaltodoaparelhodear-condicionadonajanela.Osorrisoencorajadordadiretoradeelenco.Entãovoltoumpoucomais,recordandoa noite da peça da escola… emais ainda, até o dia em que descobri quefaria o papel de Thomasina… depois o primeiro dia do último ano decolégio, quando a senhora Ziffren entregou cópias de Arcádia e nos dissequeostestesseriamnasemanaseguinte.

Apertoosolhos,repassandoaconversaquetivecomasenhoraDeWitt

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naquelamanhã.EumelembroqueeladissequeosenhorSimmonshaviacanceladoHistória daMúsica, e queminhas opções de substituição eramTécnicas de Encenação e Princípios de Astronomia. Mas também melembro – com a mesma clareza – da senhora DeWitt me dizendo quePrincípios de Astronomia era minhaúnica opção… que todas as outrasdisciplinasqueestavamdisponíveisjáhaviamsidopreenchidas…que,porter chegado atrasada, eu era a última aluna do senhor Simmons a serrealocada.

Maseunãochegueiatrasada.Nuncachego.Oterremoto.Um luxo de novas memórias inunda minha mente: iquei presa no

trânsitoacaminhodaescola,fuiinterceptadapelasenhoraDeWittquandosaía do auditório, reclamei comCaitlin na hora do almoço, ingi escutar oprofessor de astronomia enquanto olhava para o aluno novo sentado aomeulado.

Nomesmodia,doisconjuntosdelembrançascompletamentediferentes. Écomo se minha mente tivesse gravado duas versões diferentes dosacontecimentos daquela manhã. Repasso as duas versões mais uma vez,lutando para dar sentido à inconsistência. Quando não consigo, procurooutros dias duplicados em minha cabeça, mas não encontro nenhum.Apenasaquele.Háexatamenteumanoeumdiaatrás.Eumelembrodissoporqueeravésperadomeuaniversário.

Por impulso, pesquiso no Google as palavras “terremoto Atlantasetembro2008”.Abuscadámaisdeummilhãoderesultados.OprimeiroéumlinkparaumartigodaCNN,datadode9desetembrode2008.

Umraro terremoto commagnitudede5.9abalouo sudesteno iníciodamanhã de ontem. Os cientistas estão perplexos, uma vez que parece terhavidomaisdesetentatremoressimilaresemtodoomundo.Sãoabundantesas teorias sobre a causa dos tremores, mas até agora os sismólogos nãoconseguiramisolarsuaorigem.

Fechosos olhosnovamente, tentando invocarmais dessas lembrançasalternativas.Outrasaulasdeastronomia,outrasconversascomosimpáticoaluno novo.Nada. Nada além daquele primeiro dia. Tenho um dia delembrançascomterremoto,eumanotododelembrançassemterremoto.

DING!Meusolhosseabrem.ÉoutramensagemdetextodoTyler.PEÇAPARACAITLINMEDEIXARFAZERUMAVISITAPensoporumsegundo,então,respondo.DEQAEROPORTOVCVEM?

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Ele vai achar superestranho eu estar perguntando, mas pelo menossaberei, pela resposta, se ele ainda está emMichigan. Meu telefone tocacomaresposta.

VCVAICOMPRARMINHAPASSAGEM?Droga.Poressaeunãoesperava!Estoupensandonarespostaquandootelefonetocadenovo.DTW

Detroit.EntãoTyleraindaestáemMichigan,CaitlinaindaestáemYale,e eu estou a quase cinco mil quilômetros de onde deveria estar. Sem amínimaideiadomotivo.

Suspiro e desmorono na cadeira, desejando poder voltar a dormir eesquecer toda essa experiência. Mas preciso encontrar Caitlin em seisminutose,segundomeumapa,oMcNeilLectureHallficanagaleriadeartedooutroladodocampus.Deixoolaptopnamesa,trancoaportadaminhacabinedeestudosedesçoasescadascorrendo.

A placa azul em frente à Chapel Street, 1.111, dá as boas-vindas àGaleria de Arte de Yale. Abro a porta e entro no saguão. Estou tãopreocupada com o fato de estar atrasada que quase nem noto a faixapenduradanaparede.

AARTEDAHARMONIA:OCROMOLUMINARISMODESEURAT.DE1ºDESETEMBROA30DENOVEMBROGALERIADEARTEDAYALEUNIVERSITY.CORTESIADOHIGHMUSEUM.A exposição de pontilhismo da minha mãe. Eu sabia que a coleção

viajaria depois da exposição ixa de nove meses no High Museum, masiquei surpresa ao encontrá-la aqui. A voz de um professor, alta e nítida,reverbera atravésdasparedes inasda salade conferências, lembrando-medequeaaulaaqueeuqueriaassistircomeçouhácincominutos.Aindacomosolhosnafaixa,esticoobraçoparaabriraporta.

–Eunãofariaissosefossevocê–dizumavozmasculina.Olhoemvolta.Aúnicaoutrapessoanosaguãoéumcarausandoumacamisetacinzadotimede lacrossedeYale, sentadonobancodemadeiraqueocupa todaaparededo auditório. Ele está encostadonaparede, comas longaspernasesticadasà frente.Temumcadernonocoloeumacanetanasmãos.Euoobservo rapidamente: cabelos escuros e lisos, olhos de um verde bemclaro, pele bronzeada de sol, não arti icialmente. Ele é bonito. Tipomuitobonito. A camiseta está justa no bíceps, o que parece requerer certoesforço.

–Porquenão?–pergunto,tirandoamãodamaçaneta.

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– O professor é obcecado por pontualidade – ele diz. – Todo ano usacomo exemplo quem chega tarde durante o período de teste de aulas.Censura, ironiza... não é legal. A boa notícia é que ele não passa lista depresença, então não importa se você faltar. Principalmente se tiver asanotações.–Elelevantaocadernoeapontaparaaparede.–Daquidáparaouvir tudo o que ele fala. Meu nome é Michael, por sinal – acrescenta,inclinando-separaafrenteparamecumprimentar.Apalmadesuamãoéquente, seca e levemente áspera. Mão de menino. Por uma fração desegundo,penseiemcomoseriasenti-laemminhascostas.

– Eu sou Abby – digo a ele, e largo sua mão antes que meuspensamentosfiquemobscenos.

Michaelabreespaçoparaeusentar.–Vocêédoprimeiroano?–elepergunta.–Étãoóbvioassim?Elesorri.–Umpouco.Vocêtemessaexpressãomeiodesnorteada.Ébonitinho.–

Desnorteada, sem banho e, agora, suando. “Bonitinho” não deve ser otermomaisapropriado.Procurochicletenabolsa,masnãoencontro.

–Emquefaculdadevocêestá?–Michaelpergunta.Quando icoolhandopara ele, sem responder, ele ri. – Não se preocupe, não vou icarperseguindo você. Só estou curioso. Estou na Pierson, mas moro fora docampus,nacasadaAlphaDeltaPhi.

Ah. É mesmo. Yale tem toda essa coisa de faculdades e residências.Caitlin me explicou quando entrou. Os alunos do primeiro ano sãomandados para uma das doze residências, onde moram durante todo operíodo em que estudam em Yale, amenos que semudem para fora docampus.Cadaumatemsuaprópriapequenacomunidade,easfaculdadescompetem umas com as outras nos jogos internos, mas icam juntas nosjogosdefutebol.Masemqualestou?

Michaelaindaestáesperandominharesposta.– Devo estar especialmente ameaçador hoje – ele brinca, quando não

respondo.–Ah,não–digo,rapidamente.–Éque…–Équenãotenhoideiadoque

vocêestáfalando,porqueeunãoestavaaquiontem,nemimaginocomovimpararaqui,enãoseipraticamentenadasobreestauniversidade. –EumoronoVanderbiltHall?–Soamaiscomoumaperguntadoqueumaresposta,masMichaelnãoparecenotar.

–Então,vocêestánaBerkeley–elediz,acenandocomacabeça.–Quelegal. –Agora estouaindamais confusa,mas comoMichael é oúnicoque

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parecesaberoqueestáfazendo,acabocedendo.Do ladodedentroda salade conferências, oprofessor começaa falar

maisalto.Michaeleeunosencostamosnaparede,ouvindo.–Hoje continuaremosnossadiscussão sobre artepré-histórica –diz a

voz que atravessa a parede. Michael e eu pegamos nossos cadernos ecanetas.Epassamososquarentaminutosseguintesanotandocomoloucos.

Assimqueacabaaaula,Michaelprecisacorrerparaapróxima.– Outro professor obcecado por pontualidade – ele explica, jogando a

mochila no ombro. – Mas vejo você na segunda-feira, certo? – Quandoconfirmo,elesorri.–Ótimo.

Caitlinsaidoauditórioalgunssegundosdepois.–Nãovivocêládentro–diz.Elapegaumfrascodeanalgésicoecoloca

doiscomprimidosnaboca.–Nossa,essadordecabeçanãovaiembora.–Eufiqueianotandoaquifora.Ei,estáocupadaagora?–Não.Queralmoçar?–Precisoquevácomigoatéabiblioteca–digo.–Porquê?–Explicoquandochegarmoslá.Quandoabroaportademinhabaia,Caitlinparecesurpresa.–Járeservouumacabine?–Abroaportaefaçoumsinalparaqueela

entre,depois fechoaportaevoltoa trancá-la.Caitlin jogaabolsasobreamesaecruzaosbraços.–Agora,podemecontaroqueestáacontecendo,porfavor?

–Vocêselembradooitavoano,quandoJeffButlermedeuumforaumasemanaantesdobailedeprimavera?

–Éclaroquesim.Vocêfaltounaescolatrêsdiasseguidos.–Lembraoquemedisse?–Queelefalacuspindo?Sacudoacabeçasemmuitapaciência.– Você disse que eu não devia me preocupar com isso, porque em

algummundoparaleloeuteriaterminadocomele.–Vejacomoeujáerasábianaquelaépoca.–Caitlinsorri,depoisfranze

a testa imediatamente.–Espere,épor issoqueestamosaqui?Vocêestáaimdo JeffButler?Ab,ocaradáumsentido totalmentenovoparaa frase“diga, não cuspa”.Alémdisso, ele cortoupartedodedomindinhona aulade…

Euainterrompo.

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–NãoestoufalandodoJeff!– Então do que está falando? Sério, Abby, está começando a me

assustar.–Querosaberseelesexistemmesmo.–Oquê?–Mundosparalelos.Caitlinrespondesemhesitar.–Sim.–Tipo,deverdademesmo?–Sim–Caitlinrepete.–Bem,nãodáparaprovardemaneiraempírica,

masateoriaquânticadizqueexisteummundoparaleloparacadaversãopossívelde suavida.Eamaioriados ísicosmais importantesapostariaacarreiranisso.

Sintomeucérebromudarparao“modocético”.–Masparecetãomaluco–eudigo.–FoioquedisseramaGalileu.EaPasteur.E...– Certo, está bem. Então, tem algum jeito de uma pessoa, de certa

forma…irpararemumdeles?Caitlinmeolhadeumjeitoestranho.–Não.Mundosparalelosocupamdimensõesseparadasnoespaço.Não

tem nem como vermos, muito menos viajarmos para eles. – Ela me olhacomatenção.–Foiporissoquemetrouxeatéaqui?Paraconversarsobreomultiuniverso?

Respiro fundo, conversando mentalmente comigo mesma por cincosegundos – a mesma conversa que tive o dia todo:existe uma explicaçãoracionalparaisso.Caitlinvaimeexplicar,etudovoltaráafazersentido.

–Abby?Vamostentar.–Ontemànoite,quando fuidormir,estavaemumquartodehotelem

LosAngeles–começoaexplicarcomcalma.–Omesmoquartodehotelemquemoreinosúltimosquatromeses.Ehoje,quandoacordei,estavaaqui.

CertamenteCaitlinnãoestavaesperandoporisso.–Oquê?– Não era para eu estar aqui. Em Yale. Era para eu estar em Los

Angeles, gravando um ilme comBretWoodward. Era para sairmos parajantar hoje, para comemorar meu aniversário. E tenho quase certeza deque era um encontro, porque ele me beijou ontem à noite. Bem,tecnicamente,euobeijei…oupelomenoseledeveacharquesim,masnãofoiminha intenção, e não passou de umquase-beijo, na verdade. – Estou

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começando a divagar, mas não me importo. A essa altura, só querodesabafar.–Sóqueagoraestouaqui,etodomundoestáagindocomoseeuestivesseaquihásemanas,eháfotosdemimfazendocoisasquenunca iz,comoestarnaformatura!–Apontoparaafotonateladocomputador.–Deondeveioaquela foto?Eunãoestivepresentena colaçãodegrau.Queriaestar,masjáestavanaCalifórnia.Emeucartãodeidentificação…

–Esperaaí.–CaitlinfazumTcomasduasmãos,silenciando-me.–Vocênão estava na formatura? – Faço que não com a cabeça. – E perdeu acolação de grau porque estava emLos Angeles, gravando um ilme. ComBretWoodward.–Elaestácalma,masmeolhadeumjeitoestranho.Nãoaculpo.Pareçoumalouca.Respirofundo,obrigando-mearelaxar.

–Seiquepareceloucura–digo.–Mas,sim.Umadiretoradeelencomeviunapeçadeprimaveradoanopassadoeachouqueeuserviriaparaopapel.

–Apeçadeteatrodaescola?Confirmo.– Fiquei com o papel principal. Eunão queria o papel. Nem queria

estudar aquela disciplina. Mas o senhor Simmons cancelou História daMúsica, e eu tivedeescolher algopara substituir.Teatromepareceuumpoucomenosdifícilqueastronomia,então…

Caitlinfranzeatesta.– Mas você escolheu Princípios de Astronomia. Eu a ajudei a estudar

paraaprovafinal,lembra?–Esseéoproblema.Eunãomelembro.Nãodaparteemquevocême

ajudouaestudar,pelomenos.Eume lembrodeescolher teatro,ganharopapelprincipalemArcádia,interpretarThomasinacomperfeição,palavrasdadiretoradeelenco,nãominhas,edepoisserconvidadaparairparaLosAngeles uma semana antes do Natal para fazer um teste paraAssassinoscotidianos.

–OfilmecomBretWoodward.Suspiroprofundamente.Éaindamaisdifícildoquepensei.–Seioqueparece–digocompreocupação.–Acredite,eusei.–Esforço-

meparamanteravoz irme.–Maseujuro,Cate,quandofuidormirontemànoite,estavaemLosAngeles,noHotelCulver,ondeestoumorandodesdeoiníciodoverão.

–Eestavaláporqueumadiretoradeelencoviuvocênapeçadaescola– Caitlin diz lentamente, sem tirar os olhos dosmeus. – E isso aconteceuporquevocêescolheuaauladeteatro,enãodeastronomia.

–Sim,issomesmo.

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–Eporcausadisso,pensouquepudesseestaremummundoparalelo?Pareceabsurdo.–Euestoulouca–resmungo.–Éaúnicaexplicaçãoracional,nãoé?De

todasasminhas lembrançasdoanopassado,nadaaconteceudeverdade.Estoutendoalgumtipodecolapsopsicológico.

Caitlinreviraosolhos.–Vocênãoestátendoumcolapso.–Entãovocêpodeexplicar isso?Podeexplicaroqueestáacontecendo

comigo?–Bem,não.Aindanão.–Entãocomopodetertantacertezadequenãoestoulouca?–Umapessoa loucanão se chamariade louca com tanta rapidez– ela

dizdemaneiratrivial,assumindoumardecientista.Ela icaassimquandoestátentandoresolverumproblema.–Certo,entãosabemosqueumadasduashipóteseséverdadeira:ousuas lembrançasdosúltimosdozemesessão precisas, ou não são. Se não forem, precisam estar vindo de algumlugar. Ou da sua imaginação, e ainda assim você não seria louca, ou dealgumafonteexterna.

–Fonteexterna?Comoassim?Tipocontroledamente?–Possonãoserlouca,masminhavozestá icandoagudaefrenéticacomosefosse.–Achaquealguémestábagunçandominhaslembranças?

–Calma.Nãoachonadaainda.–Elamordeolábio,pensando.Apoio a cabeça na mesa, encostando a testa na madeira fria. Alguém

escreveuCARPEDIEMcomcanetaazulnaparede.–Alguémchegouadescobriroquecausouaqueleterremoto?–Escuto-

meperguntando.Caitlinparademorderolábio.–Porqueestáperguntandoisso?–Porqueé aúnica coisadequeme lembrodoúltimoanoqueparece

ter realmente acontecido – respondo. – E é a única lembrançaque tenhoquenãocondizcomasoutras.

OsolhosdeCaitlinvoamparaomeurosto.–Oquequerdizercom“nãocondiz”?Euendireitoocorpo.–Écomoseminhamentetivesseregistradoduasversõesdomesmodia

– digo a ela. – O primeiro dia do nosso último ano do colégio. Na versãonormal,condizentecomminhasoutraslembranças,nãohouveterremoto,ea senhora DeWitt me chamou para ir até a sala dela e me disse que

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HistóriadaMúsicahavia sido cancelada.Eupodiaescolherentre teatroeastronomiacomooptativasubstituta.

–Evocêescolheuteatro.– Isso mesmo. E na outra versão, o terremoto causou uma queda de

energiaeeuchegueiatrasadanaescola.– Essa é a versão de que me lembro – Caitlin diz com calma. – Você

chegou no im da reunião sobre o estacionamento, e quando a senhoraDeWitt conseguiu localizá-la, a matéria do doutor Mann era sua únicaopção.Vocêpassouorestododiasurtandoporcausadamédiageraldasnotas.

–Eunãoestavasurtando.Apenas…– O tremor mudou as coisas. – Caitlin começa a morder o lábio

novamente,dessavezcomtantaforçaqueachoquepodesangrar.–Oqueotremortemavercom…–Elaparaderepente.–Quehorassão?

Olhoparaomeutelefone.–12h45min.Porquê?–Saiumtremporhora.Secorrermos,dátempo.–Trem?Paraonde?Caitlinjáestáseguindoparaasescadas.–NewLondon–elagrita.–Expliconocaminho.– Depois do tremor, um grupo de ísicos do Japão saiu em defesa da

teoriadele.Achavamqueeranomínimopossívelqueeletivesserazão.Osacadêmicos das grandes universidades ainda não conseguiam chegarperto dele, mas o Connecticut College concedeu um subsídio para elecontinuar a pesquisa no observatório Olin. Ele está dando aulas naConnecticutCollegedesde janeiro.UmadrogaparaopessoaldeYalequequeria cursar suas aulas de cosmologia no próximo semestre, mas ummomentosalvadorparasuacarreira.

Estamos sentadas lado a lado em um trem, dividindo um muf in dechocolateressecadodabarraquinhadaestação.

–Westbrook!–dizavozdocondutor.–Próximaparada,Westbrook!– Então a teoria do doutor Mann era sobre terremotos? – pergunto,

confusa.– Não, a teoria dele era sobre a interação de realidades alternativas,

algoqueele chamade “entrelaçamento cósmico”.Basicamente, a ideiadeque é possível que mundos paralelos colidam. – Ao ouvir a menção amundosparalelos,ospelosdemeubraçoficaramarrepiados.

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–Eleachaqueoterremotofoiisso?Umacolisãodemundosparalelos?– O tremor – Caitlin me corrige. – Não foi um terremoto. E, sim. Pelo

menossegundooartigopublicadonaNewSciencedomêspassado.Meucoraçãocomeçouaacelerar.–Eseeleestivercerto?–Sópasseiosolhosnoartigo–Caitlindiz,colocandooúltimopedaçode

muffinnaboca.–Agoravamosdiretoàfonte.EncontramosodoutorMannnoCentroCientí icoF.W.Olin,umprédio

contemporâneo de tijolos cinza perto do centro do campus, começandoumaauladeumahorasobrecosmologia. Jogoabolsasobreumbancodeumapracinha,preparando-meparaesperar,masCaitlinjádesapareceunasaladeaula.Entroatrásdelaemsilêncio.

O doutorMannme vê entrar e sorri, mostrando queme conhece.Elesabequemeusou.Eu,poroutrolado,tenhoapenasumavagaimagemdelena cabeça, e que nem faz jus ao homem. Imaginei os cabelos grisalhos edesgrenhadoseosdedosmanchadosde tinta,masnãoa intensidadedosolhos azuis. Para alguém que deve ter uns setenta e poucos anos, elepossuioentusiasmodeumhomemmuitomaisjovem.

Sua aula é surpreendentemente direta. Ele distribui cópias doprograma, depois inicia o que parece uma história para dormir,apresentando a evolução do pensamento cosmológico moderno. É umahistória convincente, ainda mais contada com o sotaque germânico doprofessor.Naverdade,estou tãocompletamenteabsorvidapelanarrativaque, quando ele para no meio de uma frase e diz que nos veremosnovamente na sexta-feira, ico surpresa. Ficamos mesmo sentadas aquidurantequarentaecincominutos?

–Vamos–Caitlindiz.–Temosquefalarcomeleantesquesaia.OdoutorMannestáapagandooquadroquandonosaproximamos.–Professor?–Caitlindizcomeducação.Ovelhohomemseviraesorri.Deperto,eleparecemaisumavozinho

doce do que um professormaluco, e tem cheiro de caramelo. Gosto deleimediatamente.

–MeunomeéCaitlinMoss–eladiz,estendendoamão.–FuialunadaBrookside…

– A aluna, pela impressão que deixou na faculdade – responde oprofessorcomternura,segurandoamãodelaentreassuas.–NosquatroanosqueestudounaBrookside, recebeunotasmáximasemmaisdeuma

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dúziadedisciplinasdeciênciaseganhoutrêsprêmiosnacionaisde ísica,nãoé?

Caitlinsorri.–Essasoueu.Oprofessoragoraseviraparamimeseusorrisosealarga.–SenhoritaBarnes!Quesurpresaagradável.–Eleseguraminhamão.–

OquetrazvocêsaNewLondon?–Eledáumapiscadinha.–JáenjoaramdeYale?

–Nós,hum…–OlhoparaCaitlinembuscadeajuda.– Esperamos que possa nos apresentar aos princípios básicos do

entrelaçamento cósmico – ela diz. O professor suspende as sobrancelhas.Fica claro que ele não recebe esse pedido com frequência. –Especi icamente, ao conceito de realidade compartilhada – Caitlinacrescenta,eodoutorMannparecemuitosatisfeitocomopedido.

–Éparaumprojetodeescritacriativa–a irmo.Comavisãoperiférica,vejoCaitlinrevirarosolhos.

– Seria um prazer – responde o doutor Mann. – Por onde devocomeçar?

–Pelotremorglobal–respondeCaitlin.– Certamente – concorda o doutorMann. – Acredito que o tremor foi

causadopeloquechamode“colisão interdimensional”.Simpli icando:doismundosparalelosbatendoumnooutro.

– Maspor quê? – pergunto. – Não é mais provável que não tenhapassadodeumterremotogigantesco?

OsolhosdodoutorMannbrilham.– Ah, mas temos certeza de que não foi – ele explica. – Terremotos

causamumcertopadrãodeondassísmicas.Oqueaconteceuemsetembrosimplesmentenãocorrespondeuaisso.–Enguloemseco,minhagargantaderepente icaárida.–Seotremorfoi,defato,umacolisão–elecontinua–,acreditoqueaforçadoimpactopossatercriadoumaligaçãoentrenossomundo e o mundo paralelo com que colidimos, resultando em um efeitosimilaraoentrelaçamentoquânticodepartículas.

Ficoboquiaberta.–Uau!OdoutorMannri.–Reaçãoperfeitamenteapropriada.Éumadasmaioresestranhezasda

mecânica quântica – ele explica. – Quando partículas subatômicas sechocam umas com as outras com força su iciente, icam ligadas de umaformaquenãose limitaa tempoeespaço.Tudooqueacontececomuma

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partícula começa a ter efeito sobre a outra. – O velho homem sorri. –EinsteinchamavadespukhafteFernwirkung.–Suavozémaisbaixaagora,quaseumsussurro.–A“açãofantasmagóricaàdistância”.

Asalaestáquente,massintoumarrepio.– E o senhor acredita que amesma coisa aconteceria se doismundos

paraleloscolidissem?–Caitlinindaga.– Exatamente – responde o doutorMann com um aceno de cabeça. –

Acreditoqueaforçadacolisãopoderiafazercomquearealidade ísicadeum mundo se sobrepusesse à realidade ísica do outro, deixando osmundos,eseushabitantes,emumestadopermanentementeentrelaçado.

Permanentementeentrelaçado. Pareceameaçador,masoquesigni ica?OlhorapidamenteparaCaitlin,procurandoajuda.

–Umexemploconcretoseriaútil–eladizaodoutorMann.– Pois não – ele responde gentilmente. – Vou utilizar a ilustração que

deiaosalunos.–Caitlinpegaumcadernoparafazeranotações.–Diferentementedemuitosdosmeuscolegas–elecomeçaaexplicar,

virando-se para o quadro –, acredito que todos os mundos que existematualmente foram divinamente criados em um momento singular dahistória.Seforverdade,entãoo“agora”donossomundodeveocorreremum momento diferente do tempo do que o “agora” de qualquer outromundo.–Eletiraatampadeumacanetaedesenhaduaslinhasparalelas.–Emnossomundo,“agora”é9desetembrode2009.Mas,emummundoparalelo,“agora”podeser31dedezembrode2020,ou9deabrilde1981.Ou…

–Ou9desetembrode2008!–Caitlinexclama.– Ah. – O doutor Mann parece impressionado. – A data do tremor. É

claro. –Ele escreveadata soba linha superior e a circula. –Aquilo– elediz, apontando – é o mundo paralelo. E isto – ele bate sobre a linha debaixo–éonossomundo.–Quandoeleescreveadataabreviadasobreela,ixo os olhos nos números repetidos. 09/09/09. Será que essa repetiçãosignificaalgumacoisa?

– E o que aconteceria – especi icamente – se esses dois mundoscolidissem? – Caitlin pergunta, ansiosa, como sempre, para ir direto aoponto.

– No momento preciso do impacto, a realidade do mundo paralelosubstituiriaarealidadedonossomundo–eledeclara,tampandoacaneta.

Gotículasdesuorsurgemsobremeulábiosuperior.–Substituiria?OdoutorMannconfundemeupânicocomfascínioecontinuafalando.

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– Tive amesma reação quandome dei conta das implicações. Pensarque em um único instante, a realidade de um mundo paralelo poderiatomar completamente a realidade de nosso mundo, apagando esubstituindotudooqueconhecemosequeacreditamosserverdade.–Eleabreumgrandesorriso.–Éumaideiaempolgante,nãoé?

Montanhas-russas são empolgantes. Isso, meu caro senhor, éaterrorizante.

–Porquenãopodeacontecernooutrosentido?–pergunto.–Porqueomundoparaleloprecisavencer?

– Porque o tempo só semove em uma direção – Caitlin explica antesque o professor consiga responder. – O presente não pode mudar opassado.Opassadocriaopresente.

– O passado de umoutro mundo? – Fico olhando para eles semacreditar. –Oqueé isso?Estamos falandodomundo ísico.As coisasnãopodemmudar do dia para a noite. – Minha voz havia assumido um tomsabichão,comoseeupudessesuperarohomemqueganhouoNobel.

Oslábiosdoprofessorsecurvamformandoummeio-sorrisodivertido.– Você conhece a obraUma tarde de domingo na ilha Grande Jatte , de

Seurat?–elepergunta.Eu pisco.La Grande Jatte era a peça principal da exposição sobre

pontilhismodeminhamãe.Estavareproduzidaemminiaturanafaixaquevihojedemanhã.

–Sim–respondo,perturbadapelosincronismo.–Conheçoaobramuitobem,parafalaraverdade.

–Éaquelagrandonacomospontinhos?–Caitlinpergunta.Enguloumsorriso. Assim que o doutorMann começa a falarminha língua, deixa defalaradela.

–Centenasdemilharesdeles–eleresponde.–Dispostosdeumaformamuitoparticular,paracriaruma imagemmuitoparticular.Massealguémreorganizarospontos,aquelaimagemtorna-seirreconhecíveleumanovaimagem se forma. Mesmos pontos, mesma tela, imagem diferente. – Ohomemolhaparamim.–Acreditoqueomesmoacontececomarealidade.

De certomodo, essametáforameatingedemaneiramais concretadoque todo aquele papo cientí ico. Talvez por estar acostumada a essevocabulário–éoquemeuspais falavamàmesado jantartodasasnoitesduranteminha infância. A realidade é uma pintura pontilista. Isso eu soucapazdeentender.

– Mas como isso poderia acontecer sem ninguém se dar conta? –pergunto.–Osenhordissequeessetalentrelaçamentoafetatodomundo.

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Então por que ninguém, além de mim… – Paro imediatamente ao ver oprofessorerguerassobrancelhas.–Porqueninguémpercebe?–Pormaisqueeugostedessehomem,nãoestouprestesametornarumacobaiadesuasteoriasmalucas,mesmoqueelasseprovemverdadeiras.

–Realidadecompartilhada–CaitlindizantesqueodoutorManntenhatempoderesponder.–Estamosrecebendoaslembrançasdenosso“eu”enossocérebroasestáprocessandocomosefossemnossas.–Elaolhaparaoprofessorembuscadeconfirmação.–Nãoé?

–Exatamente–eleresponde.–Senossomundorealmentecolidiucomum mundo paralelo, conforme seu eu paralelo for avançando no tempo,suas lembranças vão sendo continuamente apagadas e substituídaspelasdeseuparalelo,fazendocomquevocêselembredasexperiênciasdevidadele como se fossem suas. Não só as coisas que ele já vivenciou, mastambémascoisasquevaivivenciarnodecorrerdoanoseguinte–explicaodoutor Mann. – Essas experiências ainda vão acontecer, mas noslembramosdelascomosejátivessemocorrido.Éassimquenossocérebrodásentidoàlacuna.

– E minhas lembrançasverdadeiras? – pergunto. – As coisas querealmenteaconteceramcomigo…?

OdoutorMannestalaosdedos.Éumsimaltoeestridente.–Ausradiert!Desaparecem.O alívio toma conta de mim.Então essa não pode ser a explicação. Se

nossosmundos estivessem realmente entrelaçados, eu nãome lembrariado ilme, de Bret, ou do verão que passei em Los Angeles. E não teriaapenasumdiadenovaslembranças,massimoanointeiro.

–Maspodehaver algumaanomalia, não é? – Caitlin interrompemeuspensamentos como se lesse minha mente. – Pessoas que mantiveram asantigas lembranças, por exemplo. Ou que não receberam um conjuntocompletodelembrançasnovas.

– Estou contando com isso – diz o doutorMann de forma enigmática,fixandoosolhosnosmeus.

OlhorapidamenteparaCaitlin,maselaestáescrevendocomoloucaemseucaderno.

Outroalunoseaproximadoprofessorcomumaperguntasobreaaula.–Comlicença,uminstante–oprofessordizparanós,virando-se.– Semeu passado foi substituído, por que eume lembro de como as

coisaseramantes?–Meusussurropareceumassobio.–Vocêouviuoqueeledisse–Caitlin responde, semsepreocuparem

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falarbaixo.–Sempreexistemasanomalias.Sacudo a cabeça, incapaz de aceitar uma coisa dessas. Queria uma

explicação,masissoédemais.Nãoseriafácildigerirtantaloucura.– Onde estávamos? – pergunta o doutor Mann com um vozeirão,

assustando-nos. O aluno com que ele falava já está nomeio do corredor.Quantoeleescutoudenossaconversa?

–Anomalias–Caitlinresponde,olhandofixamenteparamim.–Recapitulando – eu digo, encarando o bomdoutor. – Estava dizendo

que semeu eu paralelo e eu estivermosentrelaçados – vomito a palavracomose tivessegostoruim–,entãoagoradeveriame lembrarnãosódascoisas que ele já vivenciou, mas também de tudo quevai vivenciar nalacunaentreseupresenteeomeu?

–Issomesmo.–Eleestámeolhandodeummodoestranhonovamente.Destavez,nãodesvioorosto.

–Então,ofuturodelejáestádeterminado?–Ah... ótimo!O centrodaquestão. –Oprofessor sorriparamimcomo

umcolegial.–Éclaroqueédi íciltercertezadessascoisas,masemminhavisãoarespostaétantosimcomonão.Acreditoque,acadamomento,sejano nossomundo ou em outro, o futuro de cada pessoa já está, até certograu,determinado.Portodostermosumainclinaçãonaturalafazercertasescolhas e agir de determinada forma, há, de certomodo, uma trajetóriapadrãoemnossavida.

–Umcaminho“maisprovável”–complementaCaitlin.–Umcaminhomaisprovável–concordaodoutorMann.–Oquenãoéo

mesmoquedizerquenossodestinoestáselado.Naverdade,acreditoqueéoextremooposto.A cada instante, todasaspessoas têma liberdadedeescolher um caminho diferente, mudando assim a trajetória de sua vida.Nadaestágravadoempedra.

Minhamentepulaparaocaminhodeminhaprópriavida.Assériesdeescolhas que me levaram a Los Angeles, começando com a decisão decursar aquela disciplina de teatro no outono. Aquele únicomomento – aescolha aparentemente inofensiva entre duas optativas – alterouradicalmente a direção deminha vida.Mas eu não sabia disso na época.Nãotinhaideiadoqueestavaemjogonaqueledia.

Seráqueelatinha?–Nossoseusparalelossãopessoasreais?–eumeouçoperguntando.–

Tipo,sereshumanosvivos,querespiram?–Claroque sim– responde ele. –Eles habitamumoutromundo,mas

nem essemundo e nem eles sãomenos “reais” do que nós. – Ele para e

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pensa.–Achoqueesseconceitocostumaseromaisdi ícilparaosalunosentenderem. Se nosso mundo foi mesmo entrelaçado com um mundoparalelo, você nãose transforma em seu eu paralelo. Nem ele em você.Você não trocou de corpo e nem viajou pelo espaço. Vocês continuamsendo seres separados e distintos, vivendo em dois mundos ísicosdiferentes.Essemundossimplesmenteficaramligados.

–Mas o que isso signi icaparamim? –pergunto. –Oque acontece semeueuparalelo tomaalgumadecisão capazdemudar suavidaamanhã?Onde eu vou parar? – Estou me esforçando para não deixar o pânicotranspareceremminhavoz.Nãoestouconseguindo.

– Essa é a beleza de tudo – pondera. – Não é possível saber como asescolhas semanifestarão na vida dele, amenos que ele já as tenha feito.Umadecisãoqueparece“capazdemudarvidas”pode,no inaldascontas,nãosernadadisso.Frequentemente,sãoasescolhasqueparecemnãoterconsequências que nos desarraigam. – Sua voz é suave e repleta desatisfação,comoseestivessedescrevendoasregrasdeseu jogodecartasfavorito.–Muitacoisadependedotipodepessoaquesuaparalelaé–elecompleta. – Algumas pessoas esculpem novos caminhos diariamente.Outras mantêm o curso durante a vida toda. Se a sua paralela for doprimeiro tipo, é possível que você acabasse emum lugar novo por dia. –Ele olha paramim de um jeito estranho. – É uma ideia estimulante,masimaginoquesejaumtantoquantoperturbadorexperimentaremprimeiramão.

Meusmembroscomeçamaformigar.Elesabe.Meu pulso começa a acelerar quando me imagino presa sob um

microscópio gigantesco, trancada nos fundos de um laboratório. Precisosairdaqui.Agora.Já.

Aomeulado,Caitlindáumsorrisojovial.–Bem,achoqueprecisamos irouperderemoso trem.Muitoobrigada

porseutempo,doutorMann.Estounomeiodocorredor.Caitlinprecisapraticamentecorrerparame

alcançar.–Abby!–elasussurra,agarrandoomeubraço.–Podeirmaisdevagar?–Álcool.Ondepodemosarrumar?–São16h30min.Olhofeioparaelaeabroaporta.–Acabei dedescobrir queminha vida está sendo controladaporuma

versãoparalelademim,queMORAEMUMMUNDOPARALELO.Achoque issomedáo

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direitodebeberumcoquetelnomeiodatarde.–Umcarameolhadeumjeito estranho na praça. – Sabe, seriamuitomais fácil se descobríssemosque estou louca. Era só me internarem e o assunto estaria encerrado –resmungo.

Caitlinmeabraça.–Ei,maluquete,temumapizzarianovanaCrownStreet,eeuouvidizer

que não pedem documento. Que tal se eu te pagar uma bebida comopresentedeaniversário?

–Sim,porfavor.Caitlinapoiaacabeçaemmeuombro.– Independentemente do que aconteceu, ou esteja acontecendo, nós

vamos dar um jeito – ela me diz. – Eu prometo. – E, por um instante,acreditonela.

Uma bebida e uma fatia de pizza depois, eume sintomuitomelhor. E

relativamente normal. Éminha segunda semana de faculdade e eu estouem uma mesa de canto com minha melhor amiga, comendo pizza demariscos e bebendo uma cerveja meio choca enquanto observamos osjogadoresde lacrossebonitinhos sentadosduasmesas à frente. (Bem, euestou observando. Caitlin está ingindo observar enquanto manda umamensagem de texto para Tyler por baixo da mesa.) Isso não parece o“possível futuro” de uma pessoa paralela. Parece minha vida. Ou umaversãodela.Masquantotempoessaversãovaidurar?

– Ei, era para ser divertido. Nada de pensar em astro ísica à mesa –Caitlinordena,comavozumpoucoarrastada.

–Uau.Jáimaginouquevocêestariafalandoessascoisasparamim?–Rá!Comcerteza,não.–Caitlintomaumgoledacerveja.–Talvezseja

Deus sevingandodevocêporodiar tantoa ciência. –Ela estábrincando,maspartedemimseperguntasenãopodeseralgoassim…seeunãosouumaingrataeestousendopunidapornãodarvaloràminhavida.

– Você não acredita em Deus – observo. Mas minha voz tremula umpouco.

Caitlinnota.–Abby,euestavabrincando.Setemalgoacontecendo,nãotemnadaa

vercomvocê.OucomDeus.–Sealgoestáacontecendo,eunãodeveriasaberqueestáacontecendo.

–Lembroaela.–Eunãodeveriaestarcientedoassustadorfatodequeascoisas estão drasticamente diferentes do que estavam ontem.Mas estou.

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Temdehaverummotivopraisso.– Não necessariamente – Caitlin responde. – Pode ser apenas uma

casualidade.–Umacasualidade?Eladádeombros.– Talvez sua mente esteja apenas diferente. Como aquele cara da

Inglaterraqueconseguiudecoraraté1.250dígitos.–Sim,obrigada–retruco.–Émuitoanimador.–Olhoparameucopode

cerveja pela metade e o pego nas mãos.Talvez sua mente esteja apenasdiferente.Nãoébemarespostaqueeuestavaprocurando.

– Sei que você quer dar um sentido para as coisas – ela diz comcuidado. – Mas às vezes a ciência não nos dá os motivos que estamosprocurando.Podemosteorizarsobrecomoascoisasdevemfuncionar,mas,comodisseodoutorMann,sempreexistemdesvios.

–Vocêachaqueelesabiaporqueestávamoslá?–pergunto.–Elenãoparavadeolharparamim,edepoisfezaquelecomentárionofinal…

–Masvocêcontouaquelahistóriaincríveletotalmenteverossímilsobreotrabalhodeescritacriativa–Caitlindiz,comosefalassesério.–Comoelepodeterdescoberto?

–Não estou brincando, Caitlin. E se ele contar para alguém e elesmeprenderem,oualgoassim?

–“Eles”quem,Abby?OsagentesdogovernoqueodoutorManntemnobolsodacalça?Ohomemfoibanido,perdeuocargodeprofessorefetivoefoi relegado à periferia da cosmologia convencional. Mesmo que elecontasseaalguém,quemacreditaria?

–Masvocêacredita?–pergunto.–Eusparalelos.Mundosentrelaçados.Realidadecompartilhada.–Maldáparaouviraspalavrasquandoeufalo.–Realmenteacreditaqueéessaaexplicaçãoparatudoisso?

Caitlinhesita,depoisconfirma.–Não posso explicar exatamente por que e duvido que alguémpossa

provar,mas,sim.Acredito.Pelomenosporenquanto–elaacrescenta.–Certo,entãovouexplicaroquenãoentendo–digo.–Senossomundo

érealmenteentrelaçadocomummundoparalelo,entãonãoestáafetandosó a mim; está afetando todo mundo. O que signi ica que, neste exatomomento,suaslembrançasdopassadonãosãosuas.

– Certo. Sãodaminhaparalela. –O tomde voz dela é trivial. – Eumelembrodecoisasqueaconteceramcomela,edecoisasque vão acontecernos próximos 365 dias, como se tivessem acontecido comigo. – Elaequilibraosaleirosobreumgrãodesal.

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–Maselasnãoaconteceramcomvocê–aponto.–Aconteceramcomseueuparalelo.Oquesignificaquesuaslembrançassãofalsas.

–Tecnicamente,sim.–Caitlin!–Oquê?–Estáagindocomoseofatodoúltimoanodesuavidatersidoapagado

nãofosseimportante!–Nãofoiapagado.–Elamecorrige.–Foimodificado.–Reescrito.–Reescrito–elaconcorda.–Eissonãoteassusta?–indago.–Aideiadesuaslembrançasestarem

sendoreescritasporoutrapessoa?–Essa“outrapessoa”temexatamenteamesmaformaçãogenéticaque

eu–Caitlina irma.–Soueu,soboutrascircunstâncias.–Eladádeombroscomoseestivéssemosfalandodealgotrivial.–Então,não.Nãomeassusta.

– Não é você! – Eu insisto. – Até onde sabemos, ela poderia decidirlargarafaculdadeamanhãeentrarparaocirco.

– Mas há enormes probabilidades de que não faça isso – Caitlinresponde.–Omaisprováveléqueela façaexatamenteoqueeufariaemsuasituação.

–Quemdisse?Omeueuparalelonãofez.–Masfoiporqueacolisãotornouimpossívelocaminhoquevocêtomou

–Caitlindiz,comcalma.–SeueuparalelonãopôdeescolheraquelaauladeteatronoanopassadoporquejáestavacheiaquandoelechegouàsaladasenhoraDeWitt.Setivesseescolha,teriaescolhidoteatro,comovocêfez.

Nãoestouconvencida,masnãotenhoenergiaparadiscutir.– Se você está dizendo... – Termino a cerveja e me levanto. – Outra

rodada?Caitlinolhaparaorelógio.–Temosreservaparaasoito,nãoé?Ojantar.Eujátinhaesquecidocompletamente.–Argh.Nãopodemoscancelar?– A Marissa vai icar muito chateada. Ela está ansiosa para que você

conheçaoBen.– Sério? Além de tudo, agora tenho que jogar conversa fora com um

estranho?–Doisestranhos.–Caitlinmecorrige.–Benvailevarumamigo.–Certo–eususpiro.–QueméBen?–NamoradodaMarissa.Estánoterceiroanoda NYU.Elesseconheceram

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em Nova York, ela estava fazendo um curso de verão na Pratt e eleestagiava em algum lugar, eu acho. E o outro cara é um amigo dele docolégio,queestudaaqui.Dizemqueégatinho.

Eu me dou conta de que não tomei banho hoje. E nem me olhei noespelho.Caitlinvêopânicoemmeurosto.

–Relaxa.Aindanãosãonemseishoras.Vocêtembastantetempoparasearrumar.Mastalvezsejamelhordeixarmosasegundabebidaparalá.

–Quetaltomarmosacervejaedeixarmosojantarparalá?–Eusugiro,voltando ame sentar. – Quero dizer… esse émesmo omelhormomentoparaeuconhecerhomensmaisvelhosegatos?

– É uma pergunta retórica? – Caitlin faz um sinal para a garçonetetrazer a conta. – Agora, quanto ao guarda-roupa… que tal aquela blusaMarc Jacobs que minha mãe me deu de aniversário, aquela roxa meioacinzentada, com as calças da Hudson? Eu uso com sapatilhas, então sevocêusarsaltoalto,deveservir.

Imaginomeu re lexo no espelho do banheiro na noite anterior,minhaexpressãoaomesmotempodemedoesatisfação.Umameninacomapartedecimadeumpijamaemeias,prontaparatudo.Oupelomenostentandoestar.

–TerraparaAbby…ouviuoqueeufalei?Blusaroxa.Jeans.–Sim,euescutei.Masestátudobem–digoaela.–Játenhoumaroupa

emmente.É incrível oqueumbanhoquente eumpoucode cafeína são capazes

de fazer.Às19h45min, jáestourelaxada,maisoumenosnormal.Marissamemandouumamensagemdetextohámaisoumenosumahoradizendoque ela, “B&M”nos encontrariamno restaurante, então ico com toda asuíte paramim. A blusa do pijama parece aindamelhor do que na noitepassada, provavelmente por não ter passado os últimos quatro mesesenfiadaemummala.Acrescentomeias-calçaspretaseumblazerlarguinhoao conjunto (minha tentativa de deixar a roupamais apropriada à CostaLeste) e calço as botas de caubói. O olhar no rosto de Caitlin quando eusaioéinestimável.

–Uau!Vocêestálinda!Ondevocêcomprouessevestido?– Fiz um curso-relâmpago sobre versatilidade do guarda-roupa com

BretWoodwardontemànoite.Ondeeuviaumpijama,eleviuumvestido.–Doudeombros.–Eeuconcordei.

Caitlinpareceimpressionada.

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–Ficouótimo.Saímos para o restaurante, que Caitlin disse que icava a apenas

algumas quadras de distância. Agora que não estoumais agindo como oMcGyver, noto coisas que não havia notado pela manhã, como aarquitetura do Old Campus e como a cidade de New Haven parece sernitidamente urbana. Existe uma energia audível na calçada – alunosconversandoanimadamenteenquantoandam,música tocandodentrodoscarros e dos dormitórios, o zumbido de umamultidão dentro de um barnasproximidades.Éesseosomdafaculdade.Algodespertadentrodemim.

– Então – Caitlin diz aome dar o braço –, estou achando que há umaboachancedequeessasejanossarealidadeporumtempo.

–Nãomedeixecomesperanças.–Pensandonisso–eladiz–,minhaparalelacertamentenãovaimudar

deideiasobreYale,easuanãovaitomardecisõesde initivasarespeitodefaculdadesatéreceberascartasdeaceitação,naprimavera.

– É, mas ela pode decidir não se inscrever nessa universidade –observo.

–Maselanãovai–Caitlinresponde,parecendotermuitacerteza.–Comovocêsabe?–Porquefuieuquepreenchioformuláriodeinscrição.Euparo.–Vocênãofezisso!– Com a sua permissão! – ela a irma rapidamente. – Sua mãe estava

insistindo para você se inscrever, e eu sabia que você só não havia seinscritoporqueachavaqueela icariadecepcionadasevocênãoentrasse.Então,euaconvenciamedeixarpreenchero formulárioparavocêenósenviamos sem contar a ninguém. Dessa forma, se você não entrasse,ninguémprecisariasaber.

– Mascomo eu entrei? Minhas notas eram boas, mas minhaclassi icaçãonãoeratãoaltaassim.–Nãofoivocêqueentrou,dizavozemminhacabeça.Foiseueuparalelo.

Caitlinreviraosolhos.– Abby, você passou todos os anos no colégio elaborando a inscrição

perfeitaparaafaculdade.Estáescritoemsuatestaquetemboaformação.–Maseasredações?Foivocêqueescreveu?–Éclaroquenão.Euqueriaquevocêentrasse,lembra?–Aexpressão

dela escureceu por uma fração de segundo, tão rapidamente que mepergunto se não foi coisa da minha imaginação. Caitlin sempre tevevergonhadenãoescreverbem,ecostumavafazerpiadassobreisso.Maso

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olharquevifoideirritação.–UseiumeditorialqueescreveuparaoOraclecomo apresentação – elame conta –, e um e-mail quememandou comoredação complementar de quinhentas palavras. Palavras suas. Ou da suaparalela–eladiz, corrigindoasimesma.–Nãoqueadistinção importeaessaaltura.

Quemdisse?–Bem,obrigada–agradeço.–Outenhoqueagradeceraela.Setivesse

acordadonaNorthwesternhojedemanhã,estariacatatônicaagora.–Duvido.–Sério,Caitlin.Nãoconseguiriafazerissosemvocê.–Enemprecisaria–eladiz. –MesmoqueestivessenaNorthwestern,

aindateriaaminhaajuda.–Elaapontaparaumpequenoemaliluminadorestaurantecomlanternasjaponesaspenduradasnafrente.–Chegamos.

O lugar está lotado, mas é fácil localizar Marissa (principalmenteporque ela começa a acenar como uma louca quando nos vê). O carasentadoao ladodelaatéqueébonitinho,usa jeans justoseóculosdearogrosso,eestácomobraçoapoiadonascostasdacadeiradela.M.estádecostas para a porta, então, a princípio, vejo apenas um colarinho verde ecabelosescuros.

– Continue andando – Caitlin sussurra atrás demim, empurrando-meparaafrente.Nomesmoinstante,M.sevirananossadireção.Nossosolhosseencontrameambossorrimos.

MdeMichael.Eeleestáaindamaislindodoqueestavaàtarde,seissoépossível.

–Chegouaconvidadadehonra–Marissadizquandonosaproximamosdamesa.Osrapazesselevantamparanoscumprimentar.–AbbyeCaitlin,estessãoBeneMichael.

– Então a aniversariante é você? – DizMichael, puxando a cadeira aoseulado.–Issomepoupaotrabalhodepersegui-la–elesussurraquandoeumesento,depoischamaogarçomparapedirumarodadade“bombas-s” para a mesa. – E traga um copo cheio pra ela – ele acrescenta,apontandoparamim.–Hojeelacompletavinteeumanos.–Ogarçomnãopareceacreditar,mastambémnãoquestiona.

–Oqueébomba-s?–perguntoquandoogarçomseafasta.–Bombadesaquê–Michaelexplica.–Umacopinhodesaquêdentrode

meiocopodecerveja,tomadoomaisrápidopossível.–Eleridaminhacaradenojo.–Nãoétãoruimquantoparece.Eujuro.

– Ele está mentindo. É exatamente tão ruim quanto parece – a irmaBen.–Masdepoisdoprimeiro,nãodámaisparanotar.

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Benestácerto.Nasegundarodada,jánãomeimportavanemumpoucocom o sabor: minha única preocupação era dominar a arte de jogar ocopinho demodo aminimizar o respingo de cerveja (desisto de disputarquem bebe mais rápido durante a primeira rodada – até a pequenaMarissaconseguebebermaisrápidodoqueeu,emboraacomparaçãonãosejamuito justa, jáqueelaestá jogandoocopinhodesaquênaáguacomgás. Tem algo a ver com cerveja causar “catabolismo acelerado deaminoácidos” o que, sim, ela disse com seriedade).Marissa,Michael e euestamos no meio de uma competição bem quente. Enquanto isso, Ben eCaitlin não estão nem participando do frenesi. Estão afastados da mesa,conversandodeummodoquenãoestimulaaparticipaçãodogrupo.Olhopara Marissa para ver se está irritada, mas está tão concentrada emmelhorar seu tempo que nem nota que seu namorado parece estartotalmenteenvolvidocomoutragarota.

– Sobre o que estão conversando? – pergunto a eles, arrastando umpoucoaspalavrasparaparecermaisbêbadadoqueestoueassimnãodaraentenderqueestouchamandoaatençãodeles.

– Caitlin está contando tudo sobre astro ísica de partículas. – Benresponde, não parecendo nada culpado. Ele sorri para ela. – Talvez nãotudo,masapartequemeucérebrodeervilhaécapazdeentender.

–Benfazfaculdadedejornalismo–Caitlinanuncia.–FezumestágionoHuf ington Post no último verão. – Lanço um olhar para ela. Eu já deviasaberdetodasessascoisas.Felizmente,Marissa interrompeantesqueeutenhaqueresponder.

–Eujáfaleiparaela–eladiz,fazendoumgestocomamão.–Masoquenão falei é que o Michael émuito bom no lacrosse. E émembro de umafraternidade.Nãoé,Michael?

– Oh – Michael diz quando nosso garçom chega com a comida. – Seessassãoasduasqualidadesquemaischamamaatenção,estouperdido.

Depoisqueogarçomdistribuiospratos,aconversapraticamenteacabae o grupo detona uma quantidade obscena de sushi. A comida ajuda abalancear o álcool, e quando Ben faz um sinal pedindo a conta estoumesentindo realmente bem. Satisfeita, com a cabeça um pouco leve, e umtantoquantoapaixonadaporMichael,quepareceestarsedivertindotantoquanto eu. Nomomento, ele está recostado, com o braço atrás daminhacadeira, passando o dedo de leve em meu ombro. Eu me apoio nele,absorvendo o momento, agradecendo porque meu defeito cerebral(porque, sério, vamosdarnomeaosbois) vaipermitirqueeume lembredissoamanhã,mesmoquemaisninguémselembre.

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– Abby? –Michael parece preocupado. Não o culpo. Sua companheiradebombadesaquêestásentadaàmesacomosolhosfechados.Euosabroesorrio.

–Oi.–Vocêestábem?–Estou.Essefoiomelhoraniversáriodetodos.–OrostodeBretsurge

emminha mente. Eu disse exatamente a mesma coisa para ele na noitepassada.Fazmesmomenosdevinteequatrohoras?

Michaelapontaparaorelógio.– E são apenas 22h. O que me diz de declararmos esse o padrão

insuperáveldeexcelênciadeaniversários?–Issoenvolvemaisbebida?–Benpergunta.–Claroquesim–Michaeldiz,con irmandocomacabeça.–Muitomais

bebida.Etalvezumpoucodedança.“Um pouco” de dança é apelido. Acontece que Ben conhece um cara,

queconheceumcaraqueésegurançadaAlchemy,casanoturnaalestedocampus(nãotenhoideiacomoumcaradeNovaYorktemcontatosemNewHaven).Énoitedehip-hopdasantigas,eoespaçoapertado jáestá lotadodegente tentandosemexer.Nóscincopassamosasduashorasseguintesna pista de dança, parando apenas para tomar doses de dois dólares eparapausascadavezmaisfrequentesparairaobanheiro.

– E depois? – Ben pergunta quando as luzes da casa noturna seacendem.Comodica,bocejo.

–Parecequeaaniversarianteestáesgotada–Michaelnota.–Não, eunãoestou!–Émentira.Estou completamenteesgotada.Meu

cabeloestágrudadonatestaeminhascoxasestãoúmidasdesuor.Bocejomaisumavez,entregando-me.–Certo,talvezumpouco.

– Estou com sono – diz Marissa, apoiando-se em Ben e fechando osolhos.

–É,achomelhorirpracasa–sugereCaitlin.–Tenhoaulaàs8h.E,Ab,vocênãovaidarumaolhadanaquelaauladeCiênciaPolíticaàs9h?

Aff.Aulas.Michael pendura o braço emmeu ombro. Sua pele está tão grudenta

quantoaminha.–Parecequefomosvencidos–eledizaBen.–Vamosencerraranoite?QuandoandamosasdezquadrasatéoOldCampus,estoubasicamente

dormindoempé.Depoisquepassamospeloportãoprincipal,Caitlinmedáumabraçodedespedida.

–Me ligue amanhã – ela sussurra, me dando um apertão. – De onde

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estiver.– Deixa que eu te acompanho – Ben diz casualmente. – Não é bom

andar sozinha. – Olho rapidamente para Marissa para ver se ela estáirritada,masparecequenão.Estáapenascomsono.Decantodeolho,vejoCaitlinhesitar.

Nomesmo instante, o telefone dela toca. Seu rosto se ilumina quandoelavêquemé.

–Oi! – eladiz aoatender. –Eu já ia te ligar. –Ela sussurra “está tudobem”paraBeneatravessaopátio.

–Namorado?–Michaelpergunta.–Sim.EleestudaemMichigan.–ObservoareaçãodeBen,maselenão

expressa nenhuma. Apenas abraça Marissa e a conduz para o nossoprédio.

Quando chegamos no quarto, Marissa e Ben desaparecem lá dentro,deixandoMichaeleeunocorredor.Estoutentandodecidirseoconvidoaentrar,quandoelediz:

–Eumedivertimuitohoje.– Eu também – digo, desejando em silêncio que meu eu paralelo

continueno caminhoqueo levaráa esseprecisomomento.Pelaprimeiravezemmuitotempo,nãoprefeririaestaremnenhumoutrolugar.

Euqueroisso.Estemomento.Estarealidade.Estavida.Os pensamentos me assustam, porque não há garantias de que tudo

continuará sendo a mesma coisa amanhã. Raiva e gratidão competemdentrodomeucérebro.Odeioaideiadequeminhaparalelapossaapagarisso, mas também sei que ela é a razão de isso estar acontecendo.Concentro-menasmanchinhascordeâmbardosolhosverdesdeMichael,iluminadaspelocalordalâmpadaamarelasobrenós.

–Felizaniversário,Abby–Michaeldizpoucoantesdese inclinarparamebeijar. Seus lábios são suaves,mas irmesao semovimentaremsobreos meus. Ele segura gentilmente meu rosto. Meus olhos se fecham,silenciandotodasascoisas,excetoasensaçãodabocadelesobreaminha.

–Euteligoamanhã.–Ouço-odizer.Apenasconcordo,nãocon iandoemminha capacidade de dizer algo coerente neste momento, com os lábiosaindaquentes.Michaelmebeijamaisumavez,suavemente,eseviraparairembora.Euovejodesaparecernaescadaria,depoisentro.

Ben me olha da cama de almofadas que está organizando no chão.Marissaestáesparramadanosofá,jádormindo.

–Entãovocêgostadele–Bendiz.–Acabamosdenosconhecer.

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– E daí? Ainda pode gostar dele. – Ben termina de arrumar a camaimprovisadaedeitasobreela.

–Nemseiosobrenomedele–afirmo.–Carpenter–Benresponde, e fechaosolhos. –Eelegostadevocê. –

Sorrindo,vouparaoquarto.Enquanto me deito em uma cama desconhecida, uma onda de pavor

tomacontademim,substituindoocansaço.Podetersidoesse.Podetersidoesse meu último momento aqui. A ideia faz meu estômago queimar. Nãoquero que as coisas mudem novamente. Quero icar muito tempo nestecaminhoparaveratéondeelevaimelevar.Querotantoqueconsigosentiremminhalínguaamortecidapelosaquê.Meutelefoneseiluminacomumamensagemdetextoeeuoalcançonoescuro.

Michael:TENHADOCESSONHOS,ANIVERSARIANTE.Possoenxergarnitidamentena cabeça,masaindaassimabroa foto, a

únicaquetenhodanoitedehoje.Michaelestánapistadedança,cantandoa plenos pulmões uma música do Salt-N-Pepa, e mesmo com os olhosapertados e a boca escancarada, ica ridiculamente lindo. Marissa e Benestão ao fundo, pouco visíveis sob a luz turva, dançando e rindo com osbraçosemvoltaumdooutro.ApontadocotovelodeCaitlinestánocantoinferior da imagem. Eu estava rindo quando tirei a foto. Tanto, que nãoconseguiamanterotelefoneparadoeesquecideusaro lash.Masmesmoescura e um pouco borrada, ela capturou omomento que eu não queriaperder.

–Deixe-me icaraqui–sussurronoescuro.Éacoisamaispróximadeuma oração que disse nos últimos tempos.Meu telefone se apaga e eu ocolocosobotravesseiro,querendo-oporperto.Sea fotoestiveraquipelamanhã,sabereiquearealidadenãomudoudanoiteparaodia.

Deondeestoudeitada,possoverumpoucodocéunoturnopelajanela.Está nublado, de modo que o céu ica com um tom esverdeado. Volto apensarnaquelanoite,háumanoeumdiaatrás,quando iqueinavarandados fundosda casadosmeuspais, olhandoas estrelas, sentindoqueelasestavampairandonabeiradadealgoimportante.Mas,poroutrolado,nãoeraeuqueestava lá.Eaquelasestrelasnãoeramdessemundo,e simdomundodaoutra.

Fechoosolhos,finalmentecedendoaocansaço.

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4(Lá)sexta-feira,26desetembrode2008(ésexta,graçasaDeus)

–Normalmente,nãorecusocervejagrátis–Tylerdiz,mergulhandoumabatatinhachipsnoketchupejogandodiretonaboca.–Tornaessasdecisõesfáceis.–Eledáumgolenoachocolatado.Caitlinfazumacareta.

– É sobre Ilana que a gente está falando – ela frisou. – Nem vai tercervejalá.

Ouço a conversa deles apenas de longe. A aula de astronomia começaem noveminutos, e eu ainda não terminei o trabalho de leitura da noitepassada.

–Éumafesta.Claroquevaitercerveja.– A garota vive à base de Coca-Cola diet e balas de menta – Caitlin

responde.–Elacarregasachêsdeadoçantenabolsa.–Edaí?–Vinhobrancoevodca.Drinquesdegelatina,sevocêtiversorte.–Vocêtálouca.Nãotemamínimachancedeeladarumafestasemum

barrildecerveja–Tylerretruca.Caitlinapenasri.Seéoquevocêacha...Tylerolhaparamim.–Oquevocêestáfazendo?–Trabalhodeastronomia– respondosemolharpara cima.Maisduas

páginasparaterminar.– Deixando tudo para a última hora. Ótimo. Fico feliz em ver você

adotandomeushábitosescolares,Barnes.Euoignoroecontinuoaleitura.–Então,qual é a comemoração?–Caitlinpergunta. –Ospaisdelanão

viajamtodahora?–Elaconseguiuopapelprincipalnapeçadaescola–Tylerrespondede

bocacheia.–Ésuafestadavitória.Caitlinfazummovimentodeengasgo,entãovoltaparaasalada.–Então,quehorasassenhoritasvãomebuscarhojeànoite?–Desculpe–Caitlinresponde.–Vamosestarocupadas.

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–Ah,é?Fazendooquê?OlhoderelanceparaCaitlin.Nãotemosplanos.–Cinema–dizemosemuníssono.Tylerapenasbalançaacabeça.–Quechato.–Vocêsabequecertamenteapolíciavaiserchamadaporcausadessa

festa–eudigo,passandoosolhosrapidamentenosúltimosparágrafos.– Cara, vocês estão estraga-prazeres demais hoje. Mais do que o

normal. – Uma pausa, então ouço Tyler dizer. – Mas vocês estão bemgostosas,entãotalvezcompense.

Uau.OlhoparacimaevejoTylersorrindoparaCaitlindeumjeitomuitodiferente. Esquece. É um sorriso bem típico dele, mas que ele reservaapenas para as garotas com quem quer algo a mais. Olho para Caitlin,esperando que ela pareça tão desconfortável como eume sinto. Mas elaapenas faz uma expressão adoravelmente lisonjeada, ainda assimrecatada,esorriparaele.

Oqueestáacontecendoagora?Nesse instante, o sinal toca, e aquele momento termina. Tyler pega a

mochila e vai embora, tão sem cerimônia queme pergunto se eu estavavendodemaisnaquelatrocadeolhares.Talveznãotenhasidonada.Talvezeleestivesseapenasfazendoumelogioamigável.Tylernãodariaemcimade Caitlin descaradamente enquanto estivesse saindo com Ilana, e Caitlintemumaregramuitorígidasobre lertarcomcarascomprometidos.(Doisverões atrás, ela passou seis semanas em um estágio em Huntsville, naNasa, e se apaixonou por Craig, que ela pensou ser um estagiário.Descobriudepoisdeterdormidocomele–foiaprimeiravezdela–queocara era um doutorando de vinte e seis anos casado. Depois disso elamudou, de um jeito que nunca entenderei direito. Então, quando eu digoque ela tem uma regra muito rígida sobre lertar com carascomprometidos,querodizerqueelanãoflerta.Pontofinal.)

–Vocêvem?Caitlin está em pé a poucos metros, obviamente se perguntando por

queestousentadanamesadorefeitóriotrintasegundosapósosinal.Meulivroaindaestáabertonamesa.Passoosolhossobreoúltimoparágrafodocapítulo,entãoenfioolivronabolsaeasigo.

Astronomia é diferente de qualquer aula que eu já tive. Temos aomenos trinta páginas de leitura toda noite – às vezes chega a quasecinquenta –, mas não tem questionário ou perguntas para completar noinalde cadacapítulo,oquenos forçaa lembrarde tudo.OdoutorMann

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parecesimplesmenteacreditarquenoslembraremosdetudo.Enãoéqueelerepassaconoscooquedevíamosterlido.Suasaulassãomaisparecidascomdiscussões ilosó icas, nas quais ele perguntamais do que responde.De verdade, é até divertido. Só queria que o professor tivesse umamemóriamelhorparalembrarnossonome.Eleinsisteemnoschamarpelosobrenome, mas não consegue se lembrar de todos. Então, ele nos fazsentar em ordem alfabética e usa o diário de classe como cola, mecolocando cinco ileiras e duas carteiras longe do Wagner, o GarotoAstronomia.

PorqueosobrenomedeJoshnãopodiaserBarneyouBarrouBartlett?Chego na sala poucos minutos antes do segundo sinal. A maioria das

carteirasjáestáocupada,osalunoslutandoparaacabaraleituraantesdeaaulacomeçar.AcarteiradeJosh,comodecostume,estávazia.Elesempreentra pouco antes do último sinal, trazendo apenas caderno e lápis. Semmochila, sem livro. Apenas o caderno e o lápis. Eu acharia que ele é umrelapso total se não fosse pelo fato de falar bastante em sala, semprelevantandoamãoeparticipando,masapenasquandoninguémmaisofaz.É como se ele esperasse para ter certeza de que o resto de nós não vairesponder,entãoergueamãoantesqueodoutorMannsetransformenosenhor Hyde (o homem é um fofo, masnão ica feliz quando faz umaperguntaeninguémresponde).

Espertoelindoeatencioso.Etotalmentedesinteressado.As coisas pareciam promissoras no dia em que nos conhecemos.

Apontando para o lugar vazio ao lado dele, toda aquela conversa sobredestino e estrelas. Parecia o começo de alguma coisa. Mas eu devo terentendidoerrado,porque Joshnão feznenhumesforçopara falarcomigodesde então,mesmo que eume demore, casualmente, naminha carteiratodososdiasdepoisdaaula.

Sim,eusouessetipodegarota.Mais provas? O fato de que agora estou totalmente virada na minha

carteira, olhando ixa e descaradamente para a porta da sala, apenasesperando que ele entre. O que acontece menos de um minuto depois.Lápis atrás da orelha, caderno embaixo do braço, camisetamarrom, bemarrumadinha, por dentro dos shorts cáqui. Ele encontra o meu olhar esorri. Rapidamente abaixo os olhos, envergonhada porque ele me pegouolhandoparaeledenovo.Éaterceiravezestasemana.

Olha,ésério, isso jáestá icandomeioridículo.Ésóeleolharnaminhadireçãoemedáfrionabarrigaetudoquevemàminhacabeçaécomoeuquerotocá-lodeverdade.Apartededentrodoantebraço,acovinhasobre

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o lábio superior, o lugar onde o lóbulo da orelha encontra o pescoço. Équase doentio como não consigo parar de pensar no corpo desse garoto.Ele, enquanto isso, não parece pensar em mim, nem um pouco. Agoramesmoestáfolheandoocaderno,procurandoumapáginaembranco.

Tocaoúltimosinal,eodoutorMannaparece.–Paralaxe–elecomeça.–SenhoritaWatts,podede ini-laparanós,por

favor?A loira sorridente atrás de Josh tenta encontrar uma de inição. Ela

folheiaaspáginas tãorápidoque icosurpresaporelanão terarrancadoumadelas.

–Hum…paralaxeé, tipo,adiferençaemcomovocêvêalgo–agarotagagueja,escondendo-seatrásdoscachosloiros.–Tipo,quandoumaestrelapareceestaremumlugar,masentãovocêolhadeoutroângulo,eelaestá,tipo,emoutrolugar.

– Exato! – Professor e aluna parecem igualmente surpresos que elatenha conseguido. Ele se vira para o resto da classe. – Como a senhoritaWatts explicou, paralaxe é a diferença na posição aparente de umobjetovisto de dois ângulos distintos. O nome “paralaxe” e o fato de usarmostermos como “arcsec” e “parsec” para determiná-la fazem o conceitoparecermaiscomplicadodoqueé.

–Quediaboséarcsec?–alguématrásdemimmurmura.– O quanto nossa perspectiva é distorcida? Essa é a pergunta mais

profundaquedevemos fazer–OdoutorManndeclara. –Vamos começarcomumexemplo.Porfavor,escolhamalguémapelomenosduasfileirasdedistância. Alguém que vocês possam ver claramente de onde estãosentados.

Eu me forço a não olhar para Josh. Em vez disso, me concentro nagarotaqueoprofessorchamouantes.

–Agora,fechemumolho–ovelhoteinstrui.–Comumadasmãos,comodedãoerguido,movimentemobraçoatéseudedãobloquearavisãodorostodapessoaescolhida.–Aloirasorridentedesaparece.–Agora,abraoolhofechadoefecheoaberto.Apessoaescolhidaparecetersemovidodetrásdoseudedão.–Voilà.Aloirasorridenteaparecedenovo.

MovomeudedãoatéJoshentrarnamira.Eleestáolhandodiretamentepara mim, um olho fechado, braço estendido, rosto obstruído pelo seudedão erguido. Quando nossos olhos se encontram, faço um esforçoconsiderávelparanãorir.Existemquarentaeduaspessoasnanossasala,eelemeescolheu.

Aloirasorridenteficaesquecida.Fechomeuolhoesquerdoemovomeu

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dedão para a frente alguns centímetros até o rosto de Josh desapareceratrásdele.Fechoodireito,então lentamenteabrooesquerdo.Láestáelenovamente,orelhaesquerdaraspandonomeudedão.Observocomoeleseespelha em mim, alinhando o dedão com o meu. Ficamos assim por ummomento, olhos direitos fechados, braços esticados, simplesmenteencarando um ao outro. Àquela distância, consigo perceber a pintaembaixodoolhoesquerdo.Avançoumpoucomeudedãonadireçãodela.

–Étudoumaquestãodeperspectiva–ouçoodoutorManndizer.Mudoosolhosnovamente,eorostodeJoshdesaparece.Porquevocêachaqueelenão está interessado? , pergunta a voz dentro da minha cabeça.Ele sorriparavocêtododia.

–SenhoritaBarnes?–AvozdodoutorMannmepuxadevoltaparaarealidade.Saco!Nãotenhoideiadoqueeleacaboudeperguntar.

–Hum,osenhorpoderepetirapergunta?–eupeço,jámepreparandoparaareaçãodovelhote.Ouçováriasrisadinhasabafadas.

– Não iz pergunta nenhuma ainda – nosso professor responde. – Iasimplesmentepedirqueabaixasseobraço.

Asrisadinhasabafadasviramrisadas.Meuolhoesquerdoabredeumavezenquantodeixoobraçocairbem

rápido. Com o rosto de Josh escondido atrás domeu dedão, não percebiqueelehaviadesviadooolhar.Ouqueorestodasalatinhacomeçadoameencarar,aúnicapessoanasalaaindaolhandoparatrás.

Eugironacadeira.–Desculpe,euestava…–Semumjeitocoerentedeterminarafrase,eu

me encolho, baixando os olhos para a super ície de metal da minhacarteira e ingindo preocupação com os dois peitões que alguém tinhariscadonela. Felizmente, oprofessor retomaa aula rapidamente, então, aatenção coletiva logo se dispersa. Eu, no entanto, permaneçoenvergonhada.Então,você icouolhandoparaeleporumtempoexagerado.E daí? Para ele, você estava olhando para o cara na frente dele. Olho derelance para a ileira de Josh. O cara na frente dele tem acne cística emonocelha.Etenhocertezadequeestáusandodelineador.

Quandoosinaltocaao inaldoperíodo,en iomeulivronabolsaesigodiretoparaaporta,desesperadaparanãocruzarolharescomJosh.

–Abby!Nãoestoucomsorte.Josh está a poucos passos atrás de mim quando me viro. Enquanto

esperoqueelemealcance,meucoraçãovaidebatimentoscontínuosparapalpitaçãoenlouquecida.Desconcertadapelaproximidadedeleepelomeu

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nervosismo, esqueço que foi ele ame chamar e começo imediatamente afalar.

– Queria saber o que você vai fazer hoje à noite – eu falo. Algoperfeitamentenormalparadizerquandovocêestácomeçandoaconversa.Umpoucoestranhoquandovocênãocomeçou.Joshapenasresponde.

–Ah, você sabe – elediz. –Ode sempre.ReprisesdeCSI uma atrás daoutra.TalvezcomPringles.

–Essessãoseusplanospreferidosparaofimdesemana?Abrimoscaminhoenquantoasalaseesvazia.– “Preferidos” implicam uma preferência entre várias escolhas – Josh

relembra.–Souocaranovo,lembra?–PorquenãoaparecenafestadaIlana?–Aspalavrassurgemsemque

eu planeje. E daí que na verdade eu não vou à festa que eu acabei deconvidá-lo?Éoqueacontecequandoeunãotenhoumplano.Eumergulhodecabeçanodesastre.

–Festa,é?Não: “Claro, eu adoraria!” ou “Olha, parece legal!” Apenas: “Festa, é?”

Comoalguémpode responderassim? É umapergunta?Uma tática esquivaatépoderpensaremcomomedispensargentilmente?Eurecuo.

–É,ummontedegentevai–digorapidamente.–Éumareuniãozinha.–Legal–elediz.–Parecedivertido.–Queótimo!Agentetepegaàsoito.–Eumeviroparasair,esperando

que ele me siga. Mas ele ica lá, parado. Olho para ele, sem querer sergrosseira, mas sem querer chegar atrasada para a aula de jornalismo.Nossa supervisora é bem tranquila, mas não com atrasos, especialmentequandoaatrasadaéaredatora-chefe.

–Achoquevocêprecisadomeuendereço–elediz.– Ah! Claro. Seu endereço. – Eu rasgo um pedaço de papel do meu

cadernoeentregoparaelebemquandotocaosegundosinal.– Então, quem vai? – ele pergunta. Ele, diferente demim, parece não

estarcompressadeirparaapróximaaula.–Praticamentetodomundodoúltimoano–eudigo,querendoqueseu

lápissemovamaisrápido.–Bem,menososeremitas.–Eremitas?–Opessoalquenuncasai. –Olhoparao relógionaparedeatrásdele.

Quarentasegundosatéoúltimosinal.QuarentasegundosparairdoBlocoAatéolaboratóriodejornalismo,no inaldoBlocoG.Senãoforagora,vouchegaratrasada.

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– Digo, conosco – Josh diz, inalmenteme entregando o papel. – Vocêdisse“agentetepega”.Quemé“agente”?

– Ah, claro. Não acho que você conheça – digo de um jeito distraído,enquanto vamos para a porta.Quando será aceitável sair em disparada?– Então, vejo você mais tarde? – Já estou lá fora antes que ele possaresponder.

Apesardeeucorrerparachegarlá,aindachegoatrasadaparaosextoperíodo.Murmuro uma desculpa sobre ter icadomais tempo na aula deastronomia (tecnicamente não era mentira), então me esgueiro até acarteira, onde passo o resto do período repassando mentalmente minhaconversa com Josh, enquanto injo revisar a formatação das páginas dapróximaediçãodoOracle.

Assim que a aula acaba, eu corro até o carro de Caitlin. Ela surge doprédiominutosdepois,equilibrandoumapilharidículadelivros.

–Vocênão tem treinode cross-countryagora?–elaperguntaquandomevê.

–Queriafalarcomvocêprimeiro.Sobrehojeànoite.–Podemossairenquantofalamos?–Elajogaoslivrosnoporta-malase

aponta coma cabeçaparaa ila crescentede carros esperandopara sairdoestacionamento.–Nãoesqueçaqueusootermo“sair”deformageral.

–Tábom.Entramosno carro. Caitlin sai da sua vaga VIP e junta-se à ilade saída

parada.Então,olhaparamim.–Então,hojeànoite.Oquefoi?Tenteifalardeumjeitocasual.–ConvideiJoshparairconoscoàfestadaIlana.–QueméJosh?–JoshWagner.OGarotoAstronomia.– Convidou o Garoto Astronomia para ir com a gente a uma festa na

qual não vamos. Estratégia interessante. Posso levar o namorado que eunãotenho?

Lançoumolharparaela.– Vou ingir que não ouvi. Então, você dirige? Podemos levar Tyler

também?–Porqueeutenhoqueir?– Porque eu disse para ele que ummonte de gente iria. – Caitlin dá

apenas uma olhada para mim. – Ele hesitou quando eu convidei! Fiqueiinseguracomahesitação.

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–De todas as coisas que você podia ter convidado o cara para fazer,escolheujustoessa?

–Nãoseideondesaiuesseconvite!–eulamento.–Abriabocae…blá.Foiisso.

Finalmentechegamosàrua.Oguardanocruzamentonosparaa imdedeixarotráfegodaruapassar.

–Levovocêparaoginásioouvocêdesceaqui?–Caitlinpergunta.–Desçoaqui–eudigo, já abrindoaportadopassageiro. –Não temos

que icarmuito tempo.Vamos,vemosoquantoestáchato,esaímos.Tudobem?

–Vocêpercebeucomovocêéridícula,nãoé?–Vejo você quinze para as oito! –Mandoumbeijo para ela e fecho a

porta.Como esperado, o treino de cross-country é brutal. Nosso primeiro

encontroénapróximaquinta-feira,entãocomeçamosascorridasemritmorápido ontem. Signi ica que, a menos que eu queira aparecer no chatodiscursodatreinadoraP.“Atartarugasóvencenoscontosdefadas”,tenhoquemeesforçardeverdade.

Sãoquasedezquilômetros, avintee setegraus,masébomdesligarocérebro um pouco para me concentrar em nada mais além da minharespiraçãoedosomcontínuoe tranquilizadordosmeus tênisbatendonoasfalto. Correr é a única coisa com a qual posso contar para calar meuincessante monólogo interno. Se não pudesse correr, provavelmentepensariatantoatéterumcolapsonervoso.

Aquietudemental nuncadura.Quando chegona entradada garagemdepois do treino,meu cérebro ica atulhado de novo. Garoto Astronomia.Liçãodeastronomia.Provadecálculoavançadonasegunda-feira.Inscriçãona Northwestern University. Redações para inscrição na NorthwesternUniversity. SAT, o exame classi icatório. Garoto Astronomia. GarotoAstronomia.GarotoAstronomia.

Minhamãeestánacozinha,separandoacorrespondência.–Chegouemcasacedodenovo–eudigo,largandoabolsanamesa.– Cheguei? – ela diz, meio distraída. – Estava até o pescoço com os

orçamentosdepisoparaaaladani icada.Tiveque sairde lá. –Elaolhouparamim.–Comofoioseudia?

–Bom–respondo.–Tirandoapartenaqualchameidescaradamenteocaranovodaescolaparasair.

Assobrancelhasdaminhamãelevantaram.

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–Caranovoesortudo.– Ai, não tenho tanta certeza de que ele acha o mesmo – eu digo.

–Quandoeuochamei,elenãomerespondeudireto.–Mas,nofimdascontas,eledissesim?–Sódepoisdeeuterfeitoparecerquenãoeraumencontro.–Nossa,quecomplicado–minhamãediz.–Maspromissor!Então,onde

vocêsvãolevá-lo?– Ah, numa reuniãozinha que uma garota da escola vai fazer na casa

dela. – Mantenho minha voz descontraída, mas nem tanto. Não queroparecerevasiva,mas,naverdade,estousendoevasiva,porquequeospaisdaIlanavãoviajare,óbvio,é impossívelmeuspaismedeixaremiraumafestasesouberemdisso.

–Hojeànoite?– É. Ei, esses são para mim? – pergunto, apontando para a pilha de

envelopesgrandesnamesa.–São–elaresponde,empurrando-osnaminhadireção.Pacotes de inscrição de faculdade. Passo por eles rapidamente –

Vanderbilt, Duke, Georgia University e Yale –, então jogo a pilha toda nolixo.

–Olhasó,nãofariamalsetivessealgumasopções–eladiz.Possodizerqueelaestápisandoemovos.–NãoqueeuachequevocênãováentrarnaNorthwestern,porqueseiquevai.Masporqueselimitar?Porquenãosedaralgumasopções?

–Estoumedandominhasopções.TambémmeinscrevinaIndianaenaNew York University. – Meu tom indiferente é retribuído com um olharacusador. – Desculpe, eu só não quero ir para uma faculdade no sul,entende?Jáconversamossobreisso.

–Ótimo. Issocabepara trêsdessesquatro.–Minhamãevaiatéa latadelixoepuxaoenvelopeazulebrancodaYale.–Connecticutnãoénosul.EYaletemumdosjornaisuniversitáriosmaisantigoselidosdopaís.–Nósduas sabemosqueela sabedissoporqueCaitlin comentounomeu jantardeaniversário.

–Mas não tem curso de jornalismo – eu friso. – O que importaria, seestivéssemos falando de uma faculdade na qual eu conseguisse entrar,mas não é o caso. – Issome faz ganhar outra olhada. –Mãe. ÉYale. Yale,noveporcentodetaxadeaprovação.Gentenormalcomoeunãoentraemlugaresassim.

–Quemdissequevocêénormal?–Ela sorri, fazendopiada,masessaconversajáestámeirritando,porqueéamesmaquetemosdesdequeeu

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era criança. Minha mãe acha que eu me subestimo. Sei que ela mesuperestima.Apesarda convicçãodeladequeEuSouAlguémEspecial, ahistóriaprovouquesousimplesmentemediana.Eestoubemassim;queroapenas que ela entenda isso. – Pense ao menos nessa possibilidade– minha mãe insiste, estendendo o envelope. – Você fará isso para suamãechatinha?

Pegooenvelope.–Sóporqueelaestásendoespecialmentechatinhabemagora.Minhamãedáumapiscadinha.–Elatenta.

Às 19h45min, tendo já experimentado quase todas as peças do meuguarda-roupa em todas as combinações possíveis e imediatamentedispensadocadauma, estou caçandoalgonagavetadaminhamãe.Meusjeans justos funcionam com essa camiseta larga e salto, mas o conjuntoaindame faz sentir um pouco zoada. Enquanto envolvo uma echarpe delinhobrilhantenopescoço, a campainha toca.Pegoumpardebrincosdacaixadejoiasdelaecorroescadaabaixo.

Caitlineminhamãeestãoempénohall,conversando,quandoapareço.Elasficamquietasquandomeveem.

–Quefoi?–pergunto,descon iada.Odeioquandoelasfalamdemim.Oqueacontecesempre.

–Nada–minhamãedizcomumsorrisoanimado.–Aproveiteseunãoencontro.

Comosempre,Caitlinestádemais.Osjeansdesbotadoseopulôver inodecapuzdãoaimpressãodequeelasimplesmentebotouaroupa,masosdetalhes– acessóriosdourados, o relógiodoavô, sandáliasdeplataformametálica impressionantes – completam o look. Eu me pergunto se é umerroapresentá-laparaJosh.Nãoquealgumacoisaváacontecerentreeles;ésóporqueseicomoelaestáeseicomoeuestou.

– Está sendo ridícula – Caitlin diz, enquanto caminhamos até o carrodela.Porumsegundo,achoqueelaestá lendoaminhamente.–Temqueseinscrever.

–Oi?–EmYale. Suamãemedisseque eles enviaramopacotede inscrição

para você. Seria tão horrível assim se você e eu estivéssemos namesmafaculdade?

Reviroosolhos.

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–Claro,éporissoquenãoqueromeinscrever.Tenhomedoquevocêeeuacabemoslá.–CaitlindestrancaasportasdoJetta,enósduasentramos.

–Então,oquehádeerrado?Porquenãoseinscrever?–(A)Nãovouentrar,entãoégastarenergiaàtoa.Epapel.–Ainscriçãoéviainternet.–E(B),Yalenãotemcursodejornalismo.–Porquetemcursosmaisteóricos,maisgeneralistas.–Exatamente.Epormaisquesejamuitolegalepormaisqueeupossa

conseguirumempregonojornalqueeuquisersemeformarlá, issotudonão muda o fato de eu não querer passar quatro anos tendo aulas deHistóriadaArteouCiênciaPolítica.Nareal,queroaprendercomoserumajornalista.Numasaladeaula.DepreferêncianaNorthwestern.

Caitlinolhaparamimenquantoligaocarro.–Ou(C):vocêsóestácommedodenãoconseguirentrar.–Não,euseiquenãovouentrar.Porissonãoprecisotermedo.–Massevocênãoseinscrever,nuncavaisaber.– Será que a gente podemudar de assunto? – pergunto, irritada. Sei

que ela está falando para o meu bem, mas já ouço o bastante dessasbaboseirasdaminhamãe.Caitlinrecua.

– Tudo bem. Contanto que você prometa rever minha apresentaçãopessoalassimqueeuterminar.

–Jánãoprometiisso,tipo,umasquarentavezes?– Ai, eu só estou nervosa com isso – ela diz. – Ouvi dizer que as

redaçõescontammuito,maisdoqueemoutrasescolas.–Aspalavrasdelavinham cheias de preocupação. Nós duas sabemos que escrever não é oforte de Caitlin; ela enfrentava o problema desde que foi diagnosticadadisléxicanoquintoano.Caitlinéótimaparaseexpressar,massuadislexiafaz com que escreva muitas palavras erradas, coisas que o corretorortográ iconempega.–Nemseioquefazerseeunãoentrar.–Avozdelaicaumpoucohesitante.NãoécomumemCaitlinsertãodeterminadaemalgo assim. Diferentemente demim, ela não tem tudo superplanejado noque diz respeito ao futuro. Mas entrar em Yale para ela não signi icaapenas os estudos acadêmicos. O avô dela trabalhou como despachantemarítimo no Porto de New Haven quando chegou da Ucrânia, nos anos1960, e desde então era sagrado que ummembro da família dele fosseparaYale.ElecomeçouachamarCaitlinde“minhaYalezinha”desdeodiaqueelanasceu(játinhadesistidoda ilha,queabandonouaescolaquandoconseguiuoprimeiro trabalhocomomodelo).Caitlin idolatravaoavô,quemorreutrêsdiasdepoisdoaniversáriodedezesseisanosdela.

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– Você vai entrar – eu garanto para ela. – E sua redação vai deixartodoselesmalucos.Vamosfazerdetudoparadarcerto.–Aexpressãodelavaidepreocupadaparaaliviada.

BuscamosTylerprimeiro.Quandoestacionamosnaentradadagaragemdele,aportadagaragemsobe,eTylersurgecarregandoumamochila.Elecaminha rapidamente até o carro, segurando a bolsa perto do corpo,escondendo-a.Seuestoquedecerveja.

– Concluiu que eu estava certa – Caitlin diz, quando Tyler senta nobancotraseiro.

–Errado.Concluíquevaliaapenameprecaverdapossibilidaderemotaquevocêlevantou–Tylercorrige,encaixandoamochilaembaixodospés.

– Sei. – Caitlin começa a se afastar da frente da casa de Tyler, entãopara. Ela olha para mim. – Espere aí, aonde vamos agora? Você não medisseondeessecaramora.

Entrego para ela o papel com o endereço de Josh, percebendo pelaprimeiravezsualetrabonitinhademenino.CaitlindigitaoendereçonoGPS.

– Como o cara novo conhece a Ilana? – Tyler pergunta, mexendo noiPod de Caitlin. – Tem alguma música normal aqui? “Elliott the LetterOstrich”? Para sua informação, bandas indie deviam ser proibidas de darnomeasimesmas.

–Seoquevocêconsidera“normal”sãoporcariaspop,nãotem–Caitlinretruca.–EocaranovonãoconheceIlana.Abbysópensouqueseriaumaboaideiaconvidá-loparaafesta.Vocêsabe,agenteestavatãoansiosaporessafesta.

–Olha,nãoentendoporquevocêsduassãotãodocontra–Tylerdiz.–Elaéumpoucotemperamental.Acabeçapesamaisqueocorpo.Mastemalgumasqualidadesquecompensam.

–Tipo?–eupergunto.Nãoestouapenassendochata.Tenteiencontrarmotivosparagostardela.Ouaomenosparatolerá-la.Enãoencontrei.

– Ela é divertida – Tyler responde. É seu eufemismo para “dada”. – Etemtalento.

Euabafooriso.–Talento,né?–Ésério–Tylerdiz.–Euviaaudiçãodelaparaapeçaqueelaqueria

tanto.Foirealmentebem.–Elepareceestranhamentesincero.– Por favor, nãome diga que você tem sentimentos legítimos por ela

– eu falo. – Caitlin,me ajude aqui. Diga que ele não tem permissão paragostardeladeverdade.

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– Não me importo com quem ele gosta – Caitlin retruca, um poucorápido demais. Os olhos dela estão grudados na pista. – Chegamos – elaanuncia.

Euolhoparacima,assustada.–Já?Caitlin aponta para uma casa de tijolinhos de dois andares no im da

rua.TemumjipebatidocomplacadeMassachusettsestacionadonafrentedacasa.

–ParecequeoGarotoAstronomiaévizinhodoTy–elacomenta.Olhopela minha janela. Estamos parados em uma das novas ruas sem saídapertodanovaentradadosfundosdasubdivisãodeTyler.Houveumafestaaqui,noprimeiroanodoensinomédio,algumasruasparacima,antesdeasfaltaremaPoplarDrive.A “FestaPoplar”,que logo foi renomeadapara“FestaPopular”.Houverumoresdeumalistadeconvidados,masninguémapareceu.

–Espere,nãoestacioneainda.–Abaixooespelhoevejoomeure lexo.Estou exatamente como estava há quinze minutos. Os olhos um poucoarregalados,masderestoestoubem.

TylerestáocupadocantarolandoamúsicatemadeMisterRogers.– Então, qual é a história do cara novo? – ele pergunta entre um

compassoeoutro.– Sei lá – eu falo. – Ele está na minha sala de astronomia. Acho que

tambémestánaequipederemo.–Nóstemosumaequipederemo?–Énova,parece.–Possoestacionaragora?–Caitlinpergunta.Estamosparadosnomeio

darua.–Sim.Tudopronto.–Caitlincomeçaaavançar.–Espere!–Elapisano

freio.EuviroparaTyler. –Nãodiganada sobreCateeeunãogostarmosdeIlana.Ousobrecomoodiamosasfestasdela.

TylerolhaparaCaitlin.–Elasabecomoissoébizarro,certo?–Sim–eumurmuro.–Agora,caleaboca.Emedáumchiclete.Caitlinseaproximadaentradadagaragemeestaciona.–Vocêvaiatéaporta?–elamepergunta.–Ouquerqueeubuzine?–Vocênãopodebuzinar–Tylerdiz.–Ospaisdelevãopensarquevocê

éumaestranhaquetemmedodepais.Ospaisdele.Nempenseiquepodiaterdefalarcomospaisdele.Credo.

Aindabemque,doissegundosdepoisdomeumonólogointeriorsobrepais

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meamam!,aportadafrenteseabre,e Joshsurge.Espere,eudeveriaestarofendidaporqueelenãoquisqueeufosseatéaporta?

Tylersecurvaparaafrenteparaolharmelhor.–Eletemumavibedecontadoremférias,nãoé?Eulançoumolharparaele.–Sejalegal.–Eusempresoulegal.Ele abre a porta para Josh, então se afasta para dar espaço no banco

traseiro.–Eaí,cara–eledizquandoJoshentra.–EusouoTyler.Fazemos as apresentações e então partimos para um silêncio

moderadamente constrangedor. Masco nervosamente meu chiclete,ansiandoparaTylerdizeralgumacoisa.Eleconversaatécomumhidrante.

–Então,Josh…–Tylerfinalmentediz–,oqueveiofazeremAtlanta?–MeupadrastorecebeuumapropostadetrabalhonaEmoryUniversity

–Joshresponde.–Eledáaula?–pergunto,virandonobancodafrente.–Astrofísica.–A-há!Issoexplicasuahabilidadeemastronomia.Caitlinmostrainteresse.–Seráqueeuoconheço?–eladiz.–Qualéonomedele?Joshriapenas.– Ah, ela está falando sério – eu comento. – Professores de ísica são

paraCaitlinoqueascelebridadessãoparapessoasnormais.ElacomeçouasalivarquandosoubequeodoutorMannestavanaBrookside.

– Bem, nesse caso, o nome domeu padrasto éMartinWagner – Joshresponde.–Eleéespecialistaem…

–Matériaescura–Caitlindiz,completandoafrase.–Euliolivrodele.Joshpareceimpressionado.Lembro-medocomentárioestúpidoque iz

nasaladeaulahojeemeencolho.–Vocêchegouaterminarolivro?–Joshperguntaparaela.Elasorri.–Duasvezes.–Uau!Semquererofenderomeupadrasto,masvocêdeviaganharum

prêmioporisso.Caitlinri.–Bem,eutinhamotivosescondidos.Eleestánocomitêdeex-alunosde

Yale–elaexplica.–Comoéoúnicomembrodocomitêcom formaçãoemciências exatas, pedi que fossemeu entrevistador. – Ela sorri. – Imagineique,setudomaisfalhar,voufalarcomoeuachoolivrodelebrilhante.

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–Estratégiasólida.Umagarotabonitacomumaquedaporastro ísica?Elevaiimplorarparaocomitêdeadmissãodeixarvocêentrar.

É uma verdade concreta – Caitlin é, de fato, uma garota bonita comquedaporastro ísica–, entãonãodeveria serumproblemãoumcaradequemeugostofrisarisso.Aindaassim,ficoirritada.

Caitlinrinovamente.–Assimespero.Então,ondeeledeuaulaantesdaqui?Emalgumlugar

emMassachusetts,certo?MasnãoemHarvardounoMIT…Brandeis?–Clark–Joshresponde.–EmWorcester.–Massachusetts?–Tylerpergunta.–Comoélá?–AntesqueJoshpossa

responder, Tyler acrescenta: – É a minha tentativa de botar a conversanumterritóriomenoschato.

Joshri.–Muitobom.Massachusettséótimo.Éoúnicolugarondemorei,então

nãotenhomuitocomocomparar.–Oremofazsucessolá?Abbycomentouquevocêestánotimederemo.– Você estava usando uma camiseta da Brookside Crew ontem – eu

digo, rápido. – Por isso eu sabia. Digo, eu não sabia de verdade, apenasimaginei.Sabe,porcontadacamiseta.

Por favor, faça a garota louca parar de falar. Caitlin e Tyler trocamolharesnoespelhoretrovisor.

–Então…remo–Tylerdiz.–Ébembacana.Nóssomosbons?–Achoquesãobemdecentes– Joshresponde.–Masmeperguntede

novo daqui a um tempo. Nossa primeira regata é no próximo im desemana.

TylereJoshseguemparaogolfeeconversamumpoucosobreosjogosdaPGAatéchegarmosnaIlana.Acasadelaépraticamenteidênticaàcasaaolado, exceto por ter uma batida profunda e ritmada emanando lá dedentro.Hácarrosemtodososlugares.

–Então,essagarota–Joshdiz.–Elaéamigadevocês?Caitlinbufa.–Maisamigadeumamigo–eufalo,ignorandoCaitlin.Entramos. A sala está cheia. Tyler vê o time de golfe na cozinha,

segurando copos de plástico rosa e reunidos em volta do que parece umbarril de cerveja.Tylerdáumolharde “eu tedisse”paraCaitlin e segueparalá.

Nãoéumbarril.Apenaspareceum.Tipo isso.Éumbarrildealumíniocheiocomumlíquidovermelho.

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–SplendaPunch–Joshdiz,lendonorótulocomletrasimitandobolhas.Apalavra“Splenda”estásublinhadacommarcadordetextorosabrilhante.–Pareceletal.

–Eé–Efrain,oparceirodegolfedeTylerdefalamaismansa,temqueaumentaravoz.Eleébonitinho,comseujeitodegarotolatinodeboyband,masémeioapagado.Àsvezes,noalmoço,esqueçoqueeleestánamesa.

–Euavi fazendo isso–dizEfrain.–Álcooldecereais, refrigerantedecereja diet emais oumenos cinquenta pacotes de Splenda. – Ele acenoucomacabeçanadireçãodasala.–Elacomeçouabeberapenasumahoraatrás. – Ilana está com os braços ao redor de uma garota que nãoreconheço, e as duas estão balançando com a batida da música. Outentando.Comaquantidadedeálcool correndono corpodelas,nãoestãoexatamentesincronizadas(comamúsicaouumacomaoutra).Dourisadaquandovejoasduas.

–Nossa.Elanãovaisesentirnadabempelamanhã– Joshdiz.Parecepreocupadodeverdade.Enquantoisso,souavacadandorisada.Sintoumaonda de remorso quando ouço “Ei, Abby, bonito xale”, seguido de umagargalhada aguda. Ilana aponta paramim e sussurra algo para a garotapróxima a ela, e as duas racham de rir. Sim, eu espero que ela se sintadaquelejeitopelamanhã.Eduranteasemanatoda.

– Então, tenho seis cervejas – Tyler anuncia. – Efrain está bebendo oponchedemulherzinha,CaitlinnãovaibeberporqueestádirigindoeAbbynuncaterminamaisdeuma.–Eleabreumagarrafaemeentrega.–Então,restamcincoparavocêeeudividirmos–elecomentacomJosh.

–Ah,nãosepreocupe–Joshdiz.– Relaxe – Tyler fala para ele. – Cervejas servem para ser divididas.

– Antes que Josh possa contestar, Tyler põe a garrafa na mão dele.Desajeitado, Josh segura a cerveja como se não tivesse certeza do quefazercomaquilo.Tylerbotaorestodacervejanageladeira,então,vaiparaapistadedançaimprovisada.

–Háquantotempoelesestãonamorando?–Joshmepergunta.–Quem?–CaitlineTyler–Joshresponde.–Parecemserumcasalbacana.–Ah! Eles não são um casal – eu digo a ele. –Nós três somos amigos

desde sempre. Tyler tem alguma coisa com Ilana. – A palavra“infelizmente”ficapendurada,semserpronunciada,nosmeuslábios.

AlguémaumentaamúsicaeIlanadágritinhosdealegria.Asportasdosarmáriosdecozinhaestremecemnasdobradiças.

–Queméa Ilana?–Elepraticamente temdegritar,amúsicaestáalta

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demais.Tãoaltaetãohorrorosa.Euaponto.–Hum–JoshexaminaIlana,queagoraestádandotapinhasnotraseiro

da amiga no ritmo da música e rindo histericamente. – Eu não teriaimaginado.

Novamente, icotentadaaacrescentaralgoperspicazesarcasticamentemaldoso,masmecontenho.

–Sim,foiumasurpresaparanóstambém.–Étudoqueeudigo.–ECaitlin?–elepergunta,finalmente.–Temnamorado?– Não. – Então, mesmo que não seja verdade, eu complemento. – Ela

nemquerum.Estámuitofocadanaescolaparanamorar.– É, ela parece mesmo inteligente – Josh diz.Por que eu sinto a

necessidade repentina de anunciar as minhas notas na escola? Olho paraCaitlin.Elaestáao ladodobarril,batendopapocomosgarotos,mantendodistância para que Josh e eu possamos icar sozinhos. Ela éminhamaioraliada.Porqueestouagindocomoseelafosseumaameaça?

–Elaéamelhor–eudigo,edeixocomoestá.Ficamos quietos por um minuto enquanto observamos a lata de

sardinha que antes era a sala da casa de Ilana. As pessoas estavamespremidas no espaço grande demais, as vozes reverberavam no tetoabobadado. Tyler está dançando agora, girando nossa an itriã doidona.Olhode relanceparaCaitlin e a vejoobservando-osde cantodeolho.Elanão parece com uma garota que não se importa com quem Tyler sai.Pareceumagarotaqueseimporta,emuito.

Joshtocaomeubraço.Douumpulo,comosetivessesidoeletrocutada.–Querdarumavolta?–elegrita.–Láfora?–Nããão.Penseiqueumavoltinhanasalapoderiaserumbomjeitode

passarospróximostrintaminutos–Joshprovoca,aindagritandoparaserouvido. – Claro, lá fora. Onde eu vou poder te ouvir, em vez de apenasingirqueposso.–Eledeixaacervejanoaparadoreacenacomacabeçaparaaporta.

Meucoraçãoaceleroudenovocomopensamentodeestarsozinhacomele. Ponhominha garrafa pelametade ao lado da dele, que está cheia, esigo-oatéaportadafrente.

Oarláforaesfrioubastante,eocéuestátotalmenteaberto.–Paraquallado?–Joshperguntaquandochegamosàrua.–Esquerda?–eusugiro.–Então,paraaesquerda.

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Caminhamos em silêncio por alguns minutos, mas não é um silênciodesconfortável. Émais como se o silêncio dissesse: estemomento vai sertãobomqueeunãoqueroarruiná-lo falando.Daminhaparte, aomenos.Olhopara Josh.Ele jogouacabeçapara trás,olhandoparaocéunoturno.Seus cabelos estão úmidos, e há um pedacinho de sabonete preso navoltinhadecimadaorelha.Ficosurpresa,poiseledevetertomadobanhohápouco.Estavanuhápouco.Controle-se,Barnes.

–Estamoscercadetrêsdiasadiantadosparaaluaperfeita.–OuçoJoshdizer. Inclinoa cabeçapara trás.Háumrisco inode luzpenduradobembaixonocéu.

–Masemtrêsdiasnãohaveráumalua–euenfatizo.– Exatamente. Sem poluição luminosa. – Ele olha para mim e sorri.

–Provavelmente, não é algoque sedevadizernummomento comoesse,masachoquealuaésuperestimadademais.–Ummomentocomoaquele?Mordominhabochecha,domandoo sorrisoqueameaça tomarmeu rostotodo.

–Easestrelas?–pergunto,assimqueosorrisoficasobcontrole.–Extremamentesubestimadas–eleconcluicomumsorriso.Olhapara

cima de novo. – O céu é um livro de histórias – diz em seguida. – Cadaconstelaçãoé,tipo,seuprópriocontodefadas.

– Você temuma favorita? –Deixo omeu braço pairar longe do corpoatémeucotoveloencostarnoantebraçodele.Édesconfortávelmantermeubraçoassim,maseuodeixodequalquerforma,poisgostodasensaçãodetocá-lo.

–Cygnus–eleresponde,apontando.–OCisne.Apertoosolhos,tentandoidentificá-la.–Olha,pareumsegundinho.–Joshdáavoltaportrásdemimepousa

asmãosnosmeusombros,virando-melevemente.–Tudobem,agoraolheparacima.Estávendoaquelaestrelabembrilhanteali?–Euconcordocomacabeça,tãoperturbadaporestarpertodeledaquelamaneiraquenãomedeixofalar.–Aqueleéorabodocisne–elediz,apontandoobraçoque icaapenas centímetros da minha bochecha. A pele dele cheira a sabonetebarato. Inalo profundamente, deixando minhas pálpebras tremularemfechadas por um segundo enquanto sinto seu cheiro. – Imagine como elemergulhanumângulodequarentaecincograus,comobicoparabaixo,asasasabertas.–OuçoJoshdizer.Seuhálitoémorno.–Láestáopescoço,obico…ealiasduasasas.–Forçomeusolhosaseabrirem,ea iguraqueeleestádescrevendopulanaminhafrente.

–Uau–eusussurro.–Eleégrande.

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– É imenso. Vê aquela estrela lá, na ponta do bico? – Josh aponta.–AquelaéAlbireo.Nãodáparaversemtelescópio,masnaverdadeelaédupla.

–Dupla?–Duasestrelasorbitandonomesmocentrodegravidade–eleexplica.

–Todasasestrelasduplassãomuitolegais,masessaéespecialmentelegalporcausadascores.AlbireoAédouradaebrilhanteeAlbireoB temcordesafira.

– Acho que eu não sabia que as estrelas podiam ter cores diferentes.–Eumeviroparaencará-lo.

–Ésósaircomumcaradasestrelasevocêvaiaprendertodootipodecoisa.–Estamosmuitopróximosagora,apoucoscentímetrosdedistância.Sugoomeuchiclete,tentandoextrairopoucoquerestadogostodementaoriginal. Josh,enquanto isso, temumhálitodeliciosodecanela.Comoumapessoapodeterumcheirotãomasculinoetãodoce?

– Então, qual é a história do cisne? – eu pergunto. – Por que ele estámergulhando?

– Por causa do melhor amigo dele – Josh responde, os olhos aindagrudados no céu. – Faetonte era um mortal, como Cicno, mas seu pai,Apolo,eraodeusdosol.Dealgumjeito,Faetonteconvenceuopaiadeixá-lodirigirabigadosol.Faetonte,umadolescentecomum,dirigiucomoumdoido, quase destruindo a Terra, então Zeus, nervoso do jeito que era,lançouumraiosobreele,eFaetontecaiudocéunorioErídano.Cicno icouarrasado.Por isso,decididoadaraoamigoumenterrodigno,mergulhounaáguapararesgatarocorpodeFaetonte.Masnãoconseguiuencontrá-lo.Então,Cicnocontinuoumergulhando,mergulhando,semdesistir.No im,osdeusesficaramcomdódeCicnoeotransformaramnumcisneimortal.

–Quetriste–eufalo.–Ebonito.Joshbaixaosolhosparaomeurostoe sorri.Nenhumdenósdizmais

nada.Enquantoestamoslá,pertinho,nenhumdenóssemove,epassapelaminha cabeça que aquele seria o momento perfeito para o beijo. Ele sóprecisaseinclinarumpouquinho…

Umcarrobuzina.Olhoparacima,preparadapara icarfuladavidacoma interrupção, mas percebo que estamos no meio da rua. Rapidamenteabrimoscaminhoparaocarropassar.

– Então, como você começou a gostar de astronomia? – perguntoquandocomeçamosaandarnovamente.–Foiporcausadoseupadrasto?

– Nããão, eu já gostava antes do Martin. Acho que começou com umepisódiomuitoruimdeFuturama,quandoeutinhanoveanos.Eumvelho

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livrodecosmologiaquemeupaimedeuquandofizdezanos.–Eleécientistatambém?Joshbalançaacabeça.–Eraprofessordeinglês–elediz.O“era”deixaoarpesado.–Evocê?–pergunto.–Oquevocêquerser?–Nãoseiainda–elefala,pensativo.–Tenhotempoparapensarnisso.–

Masquetalescolherumafaculdade,umaáreadeconcentraçãoeseguiremfrente?Nãopossofazeressasperguntas,claro,entãoapenasconcordocomacabeça.–Evocê?–elepergunta.–Vocêsabeoquequerser?

–Jornalista–digo.–Dejornal.–Parecedecidida–eleobserva.Ergoosombros.–Sou,sim.Éaúnicacoisaquesemprequisser.–Meuirmãomaisvelhoéassim–Joshcomenta.Elevoltaaolharparao

céu.–Nãotenhoessaclarezadevisão.Pelomenos,aindanãotenho.Chegamos ao im da rua de Ilana. Josh aponta para a casa em

construçãonaruasemsaída.– Quem você acha que serão os futuros vizinhos de Ilana? – ele

pergunta, subindono que será, no imdas contas, a entrada da garagemdeles.–Umempresáriovelhoesuamulhertroféu?Duasmédicaslésbicas?Não, espere… um ex-jogador de futebol americano da NFL e seus três pitbulls.

Examino a casa, que no mais é apenas fundação e vigas naquelemomento.Tylereeucostumávamosfazeressabrincadeiraquandoéramoscrianças, tentando adivinhar quem seriam os futuros vizinhos deleenquantoobairroemquemoravacontinuavaaseexpandir.

Olhodenovoacasa.–Fácil – eudigo. –Um rapper e amãedos ilhosdele. Ele comproua

casapara convencê-la a ter o bebê. Infelizmente, não é dele,mas ele nãosabedissoainda.Vaidescobrirnodiaemquesemudarem.

–Coitado–Joshfala,continuandoabrincadeira.–Ah,não iqueassim–eudigoparaele.–Depoisqueelesterminarem,

ele vai escrever umamúsica sobre a experiência. E, daqui a alguns anos,vaiganharumGrammycomamúsica.

Joshdárisada.– Tem certeza de que quer ser jornalista? Talvez devesse escrever

ficção.Damosumpasso para o lado quandouma SUV estaciona na entrada da

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garagemonde estamos. Amotorista, Eleanor, é a editora de fotogra ia doOracle. Ela abaixa a janela e acena. Amúsica “What is andWhat ShouldNever Be”, do Led Zeppelin, está estourando nos alto-falantes dela, umamúsicaquesóconheçoporquemeupaicantanochuveiro.

–Ei!Qualcasaé?–Eleanorpergunta.Euaponto.–Sigaohip-hophorrível–eudigoparaela.Eleanorabaixaamúsicaparaouvir.–Vocênãoestavabrincando–eladizcomumacareta.–Vejovocês lá

dentro?–Claro!–respondo,ansiosaparaelairembora.Eleanordáavoltaeestacionanaruaapoucosmetrosdenós.A ilade

carros estacionados tem quase quatro casas de comprimento agora, emambasasdireções.Ou Ilanaémaispopulardoquepenseiouhojeéumasextaànoiteespecialmentesemnadaoquefazer.

Agora,nossoclimajáestáquebrado.Josheeuapenas icamoslá,empé,observandoEleanorcaminhandonadireçãodafesta,queestácomeçandoavazarparaogramadonafrentedacasadeIlana.

–Então,agentetemquevoltar?–Joshmepergunta.Voltarparaacasaentupida,paraamúsicaaltademaiseparaaquantidadedesproporcionaldepessoaschatas?Porquefaríamosisso?

–Claro–eudigo,esperandoqueelesugerisse icarmos.Elenãosugere.Apenasenfiaasmãosnosbolsoseseviraparavoltaràfesta.

Doudoispassoseparo.Nãoquerovoltar . Anoite estábonita e a festarealmenteumsaco.Nãoqueroirparalá.Queroficaraqui.

–Vamosentrar–digo,derepente.Joshmeolha,confuso.–Nãoéoqueíamosfazer?–Não.Eudigoaqui. –Apontoparaacasaemconstrução.–Vamosver

como que o papai rapper está gastando dinheiro. – Joshme olha de umjeitodesconfiado.–Vamos,vaiserdivertido.

–Vocêestádesalto–elecomenta.– Então, eu tiro – retruco, puxando os sapatos dos pés enquanto

caminho.–Vamos!Jáestounametadedocaminhoatéagaragem. Joshaindaestánarua,

hesitando. Não posso dizer se ele acha que sou bonitinha ou maluca.Continuoandando,determinadaanãoolharparatrásdenovo.

Estouquasenatábuaquelevaatéoqueseráoalpendredafrente. Porfavor, faça ele me seguir, por favor, faça ele me seguir, por favor, faça eleme…

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– Descalça em um canteiro de obras. Não posso acreditar que estoudeixando isso acontecer. – Josh está em pé a apenas uns metros dedistância,meussapatosnamão.Meusorrisoestádevolta,vingativo.Façoomeumelhorparacontrolá-lo.

–Poraqui,senhor–eudigo,pisandonatábua.Elaémaisvacilantedoque parece. Josh põe a mão na minha cintura para me equilibrar. Meucorpointeiroderrete.Eumeforçoacontinuar.

A casa parece ainda maior lá de dentro. Perambulamos juntos,adivinhandoquecômodoseráoquê.

– Nossa casa em Worcester caberia aqui neste quarto – Josh dizenquanto caminhamos no que pensamos ser a sala de estar. – Sembrincadeira.Acasainteira.

– As escadas estão prontas – eu digo, apontando para a grandeescadaria em espiral no centro do cômodo. – Precisamos subir. De foraparecia que tinha uma sacada nos quartos. Aposto que as estrelas icamincríveisládecima.

–Só sevocêmedeixar subirprimeiro– Josh fala. – Sealguémdenóstiverquecairescadaabaixo,queroquesejaeu.

–Tudobem…mascuidado!Eleapontaparaochão.–Olhaquemfala:agarotadospésdescalços.Olhoparaosdedosdomeuspés,queestãocobertosdeserragem.– Claro, os pés descalços pareceram uma ideia melhor lá fora, na

entradadagaragem–euadmito.– Nããão, parecia uma ideia bem ruinzinha lá fora também – Josh diz,

começando a subir as escadas. –Mas você estava bonitinha demais paraparar.

Éinútillutar.Osorrisinhomedomina.Elesobeasescadaslentamente,testandocadadegrauantesdebotaro

pesotodonele.Estou dois degraus atrás dele, mandando mensagem de texto para

Caitlinenquantosubo.C/JOSH.NAOVAEMBORAS/NOS.– Cuidado com os pregos. – Ouço Josh dizer. Deslizando o telefone no

meu bolso, contorno uma tábua que está atravessada na escadaria. Háquatropregosemumdoslados,todoscomaspontasparacima.

–Praticamenteumacidenteprestesaacontecer–euobservo.–Alguémpodepisarnisso.

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– Por isso a placa “Apenas pessoal autorizado” na cerca na frente daentradadagaragem– Josh responde.Ele chegano topodaescadaeolhaaoredor.–Achoqueéofimdalinha,chefe.

Eu subo para icar ao lado dele. Embora não pudéssemos dizer lá debaixo,apenaso térreoestavacomassoalho:o restantedosegundoandaraindaédevigasecaibros.Éo imdonossoencontroromânticonasacada.Olho para ele, querendo icar mais perto, mas ele já está descendo asescadas.

Enquantoeuosigo,meucelularvibracomarespostadeCaitlin.ONDEVCSESTAO?Estou olhando para o celular, respondendo à mensagem, quando os

pregosfuramaminhapele.Asensaçãomepegadesurpresa.Puxooardeuma vez, esperando a dor. Ummomento depois, ela vem. Aguda, rápida,intensa.Gritodeagonia,puxoapernaparacima,masospregos–eatábua– ainda estão grudados nomeu pé esquerdo. Estico o braço procurandoum corrimão para não perder o equilíbrio, então percebo que não existeum.Derepente,estoucaídano imdaescadaria,livredatábuaperfurante,querepicanochãoaomeulado.

–Abby!–Joshpuladomeulado.–Piseinospregos.–Adorestáirradiando,subindopelaminhaperna,e

temserragemnosmeusolhos.–Vouficarbem,eusó…Antesqueeupossaterminarafrase,Joshmepeganocoloemecarrega

nadireçãodaportadafrente.–Sério,estoubem–consigodizer.–Vocêpodemecolocarnochão.–Abby,vocêestásangrandonochãointeiro.Nãovoutebotarnochão.

Voulevarvocêparaohospital.Considerocontrariá-lo,masdecidoquenãotenhoforçaparaisso.Ador

étudoemqueconsigopensaragora.Estácegandotodooresto.Eumeforçoaolharaferidaparaemseguidamearrepender.Ospregos

entraram bem fundo na parte logo abaixo dos dedos, deixando quatrofurosirregularesembaixodadobradodedão.Osanguepingadaplantadopé,deixandoumrastroatrásdenós.Olhandoparaele,ficozonza.

Quando chegamos à casade Ilana, Joshmedeixanomeio- iopertodocarrodeCaitlinecorreparabuscá-la.Fechoosolhosedeitonagrama.Amúsica lá dentro está ainda mais alta, tão alta que o gramado vibraembaixo de mim. Meu pé lateja sincronizado com as batidas. Eu meconcentro nisso para não focar na dor que está irradiando perna acima.Dóitantoqueédifícilrespirar.

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–Nãodeviaterdeixadoqueelatirasseossapatos–ouçoJoshdizer.–Apostoqueelanãopediupermissão–Caitlinresponde.Abroosolhos.JosheCaitlinestãoempéaomeulado.– Você não estava brincando sobre o sangue – Caitlin diz para Josh,

inspecionandoomeupé.–Vouligarparaospaisdela–Joshfala.–Façaissonocarro–Caitlindiz,abrindooporta-malas.–Vamosparao

hospital. Alguém tem que limpar esse buracos e não vai ser eu. – Elacaminhaparaatraseiradocarroedesaparecedevista.

– E o Tyler? – pergunto, enquanto tento me levantar, o que não éimpossível, mesmo que seja muito desconfortável. Com uma das pernasinutilizada, tenho que deslocar todo o meu peso para a frente, entãoempurrar com a minha perna boa para icar em pé. Não tenhocoordenação, tampouco forçanapernapara fazer issode formagraciosa.Felizmente,Joshmeagarraantesqueeutropece.

–Tylerpodesevirar–Caitlin retruca, aindaescondidaatrásdaportado porta-malas.Lávemaqueletomirritadinhodenovo .Segundosdepois,aportabate,eCaitlinsurgecomumapilhadelivros,todaagitada.–Ponhaopéemcimadessesaqui.

–Vocêvaimedeixarsangraremcimadosseuslivros?–eubrincoparaemseguidafazerumacaretapeloesforçodesorrir.

– Não vamos enlouquecer agora – Caitlin diz, tirando o suéter. Elaenvolve omeu pé bem forte e usa as mangas para amarrá-lo. Só CaitlinparaarruinarumsuétercomcapuzdaHelmutLangparasalvarumapilhade livros. – Me dá aquilo ali – ela instrui, apontando para o monte desacolas plásticas de mercado en iadas no bolsão atrás do banco domotorista. Ela envolve amaior sobre omeupé, amarrandomeio solta nocalcanhar.–Pronto–eladiz.–Agora,levante.

Eu obedeço, apoiando meu pé em cima de um volume gasto deMecânicaquânticaavançada.

–Me dá seu celular – Josh pede enquanto nos afastamos domeio- io.– Vou ligar para os seus pais. Vamos precisar das suas informações doplanodesaúdequandochegarmosaohospital.

–Euligoparaeles–digo,sabendoqueJoshvaifalaraverdadesobreoqueaconteceue,emvezdisso,querodarumaversãomaisadequadaparaos meus pais. Disco o número da minha casa quando passamos por umcarro de polícia com as luzes ligadas, seguindo para a casa da Ilana.Seguidos por mais três. Josh e eu nos viramos em nossos assentos,observandooprimeiroencostarnafrentedagaragemdeIlanaeparar.O

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terceiroviranafrentedagaragemdacasaemconstruçãoeligaore letor.Josheeuolhamosumparaooutro.

–Parecequeagentesaiubemnahora–elediz.A menos que a de inição de uma candidata equilibrada da

NorthwesternUniversityincluaumafichanapolíciaporinvasão,entãosim.Com certeza, saímos. Sinto uma onda momentânea de gratidão pelosquatroburacosnomeupé,masasensaçãorapidamenteésubstituídaporumlatejarentorpecentequehaviatomadomeucorpotodo.

–Então, tinhaumatábuanomeiodarua?–meupaiperguntaquandoeu conto para ele a versão censurada do que aconteceu. – Simplesmentecaídalá?Compregosnela?

–Sim,muitomaluco–digo,mantendoavozcasual.– Tem uma casa em construção ao lado, talvez tenha caído de um

caminhão,sei lá.–Joshmeobservaenquantoeuretransmitoessahistóriainventada, então desvio o olhar.Ele vai pensar mal de mim por conta damentira?Nãoseidizer.

É compreensível quemeus pais estejam preocupados, principalmenteporque nenhum de nós consegue se lembrar de quando tomei minhaúltimavacinaantitetânica.Elesconcordamqueprecisoirparaohospitaledizemquenosencontramlá.

– Deixe Josh em casa – eu digo para Caitlin. – É caminho. – Esseencontrojáhavia icadoesquisitodemais.Nãoprecisavaterminarconoscopassando horas na sala de espera de um pronto-socorro. Além do mais,icarealmentenocaminho; literalmentevamospassarnacasadele.Aindaassim,esperoqueJoshproteste,insistaemircomigo,maselenãofazisso.

–Então,devemosassumirqueTylervaidormirnaIlanahojeànoite?–

pergunto, mastigando um pretzel. Na verdade, quero dizer “com” e não“na”,masporalgummotivooeufemismoparecenecessário.

Caitlin e eu estamos sentadas em uma cama no Emory UniversityHospital, esperando o médico voltar com os papéis da minha alta. Aenfermeiramedeuumainjeçãoda“coisaboa”(palavrasdela,nãominhas)antes de limpar a ferida – graças a Deus, porque eu juro que estavamusando uma esponja de aço –, então a dor havia diminuído para umaisgada sutil, e meu humor tinha melhorado radicalmente. Meus paissaíramparabuscaromédico,que tinhaditoquevoltariaemdezminutosumahora atrás. Caitlin e eu estamosdividindoumpacotede salgadinhosda máquina de petiscos, enquanto ela pinta minhas unhas de vermelho-

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bombeiro(outropresentedaenfermeiraNina).–Quem sabe... – Caitlin diz num tom indiferente. Ela está concentrada

nomeudedão.–Vocêsentealgumacoisaporele?–Aperguntasimplesmentesurgee

pega inclusive a mim de surpresa. Aparentemente, meu iltro depensamentosfoidesligadoquandoosanalgésicosfizeramefeito.

– O quê? Não. Por que você achou isso? – Ela é irme, a ponto de seacreditar no que diz,mas a voz soa irritada. Ela icou nervosa. Seu rostoestá abaixado, os cabelos cobrindo os olhos, então, não consigo dizer seestápiscandorapidamente,dojeitoquefazquandoestámentindo.

–Sósentiquepoderia–eudigo.–Sedizquenão,nãosente.–Nãosinto–elafala.–Massevocêsentisse…Elaergueoolharparamim.–Nãosinto.–Oolhardelamedizqueéaquilomesmo.–Tudobem,claroquenão–digodeformaconvincente,masnãoestou

convencida. Minha sensação é poderosa demais, forte demais. Tem algoentreeles,mesmoquenenhumdosdoisqueiraadmitir.–Maspossodizerapenasqueeuachoquevocêsdariamdeverdadeumcasallindo?

–Abby.Esqueceisso.Nessemomento, a porta abre emeus pais reaparecem comomédico,

umargentinopequenoeatrevidocommãosgigantes.– Acho que já vou – Caitlin diz, rosqueando a tampa do frasco de

esmalte.–Obrigadapor icar aqui. –Aperto amãodela.A calmadeCaitlinme

mantevecalma.Sempremantém.Assim que ela vai embora, o médico começa o longo discurso. Estou

ouvindo apenas de longe. Minhas pálpebras começam a cair. Eu seriacapaz de adormecer bem aqui enquanto ele fala. Quero que ele acabe afalação.

–… imobilizadopelomenos por quatro semanas. Sem correr ou fazernenhumaatividadeextenuantepelomenosporoito…

– Oito semanas? – eu interrompo o homem no meio da frase. – Nãoposso correr por oito semanas?Mas eu estou com oito pontos apenas. Enemestádoendomais.

Omédicodáumarisadinha,comoseeutivesseacabadodecontarumapiada.Fuziloodoutorcomoolhar.Assobrancelhasdeleseretorcem.

– Querida, não dói porque eles te deram uma injeção de mor ina– minha mãe diz, suave. Credo. Às vezes, eu odeio aquela voz

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tranquilizadora.Meusolhosdeadagafechamsuaboca.–Quatropregosentraramnoseupé–omédicodiz,suavozquasetão

paternalistaquantooolharqueeleme lança.Claro, obrigado, zé-mané, eujá sei disso. – Você lascou dois ossos. Teve sorte de eles não teremquebrado.

–Eocross-country?– lançoaquestãoparaomeupai, aúnicapessoana sala que não está irritada comigo nomomento. – Oito semanas são atemporadainteira.–Minhavozsoatensa.Empânico.

–Ab…–elecomeça.Eunãodeixoquetermine.– Sou a capitã da equipe. Sem chance de a treinadora P. me deixar

manterotítulosenãoestivercompetindo.– Que droga – meu pai diz, simplesmente. – Eu entendo. Todos nós

entendemos.Masnãotemjeito.–E,comaquelaamostradebanalidade,eleesvaziatodoomeubalãodefúria.

–Então–omédicodiz,sorrindocomoseestivéssemosnocirco.–Gazerosaoubranca?

Fico quieta no caminho para casa. Chateada comigomesma, chateada

comJoshpornãome fazercalçarossapatos,chateadacomooperáriodaconstruçãoquedeixoupregosnaqueledegrau.Maischateadaaindacomouniversoporpermitirqueumlapsomomentâneodejuízotivesseumefeitotão gigantesco. Sem correr com a equipe nessa temporada signi ica queagora tenho apenas uma matéria extracurricular para minhascandidaturas para faculdade: os créditos do Oracle. Sem o cross-countrycomo contrapeso, vou parecer limitada e unidimensional, o que não sãoexatamentequalidadesqueosresponsáveispelaadmissãobuscam.ApiorparteéquenãotenhoumplanoB.Vou icardemuletasportrêssemanas,então qualquer outro esporte está descartado, e não posso entrar emalgumclubealeatórioapóstrêssemanasnosemestre.Digo, tenhocertezaq u eposso, mas vai parecer que estou fazendo isso apenas para ascandidaturasdefaculdade.Oqueéverdade,masnãodeveparecerqueascoisassãoassim.

Meupaitinharazão.Éumadroga.Ponto para osmeus pais, queme deixam sozinha. Elesme conhecem

bemosu icienteparasaberquenãoestoucompaciênciaparaouvircomopoderiatersidopiorouporqueterquatroburacosdepregonopénãoéoimdomundo.Semdúvida,vãoatacarcomtudoamanhã,mashojeànoiteforam legais o bastante para se conter. Passo o tempo da viagem até em

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casa olhando com raiva o casulo de gazes rosas nomeu pé e desejandopodervoltaràminhavida.

Quandoencostamoso carrona entradada garagem,meu celular toca.JOSH–CELULAR.

–Vocêatendeu–eledizquandoatendo.–Imagineiqueiriafalarcomasecretáriaeletrônica.Aindaestánohospital?

–Não.Acabeidechegarnaminhagaragem.–Quaisforamosdanos?– Oito pontos. Muletas por três semanas. Nada de cross-country pelo

resto da temporada – digo mecanicamente, como se o diagnósticopertencesseàoutrapessoa.

–Ai,não.Sério?Estáforaatemporadainteira?Acompaixãonavozdelemefazperderorumo.Piscando para impedir as lágrimas, tudo que consigo fazer é assentir

comacabeça.–Abby?Tusso. Li em algum lugar que tossir impede isicamente o choro.Uma

vez é o bastante, ou você vai continuar fazendo isso? Não quero arriscar,entãodoumaisalgumastossidasparagarantir.Minhamãeolhaparatrás,sobrancelhaserguidas.Euacenoparaelavirarparafrente.

–Tudobem?–Joshpergunta.–Tudo–digo,aliviadaqueatossetenhafuncionado.–Deprimida.Mas

bem.Euvousuperar.–Pormaisfalsoquepossaser,soabem.–Bom,achoqueeu tenhoque ir– faloparaele. –Meuspaisestão sentadosnocarro,esperando para me ajudar a entrar em casa. Não estou com as muletasainda.

– Tá. Bem… sinto muito mesmo por hoje à noite. Parece que, tipo, éminha culpa. Nunca devia ter deixado… eu já devia saber. – Ele parecechateado.Nãoconsigodizersecomigooucomelemesmo.

–Dapróximavez,agenteficadentrodecasa–eudigo.Josh icaquietonaoutrapontadalinha.Nenhumasugestãodequando

a “próxima vez” poderia ser. Nenhuma oferta de passar aqui em casaamanhã para me ver. Apenas dois segundos desagradáveis enquantoabsorvoofatodequequalquerinteressequeoGarotoAstronomiativessepormimseevaporoujuntocomaminhacarreiranocross-country.

–Tenhodeir.–Minhavozsoadesanimada.Meuspaisolhamumparaooutro,percebemminhamudançabruscadetom.

–Tevejonasegunda?–elediz.

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–Sim–respondo,entediada,edesligootelefone.–Tudobem?–minhamãepergunta.–Sevocêestásereferindoaofatodeeutergastadomeusúltimostrês

anos ralando igual umadoidapara ser capitã apenaspara termeu títuloarrancadoporumpregoidiota...

–Tecnicamente,foramquatropregos–meupaifrisa.Euofuzilocomoolhar.–Obrigada.Podemosentraragora?Meupaisuspira.–Claro.Elesaidocarroeabreaportatraseira.–Seiquevocêestátriste–minhamãediz,compassiva.–Masascoisas

vãoparecermelhorespelamanhã.Ésempreassim.Sim.Sóquenão.

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5(Aqui)domingo,27desetembrode2009(duassemanasequatrodiasdepois)

Aluzdodiabateemminhaspálpebras,maseuresistoàvontadedeabri-las.Aindanão.Sóquando...

BIP.BIP.BIP.BIIIIP.Como um relógio: o caminhão do lixo do campus se afastando até as

latas do outro lado do muro do pátio. O som pelo qual espero todas asmanhãs.Nãoabroosolhossenãooouço.

É um ritual que não tempropósito. Sóminhamaneira de preservar ailusãodequeestouexatamenteondeestavaontemànoite.Enquantomeusolhos estiverem fechados, posso pensar que a realidade não mudou denovo. Equandoouçoobip familiar do caminhãode lixo, sei, com certeza,quenãomudou.Nãopenseidireitonoqueaconteceriaseeuacordasseemalgum lugarquenão fosseestequarto.Porquanto tempomanteriameusolhosfechados,esperandoporaquelesom?

Vamostorcerparaqueeununcaprecisedescobrir.Abroosolhosedouumaespiadaaoredor.Afotogra iaqueMarissame

deunomeuaniversárioestánaparede.Ajaquetaquevestiontemànoiteestá no encosto da cadeira. Há um montinho de migalhas no chão. Emoutraspalavras,meuquartoestáexatamentecomoestavahácincohoras,quando entrei em coma alimentar depois de inalar três fatias grossas depepperoni quando voltava do Toad, o lugar mais popular para dançar,beber e tomar decisões ruins. (Nenhuma decisão ruim para mim porenquanto – eu me forcei a escrever NÃO POSSO HOJE À NOITE! em resposta àmensagemdetextodeMichael,quechegouàs23h57minpedindoqueeu“passasse”nacasadelequandoestivesseindoparaaminhacasa.QuandoJÁ VOU se torna uma resposta aceitável para um convite de quem só quersexo,deumcaracomquemvocêaindanãocomeçourealmentea sair?Ofato de que esse cara poderia acordar no dia seguinte sem saber quemvocêénãogaranteumasmudançasnasregrasdosencontrosamorosos?)

Seguindo com o meu ritual matutino, pego o telefone que deixeiembaixo do travesseiro e começo a ver minhas fotos recentes. Tirei

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dezenasdesdequechegueiaqui,registrandotodaexperiênciaquepoderiase apagar. Essas fotos sãominha rede de proteção. Se elas continuaremcomome lembrodelas, sei que as coisasnãomudaramdrasticamentedodiaparaanoite.Passoporelasrapidamentehoje,pulandoumadosgruposde meninas de blusa azul que Caitlin deve ter tirado, ansiosa para veraqueladequemaisgosto:a fotoque tireideMichaelnomeuaniversário.Quandoeuavejo,relaxo,felizporperceberquetudoestácomoestevenasúltimasduassemanasemeia.Aprincípio,pareceumeiotoloesperarquearealidade nãomudasse de novo,mas a cada dia a possibilidade se tornamaissimplesdeimaginar,eminhavidaemLosAngelessetornaumpoucomaisdistante,comoalgoqueaconteceuhámuitotempo,ouemumsonho.

Naquelamanhã, tenhodezenovediasde lembrançasalternadas.ComoCaitlin previu, parece que estou obtendo minhas lembranças do meumundoparalelo conformeelaasvive,oquequerdizerque,nomomento,tenho tudo até 26 de setembro de 2008. Estou tentando anotar minhasnovas lembranças conforme elas ocorrem, mas a tarefa é mais di ícil doque pode parecer. As coisas novas não estão frescas na minha mentequando acordo, por isso, preciso fazermuito esforçoparame lembrar. E,mesmoassim,nemsempreseioqueveiodomundoparalelo.Àsvezes,umdetalhe se destaca, mas, na maior parte do tempo, as lembranças daparalela simplesmente se unem às minhas, di icultando a separação quetenhode fazerdelas. Cozinhei naquelaquarta-feira ou almocei fora?Useibotas naquela sexta ou minhas sapatilhas vermelhas? Isso importa? Aúnicadiferençanotávelentreminhas lembrançasreaiseasnovasécomoasnovassãoestéreis.Eumelembrodecoisasqueminhaparalelafezcomoseeuastivessefeito,masnãoseicomoelasesentiunomomento.Éassimque posso dizer quais lembranças não me pertencem – não sinto nadaquandoasrepassoemminhamente.

A jornalista que existe dentro de mim ainda duvida de que oentrelaçamento seja a explicação para tudo isso, mas Caitlin passou decertezaparacertezaabsoluta.Elajáleutodososlivros,matériasderevistaetrabalhosacadêmicosarespeitodoassuntoediznãotermaisnenhumadúvida. É di ícil discutir com ela, e nem sei se quero. É di ícil entender oque ela está propondo,mas faz com queminha vida tenha sentido e, nomomento,issoémotivosuficienteparaaceitaressaideia.

Senossomundoestáentrelaçado,parecequesouaúnicapessoaqueselembradecomoascoisaseramantes.Todososdias,vasculhoainternetàprocuradeprovasdequeexistemoutraspessoascomoeu,masaindanãoencontrei nenhuma. Muitas pessoas já escreveram sobre a colisão – “o

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terremotoquenão foi terremoto”–e teoriasarespeitodeseusigni icadoexistemaosmontes,maspoucasparecemdispostasaaceitaraexplicaçãododoutorMann,eninguémestabeleceuligaçãoentreotremordodia8desetembrode2008eadordecabeçaglobalnodia9desetembrode2009(apesar de as pessoas terem muito o que dizer sobre cada um).Aparentemente,milhõesdepessoasacordaramnodiadomeuaniversáriosentindodornabasedocrânio.Atémesmoosteoristasdeconspiraçãotêmdito que suas lembranças foram retiradas e substituídas por lembrançasdeseueuparalelo.OdoutorManntemasteoriasdele–edepoisdenossavisita, certamenteele temsuassuspeitas–,masnãoháprovasreais.Pelomenos,nãoporenquanto.

Caitlin quer contar a ele sobremim, mas ainda não tenho certeza deque podemos con iar nele. Qual é a melhor maneira de reparar areputaçãoprejudicadadeledoqueirapúblicocomminhahistória?Souafavor do avanço cientí ico, mas não vou me tornar um espécime delaboratório. Nem vou acabar em uma sala com colchões nas paredes emalgumlugar.

Aluzestáentrandopelafrestadasminhascortinas,oquesurpreende,porque deveria estar chovendo hoje. Puxo a partemais próxima demimpara o lado. O céu está muito azul, pontuado por nuvens gordinhas ebrancas como bolinhas de algodão.Acho que o meteorologista estavaenganado.

Fecho as cortinas e me encolho embaixo dos lençóis. Devo encontrarCaitlineTylerparaobrunchantesdeelevoardevoltaaMichigan(aquelaconversa a respeito de realidades não permanentes convenceu Caitlin apermitir que ele viesse visitar),mas sódepoisdasdez, oquemedápelomenos mais uma hora de sono. O tipo de sono da terra das fantasias,delicioso e semiconsciente, no qual estou desperta o su iciente paracontrolarossonhos,masadormecidaobastanteparameesquecerdequeestoufazendoisso.

–Abby?–Espioporbaixodemeus cobertores.Marissa estánaporta,vestida com roupas de ioga e segurando um tapete. – Faltam quinzeminutos.Nãovaiseatrasar?

Atrasar?Atrasarpraquê?Énessemomentoqueperceboafalhanãopercebidaanteriormenteem

meu ritual matutino. Só porque os acontecimentos que fotografei nãoforam sobrescritos, não quer dizer que minha realidade não mudou deoutrosmodosnãoregistrados.Finjoestarconfusaeaindasonada.

– Espere, que dia é hoje? – Cruzo os dedos para que o compromisso

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paraoqualestouatrasadanãosejaumacoisacorriqueira.Marissaolhaparamimcomoseeufossemaluca.–Édomingo.Vocênãotemqueestarnosbarcosàsoito?Barcos?–Ah,sim...Obrigadapormelembrar!Émelhoreumelevantar.–Abro

umsorrisoeafastooscobertores.–Certo,bem,achoquenosvemosdepois,então–eladiz,aindaolhando

para mim. – Tenho Bikram às oito, e então, provavelmente, vou para abiblioteca durante umas horinhas – ela faz uma careta. – Tenho determinardoiscapítulosdeUlissesatéamanhã.

Concordodemododistraído.–Boasorte.–Estouansiosaparaqueelasaiaeeupossatelefonarpara

Caitlin.Assimqueaportasefecha,eupartonadireçãodotelefone.Minhaligaçãocaidiretonacaixapostal.Começoafalarantesdobipe.–Porqueseu telefoneestádesligado? Justamentequandosuamelhor

amigaestásofrendocomumfenômenoastro ísicoesquisito–astro ísicoéumapalavraqueexiste?–, você temdedeixaro telefone ligado.O tempotodo.Quemmaispodemedizerporqueeutenhode iraosbarcosàsoitonumamanhã de domingo? Eu nem sabia que Yale tinha um espaço parabarcos.Ligueparamimassimquepegaressamensagem.

Jogo o telefone na cama eme sento à frente domeu computador. DeacordocomositedaYale,agaragemdebarcosGilderBoathouse icaemDerby,aquasedezoitoquilômetrosdocampus.

Pensoemcancelartudo,masseiquenãoposso.Nãosequisermanterafachadadenormalidade.Eseforalgoimportante?Esetiveravercomasaulas? E se eu estiver escrevendo uma história a respeito da equipe develaparaoYaleDailyNewsetiverdeentrevistaralguém?Normalmente,osalunos do primeiro ano passam um semestre “entendendo” o processoantes de se tornarem jornalistas capacitados para oYaleDailyNews ,mascomo eu – certo, minha paralela – escrevi mais de metade das matériaspublicadas noOracle ano passado, posso pular essa parte e semanapassadametorneiamaisnovajornalistadoYDN,umaoportunidadequenãovouestragar.

Oh! Será queminha paralela fez alguma coisa parame conseguir umespaçonogrupodeesportes?Issoseriaincrível.Precisoaprenderacobrira área de esportes. Além disso, teria uma desculpa para ir aos jogos delacrossedoMichaelsemmesentirumamalucaperseguidora.

Motivadadenovo,saiodacadeiraecomeçoamevestir.Comovouaos

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barcos, opto por roupas esportivas, e penso que se estiver mal vestidaposso ingirqueestouindoparaaacademia.Enquantoamarroostênisdecorrida, percebo, assustada, que aqueles não são meus tênis de corrida.Sim, são tênis de corrida, e sim, estavam emmeu armário, mas não sãomeus.Osmeus são velhos e gastos, praticamente estão se desfazendodetanto serem usados. Estes tênis servem, mas são de outra marca, eparecem que não foram muito usados. Onde está meu par antigo? Olhopara o relógio na tela de meu computador: 7h51min. Barcos agora,mistériodostênisdepois.

Láfora,osolestámuitoclaroefazcomqueeumearrependapornãoter trazidoóculosde sol. Semicerroosolhosparaveromapadocampus,tentandolocalizaropontodeônibusmaispróximo.HáumpequenoSazulnaesquinadaCollegeeElm,adoisquarteirõesdeondeestou.

Correndo pela calçada, procuro buscar minhas lembranças maisrecentes. Se algo mudou hoje em nosso mundo, então quer dizer que aAbby do mundo paralelo deve ter feito algo em seu mundo ontem paracausar isso.Comooontemdelaéumanoantesdomeunotempo,precisomelembrardoqueaconteceunodia26desetembrode2008.

UmônibusescolarazulebrancodobraaHighStreetnaElm.Apressoopasso para pegá-lo e ico surpresa ao ver comome canso rápido com oesforço.Háalgumaspessoasnoônibus,espalhadasnasprimeiras ileiras.Vouatéapartede trásemeafundonobancoatéqueapenasmeu torsoestejareto,ergoaspernasepressionoosjoelhoscontraoassentodecouromarrom à minha frente, como costumava fazer no ensino fundamental.Com o celular em cima da barriga para o caso de Caitlin ligar, fecho osolhos com força, tentando reunir as lembranças de que preciso. Aslembrançaquefarãotudoissotersentido.

Pense,Abby.26desetembrode2008.Teriasidoumasexta-feira.Assimica mais fácil. Só tenho três lembranças de sexta-feira até agora, então,estateriadeser...

Meutelefonetoca.GraçasaDeus.Eumesentomaisparaafrente,longedavistadetodos.

– Por favor, não me diga que entrei para a equipe de vela – digo,atendendo.

–Vocênãoentrouparaaequipedevela–ouçoCaitlindizersorrindo.– Então, por que devo estar nos barcos às oito da manhã de um

domingo?–Vocêrealmentenãofazideia?–elapergunta.–Nãofaçoideia.

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–Nossa!Então,arealidademudoudenovo!–elaexclama.–É...–OndeestáTyler?–pergunto,irritadaporelanãoestarsussurrando.–

EMuriel?–Muriel, a companheiradequartodeCaitlin, raramente saidoquarto.

– Tyler está dormindo em nosso futon, e Muriel está na Pensilvâniapassando o im de semana – ela responde. – Então, o que mais estádiferente?Ecomovocêpercebeuquedeveriaestarnosbarcos?

–AMarissame contou. Ela icou com receio de eume atrasar. –Olhopela janela e vejo umaplaca para a GilderBoathouse, a três quilômetrosdali. – Estamos quase chegando aos barcos – digo a ela. – Por favor,medigaoquetemlá.

– Deveríamos tentar descobrir – Caitlin diz. – Qual é a sua maiormemóriaalternativa?Issodeverialhedizer...

–Caitlin!Nãotenhotempopara isso!–Nãoéummalditoexperimentocientífico,Caitlin.Éaminhavida.

–Certo.Vocêétimoneiranaequipe.Meupébatenochãoefazbarulho.–Umaoquê?–Timoneira–elarepete.–Apessoaquesesentanafrentedobarcoeo

direciona.Pressiono a testa contra o encosto do banco da frente, tentando

entenderaquilo.–Desdequando?–Desdequando aYale recrutou você. – Caitlindiz demodonormal. –

Bem,você já tinha sidoaceita, então, talvez, “recrutar”não seja apalavracerta. Mas é isso. Um olheiro viu você em uma regata na primaverapassada.

–Naprimaverapassada?EueratimoneiranaBrookside?–Sim.Quandovocênãopôdemaiscorrer,entrouempânicopornãoter

nadarelacionadoaesportesnassuasopçõesdeuniversidade–eladiz.–Aequipeprecisavadeumatimoneira.

Quandonãopudecorrer.Nãoconsigorespirar.–Ospregos. –Respiroquandoas lembrançasvoltamcom tudo.Então,

minhaparalelaéespertaosu icienteparamecolocarnaYale,masburrapara me ajudar a caminhar em uma construção descalça. Ótimo. – Bem,achoque issoexplicaos tênis–murmuro.Compreimeus tênisdecorridadepois de nosso primeiro encontro ano passado, quando decidi que osmeus eram muito pesados. Os que estou usando, de repente, parecemchumbo.

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–Éissooquetemdediferente?–Caitlinpergunta.–Seupé?– Sim – digo distraída, repassando uma série de lembranças

relacionadas à corrida em minha mente. Fiz uma em 18min36s, meumelhor tempo, no encontro estadual da primavera passada. E, agora,parece que nunca aconteceu. Parece muito injusto que ela pudesse terapagado uma conquista tão suada. Será que outra pessoa de Brooksidetomouomeulugar?

– Ei, Abby! – alguémme chama. Uma garota que nunca vi antes estáacenando paramim a alguns assentos de distância. Está usando calça demoletom e uma blusa, com os cachos ruivos presos dentro de um boné.Umacolegadeequipe.Douumsorrisoeaceno,felizporestaraotelefone.

–Então,vocêvaitreinar?–EscutoCaitlinperguntar.Voltoparameuassento,longedavistadosoutros.–Sim,ótima ideia–digodemodosarcástico.–Quemse importaseeu

nãofaçoamenorideiaarespeitodoqueumatimoneirafaz.Voumeterascaras.

–Mastalvezvocêsaiba.–Saibaoquê?–Comosertimoneira.– Não sei – respondo, confusa. – Não sabia nem o que era uma

timoneiraantesdevocêmecontar.– Vá treinar – ela diz. – Aja como se soubesse o que está fazendo e

entrenobarco.–Porqueeufariaisso?– Porque acho que existe uma boa possibilidade de que, assim que

entrar, você perceba que sabe o que tem de fazer. Mas como não selembra de ter aprendido, a única maneira de saber com certeza é secolocar em uma circunstância na qual sua memória procedural sejaforçadaaagir.

–Minhaoquê?– Memória procedural. O tipo de memória que deixa você fazer algo

sempensarconscientementenoato,comonadaroudirigirumcarro–elaexplica. – É diferente da memória declarativa, que permite que você selembre conscientemente de fatos e acontecimentos. Não se lembra dasaulasdepsicologia?

–Estámesmomeperguntandoissoagora?–Aquestãoéquequandosuaparalela chegaraondevocêestáagora,

ela terá umamemória inconsciente e procedural de como direcionar umbarcoboaosu icienteparaestaremumaequipedaprimeiradivisãoeum

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conjunto de memórias conscientes e declarativas associadas com fazeressaação.Sabemosquevocênãotemasmemóriasconscientesainda,masissonãoquerdizerquenãotenhaasinconscientes.

– Você vai descer ou não? – uma voz rouca pergunta. Eu mesobressalto. O motorista do ônibus está virado, olhando para mim comexpectativa.Souaúnicaaindanoônibus,queagoraestáparadonafrentedeum complexo amplodemadeira. Eu con irmodemododistraído emelevanto.

–Estáouvindooqueestoudizendo?–Caitlinpergunta.–Sim.Lembrançasproceduraisedeclarativas.Entendi.–Passoabolsa

pelo ombro e corro em direção ao motorista do ônibus, que estáimpaciente.–Desculpe–murmuroquandopassoporele.

Hácriançasusandoblusasdemoletome jaquetasreunidasnacasadebarcos, interessadas e ocupadas. Um grupo de rapazes com roupas deelastano carrega um barco pintado com o azul da Yale acima da cabeça,enquanto dois homens de meia-idade usando viseiras brancas – seriamtécnicos? – consultam pranchetas. As ondas batem na plataforma numritmo constante enquanto as pessoas realizamdiversas tarefas. As coisasestão em ordem aqui. Organizadas. Respiro e sinto a calma. Minha vidapodeestarcaótica,masestetreinoestálongedisso.

–Abby! –Ameninadoônibus estádepénaportada casadebarcos,quetem,decadalado,uma ileiraderemosde ibradevidro.Aentradadoprédio dá para uma estrutura ampla, cuja vista é para as águas azuis-prateadasdorioHousatonic.

–Querqueeuespereporvocê?–elapergunta.– Não, tudo bem! – respondo. – Entro em um minuto. – A menina

assenteeentra.–Então,oquedevofazer?–perguntoaCaitlin.–Entrarnobarcoeesperarquetudovolteàminhamente?

–Isso.–Esenãovoltar?Eseeufizerumpapelão?–Finjaestarsofrendodeamnésia.–Engraçadinha.–Oespaçoestácomeçandoaficarvazio.–Certo,sevou

paraotreino,precisoiragora.–Vá–Caitlindiz.–Pensenissocomoumapesquisa.Apesardoriscorealde fazerpapelde idiotana frentedaequipetoda,

tenhodeadmitirqueestoucuriosa.–Tudobem.Euvou.–Oba!–Deseje-mesorte–digo,semesperarquetereisorte.

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–Quemprecisa de sorte? – Caitlin responde. –Você é uma aberraçãodanatureza.Vocêéadefiniçãodesorte!

Desligootelefoneeentronacasadebarcos.O que acontece na água é mais do que surreal. Num minuto, estou

sentadanapopadeumbarcodemadeira,de frenteparaoito remadorasbem altas (sério, uma delas mede 1,85metro e a mais baixamede 1,73metro), esperando que nosso técnico sério apite, torcendo para que euconsigafingirquandochegaromomento.

Meiosegundodepois,opilotoautomáticoentraemaçãoeestouvirandoo barco e usando o equipamento de cabeça como uma pro issional. Nosprimeirosminutos,me esforço para agir depressa.Mas quando entro noritmo na água, meus movimentos se tornam instintivos, e deixa de serdi ícil. Chega a ser irritante de tão natural. Irritante, mas ridiculamentebom.Otimoneiroé,literalmente,ochefedobarco–émeutrabalhodecidirparaonde vamos e a rapidez comque chegaremos lá.Uma tarefapara aqualaplanejadoraqueexistedentrodemimfoifeita.

Enquantonosaquecemospela segundavez,minhamentevoltaparaanoite que me trouxe aqui. A festa de Ilana. A música péssima, a sala deestar lotada, o barril pequeno de suco arti icialmente adoçado. De pé naruanafrentedacasaemconstrução,querendoqueocaradaminhaauladeastronomiamebeije.Correndoparadentrodescalçaparadaraeleumaoutrachance.Comoseumcaracomoaquelefossecapazdedaroprimeiropasso. Como minha paralela pode não ter visto isso? Até mesmoeu vi,emboraagorasótenhaalgumaslembrançasdele.

– Nossa. Você está fedendo – uma menina enorme sentada perto demim resmunga entre as remadas. – Da próxima vez que decidir treinarembriagada,pelomenostomeumbanhoantes.

Olhoparaela.–Comoé?Elame ignora. Irritada,puxoapequenaalavancaeobarcovaiparaa

direita.Puxoacordanaoutradireção,tentandocorrigiroerro.Obarcosemovimenta com violência, e amenina que parece um talo de salsão (nãotem quadril, tem a pelemeio esverdeada, e uma cabeleira despenteada)soltaalgunspalavrões.Aferanafrentedelamelançaumolhardemorte.

–Barnes! –O técnico gritapelomegafonedopíer. –Temalgum lugarondevocêprefeririaestarquenãoaqui?Aprume-seousaiadaágua!–elegrita.

Elávamosnós.Anovidadedessanovaaventuraoficialmenteacabou.Está frio. Está molhado. Minhas pernas e costas parecem ter sido

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en iadasnocompartimentodemalasdeumavião,eeuestouolhandoparaapatadecamelodeumagarotahámaisdeumahora.

Instantaneamente,meuhumorpiora.Tudobemseminhaparalelaquerpassaropouco tempoque temagachadanesseespaçopequeno,gritandoordensparamulheresirritantementealtas.Eu,noentanto,consigopensarem muitas maneiras em que preferia passar as minhas manhãs dedomingo, e de nenhuma delas faz parte estar rouca e com os dedoscongelados.

Seelaeeusomostãoparecidas,entãocomoelafoiparaumcaminhoqueeununcateriatomado? Seeu estivessea imdocarinhanovo,nãoo teriaconvidado para ir a uma festa que não queria ir apenas para passar umtempo com ele. E se tivesse feito isso, certamente não teria sugerido quepasseássemos pela construção descalços. Se ela tem de ser meuequivalentegenético,nãodeveriater,pelomenos,umpoucodomeubom-senso?

Certo, houve aquele incidente há alguns anos. Caitlin e eu fomos deférias para a Flórida com os pais dela, que icaram no hotel enquantofomosnossentarnafrentedeumafogueiranapraia.UmgarotochamadoRoy,comdentesgrandeseumbigodecheio,estavaentregandocachorro-quente. O “passeio noturno” foi ideia dele, mas andar descalça foi ideiaminha. Não vi a garrafa quebrada na areia. O corte não foimuito fundo,masRoyCaipiradesapareceuquandoospaisdeCaitlinapareceram,emedeixoucomumdedãosangrentoeumasensaçãoenormedealívio.

Certo. Posso ter me enganado na hora de avaliar rapazes e andardescalço. Então, talvez sejapossível que eu tenha sido tão descuidadaquanto minha paralela naquela noite. Mas se tivesse pisado naquelespregos, oito pontos e uma injeção antitetânica não teriam mudado nadapara mim. Eu me esforcei durante três anos, permaneci até mais tardedepois do treino todos os dias, fazendo tudo o que podia para provar atécnicaqueeupodiasercapitã.Comoelapodiaterdesistidotãofacilmentedo objetivo pelo qual havia batalhado tanto? Será que não sabia que nãodeveriafazerisso?

Certo. Talvez eu tenha tido meus próprios lapsos de julgamento emsituaçõesqueenvolvessemgarotosepésdescalços.Entãoépossívelqueeutivessesidotãonegligentequantominhaparalelafoinaquelanoite.Masseeutivessepisadonaquelespregos,oitopontoseumavacinaantitétanonãoteriammudadominhavida.Euraleiportrêsanos, izhora-extradepoisdotreinotodososdiasetudomaisquepudeparaprovaràtreinadoraP.queeuera capazde ser capitã.Comoelapôde terdesistido tão facilmentede

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umobjetivopeloqual tinhabatalhado tanto?Ela nãopercebeu como issoeraerrado?

Como você percebeu que não deveria tentar carreira na interpretação,sendoalgoquevocênemqueria.

Não sei se essa voz é minha, ou de Caitlin ou de Deus. De qualquermodo,estouignorando.

Devoltaàterra,otécnicofalasobredetalhesadministrativosenquanto

puxamososbarcos.Eumeocupo,tentandonãoolharparaninguém.– A programação do treino da próxima semana – o técnico diz,

segurandoumapilhadepapel.–Peguemumantesdesair.Osdoistreinospordiacomeçamamanhã,comumafolganatardedesexta.OônibusparaProvidence parte às seis. – Ele prende os papéis em sua prancheta e acolocasobreagradedemadeira.

–O que tememProvidence? – Sussurropara aGarota Salsão. Elamelançaumolharesquisito.

–Nossaregata.–Ah,eleestavafalandodeProvidence,RhodeIsland–digocasualmente.

–PenseiqueestivessesereferindoaoutraProvidence.AGarotaSalsãoestreitaosolhos.–Estádrogada?–Oquê?Não! – respondo, esquecendo-mede sussurrar. Todomundo

olhaparamim.–Desculpem–murmuro,paraninguémemespecial.Otécnicomelançaumolharecontinuafalando.–Marcareioshoráriosdosbarcosatéamanhãdequinta.Sequiserem

queeupenseemvocêsparaobarcoA, émelhor seremnotaAno treinodestasemana.–Elefazumapausaparacausarumefeitodramático,comose tivesse acabado de dizer algo excepcionalmente inteligente. – Certo,pessoal,éisso.Atéamanhãdemanhã,nemumminutodepoisdascinco.

Eleestábrincando?Cincodamanhã?O grupo se dispersa. A maioria das garotas segue para o vestiário,

enquantoalgumaspermanecemnopíer,aproveitandoosoldamanhã.Eucaminhoemdireçãoaoprédio,esperandosairdali.

–Ei,Ab,espere.Eume viro. É a garota do ônibus de novo.Não estámais de capacete,

mascomoscachossoltos,eablusaestáen iadanabolsaquelevasobreoombromoreno.

–Obrunchaindaestádepé?–elapergunta.

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– Oh. Eu... – Mencionar meu brunch com Caitlin e Tyler parecearriscado.Semsaberaproximidadequeminhaparalelaeelatêm,nãoseicomo seria dispensá-la por ter planos com outra pessoa. Será que elaicariaofendida?Elaseconvidariaparanosacompanhar?Fechoosolhosefaçoumacareta.–Desculpe,masestoucommuitadordecabeçahoje.–Eume retraio e aperto as têmporas. – É tão estranho, mas conforme falo,piora.

–Oh,não.Entãovamosdeixarobrunchparalá?– Sim, talvez sim – respondo, a voz carregada de decepção.Cuidado,

Barnes.Ésóumbrunch.Minhadordecabeçafalsafunciona.Escapodobruncheevitooriscode

manterumaconversaestranhanavoltaaocampus.Alémdomais,consigoescutarasfofocasdeBritta(agarotadoônibus)eAnnika(aGarotaSalsão)a respeito de quase todo mundo da equipe. Agora eu sei que a Ginger,outra timoneira, não tem as pernas, e que Bobbi, nossa capitã, estádormindocomoprofessordehistóriadela.ElasperguntamsobreMichael,oquemefazacreditarqueeudevosermuitopróximadessasgarotas,mas,além disso, elas parecem desinteressadas em detalhes de minha vida,porquetalvezasoutrasgarotasdaequiperendammaisassunto.

Assimquesaiodoônibus,sigoemdireçãoaoquartodeCaitlin.–Nãopossoviverdessejeito–digoquandoelaabreaporta.– Então, acho que isso quer dizer que eu estava errada. – Ela dá um

passoparaoladoparamedeixarentrar.–Oh,não,vocêestavacerta.Euarrasocomotimoneira.–Olhoaoredor.

–OndeestáTyler?–Nobanho.Eaí,comoé?–elaperguntaanimada.–Foimuito legal?–

Nãoreajo,eseuentusiasmodesaparece.–Porquenãoparececontente?– Porque esta não é a minha vida – digo simplesmente. –Ela pode

querer passar asmanhãs e as tardes congelando, sem fazer exercício deverdade, agachadaemumespaçopara criançaspequenas.Maseu,Abby,escolhonãopassarmeutempolivreolhandoparaapatadecamelodeumagarota.

Caitlintorceonariz.–Podemepoupardessesdetalhes,porfavor.– Independentemente do que pensar, foi pior na vida real. – Eu jogo

minhabolsanochãoemedeitonacamadela,afundando-menasedaazul-marinho.Oslençóisforamumpresentedeminhamãe,quetemcertezadequeoalgodãocausarugas.–Nuncamais–juro.–Amaluquiceacabahoje.

–Oqueissoquerdizer?

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–Quevourecuperarminhavida.Minhavida.–Abby,estaéasuavida.– Como pode dizer isso? Outra pessoa está decidindo o que acontece

comigo!– Mas essa “outra pessoa” está fazendo exatamente o que você teria

feitonamesmasituação.–Vocêestáagindocomoseelaeeu fôssemosamesmapessoa–digo,

olhandoparaoteto.– É isso o que faz dela sua paralela. Ela é você em circunstâncias

diferentes.– Não – balanço a cabeça de modo tão enfático que minhas faces

raspamnaseda.–Elaeeupodemosestardividindoondascerebrais,maselanãosoueu.

–Seiquevocêsentemedo–Caitlindizcomdelicadeza.–Mas,Abby,éassim que nossos paralelos são. Você não pode icar separando “você” e“ela”,e“nós”e“eles”.

–NãoéoqueodoutorManndisse.Caitlinsuspira.–OdoutorMannprecisaquevocêsejadiferentedasuaparalelapara

podermanterolivre-arbítrio.–Vocênãoacreditaemlivre-arbítrio?–Estouboquiaberta.–Olivre-arbítrioéumailusão,Abby.Nossasatitudessãodeterminadas

pornossaconstituiçãobiológica.Éissooquetenhotentadoexplicar.Eumerecusoaaceitar isso,mas seiquenãodevodiscutir comCaitlin

sobre ciência.Se é que se pode chamar isso de ciência. Abro um sorrisoamarelo.

–Então,achoqueissoquerdizerqueminhaparalelavaisairdaequipeemsetembro.Sabe,elaécomoeu.

Caitlinsuspira.– Abby, eu entendo. Você se sente impotente e isso a incomoda. Mas

sairdaequipenãodevolverásuavida.–Euseidisso.Masseeu izeralgoqueelanuncafaria,comodeixarum

esportequeadoraou,pelomenos, ingeadorar,então,pelomenos,elanãovaimaisdominarasituação.

–Émesmo? Se você sair apenaspara irritá-la, então, o quemuda?Asatitudesdelaaindaestãoditandoassuas.–AvozdeCaitlinéséria,dojeitoqueelaficaquandotemcertezadequeestácerta.

Pormaisirritadaqueeuestejacomotomdela,suaspalavrasmefazempensar.Seeusairdaequipeapenasparameimpor,então,decertomodo,

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minha paralela vai comandar o show. Mas qual é a alternativa? Deixarminhavidaserumacópiadadela?Inaceitável.

– Você pode estar certa – digo a ela. – Mas se eu permanecer nessecaminho, toda a minha experiência na faculdade será afetada por suadecisão de se tornar uma timoneira.Minha programação,meus horários,meus amigos, meu currículo. Tudo isso. – Balanço a cabeça, resignada. –Não.Essecaminhoterminahoje.

Caitlinsuspira.–Tudobem.Saiadaequipe.Masnãoesperequetudomudesóporque

vocêmuda.Naqueleinstante,aportaparaasaladeCaitlinseabreeTyleraparece,

usandoapenasumacuecaesegurandoumfrascorosa.–Ah!Meusolhosestãoardendo!–grito,elogodesviooolhar.–Eusei.Umcorpogostosoassimdeveriavircomumavisoeóculosde

proteção.–Calça!Porfavor!–berro.–Nãosabiaquevocêera tãopudica,Barnes–Tylerdiz,pegandouma

calçajeansdamalaabertanochão.–Évocê–digo,fazendoumacareta.–Eca.Caitlinrialto.–Obrigado–Tylerdizdemodoseco.Elevesteumacamisa.–Comofoio

treino?–Umadroga–respondo.–Vousairdaequipe.–Sim,claro–Tylerresponde.–Vocênuncaparouemnadanasuavida.OlhoparaCaitlinenquantorespondo:–Achoquenãosoutãoprevisívelquantovocêpensou.Depoisdobrunch,CaitlinlevaTyleraoaeroporto,eeuvoltoparaomeu

quarto. Quando estou passando pelo portão da High Street, um cartazverde luorescentegrudadonoquadrode fora chamaaminhaatenção, eeuparo.

AudiçõesabertasparaMETAMORFOSES,deMaryZimmerman2009/2010ShowdosAlunosdoPrimeiroAnoSegunda,12deoutubrode2009,das14hàs17h301CrownStreetFolhadeinscriçãonaentrada222YorkStreet

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Naminhamente,estouládenovo,nopalcodoauditórioBrookside,me

esforçando na apresentação. A senhora Ziffren está sorrindo. Ilana ri. Asluzesdopalcoesquentammeurosto.Estoupensando:Porqueestouaqui?Istonãosoueu.Mas,dealgummodo,meunomeaparecenotopodalistadoelenco. Parecia algo tão pequeno – só uma peça tola de escola –, masacabou sendo maior que isso. A porta de entrada para algo enorme. Aoportunidadededescobrirumtalentoquenuncaimagineiter.

Minhaparalelanãovaipodervivernadadisso.Elanãoestá fazendoaaula de Ziffren, por isso não será forçada a superar o medo de seapresentarpara conseguir nota, surpreendendo a simesma e a todosnasala. Issoquerdizerque elanão fará o curso rápidode interpretaçãodasenhoraZiffren.Oquequerdizerqueelanãovai conseguir surpreenderum diretor de Hollywood com sua apresentação “cinética” de ThomasinaCoverlynanoitedeestreia.Oquequerdizerqueelanãoteráachancedepassar quatro meses em um set de ilmagens. O que quer dizer queindependentemente do que acontecer nomundo paralelo, ela nunca teráashabilidadesquetenhoagora.Elajáhaviaperdidoessachance.

Derepente,percebo.Tenhoalgoqueelanãotem.Os pelos de meu braço icam eriçados. O fato de eu ter mantido as

lembrançasantigasémaisdoqueumaaberraçãodaciência–éumdom.Diferentementede todas as pessoasdomundo, nãome esqueci dequemeueraantesdacolisão.Oquequerdizerquepossometornaressapessoadenovo.Umapessoaqueminhaparalelanuncaserá.

Minha mente começa a correr, salta à frente, liga os pontos. A Abbyparalelapode icarcommeuqueridoplano.Pode icarcomtodasasaulasderedação,comminhaassinaturadoNewYorkTimes ,comtodasasnoitese insdesemanaquepasseinaredaçãodaBrookside.Elapodetero YDN,oestágio de prestígio, o ótimo emprego, a vida que eu sempre pensei queteria.Elapodeserapessoaqueeuiaser.

Sereioutrapessoa.Essaideiaéemocionante.Vejotudocommuitaclarezaagora.Caitlinestácerta:tentardesfazero

que minha paralela fez não vai me dar autonomia. Para provar minhaindependência, não basta fazer as coisas que minha paralela não faria;tenhodefazerascoisasqueelanãopoderia fazer,coisasquesóeuposso.Comointerpretar.Comoparticipardoshowdosalunosdoprimeiroano.

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Tiro o cartaz do quadro. Audições abertas. Só preciso me inscrever.Com minha experiência, eu deveria, pelo menos, tentar entrar para oelenco.

Umsorrisoseabreemmeurosto.Metamorfoses.Exatamente.Aindasorrindo,colocoocartaznabolsa.Meu telefone toca nesse minuto, e sinto um certo desânimo ao ver o

nomedeMichaelno identi icadorde chamadas.Nósnosvimos seis vezesdesdemeu aniversário (quatro vezes na sala e duas nos ins de semana,umadelasplanejadacomantecedência)e trocamosmensagemde textoacada dois dias, mas ainda não me acostumei com ele. Provavelmenteporque não tenho certeza ao que deveria estar me acostumando, ou senem deveria me acostumar com ele. Por mais que goste dele, minhaparalelapoderiaarruinarnossorelacionamento(considerandoquesentarjuntos na aula de história, icar lado a lado na festa da fraternidade etrocarbeijosatrásdeumcaminhãodemudançapertodocampodefutebolsejaumrelacionamento).Eunãodeveriameprender.Minhacabeçasabedisso,masparecequeminhabarrigaemeusjoelhosnão.

–Oquevaifazerhojeànoite?–Michaelperguntaquandoatendo.–Nada–respondo,eentãofaçoumacareta.Ruim.–Errado.Vocêvaisaircomigo.– Aonde vamos? – pergunto casualmente, determinada a esconder

todosos traçosdaalegriadoai-meu-deus-ele-finalmente-vai-me-levar-para-sair.

–Éumasurpresa–eledizmisteriosamente.–Podeestarnaminhacasaàsoitoemeia?

– Claro – respondo, só umpouco irritada por ele não ter se oferecidopara me buscar. Talvez essa data exija preparação. Ele está fazendo ojantar!Euimaginonósdoisdividindoumpratodeespagueteàluzdevelas,servidocompedacinhosdealmôndegas.

–Ah,ecomaantesdevir–elediz.Ounão.–Oquedevovestir?–perguntoaMarissana iladoThaiTasteànoite.

–Eseformosaalgumlugarmaisarrumado?–Eleteriafalado–eladiz,virandoomacarrãocomacolher.–Comoele

não disse nada a respeito das roupas, acho que pode imaginar que écasual.

–Casualaoarlivreoucasualemambientefechado?

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– Hummm. – Ela morde um palito, pensando. – Como ele já fez oencontroaoarlivre,esteprovavelmentevaiseremambientefechado.

–Estáfalandodopasseiodasemanapassada?Achoqueissonãocontacomoencontro.

– Não, sua boba. O caiaque ontem. Espere, aquilo se chama caiaque?Não importa... umbarco de dois tripulantes. Ou não conta porque foi suaideia?

É por isso que ter um lapso dememória demais de um ano é ruim.Estou sempre em dúvida. Quando estou com Caitlin, não é um grandeproblema;elasódáosdetalhesquenãotenho.Mascomolidarcomminhacolegadeclasse,quenomomentoestáolhandoparamimcomoseeufosseumpacientecomAlzheimer?

–Oh,penseiquevocêtivesseditoalgosobreoúltimo imdesemana–digodeumjeitobobo, ingindoqueaperguntadelaarespeitodobarcofoiretórica.–VocêestavadizendoalgosobreBen?

Marissamelançaumolharestranho.–Estava?–Vocêestavaprestesamecontar sobre seumelhorencontro. –En io

bastantemacarrão na boca antes que as coisas piorem. Felizmente paramim,minhacompanheiradequartoéumpoucocabeçadeventoecostumaperderalinhaderaciocínio,porisso,nãoduvidademim.

– Ah, certo. – Marissa pensa por um minuto e então sorri. – Verãodepois do segundo ano, cerca de duas semanas depois do início dorelacionamento.Benplanejouum jantar compiqueniquenoCentralPark.Elecomprouváriostiposdefriosequeijoseassouumpãofrancês.

–Benassoupão?Elaconcorda,orostoiluminadocomalembrança.–Foisuper-romântico.Osolbrilhavaquandoelemebuscoudebicicleta

e atravessamos o parque com a cesta de piquenique sobre o guidão, eucomumvestidobrancode linho,eBencomumternocáqui.Pareciacenadefilme,sabe?

–Pareceperfeito–digoaela,imaginando.– Foi – ela concorda. – Durante dez minutos de piquenique. Porque

depoiscomeçouachovermuito.–Ai,não!Elaassente,aindasorrindo.– Tanto o pão como meu vestido icaram ensopados. Jogamos fora a

comida, compramosmoletonsnosquais se lia “EuamoNovaYork”deumvendedorderuaefomoscomerpizza.

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– Então, você acha que eu devo levar um guarda-chuva hoje – digoenquantopegoumbiscoitodasorte.

– Estou dizendo quemesmo quando sabe o que esperar, você nuncasabedeverdadeoqueesperar–elamediz,comendoumavagem.–Então,vista-sedeacordo.

Se aprendi algo em Los Angeles, é que com os acessórios certos é

possíveliraqualquerlugardejeansecamisetadegolaV.Paraanoitedehoje,vestiumablusade lãgrandequecompreinoeBayecalceibotasdecouromarromque encontrei no Cinderella’s Attic, emGuilford no im desemanapassado.Comoade iniçãode“estilo”deminhaparalelaparecetersidolimitadaajeansGapeblusadaJ.Crew(oque,admito,descrevemuitobem o conteúdo de meu armário pré-Hollywood), precisei fazer umasuplementação de roupas desde que cheguei aqui. Infelizmente, minhaconta bancária é um poucomenor do que era quando eu estava em LosAngeles, então, estou me virando com o que posso encontrar de peçasusadas.

–Vocêestálinda–Michaeldizquandoabreaporta.–Botaslegais.– Obrigada – digo enquanto analiso a roupa dele. Calça demoletom e

umacamisetade corridadaYale. E eu estavapreocupada,pensandoqueestariamalvestida.Aquiloéumamanchadegorduranopeitodele?

–Eu ia trocarderoupa–elemedizegiraocopodeplásticoque temnasmãos.Estávazio.–Podepegarumre il?–elepergunta, jánomeiodaescada.–Acervejaestánageladeira.

–Hum,certo.Claro.Eu viro o copo nasmãos.Não exatamente comopensei que seriamos

primeirostrintasegundosdesseencontro.Masagoraqueestouaqui,nempareceumencontro.

Quandochegoàcozinha,estouoficialmenteirritada.–“Podepegarumrefil?”–murmuro.–Sério?Seguroaalçadageladeiraeaabro.Asgarrafasnaportabatemumas

nasoutras,epensoquenãomeimportariaseelassequebrassem.Eentão,euovejo.Umbuquêdepeôniascor-de-rosaemumacanecade

cervejaem formade trompete.Pegoopost-it amarelopresona frentedagarrafa.ParaAbby.

–Orefilfoisóumadesculpa.–Ah!–Sobressaltada,douumpuloaoouviravozdeMichaelederrubo

agarrafatamanho-famíliadaHeinzdaportadageladeira.Atampaseabre

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quando o frasco bate no chão, espalhando ketchup pelo piso de linóleo.Olho para o ketchup, depois para Michael, que agora está usando umacalçacáquieumacamisadebotõesazuleamassadaque,apesardedaraimpressão de ter sido tirada do meio da pilha de roupas para passar, ébemadequada.–Vocêmeassustou–digocomtimidez.

– Percebi – ele responde rindo ao se abaixar para pegar o frasco deketchup. Pego um rolo de papel do balcão para limpar a sujeira.Certamente não é um procedimento comum aqui. O chão é nojento, emolhadoporalgoquenãoéketchup.Seriavômito?Passoopapelnochão,tentandonãovomitar,eentãojogoospapéisnadireçãodalataenormedelixo ao lado do fogão. Eles caem no chão fazendo barulho. Michael,enquantoisso,estáocupadotrocandoofrascodeHeinzporduascervejas.– Uma bebida antes de irmos – ele explica, tirando as tampas, que jogadentrodeumbaldeaoladodageladeira.

–Obrigada–digo,deolhonomontedepapel, tentandodecidir se souobrigada a pegá-los. Uma poça do que parece urina estámolhando suaspontas.

–Masprecisamosbeberdepressa–Michaeldiz.–Vamossairdaquiacincominutos.

Nãotenhotempoparamepreocuparcompapel,então .Excelente.Beboacerveja.

–Então,vocêgostadas lores?–eleperguntaentreumgoleeoutro.–Depoisdoquefalamosontem,euquissurpreendervocê.

Ontem.Opasseiodebarco.AcoisamaisromânticaqueMichaeleeujáizemos,edaqualeunãomelembro.Nãoseioquepoderiaterfaladoparamotivarumbuquêcomosurpresa,mas independentementedoque tenhasido,ficofelizporterfalado.

–Adorei–respondo.–OndevocêconseguiuencontrarpeôniasemNewHaven? Fui ao mercado perto do campus. A seleção de lores deles selimitaacravoserosas,cadaumacomumaboadosedeperfume.

–NafeiraemEdgewoodPark–elediz,eentãosorri.–Deacordocomocaradequemcomprei,elassãoafrodisíacas.

Sintomeurostoemchamas.Comvergonhaporestarcomvergonha,ficoaindamaisvermelha.

– Então, o que mais você fez hoje? – Pergunto, mudando de assuntoantesquemeurostopeguefogo.

–Não izmuitacoisa–eleresponde.–Fuiàacademia.Assistiaumjogodebeisebol.Evocê?

–Eusaídaequipe–digoaele,sentindoogostodomacarrãotailandês

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do jantarearrependidapornãoter levadochiclete.Tomováriosgolesdecerveja,esperandoafastarogostodeamendoim.

–Ah,muitoengraçado.–Estoufalandosério.Envieiume-mailaotécnicoumpoucoantesdevir

pra cá. – Percebo que alguém que esteve na equipe durante semanasprovavelmentenãodiria“otécnico”,masMichaelestáocupadodemaiscomcaradetachoparaperceber.

–Vocêsaiudaequipe?Pore-mail?Areaçãodelemesurpreende.–Bem...–respondo,percebendooquefiz.–Qualéoproblema?–Aconteceualgumacoisanotreinohoje?Foiporissoquevocêsaiu?–Porquealgumacoisatemqueteracontecido?–pergunto,colocando-

me na defensiva. – Uma pessoa não pode simplesmente decidir que nãogostamaisdealgumacoisa?

–Assim,derepente?–Porquenão?– Não sei, talvez porque não é assim que as pessoas agem. Elas não

abandonam partes de si mesmas. Você é timoneira – ele diz, como seestivessemecontandoqueocéuéazul.–Fazpartedequemvocêé.Umapartedequegosto.Vocêécheiadeenergia.

Subentende-se:Vougostarmenosdevocêsenãoformaistimoneira.–Euadoroquevocêgostedissoemmim– começoeentãoenguloem

seco, e percebo que usei “eu”, “adoro” e “você” bem próximos uns dosoutrosnamesmafrase.Felizmente,elenãoesboçareação.Continuo.–Masnão faz parte de quem sou, de fato. Ainda que pareça. Só comecei naequipe porque machuquei meu pé e não podia mais correr – explico. –Comonão queria icar obcecada por não poder fazer o que eurealmenteamava,disseamimmesmaqueadoravaaequipe,e,depoisdeumtempo,comecei a acreditar. – Estou inventando isso, claro, porque não fui eu defato quem fez tudo isso. Mas enquanto falo, estou pensando:Foi o queaconteceucomminhaparalela?Porquesefor,então,euentendo.Aindaqueeuqueiraacreditarquenuncaabririamãotãodepressadacorrida,possoimaginar como seriamais fácil paramim simplesmenteme jogar emalgoemvezdesofreradecepçãodenãopodercorrer.

–Parecequealgumacoisaaconteceunotreinohoje–Michaeldiz.–Nãoaconteceunadano treinohoje–eu insisto.–Sónãoqueromais

fazerisso.Michaeltomaumgoledecerveja,pensando.–Então,achoque issoquerdizerquevocêpodedormircomigohoje–

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elediz,tranquilamente.–Nãovaitreinaramanhãcedo.Fico gelada.Não depilei as pernas.Nem a virilha.Minha calcinha está

comumfuronofundilhoenãoésexy.Poressasemuitasoutrasrazões ,NÃOESTOUPRONTAPARAFAZER SEXO.Assustada, levoagarrafaaos lábiosea inclino,como rosto quente de novo. Esse é um daquelesmomentos – e houve váriosdesde queMichael e eu nos conhecemos – nos quaisme lembro de queestou totalmente destreinada. Não é que eu seja uma pudica no que dizrespeitoaosexooposto–eunamoreiejádeiamassosequasefuivistanuavárias vezes. Mas eram caras comuns. Michael Carpenter é de um tipototalmentediferente.Élindo.Inteligente.Atlético.Eébacana.Bembacana,sem nem se esforçar. Eu, por outro lado, sou de um calibre inferior. Soubonita, mas não linda, mais esforçada do que inteligente, em forma, masnão atlética, e apesar de ter momentos bacanas, esses momentos sãocercadosporhorasdeplanejamentocuidadososobrecomorealizá-los.

Michaelpercebeomeuolhareri.–Estoubrincando–elediz.–Pretendo levarvocêàportadesuacasa

depois do nosso encontro, e vou beijá-la com ingenuidade e desejar boanoite. – Ele para, e então diz: – A menos, claro, que vocêqueira dormircomigo...

–Amanhãtenhoaula–digoesorrio.Minhatentativadeparecerbacanae animada com a paquera, e não totalmente amedrontada com essaconversa.

– Então, é melhor deixarmos a noite em claro para outra ocasião. –Agindo demodo blasé, ele bebe o resto da cerveja e coloca a garrafa nobalcão.–Estápronta?

– Mm-hmm – digo, do modo mais casual que consigo, enquanto aspalavras“NOITEEMCLARO”ressoamemminhamente.OsolhosdeMichaelestãobrilhandopelosorrisocontido.

– Então, você já sabe para onde vamos? – ele pergunta quandodescemosoquarteirão.Seucotoveloresvalanomeubraço,enviandoumaonda de arrepio até as pontas dos meus dedos. Se nossa conversa nacozinhafoiapenasumplanoparatirarminharoupa,podeterfuncionado.Minhaspernasnãoestãotãopeludas,eacervejaquebebimedeixoubemmenospreocupadacomofuronacalcinha.Nãoestoufalandode icarnuanumanoite em claro,mas é possível quealgumas peças de roupas sejamretiradasemalgumashoras.–Vamos–Michaeldizmecutucandodemodobrincalhão,tirandotaisideiasdeminhamente.–Nemimagina?

–Hum.Cinema?

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–Não.VejoasluzesdaYaleBookstoremaisàfrente.–Hum...aumaleituradepoesia?–Não.–Eleapontaparaoprédiodetijolosaparentesnaesquina.–Na

igreja.–Na igreja – repito. –Tipo... namissa?–MinhaavóRoseestá sempre

perguntandose tenho idoà igrejaaqui,eela fazumtskquandodigoquenão.

–Mais oumenos,mas nãomuito. – Ele seguraminhamão. – Você vaiver. – Ele assobia baixinho enquanto caminhamos, com a mão quente eáspera naminhamão úmida. Trocamos uns amassos num armário e nosbeijamosnavaranda,maséaprimeiravezqueficamosdemãosdadas.

O assobio para quando entramos no prédio. O santuário em forma decruzestáescuroecavernoso,comarcosgóticosetetomuitoaltos,otipodesalaqueparecequeestácongelando.Masestanãoestá.Dezenasdevelaspontuamosdoisladosdosantuário,oquepodeteralgoavercomocalorecertamentesãoresponsáveispelocheirocalmante.Inspiroprofundamente,tentando perceber. Junípero? Mas também tem algo mais... algo maisfamiliar. Rosa? Uma inscrição na pedra da parede a leste chama minhaatenção. As palavras brilham sob a luz da vela.PODEMOS IGNORAR, MAS NÃO PODEMOSESCAPARDAPRESENÇADEDEUS.OMUNDOESTÁTOMADOPORELA.–C.S.LEWIS.

–Vamos–Michaelsussurra,emepuxa.Outras pessoas estão espalhadas pelo bancos, mas não em número

su iciente parame convencer de que estamos no lugar certo para o quequer que esteja prestes a acontecer. Olho paraMichael, esperando vê-loconfusoouincerto,maseleestásorrindo.Eleapontaparaumafileiravazia.

Nós nos sentamos, escorregando até o meio do banco, onde é muitomaisescurodoquenaspontas.Nãoseiseissosedeveaotamanhoenormedas colunas de pedra ou ao tamanho da sala, mas, apesar de as velasestaremvisíveisondeestamos,obrilhodelasédistante.OrostodeMichaelestáquasetotalmentetomadopelaescuridão.

– Chama-seCompletas – ele me diz, com a voz tão baixa que é di ícilescutar. – É um momento de re lexão e meditação no im do dia. Esteacontecetodososdomingos,àsnove.

–Oh–sussurro,porquenãotenhocertezaarespeitodoquedizer.Oufazer, que seja. Olho ao nosso redor, esperando ver o que as outraspessoasestãofazendo,masapessoamaispróximaestáapelomenosvintemetros.

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Todo mundo está muitosilencioso. Não há ninguém rezando. Não hámovimento.Temosqueficaraqui,noescuro?

Eentão,naescuridão,ouçoumtenorsolitário,cantandoemlatim,avozvindodeumadasalcovaspróximasdapartedafrente.Avozrapidamenteseuneamuitasoutras, todascantandoembelaharmonia.Ouço, tentandosaber de qual lado esse som está vindo, mas não consigo. A acústica éperfeita demais para se perceber a origem, e o coro está totalmente foradevisão.

As palavras da inscrição surgem, como se carregadas pelamúsica.Nomomento, a palavra “denso” parece mais apropriada do que “cheio”. Oclimaestádenso,éalgodivino.E,nessemomento,qualquersentimentodemedoouconfusãoarespeitodeminhascircunstâncias foramsubstituídospor uma valorização enorme do aqui e agora. Faço uma oração rápida esem palavras, agradecida por um pensamento breve que me deu maisclarezadoquequalqueroutro.Grataporessemomentoqueeupoderiaterperdidocomfacilidade.

Quandoacançãoterminaalgunsminutosdepois,asala ica totalmentesilenciosa.Eentão,maisumacanção começa.Nomeioda terceira canção,Michaelseinclinaeencostaoslábiosemminhaorelha.

–Vocêgosta?–elepergunta,avozquaseinaudível.Suarespiraçãoemmeu pescoço faz com que um arrepio percorra a minha espinha. Eumeviroemeaproximodesuaorelha.

–Sim–digo.–Eapesardequererdizermais,dizerqueissoémágicoeimportante, que estoumuito emocionada com essamúsica, queme sintolisonjeada por ele dividi-la comigo, não faço isso, porque não querointerromper o silêncio, mas principalmente porque sei que palavras nãobastarão.Então,encostooslábiosnorostodeleemumbeijosemsom–umobrigado silencioso –, e ico sentada no banco de madeira, deixando amúsicaeaescuridãomeenvolverem.Eleencontraaminhamãoeaaperta.Nenhumdenósasolta.

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Outubro

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6(Lá)sábado,11deoutubrode2008(noitedeestreiadaexposiçãodeminhamãe)

–Háalgunsgritosquevocêprecisaconhecerantesdeirparaaágua–elamediz,puxandoseuscachosloirosparaprendê-losemumrabodecavalo.Estamossentadasladoaladonumamesadepiqueniquepertodabeiradaágua,observandoosremadoresdaremvoltasnacasadebarcos.–Éclaroquevocênãodevecomeçarsemquetodosestejamprontos,porisso,seuprimeirogritoserásempre“iniciarremos”.Oproeirovaidizer:“Proa!”,eentão,osoutrosremadoresgritarãoosnúmerosdeseusassentos.Quandovocêescutar“movimento”,confiraparaverseissoestáclaro,eentãoparta.

–Iniciarremos–repito.Temimportânciaofatodeeunãosaberqueméoproeiro?

Ficosabendoquealoirasorridentedaastronomia(cujonomeéMegan,agorasei)étimoneiradaequipedaBrookside.Eunemsabiaoqueeraumtimoneiro há dois dias, quando Josh me disse que a equipe estava àprocuradeumesugeriuquemeupécoxoeeuseríamosperfeitosparaafunção. Eles precisavam de um timoneiro, e eu precisava de um esportepara minha matrícula na Northwestern. Sem opções, decidi tentar. Otécnico icou tão feliz que nem fez teste comigo. E aqui estou eu, a maisnovamembradaequipedaBrookside.

Estoumeesforçandoparacontinuarsendopositiva–emrelaçãoaissoe em relação a todo o resto. O esforço é necessário, porque sem ele, eusucumbiria à tristeza e sentiria pena demimmesma, e não é assim quecostumo reagir a contratempos,masparece serminha reaçãoneste caso.Nosprimeirosdias,choramingueicomooburrinhoamigodoursinhoPooh,comumanuvempesadasobreacabeça,atéCaitlinmechacoalharparaeusair dessa situação (literalmente, ela me chacoalhou pelos ombros,praticamentemederrubou).

– Sei que émuita coisa paramemorizar –Megan está dizendo. –Masvocêestáindomuitobemparaseuprimeirodia.–Elasorridemodoameincentivar.–Antesdesair,dareiavocêumalistacomtodososgritoseuma

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imagemquemostracomousá-los.–Issoseriaótimo–digocomumsorrisoagradecido.–Obrigada.– Eu é que devo agradecer a você! – ela diz. – Como só tínhamos um

timoneiro para a equipe dos homens – eu –, o técnico teve de dividir otreinoparaqueeupudesseguiarosdoisbarcos.Eunãotinhavida.–Elaseapoia nos cotovelos, arqueando as costas para deixar o sol iluminar seurosto.

Comoumameninatãopequenapodeterseiostãograndes?– Há quanto tempo você está na equipe? – pergunto. – Eu nem sabia

quehaviaessaequipeatéconheceroJosh.–Eleéótimo,nãoé?–Megandiz,sorrindoparaJoshquandoelepassa

pornós.Elesorridevolta,eentãoacenaparamim.–Vocêssãoumcasal?–Ah...não–digorapidamente,balançandoacabeça.–Sóamigos.–Na

realidade,nãotenhocertezadequepodemosdizerquesomosamigos.Nãonos vimos fora da escola desde a noite em que machuquei meu pé. Etambémnão icamos juntos na escola. O “oi” educado que trocávamos nasala durante o quinto período é o máximo da nossa interação social. Asugestão dele para eu entrar na equipe foi a conversa mais longa quetivemosdesdeafestadaIlana,eforamsóduasfrases.Nãoépatéticoquefalar comele tenha sidoodestaquedeminha semana?Felizmente, tenhofeito umbom trabalhono que diz respeito a guardar sentimentos. Tenhosidoeducada,masindiferente.Nãotenhomaisencaradoelenaastronomia.Não o convideimais para sair. Se haverá um próximo passo, terá de serdadoporele.

Atéagora,elenãodeunenhum.Caitlin acha que eu gosto do fato de Josh ser tão enigmático. Que a

incertezamantémointeresse.Mantém,masnãoépor issoqueoachotãointeressante. Gosto dele porque, quando ele está por perto, eu me sintomuito,muitodesperta,comosetivesseacabadodebeberumenergéticodedose dupla. Não é uma onda de adrenalina exatamente (o cara usameiacommocassim),maséquequandoeleestáporperto–mesmoqueestejadooutro ladodasala, semprestaratençãoemmim–,parodepensaremtodasascoisascomasquaiscostumoserobcecada,ouseja,ascoisasqueimportam:minhasnotas,minhasinscriçõesnafaculdade,meufuturo,meuplano. Quando Josh está aqui, onde quer que o “aqui” seja, o únicomomentoqueimportaéopresente.Orestosimplesmenteacontece.

–Então,vocêsnãosãoumcasal?–escutoMeganperguntar.– Não somos um casal – respondo, resistindo à vontade de completar

comum“ainda”.

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OsolhosdeMeganbrilham.–Então,seráquepodefalarcomelesobremim?Sejadiscreta,claro.Se

elenãogostardemim,nãoqueroque saibaque eu gostodele... –Megansorri, envergonhada. Ela é bonita, do tipo “não tenho culpa de seradorável”.Ugh!

– Ah, claro, sem problema – respondo. O que deveria dizer? Não,desculpe,nãoposso falar comele sobrevocêporqueaindaesperoqueele seapaixonepormim?

–Obrigada!–Elaselevantadamesadepiqueniqueeseviraparamim.–Vamosparaa água– ela sugereemeentregaminhasmuletas. –Possoexplicarorestodosgritosnocaminho.

Chegamosàbeiradaágua,Megansobeemumbarcopresoemblocosdemadeiraapoucosmetrosdopíer.

–Aquiénossaconchadetreino–eladiz.–Entre!–Assimquedizisso,ela dá uma risadinha. – Acho que você não tem entrado muito, não é?Precisadeajuda?

– Não – digo irritada, deixando minhas muletas no chão ao lado dobarco. – Posso colocar peso nisso, mas não por muito tempo. – Passo apernaporcimadabeiradaemesentodiantedeMegan,comosjoelhosemseunariz.

– Você está sentada no assento do remador – ela me diz. – Então,dependendodobarcoondeestiver,seráJoshouBrad.–Meganfalasobreas várias posições do barco, mas não presto atenção. Estou ocupadademaispensandonofatodequeprecisomelembrardoquegritar,quandogritarecomovirarobarcocommeurostonascoxasdeJosh.

–Paravirarabombordo,puxeacordaàdireitaemsuadireção,assim.Para virar a estibordo, puxe a corda à esquerda. Mas lembre-se de queserãonecessáriosalgunsmovimentosparaquesuasaçõestenhamefeito...Apiorcoisaquepodefazeré...

–Aposiçãoderemadoréboa?–pergunto, interrompendo.–Éondeomelhorremadorficaouopior,ounãoéassimquefunciona?

– Ah, certamente é a melhor – Megan responde. – Do ponto de vistatécnico,pelomenos.

–Então,Josh...eleémuitobom?–Extremamentebom–eladiz. –O timedeleconseguiuoouronoano

passadonosWorldRowingJuniorChampionships,naFrança.–Meganolhaparaosremadores,agoraunidosparaumareuniãodeequipe.Sigooolhardela. Josh está ouvindo com atenção o que o técnico está falando. – Ficotentandoimaginaremquemaiseleébom–elasussurra,eentãocomeçaa

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rirsemcontrole.Ah,não,elanãodisseisso!–ComovocêeoJoshseconheceram?–pergunto,mudandoaconversa

paraassuntosmenosnauseantes.–Aqui – ela responde. – Eu tinha quemostrar a casa de barcos a ele

antesdotreino,masnãopassamosdovestiário.Nãoquealgoassim tenhaacontecido.Nãoainda,pelomenos.–Maisrisos.Osomestámeirritandodeverdade.–Sócomeçamosaconversare,quandonosdemosconta,erahoradotreino.Nóscombinamostotalmente.–Elaolhaalémdemim,paraondeos remadores estão reunidos e olha descaradamente para o traseiro deJosh.

–Megan!–OtécnicoSchwartzchama.–Precisodevocêsaqui!–Elefazumsinalparaqueelaseunaaogrupo.

–Eleestáchamandovocê também–Meganmediz, saindodobarco.–Elesóesqueceuseunome.Esqueceonomedetodomundo,nãoleveparaoladopessoal.–Elapegaminhasmuletaseasentregaparamim.

–Eleladraenãomorde,porisso,sevocê izerbesteiraeelegritarcomvocê,nãoseperturbe.

–Vouparaaágua?–Penseique icariaobservandohoje,nasegurançadosoloseco.–Nãoémeiocedoainda?

– Não se preocupe, você vai se darmuito bem – elame diz. – Tenhocerteza de que o técnico vai colocar você noM8A, o que quer dizer quevocênãovai fazermuitacoisa.Comacasacalmacomoestá,não teráquevirar.Joshdáosgritos.

–Megan!–Otécnicogrita.–Agora!AcompanhoMeganatéondea equipeestá, tentandonãopareceruma

tolanoprocesso.Quandoelameapresentacomotimoneiradaequipe,todomundo festejaebatepalmas.Quandocontoquantosdeles já conheço,meassusto ao descobrir que é menos da metade.Como posso não conheceressaspessoas? A Brookside não étão grande.Mas ando com eles desde oprimeiro ano e não iz esforço nenhum para conhecer ninguém além deCaitlin,Tylereotimedegolfe,ealgumasmeninasdoOracle. Essepessoalparece bacana. E bem sério em relação ao esporte. Enquanto o técnicoSchwartzrepassaseuplanoparao treino,elesprestamatençãoemtodasaspalavras.

MegantinharazãoarespeitodoM8A,quelogo icosabendosereferiràequipe dos oito homens A, o barco mais rápido. Eles nem precisam detimoneiro,oqueéótimo,jáqueaminhapresençanobarcoébasicamenteamesmacoisadenão terninguém.Ela tambémtinharazãoarespeitode

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Josh.Eleéincrivelmentebom.Maselenãomedeixaficarsossegada.– A única maneira de aprender os gritos é fazendo-os – ele me diz

quandomeajudaaentrarnobarco.–Então,direioquedevegritar,masvocêprecisagritar.Omaisaltoquepuder.

– Pensei que usaria um pequenomicrofone – digo, apontando para ofonedeouvidodeMegan.

–Vaiusar–elerespondeesorri.–Emalgummomento.Oequipamentoajudamuito,masosmelhorestimoneirosnãoprecisamdeequipamento.

–Maseostimoneirosquenãofazemideiadoqueestãofazendo?–Ah,elesnãosabemusá-lo,dequalquermodo.– Então, Wags, vamos para a água hoje ou não? – É Phillip Avery, o

proeiro que, se a linguagem corporal de Josh for um bom indício, é apessoadequem Joshmenosgostanaequipe.Phillip também foimeuparnobailedoprimeiroano,eeuacabeideixando-onapistaevolteiapéparacasadepoisqueele tentouen iaramãodentrodomeuvestidoenquantotocava“Fixyou”,doColdplay.Nuncamaisnosfalamos.

– Como hoje é o primeiro dia da Abby – Josh diz de modo normal –,penseique,por serocapitão, eupoderiaexplicarparaelaoqueela fará.Tudobem,Phil?–PhillipdetestaserchamadodePhil.

Olhoparaopíer,controlandoumsorriso.OGarotoAstronomiaédurãonoremo.

Phillipmurmuraalgoimpossíveldeentender.Josh continua, sem se importar com os remadores impacientes atrás

dele. Olho para o barco B, cinquentametros rio abaixo. A voz deMeganecoanoar.

–Vamos,pessoal!Comecem!–Gostariadecomeçar–Phillipdizbaixinho.–Todosgostaríamos–dizocaraaoladodele.–Elaémuitogostosa.Josh olha para além de mim, para onde Megan está. Ele ainda está

pensando na técnica de controle, mas mantém os olhos nela. E em seusseiosgrandeseperfeitamenteempinados.

– Acho que estou pronta – digo de repente, interrompendo-o nomeiodafrase.–Agora.

Elevoltaaolharparamim.–Émesmo?–Claro – doude ombros, ingindo estar con iante. –Nãopode ser tão

difícil.Acontecequemesmotendoalguémparadizeroquevocêdevefazere

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quandodevefazer,comandaraindaédifícil.Bemdifícil.Muito.Quando o treino termina, duas horas depois, estou exausta. Meu

traseiro dói, minha garganta dói, e meu cérebro está quase em pane.Preciso de toda a força que me resta para chegar ao carro. Tanta coisapara lembrar! Cross-country não é nada perto disso. Só é preciso correr.Timonear é muito mais di ícil, e nem é atividade ísica. Mas, ao mesmotempo, é estranhamente bom. Estar na água. Estar no controle. Estar aquinzecentímetrosdeJosh.

–Abby!–Eumesobressaltoquandoescutomeunome.MeviroevejoJosh correndo na minha direção, com os cabelos molhados depois dobanho.–Fiqueicomreceiodevocêjáterido–elediz,aproximando-sedemim. – Que bom que ainda não foi. Me deixe segurar isso. – Ele pega achavequeestápenduradanomeudedomínimo.

Sorrioederruboa chaveemsuamãoaberta.Meganquem? Sintoumaondadeculpaporconcordaremfalarcomeleporela.Maselanãomedeumuitaopção.

–Vocêfoiótima!–eledizdemodoentusiasmado.–Sei,sei.– Estou falando sério. Você só precisa icar mais à vontade com as

ordens–elemediz.–Seusinstintosforamótimos.– Não sei se acredito em você, mas obrigada. Foi divertido. Mais

divertidodoquepenseiqueseria–admito.Chegamosaomeucarro,Joshdestrancaaportaeabreaportadolado

dopassageiroparamim.–Grandesplanosparahojeànoite?– elepergunta, colocandominhas

muletasnoassentodetrás.–Ah,sóumeventonomuseu–digo.–Commeuspais–acrescento,só

paradeixarclaro.– Legal – Josh diz, e me devolve as chaves. Eu ico ali, sorrindo,

esperandoqueelesugiraquenosencontremosoutrahora.Éporissoquevocê pergunta a uma pessoa quais são os planos dela para a noite desábado,certo?Porquequerchamá-laparasair.

–Divirta-sehojeànoite.–ÉtudooqueJoshdiz.Eleacenarapidamenteeentãosegueemdireçãoaoseujipe.Derrotada,eumesentonobancodomotorista.

Ele deve gostar da Megan; essa é a única explicação. Certo, não é aúnicaexplicação,maséaúnicaquequeroaceitar.Pre iroacreditarqueelese apaixonou pela garota gostosa da equipe a pensar que não gosta demim.

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Sóexisteumamaneiradedescobrir.Pego meu celular do porta-luvas e rapidamente digito o número,

esperando que ele entre no jipe para clicar em enviar. Ele atende nosegundotoque.

–Ei–elediz,olhandonaminhadireção.–Oi.EuqueriasaberoquevocêachadaMegan.–MeganWatts?–Megan,atimoneira.–Megan, a timoneira, éMeganWatts– Joshdiz. –Oquequerdizer, o

queeuachodela?Achoqueelaéumaboatimoneira.–Eumeinclinoparaafrenteparaverorostodele,masaluzbatenopara-brisa.

–Queriasabersevocêestáinteressadonela.Comonamorada.–Porquê?–Porqueachoquevocês formariamumbelo casal –minto, brincando

comozíperdeminhamochila.Josh icaemsilênciodooutroladodalinha.Quandoolhoparaafrente,

eleestásaindocomojipe.Esperoqueeledigaalgo,maselenãodiz.Queestranho.–Sónãoqueriaquevocêsesentissemalcomisso–digorapidamente.–

Sevocêgostadela.Porquemesintobemcomisso.Sevocêsesentir.– Ótimo – Josh diz, a voz inexpressiva, impedindo minha análise. –

Obrigado.–Sintoumapertonopeito.–Certo,bem...–Comoterminarumaconversaassimdemodogracioso?

Espero que dê certo! Obviamente não, mas, de certo modo, as palavrasigualmente ridículas “Boa sorte!” surgemnosmeus lábios. E então, antesquepossapiorar,desligo.

– Souumamaluca. –Digo ao telefonenaminhamão.E agora?Volto atelefonar?Enviarumamensagemdetextodizendoquealigaçãocaiu?

Caitlintelefonaantesqueeupossafazerqualquercoisa.–Ei–digo,respondendo.–AchoquecoloqueiMeganWattsnocaminho

deJosh.–QueméMeganWatts?– A outra timoneira. Cabelos longos encaracolados, seios grandes. Os

carasdaequipeachamqueelaégostosa.– Por que você tentaria jogar o Josh para cima de outra garota? – ela

pergunta.–Espere.Deixe-meadivinhar.Foiumplanomalucoparaverseelegostadevocê,enãodeucerto.

Suspiro.–Maisoumenosisso.

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– Como eu sei? Olha, quero ajudar você a analisar todos os detalhesdisso,massótenhoumminuto,porqueprecisoiraolaboratório.

–Nãotemproblema–digoaela.–Nósjátiramosnossaconclusão.Souumafracassada.

– Uma fracassada quedeve lerminhas redações da Yale neste im desemana–Caitlindiz.–Envieiosúltimosrascunhosparavocêháumahora.Minha inscrição deve ser feita até 1o de novembro, e preciso de tempopararevisá-laantesdeenviar.Meconhecendo,muitotempo.

– Claro – digo, ainda pensando em Josh. – Ele perguntoupor quequando perguntei se ele gosta de Megan. Isso quer dizer que ele gostadela,certo?Casocontrário,elediriaapenasnão.

– Você cria essas regras enquanto conversa? Ou elas vêm domesmomanual de relacionamento que recomenda perguntar ao cara de quemvocêgostaseelegostadeumaloiragostosa?

–ElapediuqueeufalassecomJoshporela.– Ahhh. Entãoesse foi seu motivo. Pura ilantropia. – Consigo vê-la

rolandoosolhos.–Olha,precisoir.Podemos icarobcecadascomoGarotoAstronomiamaistarde.Masleiameustextos,estábem?

–Claro que vou ler seus textos – respondo. –Mas não, não falaremosdepois. Ou nunca mais. Superei, o icialmente, o Garoto Astronomia. –Quando digo isso, tenho certeza, mas apago o telefone dele só paragarantir.

– Suamãe sabe fazeruma festa–meupai comenta, olhandoao redor

na sala cheia. Estamos no Grand Lobby do High Museum, que foitransformado em um salão francês do século 19. Minha mãe estárecebendoaspessoascomseu lindovestidoazul-royalde seda.Ovestidopertence à mãe de Caitlin, um resquício de sua participação de dezsemanas na frente doMadame Bovary: O Musical!, seis meses antes deCaitlin nascer. Graças aos sete quilos que a senhora Moss engordou noprimeiro trimestre, o vestido é tamanho 44. Com a ajuda de uma cinta esapatosdesaltodedozecentímetros,serviunaminhamãeperfeitamente.

– Ninguém acreditaria que ela tem quase cinquenta anos – digo,observando-a.

– Sónãodeixe ela escutar você falarque ela tem “quase cinquenta” –meu pai responde, mexendo o uísque. – Ela está convencida de quequarentaeoitoaindaémetadedosquarenta.

–Nadamal,Barnes.–AvozdeTylersesobressaientreasdosadultos.

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Eleseaproximadenós,vestindoumpaletóquepareceserdosanos1970.–Vocêtambémnãoestáfeia,Ab.

MostroalínguaparaTylerquandoeleapertaamãodomeupai.–Oqueaconteceucomasmuletas?–Tylerperguntaparamim.–Você

nãotemmaisumasemana?– Sim. Mas muletas e um vestido longo é a mesma coisa que Abby

caindode carano chãona frentede centenasdepessoas. Por isso, eu asdeixeinocarro.

–Nossa, issoseriadivertido–Tylerdiz.–Nãoqueafestajánãoestejasuperdivertida,senhorB.

–Éclaroqueestá–meupairespondeentregoles.–Estamoscercadospor velhotes entediantes com ternos feios. Como não poderia estardivertida?–Eleviraocopo,terminandodebeber.

–Nãosejatãoduroconsigomesmo–Tylerdiz.–Seuternoébonito.Meu pai ri,mas como tem um cubo de gelo na boca, parece que está

rosnando. O barulho faz com que algumas pessoas se virem para olhar.Meupainempercebe.Rindo,elepegamaisumabebida.

–OndeestáaIlanahoje?–perguntoquandoelesai,tentandonãofazerumacarafeiaaopronunciaronomedela.

– Está no ensaio da peça – Tyler responde. – Ela está toda animadaporqueumdiretorimportantevemveraestreiahoje.

–Nossa!Cateeeupodemosver?–Elatemagidodeumjeitobemesquisito–Tylerdiz.–Novidade.Elaéesquisita.–EstoufalandodeCaitlin–elediz.–Oh. – E penso.Ela temagidodemodoesquisito? Nãonoteinada,mas

com meu pé, as provas e os sentimentos que Josh não nutre por mim,tenhoandadomeiopreocupada.–Esquisita,como?

–Seilá.Nervosa.Nervosa. Não é uma palavra que eu usaria para descrever minha

melhoramiga.Elaéoopostodeagitada.Masquandoestouprestesadizera Tyler que não sei do que ele está falando, me lembro de sua reaçãoexagerada quando perguntei se ela gostava dele. Irritada, de um jeitoanormal.Claramenteabalada.

Ela temagidodemodoesquisitoporquegostadele . De repente, sei queestou certa. Não sei como eu sei, só sei. Caitlin gosta de Tyler, e Tylertambémgostadela.

–Vocênãonotou?–Tylerpergunta.Hesito.SeTylereCaitlintêmsentimentossecretosumpelooutro,então,

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até um deles de fato fazer algo a respeito, os dois icarão tristes. Certo,talvez não tristes, mas menos felizes do que poderiam ser. E se o anopassar, nós nos formarmos e eles perderem a chance? Isso seria pior doque qualquer erro meu bancando o Cupido. Além disso, Caitlin precisadisso. Ela não namorou ninguém desde Craig, e eu sei que é porque elatemmedodesemachucardenovo.Tynãoamachucaria.

Escolhoaspalavrascomcuidado.–ÉacoisacomaIlana–digo,mantendoavozbaixa.–Édi ícilparaela.

–Falocomosenãotivesse importância,masTylereeusabemosquetem.Só existe ummotivo pelo qual o relacionamento deTyler com Ilana seria“difícil”paraCaitlin.

Tylermantémorostoinexpressivo.–Eladisseissoavocê?–Elanãoprecisamedizer–digo.–Souamelhoramigadela.–Percebo

queCaitlinpodeterproblemascomessaafirmaçãonestemomento.–Então,elanuncadissedemodoexplícito?–elepergunta.– Disse – eu minto. – Mas eu não podia contar a você. –O que estou

fazendo?Abroabocaparavoltaratrás,masTylermeinterrompe.–Estouapaixonadoporela–eledizcomumavozquenãoparecedele.

Talvezestejausandopalavrasquenuncaoescuteiusarantes.Pelomenos,não com seriedade. – Eu não sabia que tinha chances. Você está medizendoquetenho?

Certo, não estava esperando isso. Sei lá, pensei que ele tinhasentimentos por ela, eeu poderia usar a palavra “amor”, mas conheço oTylerdesdeo jardimde infância,esóoviusandoapalavraamorquandosereferiaatacosdegolfe.Masagoraeleestádizendodeoutromodo,comsinceridade. Enquanto ico ali, olhando em seusolhos abertos e honestos,icoassustadacomaprofundidadedaemoçãoquevejo.Elerealmenteestáapaixonadoporela.Eacabeidedaraentenderqueelasesentedomesmomodo.

Minhamentenãopara.Caitlinvaimematar.–Dependedecomovocêvaiabordá-la–tentoconsertar.Ogarotoestá

sorrindo,oqueébom,porqueseuolhartiraqualquerdúvidadeque izacoisacerta.Nãoqueeutenhafeitomuito;minhaspalavrasnãoeramnadaalém de um sopro na direção em que ele já seguia. Pelomenos, é o quedigo a mim mesma sem parar agora, tentando diminuir o tamanho daculpa.

– Você acha que ela vai estar na festa hoje à noite? – Tyler perguntaalgunssegundosdepois.

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–Quefesta?–A festaprivadanaquelebairropertodaProvidenceRoad.O timede

futebolvaisereunir.–Ah,não.Elavaitrabalharnolaboratóriodopaihojeànoite.–Graçasa

Deus.Caitlinéassustadoramenteintuitiva.ElavêosorrisobobodeTyleresabequetemalgumacoisaerrada.Eleprecisaserecuperardesuaeuforiaantesdopróximoencontro.EdecidiroquefazerarespeitodeIlana.

Do outro lado da sala, alguém está acenando. Não tenho certeza se ogestoédirecionadoparamim–vejoamãodeumhomembalançandonoar. Seja lá quem for o dono da mão, está bloqueado por duas mulheresvestidascomtafetádeseda.AmulherseremexeedoutorMannaparece,garbosoemumternocinza.Seusorrisoseabrequandonosvemos.

–SenhoraBarnes!–elegritaemmeioàspessoas.–Queméaquele?–Tylerpergunta, claramentesedivertindoaovero

caradecabelosdesgrenhadosvindonanossadireção.–DoutorMann–respondo.–Meuprofessordeastronomia.–AquelecaraganhouumprêmioNobel?– Shh. –Olhoparameuprofessor, que está equilibrandoumpratode

salgadinhossobreumalataderefrigerante.Suaoutramãoestáestendidaparaapertaraminha.

–Nãotederamumcopo?–pergunto,assentindoparaa lataenquantobalançoacabeça.Ovelhori.

–Elesmeofereceramum,masrecusei.Émaisdi ícilderrubarcomumalata.–OdoutorMannsorrietomaumgolecomcuidado.

Tylerolhaparamim.Denovo:EssecaraganhouumprêmioNobel?Euoignoro.– Doutor Mann, este é meu amigo Tyler Rigg. Ele também estuda na

Brookside.–Éumprazer, senhorRigg – odoutorManndiz, apertandoamãode

Tyler.–Talvezosenhorsejameualunonopróximosemestre.–Nãocontariacomisso–Tylerdizdemodoagradável.–Eentão,oqueotrazaomuseu?–perguntoaodoutorMann.–Minha ilhatrabalhaaqui–elemedizeapontaparaumamulherque

aparentatertrintaepoucosanos,usandoumvestidopreto.ElatemumardeAudreyHepburneosolhosazuisdopai.

–Então, você também foi arrastadopara cá –Tylerdiz. Eledetémumhomem que está servindo costeleta de carneiro e petiscos em umguardanapo.

–Achoquefuieuquemaarrastouparacá–odoutorManndiz.–Greta

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acabou de chegar de Munique esta tarde e estava planejando icar emcasa,maseu insistiparavirmos.Souumgrandeadmiradordo petit jeunechimistequiaccumuledespetitspoints.

Ofrancêsdeleéperfeito.– Hum... Algo a respeito de um químico e pontinhos? – digo, tentando

entender.– O jovem químico que liga pontos – ele traduz. E então, explica: – É

assim que Gauguin descrevia Seurat. Ele não entendia a arte dopontilhismo,creioeu.Sóviaaciência.

–Eosenhorvêosdois?–pergunto.–Nomeupontodevista,aciênciaéaarte–ovelhoresponde.Eleolha

para além de nós, paraUma tarde de domingo na ilha La Grande Jatte , aobramais famosadopintoreobra-primadaexibição, emprestadadoArtInstitute of Chicago. – Com seuspetits points, Seurat convidava oespectador a participar de uma experiência transcendental em vez deimporoquequeria.–Eleapontasualataderefrigeranteparaapintura.–A ordem inerente que vocês percebem nessa imagem não foi construídanesta tela;naverdade, estásendo construídaenquanto falamos,emnossamente.

Essa, claro, não é a primeira coisa que já ouvi sobre o pontilhismo.Quando se é a ilha única de um curador e pintor aposentado, vocêaprendemaisteoriadaartenamesado jantardoqueaprenderiaemumsemestredeaulassobreoassunto.Mas,pelaprimeiravez,ateoriaecoademodo mais amplo. De perto, só vemos pedaços, espalhados, empilhadosuns sobreos outros.Umadesordem total.Mas se afasteumpasso e umaimagem toma forma. Quando se entende o caos, o caos desaparece. Outalvez,oqueantespareciacaosnuncaofoi.

Emumoceanodecinzas,ilhasdeordem.É uma frase daArcádia, umapeçaque lemosnaaulade inglêsdoano

passado. (Não teriame lembradosenão fosseo fatodeeu terengasgadoquandoliemvozaltanaaula.“Emumailhadecinzas,oceanosdeordem”,eu havia dito, e alguém fez uma piada a respeito de “oceanos de ordem”serumótimonomeparaumabanda).Afraseoriginaléumareferênciaaospadrões que emergem do caos, um forte tema na peça. A frase capta aobra de Seurat perfeitamente. Sozinhos, os pontos são apenas pequenoscírculosdecor.Masnoambientecerto,elessetornammuitomais.

Antesqueeupossairlongedemaiscomessaideia,Tylerinterrompe.–Issoéummacaco?– Deveria ser uma sátira – digo vagamente. – A palavra paramacaco

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fêmea em francês,singesse, era um termode gíria paraprostituta. –Meucomentário ganha um olhar impressionado do doutor Mann. – É umaequação–digo,aindapensandonaArcádia.–Ospontossãoasvariáveis.Aimagemcoerentequevemosdelongeéasolução.

–Etl’artisteestlemathématicien–odoutorManndiz.– O artista é omatemático – eu traduzo, curtindo a ideia.Mas quanto

controleesseartista tememrelaçãoà solução? Imaginominhavidacomoumapinturaepensoamesmacoisa.

Meupé esquerdo começa a latejar, por isso, passo todoopesopara odireito.

–Papa!–Gretaestáchamandoseupai,fazendoumgestoparaqueeleváencontrarapessoacomquemelaestáfalando.OdoutorMannfazumapequenareverênciaantesdepartir.

– Então, quanto teremos de esperar até sairmos daqui? – Tylerpergunta,claramenteseminteresseemdiscutirminhasideias ilosó icasarespeitodavidaedamatemática,alémdapinturacompontilhismo.–Estouentediado.

–Estamosaquiháapenasumahora.– Uma hora no museu é tipo cinco horas no tempo normal – ele

responde.–Oqueachadeficarmosatéasnoveedarmosofora?–Ótimo.Issoterminaàsdez,poracaso.– Você deveria chamar a Caitlin – ele diz. – Diga a ela para parar no

lugarreservadodepoisdolaboratório.Estou pensando se devo criticar a ideia ou ingir que falo com ela

quandoescutomeutelefonetocardentrodabolsa.Tyleroentregaamim.Eleestáolhandoparaatelaquandoleioamensagemdetexto.

CAITLIN:NOSVEMOSNAFESTA?Olhoparaamensagemeentão,paraTyler.Merda.Quandochegamoslá,a“festa”passouaserumareuniãoíntima.Todomundoestápertodafogueiraquealguémfezcomumalatadelixo

demetal.Algunsjogadoresdefutebolestãoassandomarshmallowsemumgraveto.AndyMorgan,nossoastro,assoviaquandonosvê.

–Vocêestãoótimos!–Andychama.Tylermevira,eeufaçoumabrevereverência com meu vestido, tomando o cuidado de não apoiar pesodemaisnopémachucado.Dooutroladodoespaço,Ilanaestámelançando

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um olhar mortal. Está afastada da fogueira com um grupo de meninasfrescas, bebendo um refrigerante diet e aparentando irritação com omundo.Tylercaminhaemdireçãoaela.

– Quer um s’more? – Andy pergunta, pressionando ummarshmallowderretido entre duas bolachas quadradas, e estende naminha direção. –Háchocolateaquiemalgumlugar.

Depoisdeummontedepetiscossalgados,ummarshmallowderretidoéumatentação.

– Claro – digo a ele. – Obrigada. – Mordisco o canto da bolacha,esperandoorecheioesfriar.–Háquantotempovocêsestãoaqui?

–Hácercadeumahora–Andyresponde.–Osu icientepara IlanaseirritarporTyleraindanãoteraparecido.–SintoumaondadesimpatiaporIlana.ElaeTylerestãomaisparaolado,longedorestantedosamigosdela,nomeiodoquepareceumadiscussão intensa.Eu tentonãoolhar.–Veja,aliestáaCaitlin–Andydiz,en iandooutromarshmallownaboca.–Elaétãogostosa.

Olho para a frente e vejo Caitlin estacionando seu Jeta na rua. Meusolhos voltam para Tyler. Ilana mantém o braço dele bem seguro. Nãoparece que ele vai icar sozinho com a Caitlin hoje. Sinto que estoucomeçando a relaxar. Não me preocupa a possibilidade de Tyler meentregar, jáquedissequeeraumsegredo,masele costuma falardemaisquandobebe,oque,graçasàsuapaqueracomagarçonetedomuseu,estásendoocasodestanoite.

– Você está linda! – Caitlinme diz quando se aproxima. – Como foi oevento?

–Muitobom–digoaela.–Vocêdeviatervistoaminhamãe...–Estábrincando?–AvozdeIlana,aindamaisagudadoqueonormal,

bateemmeutímpano,emefazpararnomeiodafrase.Todosseviramnadireção dela. Ela está olhando para Tyler, com o rosto contorcido pelosusto.Tylermurmuraalgoindecifrável.

– Falar baixo? – Ilana grita. – Você termina comigo em uma festa, nafrente dos meusamigos e ainda tem a audácia de me dizer para falarbaixo?Quemvocêpensaqueé?

Olho para Caitlin. Os olhos dela estão grudados na cena que sedesdobra do outro lado da rua. Eu me preparo, esperando Ilana vircorrendonaminhadireção.

Nãofoiassimquepenseiqueascoisasseriam.Sim, achei que Tyler provavelmente terminaria com a Ilana em algum

momento. Mas não pensei que faria issohoje. Nem na frente de todo

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mundo.–Seelesóprecisoudissoparasedescontrolar,entãoorelacionamento

delesestavaruimmesmo–digo.–Seelesóprecisoudisso?–Caitlinpergunta.–Oquequerquetenhafeitoeleterminarcomela.Nãoqueeusaibao

quefoi–digorapidamente.–Porquenãosei.–Caitlinolhaparamimcomumacaraengraçada.

–E...elajávai.–AndyapontaumgravetonadireçãodeIlana,queestáindoembora.Ela abre aportado carro e entra.OlhoparaTyler. Ele estáolhandoparaCaitlin.

Issoéruim.Muitoruim.–Ei,estoubemcansada–digoaCaitlin, ingindoumbocejo.–Podeme

levarparacasa?– Justamente agora? Acabei de chegar. Além disso, você não veio

dirigindo?Viseucarroquandocheguei.– Não estou me sentindo muito bem. – De soslaio, vejo Tyler

caminhandoemnossadireção.–Achoqueeunãodeveriadirigir.–Possolevarvocê–Andyoferece,esquentandomaisummarshmallow

nograveto.–Eudisseaomeupaiquevoltariacedohoje.–Oh...tudobem.VouesperarporCate.–Caitlinolhaparamim.Elasabe

queestáacontecendoalgumacoisa.Finjonãoperceber.– Você está bem? – Caitlin pergunta quando Tyler se aproxima. Ela

colocaamãonobraçodele.Hámarcasdeunhano lado internodopulsodele.

–Estouótimo–ele respondee sorri. –Apesardeacharqueela furoumeutímpano–elediz,apertandoaorelha.

– Aquela menina tem um belo par de pulmões – Andy comentaenquantoobservaosmarshmallowsqueimando.–Querumacerveja?

–Não,achoqueporhojechega–Tylerdizaele.–Tomeicercadeumquartodeumagarrafadeuísquenomuseu.Émelhoreupararenquantoestoudepé.

–Levovocê–digoantesdeAndyoferecer.Dejeitonenhum icareiparaconversar comCaitlin. Ela e eu não trocamos amenidades. E não falamosmentiras.Então,amenosqueeuestejapreparadaparaadmitirqueestouenlouquecendoarespeitodofatodeeuterditoaonossomelhoramigoqueelagostadeledepoisdeelamedizerquenão,estánahoradedaranoiteporencerrada.

–Háumminuto,vocêestavasesentindomalparadirigir–Caitlindiz.–Melhorei–digo.

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–Nosúltimossessentasegundos?–Ty,vocêestápronto?–pergunto, ingindonãoouvir.Eleestáocupado

enfiandomarshmallowsemumgraveto.–Umsegundo–elediz.–Estoufazendoumpetisco.Caitlinmepuxaparaolado.– O que está acontecendo com você? – ela pergunta, falando baixo. –

Estáagindodeumjeitobizarro.– Nada! – digo animada. Um pouco animada demais. Caitlin olha para

mimcomsuspeita.–Nãoacreditoemvocê.Issotemavercommeustextos?Vocêosleue

detestou?– Se eu os detestasse, diria a você – respondo. – Ainda não os li.Mas

vouleramanhã.–Prometo.–Então,porqueestáagindodessemodoestranho?–Nãoestouagindodemodoestranho– insisto, tomandoo cuidadode

evitaroolhardeCaitlin.–Sóestoucansada.–Certo,vamoslá–Tylerdiz,comabocacheiadepedaçosdechocolate.

Temummarshmallowpresoemcadamindinho.–Tragaasbolachas.–Certo,tchau!–digo,paraninguémemespecial.Eentão,sigoatémeu

carro.Assimquenosafastamosdafesta,eumesento,relaxando.–Porqueestásendoestranha?–Tylerpergunta.Pelomenos,achoque

foioqueeledisse.Comosdoismarshmallowsqueen iounaboca,édi íciltercerteza.

–NãopodecontaràCaitlinoqueconteiavocê.–Nãoposso?– Estou falando sério, Tyler. Ela enlouqueceria se soubesse. Prometa

quenãovaicontaraela.–Nãovoucontaraela–elediz.–Massevocêestivessetãopreocupada

comareaçãodela,porquemecontaria?–Porqueeuqueriaquevocê izessealgumacoisa–digo.–Sutilmente.–

E eu sabiaquevocênão tomariaumaatitudeamenosque soubessequetinhaumachance.

Tylernãorespondenahora.–Não...–eledizdepoisdeumminuto,comaspalavrasmeioarrastadas.

–Eu teria feitoalgodequalquermodo.–Eleolhaparamim,eentãopelajaneladopassageiro.–Sabe,nãomeentendamal;semdúvidaémaisfácilsaber que ela se sente da mesma maneira. Mas eu não deixaria o anopassarsemdizeraelacomomesentia.

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Olhoparaele,seuperfililuminadopelaluzdalua.Parecemaisvelho,decertomodo.

–Então,vocênemsequerprecisavademim–brinco.Équandoescutoassirenesaproximando-sedooutrolado.Pelomenos,

é o que acredito que seja até dobrarmos a esquina e vermos as luzesvermelhas.Otrânsitoparoudosdoislados.

– É o carro da Ilana – escuto Tyler dizer. Ele está olhando para aMercedes branca no canto. Há um caminhão vermelho e vazio do outroladodarua.BombeiroseparamédicoscercamoquesobradaMercedes.

–OndeestáIlana?–ouçoamimmesmasussurrar.Tylersóapontaquandooparamédicolevantaumcorpopelopara-brisa

docarrodeIlana.

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7(Aqui)segunda-feira,12deoutubrode2009(meutesteparaoShowdeCalourosdaYale)

Gritoquandoelespassamamacapormim,masnenhumsomsai.Corroatrásdeles,quefechamaportanaminhacara.OlhoparaocarroevejoIlanadeitadanoasfalto,seucorpinhoencolhidocomoumabonecadepano.“Espere!”,eugritoquandoaambulânciaseafasta.Tentocorreratrásdela,masmeuspésestãocongelados.

–Abby.–Avozéurgente.–Abby,acorde.Fechoosolhos.Vocêestásonhando,digoamimmesma.–Vocêestásonhando.–Outravozdiz.–Não.–Ouçomeumurmúrio.Eentão,acordo.Pisco os olhos, emeu quarto aparece. Marissa está ajoelhada aomeu

lado, com as mãos em meus ombros. Os olhos estão arregalados depreocupação.

–Vocêestavagritando–eladiz.Eusóconcordomexendoacabeça.Minhagargantaestáarranhando.–Comoquevocêestavasonhando?–elapergunta.Mexo a cabeça, desta vez para negar, incapaz de tirar a imagem do

corpoencolhidodeIlanadamente.– Meu telefone – sussurro, rouca. – Pode me dar meu telefone? –

Apontoparaaminhamesa,ondeodeixeiligado.–Claro.–Marissaolhaparamimcompreocupação,eentão icadepé.

Tiraotelefonedocarregadoreoentregaamim.–Estareinasala.–Fechaaportadelicadamenteaosair.

Pela primeira vez, quero menos informações, não mais. Não querosaber que Ilana sofreu um acidente de carro horroroso na noite em queTyler rompeu com ela. Nemqueminha paralela é omotivo pelo qual eletomou essa atitude. Mas eu já sei dessas coisas. As lembranças estãocosturadasemminhamente,clarasefortes.OquenãoseiéseatentativademinhaparaleladebancaroCupidocustouavidadeIlana.

Comdedostrêmulos,façootelefonema.Caidiretamentenacaixapostal.É segunda-feira. Caitlin está em aula até 12h45min. São 10h15min

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ainda.Olhando para a tela, acesso as fotos. Todas estão ali. Eu deveria me

sentiraliviada.Masmesintopioraovê-las.EseaIlanaestivermorta?Eseeuestiveraquisorrindoparaasfotosenquantoela...

Porfavor,Deus,nãopermitaqueelaestejamorta.Penso em telefonar para o Michael, mas não tenho forças para ingir

que meu sonho foi só um sonho, pois sei que não foi. E apesar de nãocontar a ele, ele vai tentar me animar assim que perceber que estoualterada,enãomereçomesentirmelhor.NãoatésaberoquehouvecomIlana. Saio da cama e vou para a mesa com a intenção de procurar oacidente na internet, mas meus dedos apenas sobrevoam o teclado. Nãoconsigo. Não consigo ver as fotos do acidente. Não posso ler as notíciassensacionalistas de alguns jornais. As imagens em minha mente já sãoterríveisosuficiente.

MinhavisãoembaçaquandovejoTylervomitandonagramaquandoaambulância de Ilana parte. O olhar do policial enquanto nos conta o queaconteceu.Ilanaestavafazendoacurvaquandoumcaminhãoatravessouapista, a quase o dobro da velocidade permitida, e a atingiu de frente. Omotorista estava algemado dentro de uma viatura da polícia quandochegamos,desmaiadocontraovidro,apenascomamãoquebrada.

Outralembrançasurge.Pareceumalembrançaminha,masseiquenãoé.DepénoGrandLobbydoHighMuseum,mentindoparaTyler.

Porqueelafezisso?Porqueminhaparalelafariaalgoassim?Edaíseelatinhaboas intenções?Seráquenãopercebeuoqueestavaemjogo?“NãobanqueoCupido”vemlogoabaixode“Nãominta”nocódigodasmelhoresamigas. Com letra maiúscula, principalmente se sua melhor amiga forCaitlin AlexandraMoss. As coisas são claras com ela. Ou são ou não são.Pretonobranco.Eparaalguémqueacreditaqueareligiãoéumamuletaparatolosesolitários,ocódigomoraldelaéabsurdamenterígido.

Arfresco.Precisodearfresco.Vistoasroupasdecorridarapidamente,eentãopegomeutelefoneeas

chaves. Marissa está à minha espera na sala, com uma caneca de algoquente. Ela não bebe café nem leite nem nada que vendam no Durfee’s,por isso,montouum cantinhobarista pertoda janela, ondeprepara suascriaçõesdescafeinadascomamáquinadecaféespressoqueospaisderama ela de presente de formatura. Ela prepara uma bebida muito boa debaunilhacomleitedesoja.Masseucappuccinodecháverdecomleitedeervas,poroutrolado,temgostodegrama.

– Camomila com soja e stevia – ela diz, me entregando a caneca. –

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Imagineiquevocêprecisassedealgocalmante.–Obrigada.–Tentosorrir.–Vocêestábem?–elaperguntacomdelicadeza.–Aquelesonhoparece

tersidoruim.Querfalarsobreele?Eumerecuso,balançandoacabeça.–Achoquevoucorrer–digo,pousandoacanecanamesa.–Maspenseique...falteiàaulaporquepenseiquepudéssemosensaiar.

Seutesteéhoje,não?Merda. Tenho que estar na escola de interpretação às duas da tarde.

Concordodistraidamente,preocupadademaiscomagravidadedoacidentepara me sentir aliviada por aindater o teste – uma parte de mim tinhacertezadequeeleseriaapagadocomapróximamudançaderealidade,epor isso eu vinhapostergando sair doYDN.MasparecequeminhadecisãodeparticipardoShowdeCalourosestánalistacrescentedefatosrecentesqueaindanãoforamapagados.Caitlindizquea listafazsentido;comoeumantive as lembranças, há certas coisas que tenho feito desde a colisãoqueminha paralela não consegue fazer com amesma facilidade. “Há umdesligamento casual”, Caitlin disse quando pedi que explicasse. “Suaparalelanãopodedesfazero fatodequevocê guardou suas lembranças,então ela não pode desfazer as coisas que aconteceram porque vocêdesfez.”Aindanãoentendobemessaregra,masnãovoudiscutir.

–Naverdade,achoqueestoubem–digoaMarissa.– Já repassei issotantasvezes,achoquefazerdenovovaimedeixarempânico.

–Évocêquemsabe–eladiz.Masvejoqueesboçaumaleveirritaçãonorostoquenuncaseperturba.

Dou mais um passo em direção à porta, e então paro. De todos ascolegasdequartocomquempoderiaacabar,recebiagarotaqueégentil,engraçadaegenerosa,dispostaamataraulaparaensaiarcomigo.Ela,porsua vez, recebeu a garota esquecida que inventa desculpas para seucomportamentocadavezmaisesquisito.

–Sintomuitoporsairassim–digo,virando-me.–Achoqueestoumeioabaladaporaquelesonho.

Airritaçãodesaparece.– Entendo,Ab. Faça o queprecisa ser feito. Apenas lembre: foi só um

sonho.–Elasorridemodoreconfortante,osolhoscastanhosarregaladosecalorosos.

Ah,Marissa.Comoqueriaquevocêestivessecerta.Controlando as lágrimas, subo a Hillhouse Avenue em direção ao

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LaboratórioSterling,ondeaconteceaauladequímicadeCaitlin.Pontuadapormansõesdoséculo19eàsombradeumenormecarvalho,Hillhouseéumadasruasmaisbonitasdocampus.Masmalnototudoisso.SóconsigoverIlana.

Porfavor,permitaqueelaestejabem.Quando chego a Sachem Street, desço a Prospect e faço a volta, com

maisrapidezdessavez.QuandochegoaSachem,estouofeganteesuando,eaindapensandonoacidente.Então, façoavoltapelaterceiravez,eumaquarta. Depois da quinta, meus pulmões estão ardendo e meu coraçãopareceprestesapulardopeito,masmeucérebrocontinuafixoemIlana.

Suada e cansada, estaciono em um banco e espero. Procuro meconcentrar emminha respiração, em contar cada vez que inspiro,mas oexercício é inútil. Minha mente está inquieta, repassando aquelesmomentoshorríveis,semparar,comdetalhesmínimos.

Meu telefone toca, e me traz de volta ao momento. Não me mexo hámaisdeumahora.

–Ei!–avozdeCaitlinestáanimada.Feliz.Emeenchedeesperança.–Nãoéoseuteste...

– Ilana. – A linha icamuda. – O que... o que aconteceu com ela? – Aspalavrasparecemareiaemminhagarganta,maseuasforçoasair.Tenhodesaber.–Depoisdoacidente.Elaestá...

Caitlinnãodiznada.–Elaestámorta–sussurro.–Ai,meuDeus,elaamatou.–Espere,espere.Quemamatou?–Minhaparalela–eudigo.–Foiculpadela.EagoraIlanaestámorta.– Abby, a Ilana não está morta. Ela icou em coma durante algumas

semanas,masnãomorreu.Meu sangue lui com alívio. Então,meu cérebro registra o que Caitlin

acaboudedizer.–Maselaestavaemcoma?Ela...–Houvedanosaocérebro–Caitlindizcomcuidado.–Masvamosfalar

sobreissopessoalmente.Ondevocêestá?– Na esquina da Hillhouse com a Sachem – respondo, com lágrimas

descendopormeurosto.Danosaocérebro.–Jáestouindo–Caitlindiz.AindasegurootelefonenaorelhaquandoCaitlinchega,semfôlegopor

tercorrido.–Danosaocérebro–repito.– Poderia ter sido bem pior – ela diz, sentando-se ao meu lado. –

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Problemas de movimento ou fala, perda de memória, mudanças depersonalidade.Maselanãosofreunadadisso.

–Oqueelasofreu?–Amemóriarecentedelaestáprejudicada–Caitlindiz.–Elaconsegue

se lembrar de coisas que aconteceram antes do acidente, mas temdificuldadeparaselembrardecoisasqueaconteceramdepois.

Ficoquietaenquantoprocessoessainformação.– Não é debilitante – Caitlin continua, tentando parecer animada. –

Sabe,foidi ícilfazerasprovas,então,terminarosestudosfoiumdesa io.Eela tevequedesistirde interpretar.–Controloas lágrimassemconseguirimaginar Ilana fazendo outra coisa. Por mais que fosse desagradável navidareal,eracativantenopalco.–Maspeloquesoube,elaestáindomuitobem – Caitlin diz. – Estámorando comuma tia na Flórida. Tylermantémcontatocomela,euacho.

O“euacho”chamaminhaatenção.CaitlindeveriasaberseTyleraindafalacomIlana.

– Não compreendo por que você pensou que sua paralela a haviamatado–Caitlinestádizendo.–Porquevocê...

–Quandofoiaúltimavezquefaloucomele?–Comquem,comTyler?–Caitlinolhaparamimcomestranheza.–Não

sei,umpoucoantesdevoltarmosàsaulas?–Consigosentir,literalmente,acoresvair-sedemeurosto,descendopormeupescoço.

–Ah,não.Não,não,não.–Abby,oquefoi?–Vocêsdeveriamestarjuntos–digo.–Vocêsdeveriam...–Uau.Oquê?Tipo,umcasal?–Caitlinpisca,surpresa.–Desdequando?–Agosto.–Olhoparaascostasdasmãos.–NafestadeMaxLevine.Ty

subiuemumacadeiraedisseatodomundoqueeraapaixonadoporvocêdesdeonovoano.

–Ésério?Eleusouapalavra“apaixonado”?–Caitlinestáolhandoparamim,assustada.

– E você também – digo delicadamente, e o pesar me sufoca. – Nãonaquelemomento.Masháduassemanas,quandoeleveiovisitar.

–Eleveiomevisitaraqui?Estávamostãosériosassim?–Elabalançaacabeçasemacreditar.–Minhanossa.

Eusóconcordo,tristedemaisparacontaroqueeladissequandoelefoiembora.Queelaconseguiasevercomelepelorestodavida.Ouoqueelemedissenanoiteemquechegou.Queeraumaversãomelhordesimesmoquandoelaestavaporperto.

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–Uau!–Caitlinexclamadenovo.–Elaéomotivopeloqualvocêsnãoestãojuntos–digodemauhumor.

– É culpa da minha paralela. Ela pensou que estava ajudando, masestragoutudo.

–Como?–Caitlinnãopareceirritada.Sócuriosa.–EladisseaoTylerquevocêgostavadele.Nanoitedobailedaminha

mãe,querdizer,damãedela,naHigh.FoiporissoqueeleterminoucomaIlana.–Aspalavrasvieramdeumavez.–Seelenãotivessefeitoisso,Ilananão teria saído daquela festa como saiu, irritada e triste, e o acidente... –Minhavozfalha.

– Abby, Ilana levou uma pancada na cabeça de um cara embriagadoqueestavaacentoevintenumtrechodeoitentaquilômetrosporhora.Oacidentenãofoiculpadeninguém,sódele.–Desviooolhar,sabendoquenão é tão simples. Caitlin segura minha mão. – Escute, sua paralela nãocausouaqueleacidente.

–Masporqueelatevequementirparaele?–Araivacrescedentrodemim.–Quesedanemosmotivosdela.VocêdisseaelaquenãogostavadeTyler.Maselatevequeacreditarnaquilo...

OsolhosdeCaitlinseiluminam:–Oquê?–ElatinhacertezadequevocêeTylertinhamque icarjuntos.Certeza.

Parecemaluquice,maséquasecomose...–Elasoubesse.–Caitlineeunosentreolhamos.–Masissoéimpossível,certo?–Euaindaacreditonoimpossível?Caitlin icadepéecomeçaaandardeumladoparaoutro,comossaltos

dabotabatendonacalçada.–Porquenãopoderiaserdosdoisjeitos?Porqueelanãopoderiaestar

recebendo as suas lembranças como você está recebendo as dela? Nãotodaselas, claro...mas fragmentos. –Aanimaçãonavozdela sóaumenta.Ela caminhamais depressa. – Faz sentidoque ela não reconhecesse essainformaçãocomo lembrança... comopoderia, jáque temquever comalgoque ainda não aconteceu em seu mundo? Então, o cérebro dela estáguardandocomoalgomais.Premonição.Intuição.

– Mas essa premonição estava errada – eu digo. – Você e Tyler nãoficamjuntos.Nãonomundodela.

–Apremoniçãonãoestavaerrada–Caitlindiz.–Vocêdissebem:Tyeeuteríamos icadojuntossesuaparalelanãotivessetentadoorquestrarascoisas.

Eu imagino a fotono celulardeCaitlin, tiradadoisdias antesde ela ir

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paraYale.ElaeTylerestãoemumamontanha-russanoSixFlags,sorrindocomoidiotas.Idiotasapaixonados.Agoraaquelafotojásefoi,assimcomoomomentoemquefoitirada.Quemdiriaqueodestinofossetãofrágil?

–Talveznãoseja tardedemais–sugiro.–VocêeTylerpodiamtentar.Elepoderiavisitarevocêpoderia...

Caitlinsóri.–Achoqueessebarcopartiuháumano.–Masvocêstêmque icarjuntos–digo.Aspalavrasparecemtolas,até

para mim. Espero que Caitlin ria de novo, mas ela só me olha de modopensativo.

–Eudissequeoamava?–elapergunta.Confirmomexendoacabeça.Elaficaquietaporalgunssegundos.– Jápenseinisso–elaadmite,comorostocorado.–Comoseria.–Seu

rostoficamaiscorado,eeladesviaoolhar.–Ligueparaele!–digo,entregandomeutelefone.Elaacenaparaafastaroaparelho.–Não seja tola – ela diz. –O que está feito, está feito. Alémdisso, não

teriaduradomesmo.–Elapegaotelefoneparaverahora.–Émelhoreuir.Nãoqueroperderotrem.

–Tremparaonde?–NewLondon.VoumeencontrarcomodoutorMannparaconvencê-lo

de que ele precisa de um assistente de pesquisa. – Ela aponta para orelógiodeseutelefone.–Seutestenãoéàs14h?Jásão13h54min.

–Ah!–Eumelevantodobanco,quasetorcendootornozelonacalçadadesnivelada.

–Boasorte!–CaitlingritaparameincentivarenquantodesçocorrendoaScienceHill.

–Nome,porfavor?–Umhomembaixosegurandoumapranchetaestá

naportaolhandoaspessoasentrarem.–AbbyBarnes–respondo,ofeganteportercorrido.Eleriscameunome.– Sente-se lá dentro. Eles chamarão seu nome quando estiverem

prontospararecebervocê.Uma avaliação da galeria do teatro deixa minhas palmas suadas e

minha garganta desconfortavelmente seca. Deve haver centenas depessoasaqui,epelomenosdoisterçosdelassãomeninas,etodasparecematrizes. Cachecóis compridos, chapéusvintage, botas modernas. Eu,

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enquantoisso,estouusandoshortdecorridaeumablusademoletomcommanchasdeáguasanitárianamanga.Nadaderoupaperfeitaparaoteste.ComoMetamorfoseséumasériedeonzevinhetasdamitologiagrega,meuplano era canalizar Afrodite ao estilo grego. Mas o vestido branco queencontrei no brechó ontem ainda está pendurado atrás da porta demeuquarto,eestoudecalcinhapreta.Umameninadesandáliasestilogladiadoreumablusadecamponesasorriquandopasso.Sintoansiedade.

Respire,Abby.Respire.Osatores icamnervososantesdeseustestes.Éperfeitamentenatural

e não é algo comque se preocupar. O nervosismo faz parte do processo.Bretmedisse,certavez,queeleaindavomitasemprequetemteste(eelenão fezum testedeverdadedesde seuprimeirogrande ilme).O fatodeestaransiosanãoquerdizerquevouvomitar.

Vouvomitar,claro.Jáaconteceu.Napeçadosextoano.Meupapelerapequeno:duasfalas.

Enanoitedaapresentação,meesquecidasduas.SeasenhoraZiffrennãotivessefeitootesteparaArcádia,umaparteobrigatóriadenossasaulasnooutonopassado,eununcateriapisadonopalcodenovo.Todomundo icouchocado quando ela me deu o papel principal. Todos esperávamos queseriaIlana...

Sintooestômagorevirar.Oh,Ilana.–Estousentadaaquitentandoimaginarseasbolasdelesãodessacor.

– Diz uma voz ao meu lado. A dona dela está sentada, com as pernascruzadas, no assento ao meu lado, com a última edição daUSWeekly nocolo. Os cabelos pretos estão cortados bem curtos, e ela usa uma meiaarrastão preta e coturnos com um vestido loral que parece pertencer àavódealguém.

OlhoparaarevistanocolodelaevejoBretsorrindoparamim.Apesardehavermuitasrevistascomorostodelenacapa,nãovejoumafotodelehámaisdeummês.CometioerrodedigitaronomedelenoGoogleumdiadepois de meu aniversário, e passei as quatro horas seguintes lendofofocasde celebridades e comendoNutella.Apesarde ter os sentimentosdivididosarespeitodaexperiênciaenquantoavivia,foidi ícilverfotosdemeusamigos–principalmentedeKirby,queeraumadesconhecida,comoeu,antesdeparticipardoelencodeEA eagoraestáemtodososcantos –enão sentir uma pontada de arrependimento por não ter mais a vida deantes.

– Olhe, não tem como esse bronzeado ser real, o que quer dizer que

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alguém deve ter feito bronzeamento a jato nele – a garota ao meu ladocontinua falando. Ela levanta a revista parame dar uma visãomelhor. –Consegue imaginar essa conversa? “Senhor, por favor, levante sua malaparaeupodermelhorar,quimicamente,otomdoseusaco”.–Elari.–SouFiona,apropósito–eladiz,estendendoamão.Temumatatuagemdefolhanoladointernodopulso.

–Abby–respondo.– Para quais outras peças você está ensaiando? – Fiona pergunta,

fechando a revista e en iando-a na bolsa. Muda de assunto assim, dostestículosaoteatro.

–Sóestousabendodesta–admito,sentindo-meumafraude.–Então,vocêprecisadisto–eladiz,pegandoumfolhetoazuldabolsa.–

Éumalistadetodasasapresentaçõesdestesemestre.Eserealmenteestálevandoainterpretaçãoasério,deveentrarparaoDramat.

–Éumclubede interpretação,certo?–EupoderiacolarumcartaznatestanoqualselêEUSOUUMAIMPOSTORA.

–AbbyBarnes?–umhomemmechama.– Sou eu – digo e ico de pé.Não ique nervosa, não ique nervosa, não

fiquenervosa.–Arrase!–Fionasussurra,cerrandoospunhos.Comaspernas tremendo, suboosdegrausatéopalco,emeaproximo

deumrapazcompeitoralavantajadoeóculosdearodemetal.Eleabreumsorriso con iante voltado diretamente para a terceira ila, onde o diretor(um cara indiano que veste uma camiseta do “Time Jolie” rosa) e aprodutora (uma loira grande com prendedor de cabelo lilás) estãosentadossegurandoxícarasdecaféeiPhones.

–Podecomeçarquandoquiser!–meucompanheirodepalcogrita.Odiretorsorricomserenidade.– Não somos surdos, e os personagens também não – ele diz. – Fale

baixo.–Ótimo!–Aindagritando.Odiretoreaprodutoratrocamumolhar.Fionafazsinaldepositivocom

asduasmãos.– Quando estiverem prontos – o produtor diz. – Emais uma vez, não

precisamgritar.Infelizmente,ogritoéseujeitonormaldefalarouumaafetaçãoqueele

nãodeixadelado.Dequalquermodo,eleomantémenquantoduraoteste.Façoomelhorparanão irritá-lo.Eleestá fazendoopapeldeErisictão,

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que é bem adequado, devido ao tamanho. Amaldiçoado por deuses comuma fome insaciável depois de derrubar uma árvore sagrada, Erisictãocomeasimesmo.

–Postaremosalistadoelenconaportadoteatroàssete–APrendedorLilás nos diz com um sorriso suave no meio da nossa primeira cena. –Obrigadapeloteste.

–Obrigado!–Gritãogrita.Nãotemcomonãoservítimadessedesastre.FionaeeuvoltamosaoOldCampusjuntas.– Você estava ótima – digo a ela, com sinceridade. Ela se apresentou

depoisdemimearrasoucomoDemetra,adeusadacolheita.Ficamosatéas cinco para ver o resto dos testes, e nenhuma das outras meninasconseguiusesairtãobem.

–Evocêtambém!–Fionadiz.–Ah,atéparece.–Estoufalandosério–eladiz.–Vocêmanteveacalma,mesmoquando

gotículasdesalivarespingaramemseurosto.–Fiona!–Umhomemchama.Umcaraenormecomumacamisagrande

como um lençol está acenando do outro lado do pátio. O braço dele é dotamanhodaminhacoxa.

–Fiqueaí!–Fionagrita.–Meunamorado.Esim,aquestãodotamanhoé um problema na cama. Certa vez, tentei montar nele e desloquei otendão.Ei,quercomerconosco?VamoscomerhambúrguernoDoodle.

Pensar em conversar com Fiona e o namorado dela enquanto pensosem parar no meu teste é ainda menos interessante do que pensar emcomer um hambúrguer oleoso agora, e essas duas coisas sãomuitomaisinteressantesdoqueaimagemque izdelamontandonele,agoramarcadaemminhamente.

– Eu adoraria – minto. – Mas prometi a minha colega de quarto quejantariacomela.

– Beleza – Fiona diz. – Outra hora, então. Olhe. – Ela en ia a mão nabolsa e puxa um cartão com as frases de seu teste escritas na parte detrás.–Meue-mail–eladiz,anotando-onapartedetrás.–Paraocasodeeunãovê-lamaistarde.

–Vamoscombinardesair!–digoanimadamente,imaginandonósduasjuntasemumfilmebacanacomreferênciasliteráriasobscuras.

Quando volto aomeu quarto, tem um recado de Marissa na mesa decanto.

Jantarnorefeitórioc/asmeninasdooutrolado.Venhanosencontrar!

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Largoabolsanochãoemejogonosofá,cansadademaisparacomer.Oque eudeveria fazer é ler meu texto de iloso ia. Tenho um exame naquinta-feiraenemabrimeuslivros.Émuitofácilprocrastinarquandonãose sabe se estará presente para fazer o teste para o qual está sepreparando.

Viro as páginas da primeira parte, uma compilação de textos sobrelivre-arbítrio,predestinaçãoeintuição,eanalisoasperguntasnofim.OqueCalvino quis dizer quando disse que Deus “ordena livremente o queacontece”?Nossa.FilosofiadeTeologiapareciaumaboamatériaquandoeuestava escolhendo as aulas, mas agora o assunto se tornou meiodesconfortável.Será que Deus sabia que Ilana se envolveria naqueleacidente?Foipredestinado?

Seráquetudo isso–acolisão,aconfusão,o fatodeeuterpreservadoaslembranças – aconteceu por um propósito especí ico ou será só maluquicecósmica?

Queroacreditarqueexisteummotivoportrásdissotudo,masédi ícilpensar emum. SeDeus precisasse de ajuda com alguma coisa, acho queele não apostaria suas ichas na garota quemal consegue se lembrar derezar(amenos,claro,quandoestáestudandoparaumaprovasuperdi ícil.Porfavor,Deus,eunãopossoreprovar).

Sentindoquemeusolhos jánãose ixam,deixode ladoa leiturasobreteologia e assisto a episódios deThe Hill. Um episódio e meio depois,Marissa entra pela porta, trazendo um copo de plástico cheio de frozeniogurte,cobertocomcerealepedaçosdebolacha.

– Pensei que talvez você precisasse de um petisco – ela diz, e meentregaocopo.

–Obrigada–respondo,percebendoqueestoumorrendodefome.–Comofoioteste?–elaperguntaquandoen ioumacolheradagrande

deiogurtenaboca.Então,tiraossapatosesesentanosofáaomeulado.– É... – digo, com a boca cheia. – Não sei. Hum, que gostoso. Quer um

pouco?Elabalançaacabeça.–Não,obrigada.–Gordura?– Os três – ela responde, fazendo careta. – Xarope de milho rico em

frutose,gordurastranseaspartame.–Hum,bom.–Enfiomaisumacolheradanaboca.–Ei,possopergutarumacoisa?–Claro–respondo,mastigandoumabolacha.

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–ACaitlingostadoBen?Paro no meio da mastigação. Meu pensamento volta para a noite do

jantar de aniversário. Na versão de que me lembro, Caitlin estava comTyler, mas ela e Ben estavam muito à vontade na mesa. Marissa nãopareciaagircomosetivessepercebido.Masascoisasmudaramagora.Porcausa do que aconteceu nomundo paralelo ontem, Caitlin estava solteiranomeuaniversário.SeráqueapaqueraentreelaeBenestavamuitomaisintensa?Marissa ainda está esperandoque eu responda àpergunta.Nãorespondoeeladesanima.

–Elagosta,nãoé?Elagostadeleevocêestácommedodemedizer.Eusabia.

– O quê? Não! Caitlinnão gosta do Ben – garanto a ela. Depois deestragar o casamentode Craig naquele verão, Caitlin adotouumapolíticadetolerânciazeroparacarascomprometidos.Porisso,sentiunecessidadedeesperarquatrodiasdepoisdeTyler terminarcomIlanaparasaircomele. Os limites dos relacionamentos signi icam algo diferente para ela doqueantes.Apaixonar-seporalguémquenãodissequetinhaesposa(pelomenos,nãoatéessaesposatelefonarparaCaitlin,exigindosaberporqueomarido tinhaonúmerode telefonedelana agenda) estragoualgodentrodela, e não havia nada que eu pudesse fazer para consertar. Ela nãomedeixou tentar. Depois de chorar por causa dos detalhes sórdidos um diadepoisdoacontecido, tristeearrependida,Caitlinme fezprometernuncamaistocarnoassunto,eeunãotoquei.

Marissaparecealiviada.–Imagineiquenão,masacheiquenãocustavanadaperguntar.–Vocênãoprecisasepreocuparcomnadadisso–digocom irmeza.–

Caitlinnuncagostariadonamoradodeumaamiga.Nunca.Marissasorri.–Porfalaremnamoradosdeamiga...comoestáoMichael?–OqueoBenlhedisse?–exijosaber.–Nada! – ela insiste. Ergo as sobrancelhas, sem aceitar. – Certo, tudo

bem.EledissequeMichaeldisseaelequevocêstinhamalgoo icialagora.Fiqueisurpresaporvocênãotermecontado.Sóisso.

–Éporqueénovidadeparamim!–AscoisascomoMichaelestãoindobem,masnãopenseiquechegaríamosàpartededarnomeàcoisa.–“Algooficial”?Oqueissoquerdizer?

–Tenhocertezadequequerdizerqueele é seunamorado–Marissaresponde.

– Mas só tivemos dois encontros de verdade – eu digo, e então me

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retraio.Opasseiodebarco.–Euquisdizertrês.–Edaí?Meutelefonetoca.– Viu? –Marissa aponta parameu telefone. E a tela está acesa com o

nome de Michael. – Ele está ligando para saber como foi o teste. Umaatitude de namorado. Aceite. Vocês são um casal. – Meu coração aceleraum pouco ao pensar naquilo. Como seria permitir que eu me apegasse,parardemepreocupar comumanova realidadequeo afaste?Talvez euesteja pensando demais. Em todos os relacionamentos, existe o risco deacabarantesdoquequeremos.Éanaturezadoamor.

Amor.Meucoraçãoseaceleradenovo.–Eentão?Comofoi?–Michaelperguntaquandoatendo.–É...–Vocêsabequeissonãoéumarespostadecente,nãoé?–Nãoseibemsetenhoumaresposta–digoaele.–Ocaracomquemfiz

otestegritavaecuspiadurantetodaacena.Nãoestoumuitootimista.–Tenhocertezadequevocêarrebentou.Aquehoraselesvãopostara

listadoelenco?–elepergunta.–Sóàssete–digo.–Jápassaramcincominutos.– Uau! – Saio correndo do sofá. – Telefono para você! – Sem esperar

umaresposta,jogootelefonenamesaesaiopelaporta.–Boasorte!–Marissadiz.Apesar de não esperar vermeu nome na lista do elenco, ainda assim

ico irritada quando não o vejo. Nem mesmo um papel secundário. Oburburinhoda conversadaspessoas reunidasno teatro se intensi ica, asvozes se tornam indecifráveis. As palavras na lista do elenco icamembaçadas,comoseeuasestivessevendoatravésdeumvidrosujo.Olhopara a calçada e uma gota de água aparece ali, quase invisível no brilhoamarelo fraco da lâmpada acima da entrada do palco. Observo o pontomolhado, resistindo aos corpos queme empurram, tentando imaginar deondeeleveio.Alguémmurmura:“Elaestáchorando”,esóperceboquandotocomeurosto.

Acalme-se,Abby.Ésóumapeçaidiota.Mas não é, não paramim. Esse seriameumomento de de inirminha

identidade. Meu momento de libertação. Ser chamada para umadeterminadapeça–cujonomequerdizer“transformação”–deveriaserocomeçodaminhametamorfose,deixandodeseraridículaAbbyqueaceitaas coisas como são eme transformando naAbby que de ine seu próprio

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futuro.Nãodeveriaserassim.Pensei exatamente a mesma coisa três meses atrás, na noite em que

descobri que o estúdio havia prolongado a produção pela terceira vez,eliminando qualquer chance de eu começar a faculdade no tempo certo.Estavasentadaemumbanquinhonapartedetrásdoestúdio,observandodois homens mudarem a fachada do prédio do outro lado da rua, quedeixoudeserumbancoepassouaserumapadaria.Tinhasaídodosetefuipararali,emumaruaquehaviavistoemcentenasdefilmes,masnuncana vida real. Claro, nos ilmes, nunca vemos que a estrada simplesmentetermina.Nãolevaalugarnenhumnemseligaanada.Eumelembrodeterpensado nisso enquanto observava os homens do outro lado da ruasubirememumcupcakegigantepertodaportafalsadoprédio.Aspessoasacham que essa estrada leva a algum lugar. Elas não percebem que é umarua sem saída. Eu não havia percebido que estava chorando até meutelefone tocar. Quando o apertei contra o ouvido, as teclas estavammolhadas.

Assimqueescuteiavozdomeupai,comeceiachorar.– Não é o caminho – icava dizendo, com as palavras misturadas às

lágrimaseo líquidoquesaíademeunariz.–Nãodeveriaserassim.–Eume lembro de ter sentido que tudo pelo que havia batalhado tinha sidolevado.Meupaiviaascoisasdemododiferente.

–Caminhospisadossãochatos–eledisse.–Aproveiteodesvio.Mascomodiferenciarumdesviodeumaruasemsaída?As pessoas ao redor do teatro estão indo embora. Toco meu rosto

molhado pelas lágrimas, contente por estar escuro, e olho ao redor àprocuradeFiona,desejandoparabenizá-laporterconseguidoopapel(elaconseguiuodeprotagonista).Maseladevetervindoevoltado.

Enquanto passo pelas pessoas que ainda estão reunidas na calçada,tentandonãoparecertriste,ouçoumhomemmechamando.

– Abby! – O diretor está sentado na escadaria do teatro, longe daspessoas,fumandoumcigarro.Eleacenaparaqueeumeaproxime.

–Oi–eledizquandochego.–Ótimotestehoje.Sem saber se ele está sendo sincero, respondo com um “Obrigada”

vago.– Tive motivos para não chamar você – ele disse, suas palavras

pontuadasporbaforadasdefumaça.–QueroquevocêfaçaumtesteparaaApresentaçãoPrincipaldaPrimavera,eosensaioscomeçamemalgumassemanas.

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– Oh – tento processar a informação. Não sei bem o que é a“ApresentaçãoPrincipaldaPrimavera”,masaspalavras “apresentação”e“principal”melevamaacreditarquesetratadealgogrande.–Vocêseráodiretor?

Elenegacomacabeça.– Estarei ocupado com esta. Mas você seria perfeita para o papel da

Thomasina.–ThomasinaCoverly?Elesorri.–Vocêconheceapeça.Eu me sinto abalada demais com a coincidência para responder de

modocoerente.–Entãoeuestava certoa respeitodevocê serperfeitaparaopapel–

ele diz. – Os testes acontecerão uma semana antes do Dia de Ação deGraças. Voudizer ao diretor para dar umaolhada emvocê. – Ele larga ocigarro no chão e pisa nele. – Tudo de bom – ele diz, e então dobra aesquina,desaparecendonassombras.

– Obrigada – respondo, apesar de ele não estar ali para ouvir. Então,olhoparaocéuedigodenovo.

Arcádia.De todasaspeçasqueelepoderia ter sugerido,pegouaquelaquemudouaminhavida.Umahistóriasobrealigaçãoentreopassadoeopresente,aordemeocaos,odestinoeolivre-arbítrio.

VocêseriaperfeitaparaopapeldeThomasina.Umajovemqueacreditavaquenadaeraporacaso,queacreditavaque

tudo–incluindoofuturo–poderiaserreduzidoaumaequação.Nãoparecemaistãomaluco.

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8(Lá)quinta-feira,30deoutubrode2008(umdiaantesdoDiadasBruxas)

–Ai,vamos,depressa!–Gritoparaocarroquebrecaàminhafrente.Éclaroquenodiaemqueprecisoestarbemcedonaescola,caiumachuvatorrencial.Saídecasaháseisminutoseaindanãopasseipeloprimeirocruzamento.Ossemáforosdevemestardesligados.Osraioscortamocéuemzigue-zague.Eumepreparoparaotrovão,mas,mesmoassim,meassustoquandoeleocorre,algunssegundosdepois.

Orelógionopainelmudade7h16minpara7h17min.Droga.AauladerevisãododoutorManncomeçouhádoisminutos.Comnossoexamedaquiacincohoras,essaéaminhaúltimachancedeaprenderosdoisconceitosque ainda não entendo antes de escrever sobre eles. Acelero,aproximando-medatraseiradoToyotapretoaminhafrente,incentivandoomotoristaaandarmaisdepressa.

–Vamos,vamos,vamos...O Toyota para de repente e eu piso no freio para evitar uma batida.

Minha bolsa bate no painel, derrubando o conteúdo no chão do lado dopassageiro.Ocarroatrásdemimcomeçaabuzinar.

E...parados.Denovo.– Será que o dia de hoje poderia ser pior do que está? –murmuro, e

entãomesintoculpadaporessareação.Sim,odiapoderiaestarbempior.Ilana poderia ainda estar em coma. Eu poderia estar naquela cama dehospitalcercadapormáquinas,comorostoinchadoemachucado.Eestoureclamandodotrânsito?

Osprimeiros trêsdiasdepoisdoacidente foramospiores.OsmédicosnãotinhamcertezaseIlanaacordaria,eelesalertaramparaofatodeque,mesmoqueelaacordasse,haviaumaboachancedepassarorestodavidaemestadovegetativo (uma frasequecometioerrodedigitarnoGoogle).Masapesardoqueosmédicosdisseram,imaginarIlanadiferentenãoerafácil.Fiqueiesperandoqueelaentrassenasaladeesperae izessealgumcomentário irônico sobre minha roupa. Ela estava bem na festa , iqueipensando.Ela estava bem, estava bem . Estava bem até virar aquela curva

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na Providence Road no momento exato em que um caminhão em altavelocidadecruzouapista.

Quando ela apertou a mão de uma enfermeira no quarto dia, muitaspessoas se reuniramna saladeesperae comemoraram.OuviamãedeladizendoàsenhoraZiffrenquenãosabiaqueIlanatinhatantosamigos.Fuiaobanheiro e vomitei.Não éramos amigas.As quatro garotasnum canto,usando pulseiras de borracha com as palavras “Ilana acordou” são asamigas dela. Os outros são espectadores de um desastre que nãoconseguimoscompreender.

GraçasaDeuselaacordou .Háexatamenteumasemana,nodiadoze.Elanão pôde receber visitas durante alguns dias depois daquilo,mas ontem,pessoas que não eram parentes puderam entrar, entre quatro e seis datarde.Fuiaprimeira.Ilanadeuumaolhadanas loresqueeuhavialevadoedissequeeram“dogueto”.Fiqueifeliz.

Mas,então,elacomeçouameperguntarháquantotempoeuestavaali.A cadadezminutos, como senão tivesseperguntado ainda.Omédicomedisse que isso era normal para alguém com dano hemorrágico no lóbulotemporal.Fiqueiolhandoparaele.Nadanaquiloeranormal.

OToyotaaminhafrentecomeçaaandardenovo,eeu inalmentepassopeloprimeirosemáforo,que,comosuspeitei,estádesligado.Depoisdisso,oritmoseintensifica.

Assimcomoa tempestade.Quandochegoaoestacionamentoao lado,achuva está caindo forte. Quando diminuo a velocidade para entrar, maisumraiocortaocéu,destavez,seguidodeumtrovão.Océu icadacordeumhematoma.

Desligo a seta e avanço de novo. Não vou caminhar do anexo até ládentro. Viro à esquerda no estacionamento dos funcionários e vou até aprimeira ila. Bemperto da porta lateral há uma vaga comumaplaca deRESERVADO – DIFICULDADE DE LOCOMOÇÃO, onde estacionei por alguns dias depois demachucaropé.Achavaquequemestacionassealipoderiaserguinchado,mas agora sei que não é uma vaga o icial. As vagas o iciais icam noestacionamentodevisitantesdooutroladodoprédio.Adoestacionamentode funcionários não é azul e não tem uma cadeira de rodas pintada noasfalto, o que é bom, porque ninguém que estaciona ali tem, de fato,di iculdade de locomoção. Qualquer atleta com alguma lesão podeestacionarali.Masprivilégiosdeestacionamentonãosãodadosporordemde chegada – os meus foram revogados quando Gregg Nash se feriu nojogo da semana passada. Astro do futebol vence ex-corredora de cross-

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country.OfatodeavagacomumdeGregg icaraquatroespaçosdavagaparapessoascomdi iculdadedelocomoçãonãoparecetersidolevadoemconsideração.

– Obrigada, Gregg – digo quando estaciono na vaga que costuma serdele.Oestacionamentotemcercadeumquartodesuacapacidadetomada,jáqueasaulassócomeçamemquarentaecincominutos.Caitlinestáaqui,claro (ela chega cedo todos os dias para cuidar de suas tarefas nolaboratório),eojipedeJoshestánoespaçodesempre.Nãoseisedeveriaanimar ou assustar o fato de ele ter chegado cedo para a revisão. Se eleprecisadeajudacomomaterial,eusouumacausaperdida.

Quandoo semestre começou,penseiquenósdoispoderíamosestudarjuntosparaessaprova, rindoenquanto trocássemos resumosdamatéria.Mas,paraisso,teríamosqueestarnamorando,ou,nomínimo,teríamosdeseramigos. Josheeunãosomosnemumacoisa,nemoutra.Aindasomoscordiais, mas tenho certeza de que ele está namorando Megan agora, eparecequeissoquerdizerquenossocontatopermitidoselimitaasorrisoseducados e um aceno de vez em quando. Não que eu tenha tido tempopara conversas compridas. As últimas duas semanas foramuma série dedias idênticos:decasaparaaescola,parao treino,paraa saladeesperadoPiedmontHospital,paracasadenovo.Dormir.Repetir.Aindamepegopensando no Josh – sempre que o vejo, sempre que vejo meu livro deastronomiaouasestrelasdomeu teto–,masnão soumaisobcecadaporele.

Certo,souumpoucomenos.Oraioaparece, seguidodemaisumtrovão.Vejoumagarotadaminha

salaenfrentandodi iculdadescomoguarda-chuvaaoatravessaro jardimdafrenteemdireçãoàentradaprincipal,espirrandolamaacadapasso.Sevouestudaressaaula,melhorqueeuváagora.

Comamochilanacabeça,corroemdireçãoàporta lateral.Felizmente,está destrancada. Demoro um momento para me recompor e entãocontinuodescendoo corredoratéanossa saladeaula, tirandoa capadechuvaebalançandooscabelosúmidos.Ocorredoraindaestámeioescuro,eamaioriadas salasao longodeleestá totalmenteescura, comasportasfechadas.Sóanossasalaeo laboratóriodequímicaparecemocupados.Aporta da sala do doutor Mann está aberta, e a luz se estende para forajuntamentecomosomclarodavozdonossoprofessor.

Nãoseibemporquefaçoisso.Talvezporquealuzestejaacesa.Talvezsejaporqueaportaestejaentreaberta.Masaopassarpelo laboratóriodequímica, olho pela janela vertical e os vejo. Caitlin está falando. Josh está

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sorrindo.Sozinhosemumasalameioiluminada.Prendoarespiração,apesardesaber, intuitivamente,quenãoébemo

queparece.Nãohá nada acontecendo entre eles.Nada escandaloso, pelomenos. Eles estão inclinados sobre uma folha de papel, discutindo seuconteúdo com atenção. Minha mente, calmamente, analisa os possíveismotivos para essa reunião logo cedo. Eles estão fazendo a lição de casa.(Paraaaula?Elesnãoestãoemnenhumaaulajuntos.)CaitlinestáajudandoJosh a estudarparaonosso exame. (Por que ela não se ofereceu parameajudar?) Eles são parceiros em algum projeto de ciência extracurricular.(Comooquê?Eporquenenhumdelesdissenada?)

Nenhuma dessas explicações faz sentido. E nenhuma delas faz eumesentir melhor a respeito do fato de que se eu não tivesse entrado poraquelaporta lateral,nunca teriadescobertooqueCaitlinobviamentenãoquerqueeusaiba:elaestásaindocomJosh.

Aindaquesejatotalmenteinofensivo,porqueelanãomecontou?E por que Josh está sorrindo para ela como sorria para Albireo, a

estreladuplaazuledouradadetirarofôlegonapontadobicodeCygnus?(De modo irritante, meu cérebro agora começa a disparar os fatos queaprendiacercadaAlbireonassemanasqueJoshmemostrouatalestrela,como um idiota louco por anfetaminas:380 anos-luz da Terra. Eraconsiderado um sistema binário gravitacionalmente relacionado com umperíodo orbital de setenta e cincomil anos. Adorado pelos astrônomos porsuagrandebeleza,quepodeservistafacilmentecomumtelescópiocomum.)

Mais.Longe.Da.Porta.Uma parte de mim quer que eles me vejam, porque, assim, serão

forçados a explicar o que estão fazendo. Mas eles me devem umaexplicação? Joshdeixouclaroquenãoestá interessadoemmim,emesmoquefosseotipodela(coisaquenãoé),Caitlinnuncairiaatrásdeumcaradequemgosto.

E mal conversamos desde o acidente. Conversamos no almoço, claro,masnãodepoisdaescola.Tenhocolocadoaculpanostreinos,nosexamesenomeunovoplanodelinhatelefônica ictíciocommenosminutos,masaverdade é que tenho me escondido dela. Se a Caitlin soubesse quantotempo tenho passado no hospital, ela desejaria saber o motivo.Principalmente porque eu sei como ela reagiria se descobrisse o que iz,mas tambémporque não suporto dizer as palavras em voz alta. O refrãoemminhamenteésu icientementeexcruciante;dizê-lomedeixariamuitonervosa.Seeunãotivesse,aIlananãoestaria.Seeunãotivesse,aIlananãoestaria.

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Eume afasto da porta e desço em disparada o corredor até o G103,ondeumadezenadecriançasdaaulaestáreunida,ouvindoodoutorManndescrever as fases de evolução estelar. A maioria parece tão assustadacomonosso testequanto eu.Megan está sentadapertoda janela quedávista para o estacionamento, com a mochila amarela no assento vago aoladodela.Estáreservandoolugarparaalguém.FicaolhandoparaojipedeJosh,semdúvida,tentandoadivinharondeestáodono.ÉclaroqueelanãosabequeeleestácomCaitlin.Então,elesestãoescondendoissodenósduas.

Eu me sento em um lugar vazio e pego meu caderno, decidida a meconcentrarapenasnaastronomiaduranteospróximosvinteminutos.

–Temostempoparamaisumapergunta.–EscutoodoutorManndizer.Euolhoparaafrente. Já?Absorvicercadedezporcentodoquefoidito

desde que cheguei e escrevi três perguntas no caderno. O restante dapáginaestácobertocomrabiscosdeestrelaselinhasqueasconectam.

Levantoamão.–A lei deHubble – digo, antes que ele possa chamar outra pessoa. O

doutor Mann olha para mim e assente para que eu continue. –Compreendoqueouniversoestá seafastandodenós– continuo–, equeestamos nos afastando do resto do universo no mesmo ritmo... certo? –Apesar de ter dito que compreendo isso, a verdade é que só estoumeiocertadoqueacabeidedizer.MasodoutorMannassente.–Mascomoissoépossível?Tudonãopodeestarseafastandodetudo,certo?

– Ah, excelente pergunta – o doutorMann começa. – Para a qual vimpreparado.–Eleprocuranobolso,moedasbatendoumasnasoutras,etirauma bexiga vermelha. – Imagine que este é seu universo – diz ele,mostrando a bexiga. Está coberto commarcas pretas de caneta. – E quecada um desses pontos é uma reunião de galáxias dentro do nossouniverso. – Ouço Megan rir. Há um pedaço de doce preso à manga dacamisadohomem.–AleideHubbledizqueadistânciaentreessesgruposcrescecadavezmaise,demodomaissigni icativo,nossouniversoestáseexpandindo.–Elelevaabexigaaoslábiosecomeçaaenchê-la.Conformeabexigaseenchedear,ospontossedistanciammaisemaisunsdosoutros.Opedaçodedoceficapenduradoemumfio.

–Osenhordissenossouniverso.–AvozdeJoshmepegadesurpresa.Eumeviroeovejodepénaporta,segurandoocaderno,comumafolhadepapeldobradaemcima.

OdoutorMannparadeassopraresorri.–Ah,alguémestáobservando.–Osorrisodohomeméenigmático.–A

senhora Barnes perguntou sobre a lei de Hubble, que se refere ao

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comportamentodegaláxiasdentrodonossouniverso.–Espere.Existemaisdeumuniverso?–pergunto,confusadenovo.– Claro – o professor assegura, como se fosse a coisa mais óbvia do

mundo.–Vocêsnãoassistirama StarTrek?–Todosriemnasala.OdoutorMann amarra a boca da bexiga e a lança para mim. Ela cai no meio daminhamesa. –Mas vamos nos concentrar nisto hoje – ele diz, um poucoantesdeo sinal tocar. –Onossouniverso já temmuitosproblemas. –Elediz algo mais depois disso, mas o som estridente do sinal encobre suaspalavras.

AlcançoTylernocorredorD.Excetoporumataquedehisteriananoitedo acidente, ele tem sido constante e pragmático, como sempre é, desdeque Ilana se acidentou.Abalado,masnão totalmente arrasado comoqueaconteceucomela.Eporquesesentiriaassim?ElenãoorganizouasériedeeventosquecolocouIlananarotadocaminhão.Foioqueeudisseaelequecausouoproblema.

–Vocêestápéssima–Tylerdizquandomevê.–Quandofoiaúltimavezquelavouoscabelos?

–Fiquequieto.Estouestudando.–Tylernãosabequantotempotenhopassadonohospitalnemquetenhodormidopoucodesdeoacidente.–Ei,aCaitlindissealgumacoisaavocêsobreJosh?

–OseuJosh?–Elenãoémais omeu Josh–digo.Porqueele édaCaitlin ?É só uma

pequena dúvida, mas está ali, presa emmeu cérebro. Ela gosta dele? Elegostadela?

–Oqueaconteceu?–Tylerpergunta.Doudeombros.–Elenãoestavainteressado.Elereviraosolhos.–Vocêéidiota?Espere,nãoprecisaresponder.Éclaroqueé.Barnes,o

caraficavatodobobosemprequeolhavaparavocê.–Nãoficava.–Sim,porqueeuinventariaisso?– Se ele estivesse tão interessado, por que não faria nada a esse

respeito?–pergunto,desafiando.Tylerparadeandareolhaparamim.–Porqueasmeninassãotãoridículas?–Oquehádetãoridículoemquererqueumcaradêoprimeiropasso?

Enãoumatolicede“talvezvocêgostedemim,talveznão”.Oqueaconteceucomosgrandesgestosromânticos?

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Tylerpensanisso.–Qualéagrandiosidadesobreaqualestamosfalandoaqui?–Étardedemais–digoaele.–EleestácomaMeganagora.–Nãoerao

quepareciahojecedo.Oâmagosetornaumcentrodeinvejaemedo.–AMegangostosa?Olhoparaele.–Euquisdizer,a“Meganquepareceumtroll”?– Bela tentativa – dou um soquinho em seu braço. – Até mais tarde.

Gorindetestaquandomeatraso.–Apertoopassoparachegaràaula.–Oh–começo,parandodenovo.–NãodigaàCaitlinquepergunteidoJosh.

–Vouacrescentarissoaminhalista–elediz.Estou tão preocupada com omistério Caitlin/Josh queme esqueço do

exameesómelembrodelequandotocaosinaldoalmoço.Minhaideiadeentrar com o lanche na biblioteca para estudar em cima da hora éfrustrada por um grupo de alunos com a mesma ideia. Todas aquelaspessoasdeolhosarregaladosvirandoaspáginassempararameaçammetirardomeuobjetivo,porisso,decidoestudarnocafé.CaitlineTylerestãonamesadesempre,comalgunscarasdaequipedegolfe.EumesentoaoladodaCaitlin e abromeu livro. OQUEVOCÊEO JOSH ESTAVAM FAZENDO HOJE CEDO?,meucérebrogrita.

–Viseucarroaquimaiscedo–digocasualmente,mantendoosolhosnapágina.Aomeulado,Caitlinseremexe.

–Podeafastarolivro,porfavor?–elapergunta.–Estácutucandomeubraço.

–Desculpe.Credo.–Tiroolivroetentodenovo.–Então,vocêestava...– Pensei que você tivesse ido estudar na biblioteca – Caitlin diz sem

olharparamim.–Tentei.Mas todomundodaminha sala está lá.O estressedeles está

meestressando.– O seu estresse estáme estressando – Tyler diz, sem olhar para a

frente.–Estounomeiodeumabatalhamundialmuito importanteaqui.–Ele e Efrain estão sentados lado a lado, brincando de adivinhação pelocelular.

–Beleza–digoefechoolivro.–Vouvoltarparaabiblioteca.– E...BAM! Unhas. Cinco letrase uma palavra tripla. – Tyler balança o

telefonenorostodeCaitlin.–Digaquenãosouumgênio.

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– Você não é um gênio – Caitlin repete. Algo do outro lado da salachamaminhaatenção.Uma líderde torcida fazendosinaisestranhoscomasmãos.Elaestáolhandobemparaanossamesa.PerceboqueoTylerviutambém.

– É mesmo? – A voz de Tyler está mais séria do que antes. Maisdramática. Vejo quando ele olha na minha direção, hesitando por ummomento antes de continuar. – Vamos fazer um censo – ele diz, então, eica de pé. Quando se levanta, sua voz ica ainda mais alta. – Olhe só,pessoal! – ele grita quando sobe na cadeira. – Só tenho alguns segundosatéumfuncionáriodaescolameobrigaradescerdaqui.–Aspessoasriemefazemsilêncioemseguida.Tylersaidacadeiraesobenamesadetoalhaxadrez azul e branca, pisando em metade de uma bolacha de chocolatecomocalcanhar.Oqueeleestáfazendo?

–Levantemasmãossejábrincaramdeadivinhaçãocomigo–Tylerdizàs pessoas. Pelo menos trinta pessoas levantam as mãos. – Fiquem demãoslevantadassemederrotaram!–Aspessoasabaixamasmãos.–Achoqueissomostraquesouumgênioemadivinharpalavras,não?–Algumaspessoasgritameaplaudem.–Bem,aminhaamigaCaitlinnãoconcorda–Tyler grita. Vaias começam a ser ouvidas. Caitlin se recosta na cadeira,sorrindotranquilamente,esperandopelogolpe inal.Pelasparedes,escutoumacomoçãovindadoladodefora.

MeusolhosobservamorostodeTyler. Aondeelequerchegarcomisso?AsenhoraKirkland,nossadiretora,correemdireçãoàmesa.Puxominhacadeiraparaafrenteeabroespaçoparaela,dandoaentenderquequeroqueelaseapresse.

–Vocêsqueremsabercomovouprovarqueelaestáerrada?Comumapalavradedezesseisletras.–Tylerchamaaatençãodetodos,queesperama piada. Ele olha para uma mesa de líderes de torcida vestindo azul elaranjaparaatorcidadehoje.–EuqueroumE!–elediz.

–E!–elasgritam,claramentepreparadasparaisso.–U!–U!–Vemoeco.Pomponssematerializam.Duasmeninasestãodepé

pertodascadeiras,fazendoUcomosbraços.–A!–A!–Braçossão levantados.Maispessoasestãodepénascadeiras.A

senhoraKirklandgritaparaqueelasdesçam,mastodosaignoram.NoM,avozdeTylerfalhaumpouco.Elenão...

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Elepedeasdozeletrasseguintes,semesperarpeloeco.–OVOCÊCAITLIN!Sim.Elefezisso.Caitlinarregalaosolhos.Seusorrisodesaparece.Issoéumdesastre.–Qual é a frase? –Tyler grita.Aspessoas começama gritar eberrar,

batendoasmãosnamesa.Tyler levantaasmãosacimadacabeça,prontoparaograndfinale.

–EU!AMO!VOCÊ!C...Antesqueelepossaterminar,seguroapernadeleeen ioasunhasna

panturrilha.–Ai–elegrita.–Porquefezisso?–Oque você está fazendo? – grito, cientedeque todomundono café

estáolhandoparanós.–Oque foi? –Tylerpergunta. –Vocêdissequeelaqueriaumgrande

gesto.–EleparadeolharparamimeolhaparaCaitlin.Vê,imediatamente,queissonãosaiucomoeleesperava.

– O que ele quis dizer com isso? – Os olhos de Caitlin estão voltadosparamim,enquantoosmeusestãogrudadosemTyler,pedindoaelequemeajude.Nãoseibemcomoelepoderiaconsertarascoisasaessaaltura,masumesforçoseriabacana.–Abby–Caitlinrepete,avozgélida.–OqueTylerquisdizer?

O café está totalmente silencioso. A senhora Kirkland está ali,claramentesemsaberoquefazer.

–Possoconversarcomvocênocorredor?–perguntodiscretamente.–Não.Respondaàpergunta.PorqueoTylerdisse:“Vocêdissequeela

queriaumgrandegesto”?–EuestavafalandosobreoJosh–digoaela,comavozbaixa.–Oque

eleteriafeitoseestivesseinteressadoemmim.OTylerdeveterentendidomal.–Lançoumolhardotipo“comovocêpôdesertãoidiota?”paraTyler,queaindaestádepéemcimadamesa.

–Foisóoquevocêdisse?–Caitlinpergunta.Sobasluzes luorescentes,apartedebaixodosolhosdelaestáesverdeada,comoestavanobrunchdaJovens Líderes no dia seguinte à formatura do ano passado, depois deicarmosacordadasanoitetodaassistindoareprisesde SexandtheCityetomando sorvete, enquanto os garotos com quem saímos estavamdesmaiados em cadeiras de jardim ao lado da piscina do vizinho. Comonaquelamanhã, ela está usando corretivo, que deve ter pegado damãe,

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porqueelanãotemum.Háumpontocordapelegrudadonocantodeseuolhoesquerdo.–Abby.

Porumsegundo,pensoemdizersim.Sim,foisóoqueeudisse.Omitindooresto,opior.Fingindo ignorânciae inocência. Não,Caitlin.Nãofaço ideiapor queTyler diria que ama você na frente de duzentas pessoas. Fiquei tãosurpresa quanto você. Sei que Tylerme defenderia, porque esse é o tipo deamigoqueeleé.Quetipodeamigaeusou?

–Eudisseaelequevocêgostavadele–digobaixinho.Caitlinnãoreage,comoseoqueeudissenãotivessesidocomputado.–Oquê?–elaperguntademodonormal.–Disseaelequevocênutriasentimentosporele,masnãoqueriaque

elesoubesse.–Fechoosolhosaodizerisso,preparando-meparaareaçãodela. É inexistente. Quando abro os olhos, Caitlin está se afastando. –Caitlin! – elame ignora. –Caitlin! – eu grito, semme importar comquempossameescutar,oqueébom,jáquetodomundoconseguemeescutar.–Possoexplicar...

Caitlingira.–Explicaroquê?–elagrita.Seusolhosparecempedrasdegelo.–Você

émuitomaluca,egoísta.Comoéserassimotempotodo,Abby?–Então,elanãogostademim?–Tylerpergunta,parecendotãoconfuso

quantoeu.Caitlinmeconsideraegoísta?–Issonãotinhanadaavercomigo–protesto.–Sópensei...–Elanãome

deixaterminar.–MeuDeus,Abby,vocêétãoprevisível–Caitlindiz.–MeuDeus!–Ela

fala mais alto e me imita. –Você acha que o Garoto Astronomia gosta demim?Ai,meuDeus,nãoconsigomaispraticarcross-country!Ai,meuDeus,eomeupreciosoplano?!–Atrásdemim,alguémri.–QueDeuspermitaquenenhum detalhe idiota não saia exatamente como você planejou. Comovocê se recuperaria? – As palavras dela estão cheias de sarcasmo edesdém. – Você quer saber por que o Josh não estava interessado emvocê?–Caitlinperguntademodofrio,avozautoritária,comosesoubessede algo que não sei. – Não é um mistério tão grande, Abby. Você só éegoísta demais para perceber. – Ela me encara com um olhar de aço. –Vocêdámaistrabalhodoquevaleapena.

Algoestaladentrodemim.– Ohhh. Então, estamos falando a respeito de quem émais fácil? –

Rebato.–Achoquevocêvenceu,então.–Comoéqueé?

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Falomaisaltoemedirijoàspessoas.–Comoéqueesseseucérebroincrívelnãocaptouofatodequeeleera

casado? – digo de modo desa iador. As líderes de torcida se entreolhamcom sobrancelhas arqueadas, tentando entender o que eu disse, mas éclaro que Caitlin e eu somos as únicas pessoas que sabem sobre Craig.Aquilodequeelamaisseenvergonha.Seumaiorarrependimento.–Achoquevocênãoligoumuitoparaessedetalhezinhobobo.

Caitlinficaboquiaberta.Parece que a sala se expande naquele momento, como a bexiga do

doutorMann.Meuestômagoserevira.Oqueeuacabeidefazer?–Vocêéumavaca–Caitlindiz,comavozrouca.–Umavacaegoísta.–

Ela não gira como eu giraria. Simplesmente se vira e sai do café. Tylerdescedamesa e a seguepara fora.As pessoas olham, observamquandoeles saem, e então voltam a atenção amim. Eme ocorre que eu deveriafazer alguma coisa – piscar, sentar, sair da sala –, mas o esforço dessasatitudeségrandedemais.Nãoconsigomemexer.

Osinal tocaeaspessoassedispersam.Efrainapareceàminha frente,segurandominhaperna.

–Venha–elediz,metirandodomeuestupor.–Vouacompanharvocêatéasala.–Concordosemforçaseosigo.

Efrainmelevaaminhasalaemedeixanaporta.–Boasortenaprova–elediz,entregandominhabolsa.Controlooriso.

Tenhoque fazerumaprovadeastronomiaagora ?O coitado do Efrain icaali,semsaberoquefazer.Hápedaçosdegelsecoemsuaorelha.

Osinaldeavisotoca.– Ei, pessoal. – Josh está se aproximando, com o lápis preso atrás da

orelha, como sempre.Quando vêmeu olhar, para de sorrir. –O que estáacontecendo?

–Caitlineelativeramumadiscussãonacafeteriaagora–Efrainexplica,falandobaixo.–Precisoir–elediz.–Nãopossomeatrasarparaaauladebiologia.–Eleentregaminhabolsaa Josh,medáumtapinhaesquisitonoombroedesceocorredor.

– Provavelmente deveríamos entrar – Josh diz. A voz dele parecedistante,comoseestivessefalandoportrásdeumaparededevidro.Olhovagamente para dentro da sala de aula. Todo mundo está estudando,relendoasanotaçõescomomalucos.Todomundo,menosaMegan.Osolhosdela estão grudados em nós. Quando ela percebe que eu a olho,rapidamente desvia o olhar. Você quer saber por que o Josh não estava

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interessado?AspalavrasdeCaitlinpassamporminhamente.Vocêdámaistrabalhodoquevaleapena.Sintoagargantaapertar.

–Abby?– Sim, tudo bem. – Eu me forço a colocar um pé na frente do outro,

caminhando em direção a minha mesa, quando, na verdade, quero saircorrendoegritandodasala.Daminhavida.Demimmesma.

Chego ao meu lugar. E me sento. Todo movimento é mecânico. Cadagestoéforçado.

Digoamimmesmaqueprecisomeconcentrar.Digoamimmesmaparaparardepensarnabrigaecomeçarapensarno teste.Umtestequevalequarentapor centodanota.Umanotaquepoderia destruirmeuspontosparaafaculdade.

Essa prova. Minha nota. O peso da importância das duas coisas mesobrecarrega, me oprime, e só não é maior do que o rosnado em meucérebro.Estáticaestágritandoemmeusouvidos,apagandotodooresto.

Nãoconsigorespirar.Nãoconsigopensar.Orosnadoseintensifica.– Astrônomos! – O doutor Mann anuncia quando entra pela porta

carregandoumapilhadeprovasazuis.–Chegouahoradevermosoqueaprendemos!–Sorrindocomoseestivesseentregandodoces,elecomeçaadistribuiroscadernosdeprovas.

Não vou conseguir. Fecho os olhos, forçando-me a respirar devagar eprofundamente. Para dentro. Para fora. Para dentro. Para fora. Respire,Abby.Tentomeverfazendoaprovacomcalma,respondendoàsperguntasde múltipla escolha e preenchendo os espaços. Tento me lembrar dascoisasquesei.MassóvejoorostodeCaitlin.Ador.Araiva.Odesgosto.Sóescutoaestática.

Alguns anos atrás, doisdias antesdoNatal, umavião caiuna costadeCharleston, matando cinquenta pessoas a bordo. Por saber que Caitlin eseuspaisestavamindoaCharleston,euentreiempânico.Elanãoatendeuo telefone, então,penseiopior.Minhamelhoramigaestavamorta.Passeias três horas seguintes em posição fetal no chão do meu quarto, semconseguirimaginarminhavidasemela.Soupróximadosmeuspais,masaCaitliné a irmãquenão tive.Con iomaisneladoqueemmim.Não tinhaperdido apenas minha melhor amiga; tinha perdido uma parte de mimmesma. Ou foi o que pensei. Às cinco horas, Caitlin inalmente me ligou.Elestinhampegadoumvoomaiscedo,eCaitlinhavialevadosuaavóparasairàtarde,semotelefone.Aindamelembrodecomomesentiaoescutar

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a voz dela. O alívio, a gratidão, a alegria. A sensação de completude quesentinaquelemomento,asensaçãoprofundadepaz.Tambémme lembrode como me senti antes de ela telefonar, quando pensei que a tivesseperdidoparasempre.Écomomesintoagora.

– Certo, classe. – A voz do doutor Mann parece distante. – Podemcomeçar.

Olho para o caderno de prova, mas as palavras poderiam estar emqualquer idioma.AvozdeCaitlin ecoa emminhamente.Você é uma vacaegoísta.Venciadiscussão falandosobreCraigdentrodeumasalarepletadepessoas,masdeondesaiuapartedoegoísta?Vocêéegoístademais. Éoqueelapensamesmo?

Meus colegas de classe escrevem sem parar enquanto o relógio daparedemarcaosminutoscomumtique-taqueaudível.Piscováriasvezes,mastudosetransformouemumborrão.Apágina.Meuspensamentos.

Osinaltoca.Nãoescrevinenhumapalavra.Lásevaiomeu futuro.Essepensamentonãomeafeta.Comoumrobô,

escrevomeunomenaprovaeapassoparaafrente,ondeodoutorMannestádepéparareceberasprovas.Pornãoquererestaraquiquandoelenotarqueaminhaestáembranco,saioantesqueelemedispense,esigoparaoestacionamento.Nãoposso irao jornalagora.Tenhodesairdaqui.Se eu for depressa, ninguém vai perceber. Provavelmente, vou seradvertidaporfugirdaescola,mascuidodissosemanaquevem.Voudizerquefiqueidoenteoucoisaassim.Desdequeninguémmevejasair...

–Abby!–Minhamãoestádooutroladodaportaquandoelemechama.É o Josh, claro, com cara de bonzinho e preocupado. Solto a maçanetaquandoeleseaproxima.Nãovouconseguirescapardepressa.

–Comofoi?–elepergunta.–Deixeiembranco–digo.Eentão,inexplicavelmente,dourisada.Éum

somsemgraçaeamargo.– Você quer conversar sobre o que aconteceu no almoço? – ele

pergunta. Seus olhos castanhos observamosmeus, como se as respostaspara outras perguntas não expressas estivessem escondidas ali. Nãorespondo,eelenãomepressiona.Osinaldeavisotoca.

– Doumuito trabalho? – A pergunta sai com di iculdade e, assim quefalo,mearrependo.–Não importa–digorapidamente,desviandooolhar,tentando engolir as lágrimas que surgiram do meu peito. Josh segura aminhamão.

–Oquevaleapenadátrabalho,Abby–eledizsuavemente.Oruídoem

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minha mente se acalma quando meus olhos encontram os dele. Minharespiraçãoseguintesaimaisfácil.

–Quersairdepoisdo treinohoje?–pergunto.–Talvezpudéssemos iraocinema,coisaassim?

–Ah,eu...hum...–Joshdesviaoolhareolançaemdireçãoaocorredoronde Megan está tentando se ocupar com o armário. Será que ica tãoóbvioquandoeufaçoamesmacoisa?Lembrete:ao ingirpreocupaçãocomomaterial,nãocolocarolivronamochilaetirá-loemseguida. –TenhoquesaircomaMegan–eledizcomosepedissedesculpas.

–Claro–tentopareceranimada.–Talveznóstrêspossamosfazeralgumacoisa.– Não, tudo bem – praticamente empurro-o para que saia da minha

frente. – Provavelmente, vou ter que trabalhar a noite toda mesmo. AediçãodenovembrodoOracle sai semanaquevem,entãoas coisasestãomalucas. Vejo você no treino! – Balanço os dedos para Megan quandopassoporela(minhatentativadeumacenodotipo“nãoacabeidechamarseunamoradoparasair”)eentãocorroparaocorredorprincipal.

Quando chego lá, meu pé esquerdo está latejando. Os pontoscicatrizaram sem infeccionar, mas eu ainda não devo apoiar o peso docorpo nele. Começo a andar devagar. Chego ao corredor principal e nãovouconseguirsairdoprédioantesqueosinaltoque.

Comoprazodequarta-feiraseaproximando,opessoaldoeditorialestátrabalhandomuitoparaacertarascoisas inais,eeumesintoculpadaporquaseestragartudo.Asextaaulapassarápidoenquantoanalisoperguntase revejo layouts, tentando não pensar no fato de que, em umperíodo denoventaminutos,eu(a)perdimeusdoismelhoresamigos,(b)reproveinoexamedeastronomia,e(c)chameiparasairumcaraquenamora.Vejaarapidezcomqueumapessoapodeimplodir.

Deixo o laboratório do jornal alguns minutos antes do sinal com adesculpadequeprecisopassarnoescritóriodasenhoraDeWittantesqueodiatermine.Emvezdisso,voudiretoparaomeucarro.OJettadaCaitlinnãoestámaislá.

Folhas espalhadas e calçada molhada são os únicos sinais datempestade de hoje. Agora, o céu está pontuado com nuvens fofas eperfeitamente brancas. Semicerro os olhos quando o sol entra pelo para-brisa,irritadacomaclaridadepersistente.

Quando chego à casa de barcos, começo a checar os parafusos dosmastros e passo óleo nos mecanismos dos assentos, enquanto para orestantedaequipecomeçaotreino.Quandovamosparaaágua,descubro

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uma enorme vantagem que o barco tem em relação ao cross-country: ofator de distração. Quando estamos correndo, só conseguimos pensar.Quando estamos no barco, não hátempo para pensar. Como sou aresponsável,nãotenhoescolhaalémdedaratençãototalaoscarasquandoviro o barco B rio abaixo e de volta, feliz porque Megan e Josh estão acinquenta metros, no A. Quando me dou conta, o sol está se pondo, e otécnicoestáapitandoparaquevoltemosaopíer. GraçasaDeusodiadehojeestáquasenofim.

Ao entrar na garagem, vejo minha mãe pela abertura do portão dagaragem, descascando cenouras perto da pia. A última coisa que querofazer é recontar abriga.Ouaprova.Ououvirminhamãedizerque tudovaificarbem.“Olhepeloladobom”éaresposta-padrãodeladiantedeumaadversidadee,nomomento,queromanteromeunegativismo.

– Ei! Como foi a prova? – ela pergunta assim que abro a porta dosfundos.

–Terrível.Eladesanima.–Tãoruimassim?–Pior.–Eucaminhoatéaescadadosfundosantesqueelamepergunte

sequeroconversar.–Vouficarnomeuquarto.–O resultado do seu SAT chegou–elamediz,parecendohesitante. –O

envelopeestánamesa.Eumeviroeolho.Umenvelopebrancoesimplessedestacaemcimada

mesadecerejeiradacozinha.Volto,pegooenvelopeeovironasmãos.–Penseiquenãochegariaantesdesegunda-feira–digo.–Eusei.Nós duas olhamos para o envelope, para o pequeno retângulo branco

commeunomeimpresso.–Nãoqueroabriragora.Tudobem?Minhamãeassente.–Sóqueriaquevocêsoubessequeeleestáaqui,querida.Levooenvelopeparaoandardecima.Quebom inalparaoquepode

seropiordiademinhavida.Émeio loucuraqueo futurodeumapessoapossadepender tantodeumnúmero.Massemumaboapontuaçãono SAT,asboasescolasnãoqueremnemsaberdevocê.Amenos,claro,quevocêjusti ique seu rendimento ruim, mas, para isso, normalmente é precisoingir algum tipo de di iculdade de aprendizado. Por um segundo, sintoinvejadaCaitlin.

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Aindacomoenvelopenasmãos,tiroossapatosemeen ioembaixodascobertas. Coloco o envelope ao meu lado e olho para o teto cheio deestrelas.MeuplanoerarecriaroCygnus,masoqueconseguiparecemaisuma cruz deformada. Puxo o joelho esquerdo em direção ao peito,procurando a cicatriz no pé. Muita coisamudou desde aquela noite. Nãopraticomaiscross-country, Josheeumalconversamose, cercadequatrohorasatrás,perdiminhamelhoramiga.

Muitacoisapodeaconteceremcincosemanas.Vocêéumavacaegoísta.Muitacoisapodeaconteceremcincominutos.Suspiro e rolo de lado, encolhendo o corpo ao redor do envelope. O

conteúdodesseenvelopedeaparênciainofensivadeterminarámeufuturo.Para uma garota cujas pontuações são boas, isso assusta. Se minhapontuaçãonãoestiverdentrodamédia,estareiferrada.Opânicocomeçaatomarcontademim.Tomacontadomeuestômagoeseespalhapelomeupeito.QueroentrarnaNorthwesterndesdeoDiadasPro issões,nosétimoano, quando amãe de BrandonGrant, uma jornalista doAtlanta Journal-Constitution, foi falar com nossa sala. Ava Wynn-Grant. Ela estava tãoelegante com o terninho azul-marinho e o blazer sob medida, e era tãoarticulada. Eu quis, literalmente, ser ela. Ela era uma jornalista, por isso,quisserjornalista.ElaestudounaNorthwestern,porisso,quisestudarnaNorthwestern. E todas as decisões relacionadas aos estudos que tomeidesdeentãotiveramavercomessesdoisobjetivos.

Tento imaginarqual teria sidomeucaminhoseAvaWynn-Grant fosseadvogadaouatriz.

Comocoraçãoaospulos,deslizoodedosobaababrancadoenvelopeeoabroumpouco.Quandovejocomomesaí–nãonomesmoníveldeumaCaitlin, mas melhor do que esperava –, meus olhos icam marejados. Aúnicapessoacomquemquerodividiressanotícianãoestáfalandocomigo.En iooenvelopeembaixodotravesseiroedeitoemcimadele,fechandoosolhoscomforça.Oruídocontinuaali,aestáticaagudadessa tarde.Eumeentregoaela,deixando-atomarcontadetudo.

Ouçoumabatida levenaporta.Quandoabroosolhos,meupaiestánaporta,segurandoduastaçasdesorvete.Orestodeluzdodiasefoi.

–Porquenãoestátrabalhando?–pergunto,esfregandoosolhos.–Jásãoseteemeia–eleresponde,indicandoorelógionocriado-mudo.

– Eu trouxe um docinho – ele acrescenta, oferecendo uma das taças. –Cremecomcookies.

Abroumsorrisoemesentomaisparaocantoparaabrirespaçopara

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elenacama.–Amamãeautorizouisso?– Sua mãe está ocupada fazendo um prato com frango muito

complicadoqueprovavelmentesóvai icarprontosábadoquevem.Penseique precisávamos comer alguma coisa para aguentar. – Ele se senta aomeuladoemeentregaumataça.Comemosemsilêncioporalgunsminutos,virando a colher antes de cada bocada para que o sorvete caia bem nanossalíngua.

– Soube que você teve um dia di ícil – ele diz, pegando um bocadograndedocremecomacolher.–Querfalarsobreisso?

–Caitlineeubrigamos.Eleparecesurpreso.–Vocêsnãocostumambrigar.–Eusei.–Oquehouve?–elepergunta.–ConteiaoTylerqueaCaitlingostadele.Ascoisasmeioquesaíramdo

controledepoisdisso.–Imaginoqueelanãotenhagostadodofatodevocêtercontado.– Pior – digo com tristeza. –Não é verdade. E eu sabia disso,mas, ao

mesmotempo,tinhaasensaçãodequetalvezelagostassedele,aindaquenãosoubesse.–Balançoacabeça,surpresacommeudescuido.–Souumaidiota.

–Talveznãosejao seumelhormomento–meupaidiz–,masnãomepareceimperdoável.

– Caitlin icou bem brava – digo a ele. – Disse umas coisas bem feiasparamim.–Meusolhosvoltamaseencherdelágrimas.

–Bem,seeuconheçoaCaitlin, temalgoacontecendoalémdisso.–Elepara,eentãodizcomdelicadeza:–Eseeuconheçovocê,querida ilha,nãofoiassimqueabrigaterminou.Então,oquevocêdissequegostariadenãoterdito?

–Soutãoprevisívelassim?–Previsível?Nemumpouco.Talveztenhaumalevetendênciaaacessos

emocionais.–Elesorri.–Devezemquando.Olhoparameu edredomde listras. Temumamancha preta de caneta

pertodomeudedão.–Fuimuitomá–sussurro.–Elanuncavaimeperdoar.–Umalágrima

começaaescorrernomeurosto.–Vocênãovaisabersenãopedirdesculpas–elediz.SintovontadededizerqueelenãoconheceaCaitlintãobemquantoeu,

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mas em vez disso, só concordo. A lágrima pinga do meu queixo noedredom,formandoumcírculomolhadoperfeito.

–Bem,émelhoreuvercomosuamãeestá–meupaidize icadepé.–Cuidar para que ela não estrague mais nenhum eletrodoméstico. – Dourisada em meio às lágrimas. Duas semanas atrás, ela estragou oliquidificadortentandobaterumpato.

–Desçojá,já–digo.Eleconcorda,eentãoseinclinaparabeijaraminhatesta.

–Vocêsduasresolverãoisso–elesussurra.–Podeserquedemoreumpouco,masvaiacontecer.–Concordo,piscandoparaaslágrimasdeixaremmeuscílios.Meupaiseergueecaminhaemdireçãoàporta.

Meutelefonecelularestáaomeuladonacama.Nãoesperoqueelameatenda,mas telefonoparaCaitlinmesmoassim.Caidiretonacaixapostal.TentotelefonarparaoTyleremseguida.Paraminhasurpresa,eleatendenosegundotoque.

–Euentendo–eledizdepoisquemedesculpoprofundamente.–Vocêévocê.

–Oqueissoquerdizer?–Eumepreparoparamesentirofendida.–Vocêpensouquepodiacontrolar issocomoachaquepodecontrolar

tudo – ele responde. – Pensou que formaríamos um bonito casal e quepoderia fazer acontecer. Mas não se pode planejar um relacionamentocomo se planeja a carreira, Barnes.Não é assimque funciona. – Perceboqueelesorri.–Masvaleuatentativa.

–Eunãodeveria termentido – digo. – Se tivesseme calado, vocênãoteriaterminadocomaIlana,e...

–Opa, espere aí. Eu vinha planejando terminar com a Ilana a semanatoda.Porquevocêachaqueestavatãomalnoeventodesuamãe?

Umalevecamadadeculpasedesfaz.–Então,vocênãomeodeia?– Não odeio você. Posso estar planejando uma bela humilhação em

público,masnãoodeiovocê.Eusorrionaquelemomento,aliviadapornãoterperdidoosdois.–VocêfaloucomaCaitlin?–pergunto.–Sóumminuto–elediz.–ElatinhaumareuniãocomDeWittdepoisdo

almoço.–Praquê?–Seilá.Elanãoquissaberdepapo.–Atentativadeledeparecercasual

em relação a isso torna tudo pior. Atrás de suas palavras, a voz estácarregadadedecepção.

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–Sintomuitomesmoporterestragadoascoisasparavocês–digopelaquinquagésimavez.Láembaixo,otelefonedenossacasatoca.

–Nem tudoestáperdido–Tylerdiz. –Elmomedisseque se aCaitlinnãomequisesse,elaficariacomigo.

“Elmo”éEleanorMorgan,airmãmaisnovadeAndyMorgan,umaruivaanimadaquedeveatédormiremseuuniformedelíderdetorcida.

Antes que eu possa dizer que Andy acabaria com ele se eletentasseicar com Eleanor, ouço uma batida na porta do meu quarto. Meu paivoltou.

–Telefoneparavocê.Éseuprofessordeastronomia.– Sério? – Meu pai con irma. Ele coloca o telefone sem io na minha

cômodaesai.–Ligopravocêdepois–eudigoaTyler.–DigaaodoutorRefrigerantequeeumandeiumoi.Desligamos, e eu pego o sem io. Não sei o que vou dizer ao doutor

Mann quando ele perguntar por que minha prova estava em branco. Averdade,acredito.

–Alô?–SenhoraBarnes!ÉGustavMannaqui.–Sorrio.Comose, comaquele

sotaque,elepudesseseroutrapessoa.–Oi,doutorMann.Comovai?–Umpoucopreocupado,minhacara.Oqueaconteceuhojeàtarde?–Brigueicomminhamelhoramigaantesdaprova–digo,cientedeque

issoémuito infantil.Masseeleconsiderainfantil,nãodeixatransparecer.– Estava preparada para a nossa prova,mas não consegui... –Minha vozficaembargada.

–Ah,penseiquepudesseseralgoassim.Sintomuito.–Estoudispostaa fazer trabalhosextras–digoaele.–Omáximoque

puder.Seiqueprovavelmentenãoseráobastanteparacompensarozero,masgostariadefazermesmoassim.

–Vamosvercomovocêvaisesairnoexameprimeiro–elediz.–Vaimedeixarrefazer?–Claro.Amanhãcedo,seestiverdisposta.Mashaveráumapenalidade,

sinto muito. A política da escola é clara em relação a isso. Seu examecontaránotanove,enãodez.

Uma dedução de um ponto.Só isso? Com isso, existe uma boapossibilidadedeeuaindaconseguirumB.UmBrespeitável,quemevalhaaentradanaNorthwestern.

– Sópeçoquenão estudemais – o senhormediz. –Oquevocê sabiahojeéoquedevesaberamanhã.

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–Sim,claro–digoaele.Aessaalturadocampeonato,eucomeriaumabarataseelepedisse.–Temaminhapalavra.

–Excelente–eleresponde.–Atéamanhãàssete,então.–DoutorMann?–Sim,minhacara?–Porqueestámedandoumasegundachance?Inexplicavelmente,eleri.– Aprendi, senhora Barnes, que uma pessoa raramente acerta de

primeira.Existemsegundaschancesemtodososlugares,quandosabemosprocurar.Olhemaisafundo,lembra?–Eleparaporummomento.Imaginoqueestejasorrindodooutroladodalinha.–Atéamanhãcedo.

Antesqueeupudesseagradecer,eledesliga.Animada comessemomento inesperadode sorte, sigopara a cozinha,

onde meu pai está comendo petiscos na despensa enquanto minha mãerala cebola. Conto sobre o teste novo, mas decido não falar sobre apontuação doSAT. Envolvida em seus afazeres, minha mãe não perguntanada.

Quandoterminamosdejantar,acampainhatoca.–Estáesperandoalguém?–minhamãepergunta,olhandoparaminha

calça demoletom commancha de café e a camiseta velha. Nego com ummovimentodecabeça,olhandoparameupai.DeveseraCaitlin.

–Vouverquemé–digo.Chego à porta e paro.Devo pedir desculpas primeiro? E se ela não se

desculpar? Ainda estou tentando decidir uma estratégia quando acampainhatocadenovo.Nãoqueroqueelaespere,porissoabroaporta.

–Oi.Hesito,surpresa.–Josh!Oi.–Douumpassoparatrás,repentinamentecientedofatode

queestouusandoumacalçademoletomquenãoélavadaháumasemana.– O que está fazendo aqui? – Ele ica meio desanimado. – Quis dizer...penseiquevocêtivesseumencontrocomaMegan.

–Nãofoiumencontro.Estamossósaindo.– Oh – digo, saindo e fechando a porta, para garantir um pouco de

privacidade.–E então... comovocê está?Pareciabemassustadahoje à tarde. –Ele

franzeatestadepreocupação.–VocêeCaitlinresolveramascoisas?–Aindanão.Masvamos,comcerteza.–Meuplanoeraconvencê-locom

um sorriso de vitória,mas agora parece esforço demais. Então, começo a

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chorar.–Não...nãovamos...–digoentresoluços.–Ela...meodeia.Joshseaproximaemeabraça.Aprincípio,asensaçãoéestranha,como

se o abraço não se encaixasse, mas então ele passa o braço esquerdoalguns centímetrosmaispara cimae eu inclino a cabeçapara adireita e,derepente,dácerto.

–Brigassãoruins–eledizapenasisso,bempertodemeuouvido.–Elaéminhamelhoramiga–ésóoqueconsigopensar.–Eusei.–Nãoseioquefazer–digocomorostopressionadoemsuacamiseta.–

Estou tão triste,ebrava, sabe?Comosenão tivessecertezadequequerofazeraspazes.

–Vocênãoprecisadecidirtudohoje–eledizcomdelicadeza.Eumeafasto,fungando,eolhoparaelefingindodesconfiança.–Porquevocêpareceumadolescentesendoquenãoé?–Quebomqueenganeivocê–eledizesorri.–Ei,vocêqueriraalgum

lugar?–Agora?–Agora.–Precisometrocarprimeiro...–Não,nãoprecisa.Calçademoletoméperfeitaparaondevamos.Diga

aseuspaisquevocêvoltaráemumahora,epegueumablusa.–Eleolhaparameuspésdescalçosesorri.–Enãoseesqueçadossapatos.

–Mas...Elenãomedeixaterminar.–Querirounão?– Sim! Volto já. – Ao passar pela porta e subir a escada da frente,

percebo que o deixei na varanda. – Entre, se quiser – digo olhando paratrás. –Meus pais estão na cozinha! – Lembro que ele não conhecemeuspais, o que seria meio estranho para eles se ele decidir entrar. Quandoentroemmeuquarto,escutoaportasefechar.Seráqueeleentrouounão?

Pegomeus tênis emeu capuz, passo um pouco de água fria no rostomolhadode lágrimasevoltoparaaescadae,nessemomento,escutomeupaigritar:

–Então,vocêéoGarotoAstronomia!–Desçoaescadaantesquemaisdanossejamcausados.

–Josheeuvamossair–digoquandochegoláembaixo.–Voltamosmaistarde. – Antes queminhamãe possa comentar asminhas roupas, pego amãodeJosheolevoparaaporta.

–Aondevamos?–perguntoquandoJoshabreaportadopassageirode

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seu jipe. O interior do veículo cheira a grama recém-cortada e sabonete.Temumatoalhadepraianobancodetrás.

–VisitaroCisne–éoqueelediz.Algunsminutosdepois,paramosaoladodolagonavizinhançadele.–Aluzdopostedeiluminaçãoqueimou–eledizeaponta.Pressionoo

rosto contra a janela, espiando na escuridão.Minha respiração embaça ovidrofrio.–Vamos–eleabreaporta.–Aluaestáquaseperfeita.

Euosigopelocaminhodeterraatéumbalançodemadeiraàbeiradaágua. O chão ainda está molhado da chuva de ontem. Apesar de já terpassadoporesse lagomuitasvezes,acaminhodacasadeTyler,nuncaviessebalanço.

–AchoqueoCisnevaientender–Joshdizquandonossentamos.–Elesabe comoé ser separadodomelhoramigo. –Oassentodemadeiraestáfriosobminhacalça,masnãomolhado.Alguémdevetê-losecadodepoisdachuva. Jogamos a cabeça para trás e olhamos para cima. Dezenas depinheiros formamumaferraduraaoredordaágua,bloqueandoa luzdascasas próximas, e amais próximadelas ica a pelomenos cemmetros. Alua,baixanocéu,ésóumafatia.Compoucapoluição,océuestárepletodeestrelas.

–Ele conseguiu reavê-lo? –pergunto, tirandoos sapatos lamacentos epuxando os pés descalços para baixo domeu corpo. – Sei que ele saiu àprocuradePhaethon,maselesconseguiramsereunir?

–Claro.Olhoparaele.Estáolhandocomatençãoparaocéu.–Vocêestámentindodescaradamente,nãoestá?–Claro–eledizsempestanejar.Nósdoisrimos,erelaxamos.Mesmodepoisdodiaque tive,mesintoestranhamentecalmaagora.O

mundo parece maior e o universo, in initamente mais vasto, como sehouvesse espaço para tudo o que aconteceu hoje. Espaço su iciente.Respiro, deixando o ar da noite encher meus pulmões, sentindo minhacaixatorácicaseexpandir.Quandosoltooar,oúnicosomqueouçoéodeminharespiração.Aestáticasefoi.

–Nãoparodepensaremalgoquevocêdissehoje–Joshdiz.–Temmeperturbado desde que falou. – Ele está olhando paramim com amesmaintensidadequehaviadirecionado ao céu antes. –Vocêmeperguntou sedámuitotrabalho.Porqueperguntariaisso?

– Foi algo que a Caitlin disse – explico a ele. – Hoje, durante a nossabriga.Eladissequeéomotivopeloqualvocênãoteminteressepormim.–Olhoparabaixo,paraagramaaindamolhada,quaseinvisívelnaescuridão.

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–Doumaistrabalhodoquevalhoapena.–Quemdissequenãotenhointeresse?Quaseengulomeuchiclete.– Pelo que me lembro – ele diz –, você me informou que eu deveria

namorar outra garota, e eu pensei, com razão, que você não tivesseinteressepormim.

–Vocênuncamechamouparasair–digodemododefensivo.–Eteveumzilhãodeoportunidades.

– Um zilhão, hein? Como na noite em que vocême disse que já tinhaplanoscomseusamigos?Ounanoiteemquedisseque iaàexposiçãodesuamãe?Vocêébemocupada,AbbyBarnes.

– Sim,mas você poderia ter sugerido outra noite. Qualquer uma.Masnãosugeriu.

–Eunãosabiaqueestavasendotestado–eleprovoca.–Vocênãoestavasendotestado–respondo,sentindoocalorsubirpor

meu pescoço. – Mas se estivesse interessado, por que diria “obrigado”quandofaleisobreaMegan?–pergunto.Enquantopergunto,perceboquenãomeimportocomaresposta.Sóqueroqueelemebeije.

–Comoumcaradevereagirquandoagarotaporquemeleémalucodizque ele deveria namorar outra garota? – Joshpara de falar, semnemaomenospararparaanalisarminhareação.Queméessapessoa,eoqueelefezcom o cara compenetrado, de roupa de elastano e sapatilha para usar nobarco?–Espere,nãoresponda–elediz.–Achoquejásei.Devodizer:Nãosejatola,Abby,queronamorarvocê.Estálivreamanhãànoite?

–Vocênãotemquedizernada.Poderiatersidosincero.–Possosersincero–eleresponde.–Nãosejatola,Abby,queronamorar

você.Estálivreamanhãànoite?Demoro alguns segundos para perceber que ele está esperando a

minharesposta.O Garoto Astronomia acabou de me chamar para sair. Ainda estou

olhandoparaelequandodiz:–Saibaqueosilêncioseráconsideradoumsim.Edessemodo,odiaquefoideruimapiorseredimiucomummomento

perfeito.–AnoitedoDiadasBruxaspodesermeioesquisitaparaumprimeiro

encontro– Joshdiz–,masachoquecombinacomumagarotaqueme fezcometerumainvasãodaúltimavezquesaímos.

–EaMegan?–pergunto,quandooquequerodizerémebeije,mebeije,mebeije.

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Josh balança a cabeça, desaprovando a minha pergunta de um jeitobrincalhão.

– Olhe, e eu achando queeu não tinha noção, porque nunca tive umanamorada.Mas acontece que você temmenos noção do que eu. – Ele sevira parame olhar e, dessa vez, eu olho para ele. – Gosto de você, Abby.Desde o começo. Desde o dia em que me disse que estava na sala dodoutorMann. – O rosto dele, tão perto domeu, embaça um pouco. – Emalgunsmomentos,duvideidesuasanidade–eledizrindo,passandoamãopelomeupéesquerdodescalço,apalmadamãocobrindoapelemaciadacicatriz. – Mas, estranhamente, esses momentos só me izeram desejá-lamais. –Olho para amão dele, imaginando como seria se ele tocassemeutornozelo.Minhacoxa.

–Então,talvez,vocêsejaolouco–digo.– Louco por você – ele diz com uma con iança estranha que fazmeu

rostocorar.Seurosto icasério.–Nuncaduvidei.Sóqueriaconhecervocêprimeiro,parasaberexatamenteondeestavameen iandoseconseguissefazer isso. – Envolvendo meu queixo com a mão, ele me beija. O beijo ésuave, mas não incerto. Fecho os olhos, sentindo o hálito de canela,sentindo a suavidade dos lábios dele. As mãos descem do meu rosto aoombroe,então,aobraçoesquerdo,provocandofortesarrepios.Meucorpotodo ressoadeprazer.Quandoopolegardele chega aomeu cotovelo, elesegurameu braço e me puxa com delicadeza contra seu corpo. – Então,issoéumsim?–Escutoquandoelesussurradenovo,antesdevoltaramebeijar.

Parotemposuficienteparasorrir.–Sim.

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9(Aqui)sábado,31deoutubrode2009(DiadasBruxas)

–BUUU!Meusolhosseabremcomosom.Estoudeitadanacolchaverde-escuro

deumacamaquenãoéminha,olhandoparaumaparedeazul-marinho.Noar,cheirodejalapeñoequeijoprocessados.Emalgumpontopróximo,umagarotagritaedárisada.

O fato de eu estar me preparando para esse momento não o tornamenos assustador. O pânico toma conta demeu corpo, passa porminhasveias. Estou em outro lugar, em algum lugar novo, em algum lugar ondenunca estive antes. Yale sumiu, Marissa sumiu, Michael sumiu. Coloco amãonaparede,comosequisessemefirmar.Eupossolidarcomisso.

–Bomdia,dorminhoca.Solto o ar que eu não sabia que estava segurando, e o pânico

desaparecequandopercebo.A realidadenãomudoudenovo.NuncavioquartodeMichaelàluzdodiaantes.

–Oi –digo, rolandona cama.O rostodeMichael está, agora, apoucoscentímetrosdomeu.Tomoocuidadodenãoexpirarmuitoprofundamente,semquererarruinaromomentocomohálitomatinal.

–Estouesperandoquevocêacorde–elemediz.–Vocêétãobonitinhaquandodorme.

Estouaterrorizada.Estavaroncando?Babando?Fazendosonsestranhos?Isso é exatamente omotivopelo qual nuncadormi na casa de umgaroto(bem, isso e o fato de que tinha que voltar para casa às onze da noite etambémtinhapaiscomumapolíticabemexpansivade“nãodormirpertodegarotos”).Existemmuitasmaneirasdeseenvergonhardormindo.

–Háquantotempovocêestáacordado?–pergunto,conferindosenãobabeinotravesseiro.

–Ah,muito tempo–elemeprovocaquandoencostaonariznomeu.–Dezsegundos,pelomenos.–Estáclaroqueelenãoestápreocupadocommeuhálito.Michaelmeolhadecimaabaixoeri.

–Oquefoi?–pergunto.

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–Vocêaindaestáusandoossapatos–elediz,apontando.Estou,mesmo,usandomeussapatos.Etodasasoutraspeçascomasquaisvim,incluindoa jaqueta e o cachecol. Penso que minha bolsa também está em algumlugar.–Vocêsentiumedodeeuacharquevocêqueriaalgoamais?–elepergunta. Olho para o peito dele e, instantaneamente, ico surpresa.Queforte.

–Nãoeraisso–digorapidamente.–Ésóque...–Cadadesculpanaqualconsigopensarémaisassustadoradoqueomotivoreal.–Certo,certo.Nãoqueriaque vocêpensasseque sóporque eu estavadormindo, signi icavaquevocêeeu...–Ocalorsobepelomeupescoço.Possoatédizerapalavrasemcorar.

–Bem,no futuro, sequiser tirara roupaparadormir,nãoverei comosinaldequevocêquersexo.

Eume retraio sob o olhar dele e, de repente,me sinto desconfortávelcomtodaahistóriadesexo.Senãoconseguefalarsobresexo,provavelmentenãoestáprontoparaosexo.

Meutelefonetocadentrodabolsa,sobacamisadeMichael,aospésdacama.Euoprocuro,contentecomadistração.

– Ben e eu encontramos asmelhores fantasias! –Marissa grita antesmesmo de eu dizer olá. – Power Rangers! – ao fundo, Ben canta umaversãodesa inadadacanção-tema.–Elatemverde,rosa,vermelho,azuleamarelo–Marissadiz.–Quaisvocêsquerem?

–Ela?–Estamosna casadeumamulher emHamden–Marissadiz. –Bena

encontrou na internet. – Quando ele soube que ainda não tínhamosfantasias, Ben disse que seria o organizador das fantasias nas atividadesdanoite,quesãoumafestanacasadoMichael,algumashorasnaInferno(ainfamefestadeDiadasBruxasquefoiproibidaporcincoanos,masqueagora voltou, no pátio da Pierson College), e então na sinfonia de meia-noitenoWoolseyHall.

–QualPowerRangervocêquerser?–pergunteiaMichael.– Verde! – ele grita, afastando as cobertas e icando de pé. – Go, go,

PowerRangers!Comoscabelosbagunçados,elepareceumacriança.Comtanquinhodignodemodelo.–Voupegarumpoucodeágua–elemediz,eentãosaidasaladecalçajeansepésdescalços.

Ouçoobipedeumaligação.–Evocê?–Marissaquersaber.–Qualcor?–Obipedenovo.Afastoo

telefone da orelha para conferir o número. É um código de área de LosAngeles, mas não reconheço o número.Quem poderia estar ligando? São

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seis da manhã na Costa Oeste, e nenhuma das pessoas que conheço naCalifórnialembramdemeconhecer.

–Abby?–ouçoMarissamechamar.–Caiualigação?– Não, não, estou aqui. Desculpe, estava recebendo outro telefonema.

Vocêperguntoualgumacoisa?–Sóacorquevocêqueria.–Oh!Amarelo,então?–Oba!Certo,vamoscomprar.Atéànoite!Assimquedesligamos,pensoqueCaitlinprovavelmenteaindanãotem

uma fantasia. Ela está passando tanto tempo no laboratório do doutorMann(eno trem indoao laboratório),queduvidoqueelasaibaqueéDiadas Bruxas. Envio uma mensagem de texto a Marissa para pedir quepegueascincoroupas,sóparagarantir.Quandoestoucolocandootelefonenabolsadenovo,elevibraindicandoumanovamensagemdevoz.

–Oquevocêvaifazerhoje?Michael reapareceu, segurando dois copos de água e mascando um

chicletedecanela.Seurostoestáúmido,comosetivesseacabadodelavá-lo. Eu, enquanto isso, sinto a saliva seca no rosto. Pego um chiclete deminhabolsa, disposta a afastar os efeitos da bebedeira de ontemànoite.Minhalínguaparecetersidoenvolvidaemalgodão.

–Biblioteca–digo.–TenhoqueescreverumartigodoYDNelerduzentaspáginasantesdaminhaprovadeFilosofiadaTeologianasegunda-feira.

–Vamosestudar juntos – ele sugere, emedáumdos copos. –Adoreiaquelaaula.

–VocêassistiuàauladoHare?–perguntoentregoles.Eleassente.–No primeiro ano. Depois de doze anos em uma escola cristã, pensei

queseriafácil.– Você também frequentou uma escola cristã? – Eu havia imaginado

umaescoladepreparaçãodeprestígiodaCostaLeste,algumlugarcomumlemaemlatimeseuprópriobrasão.

–Sim.Do fundamentalaopenúltimoanodomédio.–Michaelseviraecomeça a mexer em ummonte de roupas que estão sobre a cadeira damesa.

–Masnãonoúltimoano?–Não. Fiz oúltimoanona escolapública. –Elepegauma camisetado

RedSox,cheiraeaveste.–Limpa–elesorri.–Quercafédamanhã?Há muita coisa que eu quero saber sobre esse cara em cuja cama

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dormi. Apesar do tempo que passamos juntos nas últimas sete semanas,aindaconsigocontarascoisasqueseisobreeleemumadasmãos:eleédeMassachusetts. O nome do meio é Evan. Os pais são divorciados, e elenunca falou de nenhum irmão. E agora, a informaçãomais recente: dozeanos de escola religiosa. Não que ele seja evasivo a respeito de assuntospessoais–masnãofalamuito.Eeu,semquererxeretar,nãopergunto.

– E então? – Michael pergunta ao me levar em direção à porta. Porsaberoqueeraservidoali,recuseioconviteparaocafédamanhã.–Querestudaramanhã?

–Claro–digoaele.–Seriaótimo.Na verdade, esse tipo de pensamento me assusta. Talvez, se eu

passasse o dia de hoje estudando, mas agisse como se não tivesseestudado, soubesse o su iciente para parecer que sei, mas nãoembaraçosamente despreparada.Quandome viro para sair, eleme puxapara me beijar. Contente por estar com o chiclete na boca, retribuo,sentindoogostodacaneladaguloseimaemseus lábios.Fechoosolhoseinspiro,sentindoocheirodele,dedoceesabonete.Háalgomuito familiarnessa combinação. Inspiro de novo,mais profundamente desta vez. E, derepente,nãoéoMichaelqueestoubeijando,mas,sim,Josh.

Jogoacabeçaparatrás,pegadesurpresapela lembrança.Michaelmelançaumolharpreocupado.

–Estátudobem?–pergunta.–Sim,tudobem.Émelhoreuir,sóisso.Atémais!–Douumbeijinhono

rostodeleedesçoosdegrauscorrendo.Paraumamanhãdesábado, tempoucagentenoStarbucks,oque jáé

incentivo su icientepara eupararnele. Precisode toda aminha forçadevontade para não pensar no Josh e naquele beijo enquanto estouesperandoparapedir.A lembrançanãoparadevoltar,emeassustacomsuaperfeição,parecendoum ilme.Ocobertordeestrelas,abrisasuavedanoite.Nãosejatola,Abby.Queronamorarvocê.Estálivreamanhãànoite?

Um impaciente morador de rua, com roupas velhas do exército, estápertodemimnafila,remexendomoedasnamão.

–Éasuavez!–elegrita,acentímetrosdemeuouvido.Eumeaproximodobalcãoerapidamentepeçomeulatte.

–Sãocincoeoitentaecinco.–Ocaixapareceentediado.Enquantoprocurominhacarteiranabolsa,ocaraatrásdemimbateo

pé alto e impacientemente, ainda remexendo suas moedas. Assustada,começoapegarascoisaseacolocá-lasnobalcão.Rímel...chaves...celular...e um pacote de band-aids para viagem... um pacote de canetas marca-

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texto... oYDN de ontem.Onde estáaminha carteira? O barulho dasmoedasaumenta. Quando estava em Los Angeles, comprei uma bolsa com cincocompartimentos – meu prêmio de consolação por ter que trancar afaculdade. Agora, voltei a usarminha bolsa preta e velha, umabolsa queparecia ter vontade própria. Qualquer coisa de que eu preciso sempredesaparecenofundodela.Comominhacarteiranestemomento.Quandoaencontro,meupedido jáestáprontoeocaraatrásdemimestáprestesaperderapaciência.

– Vou pagar o dele também– suspiro ao caixa, entregando a ele umanota amais de cinco dólares. Sentindo que burlei o código da sociedadepormedemorarmuitona ila,mantenhoacabeçabaixaepegomeucafé,saindopelaporta.

Marissa eBenaindanãoapareceramquandovolto aonossoquarto, oque ébom,porquequero chegar àbiblioteca até asdez, enão temcomoconversar só por cincominutos comBen Blaustien. Ele lê, assiste e ouvetantoquesempreleu/viu/ouviualgosuperfascinantenaCNN ouNPRqueeleacha que você também vai achar fascinante e vai querer conhecer ediscutirpormuito tempo.Ótimosevocêestiverpresoemumelevadorounuma ila à espera de pizza. Não tão bom se estiver com pressa porqueprecisa estudar com o cara que você tem certeza que é seu namorado,apesardenenhumdevocêsterassumidonadaainda.

Deixo a bolsa na cama e tiro as botas. Quando estou desabotoando acalça, olho para a parede atrás de minha mesa, no ponto onde deixei opresentede aniversário queMarissamedeu.A fotogra ia deCaitlin e eunopiqueniquedoscalouros.

Mas...nãoestámaisali.Há um retrato emoldurado ali, mas sou eu sozinha, sentada com as

pernas cruzadas sob um carvalho na Cross Campus. É uma foto bacana,obviamenteumbomtrabalhodaMarissa.Masnãoéafotoqueelamedeu.

Gotas de suor se acumulam nomeu lábio superior.Onde está a outrafoto?

AmemóriademinhabrigacomCaitlinvolta.– Ai, Deus – digo.Não tem foto de nós duas porque a Caitlin e eu não

somosmaisamigas.Não.Nãopodeser.Essabrigafoiemoutubro.Sim,foipéssima,masnão

tem como eu e a Caitlin termos permanecido bravas uma com a outraduranteumanotodo.

Louca por respostas, jogo o conteúdo da bolsa na cama, mas meu

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telefonenãoestáali.Droga.Devotê-lodeixadonacasadoMichael.Com asmãos trêmulas, pegomeu laptop. Se Caitlin e eu deixamos de

seramigasemoutubropassado,então,aminhafotodoprotetordeteladeCaitlin,Tyeeunaformaturanãoexistemais.Minhatelaseacende.Afotodaformaturadesapareceu.

Clicono íconedacâmeraerapidamenteprocuronorestodas fotosdoanopassado.

Depoisdeoutubro,Caitlinnãoestáemnenhumadelas.Nenhuma.Precisoconversarcomela.Agora.CorrodeVanderbiltaSillimansódemeias,trombocomquatropessoas

diferentes e quase derrubo um ciclista. Quando chego à porta da Caitlin,bato.Acolegadequartodela,Muriel,abreaporta,aindasonolenta.

–Abby?–Vocêsabequemeusou.–Éclaroqueeuseiquemvocêé–Murielresponde,olhandoparamim

comoseeutivessetrêscabeças.–MasaCaitlinnãoestáaqui.Elaestánolaboratório.

–Laboratóriodequem?DodoutorMann?Murielassente,esfregandoosolhos.Sorrindocomoumamaluca,euaabraço.– Obrigada! – Pelo canto do olho, vejo as chaves do Civic de Muriel

penduradasemumganchoaoladodaporta.Opróximotremsóparteemumahora.

–Possopegarseucarroemprestado?Murieldádeombros.–Claro.EstánoestacionamentonaSachem.–Obrigada!–Euvoltoaabraçá-la.– Espere, você não está chapada, está? – Muriel me olha com

desconfiança.–Não!–Pegoaschavesdoganchoantesqueelapossamudardeideia.

–Devolvohojeàtarde!–Digoaodesceraescada.

Faço um tempo excelente. Como é sábado, ignoro as placas de APENASPESSOASAUTORIZADASnoestacionamentodoOlinObservatoryeestacionoao ladodooutroúnicoveículoqueestáali,umcarroSmartamarelocomplacadeConnecticuteumadesivonovidronoqualselêESPEREOINESPERADO.Pelomenos,seiqueestounolugarcerto.

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Deacordocomalistapertodaportadeentrada,oescritóriododoutorMann icanosextoandar.Quandochegoláemcima,nãoédi ícilencontrar.A porta dele é a única coberta com manchetes de jornal a respeito doterremotodoanopassado.Aoladodaportademetal,estáescritoLABORATÓRIO.Amaçanetavirafacilmentenaminhamão.

Empurro-a e entro. Na parede oposta, um relógio digital enormeanunciaashoras,segundoasegundo.Aolado,háumcalendáriomagnéticoenormecomumXvermelhomóvelcomadatadehoje.OdoutorMannestáde pé na frente de um quadro de giz que vai do chão ao teto, ocupandotoda a parede da esquerda, analisando uma série de equações, com asmangas da camisa enroladas até o cotovelo. Caitlin não está em lugarnenhum.

Silenciosamente, eu me viro para sair, esperando conseguir escaparsemsernotada.Masaportasefechaantesqueeuconsigasegurá-la.

–Bomdia,senhoraBarnes!–elediz.– Olá – respondo e repentinamente me sinto muito estranha. – Sinto

muitoporperturbá-lo.–Quebobagem!Nãoéperturbaçãonenhuma.Entre!Consigosorriredoumaisumpasso.–ACaitlinestá?–Elaestánabiblioteca, tentandoencontrarumvelhomanuscritopara

mim – ele responde. –Vom Erhabenem , de Friedrich Schiller. Vocêconhece?

– Hum, acho que não. – Olho de novo para a porta, desejando quepudessesair.

OdoutorMannfazsinalparaqueeumesentee,então,sevoltaparaalongasériedevariáveis,símbolosenúmerosnoquadro,batendononariz,pensativo,enquantoanalisaseutrabalho.

–Oqueéisso?–pergunto.–Chamoissodeforçadodestino.Esperoqueelefalemais,maselecontinuacalado.–Forçadodestino–repito.OdoutorMannassente.– Estou tentando calcular a força, o puxão, se assim for melhor, do

futuropredestinadodeumapessoa.–Então,osenhoracreditaemdestino.OdoutorMannfazumapausaeresponde:– Acredito que cada um de nós tenha sido criado para um propósito

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especí ico determinado pelo Criador, e que, por causa disso, há certascoisas em nossa vida que somos destinados a fazer, por ordem dele. Oresto, na minha opinião, é bobagem: ica dependente das in luênciasde inidorasdeescolhaecircunstância.Esorte!Nãoseesqueçadasorte.–EletocaaletraLnaequaçãocomapontadodedo,deixandoumamarcanabase. – O truque – ele continua – é como determinar qual é qual. – Elesorri.–Masacreditoquenãoexistaequaçãoparaisso.

Olhando para o quadro, minha visão embaça. Para cada vida, umaequação.Quemestáfazendoaminha?

OlhoparaodoutorMann.– Destino, sorte e todas essas coisas à parte... – As sobrancelhas dele

sobem quando ignoro as variáveis. Uma pessoa podeevitar seu destino?Ourecusá-lo?

–É issoqueestou tentandoentender– elemediz, voltando-separa aequação. – A força do destino de uma pessoa em termosmatemáticos. E,maisimportantedoqueisso,seessevalorvariadepessoaparapessoa.

– Então, se minha paralela e eu estamos dividindo uma realidade, anossa equação é a mesma? – O doutor Mann lança para mim um olharcurioso. – Teoricamente, digo – acrescento rapidamente, ingindo estartranquila com um aceno. – Se icássemos presos em ummundo paralelo,sabe?Comoasteoriassugerem.

–Vocêperguntouexatamenteacoisacerta–elediz,osolhosbrilhando.–Qualachaqueéaresposta?

Hesito.–Nãosei–admito.–Gostodepensarquetenhomeudestino,masacho

queseminhavidanãofossemaisminha...– Sua vidasempre será sua – ele a irma. – Você é um ser unicamente

criadocomumaalmatranscendente.Umnovoconjuntode lembrançasouum senso alterado da realidade não podem mudar o que é verdadeirofundamentalmente. – Ele está me observando com atenção agora,calculandominhareação.–Seucaminhovaimudar.Seudestino,nunca.

–Maseseeuestivernocaminhoerrado?–Nãoexistecaminhoerrado.Nãonoquedizrespeitoaodestino.Sóhá

desvios.–Elemeobservapormaisummomento,eentãocontinua:–Vocêdisse algo curioso quando voltou para me ver em setembro. Tenhopensadonoquepodesignificardesdeentão.

Tentomanteraexpressãobemneutra.–Émesmo?– Acho que você disse: “Por que ninguémmais além de mim...” – Ele

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para,meolhandosempiscar.–Vocêparouabruptamente,comosetivesseditocoisademais.

Preciso de toda a minha força para não desviar o olhar. A palma deminhasmãosestãomolhadas.

– Alguns momentos depois, a senhora Moss perguntou a respeito deanomalias. – O doutorMann inclina a cabeça, como um passarinho. – Foiuma pergunta muito especí ica, se me lembro bem, a respeito dapossibilidade de alguém manter o que sabia sobre as coisas antes dacolisão.–Eleparacomoseesperasseminhareação.

–Oh!–Ésóoquedigo.Ele sorri de modo simpático, como se estivéssemos falando de má

digestãooudeumdentequeprecisadecuidados.–Esse“alguém”évocê?Penso que sentirei pânico, mas, na verdade, sinto alívio. Mas não

consigoresponder.Elenãoinsiste.– Quando você estiver pronta – diz com gentileza. – Ficaria feliz em

ajudá-la, sepuder.–Então,eleolhaparaalémdemimesorri, como fariaumpaimuitoorgulhoso.–Maseudiriaquevocêestáemboasmãos.

– Abby? – Eume viro e vejo Caitlin à porta, segurando uma pilha depáginasfotocopiadas.Elavêmeuspéscommeiaeamanchadodelineadoraoredordosmeusolhos.–Estátudobem?

–Estátudoótimo!–digocomalegria.–Pareiparadizeroi.–Caitlinnãoacredita e, claramente, nem o doutor Mann. Mas ele apenas assenteeducadamenteepegasuablusa.

– Seria bom tomar um chá – diz, caminhando em direção à porta. –Vocêsaceitam?

–Não,obrigada–dizemosemuníssono.Assimqueaportasefecha,Caitlincaminhaatéondeeuestou.–Oquevocêestáfazendoaquideverdade?– O doutorMann acabou de perguntar se guardominhas lembranças

reais–sussurro,apesardeestarmossozinhasnasala.–Eunãodissenão.–OrostodeCaitlinseilumina.

–Então,vamoscontaraele?–elaperguntaanimada.–Nãosei.Talvez.Masnãovimporisso.–Abby,seelesabe,porquenão...–Eumelembrodabriga.Caitlinsecala.– Oh. – Ela mexe na pulseira da avó. – Foi horrível – ela diz

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delicadamente.–Não fomosnós–eudigoaela,comose fosse fazeralgumadiferença

agora.–Foramelas.–Aquelasvacas.–Éumapiada,masavozdelaestátriste.– Como terminou? – pergunto. – Por favor, adiante para o inal feliz.

Comofizemosaspazes?–Não izemos–eladiz.–Nãoo icialmente,pelomenos.Vocêtelefonou

paramimnoseuaniversárioeagiucomosenuncativesseacontecido.Foiaprimeira vez que nos falamos desde o dia da briga. A menos queconsideremos o encontro que seus pais combinaram no dia damudança,que foi tão estranho e péssimo que minha mãe começou a chorar doisminutosdepois.

Mas de 30 de outubro a 9 de setembro são quase onze meses. OmáximodetempoqueCaitlineeu icamossemnosfalarforamtrêsdias.Oinal de semana doMemorialDay de 2003, quando ela não reservou umassento para mim no ônibus para o aquário na excursão do sexto ano(descobri depois que a senhoraDobsondisse que ela não podia guardarassentos).

– Paramos de ser amigas por causa de umcara? – pergunto. – PorcausadoTyler?

Caitlinhesitaporumsegundo,eentãodiz:– A briga não foi pelo que você disse ao Tyler. Não mesmo. Fiquei

chateada com isso, e envergonhada com o que ele fez no refeitório, ehorrorizadacomoquevocêdissea respeitodoCraig... –Avozdela falhaumpoucoaodizeronomedele.

–Ai,Caitlin,meuDeus.Nãoacredito...sintomuito.– Tudo bem – ela diz. – Eu disse coisas terríveis também. Já estava

muitobravacomvocê.–Bravacomigoporquê?Eladesviaoolhar,masvejoseuolharferido.–VocêprometeuqueeditariaminharedaçãoparaaYale.Aredação.AúnicacoisaqueCaitlinmepediuparafazerporelanoano

passado. A única coisa. Quantas vezes prometi revisar? Meia dúzia, nomínimo.Eume lembrode ter icado irritadapor ela acharque tinhaqueicar pedindo sem parar, apesar de eu ter dito que faria. Como se euprecisasseserlembradadecomoissoeraimportanteparaela.Sabiacomoelasesentiaemrelaçãoasuadislexia.Oquantodependiadaminhaajuda.Enem cheguei a ler. A pior parte é que não tinha nem sequer me dadocontadequehaviaesquecido.

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Sinto as axilas formigarem de vergonha. Posso culpar minha paralelapormentir a Tyler e por dizer o que disse a respeito de Craig,mas essapromessa não cumprida é culpa de nós duas, porque eu também meesqueci.Comasaulas,oensaiodapeça,otreinodecross-countryeminhasinscriçõesparaa faculdade,nãosobroumuitoespaçonomeucérebro.Eume lembro de ter me sentido sobrecarregada pela maior parte dosemestre,sótentandomantersobcontroletodasascoisas.Quantasoutraspromessasnãocumpri?Quemmaiseudecepcionei?

Souumaidiota.Umaidiotaegoísta.Agora,tudofazsentido.–Cate,sintomuitíssimo–digoaela,comosolhosmarejados.– Eu também – ela diz e me abraça quando as lágrimas escorrem. –

Deviaterditoporqueestavachateada...ou lembradovocêdenovo.Sabiaque você se esqueceria. Mas estava tão ocupada com suas coisas, e euimaginei que as redações não importariam tanto seminha pontuação noexamefossealta.Nãofoi,eeuenlouqueci.

Eumeafasteieolheiparaela.–Doqueestáfalando?– Eu me dei mal – ela diz. – Duzentos pontos a menos do que meu

simulado.–Ai,Caitlin.Porquenãomecontou?–Estavacomvergonha–elaresponde.–Nãoconteianinguém.–Sinto

umapertonopeitoaopensarnelapassandoporissosozinha.Devetersesentidomuitodesapontada.Ansiosaecommedo.–Nãoconseguiefoimaisfácilculparvocêporisso.Euaindaestavabembrava.Disseamimmesmaque seminha redaçãoestivessemelhor, apontuaçãonão teria importadomuito.

–Espere,oquê?VocênãoentrounaYalelogodecara?Caitlinbalançaacabeça,negando.–Não.Fiqueinalistadeesperaatéfevereiro.Vocênãolembra?–Não!Naminhaversão,vocêrecebeuumacartadeadmissãoantesdo

DiadeAçãodeGraças.Caitlinparececonfusaporummomento.Eentão,percebealgo.– Martin Wagner – ela diz. – Aposto que ele foi o motivo pelo qual

entrei.Onomeéfamiliar,masnãoconsigodeterminar.–QueméMartinWagner?– O padrasto do Josh – ela responde. – Ele tinha que fazer minha

entrevistanaYale.Joshestavaajudandoapreparar.Depoisdanossabriga,

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pediumentrevistadordiferente.Amulher comquemacabei fazendo eraumpesadelo.

– Então, você estava fazendo isso – digo. – Minha paralela viu você eJosh no laboratório de química naquela manhã. – Ao falar o nome dele,outramemóriavolta.Sentadacomelenobalançodemadeira,sentindoosdedos dele na parte interna do meu braço enquanto nos beijamos. –Espere...éramosumcasal?–AntesmesmodeCaitlinresponder,seiquearesposta é sim. Não tem como o beijo não ter sido o começo de algo. Osmúsculosaoredordomeupeitosecontraem.–Porquantotempo?

– Não sei – ela responde e esboça um sorrisinho. – Você e eu nãotrocávamos detalhes dos relacionamentos. Só sei que terminou antes daformatura.

Formatura.Naversãorealdascoisas,euestavaemLosAngelesenãopude ir.Naépoca,disseamimmesmaquenãoeranadademais,masmearrependipornãoterido.

–Eufuicomoutrapessoa?Elaassente.–VocêfoicomoTylercomoamigos.–Depoisdeelechamarvocêevocêdizernão.Caitlinparecesurpresa.–Vocêselembradisso?–Não,sóconheçooTy.Evocê.–Olhoparaochão,tentandonãochorar.

Não era assim que as coisas deveriam ser. Tyler deveria ter ido ao bailecomCaitlin,nãocomigo.

– Ei – Caitlin diz delicadamente, tocando meu ombro. – Tudo bem.Estamosbem.Nofim,tudoficoucomodeveria.

Olhoparaela,osolhosqueconheçomaisdoqueosmeus,ebalançoacabeça,confirmando.

–Estamosbem–repito.– Estamos bem. – A voz dela não deixa dúvidas, como se ela nunca

tivesse sentido tanta certeza em relação a algo antes. Um sentimentoprofundoeinegáveldegratidãotomacontademim.Operdãodelaémaisdo que eumereço,mas eu o aceito totalmente. Seguro suamão e sinto agargantasecaderepente.

–Nãopoderiafazerissosemvocê–sussurro.Elaapertaaminhamão.–Poderia, sim.Masnãovaiprecisar.–Ela soltaaminhamãoeabrea

pulseira,umacorrentedelicadadeourocomumfechoantigo.–Tome–eladiz,colocando-aemmeupulso.–Enquantovocêacordarcomela,vaisaber

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queestamosbem.Eusorrio,passandoosdedospelospequenoscachosdourados.– Por que você atendeu? – pergunto. –No dia domeu aniversário. Se

você achou que ainda estávamos brigadas, por que atendeu o meutelefonema?

– Não sei – ela disse, pensativa. – Eu não pretendia. Mas fazia tantotempo, e era seu aniversário... acho que pensei que você estava seesforçando,entãoeupodia,pelomenos,ouviroquetinhaadizer.–Eladádeombros.–Quandoatendi,vocêagiucomosefossetotalmentenormalofatodeestarmeligando.Eusabiaquealgumacoisaestavaacontecendo,etrouxevocêaquiparafalarcomGustav.

–Vocênãomecontousobreabriga?Elabalançaacabeça,negando.–Nãoquisfalar–elaadmite.–Comovocênãoselembrava,eninguém

aquisabianadaarespeito,podiafingirquenãotinhaacontecido.Ouço um barulho quando o doutor Mann entra pela porta do

laboratório com uma xícara de chá e um bolinho pela metade. A outrametade está espalhada em migalhas na frente da camisa dele. O doutorMannnosvêolhandoparaeleesorri.Maisumpedaçodebolinhocaiemsuagravata.Controlominharisada.

– Eu deveria voltar ao trabalho – Caitlin diz, descendo do seubanquinho. –Gustavvai viajarparaMuniquena terça, equer terminarainscriçãoantesdepartir.

– Bem, então, deixarei você eGustav à vontade. – Elamostra a línguaparamim,esoutomadaporumaondadealívioporsaberque,apesardetudo, Caitlin e eu estamos bem. Eu a abraço. – Amo você – sussurro, e aabraçocomforça.

–Amovocêtambém–elasussurra.– Almas gêmeas – ouvimos a voz do doutorMann. – Amais linda das

relações humanas. – Ele está olhando com atenção para seu quadro,mastigando o resto do bolinho. – É o que anda faltando. – Ele bate asmigalhasda camiseta e se aproximadoquadro. Comamangadablusa eumpedaçodegiz,elefazdiversascorreçõesemsuaequação.

Quando termina, devolve o giz à borda da lousa e dá um passo paratrás. Seusolhosme fazem lembrardeumamáquinadeescreverantiga–direita, para baixo, esquerda, direita, para baixo, esquerda – enquantoanalisaasériecomplexadenúmeros,símbolosesinais.–Vocêquestionousepodiaperderseudestino–eledisse,comummovimentodecabeçaparaoquadro.–Não,seprimeiroencontrarsuasalmasgêmeas.

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–Almasgêmeas, noplural? –pergunto. –Quantas almasgêmeas cadapessoatem?

Ohomemsorriparasuaequação,comosearespostaestivesseànossafrente.

–Exatamentedequantaselaprecisar.Caitlinseguraaminhamão.–Menosumaparaencontrar–elasussurra.–Ei,Abby,paraqueméaquintafantasia?–Marissapergunta.Elaestá

curvada sobre o laptop, observando a sequência de abertura dos PowerRangersnoYouTubeenquantoBenassisteàWorldSeriesnaTV.

–Caitlin–respondo,largandoolivrodebiologiaquenãoestoulendo.–Maseumeesquecideperguntarseelaprecisadisso.–Procuroocelulardentrodabolsaeentãome lembrodequenãoestoucomele. –Ei,possopegarseutelefoneemprestado?–perguntoaBen.–DeixeiomeunacasadoMichael.

–Claro–eleojogaparamim.Michaelatendeaosegundotoque.–PorqueNickSwisherétãotolo?–Huh?–Abby?–QueméNickSwisher?–Umidiota!–Bengritadosofá.–Ele jogapelosYankees–Michaelexplica.–Porqueestá telefonando

docelulardoBen?–Nãoconsigoencontraromeu.Euodeixeiaí?–Achoquenão,masvouolhar.Ondeoteriadeixado?– Na sua cama – respondo, esquecendo que há pessoas na minha

frente.Benri.Corando,entronocorredorefechoaporta.–Não –Michael diz. –Não estou vendo. Tem certeza de que o deixou

aqui?–Achoque sim... percebiquenãoestava comelequandovoltei, enão

fui a lugar nenhum antes... – O Starbucks. Devo tê-lo deixado no balcãoquandocompreimeucafé.–Droga!

–Ah,não.Ondevocêodeixou?–Starbucks.Eupareiparacomprarcafé.–Telefoneparalá–elediz.–Talvezalguémotenhapegado.

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Telefono,masninguématende.Quandoestoudesligando,melembrodeque não ouvi a mensagem de voz que recebi daquele número.Rapidamente,ligoparaaminhacaixademensagens.

“Porfavor,digitesuasenha”,escutoavozdagravação.3-7-7-3.“Desculpe,vocêdigitouasenhaincorreta.”Tentodenovo,maisdevagardessavez,cuidandoparaacertar.“Desculpe,vocêdigitouasenhaincorreta.Porfavor,desligueetentede

novo.”Fico olhando para as teclas, confusa. 3-7-7-3. Os últimos quatro

númerosdo telefonedacasadeCaitlin.Temsidoasenhademeucorreiode voz desde que comprei meu primeiro celular. Será que quem pegoumeutelefonemudouasenha?Nãoprecisamdasenhaoriginalparaisso?

Abriga.Minhaparaleladevetermudadoasenha.Tento os quatro últimos números do telefone dos meus pais e os de

Tyler, mas nenhum dos dois funciona. Irritada comigo e com minhaparalela, e com o ladrão que pegou meu telefone, digito o número deCaitlin.Assimqueaperto ligar,onomedelaaparecena tela.Ficoolhandopara ele sem entender. Este é o telefone do Ben. Por que o namorado daminhacolegadequartotemotelefonedeCaitlin?

O telefone ainda está na minha mão quando a ligação cai na caixapostal.

–Oi,éaAbby–digodepoisdobipe.–PorqueoBentemoseunúmeronotelefonedele?EstouligandoparasabersevocêprecisadeumafantasiaparahojeesequerirnaInfernoconosco.Meavise.Eucomeçoadesligar.–Ah...perdimeutelefone.Liguenofixo.

–Vocêoencontrou?–ouçoumavozmasculina.Benestádepéàporta.–Não.–Entregoaeleotelefonee,então,passoporeleeentronasala.

–TelefoneiparaaCaitlin–digoaMarissa,maisaltodoquepreciso.–Elavaicomagente?–Benperguntacasualmente.–Caiunacaixapostal.–Queroperguntaraeleporque temonúmero

deCaitlinsalvoemseutelefone,masnãoenquantoMarissaestiverperto.Nossotelefonefixotoca,eMarissaoatende.– Oi, Caitlin! – ela diz ummomento depois. Escuta o que Caitlin diz, e

então assente. – Tudo bem, encontraremos vocês lá, então. –Olho para oBen, mas ele está mexendo no celular. – Sim – ouço Marissa dizer umpoucoantesedesligar.–Voufalarparaela.

–Elanãoprecisadefantasia?– Não – ela responde. – E ela pediu que eu dissesse que ela

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provavelmentenãovainaInferno.Dissequefalacomvocêdepoisnoshow.–Disseporquê?Marissabalançaacabeça,negando.–Maspareciaestressada.Talvezsejaporcausadotrabalho.–Sim,talvez.–OlhodenovoparaBen,maseleaindaestáocupadocom

otelefone.–AchoquevouatéoStarbucksparaverseelesestãocommeutelefone.

Indoparalá,pensonosmotivospelosquaisBenpodeteronúmerodeCaitlin. Marissa passou a ele. Marissa telefonou para Caitlin do telefonedeleeelegravou.

BeneCaitlintêmumlance.Afasto o pensamento de minha mente. Caitlin não faria isso com

Marissa.NãodepoisdoCraig.Nãohaveriacomoelafazerisso.Meu telefone, claro, não está no Starbucks. Irritada, frustrada e,

repentinamente,muitocansada,tomoumlattecomcarameloextraepegoo caminho mais longo para voltar ao meu quarto. Ben passa por mimquandoestoumeaproximandodaescadadeentrada.

–Voucomprarvodca–éoqueelediz.Nãodiminuiavelocidade.Marissaestánasala,fazendoumaparadademão.–Benestáagindodeumjeitoesquisito–eladiz.Omedorevirameuestômago.–Comoassim,esquisito?–Nãosei.Sóesquisito.Inquieto.–Ela lexionaaspernas,easabaixaaté

seusjoelhosestaremencostadosemseustríceps.–Eledissealgumacoisaavocê?

–Paramim?Não.Comummovimentorápido,elavoltaaficardepé.– Provavelmente estou exagerando – ela diz. – As pessoas agem de

modoesquisitoàsvezes.Nemsemprequerdizeralgumacoisa.Certo?–Nemsempre–concordo.Sóàsvezes.–Uau.AcompanhooolhardeMichaelpelasalaatéoWoolseyHall,esperando

ver mais uma fantasia. Mas vejo Caitlin usando óculos de plástico delaboratório,umaventalbrancojustoesapatosLoubotinmagenta,comsaltode doze centímetros... e nada mais. Os cabelos loiros e compridos estãopresosemumrabodecavalobaixo,enorostonadademaquiagem,anão

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ser as cinco camadas de rímel que cobrem seus cílios. Está linda. Derepente,mesintofeiacommeuuniformeamarelo.

– Já volto – digo, e deixo Michael sozinho na ileira comprida. – Nãopercanossosassentos.

– Vou fazer o melhor que puder – Michael responde, escorregandoparaocentrodostrêsassentosqueescolhemos.MarissalevouBenaoIogaAmaldiçoada no cemitério da Grove Street, então, somos só nós doistentandosegurartrêsassentos.–Masvádepressa.Nãoseiatéquandovouafastarosurubusqueestãodeolhonascadeiras.

PassopelaspessoascomfantasiasatéondeCaitlinestádepé.–Policiais,enfermeirassensuais...porquenãocientistas?–Foioquepensei–elaresponde,fazendoumalevereverência.– Por que não veio à festa com a gente? – Pergunto quando voltamos

entreamultidãoemdireçãoaosnossosassentos.–Ah,eutinhaumtrabalhoparafazer–eladiz,demodotranquilo.–Àsdezdanoitedeumsábado?–É.Caitlinnãousarespostasassim.–Porquenãoacreditoemvocê?Elasuspiraeolhanosmeusolhos.–Ben.Paro de andar.Um cara gordo, fantasiado deBuzz Lightyear, do ilme

ToyStory,apareceatrásdemim,equasemederruba.–Desculpe!–elediz.Caitlinmeempurraparaforadocaminhoquando

elepassa.–Nãoestáacontecendonada–elamedizcomavozbaixa.–Eletemoseunúmeronotelefonedele.– Ele pediu quandome acompanhou até em casa depois do jantar no

seuaniversário.Fezdemodotãocasualquenãopenseinada.– Ele acompanhou você até sua casa depois do meu jantar de

aniversário?Caitlinconcorda.–Michael foi comvocê e aMarissadevolta aoOldCampus, eBenme

levou. Eudissequenãoprecisava, pois eu era amenosbêbadade todos,maseleinsistiu.Ficamosconversandoe,quandovi,jáeramtrêsemeia.

– São memórias alternativas – digo a ela, falando baixo. – Na versãoreal,TylerligouparavocêlogodepoisdeoBenoferecerparaacompanhá-la,evocêsaiu.Nósquatrovoltamosparaomeuquartojuntos.

–PorqueoTylermeligouàsduasdamadrugada?–Caitlinpergunta.

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–Eracoisasua.Vocêsconversavamtodanoiteantesdedormir.– Toda noite? Ele também levava uma mecha de meus cabelos no

pescoço? – Caitlin emite um som irônico. – Por que os relacionamentosfazem comquepessoas bacanas se tornem idiotas?E nemposso rir deleporisso.

Nãorespondo.– Abby! – Michael faz sinal para que corramos. Um cara com uma

máscara de borracha do Bill Clinton aparece na ponta de nossa ileira, àprocuradeassentosvazios.

–Estouindo!–digo,eentãomeviroparaaCaitlin.–Oquemais?–Nãotemmaisnada.Algunstelefonemasee-mails.Sóisso.–EleéonamoradodaMarissa,Caitlin.–Euseidisso,Abby.–Vocêgostadele?–Eletemnamorada.–Vocênãorespondeuàpergunta.–Respondi, sim–eladiz com irmeza.Eentão:–Vamosnossentar, já

vaicomeçar.–Elegostadevocê?Perceboqueelahesita.–PobreMarissa–digo.Elavaisofrernessahistória,enãofeznadade

errado. Só é mais uma casualidade na reação em cadeia a que minhaparaleladeuinícioquandotentoubancaroCupido.

Caitlinparecemagoada.–Nãoqueriaqueissoacontecesse,Abby.– Eu sei – digo e aperto a mão dela enquanto nos aproximamos de

Michael.–Nãoésuaculpa.Éminha.AapresentaçãoanualdoDiadasBruxasdaOrquestraSinfônicadeYale

émaisdoqueumaapresentaçãodeorquestra.Osmúsicos tocama trilhasonora de um ilme mudo feito por alunos, com diversas sequências deaçãoeum inalpirotécnico louco (de jeitonenhuma segurança concordacom isso). Com três mil universitários en iados em um auditório queacomoda duzentos e cinquenta, é uma situação caótica. Quando as luzessãoacesasdepois,estouroucaesurdacomtodososgritos.

– Vamos ir até o Toad’s icar lá até fechar ou pedimos uma pizza? –Michael pergunta quando estamos a caminho da porta depois do show.

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Colocarmilharesdepessoasnoprédiofoimuitomaisfácildoquetirá-las.–Pizza–respondo.–Estoucansadademaisparadançar.– Ah, pizza é bom – Caitlin concorda. – Não como desde a hora do

almoço.–YorksideouWallStreet?–Michaelpergunta,pegandootelefone.–Yorkside–dizemosjuntas.–Legal.VouenviarumamensagemdetextoaoBen.Caitlineeutrocamosumolhar.Elafingebocejar.–Naverdade,pensandobem,achoqueo cansaçovenceua fome.Vou

paracasa.– Tem certeza? – Michael pergunta, escorregando a mão na minha

quando descemos os degraus doWoolsey.Muitas pessoas fantasiadas seespalham pela calçada e pelo cruzamento da College com a Groveenquanto seguranças uniformizados do campus tentam, em vão, passarpelaspessoas,quesemovememdireçãoàYorkStreetparairaoToad’s.–TodasasruaslevamaoToad’s!–Escutoalguémgritar.

–Sim,comcerteza–Caitlinabreumsorriso.–Divirtam-se.–Tomamosbrunchamanhã?–pergunto.–Claro.–Então,elaapertaaminhamãoedescepelacalçada.OtelefonedeMichaelapitaindicandoachegadadeumamensagem.– Parece que seremos só nós dois – ele diz. – Os pombinhos estão se

recolhendoporhoje.Yorkside está lotado quando chegamos, por isso nos separamos.

Michaelvaiaobalcãoparapedirnossapizza,eeupegoumassentopertodosfundos.

– Espero que goste de pepperoni – ele diz ao se aproximar damesa,equilibrando duas fatias e uma lata de cerveja. Está segurando os coposentreosdentes.

– Quem não gosta de pepperoni? – Levanto uma fatia do prato e douumamordida.Amozarelaquentegrudanocéudaboca.

– E aí, o que você achou da apresentação? – ele pergunta,mordendosuafatia.

–Acheidemais.Evocê?Eleassenteenquantomastiga.– Amei. É uma daquelas coisas incríveis da Yale, sabe? – Ele dámais

umamordida, e um pouco demolho de pizza suja seu lábio superior. Eucostumavatirarsarrodessascoisas–elediz.–Gruposcantandoacapella,festas temáticas,cantoriasem jogosde futebol.Mas,então,chegueiaquiepercebicomoébacanatudoisso.–Eri:–Bemtolo,masbacana.

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–Eunemsabiaqueessas coisas existiamantesde chegar aqui –digoenquantotentonãoolharparaomolhonabocadele.

–Então,oqueganhouvocê?–Meganhou?–NaYale–elediz.–Oqueconvenceuvocêaseinscrever?–Oh...–hesito.Osmotivospelosquaiseunãoqueriameinscrevervêm

à mente, motivos que mais parecem desculpas agora. – O currículo, euacho. –Quando estiver em dúvida, dê o mais sem graça e mais genéricomotivo.–Evocê?

– Lacrosse. E o fato de icar amais de duzentos e um quilômetros decasa.

–Númerodasorte?Eleri.– Eu tinha ummínimo de distância exigido. Queria icar a pelomenos

duzentos quilômetros de casa. Pra minha sorte, é bemmais do que issoagora.

–Comoassim?– Minha mãe se mudou no verão depois do meu primeiro ano. Para

Atlanta,naverdade.Hesito.–SuamãemoraemAtlanta?Onde?–LilacLane–elediz,demorando-senasvogais.Atentativaqueelefaz

para imitar o sotaque mais parece o jeito de falar do Crocodilo Dundeechapado.

–Emqualbairro?Eporquenãomecontouantes?– Não sei de nada além do nome da rua – ele diz. – E não comentei

porque não costumo comentar. – Seu tom de voz não abre espaço paramaisperguntas,maspelaprimeiraveznãomedeixodeterporisso.

–Masvocêsabequesoudelá,certo?–Quandodigoisso,pensoqueelepodenão saberdisso.Oquemaisachoqueele sabeque,naverdade, elenão sabe?Ai, meu Deus, ele nem sabe meu sobrenome. Procuro pensar,tentando me lembrar de alguma vez em que ele o disse, e não consigopensaremnenhuma.Assustador.

–Sim,tolinha,claroqueseiquevocêédelá.Estavapensandoemdizerisso,sónãodisse.–Essaexplicaçãoédefazerrir,masdecidomeconter.

–Quantotempovocêpassalá?–pergunto.–Anopassado,sóvolteiparacasanoDiadeAçãodeGraças.–Eesteano?–Amesmacoisa.Chegueinaquartaàsnovedanoite,e fuiemborana

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sextaàsnovedamanhã.Osmesmosvoosdoanopassado.–Viagemcurta.– Só trinta e seis horas – ele diz e pega a última fatia. Não fala mais

nada.Pegoumafatiadepepperoni,semsaberoquedizeremseguida.Ficamos sentados em silêncio por alguns minutos enquanto Michael

comeseusegundopedaçodepizzaeeubrincocomo restodomeu.Devomudar de assunto? Esperar ele dizer alguma coisa? Depois de algumasmordidas,elesorri.

–Sabeoquetornariaessastrintaeseishorasmelhoresesteano?–eleme pergunta. Seu tom de voz está mais leve agora, os olhos maisbrilhantes. – Jantar peruna casa daBarnes. – Ele dámais umamordida,observandominhareação.Estou tão felizporqueeleacaboudeusarmeusobrenome, que demoro um pouco para perceber que ele se convidouparaoDiadeAçãodeGraças.

– Temmolho de tomate em seu lábio – digo timidamente. Ele passa alíngua.–Aindatem–digoaele.Elesorriepegaumguardanapo.

–Vocêvaimedeixarsemresposta,nãoé?Eu me inclino para a frente, e meu polegar chega ao lábio superior

antesdoguardanapodele.–Sim–digo.–NãotempenadocaratristeesolitárioquenãosuportapassaroDia

deAçãodeGraçaslongedanamorada?– Não. – Minha voz sai séria. Sem pausa. Provavelmente porque, em

determinadomomentoentreousodapalavra“namorada”eesteinstante,parei de respirar. Foi a primeira vez que ele disse isso. De repente, demodo intenso, quero ser exatamente isso. A namorada dele, até onde odestinopermitir.

Abbyparalela,porfavor,nãoestragueisto.–Quepena–Michaeldiz,inclinando-sesobreamesaatéseurosto icar

a centímetros do meu. Pisco várias vezes enquanto sinto o cheiroapimentado edocedementa, pepperoni e loçãopós-barba.Quem poderiaimaginarqueocheirodeembutidospoderiaexcitarumapessoa?Meuslábiosformigam de ansiedade. Tenho pensado, o dia todo, naquele beijo queminha paralela ganhou do Josh, sem conseguir esquecer. É disso quepreciso: um beijo ainda melhor para substituí-lo. Deixo meus olhos sefecharem, sentindo os lábios dele nosmeus, desejando que estivéssemosnoquartodele,enãonesterestaurantelotado.

– Abby? – alguémme chama. Abro os olhos. Uma Ranger cor-de-rosa

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estáaoladodanossamesa,segurandoumaabóboradeplástico.–Marissa?Vocêestábem?–OBenterminoucomigo.– O quê? – Olho paraMichael. As sobrancelhas dele estão arqueadas,

surpresas,masaexpressãomeparecefalsa.Aexpressãoquealguémfarianuma festa surpresa que não é surpresa coisa nenhuma.Ele sabia. OlhoparaMarissa.–Quando?

–Umpouco antesde eu vomitarnesta abóbora – ela diz com tristeza,segurando o pote de plástico laranja que está mesmo cheio de vômito.Michaelseretrai.Pegoaabóboraeacoloconochão,embaixodamesa.

– Sente – digo a ela, escorregando para o lado para abrir espaço. –Quantovocêbebeu?

–Demais.–Elaencostaatestanamesa.OlhoparaMichael.–Hum...voupegarumpoucodeágua–eledizeselevanta.–Oqueaconteceu?–perguntoassimqueMichaelsai.–Nãosei.–Elaolhaparamimcomosolhosvermelhos.–Elecomeçoua

agirdeummodoestranho.Fiqueiperguntandooqueestavaacontecendo,eele icoudizendoqueestavacansado, só isso.Masnãopareciacansado,sabe?Eudisseisso,eeleretorceuorosto,edissequequeriaesperaratéodiaseguinteparamecontar,massentiaqueestavamentindopornãomedizernada.Eentão,avozdele icouembargada,eeumeliguei.–Osolhosdela icarammarejadosdenovo.–Eledissequenãoqueriamemachucar,masnãosesentiamaisdamesmamaneira.Efoiquandoeuvomitei.

–Ondevocêsestavam?–Voltandodocemitério.–Vocêfeziogaassim?Elaassentecomtristeza.–Nãoseideondepegueiaabóbora.Alguémdeve tê-ladadoamim.–

Elaatocacomopé.–Temdocealidentro.Olhoparabaixoemearrependonomesmoinstante.Nãovomite,nãovomite,nãovomite.Michaelvoltacomumcopodeáguaeumacestadepães,queelecoloca

namesanafrentedeMarissa.Elaolhaparaocopodistraidamente.–Devo... –MichaelolhaparaMarissaedepoispara seuassento, como

senãotivessecertezaarespeitodoquefazer.–Achoqueestamosbem–digoaele.DuvidoqueMarissaqueiraqueo

melhor amigo de seu ex-namorado a veja chorando por causa dorompimento.Alémdisso,apesardeacharquenãoposso icarirritadacom

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Michael por não criticar Ben, parece que ele está no time do Ben, sendoque,nomomento,eumetorneicapitãdotimedaMarissa.Nenhumdenósestáneutro.–Ligoparavocêamanhã?

Michaelparecealiviado.–Aguente irme–eledizparaMarissaetocaoombrodela.–Avisese

quiserqueeudêumsoconacaradele.OsolhosdeMarissavoltamaficarmarejados.–Euadoroacaradele–eladizcomtristeza.LançoaMichaelumolhar

de“émelhorvocêiragora”,eeleentendeamensagem.– Você precisa comer alguma coisa – digo a Marissa quando icamos

sozinhas.–Umpoucodepão,pelomenos.–Cortoumpedaçoeentregoaela.–Achoqueéintegral–minto.Maselapegaorestodeminhapizza.

–Tempepperoni.– Não consigo esquecer – ela me diz, enquanto mastiga, sem se

preocupar ou sem perceber que está quebrando cerca de dez de suasregrasemrelaçãoàcomidanomomento.–Parecequeaconteceualgumacoisa hoje... mas nada aconteceu. Ele icou comigo o tempo todo. Nãoconsigoentender.–Elaen iaorestodafatianabocaepegaoqueMichaeldeixou.

Eu, claro, sei exatamente o que aconteceu. Ben percebeu que seusegredonãoeramaissecreto.SentiuqueprecisavaescolherentreMarissaeCaitlin,eescolheuCaitlin.Elenãopercebequeacaboudeperderasduas.

Mas aquestãoéqueelenãodeveria terpensadoqueCaitlin eraumaopção. Ela deveria ser carta fora do baralho na noite em que eles seconheceram, pois era comprometida. Mas isso não aconteceu porqueminhaparalelatentoubancaroCupido,destruindoarelaçãodeCaitlincomTyleretambémadeMarissacomBen.

Claro,minhaparalelanãosabiaquesuaspalavraserampoderosas,nãosabiaqueasconsequênciasdesuamentiraseriamgrandesdemais.

Nuncasabemosdessascoisas.Tudoéumacausa.Não é uma ideia nova, mas, ainda assim, ico petri icada diante da

verdadequeelatraz.Tudooquefazemostemimportância.SeguroamãodeMarissa.–Sintomuito–digoaela,sabendoqueessaspalavrasnãobastam,mas

sentindovontade,enecessidade,dedizê-lasmesmoassim.

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Novembro

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10(Aqui)quinta-feira,26denovembrode2009(DiadeAçãodeGraças)

–Vocêestáperdendoodesfile.Observoporbaixodoscobertoresevejomeupaidepénaporta,ainda

comoroupãodebanho,segurandoumacanecadecafé.Seuscabelosralosestãodespenteadosporqueeleacaboudeacordar.

–Vocêtambém–retruco.–Porquenãotenhoninguémcomquemassistir.Suamãeestáocupada

imitandoMarthaStewartnacozinha.Apesar de sermos só nós três este ano (meus avós estão passando o

mês de novembro em uma excursão pela América do Sul), minha mãeplanejou uma refeição para este dia com receitas extremamentecomplicadasqueencontrounainternet.

–Vamosnosencontrarnasalaemcincominutos?–Eviteaescadados fundos–elealerta.–Seelavirvocê,vaicolocá-la

paratrabalhar.Eentão,nãopodereiserseusalvador.Dourisada.– Escada da frente, entendi. – Ele assente e então desce o corredor.

Escuto quando ele desce os degraus. Alguns momentos depois, liga atelevisão.

Ficomais algunsminutos na cama. Aminha cama. Com tudo que temacontecido, icoaliviadaporestaremcasa,nomeuquarto,ondeatémesmoos cheiros são familiares.À exceçãoda lâmuladaYale pendurada acimademinhaportaedasfotosdeformaturapresasnomeuquadrodeavisos,tudoestádojeitoquedeixeiquandomemudeiparaLosAngelesemmaiodo ano passado. É incrível como a vida pode mudar drasticamenteenquantoadecoraçãodoseuquartopermaneceexatamenteigual.

Fazvinteeseisdiasdesdeminhaúltimamudançaderealidade,oqueébom, porque elame deixou acabada. Não tenho dormido bem e, quandoestou acordada, me sinto distraída e nervosa. Repassar as coisashorrorosasqueCaitlineeudissemosumaàoutranacafeterianaqueledianão é tão horrível quanto reviver a noite do acidente de Ilana (o que eu

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ainda faço,pelomenosumavezpordia),masas lembrançasdabrigaeoqueveiodepoisaindameassombramdeumjeitodiferente.Euacreditavaqueacordaremoutro lugarerameumaiorrisco.Agora,seiquehámuitomais coisas em jogo. Estamos a uma decisão ou duas de destruir osrelacionamentos mais importantes para nós e para as pessoas queamamos.Enamaiorpartedotempo,nemsabemos.

Agoraeusei.Agoraeuvejo.Masessanovaconsciêncianãoéaúnicacoisaquetemmeperturbado.

ExistetambémofatorJosh.Contraaminhavontade,meucérebroguardouaquele beijo na véspera do Dia das Bruxas, ano passado, no arquivo deMelhorBeijodeTodos,apesardeminhatentativadesubstituí-lopelobeijodeMichael(que,valelembrar,équembeijamelhor).Masnãoésóobeijoque não vai embora. São todas as lembranças de Josh que tenho desdeentão.Nósdoisdemãosdadasnocorredor,comendoSkittlesnocinema,euolhandoparaeledooutroladodasalanaauladeAstronomia.Nãohánadade especialmente importante nesses momentos, mas isso não impediuminhamente de destacá-los. Enquanto isso, minhas lembranças reais, asnovas, osmomentos comMichael que euquero guardar, foram relegadosaostatusde“Oh,issoaconteceu”.

Michael. Ao pensar nele, meu coração acelera um pouco e sinto umadorzinha no estômago. A alegria competindo com o medo. Quanto maissérios icamos,mais eu temonosso im inevitável. Felizmente, nãopareceque esse im foi hoje. Não repasseiminha listamatinal ainda,mas com alâmula azul sobre a porta e a pulseiradeCaitlin nopulso,me sinto bememrelaçãoàspossibilidades.Pegomeu telefoneno criado-mudopara tercerteza.

A única desvantagem em perder meu telefone no Dia das Bruxas foidescobrirqueeupoderia fazerumupgrade,ouseja,pegarummaisnovopelametadedopreçonormal.Comoaproveitaraofertasigni icariarefazero contrato, decidi pegar um novo número também. É bobo,mas termeucódigodeárea203fazcomqueeumesintaenraizadaaNewHaven,comoseeu,decertomodo,estivessedizendoqueexistoaqui.Comoserealmentepertencesse.

Averdade, claro,équenãoénadadisso.Meu lugaréLosAngeles,outalvezNorthwestern,e,pormaisqueeupercebaminharealidade,seiqueelanãovaidurar.Nãopode,agoraqueCaitlineminhaparalelanãoestãoconversando. O prazo para a inscrição na Yale é daqui a uma semana, esem Caitlin para convencê-la, minha paralela não vai se inscrever. Paradizer a verdade, por mais grata que eu esteja por ter conseguido mais

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algumassemanascomMichael,nãoconsigoentenderporqueaindaestounaYale.Peloquesei,minhabrigacomCaitlinapagouqualquerchancequeminha paralela tinha de acabar aqui. Talvez ela decida se inscrever porvontade própria? Émelhor correr, porque ela só tem uma semana até oprazofinale,nomomento,estádeterminadaanãoseinscrever.

Toco no ícone da câmera e procuro as últimas fotos de minha pasta.GraçasaDeus izobackupdemeutelefonetrêsdiasantesdeperdê-lo.ÀexceçãodealgumasdasemanaantesdoDiadasBruxas,aindatenhotodasas fotosque tireidesdea colisão.MinhavidanaYale, em fotos.PuloparaaquelaqueCaitlintiroudeMichaelolhandoparaotraseirodeoutragarota(euapagaria,maséaúnicaquetenhode22denovembro),eparoemumafoto dele comigo no jogo entre Yale e Harvard sábado passado. Estamosabraçadospertoda traseiradoBeta, segurando coposde isoporde cidraquente,comonarizvermelhoporcausadofrio.Afotoseguinteédanoiteanterior,cincosegundosdepoisdeMichaelmedizer,pelaprimeiravez(eúnica, até agora), que me amava. Estávamos na cozinha dele, fazendopipoca de micro-ondas às três da manhã, quando, de repente, ele disse:“Você sabe que amo você, Abby Barnes”. Assim, como se estivessea irmandooóbvio.Sim,foiesquisitoquandopergunteiaelesepodiatirarumafotodelelogodepois,masaestranhezavaleupelaprova.

Continuoprocurandoaté chegarà fotode13denovembro,namanhãem que eles divulgaram a lista do elenco deArcádia com meu nome notopo.Issomefazsorrirtodasasvezes.Osensaiossócomeçamnaprimeirasemanadopróximosemestre,masoDramatrealizoutestescedoparatirá-loslogodocaminhoantesdasprovas(que,infelizmente,começamemduassemanasapartirdesegunda).

Detodas,afotonatraseiradoBetaéminhapreferida.Meucabeloestásoltoeonduladoaoredordosmeusombros,emeusolhosparecemquaseprateados ao sol do meio-dia. Os olhos verdes de Michael estão viradosparamim,eseuslábiosestãoabertosemumarisada.Nenhumdenósestálindo,mastemumtoquede“oi,somosumcasalfeliz”naimagem.

Caitlinmeperguntouontemseestouapaixonada.ElasabequeMichaelfalou que me amava na sexta-feira passada e também sabe que eu nãofaleiamesmacoisa.Quisdizer,masomicro-ondasapitoueumdoscolegasdequartodeleentrouetodoscomeçamosacomerpipoca.Nãoexatamenteumcenárioapropriadoparaum“eutambémteamo”.Caitlintambémsabedessaparte.Então,aperguntadelamepegoudesurpresa,eeupareiparapensar. Estou apaixonada por ele? Como alguém pode distinguir entreamoregrandecarinho?Essadistinção toda tem importância?Aquiestáo

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que eu sei: gosto de estar com ele. Gosto de como ele faz eu me sentir.Gosto de acordar com ele, totalmente vestida, e nenhum de nós seincomodarcomisso,sobolençolxadrezdele.Essascoisassãoamor?Achoquesim,masnãotenhocerteza.EfoiexatamenteoquedisseaCaitlin.Elarespondeucomumcomentáriomisteriosodotipo“con ieemsuaintuição”enãodissemaisnadadepois.

Ding!Maisumamensagemdetextoapareceemminhatela.Michael:FELIZDIADEAÇÃO!SAUDADE.Sorrioaoresponder:IDEM.NÃOSEESQUEÇADEMANDARSEUENDEREÇO.AmensagemquemandoemseguidaéparaTyler.Eletemagidodeum

modoestranhonasúltimassemanas,e issomefazpensarquepodeestarirritadocomigoporalgummotivo.Eleeeuconversamospormaisdeumahora depois do Dia das Bruxas, mas, desde então, não tenho conseguidofalarcomeleao telefone,equandoelerespondeàsminhasmensagens,ésempreuma resposta de umaouduas palavras.Nãoque oTyler seja deescrever muito, mas normalmente ele manda piadinhas ou algumcomentáriosarcástico.

VCTÁEMCASA?PODEMOSNOSVERAMANHÃ?–escrevo.–Abby!–minhamãeestáchamandodacozinha.–Precisodesuaajuda

aqui!– Estou indo! – grito. Jogo o telefone na cama e desço para a cozinha,

onde minha mãe está totalmente ocupada com o peru. Meu pai estásegurandoaaveenquantoelaorecheia.

– Ela me enganou – ele diz. – Usou a técnica antiga do “vem cá umminutinho”.

–Esseperuprecisaassarporseishoras.Jásão8h12min.–Minhamãeestáen iando,depressa,salsãoecebolanacavidadeoca.–Abby,temumaboladebarbanteemalgumlugarnadespensa.Podeprocurá-la,porfavor?Etemumsacodelimãonageladeira.Tambémprecisodele.

–Claro.–Quehorasvemonamorado?–meupaipergunta.–Nãoseibemainda.Elenãotemcarro,porisso,voubuscá-lo.–Saioda

despensacomobarbante.–Dequetamanhoprecisa?–Nãosei,leiaareceita–minhamãeresponde,secandonamangauma

lágrimacausadapelacebola.–Estánobalcão,ali.–Ascoisascomessecarasãosérias?–Pai.–Oquefoi?VocênuncaconvidounenhumrapazparaoDiadeAçãode

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Graças.Pareceseralgoimportante.–Bom,masnãoé–insisto,apesardeparecerqueé.–Elenãoémuito

próximo da família e não tem amigos aqui porque os pais se mudaramdepois que ele entrou não faculdade. Por isso, eu o convidei para comercomagente.Sóisso.

–Porqueelenãoépróximodafamília?– Não sei. Mas não vamos perguntar isso a ele durante o jantar, está

bem?–Talvez você devesseme dar uma lista de assuntos permitidos antes

deelechegar.Mostroalínguaparaele.–Vocênãotemqueassistiraumdesfile?–VocêconversoucomoJosh?–Minhamãeperguntaquandoentregoo

barbanteaela.Aperguntamefazcongelar.–Hum,não–digo,repentinamentemuitointeressadanosacodemilho

sobre o balcão. – Deveria telefonar para ele – digo, porque é o que aspessoasdizem.

–Deveria–minhamãediz.–Claroquenãoseioquerolouentrevocês,maselesemprefoimuitobacana.Sepudersalvaraamizade,seriabom.

–Edapróximavezquevocêcortar laçoscomumex-namorado–meupaidisse–,nosconte,estábem?EusoubepeloJoshquevocêtinhaparadodefalarcomele.Pore-mail,ainda.

Levantoacabeça.–Oquê?– Quando enviei a vocês dois aquele texto sobre Lewis Carroll ter

escritoAlice no País dasMaravilhas em um barco – ele diz. – Há algumassemanas.Pergunteiseelenosvisitariaenquantovocêestivesseaqui,eelerespondeuquevocêhaviaparadodeatenderaostelefonemasdele.

Meu coração começa a bater depressa. Há algumas semanas? MinharealidadenãomudoudesdeoDiadasBruxas,então,semeupaienviouume-mail, eu deveria me lembrar de tê-lo recebido. – Acho que não recebinenhume-mailseuarespeitodeAlicenoPaísdasMaravilhas–digo.

–Hum–eleparececonfuso.–Queestranho.–Podemerepassaroe-maildeJosh?–Claro–eleresponde.– Pronto! –minhamãe avisa, afastando-se do peru. – Coloque isto no

forno–eladiz,evoltaàpiaparalavarasmãos.Abroaportadofornoparameupai,eelecolocaaavedentro.

– Pode fazer isso agora? – pergunto assim que a tampa do forno se

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fecha.–Quehorassão?–Minhamãegritadapia.–Oitoedezenove–dizemosemuníssono.–Seeupossofazeroqueagora?–Repassaroe-maildoJosh.Precisomuitovê-lo.–Claro–meupaidiz.–Deixe-mesópegarmeuBlackBerry.–Eleentra

nasala.– O queaconteceu entre vocês dois? –Minhamãe pergunta enquanto

analisasualistadeafazeres.–Foiadistância?Eu me sinto nauseada. Se minha mãe está perguntando sobre a

distância,querdizerqueJosheeuprovavelmenteaindaestávamosjuntosquando fui estudar na Yale. Nunca imaginei que Caitlin pudesse estarerrada: que Josh e eu pudéssemos ter durado além da formatura e atédepois da graduação. Certo, talvez eu tenha pensado, mas disse a mimmesmaquenãoerapossível. Poucos relacionamentosdeescoladuram.Apalavra“amor”estápesando,masvouafastá-la.

– Hum, é... a distância. – Pena eu nem saber de que tipo de distânciaestamos falando. Quebro a cabeça, tentando me lembrar de onde Joshdisse que gostaria de estudar. Na Costa Oeste, em algum lugar. Paracontinuarostreinos.

– Ele sabe sobre Michael? – Minha mãe pergunta ao entrar nadespensa.

Maisumaondadenáusea.Pensarquepodeterocorridoumaconfusãofaz meu peito doer.É considerado traição quando você não sabe que vocêestánamorandoocaraqueestátraindo?

–Aindanão–digo.– Bem, ele vai acabar sabendo – ela diz de dentro da despensa. –

Apostoqueeleprefeririaqueviessedevocê.MeupaireaparececomseuBlackBerry.–Paraquee-maildevoenviar?–elepergunta.– Para o doHotmail – digo a ele, surpresa por ele estar perguntando.

ElesabequesóusooendereçodaYaleparacoisasrelacionadasàescola.– Pronto – ele diz, e coloca o BlackBerry em cima do balcão. – Agora,

vamos falar sobre oMichael. O que ele está estudando? Posso perguntarissoaele?

– Claro – digo, distraída com o e-mail que agora está esperando emminhacaixademensagens.–Precisotomarbanho.Tenhoquebuscá-loemumahoraeaindanãoseiondeelemora.

Subo os degraus de dois em dois e entro nomeu quarto. O e-mail de

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meu pai é a únicamensagem não lida emminha caixa demensagens. OassuntoéAliceinCoxswainland.Cliconela.

A segunda resposta de Josh é a primeira que vejo, enviada [email protected]. University of Southern California. Sim, a distânciacertamenteteriasidoumproblema.

OLÁ,SR.BARNES,

AABBYPAROUDEMEATENDER E DE RESPONDER ÀS MINHAS MENSAGENS HÁ ALGUMAS SEMANAS. ENTÃO,ACHOQUENÃOVEREIVOCÊSNODIADEAÇÃODEGRAÇAS.ESPEROQUEO SENHOREA SRA.BARNES ESTEJAMBEM.

ATÉMAIS,JOSHMuitotenso.Nadadeamenidadesnemeufemismos.Apenas:sua ilhaé

umavaca.Continuolendo.Amensagemquevemantesdessaédemeupai.JOSH, FICO FELIZPORVOCÊTERGOSTADO! IMAGINEIQUE GOSTARIA. VEREMOS VOCÊ NO DIA DE AÇÃO DE

GRAÇAS?

ANNAJÁESTÁEXPLORANDOAINTERNETÀPROCURADERECEITAS.ESPEROQUEVOCÊESTEJABEM.TUDODEBOM,RBP.S.:DIGAÀMINHAFILHAQUEÉGROSSEIRONÃORESPONDERAE-MAILSENGRAÇADINHOSDOPRÓPRIOPAI.Continuo rolando a página. No im, está a mensagem original domeu

pai, endereçada a Josh e a mim para o [email protected],umendereçoquenuncaviantes.

Meu coração está batendo forte enquanto digito abigailhannahbarnesnacaixadenomedeusuáriodoGmail.Prendendoarespiração,digitop-a-í-s-d-a-s-m-a-r-a-v-i-l-h-a-s como senha e clico no enter. Dois segundosdepois, estou olhando para minhas sessenta e oito mensagens não lidas.PelomenosmetadedelasédeJosh.Analisoamaisrecente,enviadanodia31deoutubrode2009às19h08minPST.

Respirofundoeclicoduasvezes.ABBY,

DEIXEIUMAMENSAGEMEM VÍDEO PRA VOCÊ. PRECISO MUITO FALAR COM VOCÊ. TENHO UM PLANO! LIGUEQUANDOPUDER.MEUCELULARNÃOESTÁFUNCIONANDO,ENTÃOTELEFONENOFIXO:310-555-1840.

JSintomeu peito oprimido.Aqueles telefonemas noDia das Bruxas eram

dele. Ele é o número de Los Angeles que eu não conseguia identi icar, amensagemdevozquenãoconseguiouvir.Apesardeeusóterouvidoavoz

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dele em minha mente, imagino como poderia estar em minha caixa demensagensnaquelamanhã,pedindoparaqueeutelefonasseeesperandoqueeuofaria.Mas,claro,nãotelefonei.Nemnaqueledianemdepois.Sintoum forte arrependimento. Se eu não tivesse perdido o telefone naquelamanhã, teria ouvido amensagem.Não sei como teria lidado comela,mascertamentenãooteriaignorado.Masignorei.Nãoporumoudoisdias,masporquaseummês.

Com o peito cada vez mais apertado, clico em uma mensagem maisrecente,de10denovembrode2009.Dezdiasdepois.

ABBY,

NÃOQUEISSOIMPORTE,MASOTÉCNICODAUCONNMEOFERECEUUMAVAGANOTIME.EU IAMETRANSFERIR.ÉOQUEEUQUERIALHEDIZER.ERAOMEUGRANDEPLANO.DEIXARIAUMAESCOLAEUMAEQUIPEQUEAMOPARAESTARMAISPERTODEUMAGAROTAQUEAMOAINDAMAIS.MASACHOQUEFOIMELHOREUNÃOTER FEITO ISSO, JÁQUEELANÃOESTÁNEMAÍPARAMIM.

JOlho para a minha tela como se estivesse observando um desastre

automobilístico,semconseguirdesviaroolhar.Elemeodeiaagora.Essa consciência me afeta mais do que eu esperava. Nunca nem vi o

Josh – não pessoalmente. Ele existe apenas em fragmentos, como umasimpleslembrança,semaemoçãodaexperiência.Masnestemomento,melembromaisdeledoquepenseiquemelembrasse.Asimagenssurgememminhamente,novasmasfamiliares.Lembrançasalternadasquetenhomeesforçadoparaignorar.Joshlevandominhabolsaparamim.Joshcantandocom o rádio no jipe. Josh passando as mãos pelos cabelos. O sundae decarameloquedividimosnoprimeiroencontro,eobeijo longonaportadecasaquandoelemedeixouaqui, os lábiosdele aindadocespor causadosorvete. O ursinho azul gigante que ele ganhou para mim na Feira daGeórgia.A fotoque izemoscomotelefonedelenoaltodaroda-gigante.Omodocomqueeleestavasobaluzdaluanocaminhoparacasa.

Derepente,eugostariadepodertrocardelugarcomaminhaparalela.Não permanentemente. Apenas... por um dia. Uma hora, que fosse. Só otemposu icienteparasabercomoéseguraramãodeJosh,beijá-lo,sentirsua respiração no meu pescoço. Fecho os olhos e volto para lá, naquelebanquinhopertodolagonobairrodele,oslábiosdelenosmeus,comgostode canela e sabonete, torcendoparaque a horapare e eunãoprecise irparacasa.Eumeentregoaessalembrança,absorvendocadadetalhe.Nãomepermitifazerissonemumavez,commedodeondepoderiamelevar.O

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que eu poderia sentir. Mas foi um erro, porque existe verdade nessaslembranças.Clarase cruas.É claroque Josheeuaindaestávamos juntosquandopartimosparaafaculdade.Nãoéapartequesurpreende.Apartemais surpreendente é que terminamos. Com essas lembranças, pareceimpossívelquepudéssemosfazerisso.

Eu desço, passo pelas mensagens não lidas e vou para as marcadascomo lidas, clicandoemumade29deagostode2009.Nodiaemque fuiparaaYale.Haviaumamensagembonitinhade Josh,naqualeleescreviaque já sentiaminha falta, euma respostaqueescrevi.Olhoparaaminhatela, surpresa com o fato de que, por causa de um acidente cósmicomaluco,estoulendoumatrocadee-mailsqueminhaparalelaterácomseunamoradodaquianovemeses.

Cliconamensagemseguinte enamensagemdepoisdessa, precisandoler cada uma. As primeiras estão cheias deeu te amo esinto sua falta epapos sobrevisitase feriados.Masnãodemoramuitoparao tommudar,para que a ansiedade, a dúvida e o medo apareçam. Minha paralelacomeça a escrever coisas comoTalvez tenha sido loucura pensar quepoderíamos fazer isso, e Josh começa a escrever coisas do tipoNão vamostomardecisõesagora, estábem ?Mas deveríamos saber que as coisas nãosãoassim.AAbbyqueeleamanãoéotipodegarotaqueesperaparaver.AAbbyqueeleamanãosabelidarcomaincerteza,porissoelafoge,comoeucostumavafazer.

Linhadoassunto:Hojeànoite.Enviadanodia25desetembrode2009.ABBY,

SINTOMUITOPORTERREAGIDOCOMOREAGIHOJEÀNOITE.GOSTARIAQUETIVÉSSEMOSTIDO ESSA CONVERSAPESSOALMENTE. SEI QUE A DISTÂNCIA É GRANDE.MAS SABÍAMOS QUE SERIA, E NEM SEMPRE ESTAREMOS TÃODISTANTES.PORFAVOR,NÃOFAÇAISSO.VALEAPENALUTARPELOQUETEMOS.VAMOSDARUM JEITO, JUNTOS.EUTEAMO.

JOSHPermaneçosentada,semmemexer.Semmeabalar.Veraspalavrasde

modo claro, sabendo como vai terminar e quando e por que – essaconsciênciadeveriameconfortar.Mas,emvezdisso, tenhoumasensaçãoruim,umfrionabarriga.Ela icoucommedo,por issodesistiu.Detodososmotivosparaumrelacionamentoterminar,essedeveseropior.

Volto para um e-mailmais recente,meu preferido de todos, e leio denovo,emepermitoimaginar,apenasporummomento,quefoiescritoparamim.

ABIGAILHANNAHBARNES,

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VOCÊMUDOUAMINHAVIDA.HÁUMANO,QUANDOENTROUNELA.“VOCÊESTÁAQUIPELODESTINOOUPORESCOLHA?”,VOCÊMEPERGUNTOU.AGORAEUSEI.EUAMOVOCÊ!FELIZVÉSPERADEANIVERSÁRIO.JOSHFico pensando nessas palavras, na verdade simples delas. E então,

percebo:minhaparalela ainda estará com Joshno aniversário de dezoitoanos. De acordo com os e-mails que acabei de ler, eles só terão “aquelaconversa” daqui a duas semanas. Mas se isso é verdade, então meurelacionamentocomMichaelnãodevetercomeçadocomomelembro.Masé claro que começou. Tenho uma imagem dele gritando as letras de“WhattaMan”napistadaAlchemyparaprovar.

Comoissopodeserpossível?–Fácil–Caitlindizdepoisqueexplicoasituaçãoparaela.–Ésócausae

efeito.–Novaregra:quandoestivermos falandosobreenvolvimentocósmico,

vocênãopodeusaraexpressão“ésó”.Nunca“ésó”.–Vocêquerqueeuexpliqueounão?–Sim.Explique.–Seumaárvorecainaflorestaeninguémescuta,elafezbarulho?–Estoufalandosério,Caitlin.– Eu também! Você perguntou por que o relacionamento da sua

paralela com Josh não afetou seu relacionamento com Michael. Estoudando a resposta: porque ninguém sabia sobre ele. Pense bem: a únicapessoa no jantar de seu aniversário que conhecia você no ensinomédioeraeu,eeunãofaziaideiadequevocêeJoshaindaestavamjuntos.Pareidesaberdesuavidaquandoparamosdeconversar.

–Ai.Parecetãonojento–resmungo.–EubeijeioMichaelnaquelanoite,eaindaestavacomoJosh.

–Abby,vocênãoestava como Joshdeverdade. Ele só lembra como seestivesse.

Euseidisso,masaindaassiméestranho.– Abby! –Minhamãe chama da cozinha. – A que horas você vai sair

parapegaroMichael?Ai. Eu deveria estar na casa dele dentro de meia hora, e ainda não

tomeibanho.–Precisoir–digoaCaitlin.–Ligomaistarde.–Divirta-se–Caitlindizcantarolando.–Torcendoparaqueseupaifaça

algovergonhoso.

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–Voudesligarnasuacara–digo,eéoquefaço.Cinco minutos antes do que devo estar na casa de Michael, saio da

nossa garagem, com uma das mãos no volante e a outra segurando aspérolasdeminhaavó,queestouusandoparamedarsorteapesardeelasnão combinarem comminha roupa. Depois das revelações de hoje cedo,pérolasparadarsorteparecemadequadas.

No primeiro farol, entro na rua que o Michael enviou para o meu GPS,esperando um trajeto de pelomenos quinzeminutos.Tempo estimado dopercursodequatrominutos? Paroeolhoparaomapanaminhatela.LilacLane é uma rua curta no que parece uma grande subdivisão. Observo onome das ruas perto dela. Daisy Court. Rose Terrace. Gardenia Place.Aparentemente,oconstrutortinhafeticheporflores.

Umnome chamaaminha atenção: PoplarDrive, duas ruaspara cima.Houve uma festa ali no terceiro ano, antes de a rua ser pavimentada.DeixamosnossocarronacasadeTylerefomosandando.Agora,osnomesdas lores fazemsentido:PoplarDrive icanaGardenGrove,umpequenoconjuntodecasasmaisnovasnobairroamplodeTyler. OspaisdeMichaelmoramnobairrodeTyler ?Issoquerdizerqueseelestivessemsemudadoparacáháquatroanosemvezdedois,Michaeleeuteríamosfeitooensinomédio juntos. Será que teríamos sido namorados? Meus pais teriampermitido que eu o namorasse? Elesme deixaram ir ao baile com CaseyDecker no primeiro ano, mas ele só era do terceiro ano porque haviapuladoaprimeirasérie,eelesómeconvidouaobaileporqueasmeninasde seu ano o chamavam de Casey Chato. Acho que meu pai não teriagostadotantodeCaseyseeleseparecessecomMichael.

Fico tentando imaginar o quemeupai pensoudo Joshquando eles seconheceram.Nãooqueeledisseàminhaparalela,mascomorealmentesesentiu.Ajulgarpelotomdatrocadee-mails,meupaieraumgrandefãdoGarotoAstronomia.Seráqueelegostoudele instantaneamenteou foialgogradual?MeupaivaigostarmenosdoMichaelporqueelevai compará-loaoJosh?

Eu gostaria menos do Michael se pudesse compará-lo ao Josh?Compará-los,nãoapenasnaaparência,peloquemelembro,mascomoelessão como pessoas.Michael é esperto, charmoso e con iante. Josh é... umaversãodiferentedisso.Menos... encantador.Mais... o quê?Apalavra certonãosaideminhamente.Certo,certo,certo.

Parodiantedeumprédiomodestodedois andares, emestilo colonial,numaruasemsaída.Osnúmeros4.424estãopintadosnacalçada.Espere,é

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issomesmo?PenseiaovirarnaLilac,masessadeveseraPoplar. Jáestivenestaruaantes.Entrandoali,voltoparaocomeçodaruapara leraplacade novo. É Lilac, isso mesmo. Confusa, volto para o 4.424 e estaciono.Enquanto caminho na calçada até a porta, observo todos os detalhes. Ascortinas azuis-acinzentadas, o canteiro de lores, o comedouro depassarinhosnogramadodafrente.Jáviessacasaantes.Minhamenteestáprestesalocalizá-laquandoMichaelabreaportadafrente.

– Desculpe, estou atrasada – digo. – Eramais longe do que pensei. –Estoubrincando,maselenãosabedisso.Elefingeestardesapontado.

– Droga. Pensei que viveríamos perto o bastante para que eu fosse asua casaàmeia-noite epudesse jogarpedrasna sua janela. –Ele en ia acabeça dentro da casa de novo. – Vou sair! – Ele diz para quem está ládentro.Semesperarresposta,elefechaaporta.

Euentronavaranda.–Deveriameofenderporvocênãotermeconvidadoparaentrar?–É

brincadeira.Maisoumenos.– Claro que não. Quero que você conheça aminhamãe,mas a tensão

estáumpoucoaltademaisagora.AcabeidedizeraelesquenãovireiparacasaparapassaroNatalesteano,denovo.

– Você não passa o Natal com seu pai? – Michael me lança um olharestranho.Eumeexplico. –QuandovocêdissequepassavaoDiadeAçãodeGraçascomsuamãe,penseique...

–Meupaimorreuháquatroanos.– Oh, não sabia – digo, desejando desesperadamente rebobinar os

últimosdezsegundos.–PenseiqueaMarissa tivesseditoavocê– elediz. – Se soubesse, eu

contaria.–Comosevocêtivessemecontadomuitodevocê .Procuronãomeirritar.Meunamoradoacaboudemecontarqueseupaimorreu.Devosersolidária.Nãodevo icarirritadaporelenuncatercontado.Massomosumcasal e casais contam tudo uns aos outros. Michael quase não me contanada. Mas, mais uma vez, meu cérebro está cosmicamente ligado a umagarota que vive em um mundo paralelo, e eu não contei nada a esserespeito.

–Ei–eledizdelicadamente.–Nãoestavatentandoesconder,nemnadaassim. Só que, para mim, é di ícil falar sobre isso. – Eu mexo a cabeça,concordando,emesintopéssimaporter icadoirritada.Eleseinclinaemedá um beijo suave. Espero um selinho, mas o beijo se torna mais sério.Quandosintoalínguadelenaminha,eumeafasto.

–Hum,suamãenãoestáaídentro?

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Eleri.– Ela foi ao mercado comprar mais ovos. E meu padrasto está no

escritório.Nosótãosemjanelas.–Eseusvizinhos?–pergunto,olhandoaoredor.– Não os conheço – ele responde e me puxa para mais um beijo,

silenciandomeuprotesto.Alguns segundos depois, escuto um carro estacionar atrás de onde

estou.Afastoacabeçaparainterromperobeijo.Nãoécomoeugostariadeconheceramãedele.

–Não sepreocupe–Michael diz, olhandopara a frente. –É só omeuirmão.–Aportadocarrobate,eouçoalgunspassosnacalçada.

–Vocêtemumirmão?Michaelassentedemodocasual.–Nãosomosmuitopróximos.Euajeitooscabelosemeviro.Emeassusto.–Quebomquevocêpôdevir.–Michaeldizatrásdemim,avoztomada

pelosarcasmo.Caramba.Caramba.Caramba.Joshestádepénacalçada,segurandoumamala.Tylerestáaovolante

daminivande suamãe.De repente, percebopor queTyler vinha agindodeummodoesquisito.TinhaavercomoJosh.

– Você é o irmão do Michael – digo, boquiaberta. Josh é irmão doMichael.

Joshsóolhaparamim.–Vocêconheceomeuirmão?–Michaelpergunta.Euafirmocomacabeça.–Estudamosjuntos–digo.OrostodeJoshestáretorcidoderaiva.– Isso mesmo! – ele diz, de modo sarcástico e furioso. – Estudamos

juntos! Depois, você foi para a Yale e se transformou em uma vaca semcoração. Só não tenho certeza de uma parte: quando você começou atransarcommeu irmão?Foiantesoudepoisdedecidirmedarumpé?–Porumsegundo,pensoqueelepodecuspiremmim,maselesóentranavandenovo.TylerjáestásaindodagaragemquandoJoshbateaporta.

–Nossa!Oquefoiisso?–Michaelestáassustado.– Nós éramos namorados – digo, sem forças, sabendo que ele vai

querermais detalhes do que isso e pensando se vou conseguir fornecerinformações.

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–Vocênamorouomeuirmão?Recentemente?–Não!Terminamosemsetembro.Porquenãomecontouquetinhaum

irmão?–Nãomepareceuimportante.Espere,setembropassado?–Nãopareceuimportante???–Olhoparaelesemacreditar.–Eleéseu

irmão.– Eu disse que não somosmuito próximos –Michael diz com calma. –

Vocêtinhaumnamoradoquandonosconhecemos?Merda.Por um segundo, penso em contar a verdade. A colisão, a confusão,

tudo.Aspalavrascomeçamaseformaremminhaboca.– É a história mais maluca – começo a dizer. Mas Michael me

interrompe.–Olhe,nãoqueroquemeuirmão iqueentrenós.Elenãovaleapena.–

Michael desce um degrau e icamos frente a frente. – O que quer quetenhaacontecidoentrevocêsacabou,certo?Cemporcentodecerteza?

–Cemporcentodecerteza–digocomfirmeza.–Ótimo–elediz,etocameurosto.–Vamoscomer.

A refeição ocorre surpreendentemente bem levando em conta o pesoenormenasaladejantar.Doissegundosdepoisdenossentarmos,Michaelcomeçou a falar da história de Josh, sem me poupar de detalhes (nemmesmo do beijo na varanda). Meus pais sorriem educadamente, masconsigoperceberqueestãohorrorizadosempensarquea ilhadelespodetertrocadoonamoradopeloirmãomaisvelho,maisbonito(e,pelomenosparaeles,menosconfiável).

–Eunãosabiaqueeleseramirmãos–tenteimeexplicar.– Como é possível? –minhamãepergunta. –Você não sabia que Josh

tinhaumirmãochamadoMichaelnaYale?Oproblema,claro,équeeunão seisesabiadisso.Felizmente,ninguém

maisnamesasabe.– Há muitos Michaels na Yale – respondo de modo defensivo. – E o

Michaelnãomedissequetinhaumirmão,por issonão ligueiumacoisaàoutra.–OlhoparaMichael.Eletocounoassunto.Podelidarcomisso.

–Josheeunãonosdamosmuitobem–Michaelcontaaelacomcalma,servindo-se de su lê de batata-doce. – Antes de hoje cedo, não havíamosnos falado desde o Dia de Ação de Graças passado. Puxa, está delicioso,senhoraBarnes.

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–Obrigada–elaagradecee,então,seviraparamim.–OnomeMichaelWagnernão fezcomquevocêse lembrassedenada?–elaperguntasemrodeios.

–OsobrenomedelenãoéWagner–rebato.–ÉCarpenter.– Oh, então vocês sãomeio-irmãos – minha mãe diz, como se isso

melhorassetudo.– Não, somos ilhos dos mesmos pais – Michael diz. – Meu padrasto

adotou Josh quando se casou comminhamãe há dois anos. Eu recusei aproposta, respeitosamente. – De certo modo, duvido que tenha sido demodo respeitoso. Michael não consegue nem mesmo dizer a palavra“padrasto” sem ironia.Comodoisrapazespodemteropiniõestãodiferentesarespeitodomesmohomem ?Mesmocomminhaslembrançaslimitadas,seiqueJoshadoraoMartin.Michael,poralgummotivonãorevelado,odeia.

–ComosuamãeeMartinseconheceram?–perguntoemumatentativade mudar de assunto e conseguir algumas dicas a respeito da raiva deMichaelpelohomemquesecasoucomamãedele.

–Eleemeupaierammelhoresamigos–Michaelresponde.–Caramba–meupaidizbaixinho.Lançoumolharaele.Minhamãelevantaopratoesorri.–Alguémquerbatataaomolhobalsâmico?

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11(Lá)quarta-feira,26denovembrode2008(umdiaantesdoDiadeAçãodeGraças)

VocêjánoscontouaseurespeitonaInscrição,naPerguntaenaRedação.Porfavor,conte-nosalgoquevocêacreditaquenãoconseguiremossaberemsuainscrição.

Olhoparaocursorquepisca.Eudeveriaestaranimadaporverqueopedido é muito vago. Mas e se tudo a seu respeito já estiver “em suainscrição”?Esenãohouvermaisnadaaserdito?

–Viu?Épor issoquenãosirvoparaaYale–resmungo. Porque estoufazendo isso? Por que estou preenchendo a inscrição se não vou mecandidatar?

Começoadigitar.Oapelodamelhor,deAbigailBarnes.“Há pessoas que nunca quiseram ir a outros lugares”, digito, lendo as

palavras emvoz alta enquantoprossigo. “Assimque souberamoque erafaculdade, quiseram logo as melhores instituições. Surpresas com aexclusividade, inspiradas pela excelência, encantadaa com sua promessadeumfuturomelhoremaisbrilhante.Nuncafuiumadessaspessoas, istoé, até o pacote da inscrição para a Yale chegar à minha casa. Foi nessemomentoquesenti:oapelodamelhor.”

Mando ver mais quatrocentas palavras, e então releio o que escrevi.Certamentenãoéoqueocomitêdeadmissõesquer,mastudobem,jáquenão estou me candidatando. Não tinha certeza antes, mas tenho agora.Minhasprópriaspalavrasmeconvenceram.Admito,quandoviqueminhapontuaçãonoSATestavadentrodamédia,porummomento–ummilésimodesegundo–,eupenseiemfazer.Édi ícilnãosesentiratraídoportodaahistóriaeprestígio.Masnãoéummotivoparamecandidatar.

Eomedonãoéummotivoparanãosecandidatar.Afastoessepensamentodamente.Sim,ofatodeeuterpoucaschances

aumentouminhacerteza.Porquenão?Sensofortedecapacidade.Éassim.Sei no que souboa, eme apego a essas coisas.Qual é o problemade terconsciência de meu potencial? Não vou me conformar em ser medíocre.Masconheçomeuslimites.

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Seuslimitesouolimiardesuazonadeconforto?– Já chega–digo.Estouprontaparaparardepensarnisso.Prometi a

minhamãequeeunãotomariaumadecisãoapressada,enãotomei.Penseibem e cheguei a uma conclusão razoável e racional. Yale não é pramim.Paracon irmar, tiroapastade“InscriçõesparaaYale”domeudesktopearrastoparaalixeira,ondedeveficar.

Nemseiporquemedeiaotrabalhodepreencher.Háumaboachancede eu receber notícias da Northwestern hoje, e, se receber, vai ser isso.CartasdeDecisãodeAção foramenviadasnodia20denovembro, e ummontedepessoasnoblogde inscrições járecebeuoe-maildeaprovação.Omeupodechegaraqualquermomento.Sódepensarnisso, icoansiosa.Pelasextavezhoje,entronomeue-mail.

Nãotemmensagemnova.FicotentandoimaginarseaCaitlinrecebeunotíciasdaYale.Apesarde

nãotermosnosfaladodesdeanossabriga,estoutorcendoparaelaentrarlogo. Graças ao vovô Oscar, é o único lugar para onde ela quer ir. Semqualquercerimônia,pegootelefoneetecloonúmerodela.Caidiretamentenacaixapostal.

–Oi,aquiéaCaitlin.Deixeseurecadoeeuretornoaligação.Desligorapidamente.Emvinteeoitodias,telefoneivinteeoitovezesparaela.Algunsdias,o

telefonetocaalgumasvezesprimeiro.Emumaocasião,alinha icoumuda.Na maior parte do tempo, a ligação cai direto na caixa postal. Temo umconfronto ao vivo, evito encontrá-la na escola e parei de ir ao lugar ondetomo frozenyogurt,quenósduasadoramos,mas telefoneiparaela todososdiasdesdenossabriga.Nãoseibemoquediria seelaatendesse,mascontinuo ligandomesmoassim.Tenhomedodoquepode signi icar se euparar.Naminhamente, seiqueexisteumaboachancedenossaamizadenãotermaiscondiçõesdeserreparada,mas,nofundo,aindaacreditoqueexista um cenário em que passamos por isso e voltamos a ser Caitlin eAbby.Apiorparteésaberoquefazernessemeio-tempo.

Horadememexer.Oprimeiropiqueniquedaequipecomeçaaomeio-dia, e eu ainda estou toda suada e esgotada por causa do treino de hoje.Desde quemeu pé sarou, o técnico Schwartz temme feito correr com aequipeantesdotreinoefazer lexõeseagachamentoscomeledepois,porisso acabo tão cansada como todomundo. Comomeu condicionamento ébom, pensei empedir ao técnicoP. paramedeixar correr na competiçãodecross-countryestadualesse imdesemana,masdecidiquenãopoderiaabandonarmeuscompanheirosdeequipenaHeadoftheHooch.Éamaior

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regata do outono. O técnico quer que cheguemos à casa de barcos dezminutos antes de o piquenique começar para nos passar o cronograma.Quase uma dúzia de recrutados da faculdade estará lá, por isso todomundoestáansioso–principalmenteJosh.Éaprimeiravez(eúnica)nessatemporadaquerecrutasdaCostaOesteremarão,porisso,seelequerumabolsa de estudos para uma boa universidade, sábado é o momentodecisivo.Nãoqueeleprecisesepreocuparcomalgumacoisa.Nossoastronãotevefolgaatemporadatoda.

Edesdequecomeçamosanamorar,nemeu.Osúltimosvinteeseisdiasforamdiferentesde tudooque jávivi. Farturae fome.Fogoegelo.Meusdiassedividememduascategorias:momentoscomJoshemomentossemele.Quandoestoucomele,minhamentesedesliga.Nãopenso.Nãoplanejo.Não me preocupo. Não há espaço para planos, pensamentos oupreocupações. Cada espaço e brecha são tomados pela felicidade, tãogrande que parece queminha alma pode explodir. Osminutos voam aténossotempojuntosacabar.

Acontecequandoestoucomele.Quandonãoestou,otemposearrasta.Ossegundosdemoram.Euobservoorelógio,contandoashorasparavê-lodenovo, epenso,planejoemepreocupo.Comele, conosco, como futuro.Repassonossoúltimobeijoe tentoplanejaro seguinte.Tento imaginar seeleestásentindooquesinto,convencida,aomesmotempo,dequeelenãopode sentir e não deve. Fico pensando em como será deixá-lo, apesar desaberqueaformaturasóacontecerádaquiaseismeses.

–Vocêestáapaixonada–minhamãedissequandovolteiparacasananoitedesábado,segurandoumursodepelúciaazulenorme.

Josh havia me levado à feira, onde dividimos algodão-doce echacoalhamos namontanha-russa, e ele conseguiu ganhar omaior bichodepelúciadali.Depois,fomosaonossobalançonobairrodeJosh,enãonosimportamos com o fato de a lua estar brilhando demais, impedindo quevíssemosasestrelas.Euaindaconseguiasentirogostodochicletedeleemmeuslábios.BigRed.Dotipoqueelesempremasca.

–Oquefoi?–perguntei,apesardeterouvidomuitobem.–Vocêestáapaixonada–elarepetiu,comumsorrisogentil.–Ficofeliz.Corei e desviei o olhar, não estava pronta para reconhecer, mas não

neguei.Estouapaixonada.–Abby!–Ouçominhamãemechamardoandardebaixo,metrazendo

devoltaaopresente.–Opiqueniquenãoseráaomeio-dia?A festa está prestes a começar quando chego à casa de barcos, às

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11h45min.Desdeo imdotreino,oclubedeBrooksidetransformouacasadebarcosemumafestadefaixasebalõesazuise laranjas.OPepperyPigmontou uma barraquinha embaixo de uma tenda enorme no formato deum capacete de espartano, dando ao ar outonal aquele cheiro de carneassadanabrasa.Respiroprofundamente,aproveitando.

Meus colegas de equipe estão reunidos ao redor da mesa depiquenique mais próxima ao rio, comendo petiscos, quando o técnicoapareceporali,segurandoapranchetadesempre.Josh,comodecostume,éoúltimoachegar.Elenuncaseatrasa,masnãoapareceantesdohoráriocombinado.Nas aulas, no treino e nos nossos encontros. Sempre na horacerta.

Às 11h49min, o jipe dele entra no estacionamento. Sorrio quando eledesceomonte.Coma camisapolopara forada calça,mocassinsno lugardos tênis. A in luência de Tyler tem sido clara nele. Também parou derepartir os cabelos, e agora estão úmidos e despenteados, como se eletivessesaídodochuveiroepassadoamãoporeles.

Quandoeleseaproxima,minhamenteseaquietae tudose tornamaisclaro.Oazuldocéu,overdedospinheiros,oamarelonaportadacasadebarcos.Meuscompanheirosdeequipeestãoconversando,rindo,animadospela adrenalina e pelo café,mas se tornaram um som de fundo. O EfeitoJosh.

– Certo, pessoal – o técnico fala mais alto do que o burburinho dasconversas.–Temosapenasalgunsminutosatétodoschegarem.–Aequipese cala. – Estamosmisturando as coisas esta semana.Megan, vou passarvocê para o B dos homens. – Megan ica boquiaberta, literalmente. Elaorientouo8Aduranteatemporadatoda,eosboatosdãocontadequeelarecebeu uma oferta do College of Charleston, referente ao seudesempenho no sábado. Quando o técnico doCOC vir que ela foi tirada dobarcoA, vaipensarqueela fez algoparamerecer isso. –Não se tratadeumcastigo–otécnicoestádizendo.–AindaquerovocênoAdasmulheres.MasqueroqueaAbbytenhaumachancecomoshomens.

EleacaboudedizerAbby?Como Josh está sorrindo, acredito que a resposta seja sim. Levanto a

mão.–Nãoprecisafazerisso.AMeganmereceestarnobarcoA.Deveriaser

ela,nãoeu. –LançoumolharnadireçãodeMegan,maselanão retribui.Enquantoisso,Joshestámelançandoumolhardereprovação.

–Nãoprecisofazernada–otécnicorebate.–Masatéondesei,eusouo

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técnico desta equipe. O que quer dizer que eu mando. Não você. Não aMegan. – Concordo, sem jeito. – O resto das posições continua como nasemanapassada.

Elecontinuafalando,masparodeouvir.Vou timonearo8A?NoHeadof theHooch?Não é umaboa ideia. Sim,

tenhomelhoradonisso,masnão soudignadoA.NemdoB.Todo sábado,ico surpresa quandomeu barco cruza a linha de chegada sem bater nabarrancadorio.

– Estou preparando estatísticas para cada um de vocês entregar àspessoasnosábado–o técnicodizporúltimo, trocandoa folhadecimadesuapranchetaporoutra, embranco. –Então, escrevamoe-mail antesdeirem embora. E não quero ver coisas como “garotadoremo” ou “srforte”nemnadaparecido.Comofaleinasemanapassada,osrecrutadoresestãoà procura de remadoresmaduros, não de adolescentes semnoção. Estãodispensadosagora.

–“Deveriaserela,nãoeu”?–Joshpergunta.–Oquefoiaquilo?–Nãoqueroirparaumafaculdadeimportante–rebato.–Querofazer

jornalismo.–AColumbianãotemessecurso?– Não de graduação. Olhe, sei que é o sonho da maioria das pessoas

entrarnaYale,naHarvard,ouseiláonde.Masnãoéoquequero.Joshlevantaasmãos.–Não vou discutir. Se não é o que você quer, não é o que você quer.

Pensei que não estivesse se candidatando a essas universidades porqueacreditavanãosercapazdeentrar,eeuqueriaquesoubessequeoremopoderia ser uma porta de entrada.Se fosse isso o que você quisesse. Senãoé,nãoé.

–Nãoé–digocomfirmeza.–Certo.EaUSC?Cursodejornalismoeumaótimaequipe.–Vocêsabedesistir?–EleacaboudesugerirqueeumecandidateàUSC?

Pormais incríveisque as coisas sejamentrenós, não conversamos sobreisso. Não falamos em nos candidatar para as mesmas universidades,porquenósdoissabemosqueissofariacomquetivéssemosqueabrirmãode nossa primeira opção. Olho para ele, esperando que essa conversa setorneaquela conversa, mas ele só me dá um beijo no nariz. – Lá vem oTyler.

Quandome viro para cumprimentá-lo, Tyler não retribuimeu sorriso.Parecebemmal-humorado.

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–ACaitlinvem?–pergunto,apesardejásaberaresposta.ACaitlinnãofoianenhumafestadaescoladesdeanossabriga.Passatodasasnoiteseamaioria dos ins de semana no laboratório de astro ísica da Tech. Pelomenos,éoqueeladisseaoTysemprequeeletentoufazerplanoscomela.Ele e Caitlin continuamamigos,mas é diferente agora que ela sabe comoelesesenteemrelaçãoaela.Oqueerasimples icoucomplicado.Nãoéàtoaque aCaitlin ica no laboratório, um lugar onde a ordem se impõe aocaosenãoocontrário.Éomodoqueelaencontroudeescapar.Umportoseguropara fugirdosolhosquestionadores e telefonemas incessantesdeTyler.

–Aindanão falei comela – ele responde, olhandopara Josh. –Vamoscomeralgumacoisaenquantoacomidaestáquente.

– Tenho algo a perguntar – Joshdiz enquantome acompanha aomeu

carro, sob os olhares atentos de dois seguranças do parque que estãopatrulhando o estacionamento. Eles apareceram há cerca de uma hora,quandoosoldesapareceuatrásdospinheirosque ladeiamabeiradorio.Opiqueniqueduroumuitomais doque todomundopensouqueduraria.Aindaestariaacontecendoseossegurançasnãotivessemnostiradodelá.Josh e eu somos os últimos a sair. Permanecemos ali com a desculpa deque vamos limpar as coisas,mas o que queríamosmesmo era assistir aopôr do sol através dos pinheiros. Um pouco antes de o sol descer nohorizonte, ele me beijou. Pressionada contra o corpo dele, sentia seucoraçãobaterforte,assimcomoomeu.

–Uh-oh.Deveriaficarnervosa?–Sósedisserquesim.–Elesorridemodomisterioso.–Venhaamanhã

–elediz.–ParaoDiadeAçãodeGraças.Minhamãevaiprepararcomidaparaumbatalhão, principalmenteporque está ansiosa coma chegadadomeuirmão,ecozinharamantémocupada.

– Seu irmãoestá aqui? – Josh faloudo irmãoapenas algumasvezes, enuncapelonome.Nãopenseiqueelefosseotipodecaraquevoltasseparacasanosferiados.

–Vaiestar–Joshresponde.–Chegahojeànoiteevaiemboranasexta-feirademanhã.

–Viagemrápida–digo,eentãoficopensandosedeveriaterditoisso.–É.Elenunca icamaisdoqueumdia.Oqueébompra todomundo,

podeacreditar.Ascoisasficamtensasquandoeleestáporperto.–Parecedivertido–digo,brincando.

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–Nemumpouco–Joshresponde,aindasorrindo,mascomavozmenosbrincalhona do que aminha. – E é onde você entra. Espero que diminuaumpoucoatensão–eleadmite.–Vocêaceita?Costumamoscomeràsduas.

– Adoraria – digo a ele, repentinamente alegre porque meus avósdecidiram, de última hora, passar o Dia de Ação de Graças nas ilhasCayman. Quando minha avó prepara a refeição, começamos a comerpontualmente à uma, e ela quer todo mundo durante horas à mesa,deliciando-secomcadaprato.Comaminhamãenocontrole,vamoscomernofimdatarde.CertamentejátereivoltadodacasadoJosh.

–Ótimo–elediz.–Atéamanhã,então.– Até amanhã – respondo e encostomeus lábios nos dele. Ele dá um

passoàfrenteeapoiaasmãoslevementenomeuquadrilquandomebeija.Já nos beijamos vinte e três vezes, mas ainda ico meio zonza quandoacontece. Os dois beijos na montanha-russa no im de semana passado(beijosdezenoveevinte)quasemefizeramdesmaiar.

–Ei,vocêsdois!A festa terminou!–Umsegurançaexageradoestáemseucarro,esperandoparafecharoportãodoestacionamento.

– Desculpe! – dizemos, disfarçando nosso sorriso. Josh me beija denovo,eganhaumabuzinadadonossoamigo.

– Se ela fosse sua namorada,o senhor ia querer ir? – Josh grita aosegurançaenquantocorreatéocarro.Eleseviraemesopraoutrobeijo.

Eentão,derepente,écomosetudocomeçassea icarlento.AtémesmooventoqueestásoprandonoscabelosdeJosh.Detalhesquenãoviháumsegundo icam claros para mim. A velha árvore de tronco retorcido naponta do caminho que leva ao rio. A lata de refrigerante que alguémdeixou no estacionamento que foi amassada pelo pneu de um carro. Opequenopássaromarromqueestápousadoemcimadaplacadeentrada.E, nomeio de tudo, Josh. Amão na boca, com a palma estendida, o beijorecém-soprado.Umsorrisocomeçandoaseabrir.Acamisetacinza-escuradaUSCcomumpontodesbotadonagola.

O momento parece umdéjà vu, mas mais preciso. Odéjà vu não édetalhado.Estemomentotemdetalhes.AtéapintinhadeJoshsedestaca.

E então, tão rapidamente quanto perdeu a velocidade, tudo volta aonormal,eJoshestádecostasparamimenquantocorreemdireçãoaojipe.

FicosurpresaaoveroBuickLeSabremarromdemeusavósnaentrada

decasaquandochego.Elesdeveriamestarembarcandoemumaexcursão

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daterceiraidadenestemomento.Há muito mais comoção na cozinha quando abro a porta dos fundos.

Minha avó está segurando uma seringa cheia de um líquido marrom-escuropertodeumperucruenorme.Hásacolasdecomprasemtodososbalcões.

–Vovó,achoqueelejámorreu–digoquandoentro.–Elapuxouosarcasmodevocê–minhaavódiz,olhandodiretamente

parameupai.–Anteso sarcasmodoquea careca–meupai responde, emedáum

beijonatesta.–Aindaestouesperando–meuavôdiz, amesmacoisaqueeledizno

começo de toda visita. Eu me aproximo e beijo seu rosto. – Assim estámelhor – ele diz, envolvendo-me em um abraço. – Como está a minhagarota?

–Bem,vovô–respondo,encostandoonarizemsuapelegrossa.Sintoocheiro de tabaco e de colônia Lagerfeld. O cheiro dele é sempre esse.Sorrio. –Oquevocês estão fazendoaqui? –pergunto, encostandoo rostonoombrodele.–Penseiqueiamviajar.

–Íamos–minhaavóresponde,semicerrandoosolhosparaolharparaoperu.

– Impossibilitados por um furacão –meu avô diz. – Por isso, estamosaqui.

– Surpresa! –Minhamãe diz alegre entre goladas de vinho. Aminhaavólançaumolharparaela,eentãoacertaaavecomtodaaforçaqueseucorpinhoconseguereunir.

–Então,issoquerdizerquevamoscomeràumaamanhã?–pergunto.–Claro–minhaavódizenquantorecheiaoperu.–Semprecomemosà

uma.–MinhamãeeeunosentreolhamosedizemosaspalavrasditasporminhaavócomosotaquecarregadodoTennessee:–Éumatradição.

– O voo deles de Nashville para Miami foi cancelado devido a um

furacão–digoaotelefone–,por issovierampracá.–Telefoneipara Joshassimquepudesairdacozinha.

– Isso é uma boa notícia, não? Você estava chateada porque não osveria.

–Sim,massigni icaquenãopossoirasuacasa.Nósnossentamosparacomeràumadatarde,e,sembrincadeira,sónoslevantamosàscinco.Éarefeiçãomaislongadoano.No im,minhagargantaeminhasorelhasestão

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cansadas.– Você tem sorte – ele diz. – Nós corremos com a nossa, emmeio ao

silêncio.–Aquehorasseuirmãochega?– O avião dele chega às nove – Josh responde. – Minha mãe está no

aeroportoparapegá-lo.– Está animado com o fato de ele estar vindo? – Pergunto. Não quero

ser intrometida, mas não consigo evitar. Sei muito pouco sobre orelacionamento de Josh com o irmão, e por que sua presença deixa todomundonervoso.

– Animado? Não.Mas isso signi icamuito para aminhamãe, por issoficocontentequeelevenha.MaseletrataoMartincomoumlixo.

–Porquê?–Joshidolatraopadrasto.Porqueseuirmãoagiriademodotão diferente? Josh não responde na hora, por isso tento voltar atrás. –Desculpe,estousendointrometida.

– Não seja tola – ele diz. – Você é minha namorada. Pode serintrometida.–Elehesitaantesdecontinuar.–Écomplicado,masaverdadeéqueMichaelachaqueminhamãeeMartintinhamumcasoantesdemeupaimorrer.Minhamãedizquenão,eeuacreditonela.Michaela irmaterperdoadoaminhamãe,masaindadetestaoMartin.Eleserecusouaviraocasamentodeles.

–Nossa.–Euesperavaumahistóriasobredesrespeitoàhoradevoltarparacasaouumcarrobatido,nãoalgotãopesado.–CoitadodoMartin.

–Sim.Opioréqueeleamavamuitoomeupai.Eleserammuitoamigos–eleexplica.–Amigosdefaculdade.Martinnuncateriafeitoissocommeupai.Maselenemsequerpodesedefender,porquenãosabeoqueMichaelacha.

–Michaelnuncafaloucomelesobreisso?–Minhamãenãodeixa.QuandoMichaelcomentoucomminhamãesua

teoriaarespeitodocaso,eladissequeseelecomentassealgumacoisacomMartin,elaparariadepagaramensalidadedelenaYale.Tambémfezcomque prometesse voltar para casa para oDia deAção deGraças, todos osanos.–Elepara,eentãodiz:–Nossa,parecebempiorquandoditoemvozalta.

– De onde saiu essa teoria? – pergunto. – Se sua mãe e Martin nãoestavamtendoumcaso,porqueMichaelachaquetiveram?

–De acordo comminhamãe, ele entendeu errado algo que ouviu. Elasempre foi muito vaga em relação a isso. – A linha dele faz um bipe,indicando outro telefonema. – Ah, é ela na outra linha. Posso te ligar

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depois?–Claro–digo,edesligamos.– O que está fazendo aí, no escuro? – É meu avô na porta, com um

cigarroapagadoentreoslábios.–Olhandoparaasestrelas–digoaele,eapontoparaoteto.Elefranze

ocenhoeolhaparaasestrelaseparamimdenovo.– Você sabe que há estrelas de verdade lá fora. Um universo todo

repletodelas.–Fiqueisabendo,sim.–Sorrionoescuro.–Vamos – elemediz, acenando como braço. – Venha andar comum

velhote.O “andar” do meu avô é ir ao im da rua e voltar – onze vezes –,

enquantofumaumcharuto.Nanossaterceiravolta,eledáumtapinhanomeubraço,queestáentrelaçadoaodele,ediz:

–Achoqueestánahoradeeulhecontaroqueaconteceunanoiteemquevocênasceu.

–Nanoiteemquenasci?Elesopraafumaçaeassente.–Seupaitelefonoupertodasoitonaquelanoiteparamecontarquesua

mãeestavaemtrabalhodeparto.Recebemosordensparanãocorrermosaté aqui antes de sua chegada o icial, por isso, não pudemos fazer nadaalémdeesperar.Foidi ícilparanós,primeiraneta,coisaetal.Ecomoseuspais tinhamesperadodezanospara teremvocê, imaginávamosqueserianossaúnicaneta.

Sintoumaondadetristeza.Apesardeminhamãetercincoirmãos,meupai e eu somos ilhos únicos. Pelo que minha mãe me disse, minha avósofreudeinfertilidadequandonãohaviatratamentosparaisso.Elaperdeuseisbebêsantesdetermeupai.Eminhamãesóquisum.Deviasermuitosolitárioteroitentaanosecontarosmembrosdafamíliacomosdedosdeumamãosó.

– Então, esperamos – meu avô continua, parando para dar algumasbaforadas.–Suaavóestavamuitonervosa,andandodeumladoparaoutronacozinha,fazendobarulho,porissofuiparafora.Aluanãoestavanocéunaquela noite, e as estrelas estavam bem brilhantes – muito maisbrilhantesdoquehoje. –Umaluaperfeita,penso, comvontadededizeraJosh.Meu avô para de andar e joga a cabeça para trás. – E eu iquei ali,assim,observandoocéuerezandoparaqueoSenhor trouxessevocêemsegurança. E então... zum! – Ele balança a mão para dar ênfase. – Umaestrelacruzouocéu.

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Sorrio,imaginando.Meuavôseviraparaolharparamim.– E isso teria sido algo especial, uma estrela cadente sempre é. Mas

apareceumaisuma.Eoutra.–Eleolhaparaocéu.–Elasnãoparavamdepassar.Nove,nototal.

–Estáinventandoisso.–Comcertezanãoestou–elediz,jurandocomamãosobreopeito.–E

depois da nona, elas pararam. Alguns minutos depois, escutei o telefonetocar,elogodepoisdisso,Rosesaiuparamedizerquevocêhavianascido.Era9desetembro,9h9min.

Sintomeubraçoarrepiar.Sãomuitosnoves.–Passeiosúltimosdezesseteanostentandoentenderosentidodisso–

elediz.–“Sóumacoincidência”,amaioriadaspessoasdiria.Etalveztenhasido.Masvoulhedizerumacoisa,nãopareceuumacoincidência.

–Oquemeupaidisse?–pergunto.–Nãoconteiaele–meuavôresponde.–Nemaninguém.–Porquenão?–Porqueeuqueriacontarissoavocê,quandotivesseidadeparaouvir.

Pormaisqueeuameomeu ilho,elenãosabeguardarsegredo–elediz,apertandomeubraço.Euabafoumarisada.Nãopossonegaroqueeleestádizendo.–Semprequislhecontarissonoseuaniversáriodedezoitoanos,mas acho que você estará na faculdade nessa data. Pensei que seriamelhorlhecontaragora.

–Então, se não foi coincidência – digo quando começamos a andar denovo–,oquefoi?

–Umsinaltalvez.Dequesuavidaseriaespecial.–Elemordeocharutodemodopensativo.–Foioquesemprepensei.

–Especial,como?–Depende–elemediz,comorostosério.–Dependedoquê?–Doquevocêdecidirfazercomessainformação.

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12(Aqui)sexta-feira,27denovembrode2009(umdiadepoisdoDiadeAçãodeGraças)

–Vocêmedeveuma–Tylerdizassimqueabreaportadafrente.–Aqui–eu respondo, entregandoaeleumrecipientedeplástico com

osrestosdeontem.Olhoparaalémdele,dentrodacasa.–Ondeeleestá?– No porão. – Ele abre a tampa azul e espia ali dentro, analisando o

conteúdo.–Nãoestouvendoasbatatas-doces.–Estãonofundo,embaixodamandioquinha.Comoeleestá?Tylerpegaumfeijão-verdededentrodorecipienteeenfianaboca.–Muitobravo–responde,mastigando.–Então,boasortecomisso.Tyler dá umpasso para trás parame deixar entrar. Amãe dele, uma

pianistacomgostoporcoresfortesetecidoscaros,pintoucadaparededasaleta de um tom diferente de magenta. Estantes aleatoriamenteespalhadasexpõemdiversostesourosqueelaadquiriuao longodosanos,mas apenas alguns são adequados para icar na parede. Uma máscarapintadaàmãocomumnarizquepareceumbicoolhaparamimdemodoameaçador.

– Então, é por isso que você estava dando um gelo nele? – Tylerpergunta.–Porqueestavatransandocomoirmãodele?

– Não estoutransando com ele – digo demodo direto. – Eu não sabiaqueeleseramirmãos.

–Porquevocêsimplesmentenãoterminoucomele,comoumapessoanormal?–Tylerpergunta.

–Écomplicado.–Dequeméaculpa?–Penseiquevocêfosse icarforadisso.–Tiromeucasacoeopenduro

no corrimãoda escada.Hámanchasde suor emminha camiseta.Por queestoutãonervosa?Essaideiapareciaboaquandoeuaorquestreidurantea corrida de dez quilômetros hoje cedo pelo bairro. Pedi a Tyler paraconvidarJoshparairasuacasae ingirqueaparecisemelesaber.Pareciaumplanobrilhante.Agora,estoupensandoqueaendor inapodeter feitocom que eume empolgasse, levando em conta que o cara a quem estou

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prestesaemboscardesligounaminhacaraquandoligueiparaele,ontemànoite.

Pelomenos,ascoisascomMichaelestãobem,sepossoconsideraraidaao aeroporto uma prova disso. Ele teria que icar em Boston com seusamigosatédomingoànoite,masmedissequevoltarámais cedode tremparapodermosjantarquandoeuvoltaraNewHaven.

–Devo icaraqui?–Tylerperguntacomabocacheia.Eleestáusandooindicadorparaempurrarbrócolisbocaadentro.

– Não. Queremos que ele pense que passei aqui do nada, lembra? Sevocêficaraqui,vaiparecerquefoiplanejado.

– Sei lá. De qualquer modo, cometi uma baita violação do código doshomens.Atraí-loparacá,demodoqueaex-namoradasemcoraçãopossaoprimi-lo?–Tylerbalançaacabeça.–Estoucomvergonhademimmesmo.–Elevoltaapôramãonosbrócolis.–Masfaçoqualquercoisapelacomidadesuamãe.

–Eseelenãoconversarcomigo?–pergunto.– Eu icaria mais preocupado com o que você vai dizer se ele quiser

conversar–Tylerdiz.–Vocêdeuumgelonocaraeapareceunafrentedacasadelecomalínguadoirmãodelenasuagarganta.

–Nãofoiintencional–insisto.–Sevocêestádizendo...ComoestáaCaitlin?–Elaestábem–respondo.–Vocêdeveriatelefonarparaela.– É, talvez – ele diz. Mas sei que ele não vai telefonar. É di ícil saber

comosesentirnessarelação,principalmenteporquenenhumdelespareceinsatisfeitocomomodocomqueascoisasterminaram.Tyler já temoutranamoradanaMichigan,porquemémaluco,eCaitlinnãoparade falardocara que conheceu semana passada no Starry, o clube de astronomia daYale, que provavelmente é só um substituto do Ben, mas é bem-vindo.TalvezCaitlin tenharazão.Talvezsejamelhorassim, talvezCaitlineTylernão devessem icar juntos a inal. Não tenho certeza de que acredito – anamorada de Tyler se refere às partes íntimas dela como “xereca”, e oGarotoAstronomiadaCaitlinvestevárias camisetas comagola levantada(todaspasteletodaspolo,aomesmotempo)–,maseumeestressomenosquandofinjoqueacredito.

–AIlanaestánacidade–Tylerdiz.–Veiovisitarospaisnoferiado.Euaencontreiontemnopostodegasolina.

–Comoelaestá?–Achoquebem.Melhor.–Eumesintoumpoucomaisanimada.–Ela

pediu que eu agradecesse você pelo diário que mandou. Disse que tem

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escritoneletodososdias.Com todo o drama do Dia das Bruxas, acabei esquecendo que havia

enviadoodiário.Euoencontreiemumalivrariapertodocampus,en iadonaseçãodereligiosos,entreKempiseKierkegaard.Eracor-de-rosa,acorpreferida de Ilana, com a palavra LEMBRE-SE na capa. Eu o enviei com umacanetaroxaeumbilhetedizendoaelaque,independentementedoqueosmédicosdiziam,elanãodeveriadesanimar.Sempreháanomalias.

–Vocêachaqueelase importariaseeupassasseparavê-laenquantoelaestiveraqui?–perguntoaele.

– Acho que ela vai adorar – Tyler responde. – Mas é sério? Você eIlana?

–Temosmaisemcomumdoquevocêpensa–digoesorrio.SigoTylerescadaabaixo.Joshestáresmungandocomraivaparaatela

d aTV, distraído com uma partida de Street Fighter. Ele não me vê aprincípio, o que me dá trinta segundos ininterruptos para observá-lo. Afranjaemcimadosolhos.Cabelosdespenteados.Barbaporfazer.

Ele está péssimo.Masmesmo sem tomar banho, sem fazer a barba esem descansar, ele é bonito. Mais bonito agora, assim, do que antes, emminha mente. Sinto meu coração acelerar só de olhar para ele. Se ligue,Abby.

Tylerolhaparamim,esperandoqueeudigaalgo.–Oi,Josh.Eleolhaparaafrenteaoouviraminhavoz.–Oqueestáfazendoaqui?–Eu,hum...– Ela trouxe comida do Dia de Ação de Graças para mim – Tyler

interrompe,mostrandoorecipientedeplástico.–Sim!Comida.–Balançoacabeçaparaenfatizar.Joshjogaocontrolenosofáeficadepé.–Émelhoreuir–elediz,semolharparamim.–DisseaoMartinqueia

ajudá-locomumacoisaláemcasa.Comcertezaémentira.– Podemos conversar? – As palavras saem apressadas, seguidas por

uma explicação desnecessária. – Sei que você desligou na minha caraontem,oqueachoquesigni icaquenãoquerconversar,maseuquero,emuito. Você não precisa falar, claro. Não me deve nada. Mas detestei omodo como as coisas icaram ontem, e pensei que talvez se pudéssemosconversar...–Euhesito,comosolhosimplorando,fixosnoolhardele.

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– Você querconversar. – Ele diz isso como se fosse uma piada, aspalavrascarregadasdeironia.

–Sim.Porfavor.Eleolhaparamim,sempiscar.Ficocoradacomaqueleolharpesado.–Certo–elediz,por im,edádeombroscomoquemnãoseimporta.–

Vamosconversar.–Devosubir?–Tylerperguntaenquantocontinuacomendo.OlhoparaJosh.–Estáa imdeandarumpouco?–Elenãoresponde,maspegaablusa

queestá jogadanobraçodosofá.Háumremonelaeaspalavras EQUIPE USCbordadasemdouradonalapela.

– Divirtam-se, crianças – Tyler diz, jogando-se no sofá. – Talvez euestejaemcomaalimentarquandovoltarem.Nãomeacordem.

Joshme segue escada acimae saímospelaportada frente.Não tenhoumpercurso emmente, então saio pela rua, que ainda estámolhadaporcausadachuvadeontemànoite.

Joshmeacompanha.Quandomeviroparaele,eleestáolhandoparaafrente,inexpressivo.Nãodáparasaberoquesepassaemsuamente. Eleésempre assim? Gostaria de conhecê-lo bem o su iciente para saber. Sótenholembrançasdealgunsmesesquenemsequersãominhas.

Estamosnomeiodoquarteirãoquandoperceboquedeixeiminhablusadentrodacasa.Eunãoestavacomfrioantes,masagoraestoucongelando.Joshpercebequeestoutremendoetiraablusa.

–Tome–elediz,entregando-aparamim.Éaprimeirapalavraqueeledizdesdequesaímosdoporão.Balançoacabeçapararecusar.

–Fiquecomela–euinsisto.–Nãoqueroquesintafrio.–Elemeignora,jogando ablusa sobremeusombros. –Eu sou amalvada aqui. E pessoasmalvadasnãomerecemficaraquecidas.

– Isso é verdade. – Há um leve toque de humor em sua voz. Eu meaproveitodisso.Éarriscado,masésóoquetenho.

–Seilá, icopensandoqueagarotaqueaparecenasuacasanoDiadeAçãodeGraçasparaficarcomseuirmãonãomerecevestirsuablusa.

Eleficasério.Certo,entãonãoestamosnoestágiode“podemosrirdisso”.–Então, ele é omotivopelo qual você desapareceu? – ele pergunta. –

Porquenãomedisseaverdade,simplesmente?–Sintomuito.Sintomuito,muito.–Elenãoresponde.–Nãoesperoque

meperdoe,masseriaótimosepudesse.Elesóolhaparamim.

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–Éisso?Umpedidodedesculpas?Con irmomexendoacabeça,quasearrasadaporsaberqueelemerece

muitomais. Esse carabacana e gentil se tornou a vítima. Está sofrendo enem sabe o motivo. Está dizendo a si mesmo que sua ex-namoradasimplesmente se apaixonou por outra pessoa, mas essa não é umarespostasatisfatóriaporqueelenãoacreditavaquesuaex-namoradafosseassim.

–Nãoqueriaqueissotivesseacontecido–digocomdelicadeza,masseiqueéalgoridículodesedizer.

– Qual parte? – ele pergunta sem se alterar. – A parte em que secomportoucomoseeunãoexistisse?Ouaparteemquedescobriomotivo?

–Eunãosabia–sussurro,magoadacomotomqueeleusa.Joshparadeandar.–Oque você “não sabia”,Abby?QueMichael e eu somos irmãos? –A

vozdeledeixa clara a irritação agora. –Talveznão.Mas você certamentesabia como estava me tratando. Sem falar que eu estava disposto a metransferirpara icarmaispertodevocê.Evocênemsedeuaotrabalhodeatenderomalditotelefone.

Balançoacabeçalentamente,masnãodeixodeolharnosolhosdele.– Não. – Quase não dá para ouvirminha voz. – Eu tambémnão sabia

disso.Aconfusãotomaorostodele.–Certo,agoraestouperdido.Eu não deveria ter dito nada. Deveria ter permitido que eleme odiasse.

Agora, ele está esperando uma explicação, e eu não consigo dar. Ele vaipensarquesoumalucasetentar.

Desviooolhar.Umsenhorcomcamisade lanelaxadreze calçasocialestáouvindoumjogodefutebolnavaranda,fumandoumcigarro.Oavôdealguém.Derepente,sintosaudadedomeu.NãoovejodesdeoNataldoanopassado,trêsdiasdepoisdeeudescobrirquehaviaconseguidoo ilme.Eleicoumuito orgulhoso. “Vai ser uma estrela”, eleme disse, sem qualquerdúvidanavoz.Riquandoeledisseisso,masnãotinhasidoumapiadaparaele.

–Abby.–AvozdeJoshrompeosilêncio.– Você não acreditaria emmim se eu contasse – respondo, com a voz

contida.Observoosenhorapagarocigarroeacenderoutro.–Tente.Conteaele.Viro a cabeça e olho nos olhos de Josh. Algo em seus olhos me faz

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pensar que ele pode entender.Mas e se não entender? E se pensar quesoulouca,ou,piorainda,queestouinventando?

–Conteaverdade–elepededelicadamente.–Ésóoquequero.Inspiroprofundamenteesoltooardevagar.Averdade.–Algoaconteceunomeuaniversáriodedezoitoanos.–Começoassim,

porque parece o ponto certo por onde começar. – Algo que ainda nãocompreendototalmente.Estáligadoaoterremotodoanopassado.

–Amudançade seudestino – Joshdiz. Seus olhoshesitamumpouco,lembrando-sedaspalavrasqueeleachaqueeudisse.–Odiaemquenosconhecemos.

–Sim,mas...–Inspirofundodenovo.–Nãofuieuquemvocêconheceunaqueledia.

– Não foi você – Josh repete. Ele olha para mim por um momento, eentão balança a cabeça, irritando-se de novo. – O quê? Vaime dizer quenãoestavaemseuestadonormalnaqueledia?Queagarotaporquemmeapaixonei não é bemquemvocê é? Isso é besteira, Abby. – Ele levanta avoz, mas a mantém estável. – Não me diga que não conheço você. Euconheçovocê,evocêmeconhece.

–Nãoéissooqueestoudizendo–respondo,esintominhavozhesitar.–Estoudizendoqueagarotaaquemvocêselembradeterconhecidonãoeraeu.

Joshparadecaminhar.–Comoassim?Eumeobrigoacontinuarfalando.–VocêselembradodoutorMann,daastronomia?–Claroquemelembrodele,Abby.–Certo.Bem,eletemumateoriaarespeitode...mundosparalelos.–Entrelaçamentocósmico–elediz.–Eusei.Olhoparaele.–Vocêconheceateoria?–Claro.Obásico,pelomenos.LiolivrododoutorMannquandocomecei

afrequentarasaulasdele.Nãoseiseacredito,mas...– Pode acreditar. – Sem pensar, seguro a mão dele. – Aconteceu. No

meuaniversário.–Oqueaconteceu?– Nosso mundo colidiu com um mundo paralelo. Entrelaçou-se. As

lembranças de todos foram apagadas, e nosso eu paralelo começou areescrever nosso passado, mas ninguém sabe disso. Ninguém além demim, pelo menos. – Eu penso no que disse, sobre como isso parece

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maluquice,emeperguntosecometiumerro.Eumeretraioumpouco,semquerer deixar nada de fora. – O mundo paralelo está um ano atrás donosso–explico.–Bem,umanoeumdia,naverdade.Oterremoto...nãofoiumterremoto,masumacolisão.Enãoaconteceuaquinodia8desetembrode 2008; aconteceu lá. No mundo paralelo. Nós só nos lembramos delecomosetivesseacontecidoaqui.Chama-se...

–Realidadecompartilhada.–Joshestáolhandoparamimsurpreso,masnão incrédulo. Sinto a esperança dentro do peito. Ele não me consideramaluca.

–Sim!Maso lanceéquenãosaiucomodeveriaparamim.Eumantivetodas as minhas lembranças reais e não recebi as novas. Minhaslembrançasdomundoparaleloparamnopontoemqueaslembrançasdaminhaparalelaparam,porissotenhoumintervalodeumanonoqualtudodaversãodeleéumgrandevazio.Éporissoqueeunãosabiaquevocêeeuestávamosjuntos.Éporissoqueeu...

–Pare.Eunãooouçologodecara.–Oquê?– Eu disse pare. – Ele olha para a própria mão, que eu ainda estou

segurando.Começoasoltar,maseleaagarradenovo.–Sóparaeuverseentendi, sua explicação para seu comportamento no último mês é quehouveumacolisãocósmicamaluca?Quealterouomodocomointeragimosnotempoenoespaço?Equevocêsabecomoaconteceu?Abby...

– Eu sei. Sei que parecemaluquice. Mas pense bem, Josh. – Seguro amãodele,desejando,desesperadamente,fazercomqueeleentenda,daraeleapazquemerece.–PensenaAbby–digodelicadamente.–AAbbyquevocêconhece.AAbbyquevocêama,equetambémamavocê.AAbbyqueparouderespondersuasmensagensdonada.AAbbyquenãorespondeua nenhum e-mail ou mensagem de texto. Ela faria algo assim? – Sinto ocoraçãoapertaraopensaremcomodevetersidoparaeleaquelesilêncioinexplicável.Nenhumaexplicação.Nenhumadeus.

Sutil,quaseimperceptivelmente,elebalançaacabeça.– Ela nunca teria feito isso, Josh. Se eu soubesse o que estava

acontecendo,eu nunca teria feito isso. Mas aconteceu, e nenhum de nóstevequalquercontrolesobreisso,evocêéavítimainocente,esintomuito,muitomesmo.–Minhavozfalhaenquantopuxooar,apertandoamãodelecomtantaforçaquemeusdedoscomeçaramadoer.

Eleolhaparaamãoqueestouestendendo.– Você está dizendo que tudo de queme lembro a respeito de nosso

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relacionamentoéficção?–Não icção–respondo.–Masnão...oqueaconteceuconosco.Nósdois

sabemosquenãohádistinção.Elesoltaaminhamão.–Não–elebalançaacabeçacomfirmeza.–Não.Aesperançadentrodemimdiminui,comoumaondanamarébaixa.–Pareceimpossível.Deveriaserimpossível.Maséaverdade,Josh,juro

queé.Ele se cala, se afasta demim e, por ummomento, penso que vai sair

andando.–Porfavor–sussurro.–Nãováembora.–Vocênão se lembradenada? – ele pergunta, coma voz incrédula e

triste.–Eumerefiroaonossorelacionamento.Nadamesmo?–Eumelembrodealgumascoisas–digo.–Donossoprimeiroencontro.

Da Feira da Geórgia. Tudo o que aconteceu antes de vinte e sete denovembro do ano passado. É onde as lembranças da minha paralelaparam.

Ele continua não olhando para mim, mas consigo ver suas lágrimasrolarem.Elenãotentasecá-las.

– O que eu sinto... não eram sentimentos de outra pessoa, Abby. Nãopodemser.O jeitocomoamovocê...–Avozdele falha.–Nãomedigaquenãoéreal.

Sintoumapertonopeito.–Nãoseioquedizer.Nadaalémdesintomuito.Sintomuito,muito.–As

lágrimas que apertaram minha garganta e izeram minha voz tremerdesde que essa conversa começou estão descendo livremente agora. Eucontroloumsoluço.

–Tambémsintomuito–eledizcomtristeza.Hesitaporummomentoeentão me abraça. – Eu acredito em você – ele sussurra. Suspiro e meencosto nele, apoiando o peso de meu corpo no peito dele. Seu pescoço,comcheirodesabonete,estáquentecontraminhatesta.Ocheiroénovoe,ao mesmo tempo, muito conhecido, e aciona as poucas lembranças quetenho de estar tão perto dele. Da noite anterior ao nosso primeiroencontro, sentada no balanço ao lado dele. Demãos dadas no planetáriodois dias depois. O braço dele sobre meus ombros na roda-gigante. E amaisrecente:eurecostadaemumaárvoreàbeiradoChattahoochee,coma cabeça apoiada em seu ombro, observando o pôr do sol depois dopiqueniquedaequipedeBrookside.Respiroprofundamente,permitindoamimmesma imaginar como teria sido viver aqueles momentos, uma vez

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queaslembrançasdeles,apesardeespecí icaseprecisas,nãotêmemoçãoe,assim,sãoincompletas.Euoabraçocomforça.Nãoquerosoltar.

– Entrelaçamento cósmico – Josh diz depois de umminuto, com a vozabafada contra meus cabelos. – Não foi onde pensei que essa conversalevaria. – Sorrio, recostando-me no peito dele. – Quem mais sabe sobreisso?–elepergunta.

– Só a Caitlin – respondo, distraída pelo leve bater do coração dele,tentandoimaginarcomoseriacolocaramãoali.–OdoutorMannsuspeita,masnãocontamosaeleainda.

Joshseafastaeolhaparamim.–VocênãocontouaoMichael?–Eunegocomacabeça.–Porquenão?–Acheiqueelenãoacreditaria.–Você...–Eleolhaparaacalçada.–Vocêoama?–Nãosei–admito.Josh se vira e começa a andar de novo. Os olhos castanhos estão

carregadosdedor.–Nãodeveriateracontecidoassim–digo.–Seeusoubessedevocê...de

nós...seimaginassequeestávamos...–Apalavra“apaixonados”estápresaem minha garganta.Estávamos apaixonados. Balanço a cabeça, semconseguirterminar.Joshseguraminhamãoeaaperta.

–Então,devocolocaraculpanoDiadeAçãodeGraças–elediz.Olhoparaele.–Oquê?– Ano passado – ele explica. – Se você tivesse vindo, como estava

combinado,vocêeMichael teriamseconhecido.Talvezascoisas tivessemsidodiferentes,nessecaso.

Sinto meu peito apertar. Não existe “talvez” nisso. Se o MichaelsoubessequemeueraquandonosencontramosnaYale,eleesperariaqueeumelembrassedele,eeuteria ingidocomo ingicomtodosnaqueledia.No mínimo, ele teria me perguntado sobre Josh. Não haveria a menorpossibilidadedeestarmosnamorandoagora se tivéssemosnos conhecidonaquelascircunstâncias.

GraçasaDeuselanãofoi.Pensonopassado,tentandomelembrardoqueminhaparalelafez,mas

nãoconsigo.Eumesintosemfôlegoquandomedoucontadisso.–ODiadeAçãodeGraçasaindanãoaconteceu–eusussurro.Elenãopercebe,aprincípio.Apenas icaolhandoparamim.Eentãoele

sedáconta.–Ainda épossível. Ela aindapode ir àminha casa. Para a sobremesa,

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talvez.–Osolhosdelebrilhamcomesperança.Mastambémháoutracoisa.Amor.Atémesmo agora, depois de tudo o que aconteceu. Está claro na cara

dele. Não importa para ele que suas lembranças não sejam reais. Seussentimentosnãomudaram.

Elemeama.– O destino poderia intervir – ele diz. Os lábios, rachados de frio,

esboçamumsorriso.–Poderíamosacabarjuntos.Não! Todos osmedos e ansiedades que tenho ignorado aparecem. Se

minha paralela quiser icar com Josh, ela deveria icar. Se decidir que orelacionamento merece outra chance no próximo outono, quando eledisserqueestádispostoase transferir,ótimo.Masaqui,nestemundo,eudevo decidir com quem quero icar. E escolho o Michael. É com ele quedevo icar. O que estou sentindo neste momento não importa. Na minhamente,seioqueéverdade.

Masnãoéaminhacabeçaoproblema.SemconseguirolharnosolhosdeJosh, itoaarmaçãodemadeiramais

à frente. Meus olhos descem o monte até o balanço à beira do lago,agitando-seaoventoda tarde.Nossobalanço.Hesito,afastandoa imagemdenósdois.Nãoénossobalanço.Édeles.

Aslembrançassãodanadinhas.–Vamos–Joshdiz,pisandonaterra.–Então, comovocêse lembradisso?–perguntoquandonossentamos

no balanço. – No último Dia de Ação de Graças. A última lembrança quetenhoédanoiteanterior.

AexpressãodeJoshficaséria.– Michael agiu como ele age normalmente. – Ele olha para mim. –

Independentemente de como ele é com você, é diferente com a nossafamília.Desdequemeupaimorreu.–Josholhaparaaágua.–OúltimoDiadeAçãodeGraçasfoiumnovogolpe.EledissecoisasbemruinsaoMartinà mesa, e minha mãe permitiu. –Que tipo de coisas?, sinto vontade deperguntar, mas não pergunto. – Cansei. Depois daquilo, não quis maisconversarcomele.– Josholhaparamim,comosolhostristes.–Nafrentedecasa,ontem,comvocê...foiaprimeiravezqueoviemumano.

–Quebelamaneiradesereverem–ésóoqueconsigodizer.Permanecemos em silêncio por muito tempo, deixando o vento, ainda

mais frio por causa da água, nos balançar. Encosto a cabeça namadeirafria,observandoocéuacinzentado.

–Eu estava emLosAngelesquandoa colisão aconteceu–digodepois

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deumtempo.–Filmando,naverdade.–Olhopara Josh.–Naversãoreal,eu não iz a aula de astronomia com você. Fiz aula de interpretação eacabei indo para Los Angeles. – Olho para o céu de novo. – Essa vidaparecebemmalucaparamimagora.

– Fico tentando imaginar se teríamos nos conhecido – Josh diz,pensativo,pegandoimpulsocomospésnochão.–Sevocênãoestivessenaminhasalaanopassado, talvez tivéssemosnosencontradoemalgumcaféemHollywood.

Sorrio.–Talvez.Estamos balançando para valer agora, com a corrente velha e

enferrujadafazendobarulhoacimadenossacabeça.–Vocênãoestámorrendodefrio?–perguntoparaele,puxandoozíper

dablusa.– Não – ele responde, dando mais impulso ao balanço para ir ainda

maisalto.–Achoquenãodáparafazerissonestetipodebalanço–digo,olhando

paraoganchoqueprendeobalanço.– Tenho certeza de que você está certa – ele responde, empurrando

commaisforça,orostorosadodefrio.Eu dou risada, erguendo os joelhos em direção ao meu peito. Alguns

segundosdepois,ele fazamesmacoisa.Estamos indo tãodepressaqueobalançorangeacadavirada,equasemederruba.Eumeseguro.

–Fracote!–Joshgrita.–OndeestáaAbbyqueconheço?Nósnosentreolhamoseficamostentandoimaginar.Michaeltelefonaquandoestouentrandonagaragem.– Oi – digo ao atender. – Como estão as coisas em Boston? – Pelo

barulhoqueescutoaofundo,perceboqueeleestáemumbar.– Ótimas! – ele grita. Eu me retraio e afasto o telefone da orelha, e

percebo que a bateria está quase acabando. – Estamos nos preparandoparaumafestanoSullivan’sTap!

–DigaoiaoSullivan.–Não,não!–elegrita.–OSullivannãoéumapessoa.Sullivan’sTapéo

nomedeumbarpertodoGarden.–Sim,euentendi.Foiumapiada.–Ah,tá!–Michaelri.–Comoestãoascoisasporaí?–Tudobem.Masestoucomsaudade.–Sófazsetehorasqueeuodeixei

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no aeroporto, mas parecem sete dias. Passar um tempo com o Josh foidivertido, mas estar com ele me desestruturou. Basta minha paralelapassar na casa dele amanhã para meu relacionamento com Michaelacabar.

– Também estou com saudade – Michael diz. – Gostaria que vocêestivesseaqui.

–Eutambém–digoesintoumapertonagarganta.–Carpenter!–Escutoumhomemgritar.–Bombeirinho.Pronto!–Possoteligaramanhã?–Michaelpergunta.– Claro – eu digo, me esforçando para parecer animada. Mas ele já

desligou.Minhamãeestásentadaàmesadacozinha,fazendopalavrascruzadas,

quandoentro.–Oi,linda–eladiz.–Comofoi?–Bem,comopoderiatersido,acho.Temtorta?– Na geladeira – ela responde, pousando o lápis na mesa. – Você

conseguiuconversarcomele?– Sim. Fomos caminhar. – Vejo a torta atrás do leite e tiro os dois da

geladeira.Minhamãeolhaparamimenquantocortoumafatia.–Mãe,oquefoi?–VocêrealmentenãosabiaqueMichaelerairmãodele?Pensoemprosseguircomaverdade,masseiqueissotornaráaminha

vidamuitocomplexa,enãoprecisodesseproblemaagora.–Nãosabiamesmo–digoaela.–ComooMichaelnuncadissequetinha

umirmão,sinceramentenãopenseiqueelepudesseter.–EvocênuncapensouemsaberquemeraoirmãodeJoshquandofoi

paraafaculdade?Joshnãosugeriuisso?– Joshnuncamepediu isso – digo a ela, coma sensaçãode quepode

serverdade.–Não era um relacionamentomuito bom, certo? – ela diz, passando a

facaparamim.Cortoumaboafatia,emaisuma.Fazvinteequatrohoras.Otempero familiar me acalma no mesmo instante. En io outra garfada naboca.Éporissoquedizemqueacomidaacalma.

–Eentão,oquevocêachoudoMichael?–perguntocomabocacheia,semsaber se realmentequeroouvir a resposta.Meuspais icarammuitocaladosdepoisdeontem.

–Elemepareceubastanteconfiante–elaresponde.–Eestáclaroqueémuito esperto. –Confiante? É como dizer que uma garota tem boapersonalidadequandoperguntamsobresuaaparência.

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–Então,vocêsodetestaram.–Nósnãoodetestamos!Nãosejatola.–MasgostammaisdoJosh.–Nósconhecemoso Josh–elaresponde.–NãoconhecemosoMichael

muitobemainda.Masestamosansiososparaconhecer.–Elasorri.Vamostorcerparaqueconsigam.Estouprestesaenterrarminhaansiedadesobmaisumpedaçodetorta

quandoacampainhatoca.–Medesculpeporaparecersemavisar–Joshdizquandoabroaporta.

– Tentei ligar,mas caiu direto na caixa postal. – Ele está usando a blusaqueeuuseiháumahora, comagola levantada.Estavacomocheirodelequando eu a vesti... será que icou com o meu cheiro? – Estouinterrompendoojantar?–elepergunta.

–Não,euestavaestragandomeuapetiteparaojantar.–Mostroopratoqueaindaestousegurando.–Querumpouco?

–Não, preciso ir para casa. Sóqueria lhedar isto. –Ele tira amãodobolsoeapulseiradeourodeCaitlincainochão.

–Oh,ondevocêaencontrou?– Estava presa namanga daminha blusa – ele diz quando se agacha

para pegar. Observo-o colocar a delicada corrente de ouro na palma damãoesquerdaeesticaramãonaminhadireção.

Derepente,soutomadapelalembrança.Aimagem–essaimagem–deJoshajoelhadoàminhafrente,comamãoesquerdaabertaeerguida.Masna minha mente, o chão onde ele ajoelha é uma praia e não há umapulseira em sua mão, mas, sim, uma aliança. E Josh, usando uma calçacáqui e uma camiseta polo demanga curtamarrom, estámeio diferente,maisvelho.Porquenãoconsigodeterminarquandoaconteceu?

Porquenãoéumalembrança.Seguro a maçaneta para me manter de pé, pois minhas pernas

perderamaforça.PorquetenhoumaimagemdeJosh,apoiadoemumdosjoelhos,segurandoumaaliançacomdiamante?Deondeveioessaimagem?Tentoimaginar,mas,aomesmotempo,jásei.

Veiodofuturo.Masdequem?–Abby?Oquefoi?Ah, nada. Acabei de ver vocême pedindo em casamento comdetalhes, vi

atéasombradasuacamisa.Finjoestarcalmaesorrio.Pegoapulseiradamãodele.–Josh,oSalvador–digoaele.–ACaitlinteriamematadoseeutivesse

perdidoessapulseira.

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–Semproblema–eledize icadepé.Levaamãoaobolsodetrásetiraumcartão-postaldobrado.–Tambémquerialhedaristo.–Eledesdobraeme entrega o cartão.Na frente, vejoApersistênciadamemória, deDali.Oquadro que uniu meus pais. O único quadro que restou quando a alasurrealistadoMoMapegou fogodepoisda colisão.Umquadro cujonomedescreveperfeitamenteoqueestouvivendoagora.Passoopolegarsobrea super ície lisa da imagem brilhante, pensando na coincidência e naligação.

–Ondevocêconseguiuisto?–pergunto.–Vocêmedeu–eleresponde,semsepreocuparcomadistinçãoentre

nós/eles. Algo no rosto dele deixa claro que é uma escolha consciente. –FomosàexposiçãodeDaliorganizadapor suamãeumdiaantesdevocêpartir para estudar – ele diz. – Estávamos fazendo um tour, escutando odocente descrever a visão surrealista do subconsciente. “Os sonhos sãomais reais do que a realidade”, amulher dizia. Logo depois de ela dizerisso,vocêse inclinouparaafrenteesussurrou:“Nóssomosmaisreaisdoquearealidade”.

–Fiz isso?– sussurro,apesardenão ter sidoeuquemdisse.Nósdoissabemosdisso.

–Esse cartão-postal estavanomeuarmárionamanhã seguinte– Joshdiz.–Vocêdevetê-locompradonalojadepoisdotour.Eleesticaobraçoeviraocartãoemminhasmãos.Ali,napartedetrás,estãominhaspalavrasescritasàmão.Somosmaisreaisdoquearealidade.

Olho para a tinta borrada, com a garganta apertada demais pararesponderdireito.Maisreaisdoquereais .Algodentrodemimabraçaessaideia. Existem coisas que transcendemnossapercepção a respeito delas?Coisas que são verdadeiras, independentemente de qualquer coisa? Seexistem,oqueissoquerdizerparamimeparaessecaraquemalconheço,masemquemnãoconsigoparardepensar,apesardeamaroirmãodele?

–Émelhoreuir–ouçoJoshdizer.–Viajoamanhãcedo.–VocêvaivoltarparaLosAngeles?–VamosjogarnaUCLAamanhã–eleresponde.–Jogoimportante.– Bom, foi legal ver você – digo sem jeito, segurando o cartão-postal.

Minhamãotremelevemente.Porquenãoqueroqueeleváembora?– Fique com ele – ele responde. – Para se lembrar. – Ele sorri com

tristeza.Sempensar,euoabraço.Aprincípio,seucorpo icatensocontraomeu, como se ele estivesse evitando o abraço. Mas depois a tensãodesaparece e ele retribui. Mas apenas por alguns segundos. E então se

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afasta.–Tchau,Abby–eledizeseviraparairembora.–Secuide.– Você acha que as coisas acontecem por ummotivo? – pergunto de

repente.Joshseviradenovo.–Comcerteza.–Vocêacreditaemalmasgêmeas?–Pergunte-meamanhã–elediz.Eentãovaiembora.Àumadamanhã,aindaestouacordada,esperandopelosono.Aluaestá

brilhandoláforaelançasualuzdentrodoquarto.Suspiro, roloparao ladopeladécimanonavezdesdequemedeitei, e

repito o que tenho dito sem parar desde que Josh se foi.Ela não vaiencontrá-lo.Nãohánadacomquesepreocupar.ElajádisseaoJoshquenãopodeir.Odiavaipassar,eMichaelvaisairmaiscedonamanhãdesextaparair para Boston como ele sempre faz. Nada vai mudar . Digo amimmesmaessas coisas e injo acreditar nelas, mas estou com medo. Não queroperderoMichael.Nãoagora.

Deitadadelado,meurostoficaapoucoscentímetrosdopost-itquecoleina cabeceira como lembrete para “lembrar do Dia de Ação de Graças”assim que acordar amanhã. Rezo para que o feriado da minha paralelaaconteçacomodeveacontecer.Euaimaginoàmesacommeuspaiseavós,comendooperudeminha avó. Eu a imaginona cozinha comminhamãe,levandoospratosparaapia.Euaimaginonosofácommeuavô,assistindoàversãoempretoebrancodeAfelicidadenãosecompra,um ilmequevitantasvezesquedecoreias falas.Fechoosolhos, repassandominhacenapreferida.

As palavras de George Bailey ecoam em minha mente quandoinalmente adormeço:O que você quer? Quer a lua? É só pedir, e eu possolaçá-laetrazê-laparabaixo.Ei,queideiaboa.Dareia luaavocê,Mary .MasnãoéorostodeJimmyStewartqueestouvendo,e,sim,odeJosh.Eonomequeecoaéomeu.

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13(Lá)quinta-feira,27denovembrode2008(DiadeAçãodeGraças)

Estouemumacalçada,passandoporumprédioqueseestendeporumquarteirão.Acalçadaestárepletadepessoasvestindojaquetasecachecóis,carregandolivrosecadernos,segurandocoposenormesdecafé,caminhandodeumladoaoutro.Oventoestáfrionomeunariz.

–Abby!–Escutoalguémmechamar.Viroparaadireitaevejoumportãopretodeferroforjadoporbaixodeumapassagemaltaabobadada.Dooutrolado do portão, um cara – cabelos pretos, faces bem desenhadas, dentesperfeitos – sorri paramim.De repente, ouço umbipe e o portão se abre. Ocaravemnaminhadireção.–Oi–eledizquandoseaproxima.–Trouxealgopara você. – Olho para baixo. Há uma caixa emminhasmãos. – É torta deabóbora.

Acordoassustada.Oardomeuquartoestápesado como cheiroapimentadoda tortade

abóbora daminhamãe, sua contribuição para a refeição queminha avóinsisteempreparartodososanos–nanossacozinha.

–ODiadeAçãodeGraçasnãoéumdiaparareceitasnovas–éoqueela diz todos os anos, é umadireta para aminhamãe, que não gosta defazer nada duas vezes. – O Dia de Ação de Graças envolve tradição. –Parece que seguir a tradição exige uma cozinhamoderna. Minha avó serecusaa fazerospratosemoutro lugarquenãosejaanossacasa.Aindadepijama,eudesçoaescadadosfundos.

– Aqui está ela! – meu avô diz quando entro na cozinha, abrindo osbraçosparamedarumabraço.

–FelizDiadeAçãodeGraças, vovô! –digoaoabraçá-lo. –Fiquei felizporvocêtermecontadosobreasestrelas.–Fuiparaacamapensandoemtodososnoves,pensandonoqueconcluir.Elemeapertacommaisforça,eeu retribuo, sem querer soltá-lo. Quando inalmente o solto, eu meaproximo de onde minha avó está, com as mãos de unhas bem feitascobertaspormigalhasdepãodemilho.

– Suamãe se esqueceu da sálvia – elame diz, inclinando-se parame

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beijar.Olhoparaaminhamãeenquantoisso.Elasóbalançaacabeça. Nãopergunte.

– Quer que eu busque um pouco? – pergunto animada, colocando otelefone no balcão e caminhando até a cafeteira. – O supermercado abreatéasduas.Sálviafresca,nãoseca,certo?

–Seriaótimo,querida–minhaavódiz.–Epodecomprarumpoucodeuísqueescocês?Suamãetambémseesqueceudisso.

– Não, Rose, ela não pode comprar uísque escocês – minha mãeresponde antes demim. – Ela tem dezessete anos. E desde quando vocêbebeuísqueescocês?TemumJackDanielsnoarmário.

– O escocês temmenos calorias – minha avó rebate. – Mas pode serbourbon.

– Certo, sálvia fresca. – Despejo leite nomeu café e então procuro nagavetaatampademinhagarrafa.–Maisalgumacoisa?

–QueméJosh?–escutomeuavôperguntar.–Eporqueelevai“sentirsaudadeshoje”?–Meuavôestásegurandomeutelefone,comatelaacesaporqueumamensagemdetextochegou.

–Joshémeunamorado–respondo.–Eelevaisentirsaudadesporqueeudissequeestareicomumvelhinhoxeretaodiatodo.–Meuavôbateemmeutraseirocommeutelefone,eentãooentregaamim.

–Podemosconheceronamorado?–minhaavópergunta.–Umdia–digoaela.–Antesdeeumecasar,comcerteza.–Soproum

beijo para ela, e então subo as escadas com meu café e as perguntascontinuam.

–Ésériodessejeito?–Escutominhaavóperguntar.Ficonomeuquartotemposu icienteparavestiracalçajeanseprender

os cabelos em um rabo de cavalo. Quando estou passando pelamesa nahora de sair, bato na barra de espaço de meu laptop, acendendo a tela.Com a chegada inesperada dosmeus avós ontem,me esqueci de checarmeuse-mailsquandovolteiparacasadepoisdopiquenique.Meue-maildeaprovaçãopoderiaestaremminhacaixademensagens.Comocoraçãoaospulos, clico no ícone do e-mail, e uma caixa pop-up aparece:Erro deservidor.Suamensagemnãofoienviada.

Quemensagem?Cliconacaixadesaída,eume-mailseabre.Não!Olho para a minha tela, surpresa. É um e-mail para o escritório de

admissãodaYalecomumdocumentoanexado.Sóháumapessoa,alémdemim,queusameulaptop.

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Elanãofezisso.Comasmãostrêmulas,cliconoanexo.Éoarquivoquearrasteiparaa

lixeiraontemdemanhã.AinscriçãoparaaYalequenãotiveaintençãodeenviar.

Ah,elafez,sim.Sintoafúriatomarcontademeucorpo.Tãoquentequequeimatodoo

resto.Arrancoofiodemeulaptopedesçoaescadaemdireçãoàcozinha.Minhamãenãodesviaoolhardatigelaqueestálavando.–Vocêpodecomprartambém...– Como pôde? – pergunto, interrompendo-a. Ela olha para a frente

surpresa.Perdeacomposturaquandovêmeucomputador.–Abby,eusó...–Vocêoquê,mãe?Vocêprecisavasaberseeueracapazdeentrar?Se

suapreciosa ilhaeraboaosu icienteparaumauniversidadedeprestígio?– Minha voz está trêmula e meus olhos estão intensos. As coisas estãocomeçandoaperderofoco.

–Não!Nãotemnadaaver.Eu...Nãopermitoqueelatermine.–Vocêmexeunosmeusarquivos?Quemfazisso?–Batoocomputador

no balcão, sem me preocupar se ele vai se quebrar ou não. Meus avósicam olhando para mim, assustados. Não me comporto assim. Não soudescuidadacomeletrônicoscaros.Nãogritocomminhamãe.

Masestougritandoagora.– Nãomexi em nada – ela diz baixinho. – Precisava enviar um e-mail

ontem, e havia deixado meu computador no museu. Sua lixeira estavaabertanatela.

– Minha lixeira. LIXEIRA. O que você estava pensando em fazer se eutivesseentrado?

– O que está acontecendo aqui? – Meu pai entra na cozinha, com oscabelosaindamolhadosdobanho.–Porquetodaessagritaria?

– Você sabia disto? – pergunto, apontando para meu laptop. – Vocêsabia que a mamãe pegou minha inscrição da Yale na lixeira e a enviousemmecontar?–Pelacaradomeupai,ficaclaroqueelenãosabia.

– Ela preencheu tudo – minha mãe diz a ele, imediatamente nadefensiva. – Quando vi na lixeira, pensei que, talvez, ela tivesse searrependido no último minuto, e não queria que ela perdesse umaoportunidade de mudança de vida por medo de não entrar. Ela tem seesforçadotanto,penseique...

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–Masnãoeraasuadecisão!–grito.– Abigail, não fale com a sua mãe desse jeito – meu pai diz com

seriedade.–Não,Robert,elatemrazão.Abby,eu...Nãoesperopelopedidodedesculpas.Antesdeelaterminar,eumeviro

eabroaportadosfundos.– Vocês podem comer sem mim – aviso um pouco antes de bater a

porta.

MeucarropraticamentevaisozinhoparaacasadeCaitlin,apesardeeunão ter pensado em ir lá. Mas quando paro na frente da casa dela, seiexatamente por que vim, e não é para falar deminhamãe. É para pedirdesculpas. E pela primeira vez desde que falamos aquelas coisashorrorosas,nãoestoupreocupadacomoquedireiaela.

Toco a campainha duas vezes, e percebo que o Volvo da famíliaMossnão está ali, e o Jetta de Caitlin está estacionadona garagem.O jornal deontemaindaestájogadonavaranda.

Charleston. É onde a avó de Caitlin mora e onde a família dela passatodososferiados.

Decepcionada,masnãoderrotada,mesentonavarandaetelefonoparaela.Dessavez,deixoumamensagemdevoz.

“Oi, Caitlin, sou eu, a Abby. Estou na sua casa, na varanda, pensandoque gostaria que você estivesse aqui para eu poder lhe dizer issopessoalmente”.Respirofundo,sabendooquequerodizer,massemsaberaordemnaqualquerodizer.“Sintomuito,Cate.Sintomuitopeloquedissea você na cafeteria, e por falar do Craig – aquilo foi ridículo, péssimo, eestouarrependida.Estoumuitoarrependidamesmopor terdito aoTylerquevocêgostavadele.Porpensarquesabiaoqueeramelhorparavocê.Poracharquedependiademim.Nãoconsigonemimaginarotamanhodesua raiva. Bom, acho que consigo, porque...” Começo a falar sobre ainscrição na Yale,mas desisto. Essa ligação não é para falar sobre o queminhamãe fez. É para falar sobre o que eu iz. “Por favor, aceite omeupedido de desculpa”, eu me apresso. “Farei o que for preciso”. Paro,pensando se a mensagem ainda está coerente, já que comecei a falar,chorar e fungar. Fico pensando se devo implorar para ela telefonar paramimousesópeçodesculpasdenovo,masentão,escutoosegundobipe.

Alinhaficasilenciosa.Derepente,aprofundidadedoabismoentrenóssetornainsuportável.

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Não queromais brigar com ela. Ela éminhamelhor amiga. Faz parte dequemsou.

NãosouaAbbysemaCaitlin.Porfavor,Deus,devolvaaminhamelhoramiga.Estouligandodenovoquandoelaretornaaligação.–Medesculpe–éoquedigoemvezde“alô”.–Porfavor,nãodesligue

naminhacara.–Euligueiparavocê–eladiz.– Ah, é – digo, tola. Não sei dizer, pela voz dela, se ela escutouminha

mensagemounão.–Medesculpe–digodenovo.–Peloquefiz.–Eutambémmearrependo–eladiz,esuavozfalha.–Vocênãotemdesearrependerdenada.–Aslágrimasescorrempelo

meurosto.–MentiparaoTyleredisseaquelascoisashorrorosas.– Eu disse coisas péssimas também. E, de certomodo, tambémmenti.

Nãoconteiporqueestavairritada.NãofoisóporcausadolancedoTyler.–Comoassim?–EutinhaqueenviarminhainscriçãoparaaYalenodiaseguintee...– Ai, meu Deus. Suas redações. – Esqueci totalmente. Uma desculpa

quasetãoruimquantoaofensaemsi.Quetipodeamigaseesquecedealgoassim? Eu sabia que era importante para ela que eu lesse os textos. Suadislexia a havia deixadomuito temerosa em relação a sua capacidade deescrever,eaqueles textossigni icavammuitoparaela.–Souuma idiota–digo.–Nãoéàtoaquevocêestavabravacomigonaqueledia.

–Bem,porissoeporcausadaminhapontuaçãopéssimanoSAT.–Asuaoquê?– É. Foi uma semana bem ruim. – A voz dela está carregada de

decepção.–Quasetãoruimquantoestatemsido.–Você...–Paro.Nãoconsigoimaginarquesejaverdade.–Nãoentrei–eladiz.–Descobriontem,umpoucoantesdepartirmos.

Estounalistadeespera.– Ah, Cate... – Sinto o coração literalmente doer no peito. – Mas você

aindatemumachancedeentrar,certo?–Sim.Massóvousaberemfevereiro.Porisso,estoumecandidatando

a outros lugares. Acredito que meu avô Oscar icaria orgulhoso por teruma neta na Wash U ou na Duke. – Ela faz um esforço para pareceranimada.–Evocê?RecebeunotíciasdaNorthwestern?

–Aindanão.– Você vai entrar – ela me garante, porque é isso que as melhores

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amigasfazem.– Minha mãe mandou minha inscrição para a Yale sem me contar –

digo.–Oupelomenostentou.Descobriamensagempresanaminhacaixade saída hoje. Há quinzeminutos, na verdade. Não foi enviada, graças aDeus.

–Elapreencheuacoisatodasemcontaravocê?–Não.Eupreenchi.Elaencontrounalixeiradomeucomputador.–Porquevocêpreencheusenãoqueriasecandidatar?–Euestavaconfirmandoquenãoqueriaentrar–explico.–Preenchendoa ichadeinscrição?Asuacara,Abby.–Afamiliaridade

desuavoz,amisturadistintadehumorefranquezacomseuscomentáriosmuitopertinentesmeenchemdealegria,nãoseiexplicar.

–Sentisaudades–digo.–Muitas.–Eutambém.Nenhuma de nós diz mais nada durante alguns minutos. Ficamos ali,

pensandonassituaçõesdavida.Certo, talvez o mundo não seja tão justo. Quando volto para o carro,

ignorei quatro ligações daminhamãe e trêsmensagens de texto. Só porqueconsigomeidenti icarcomoraciocíniodo“seioqueestoufazendo”daminhamãenãoquerdizerqueestoua imdefalarcomelanomomento.E,sinceramente, não tenho energia emocional para lidar com a vovó Rose,nemvontadedeenfrentarumarefeiçãodequatrohoras.ComCaitlin foradacidade,oúnicolugaraoqualpossoiréacasadoJosh.

Estou no meio do caminho para a casa dos Wagner quando me doucontadequenãotomeibanhonemescoveiosdentes.Felizmente,temumposto com loja de conveniência e banheiro entre a casa de Caitlin e a deJosh. Compro desodorante, um kit de escova de dente e uma colônia emembalagemparaviagem,queespalhopelaminhapele.

Excelente.Agoraestoucomcheirodecamponesa.SóquandoestaciononafrentedacasadoJoshmedoucontadequenão

conteiaelequeiriaatélá.Pensoemirembora,masdecidoqueexisteumaboachancedealguém termevisto chegar.Nãoé a impressãoquequerocausar nos membros da família que ainda não conheci. Enquanto pensonasopções,meutelefonetoca.

–Vocêestánafrentedaminhacasa–Joshdizassimqueatendo.–Verdade.–Issoquerdizerquevaicomerconosco?

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–Seoconviteaindaestiverdepé.– Claro que está. O que aconteceu com a maratona de comida? – ele

pergunta.–Longahistória–digo.–Então,nãotemproblemaeuestaraqui?–Nenhum. – Escuto quando ele destranca e abre a porta da frente. –

Vai entrar agora? Ou precisamos trazer peru na calçada? – Josh sai davaranda descalço, com uma calça cáqui amassada e uma blusa cinza,excepcionalmentebonitinho.

–Vouentrar–respondo.Comotelefoneaindagrudadonaorelha,saiodo carro e caminho na direção dele. – Por favor, desculpe a minhaaparência–digo.–Saícompressa.

Elefranzeatesta,preocupado.–Estátudobem?– Sim. Não. – Suspiro e desligo o telefone. – Não sei. Minha mãe

encontrou minha inscrição da Yale preenchida na lixeira, onde eu acoloquei e queria que icasse, e a enviou em segredo. Ou tentou. Eu aencontreiemminhacaixadesaídahoje.

–Nossa.Vocêconversoucomela?– Sim. – Não tenho forças para contar todos os detalhes, por isso,me

calo.Joshnãoperguntamaisnada.– Você precisa de um abraço – ele diz e me puxa. Quando começo a

relaxarencostadanocorpodele,sintoseunarizemmeupescoço.Douumpuloparatrás.–Nãomecheire!Nãotomeibanho!Edeiumaexageradanacolônia.–Éisso!Éesseocheiro!Cheirodecampo.–Elesorrieseinclinapara

mecheirardenovo.–Temdeoutrosaromastambém?–Não.Nãosei.–Saiodepertodele.–Pode,porfavor,nãomecheirar?Eleri.–Émeiodifícilevitar.–Ótimo–digo.–Quebelaprimeiraimpressãovoucausar.–Aúnicapessoaquevocêaindanãoconheceéomeuirmão,enãodeve

sepreocuparcomoqueelepensa,definitivamente.Aofalardoirmão,aexpressãodeJoshmuda.–Ai,cara–escutoavozantesdeverseudono.– Issodói.–Olhoalém

deJoshparaasaletaescura,ondeoirmãodeleestádepénassombras.–Essadeveserasuanamorada–elediz,aparecendo.Alto, cabelos pretos, olhos verdes penetrantes. Camiseta do Gray Yale

Lacrosse.Percoofôlego.Ocaradomeusonhodeontem.

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–Abby,esteémeuirmão–Joshdiz.Nuncaovimurmurardaquelejeitoantes.Nãocombinamuitobemcomele.

– Oi! – digo, tentando ser simpática. – Sou a Abby! – A voz animadatambémmeajudaanãopensarnofatodequesonheicomoirmãodeJoshontem à noite, um sonho no qual o irmãome deu uma torta de abóbora.Comoissoépossível?Nuncaoviantes.

–Desculpeagrosseriademeuirmão–elediz,estendendoamão.–SouoMichael.

Umasensaçãofortededéjàvutomacontadomeupensamento.Ficoali,olhandoparaele–tentandosituá-loemummomento–qualquermomentoreal.Masnãoconsigo.

– Você vai me deixar esperando? – ele provoca, indicando a mãoestendida.

– Ah, desculpe! – Coloco a mão na dele. Quando nos tocamos, eureconheço. Quero perguntar se já nos conhecemos, mas sei que nãohaveriacomo.

– Vocês estão pensando em passar o dia na varanda? – a mãe deleperguntadedentrodacasa.

–Você sabemexeremumextintorde incêndio?– Joshperguntaparamim.–Eudisseaomeupaiqueoajudariaaassaroperu.

Michaeldáumpassoparatrásparanosdeixarentrar.–É,émelhorvocêajudaroseupai–elediz.Semresponder,Joshpassa

porMichaeleentranacasa.Michaelficaolhandoparamim.Olho para ele. A sensação de familiaridade, de lembrança

indeterminada,éforte.Aquelesolhosverdes.Oformatodassobrancelhas.Acicatrizpequenanorosto.Piscodepressa,tentandomedesvencilhar.

–Vocêtemalgumacoisanosolhos?–Michaelpergunta,esboçandoumsorriso.

Desviooolhardepressa.–Não.Eu...vouprocuraroJosh.–Comosolhosgrudadosnochão,passo

poreleeentronacasa.Duashoras e umquase incêndiodepois, nós cinconos sentamospara

comer. Depois da cena que testemunhei na varanda, imaginei que Josh eMichaeldiscutiriamatardetoda,masparecequeelestêmfeitoumesforçopara serem civilizados por minha causa. Isso, aparentemente, exige quenenhumdeles fale.Osúnicossonsnamesasãoo tilintardos talheresnospratos.

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–Eentão,Michael–Martindiz,quebrandoosilêncio–,queaulasestáfazendo este semestre? Alguma coisa relacionada à ísica? –É quasedezembroeelesnãosabemasmatériasqueeleestáestudando?

Michaelrespondecomumsorrisoirônico.–Infelizmentenão,Marty.Martinnãoreageaodiminutivodeseunome.Masnãodizmaisnada.– Para quais faculdades você vai se candidatar? – Michael pergunta.

Imaginoqueeleestejaperguntandoao Josh,aténotarque todosnamesaestãoolhandoparamim.

–Ah,hum...–Derepente,medáumbranco.–Universidadescombonscursosde jornalismo–digodepoisdealgunssegundosdesconfortáveis.–Northwestern,Indiana.Ealgunsoutroslugares.

–PorquenãoaYale?–Michaelpergunta,en iandoumpedaçodepeledeperunaboca.

LançoaJoshumolharirritado.–Nãoconteiaele–Joshdizrapidamente.–Eleestudalá,porissoestá

perguntando.MichaelolhaparaJosh,eentãoparamim.–Oqueelenãomedisse?–Nada– respondo.–Penseiemmecandidatar,masmudeide ideia.–

Derepente,odramaquefizcomminhamãeparecetãoinfantil.–Porquê?–Queroestudaremalgumlugarcomumprogramadejornalismo.–Uma garota que sabe o que quer –Michael diz, semparar de olhar

paramim.–Estouimpressionado,cara.Aomeulado,Joshseremexe.Querodesviaroolhar–deveriadesviar–,

mas não consigo. O olhar de Michael é magnético. Pelo canto do olho,perceboqueamãeeopadrastodeJoshseentreolham.

–Estesbolinhosestãodeliciosos–medirijoàmãedeJosh,mudandodeassunto.

–Ah,quebom!–elaresponde,parecendosatisfeita.–Foiumatentativaque izcomaculináriadosul.Elapegaobolinhoemseuprato,eoanalisa.–Penseiqueficariammaismacios.

–Paramim,estãoperfeitos–digoaela.–Sim,mãe.Bomtrabalho–Michaelse inclinaeabeijanorosto.Elase

alegra.E,então,imediatamente,eleseviraparamim.–Porquevocêquerserjornalista?Aperguntamepegadesprevenida.Ninguémnuncameperguntaisso.

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–Comoassim?– Gostaria de saber o que fez você escolher. Parece bem segura da

decisão.–Ah,eu...hum...–Olhoparameuprato,envergonhadapornãoteruma

resposta.Porqueamãedemeuamigoera jornalista,eeugostavadomodocomoelasevestia.Esseémesmoomotivo?–Gostodeescrever.

– Ela está sendo modesta – Josh me interrompe. – Escreveincrivelmentebem.Eéaeditora-chefedojornaldaescola.

–Bem,sequerser jornalista,deveriasecandidataràNYU –Michaelmediz,quaseignorandoJosh.–Meumelhoramigodoensinomédioestudalá,eelefezumestágionoHuffingtonPostnoverãopassado.

–Sério?Nossa.–Possopassaroe-maildele,sevocêquiser.–Sim, seriaótimo–digoaele. –ANYU estánaminha lista,mas comoo

prazoé janeiro,querosabera respostadaNorthwesternantesdeenviarminhainscrição.

–BenestágostandodeNovaYork?–AmãeperguntaaMichael.– Adorando – Michael responde. – Conheceu uma garota lá no verão

passadoporquemdizestarapaixonado.–Benapaixonado!–Amãedeleexclama,sorrindo.–Vocêaconheceu?–Aindanão–Michaeldiz.–ElaestudaemSeattle.Benqueriaqueela

fosseparaNovaYorknoanoquevem,maspeloquedisse,elaqueraYale.–Lá vem ela! – Nós olhamos para o Martin, que agora está cantando

muitobem.–Duhnuhnuhnuhnananah.–Martinbateosdedosnamesaenquanto canta. –Ela é a namorada do meu melhor amigo. – A raivaaparece no rosto deMichael,masMartin não percebe. – Cuidado, Ben! –Martinbrinca,sorrindo.Elenãoestápensandoemseusupostocasocomaesposadeseumelhoramigo,porquenãosabequedeveriaestarpensando.Mastigacomalegria,esperandoquenóscomecemosarirdapiada.

OlhoparaasenhoraWagner.OsolhosdelaestãogrudadosemMichael,comosepedisseparaelenãodizeroqueestáprestesadizer.

–Michael! – A voz de Josh é irme, como um pai falaria com um ilhoinsolente. Michael se vira para Josh, mas olha paramim, e não para ele.Ficamos nos olhando por um instante. Menos de um instante. E então,inexplicavelmente, ele sorri. Não é um sorriso frio, mas um sorrisocaloroso,diretamenteparamim.

– Acho que você deveria reconsiderar a Yale – ele diz, como sefôssemos as duas únicas pessoas na mesa, e, por um momento, eu me

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esqueço de que não somos. – A inal, a Northwestern pode ter uma belaescoladejornalismo,masquantosformandosganharamoprêmioPulitzerdejornalismo?

–Nove–digo, sorrindo. –ContraquatrodaYale. –Michael ri.OlhoaoredorevejoqueJosheospaisdeleestãoolhandoparanós.Surpresa,pegomeu garfo e o derrubo. E agora, estou suandomuito enquanto todosmeobservampegá-lodochão.

–Voupegaroutroparavocê– Joshdiz,e icadepé.SintoqueMichaelestámeobservandodooutroladodamesa,comumsorrisoabsurdamenteatraente.Decidonãoolharmaisparaelepelorestodarefeição,eolhoparameuprato.Aservilhasestãosecasefrias.

–Comovocêemeuirmãoseconheceram?–Michaelpergunta.Joshrespondeantesdemim.–Naauladeastronomia–dizquandomeentregaumgarfo.Euopegoe

espetoumaúnicaervilha.–Então,achoqueissofazdevocêsnamoradosestelares,nãoé?A casa está escura quando estaciono o carro cinco minutos antes do

meuhorárioparachegaremcasa.Eumesintolevementeofendidaaoverqueninguémestáacordadomeesperando.Saídecasahádozehorasenãoatendiostelefonemas.Poderiaestarmortanomeiodarua.

EstacionoatrásdoBuickdosmeusavóseusominhachaveparaentrarpelaportadafrente,semquereracordarninguémcomosomdoportãodagaragem. Minha mãe está sentada no primeiro degrau da escada,segurandoumacanecadecafé,esperandopormim.Parececansada.

–Comofoi?–elaperguntaquandoentro.– Foi... interessante – digo, fechando a porta ao entrar. – Como você

sabeondeeuestava?– O Josh ligou – ela responde. – Não ique brava com ele. Não queria

queeumepreocupasse.–Ficofelizporeletertelefonado.–Não iquebravacomigo–eladiz,comavozmaisdelicada.–Sóestava

tentandoajudar.–Eusei.–Sóqueroquesejafeliz–eladiz.–Seidissotambém.–Tirandomeucasaco,suboosdegrausemesento

aoladodela.–Medesculpepelosgritos.Elameabraça.

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–Penaqueeunãotinhaumacâmerapararegistraracaradasuaavóquando você gritou. – Nós duas rimos e a tensão desaparece. Encosto acabeçanoombrodela.–Penseiqueamulherteriaumataquecardíaconanossacozinha–eladiz.

–Comofoiarefeição?–Maisoumenoscomosempre.Apesardeparecerqueseusavósestão

fazendoadietadeSouthBeach.Elesnãocomeramaminhatorta.–Ah,entãoquerdizerquesobrou?–Quasetudo.Querumpouco?– Sim, por favor. Depois do dia de hoje, seria bom experimentar um

poucodenormalidade.–Oqueaconteceu?– Imagine o encontro mais estranho de sua vida. Acrescente uns

bolinhos,peruemultipliqueporcinco.–Tãoruimassim?– Pior. O irmão de Josh acusa o padrasto de ter dormido com a mãe

delesquandoopaidelesaindaeravivo.–Elefezissonasuafrente?– Acho que pode ter sidopor minha causa, na verdade. Se eu não

estivesseali,achoqueoMichaelteriaidoemboraantesdasobremesa.Masnão terminaaí. Parecequeeraopai delesqueestava tendoumcaso, e amãedeles temmantido issoemsegredo.Achoqueamulher comquemopaideles estavadormindoperdeuumbrincoemumquartodehotel, e oatendentedeixouumamensagemaesserespeitonotelefonedacasadele.Michaelouviuepensouqueobrincoeradesuamãe,equeelaestavacomMartin.

– Bem, pelomenos a verdade foi revelada, certo? Talvez eles possamsuperar.

–Esperoquesim.Eu a sigo escada abaixo e entramos na cozinha, onde comemos dois

pedaçosdetortacomumcopograndedeleite.Enquantocomemos,contoaelasobreosonho.Atorta,oportão,osolhosverdesdeMichael.

–Estranho,nãoé?–Quevocêsonhoucomele?Não.VocêeJoshestavamfalandosobreele.– Mas eu não sabia como ele era – digo. – Não tinha uma imagem

mental. E também não havia porta-retratos com fotos dele na casa dosWagner. Procurei hoje. Além disso – digo, lambendo o garfo –, no meusonho,elenãoerao irmãode Josh.Eleera...nãosei.Meunamorado,algoassim. E ele estava me dando a torta.Esta torta, na verdade. O que, por

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falarnisso,estádeliciosacomosempre.–Bem,pelomenoseletembomgosto–minhamãediz.Sorrio,pensandoemMichael.– Inteligente,bonitoe tembomgostopara tortas–digo. –Poderia ser

pior.– Estamos falando do cara de seus sonhos, não do irmão do seu

namorado,certo?–Elaestámeprovocando,masficocorada.–Certo.–Eoirmãodoseunamorado?Oqueachadele?– Não sei. É di ícil decifrá-lo. Mas havia algo nele... – paro de falar,

imaginandoapalmademinhamãonorostodele,emeinterrompo.Eleéoirmão de meu namorado. – Ele estuda na Yale, na verdade – digo,pigarreandoetirandoa imagemdeminhamente.–Emeincentivouamecandidatar.

–Vocêgritoucomeletambém?–Engraçadinha.–Abroabocapara fazerumcomentário,masapenas

bocejo.–Ai,ai.Sintoqueestouentrandoemcomainduzidopelatorta.–Funcionatodasasvezes–elaresponde,escondendooprópriobocejo.

Pegameupratovazio.Douumbeijoneladeboa-noiteesigoparaomeuquarto.Ali,naminha

mesa, estámeu laptop, com a caixa de saída ainda aberta na tela.Minhamãedevetermexidodenovo.Minhavisãoborraporumsegundo,eeumeimagino ao lado de Michael na frente de um enorme portão de ferroforjado, com um jornal embaixo do braço. É a mesma calçada na qualestávamosnomeu sonhode ontemà noite.Onde ica isso? O local parecefamiliar,masnãooreconheço.Comosetivesseplanejado,abroagavetadebaixoepegoomontede folhetosdeuniversidadesquequeriaorganizar,masnãoorganizei.OdaYaleestáporbaixo,comumpoucodepódecafégrudadonele por ter passadobrevemente pelo lixo da cozinha quando opeguei. A imagem na frente é um prédio alto, que parece uma catedralgótica,mas,naverdade,provavelmentenãoseja.Talvezsejaabiblioteca.

Num impulso, viro o folheto. Ali está. Phelps Gate, de acordo com alegendaembaixoda foto.Nela,háumalunopassandoporumapassagemabobadadaenorme.AmesmapassagempelaqualMichaelpassouemmeusonho.Michael, umcaraquenunca tinhavisto antes.Michael, o irmãodemeunamorado,umcaraqueestudanaYale,umlugarquenuncavisiteie,atéentão,doqualnão tinhavistonada.Mas, aindaassim, sonhei comele,atrásdoportão.

Meuímpetoéduvidardemimmesma.Talvezoportãonãofosseaquele

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portão.TalvezocaraqueeuvinãofosseoMichael.Porque...comopoderiaser?

Masera.Olho para a imagememe imagino passandopelo portão, entrandono

campus.Umpensamentosurgeemminhamente,estranhoeforte:Esteéoseudestino.

– Não acredito em destino – digo baixinho, mas é mentira. Só nuncapenseiqueomeupoderiaserdiferentedoqueplanejei.

Procuro entre os folhetos até encontrar o mais desgastado, com aspontasroxascomorelhasdetantoseremmanuseados.

–Esteémeudestino–repitoparaacapaimutável,passandoodedonoNãomaiúsculo.Masminhavozestánormalenãoconvence.

OlhoparaofolhetodaYaleetomoumadecisão.Seelesmandaremumrecrutador aoHead of theHooch, falarei com ele. E se ele disser que eudevomeinscrever,éoquevoufazer.

Arrastooe-mailparaacaixaderascunhos,sóparagarantir.

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14(Aqui)sábado,28denovembrode2009(horadojogo)

Meusolhosseabremesevoltamparaorelógio:seisdamanhã.Opost-itamareloestábemondeeuodeixeiontemànoite,grudadonalateraldacabeceira,iluminadopelafracaluzazuldorelógio.

LEMBRE-SEDODIADEAÇÃODEGRAÇAS!!!Nãoqueeuprecisedolembrete.Nãoéprecisomuitoparamelembrar

disso. Essa lembrança se destaca das outras, com prioridade em minhamente.

A briga com a minha mãe. Aparecer na casa de Josh sem avisar.ConheceroMichael,nãocomoumaalunadoprimeiroanodesimpedidaedisponível, mas como a namorada do irmão mais novo dele. Em outraspalavras,jácomprometida.Totalecompletamenteindisponível.

Eumerecostono travesseiroedeixoanovarealidade tomarcontademim.Não estou mais com o Michael. No momento, é como se nossorelacionamentodedoismesesemeionuncativesseacontecido.

Espero pelo familiar nó na garganta, o medo nauseante. Mas ele nãovem.Emvezdisso,sintoumfrionabarriga.Deansiedade.

Levo amão à barriga, tentando entender o que estou sentindo. Comopossoficarbemcomisso?

PorquequerdizerquevocêestácomoJosh.–Não–sussurronoescuro.–Nãoestouapaixonadapeloirmãodomeu

namorado. – Quando escuto o que digo, quase dou risada.Quem é onamoradoequeméoirmão?–Essacoisatodaestábemestranha–digoaomeuteto.

Fecho os olhos, imaginando o rosto de Michael. Ele me faz rir. Fazminhas mãos suarem. Beija absurdamente bem. Qualidades muitoimportantesemumnamorado.

EtemoJosh.Umrostoqueémaisembaçado,masmaisfamiliar.Nãooconheço muito bem, e, ainda assim, há algo indescritivelmentebom arespeito dele. A nosso respeito. Quando estava com ele ontem, me sentiestranhamentecompleta, comose tivesseencontradoalgoqueprocurava.

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Masporquê?– Ele é minha alma gêmea? – digo essas palavras em voz alta, sem

intenção. Minha voz está estranha. – Josh é minha alma gêmea – digo,testando as palavras. Sinto uma onda de felicidade ao imaginar o quepoderia ser nosso futuro juntos. Assistir ao jogo de futebol daUSC quandoestivercomeleemLosAngeles.ComerpepperoninaYorksidequandoeleestivercomigoemNewHaven.

Yale.Minhamente,queatéestemomentoestavaavaliandocalmamentemeu

novo conjunto de circunstâncias, começa a se acelerar. Estou tentandoentendercomopossoteridopararnaYalesemCaitlinparameconvenceramecandidatar.Agora,eusei:minhamãeenvioua inscrição.Masminhaparaleladesfezissoquandoencontrouaquelee-mail.

NãovoumaisparaaYale.Saio da cama e procuromeu telefone,mas está sem bateria. O laptop

está conectadoao ladodelenamesa.Tocoabarrade espaçopara tirá-lodo modo em repouso e descubro que não está em standby, mas, sim,desligado.

–Merda! – eu grito, apertando o botão de ligar várias vezes. – Ligue,suaporcaria!

–Abby?Oqueestáacontecendo?Porqueacordoutãocedo?Eporqueestáxingandoseucomputador?

Minhamãeestánaporta,olhandoparamimnoescuro.–Ah,eu...Elaen iaamãopelaportaeacendealuz.Nósduaspiscamosdiantedo

choquequealuzcausaàretina.–Estátudobem?–elaperguntou.–Escuteivocêládebaixo.Enquantomeusolhosseajustamàluz,vejoumamanchaazulacimada

cabeçadela.Ali.Logoacimadaporta,bemondedeveriaestar,estáminhaflâmuladaYale.ApulseiradeCaitlinestáemcimadacômoda.

–Estátudobem–abroumsorrisoparamedesculpar.–Sóprecisodotelefonesemfio.

–Desçaparapegar–eladiz.–Eparedegritar.Seupaiestá tentandodormir.

–Eusei,medesculpe.–Comoraboentreaspernas,desçocomelaatéacozinhaparapegarotelefone.

– Para quem você vai telefonar tão cedo? – ela pergunta enquantoservecaféemumaxícaraparamim.

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– Para a Caitlin – respondo, já teclando os números. – Obrigada pelocafé–digoquandovoltoasubir.

– Está falando sério? – Caitlin diz quando atende. – São 6h15min damanhã.Deumsábado.

–Precisomesituar.– Seu nome é Abby Barnes. Você está no primeiro ano da Yale. Você

moracomMaris...Euainterrompo.–Seidetudoisso–digosempaciência.–Estounamorandoalguém?–Michael–eladizcomvozdesono.–Michael–repito.–Michaelémeunamorado.– Você não sabia disso? – ela pergunta, bem acordada agora. – Seu

relacionamento com ele é novo para você? – Pela primeira vez, sinto umpoucodeanimação.

Minhavidaéumquebra-cabeça.Eessespedaçosseencaixam.Nãoprecisotermedodenada.–Nãoénovo–digoaela.–Sónãopenseiqueaindafosseocaso.–Porquenão?–Caitlinpergunta.–Oqueaconteceu?–Naversãoreal,Michaeleeunosconhecemosnomeuaniversáriode

dezoitoanos,umdiadepoisdacolisão.Paramimeleeraumcaraqualquer,omelhor amigodeBen.Mas ele não é “um caraqualquer” para aminhaparalela.Nãomais.Ela sabequeele é irmãodo Josh.Eles se conheceramontem,noDiadeAçãodeGraçasdeles.

–Sim–Caitlinresponde.–Éporissoquevocêsestãojuntos.Euficosemar.–Doqueestáfalando?– Você disse que sabia, desde que conheceu Michael, que tinha que

icarcomele.FoiporissoquevocêterminoucomoJosh.EporquevocêsecandidatouàYale.

ElaescolheuoMichael.–Quandofoiorompimento?LogodepoisdoDiadeAçãodeGraças?–Não,sóemabril.QuandovocêvoltoudoBulldogDays.–BulldogDays?–Estouquasegritandocomela.–Oquediaboséisso?–Ofimdesemanadeboas-vindasaosalunosdaYale.VocêeMichael...–ELAFICOUCOMELE?EnquantoestavacomoJosh?–Saíram juntos – Caitlin diz com calma. –Até onde sei, ninguém icou

comninguém.Nãonaqueledia, pelomenos.Vocêmanteve a relaçãobemplatônica até setembro. Ideia sua, não dele. Vocês começaram a namorar

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noseuaniversário.–EoJosh?–Vocêcontouaeleháalgunsdias,noDiadeAçãodeGraças.Peloque

mecontouontem,elenãoaceitoumuitobem.Achoquedesdeentão,vocênãofalacomele.

–EoMichael?– Ele foi para Boston ontem. Vai levar você para jantar em um

restaurantechiquedeNewHavenamanhãànoite.Éexatamenteoqueeuqueria.Hádoisdias,éoqueaconteceu.Muitacoisapodemudaremdoisdias.Muitacoisapodemudaremdois

minutos.Ordemaocaos,evice-versa.–Nós izemos as pazes – digo. – Você e eu.No últimoDia deAção de

Graças.– Claro que izemos as pazes – Caitlin responde. – Você pensou que

ficaríamosbrigadasparasempre?Sorrio. Isso é engraçado na vida. Raramente temos consciência dos

malesdosquaisescapamos.Dascoisasquenãonosacometemporpouco.Ascoisasquequaseacontecem.Passamostantotempopreocupadoscomofuturoepoucotempoadmirandoapreciosaperfeiçãodopresente.

FechoosolhosevejoorostodoJosh.Nomeiodaruaontem,debarbapor fazer, sem tomarbanhoe semquererduvidardoqueacreditava serverdade.Nãosãoossentimentosdeoutrapessoa,Abby...Omodocomoamovocê...nãomedigaquenãoéreal.Nãoimportouparaelequeopassadonãofosse como ele se lembrava. Só importava como se sentia naquelemomento, ali comigo. Ali, no presente. Respiro fundo, deixando-me voltarparaaquelemomento.Deixando-mesentiroquesenti,masnãoconseguiaentender.Deixando-meentrarnofuturoquevinaminhavarandaontemànoite, um futuro que não consigo ver com clareza, mas no qual con iomesmoassim.Certo,certo,certo.Eleécerto.Semprefoi.

EMichaeltambémécerto.Masnãoparamim.Entendi o contrário.OMichael é a almagêmeadaminhaparalela. E o

Josh,aminha.De repente, todosos argumentosdeCaitlin a respeitoda equivalência

genética se perdem. E daí se minha paralela e eu parecemos a mesmapessoa sob um microscópio? A alma não pode ser captada emDNA. Éexatamente o que o doutor Mann quis dizer naquele dia em seulaboratório.Vocêéumserunicamentecriadocomumaalmatranscendente .

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Uma alma cujos desejos não podem ser previstos nem efetivamenteexplicados,cujaconstituiçãonãopodeserquanti icada,cujanaturezarealcontinuasendoummistério,tãomisteriosoquantoantes.Minhaparalelaeeutemosalmasgêmeasdiferentesporquesomosalmasdiferentes.

–PrecisoterminarcomoMichael–digo.–Oquê?–Caitlinparecebastantechocada.–Porquê?–Estoucomoirmãoerrado–digoaela,elogodesligo.Esquecendo que horas são, teclo o número deMichael. Ele atende no

quintotoque,comavozroucaegrogue.–Abby?– Precisamos terminar o namoro – digo assim que escuto a voz dele.

Nadadedelicadeza.Silêncio.–Michael?–Seissoéumapiada,teriasidomaisengraçadaaomeio-dia.–Nãoépiada–digobaixinho.Escutopassosdoladodeleeentão,osomdeumaportasefechando.–Possosaberporquê?–Avozdeleestábaixaeecoaumpouco,como

seeleestivessenobanheiro.Euoimaginodecamisetaecalção,oscabelosdespenteadosporestardormindo, sentadonabeiradabanheira.Respirofundo, imaginando o cheiro dele, tão diferente do de Josh, apesar decompartilharem omesmoDNA. Breve e estranhamente, eumepergunto sealmatemcheiro.

Eleestáesperandoumaexplicação.Pensoemnãoresponder,dizeralgoa respeito de valorizar a amizade e de precisar de um tempo. Mas elemerecemaisdoqueisso.Elemereceaverdade.

–AchoqueestouapaixonadapeloJosh–digobaixinho.– Você acha que está apaixonada pelo Josh – ele repete. Eu a irmo

mexendo a cabeça, e então percebo que ele não pode me ver. – E eupensandoquevocêestivesseapaixonadapormim.

–É... – começo, e entãoparo.Destino?Parece ridículo, atéparamim. –Nãofazsentido–digo.–Euseidisso.

–Comopôdefazerisso?–Eleestáirritadoagora.Emagoado.–Nãofoiminhaintenção–digo,comagargantaapertada.–Masfez–eleresponde.–Vocêquis fazer.Nãofoiumacidente,Abby.

Vocêestá fazendo isso.Estádecidindo.Évocêquemestá jogandoonossorelacionamentofora.

Passam-sealgunssegundosdesilêncioatéa linha icarmuda.Durante

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dezoutrossegundos,euentroempânico.Eseeuestiverescolhendoocaraerrado? Mal conheço o Josh. Ontem foi a primeira conversa ao vivo quetivemos. Todoo restoque sei sobre ele é damemória. Ele parecia o caracerto,masnãoseimuitobemseeleeeutemosque icarjuntos.Aresposta,claro,énão.Nãoexistecerteza.Omelhorquepodemosfazeréusaroquesabemos,eoqueaprendemos,eoqueacreditamosserverdadearespeitodenósmesmos,eentãotomarumadecisão.

Minhaparalelatomouumadecisão.EscolheuoMichael.EuescolhooJosh.Momentaneamente paralisada, olho para o telefone. Não tem como

voltaratrás.SeascoisasnãoderemcertocomoJosh,tereiperdidoosdois.Estourezandoenquanto tecloonúmerode Josh.Por favor,atenda,por

favor, atenda, por favor, atenda. Depois de dois toques, ouço a voz de umatendente. “O número que você ligou não está disponível para receberchamadasdeseunúmero.”

Sinto um aperto no peito. Ele não se lembra da nossa conversa deontem.Minhaparalelaaapagou.

De repente, sintoumanecessidadeurgente.Vimeudestino.Não tudo,mas uma parte essencial. Se essemomento for o únicomomento de quepodereitercerteza,precisofazercomqueelevalhaapena.

Comaspontasdosdedosformigando,digito“passagemaéreadeúltimahora”noGooglee clicoementer.Cincominutosdepois, estou inserindoonúmero domeu cartão de crédito para um voo deAtlanta a Los Angelesqueparte em três horas e seisminutos e faz comque o saldo emminhacontacorrentefiquecommenosdetrêsdígitos.

En io uma troca de roupa e uma escova de dente em minha bolsa etomo um banho rápido. Enquanto lavo os cabelos bem depressa, icopensandonoquedizeraosmeuspaissobreessaviagemrepentina.Éclaroque eles gostam do Josh. Mas gostam o su iciente para me permitiratravessaropaísdaquiatrêshorasparavê-lo?

–Então,elenãosabequevocêvai–minhamãedizquandocontomeuplanoaeles.–Vocêvai,simplesmente,aparecernoquartodele?

–Nãonoquarto– respondo. –Masno jogodaUCLA. Sei onde ele vai sesentar. –Desejandopreservaro elemento-surpresa, eudisse aTyler queestavapensandoemverJoshnaTVe,assim,queriasaberondeeleestaria.Tylernãoacreditou,masmedeuonúmerodoassentomesmoassim.

–Essaéaminhagarota–meupaidiz,aprovandominhadecisão.–Quepegaotouropeloschifres.–Minhamãelançaumolharaele.–Quefoi?Eu

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achoromântico.– Nossa ilha de dezoito anos quer atravessar o país para dizer a um

garoto que gosta dele. – Minha mãe olha para mim. – Não podesimplesmentetelefonarparaele?Ouenviarume-mail?

– Já disse que ele não atendemeus telefonemas. Está chateado comoqueaconteceucomoMichael.

–Ecomrazão–eladiz.–Vocêrompeucomelepara icarcomoirmãodeleemantevesegredo.

– Cometi um erro – digo. Não posso explicar nem dar uma desculpapelaminha escolha, porque não fui eu quem decidiu. Mas não possomearrepender,porque,semisso,nãoteriaoquetenhonomomento:clareza.SeJoshéminhaalmagêmea,entãoeuoencontreinãoapesardain luênciada Abby paralela, maspor causa dela. Ela não é mais minha adversária,maspartedequemsou.–Precisademaisdinheiro?–meupaipergunta,analisandoacozinhaàprocuradesuacarteira.–Voulhedarumpoucodedinheiro.

–Vamospermitirqueelavá?–minhamãeperguntaaele.–Achoqueelanãoestavapedindopermissão,Anna.–Vouficarbem,mãe–digoaela.–Deverdade.–Maseaescola?Vocênãotemaulanasegunda?–Voltoparaasaulas.Vouvoltar amanhã cedo.Meuvoodevoltapara

NewHavensóchegaàsseis.– Anna, esta é a Abby, lembra? Nossa ilha responsável e ajuizada. –

MeupaimedácinconotasdevinteeseuAmex.– Tão responsável e ajuizada que merece fazer compras enquanto

estiverviajando?–Perguntocomumsorrisoenquantoguardoocartão.–Ah,nãoabusadasorte.–VocêfaloucomMichael?–minhamãepergunta.Confirmo.–Telefoneiparaeleháumahora.Ele icoubemchateado–digoaela,

lembrando o som da voz dele. Uma onda de pânicome toma.Cometi umerro?

– Nunca gostei daquele cara –meu pai comenta. – Ele tinha um jeitoestranho.

–Vocêsóoviuumavez!– Tenho boa intuição – ele responde, passando manteiga em uma

torradaqueimada.Porummomento,sintopenadaminhaparalela.Elavaienfrentarumdesa ioe tanto tentandoconvencerminhamãeemeupaiagostaremdeMichael.

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–Bem,émelhoreu ir–digoaeles.–Meuvooparteemduashoras.–Pegominhamala,sentindo-menervosaderepente.–Deseje-mesorte.

–Boasorte,querida–meupaidiz,apoiandoamãoemmeuombro.Foiexatamente o que ele disse para mim no dia da estreia da peça anopassado, atrás do palco, antes do show. As mesmas palavras, o mesmogesto,amesmamisturadecon iançaepreocupaçãodepai.Eumelembrode ter me sentido muito nervosa nas semanas que antecederam aapresentação,certadequeeuesqueceriaasfrasesepassariavergonhanafrentedaplateia.Todaaminhaenergiaeansiedadeestavamfocadasparaque eu vencesse aquelas cinco apresentações e pudesse seguir com amudançadevida.Nãovipassar.

Nãoestavaprestandoatenção.– Terra chamando Abby. – Minhamãe balança a mão diante de meu

rosto.Euhesitoeorostodelaapareceparamim.E,decertomodo,aminhavidatoda.

–Estouagora–digosimplesmente.Elabalançaacabeça,semcompreender.–Vocêestáagoraoquê?–Prestandoatenção.QuandooaviãoaterrissaemLosAngeles,estoumuitonervosa.Sim,éo

que quero,masOQUEESTOU FAZENDO?Elebloqueoumeus telefonemas.E se elese recusar a falar comigo? Ou pior, e se eu envergonhá-lo na frente detodos os amigos da faculdade? Penso em esperar o jogo acabar, masconcluo que é arriscado demais: é possível que ele saia com as pessoasdepois.Desdequeestejanojogo,seiondeencontrá-lo.

As estradas estão previsivelmente cheias, e quando nos aproximamosdasaídadaUSC,otrânsito icalentoepara.Aonossoredor,fãsdemonstramsualealdadecomadesivos.Meumotoristaestáouvindoacoberturadojogopelorádio.

– O senhor pode aumentar o volume? – pergunto. Ele con irma eaumenta o volume bem quando aUCLA entra. Josh deve estar em seuassento.

Sintooestômagoenjoado.Malconheçoessecara,eestouprestesafalardemeuamoraeleemumestádiorepletodepessoas.Émaluco,masnuncativetantacertezadealgonavida.

Cinquenta e oitodólaresdepois, o táximedeixano estádio.Obarulho

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quevemdedentroéensurdecedor.Quandomeaproximodaentrada,olhopara cima, e, apesar de estarmos no meio da tarde de um diamaravilhosamente claro, o céu está manchado de vermelho e roxo. Vi anévoa, mas não vi seu efeito no céu de Los Angeles. Essas cores sãoespecialmente encantadoras, o que é estranho, porque normalmentequandoocéuestáencobertotambém icaescuro.Mashoje,consigoveratéosmontes.Quandofoiaúltimavezemqueocéu icouassim?Minhamentedançacomaslembranças,nãoconsegueselembrar.

– Ingresso? – alguém diz, levando-me de volta à realidade. Cheguei àcatraca,ondeumameninacomumcapuzmarromedouradoestápegandoosingressos.

Olho para ela sem expressão. Eu me esqueci totalmente do lance doingresso.

–Ah,nãotenhoainda–digoaela.–Ondepossocomprar?Elari.– Você está brincando, certo? Os ingressos para o jogo acabaram há

meses.Hácambistasporaí,masduvidoquealgumdelesestejavendendopormenosdeduzentosecinquenta.

–Duzentosecinquentadólares?Paraumjogodefaculdade?Agarotaolhaparaalémdeondeestou,paraumhomemgrandeatrás

demim,vestidodacabeçaaospéscomroupasazuis.–Ingresso?Ohomempassapormim,quasemederruba.–Possovenderumingresso.Eu me viro e vejo um cara com uma blusa enorme da USC em uma

bicicletaqueparecepertenceraumacriançadecincoanos.Ogarotoolhaaoredorcomoseumpolicialestivesseprontoparaabordá-lo.Eucorroatéacalçada.

–Quanto?–perguntocomavozbaixa.–Nãopossopagarmuito.–Cinquentadólares–elerespondeepuxaumúnicoingressodobolso

da frente, que me entrega. – É de verdade – ele diz, parando a algunsmetrosdemim.–Éumbomassento,também.DoladodaUCLA.

Do outro lado do ginásio de onde Josh está sentado, mas, nestemomento,nãopossoescolher.

– Vou icar com ele – digo ao garoto, procurando minha carteira nabolsa.

–Vocênãoparece ser o tipodepessoaque gosta de futebol – ele dizenquantoesperapelodinheiro.–Paraquemvocêestátorcendo?

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–Nãoestou.Ei,sótenhonotasdevinteeduasdeum.Aceitaquarentaedois?

–Sessenta.–Masvocêdissequeeramsócinquenta!–Evocêdissequenãotemumanotadecinquenta.Tenhocaradecaixa

automático? – Olhando para ele, entrego minhas três notas de vinte. Eleguardaodinheironobolso,medáoingressoeseafastacomabicicleta.

Ali dentro, encontro a seção do ingresso com facilidade. Descendo aescada de cimento, viro o pescoço e vejo a cabeça loira de Josh. Quandofinalmentechegoàfileiradele,meucoraçãoestábatendoforteeapartedetrás dos meus joelhos está suada.É agora. Desço mais um degrau parapoder ver a ila toda e a observo, pessoa por pessoa, esperando pelomomentoemquemeusolhosencontrarãoorostoconhecidodele.

Mas ele não está ali.Há dois assentos vagos nomeio da ila,mas Joshnão está. Con iro amensagem de texto de Tyler para ter certeza de queestounolugarcerto.Seção11,fileira89.Ondeeleestá,então?

Rapidamente,tecloonúmerodeTyler.–Elenãoestáaqui!–resmungoquandoTyleratende.–Quemnãoestáaí?–Joshnãoestáondevocêdissequeeleestaria.Seção11,fileira89.Eentão,aUSCmarcaumponto,eoestádioétomadoporumbarulhão.–VocêestáemLosAngeles?–VimdizeraoJoshquegostodele.Queriaquefosseumasurpresa.–Vocênãoestánamorandooirmãodele?–Nósterminamos.Tylerdizalgoemresposta,masaUSCacaboudeconseguiropontoextra,

e não consigo escutar nada em meio ao som ensurdecedor. Demora umminutoatéeuconseguirouvi-lodenovo.

–Eleestáaí–Tylermediz.–Eleacaboudemeenviarumamensagemdetexto.Estácomumagarotaqueeleconhecedoensinomédio.

–Comela,tipo...namorando?– Se ele a estivesse namorando, imagino que não iria se referir a ela

como“umameninaqueconheçodoensinomédio”.Não,eleaencontrounocaminho.Osassentosdelaerammelhoresdoqueodeleeelatinhaalgunssobrando.Seção6.Terceirafileira.

–Obrigada–digo,jánomeiodaescada.–Estouindo.–Foiumaatitudemaluca,Barnes,atravessaropaísdesse jeito–Tyler

diz.–Eseelemandarvocêirparaoinferno?

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–Obrigada,Tyler,pelovotodeconfiança.Tchau.QuandochegonaentradadaSeção6,estouacabada.Linda.Umaparada

rápidanobanheirofemininoajuda,mastambémconfirmaquemaispareçoumamaluca. Provavelmente, porque sou umamaluca. Suandodebaixodobraço.Olhoparamimnoespelhocheioderespingosdesabonete,tentandoentenderoqueaconteceucomagarotacalmaecon iantequeatravessouopaísestamanhã.

–Qual é a pior coisa quepode acontecer? – pergunto aomeu re lexo.Nãoesperoaminharesposta.

Destavez, é fácil encontraro Josh.Ele éoúnico caradevermelhoemmeioaummardeazuleamarelo.Estásentadotrêsassentosdocorredorpara dentro, ao lado de uma garota com cabelos castanhos compridos eombros pequenos. Enquanto olho para a nuca deles, tentando criarcoragem para descer, o cara no assento do corredor se inclina para afrenteparadizeralgoaJosh.Aprincípio,sóvejoobraçodele,encostadonapartedetrásdoassentodagarota.Bronzeamentoarti icialsemlimites. LosAngeleséissoaí.

Eentão,agarotasemexeevejoorostodocara.ÉBretWoodward.SentadoaoladodeKirby.KirbydeBoston.Amenina

queJoshconhecedoensinomédio.Meus olhos analisam o resto da ileira. Vejo Seth do outro lado, e o

dublê de Bret e amaquiadora a quem o dublê sempre paquerava, e umcaradafaculdadequenãoreconheço,masacho,pelacamisetapretada USC,quesetratadeumamigodeJosh.Eentão,donadaesemqualquermotivo,Joshviraacabeçaeolhadiretamenteparamim.Ele icadepéeolhaparamim sem entender por um segundo, e então balança a cabeça como sequisesseesvaziá-la.

– O que você está fazendo aqui? – ele pergunta e passa pelos outroscarasemdireçãoaocorredor.

–Queriafalarcomvocê–eugrito.Joshmeencontranomeiodaescada.–Telefonarteriasidomaisbarato–elediz.–Vocênãoatenderiameutelefonema–digo.–Cincomilquilômetros.Vocêdeveteralgobemimportanteadizer.Hesito, sabendo que esse é o meu momento, mas tenho medo de

estragar. Josh ica ali, esperando, enquanto aspessoas começama cantaraonossoredor.Porumsegundo,achoqueelasestãocantandoparamim.Masnão.Elassóqueremumponto.

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– Acho que somos almas gêmeas – digo, o que não é bem o que euplanejei dizer. Queria começar com um pedido de desculpas pelo queaconteceu comMichael, passando ao grande “Cometi um erro, por favor,meperdoe”.Nãodeu.

–Desdequando?– Desde a primeira vez que você me levou ao nosso balanço – digo,

apesardeissosigni icaralgodiferenteparaeledoqueparamim.–Sómeesqueciporumtempo.

–EoMichael?–Termineicomelehojecedo.Elenãoaceitoumuitobem.–Meusolhos

icammarejados,porqueme lembro.Nãoqueriamagoarnenhumdeles,eagoraosdoisestãomagoados.–Josh,sintomuito.

Joshficacaladopeloquepareceumtempão.Eentão,bemalto,digo:–Achoqueelemereceencontrarsuaalmagêmea.Meucoraçãoestremecenopeito.–Estamos...bem?–sussurro.Elenãoresponde.Emvezderesponder,elemeenvolveemseusbraços

emebeija,etodasasminhasdúvidasdesaparecem.Eletocameuscabeloseeutocoorostodele,etudoseencaixa,comosetivéssemosensaiadoparaessemomentoavidatoda.Quandoabandacomeçaatocar,imaginoqueacançãoéparanós.

–Atempodeveradominaçãotroiana–Joshdizquandoeu inalmentemeafasto,eavozdeleestámaisaltaemaisleve.Elepegaaminhabolsadoombro.Comabolsaemumadasmãos,seguranaminhamãocomaoutraeeuoacompanhoescadaabaixoatéocampo.

–Então,vocêconheceaKirbydoensinomédio?Eleergueassobrancelhas,surpreso.–ComovocêconheceaKirby?Oops.–Nãoconheço–digorapidamente.–Masouvivocêmencionaronome

dela.–Acheiquenãotivessedito.–Então, elaédeWorcester?–perguntoantesqueelepossa repassar

nossaconversaeperceberquenãodisseonomedela.Eleassente.–Doisanosabaixodemimnaescola.Eueraamigodoirmãomaisvelho

dela, o Keith. Ela e amãe semudaram para cá quando Kirby completoudezesseisanos.

–E agora ela tem saído comas celebridades, hein?Aquelenão éBret

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Woodward?–Não temnemumpoucode invejaemminhavoz.Nãosintoinvejanenhuma.

– Louco, não é? É ela ali, perto do Bret, e aqueles são Seth, Dante eBrianna – Josh me diz, apontando para cada um deles. Todos sorriem eacenam, sem perceberem nada.Meus amigos de Los Angeles. Consigo vertodoselesno jantardeaniversárioqueBretpreparouparamimnanoiteanterioratudomudar.–Ocaradaoutrapontaémeuamigo,Derrick.

– Vocês deveriam sentar! – Kirby diz. – Aqui, sentem-se aqui. Seth,venha.

Josh levanta minha mochila acima da cabeça. Enquanto observo osbíceps bronzeados dele se contraírem, sinto um frio na barriga. Derepente, só consigo pensar em beijá-lo. Passar asmãos em seus cabelos,sentir seu peito contra o meu. Enquanto eu o acompanho a nossosassentos, olho para a cintura de sua calça jeans. Vejo a cueca compequenas renasvermelhasaparecerporbaixodacamiseta,que sobeumpoucoquandoeleergueosbraços. Suas costas sãoumpoucomais clarasdo que os braços, mas os músculos são igualmente pronunciados.Essetraseiro é tãoperfeitoassimnaturalmenteou ele fazalgumacoisa ? Eumedistraio tanto com esse pensamento que só vejo o pé de Bret quandotropeçonele.

Elemeseguraantesqueeucaia.–Cuidado–elediz,mantendo-mefirme.–Ei, vou tiraruma foto–Kirbydiz,balançandoo celulareespirrando

cervejanapernadeSeth.–Juntem-se.–Elaéumaameaçacomessetelefonecomcâmera–Bretdizparamim.

Quandoarespiraçãodelepassapormeurosto,sintoumarrepio.Euestariaaqui.Mesmoquenossomundonãotivessecolididocomomundoparalelo,eu

estariasentadabemali,naquelemesmoassento,comaquelaspessoas.Nãoteria ido a Los Angeles atrás de Josh, claro. Já estaria ali pelo cinema eprovavelmenteestarianessejogocomoacompanhantedeBret.Masestariaalidequalquermodo.EgraçasaKirbydeBoston,Joshtambém.

Teríamos nos conhecido de qualquermodo.Mesmo sem aquela aula deastronomia.Mesmosemaajudadaminhaparalela.Elamelevouaelemaiscedo,maseuoteriaencontradosozinha.

Eentão,umarealidadetãoclaraqueiluminatodooresto.Euoteriaamadodequalquermodo.As palavrasdodoutorMann ecoamemminhamente.Seu caminho vai

mudar.Seudestinonãomuda.Derepente,tudofazsentido.Ocaminhonão

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dita o destino.Há vários desvios do destino, e às vezes esse desvio é umatalho.Masémaisdoqueisso.Sentadaaqui,nestelugar,Bretdeumlado,Josh do outro – entre meu passado e meu futuro –, é exatamente ondedevo estar.Não importa comoeu cheguei aqui ouparaondevouquandopartir.Aquestãoéqueestouaqui.Nestelugar,nestemomento,comestaspessoas. Os pontos se unem de ummodo tão especial, se cristalizam emalgomaiordoqueasomadaspartes.Todoopassadoformandoopresente.Aimagemdeminhavidamaislindadoqueeupoderiaimaginar.

Maislindadoqueeupoderiaplanejar.Lemathématicien.Quelleartiste.– Olhe para cima – Josh diz, segurandominhamão. – Deixa o céu da

noiteno chinelo, não? –Acimadenós, o céu éummontede vermelhos elaranjas,comoapartededentrodeumachamadevela.

–Uau–digo.–É...Antesdeeuconseguirterminara frase,oestádiocomeçaatremer.Ao

nossoredor,aspessoasgritamecorremparaseproteger.–TERREMOTO!–alguémgrita.OlhoparaoJosh,eomundoescurece,e icacalado.Otremoraumentae

entãopara.Dosilêncio,escutoossonsdepessoascomemorando.Umapito.Pessoas

falandoerindo.–TerrachamandoAbby.AosomdavozdeBret,abromeusolhos.Eleestásorrindocomosenada

tivesseacontecido.–Oquefoiaquilo?–pergunto.–Me diz você – ele responde rindo. – Você estava sentada ali com os

olhosfechados.Olho além dele, para as pessoas. Todo mundo está sorrindo e feliz.

Nenhumsinaldeterremoto.Seráque imaginei? SeguroamãodeJosh,segurando-ascomasminhas

duasmãos.–Acabeideviveraexperiênciamaismalucadetodas–começoadizer,

virando-meparaolharparaele.Eleestáolhandoparamim,surpreso.–Ah,não–ouçoavozdeBret.–Devosentirciúmesdessecaranovo?–

OlhoparaJosheparaBret,eénestemomentoqueperceboqueBretestáusandoumacamisetadiferentedaqueusavahácincominutos.Eeu...

Caramba.EstouaquicomoBret.NãocomoJosh.

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–Ei,nãome incomodo– Joshdiz,apertandomeusdedos.–Nãoé tododiaquedouamãoparaumaestreladecinema.–Eleriesolta.

Não.Porfavor,não.Não sei como eu sei e não consigo explicar como pode ter acontecido,

mas sei que aconteceu. Comamesma rapidez comqueperdiminha vidarealhá trêsmeses,euarecebidevolta.Aspessoassentadasnesta ileirasão meus amigos de elenco. Eu moro aqui, em Los Angeles, onde essaspessoaspensamquetenhogravadofilmesdesdemaio.

NãoestudonaYale.NãoconhecioMichael.NuncanamoreioJosh.Fechoosolhos. Issonãoestáacontecendo.Porfavor,Deus,nãopermita

que isso esteja acontecendo. Não depois de eu ter encontrado minha almagêmea.Nãodepoisdeeuteracertadotudo.

Bretseguraminhamãodepressa,apertando-aentreaspalmasdesuamão.

–Vocêestábem?–elepergunta.–Parecemeioatordoada.Atordoada.Éumapalavraespecialmenteadequada.Abroosolhoseolhoparaele,e,porummomento,sim,estouatordoada.

Irritadacoma ideiadecomeçardenovo, sozinha, semqueninguémmaissaibacomoascoisaseram.Comoascoisasdeveriamser.

Então,olhoparaJosh.Emelembro.Maisrealdoquearealidade.Nãoestousozinha. Joshestábemdomeu lado.Elenãosabeoquesei,

masoqueeuseibasta.

FIM

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