Paradoxos de um comediante Qorpo-santo

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PARADOXOS DE UM COMEDIANTE: QORPO SANTO Carmem Gadelha Fevereiro - 1996 Carmem Gadelha é Doutora em Comunicação e Cultura Professora de Poética do Espetáculo Curso de Direção Teatral ECO/UFRJ

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Livro de Carmem Gadelha sobre o comediógrado Qorpo-Santo, atualíssimo a respeito da nova concepção do pensamento brasileiro

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PARADOXOS DE UM COMEDIANTE:

QORPO SANTO

Carmem Gadelha

Fevereiro - 1996

Carmem Gadelha é Doutora em Comunicação e Cultura

Professora de Poética do Espetáculo

Curso de Direção Teatral

ECO/UFRJ

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Louco, sim louco, porque quis grandeza

Qual a Sorte a não dá.

Não coube em mim minha certeza;

Por isso onde o areal está

Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem

Com o que nela ia.

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia

Cadáver adiado que procria? Fernando Pessoa

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PROSCÊNIO

Corre a pena tão depressa

- No papel,

Que eu não sei se é puro fel,

Ou se mel

O que nele escrevi, ou lancei!

Eu lerei

Quando acabar; então verei

Se falei

Com fel ou mel o que eu narrei! Q.S.

Nascido em 1829 (Vila do Triunfo) e morto em 1883 (Porto Alegre), José Joa-

quim de Campos Leão (Qorpo-Santo) – anterior em décadas a Alfred Jarry (1873-1907)

- viria a tornar-se “precursor do teatro de absurdo”. Este título traz consigo não apenas a

responsabilidade de definir o dramaturgo. Importa inserir sua produção num circuito que

reúne tantas diversificadas obras e procedimentos artísticos quantos problemas a respei-

to.

As dezessete peças do teatro de Qorpo-Santo vieram à luz pelas encenações do

Curso de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (cerca de um

século depois de escritas). Seguiram-se montagens e publicações de textos isolados até a

edição crítica de Qorpo-Santo - teatro completo1, realizada pelo gaúcho Guilhermino

César. A obra dramática integra os volumes da Ensiqlopédia ou Seis mezes de huma

enfermidade: fragmentos poéticos, notas sobre política, medicina, direito, astronomia,

culinária, filosofia, conforme enumera Maria Valquíria Alves Marques em Escritos so-

bre um Qorpo2. Baseada na edição feita por Qorpo-Santo em sua própria tipografia (não

sobreviveram os manuscritos), Denise Espírito Santo da Silva defendeu a dissertação de

mestrado A poesia satírica de José Joaquim de Campos Leão Qorpo-Santo (Faculdade

de Letras da UFRJ, 1994). Esse trabalho constitui-se na primeira edição crítica da poesia

de Q.S. A autora inseriu a obra poética no âmbito do romantismo brasileiro como sua

1 MEC/SEAC/FUNARTE/SNT, Rio de Janeiro, 1980.

2 Anna Blume, São Paulo, 1993.

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contraface grotesca, ao lado de Sousândrade, Bernardo de Guimarães, Laurindo Rabelo,

Joaquim José da Silva (o Sapateiro Silva)3.

Um louco, perante sua família, seus conterrâneos e contemporâneos e ainda para

alguns críticos de nossos dias.

Ser precursor do teatro do absurdo coloca sobre os ombros do morto o peso da

tarefa de alçar um dramaturgo brasileiro à alegre e ufanista posição de vanguarda da

vanguarda. Jarry começou a escrever no final do século passado, enquanto Qorpo-Santo

realiza sua obra (poesia e prosa) entre os anos 60 e 80 do mesmo século. O teatro foi

inteiramente produzido no primeiro semestre de 1866.

Mas quais as relações da loucura (ou do louco) com a escrita e com a obra? Esta

pergunta, deve substituir o (talvez fácil) diagnóstico do autor. Em primeiro lugar, por-

que interessa-nos aquilo que emerge como obra. Pois é na rede complexa do discurso

que se dá a presença problemática do autor. Nessa rede, procuramos dialogar com ele,

especialmente na sua condição de travestido em personagem de si mesmo (ou com per-

sonagens em busca de criar seu autor).

Já é grande a quantidade de teses, dissertações e artigos jornalísticos dedicados

ao estranhamento ou ao deslumbre provocados pela obra de Qorpo-Santo. Salta aos o-

lhos a direção das abordagens, sempre voltadas para o autor - seja por suposta loucura,

seja por genialidade. Nossa preocupação centra-se numa pesquisa em torno do não-

senso, da sátira, do grotesco - elementos presentes no palco brasileiro desde a sua ori-

gem. Por isso verificamos em nossa tradição teatral como ela se assenta numa reação em

busca da liberdade. (Reagimos contra a opressão como quem ri da monstruosidade ou

do grotesco da colonização, sendo nós grotescos colonizados...) Nessa tradição, o enfo-

que foi dirigido ao discurso, aos personagens, ao palco e à crítica.

O discurso ocupa posição axial neste trabalho. Eixo não linear, não aristotélico.

Múltiplo eixo. Acontece que o teatro de Qorpo-Santo explode no âmago da modernida-

de. E o discurso está presente como questão em todos os aspectos pelos quais se possa

abordar o texto: ele se evidencia quando se trata do personagem; quando se pensa no

palco, território de seu exercício. Ou, ainda, quando nos voltamos para o diálogo com a

crítica. Coisas do teatro: a especificidade de Qorpo-Santo frente aos outros autores de

3 A referida dissertação encontra-se editada: QORPO-SANTO. Poemas. Organização, Introdução e Notas

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sua época, maneira de ser do grotesco; a representação na modernidade; as vozes do

discurso e o sujeito da enunciação; o tempo no teatro e o tempo em Q.S.; o herói impos-

sível; o romantismo e sua paródia; a ação dissolvida e sua possibilidade de ser teatro.

Os personagens estão no segundo capítulo. Se não se movem na linha temporal

da ação, qual o seu estatuto e o seu modo de ser? Com o fim da metafísica, é possível

manter a noção de personagem como decalque da idéia de homem? Qorpo-Santo, en-

quanto personagem, é sujeito autor (autobiografia e auto-retrato)?

O palco (espaço de exercício da linguagem) preocupa-nos enquanto território da

ação. Fascina-nos, sobretudo, a cena complexa onde cobras e dragões expelem venenos

que a realidade - subordinada ao discurso do senso comum - critica ou rejeita, pois lhe

escapam dos limites. Resíduos? Dejetos? Ou estrume fomentador do novo? Estudare-

mos a história do palco, no terceiro capítulo, como meio de compreender a existência

de um espaço onde se organiza a gramática do discurso de Q.S. Trata-se de pensar o

percurso que vai da transcendência à cena imanente; da origem à “morte” do teatro; da

representação a questões sobre sua (im)possibilidade. De Homero e Hesíodo à tragédia

grega, do palco medieval ao italiano e daí à explosão moderna da linguagem cênica.

Na cena seguinte (último capítulo) a protagonista é a crítica: sempre presente (às

vezes malograda) ânsia de “traduzir o pensamento do autor”, conferindo, a ele e à obra,

inteligibilidade. O próprio Qorpo-Santo comparece como crítico, em sua ótica perma-

nentemente exótica, cuspindo fogo e assumindo o papel do palhaço, que, no dizer de

Muniz Sodré, “é o louco profissional. E só ele pode sorrir sonoramente ante o escândalo

da existência e levar-nos a reconhecer a nossa condição tragicômica.”4

de Denise Espírito Santo. ContraCapa, Rio de Janeiro, 2000. 4 MUNIZ SODRÉ. A comunicação do grotesco. Vozes, Petrópolis, 1988, p. 81.

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DISCURSO

Os ventos levem

Ao mundo inteiro,

- Versos que saem

Do meu tinteiro!

As brisas tragam

Para o meu tinteiro,

- Versos que correm

No mundo inteiro!

Q.S.

No período romântico brasileiro - instalado entre as décadas de 40 a 80 do século

passado, as letras desenvolveram um discurso voltado para as tradições européias. Ao

lado disso, uma proposta de desenvolvimento da nacionalidade a partir do sentimento de

independência em relação ao domínio da metrópole portuguesa. Em contrapartida, a

Revolução Francesa contribuiu com ideais de liberdade que apontaram primeiro para a

Independência e depois para a luta contra a Monarquia. Estabeleceram também modelos

de bom gosto de certo modo sufocantes para a afirmação nativista de nossa produção

cultural. Neste bojo surgiu a obra - teatral e poética - de Qorpo-Santo, revestida de uma

paródia julgada de mau gosto, uma vez que o grotesco tende a mostrar o lixo jogado

debaixo do tapete.

Qorpo-Santo tem um teatro realizado fora do círculo de produção teatral carioca,

o maior da época. O Rio de Janeiro era ponto de confluência de idéias e discussões: me-

ca de atração para autores e artistas interessados na possibilidade de manter-se numa

atividade permanente e profissional, num mercado emergente de arte. Isolado em sua

província (Rio Grande do Sul), Qorpo-Santo pôde escrever obra radicalmente diferenci-

ada dos modelos românticos.

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Assumindo, como é próprio do romantismo, a cor local, a produção teatral brasi-

leira apresenta bifurcações. Dramas de feição política e social onde a Independência do

Brasil se encena na afirmação da nacionalidade (Gonçalves Dias, Agrário de Menezes,

Castro Alves, Alencar). Comédias também bifurcadas e permeadas pelo realismo: há a

presença francesa da chamada alta comédia (Alencar, Macedo) e a orientação popular

ibérica (Martins Pena, França Jr, Artur Azevedo). Não há exagero em se dizer que o

drama colocou no palco a nacionalidade malograda. A comédia, ao satirizar estrangeiros

e estrangeirismos de nacionais, afirmou e nutriu a nacionalidade que surgia e um modo

brasileiro de ser e de fazer teatro. É exatamente a comédia que, testemunhando o nasci-

mento da nação na Monarquia, acompanhará seu crescimento, corroendo-lhe criticamen-

te as bases.

Martins Pena, apontado pela crítica como “fundador da comédia nacional” (em-

bora o título possa ser questionado), cria uma obra onde o realismo dá suporte a situa-

ções de non sense. Com isso, vemos que o non sense encontra-se na raiz da comédia

brasileira. Em Os dous ou O inglês maquinista, Mr. Gainer pretende fazer e comerciali-

zar açúcar de ossos:

GAINER - Eu explica e mostra...até nesta tempo não se tem feito caso das osso, estruin-

do-se grande quantidade delas, e eu agora faz desses osso açúcar superfina...

São tempos em que o capital inglês impõe-se à nossa economia. E, após a “Inde-

pendência ou Morte”, é fundamental responder à dominação cultural com sátiras onde o

dominador é alvo da ironia do dominado. Ingleses, falsos ingleses, franceses e alemães

aparecem também em comédias de Macedo e França Jr. ou Azevedo, no papel de verda-

deiros bufões a correr atrás de “privilégios” oficiais para seus planos mirabolantes. Mr.

James, de Caiu o ministério (França Jr.), quer construir uma estrada de ferro para o Cor-

covado e descreve a “tecnologia de ponta” que pretende utilizar. Os trens serão movidos

a cachorros raivosos, instalados no interior das rodas:

MR. JAMES - Cachorra propriamente no puxa. Roda é oca. Cachorra fica dentro de ro-

da. Ora, cachorra dentro de roda no pode estar parada. Roda ganha impulsa, quanto mais

cachorra mexe, mais o roda caminha!

Os temas da comédia do século XIX - genericamente chamada “de costumes” -

são amplos, alguns deles abordados também por Qorpo-Santo:

a) problemas da família (casamento, namoro, a convivência com os criados, bis-

bilhotice). No filão da dita “alta comédia”, a tônica é a moralização de feições burgue-

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sas. “A honra não se remenda”, poderia dizer Alencar. Em duas de suas comédias (na

verdade, melodramas), os pecados cometidos pela mãe (As asas de um anjo) têm conse-

qüências na filha, que os paga na peça seguinte, Expiação. A chamada “baixa comédia”

de Martins Pena ou França Jr. apresenta certa cumplicidade com o que então se conside-

ra erro: namoros escondidos, adultérios. Qorpo-Santo radicaliza as abordagens. As rela-

ções naturais mostra a família inteiramente desacreditada: ela revela a sua face de bor-

del. Em Eu sou vida; eu não sou morte, o tema do adultério é apresentado de forma a

não se saber quem é o marido e quem é o amante;

b) a sátira política já chocava os mais “avançados”, pois era vanguarda para a

época, investindo contra os ministérios, as eleições, os meirinhos, os funcionários públi-

cos, a politicagem. Como se fazia um deputado, de França Jr., trata das eleições de ca-

bresto: o oportunista Dr. Henrique, bacharel em Direito, não quer ser eleito de maneira

desonesta. Mas cede aos apelos dos belos olhos de sua namorada, desejosa de tornar-se

“esposa de deputado”. Esta peça sofreu censura do Conservatório Dramático e o autor

precisou trocar o tempo do verbo no título: faz por fazia. Qorpo-Santo escreve Um cre-

dor da fazenda nacional, em que o desesperado Credor, diante da mal intencionada ino-

perância dos funcionários públicos, toca fogo na repartição. Além disso, cria, em plena

Monarquia, o rei bufo de Hoje sou um; e amanhã outro;

c) os hábitos.

Embora se possa reconhecer pontos de contato entre a temática de Qorpo-Santo e

seus contemporâneos, o non sense do gaúcho pretende mesmo enlouquecer o senso co-

mum. Surgem, então, inevitáveis questões sobre a organização de seu discurso e o dese-

jo de mapear a sua especificidade. A abordagem bufa de certos temas caros ao roman-

tismo, como o da defesa da pátria (Hoje sou um; e amanhã outro) faz pensar num “ou-

tro” grotesco dos modelos românticos. Bufonaria que também pode caracterizar-se por

ser paródia:

A paródia satírica propõe-se fazer rir à custa de seu modelo, do qual ela denuncia, não

menos eficazmente que uma crítica séria, as fraquezas. Ela cumpre um grande papel nas

querelas, sobretudo nas querelas literárias.5

ou caricatura:

5 CÈBE, Jean-Pierre. La caricature et la parodie dans le monde romain antique des origines à Juvenal.

Boecard ed. Paris, 1966, p. 11.

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Representação deformada do real, a caricatura se alimenta dos defeitos, físicos, intelec-

tuais ou morais daqueles que ela toma por alvo. Não somente ela traz à luz estes defei-

tos, mas força-os até o extremo. Ela implica, conseqüentemente, um modo de ser realis-

ta.6

Mas este caráter grotesco é, por si só, objeto de especulações. Imagine-se o es-

cândalo causado por Q.S. a uma sociedade maravilhada com os edulcorados persona-

gens de A moreninha, O guarani, Senhora, O tronco do ipê. Neles, o amor, a honra, a

credibilidade são avalizados pelos fios de barba e pela inviolabilidade do hímen.

Mikhail Bakhtin7 define o grotesco medieval como uma expressão de “outro la-

do” das relações sociais. As hierarquias se invertem: o elevado (o céu, o sagrado) inter-

cambia-se com o baixo (a terra, o ventre, o profano); o decoro dá lugar ao obsceno e ao

escatológico. Essa degradação significa renascimento, regeneração: o túmulo-ventre

restaura a vida. As imagens grotescas do corpo opõem-se aos ideais de perfeição; ele é

disforme e mostra suas transformações em processo. Em QS, há casos de gravidez mas-

culina. Um assovio mostra a pança do criado Gabriel ameaçada pelo amo Fernando:

GABRIEL - Ai! não me fures, que eu tenho um filho de seis meses arranjado pela Sra.

Luduvina, aquela célebre parteira que o Sr. meu amo melhor que eu conhece...[...]

É que, no dizer de Pinski,

Ao aproximar o que está distante, ao unir as coisas que se excluem entre si, ao violar as

noções habituais, o grotesco artístico se assemelha ao paradoxo lógico.8

Mas, da Idade Média ao romantismo, o percurso do grotesco é de abandono da

praça pública (carnaval de todos) em direção à formalização artística do palco (lugar de

atores perante um público). Chega-se a um “grotesco de câmara” (expressão de Bakh-

tin), “espécie de carnaval que o indivíduo representa na solidão, com a consciência agu-

da do seu isolamento”9. Mais uma vez, QS mostra-se diferenciado: seu carnaval, embora

fora da praça e destinado às dimensões do espaço físico do palco, dá-se sem a menor

sombra de tristeza. Impõe-se uma liberdade, antes de tudo, do discurso, que não reco-

nhece legitimidade em nenhuma norma. Celebra-se, no palco, não um retorno ao carna-

val medieval (onde a ordem do mundo se suspende temporariamente), mas a instauração

de um mundo que se sabe e se quer em permanente convulsão.

6 CÈBE, Jean-Pierre. Op. cit., p. 8.

7 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (o contexto de François

Rabelais.). Hucitec/UnB, São Paulo, 1987. 8 Apud BAKHTIN, op. cit., p. 29

9 BAKHTIN, op. cit., p. 33.

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O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destróem a seri-

edade unilateral e as pretensões de significação incondicional e intemporal e liberam a

consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o

desenvolvimento de novas possibilidades.10

Muito úteis são para nós as considerações de Bakhtin sobre esse “avesso do

mundo”. Entretanto, se se trata de avesso, estamos remetidos a um mundo dicotomiza-

do, no qual, embora uma face não viva sem a outra (como uma folha de papel), uma não

se deixa penetrar pela outra. A ordem racional permanece intocada, pois o carnaval é

intervalo aberto no seio da vida ordinária. Mesmo no romantismo, a ordem do mundo é

preservada em seus fundamentos e o disforme é transbordamento das formas.11

A ordem

proposta por Qorpo-Santo ficou para debaixo do tapete ou para trás do espelho, dada a

radicalidade do seu discurso perante as normas vigentes, tanto sociais quanto artísticas.

O grotesco em Qorpo-Santo tem feições diferenciadas. Instaura um mundo cujos

fundamentos já estão minados de início, pois a linguagem não mais funciona no interior

da noção de representação. O penso logo existo, ao identificar o ser e o pensamento,

cava sua própria sepultura: abre caminho para interrogações sobre o ser da linguagem, o

sujeito da enunciação. A relação sujeito/objeto (em que o primeiro é ativo na busca de

conhecimento do segundo) faz do homem um objeto de seu próprio conhecimento. A

fundação das modernas ciências positivas faz surgir o homem em sua finitude. Diz Fou-

cault que a finitude é

marcada pela espacialidade do corpo, pela abertura do desejo e pelo tempo da lingua-

gem; e, contudo, ela é radicalmente outra: nela, o limite não se manifesta como determi-

nação imposta ao homem do exterior (por ter uma natureza ou uma história), mas como

finitude fundamental que só repousa sobre seu próprio fato e se abre para a positividade

de todo limite concreto.12

Além disso, modernamente, os estudos do discurso focalizam um conjunto de

vozes comumente denominado “sujeito da enunciação” (Benveniste)13

. Assim, a hetero-

geneidade enunciativa se manifesta enfeixada como “polifonia”: manifestação explícita

de uma multiplicidade de vozes citadas pelo autor empírico do texto (Bakhtin14

e Authi-

er-Revuz)15

. Citações conscientes ou não, manifestadas pela pluralidade do texto (Bar-

10

Idem, p. 43. 11

Cf. HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Perspectiva, São Paulo, s.d. 12

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Martins Fontes, São Paulo, 1992, p. 331. 13

BENVENISTE, Emile. Problemas de lingüística geral, I e II. Pontes Ed., Campinas, 1989. 14

BAKHTIN, Mikhail. Le marxisme et la philosophie du langage. Paris, Minuit, 1977. 15

AUTHIER-REVUZ, J. “Heterogenetés enonciatives”. In Langages, 73. Larousse, Paris, 1984.

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thes)16

, constituída por um entrelaçamento de fatos pré-existentes: história, tradição,

mito, literatura. Esta polifonia inclui, certamente, o discurso de QS. Como paródia, ele

põe em cena os seus referentes e anuncia uma nova expressão que convoca o analista

para identificar-lhe as vozes. Em outras palavras, diria Deleuze17

que a obra literária não

é a expressão de um homem, mas o lugar aberto por esse homem para que todo um povo

se pronuncie.

O personagem Impertinente, de As relações naturais, é um defunto-autor que es-

creve sobre um vivo escritor. Ele está sentado, vê-se defunto e escreve sobre si mesmo

(o escritor vivo). Nós o veremos no capítulo sobre os personagens, a executar sua imper-

tinência. O Brás Cubas machadiano conta, já morto, a sua vida: caminha do presente

para o passado. Impertinente transita num futuro do pretérito (ele morreria); e o tempo

se transforma em pretérito do futuro (um morto que vive o seu futuro de morto escre-

vendo sobre seu passado de vivo). O único tempo, portanto, é o do teatro: o presente que

engloba em si todo passado e todo futuro. A noção de representação repousa sobre a

linha do tempo cronológico e se rompe junto com ela:

IMPERTINENTE - Já estava admirado; e consultando a mim mesmo, já me parecia

grande felicidade para esta freguesia o não dobrarem os sinos...E para eu mesmo não

ouvir os tristes sons do fúnebre bronze! [...]

O sino dobra pelo próprio Impertinente. Ele se refere ao morto, que é ele mesmo como

se estivesse vivo. A finitude de Impertinente traz em seu bojo o infinito. Ele, mais tarde,

trocará sucessivamente de nome: tráfego incessante através do finito. A analítica da fini-

tude, diz Foucault, dar-se-á inteiramente na repetição - espaço da identidade e da dife-

rença entre o positivo e o fundamental. Conseqüência da morte da metafísica. O homem

pergunta o que ele é, mas nada assegura este ser. Eu sou vida; eu não sou morte é título

que coloca dois termos equivalentes como se fossem diferenças; trata-se de uma reitera-

ção. Nesta peça,

LINDA - [...] Sim, se não é o diabo em pessoa, há ocasiões em que parece o demônio;

enfim, o que terá ele naquela cabeça!? [...]

Vida,trabalho e linguagem fundamentam-se em seu Mesmo (onde a Diferença é a mes-

ma coisa que a Identidade, em oposição à Representação do saber clássico); é nesse es-

16

BARTHES, Roland. Essais critiques. Paris, Du Seuil, 1964. 17

DELEUZE, Gilles. Critique et clinique. Paris, Minuit, 1973.

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paço que o transcendental repete o empírico e o cogito repete o impensado. Um pensa-

mento atravessado desta forma pelo impensado requer um discurso que ponha a nu e

seja - ele mesmo - esta e outras tensões: discurso virtual (tendente ao infinito), interpe-

lação do conhecimento a partir daquilo que lhe escapa. O cogito moderno não afirma o

ser, mas coloca-o em questão.

O teatro de Qorpo-Santo se sabe fora da episteme; sabe que nas margens e tam-

bém no interior do homem habita o seu outro:

o Outro, fraterno e gêmeo, nascido não dele, nem nele, mas ao lado e ao mesmo tempo,

numa idêntica novidade, numa dualidade sem apelo. [...] é-lhe, ao mesmo tempo, exteri-

or e indispensável: um pouco a sombra projetada do homem surgindo no saber; um pou-

co a mancha cega a partir da qual é possível conhecê-lo.18

O inconsciente para o qual Foucault chama atenção não se encontra na interioridade do

sujeito individual, mas como algo que preenche, circunda e constitui o modo de ser do

homem moderno.

Um mundo (sujeito e objeto) todo ele hybris, onde não pode haver lugar para o

herói tal como o conceberam os gregos. O herói é pólo de um conflito entre ele e o

mundo; não a imitação de um homem, mas de uma ação. Num cosmos organizado, cada

força, divina ou humana, mantém territorialmente localizados seus atributos e atribui-

ções (Zeus é senhor dos raios e comanda as tempestades). Não se admite o exceder-se

de nenhuma força, pois deste modo atributos e atribuições de outrem serão invadidos.

Tal é a desmedida. E hybris é negação da transcendência. Gerd Bornheim19

chama aten-

ção para o desaparecimento da tragédia a partir do momento, no mundo cristão, em que

a “imitação de Cristo” tende a hipertrofiar a subjetividade e amesquinhar a extensão do

mundo objetivo, o que torna impossível a tragédia. O homem cristão (e romântico) con-

siste em desmedida enquanto homem. O herói não tem ser ou só o tem em aparência.

Deseja, como Werther, a morte, para reencontrar suas medidas no Absoluto. O herói

romântico não é trágico (é dramático), pois desaparece o conflito com sua medida trans-

cendente. Por outro lado, se o herói não reconhece como legítima a ordem do mundo,

torna-se cômico (ou bufão alienado de sua época, como os personagens de Q.S.). Diz

18

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, op. cit., pp. 342-43. 19

BORNHEIM, Gerd. Teatro: a cena dividida. L&PM, Porto Alegre, 1983.

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Hegel: “na comédia, é pelo riso que tudo destrói e invalida, que o indivíduo assegura o

triunfo da personalidade fortemente apoiada em si mesma.”20

Sujeito e mundo em desmedida, fim das fronteiras entre o trágico e o cômico,

reino do grotesco. Não mais o grotesco medieval descrito por Bakhtin como lado irra-

cional da dicotomia com o racional. Mas o grotesco que - não como avesso - é situação

essencial do mundo e do sujeito: repete o Outro no Mesmo infinito da finitude.

É como “outro” do romantismo que a obra de Qorpo-Santo mostra-se paródia

grotesca. O rei de Hoje sou um; e amanhã outro defende a pátria e quer ser “modelo

bufo” de herói. Ele tanto deseja ser impecável, que chega a abandonar a batalha no auge

para trocar de roupa e voltar à luta. A Rainha acompanha da janela os lances do comba-

te, manda recados ao Rei, observa, de binóculo, as cabeças, braços e pernas que voam

pelos ares. Como se se tratasse de espetáculo ou jogo, ela comanda a “torcida”:

A RAINHA [...] Enquanto, Damas, os nossos canhões marítimos destróem os nossos i-

nimigos, vamos desta janela animar as nossas tropas de terra com nossa presença, a fim

de que se houver algum desembarque, eles conheçam que seríamos capazes de os acom-

panhar com uma arma em punho! [...]

Em Eu sou vida; eu não sou morte, as cenas de amor de Lindo e Linda, dignas

do mais desbragado folhetim, acabam em briga porque ela não achou suficientes os elo-

gios e as comparações poéticas.

LINDO - Bem. Vou fazer-lhe as mais mimosas que à minha imaginação abundante,

crescente, e algumas vezes até demente - ocorrem! Lá vai uma: A Sra. é pera que não se

come!

LINDA - Essa não presta!

Em Um assovio, a paródia ao romantismo se faz com a presença em cena de um

dos seus autores: Almeida Garrett, grafado por Qorpo-Santo como Garret. Um parto

trata de uma estudantada, tema de comédias de França Jr. ou Macedo, nas quais farras e

inocentes brincadeiras acabam em namoro sério ou casamento. Aqui, as ciências estão

confundidas umas com as outras e a atitude dos rapazes é livrar-se da cabra e dos cabri-

tos que nasceram em cena (!), como se descressem do “desafio científico” de cuidar

deles.

Duas páginas em branco compõe-se de dois pequenos atos onde um esboço de

enredo se desenvolve: agruras de um jovem casal apaixonado e obrigado a se separar.

20

HEGEL. Estética (VII) - Poesia. Lisboa, Guimarães & Ed., 1980, p. 327.

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Mancília aparece de “cabelos desgrenhados, aspecto muito triste e lacrimosa”, num

dramalhão apocalíptico:

MANCÍLIA – [...] Deus! Deus! Deus! (bate no chão com um pé) não me acode!? Não

me vale nesta aflição! oh! Então não há esse Ente supremo! sim! não... eu cria... mas a-

gora... crerei ainda!? fugi... vou... (levanta os braços, corre à porta e encontra o guarda

que a vem buscar, dá um grito de dor e cai como morta; os soldados fogem espavoridos

[...])

Aqui, as vozes dissonantes do discurso polifônico tomam forma ativa e a ação busca sua

nova performance, destronada que foi, junto com o cogito. Um tempo novo, sem passa-

do e sem futuro.

É inevitável lembrar Aristóteles, na Poética, onde a ação se define por ser uma

narrativa com princípio, meio e fim. Uma cadeia de acontecimentos na qual o meio é

efeito do princípio e causa do fim, que é, por sua vez, efeito e não causa mais nada. Esta

cadeia repousa na noção linear de tempo cronológico. Para Hegel, a ação

deriva tanto do caráter íntimo das personagens que a efetuam, como da natureza subs-

tancial dos fins e conflitos que a acompanham ou que provoca.21

Trata-se, portanto, de uma sucessão de causas e efeitos levada a cabo pelo embate entre

o sujeito e o objeto (homem X natureza, circunstâncias).

Na obra de Qorpo-Santo, verifica-se uma quebra da unidade de ação, considera-

da classicamente como condição sine qua non para a existência do drama. No entanto,

realizando uma obra que desconstrói radicalmente esta noção, Qorpo-Santo opera ar-

güindo permanentemente sobre o que é o teatro, pois falar dele sem “ação” é afirmá-lo

por sua negação. Ou fazê-lo pensamento de seu impensado.

Dizíamos de uma não-ação como fundamento da expressão dramática. Contra-

senso ou sentido em jogo com o não-senso. Nesta relação, um teatro que se funda em

seu ser paradoxal. Se a cadeia de causas e efeitos se quebrou (e com ela a linearidade do

tempo), impõe-se um discurso onde sentidos opostos são afirmados simultaneamente; é

assim que o Impertinente, de As relações naturais, pode estar morto e, ao mesmo tempo,

efetuar ações de vivo. Impertinente não é, no entanto, um morto-vivo: ele é puro proces-

so de tornar-se um e outro, alegoria da própria impertinência (não pertencimento a) para

com o senso comum. Operação em um tempo que se furta ao presente porque é indife-

21

Idem, p. 277.

Page 15: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

15

renciação de passado e futuro. Paradoxo evidente: o teatro é o lugar privilegiado do pre-

sente; nele a ação (como “ato”, “agir”) se dá mediante a presença corpórea do agente.

No discurso grotesco, os limites estabelecidos pelo senso comum se eliminam e

dão lugar a um ultrapassar de limites tornado possível pela eliminação de hierarquias

sociais, inversões dos ditames da natureza biológica. O marinheiro escritor traz à cena

outro homem grávido. Nesta peça, o personagem Marquinfálio chega a entrar em traba-

lhos de parto:

MARQUINFÁLIO - [...] Oh! que dor de barriga...parece-me que estou prenho, Senhor!

Senhor! me acuda (apertando a barriga), estou prenho! Quero parir! Me acudam! Ve-

nha a parteira. Venha o médico! Eu caio, acudam-me! Eu morro! (Miguelítico e Enci-

clopédio querem agarrá-lo, entra uma criada com uma xícara de chá, às carreiras.)

Marquinfálio é homem e está grávido; Findinga é “parteira, médico e criado”. Situação

que Gilles Deleuze poderia chamar de “identidade infinita”

dos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do amanhã, do

mais e do menos, do demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do

efeito. É a linguagem que fixa os limites [...] mas é ela também que ultrapassa os limites

e os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado[...]22

Devir que se dá nas dimensões locais de um corpo aberto para o mundo e com ele mis-

turado: são barrigas, narizes e pernas que se destacam do tronco na peça Mateus e Ma-

teusa, em monumentais brigas deste octogenário e muito amoroso casal que atira um no

outro exemplares da Constituição do Império. Mateus usa a própria perna para açoitar

Mateusa. Corpo disforme e sempre incompleto, abrigo do devir e topologia sem história,

porque sem passado e futuro.

Esta ação é puro ato, não-representação, verbo no infinitivo (substantivável) e in-

finitivo impessoal, fora da limitação das flexões modais e temporais. Ser morto e vivo,

homem e grávido, criada e médico são atributos que perdem sua funcionalidade e ultra-

passam todos os finitos corporais e espaciais, num presente sempre insuficiente e sem-

pre afirmado pelo acontecer em cena.

Ação fragmentada, descontinuidade. A Vizinha de O marinheiro escritor está

conversando e se desentende com Mário. Sai e volta algumas falas depois, cumprimenta

como se não tivesse saído pouco antes: “Até os acho mais gordinhos”, diz ela.

O lugar é qualquer um; ou um não-lugar; inesperadas contigüidades desfazem

continuidades: em As relações naturais, a sala de uma casa de família é também a de

Page 16: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

16

um bordel. Espaço múltiplo (ou único) para o exercício de múltiplos atributos e lugares:

pai, mãe, filhas, sala de visitas/cliente, alcoviteira, prostitutas, bordel. Basta estar dentro

da cena para estar dentro e fora, além e aquém da porta: o Truquetruque, na mesma pe-

ça, bate e ninguém lhe responde:

TRUQUETRUQUE (batendo na porta) - Estará ou não em casa? A porta está fechada,

não vejo (vigia no buraco da chave) se é por dentro se é por fora que está a chave[...]

Atos teatrais que não dão lugar à moral, pois a ação não é mais a manifestação da

“substância eterna” em suas contradições particulares ou essenciais, tão cara a Hegel. O

ato se esgota e se potencializa no mesmo movimento. A existência se encerra em pe-

quenos acidentes (e incidentes) cotidianos.

As dezessete peças de Qorpo-Santo são divididas pelo autor em atos, quadros e

cenas. A maioria delas apresenta estas unidades como universos fechados em si mes-

mos, sem continuidade em outros. Mudam-se temas, situações, personagens. Alteram-se

tempos e espaços; ou mantém-se múltiplas e abertas temporalidades e espacialidades

que abrigam impertinências (portas que não limitam o dentro e o fora; simultaneidades

incongruentes). É possível que infinitas combinações matemáticas dêem coesão a esses

fragmentos. As dezessete peças formam um calidoscópio onde a ação desaparece dei-

xando lugar apenas a um contínuo e infinito desdobrar-se de acontecimentos no territó-

rio finito do palco.

Falamos acima em “afirmar o teatro pela sua negação”. Paradoxo que fundamen-

ta a teatralidade deste “devir louco”: QS sabia das virtualidades cênicas de seu texto. Ao

final de Um credor da fazenda nacional, uma rubrica sugere mais de um desfecho:

(Já se vê que há descomposturas; repreensões; atropelamento, carreiras em busca

d’água; ligeireza para se apagar; aparecimento de alguns outros empregados ao ouvir o

grito de fogo, etc. Pode acabar assim; ou com a cena da entrada do Inspetor, repreen-

dendo a todos pelo mal que cumprem seus deveres; e terminando por atirarem com li-

vros e penas; atracações e descomposturas etc.)

O não-senso também se revela como projeto, juntamente com a deliberada intenção do

riso. O final de Certa entidade em busca de outra traz uma rubrica e uma nota:

(Escusado é dizer que nada devem poupar os cômicos para tornar mais interessante e a-

gradável o gracejo.)

*

22

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Perspectiva, São paulo, 1974, p. 2

Page 17: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

17

Note-se - podem começar a cena os três últimos, dando alguns saltos, proferindo pala-

vras sem nexo ao discurso, mostrando a respeito de Brás algum desatinamento, e retira-

rem-se ao aparecer ou sentirem o rumor da vinda daquele.

A obra de Qorpo-Santo, como paródia, ultrapassou as dimensões do modelo -

exercício da infinitude de seu ser obra de arte. Este discurso dircorre e transcorre fora da

linearidade temporal aristotélica: cria dimensões imprevistas, a partir de ironias, litotes,

caricaturas. Massa crua a escorrer por entre os dedos de quem quiser detê-la. Obra de

arte que não coube em seu tempo, incapaz de lê-la; não cabe ainda numa modernidade

que classifique o autor como louco. Permanecem o enigma e o desafio às interpreta-

ções.

Page 18: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

18

PERSONAGEM

Para comermos;

Para bebermos,

Não precisamos

De certos dramas!

Q.S.

Pode-se mesmo nomear como “personagens” esses seres que se deslocam pelo

palco sem percorrer a linha da ação (princípio, meio e fim, segundo Aristóteles)?23

Considere-se, de novo, a produção da obra de Qorpo-Santo: décadas de 60 a 80

do século passado, período inserido, como vimos, no romantismo brasileiro. Não é de

admirar que somente um século depois de escritos, seu teatro e sua poesia tenham vindo

à luz: a estética do cor-de-rosa e do azul-bebê, da flor como metáfora feminina, do ho-

mem como sustentáculo da moral, do amor “até que a morte nos separe” (ou junte no

suicídio) impunha-se e empurrava para as margens suas contrapartidas bufas e/ou gro-

tescas. Veja-se os casos de Sousândrade e Bernardo Guimarães, também catapultados do

terreno do “bom gosto” e do “bom senso”.

Ao mesmo tempo, o romantismo se define por um investimento no sujeito dota-

do de vontade e que atua em nome de uma verdade fundamentada no Absoluto - instân-

cia última e essencial do sujeito mesmo. O que dizer de “personagens” que não execu-

tam as regras do senso comum, não expandem sua verdade para além dos limites de seu

23

ARISTÓTELES. Poética. Globo, Porto Alegre, 1966.

Page 19: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

19

próprio discurso, atuam em linhas entrecruzadas de tempo e habitam espaços “do outro

lado do espelho”?

Para tentar uma aproximação do problema, será útil relembrar, com Michel Fou-

cault24

, que o cogito cartesiano identifica o pensamento ao ser. Mas ao fazê-lo, abre o

espaço para o surgimento do homem como objeto de seu próprio pensamento. Ao lado

das ciências positivas do século XIX, o homem passa a determinar-se por sua finitude,

sem se esgotar, no entanto, em nenhuma das ciências que procuram compreender o seu

ser: a biologia, a história, a economia, as ciências da linguagem. O único “outro” possí-

vel habita o Mesmo: infinito que preenche e circunda o finito. O conhecimento do ho-

mem por si mesmo resulta da interrogação a partir desse outro: pensamento do impen-

sado. O surgimento do cogito, que entroniza o homem como sujeito de todo saber, traz,

no mesmo movimento, sua destituição. Pois o homem passa a se ver também como ob-

jeto sujeitado a outras leis: do trabalho, da vida e da linguagem, anteriores a ele. O nas-

cimento do homem como sujeito coincide com sua morte.

A “analítica da finitude” toma o lugar, portanto, da metafísica; abole este outro,

redimensiona a representação. Abala-se a noção de personagem como decalque da idéia

de homem: imagem de um homem que é, por sua vez, imagem de seu outro transcen-

dental (Platão)25

.

A representação cria uma forma de presença do ausente. No teatro, verifica-se

um paradoxo, pois alguém está materialmente presente no espaço do palco. Mas se a

representação abalou-se no âmbito da cultura, resta uma presença problemática: o per-

sonagem não é em nenhum outro lugar metafísico, mas está e é nesse estar corpóreo

sobre o palco. Duplo corpo, segundo Roland Barthes (Essais critiques)26

: composição

do corpo do ator e suas realizações sígnicas.

Quando estudamos o discurso, observamos a expressão do personagem Imperti-

nente, de As relações naturais. Assim vimos o que nele havia de impertinência. Agora,

que analisamos características de personagens, verifiquemos como o conteúdo (discur-

so) é uma necessidade do continente (personagem). Por isso, examinemos Impertinente

24

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, op. cit. 25

PLATON. “Cratyle”. In Oeuvres complètes. Gallimard, Paris, 1950, v. I. 26

BARTHES, Roland. Essais critiques. Du Seuil, Paris, 1964.

Page 20: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

20

no contexto de sua impertinência. Ele sabe-se morto, escreve sobre si mesmo como se

estivesse vivo; imprime, na finitude, as marcas do infinito:

IMPERTINENTE – [...] Não sei porém o que me inspirou ao mais improfícuo trabalho!

Vou levantar-me; continuá-lo; e talvez escrever em um morto: talvez nesse por quem

agora os ecos que inspiram pranto e dor despertam nos corações dos que os ouvem, a

oração pela alma desse a cujos dias Deus pôs termo com a sua Onipotente voz ou vonta-

de!

E será esta a comédia em 4 atos, a que denominarei - As relações naturais.

Menciona que vai escrever “em um morto: talvez nesse por quem agora” dobram

os sinos (negritos nossos). Escreve-se a si mesmo em situação de morto; inscreve-se em

um circuito infinito de trânsito através da heteronímia. E o inscrever(-se) é executar(-

se): colocar em função o defunctus (aquele que já passou, experimentou, sofreu). Como

personagem, a impertinência tem que ser pertinente, o que só na (re)presentação é pos-

sível. Mas o discurso e o teatro de Q.S. são (a)presentação, isto é: teatro em sua forma

cruel, crua. A impertinência de ser-a-morrer ou vir-a-ser morto quando já se sabe da

morte.

Ao longo da peça, a impertinência (não pertencimento a definições finitas) mu-

dará seu nome para Truquetruque, Ele, Malherbe. Suas filhas serão filhas e amantes; a

mulher (Consoladora/Intérpreta) será sua alcoviteira; o criado Inesperto será seu amo.

Trânsito que também se define pela situação de morto e vivo, processo de tornar-se um

e outro. Ele está morto e nega-se a ouvir os sinos que por ele dobram; quer sair a passei-

o; sua “ingrata e nojenta imaginação” é sujeito que lhe tira um jantar; a comédia será

escrita nele/por ele mesmo, inspirado pelos sinos. Tudo isto é, ao mesmo tempo, signifi-

cante e significado, sujeito e predicado, continente e conteúdo da própria comédia - vi-

vida no palco como se fosse escrita na página de um livro (o corpo). Visão multicalidos-

cópica, multicêntrica: todos os caminhos divergem de incontáveis Romas. Conferir,

mais adiante, situação parecida, com os personagens Ruibarbo e Cário.

O escritor que Impertinente é aparece em várias peças, ora assinando-se Qorpo-

Santo, ora QS ou C-S. Este é mais um dos problemas sobre os quais se colocam indaga-

ções. O fato de aparecer o nome do autor como personagem autoriza considerar a obra

como um espaço de confidência de um possível sujeito-autor? Os heterônimos (caso de

Fernando Pessoa) são autores ou personagens criadoras? A heteronímia se dá por doen-

ça mental do autor ou por necessidade de expressão que extrapola as instâncias do indi-

víduo? Seja como for, o aparecimento (ou comparecimento) de Qorpo-Santo multiplica-

Page 21: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

21

do em vários personagens não aponta para um desejo autobiográfico. Aliás, estaria bem

de acordo com o romantismo traçar o próprio retrato com as linhas de um sujeito inves-

tido de transcendência, num modelo hegeliano...

Comecemos pelo autor/personagem. A obra funcionaria como uma instância on-

de o autor expressa seu mundo interior e individual. Por esta via, a crítica de arte, ins-

trumentalizada pela psicanálise, pode tentar o acesso à obra a partir do autor e vice-

versa. A sua vida, os embates com o seu momento histórico são trilhas que conduzem à

obra; e esta, vista como confidência, dá por sua vez acesso à “alma” criadora do artista.

O campo psicanalítico - preocupado com os processos de linguagem e expressão do ser

humano - é fértil em conceitos e discussões a respeito. O conceito de “sublimação” trata

de uma transferência realizada pelo indivíduo: ele desvia um interesse libidinal para o

campo da fantasia. Obtém, assim, um alívio de suas pressões internas, ao mesmo tempo

em que alcança a possibilidade de, com sua obra, fornecer também aos outros a oportu-

nidade de se identificar com a obra e obter prazer e alívio. Mas isso se dá sob algumas

condições:

Para que esse deslocamento se faça, é necessário, contudo, que o novo objeto seja valo-

rizado socialmente. Não é necessário que ele seja socialmente útil, [...] mas sim que ele

corresponda a ideais simbólicos e a valores sociais vigentes numa determinada socieda-

de. Esse processo passa pelo ideal do eu.27

Alguns problemas se colocam. Pode-se dizer que sempre foi assim, mesmo

quando a arte era antes de tudo uma instância de confirmação da coletividade, com suas

crenças e formulações religiosas? Quando a obra de arte imitava o mundo divino e por-

tanto longe estava de expressar anseios particulares do mundo interior do artista? Esta

afirmação do sujeito artista, através da obra, efetuava-se no passado? Efetua-se hoje?

Neste caso, a presença do artista superpõe-se à obra, sem que nenhuma ou pouca auto-

nomia reste a ela.

Ao tentar uma aproximação da obra de Qorpo-Santo, estas questões se tornam

sérias. Boa parte da crítica teatral tem relegado a produção dramatúrgica e poética do

gaúcho a um plano de importância nula ou secundária: trata-se de “tolices de um pobre

louco”. Sendo assim, o exame das peças e da poesia contribuem antes ao estudo de um

caso clínico do que ao exame de fatos propriamente ligados à arte e sua linguagem. Ma-

neira de empurrar o problema para áreas do conhecimento onde alguns terrenos já se

Page 22: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

22

palmilham com alguma desenvoltura. Veremos, no capítulo dedicado à crítica, proble-

mas relativos ao louco e ao poeta: seu lugar de Outro na Cultura Ocidental.

Qorpo-Santo escreveu obra relativamente vasta. Mas quem a editaria, no Rio

Grande do Sul do século XIX? O gesto de montar a própria gráfica e editar por si mes-

mo a sua obra pode ser tido como gesto convicto de quem quer tornar-se autor. Esta

atitude torna possível a ultrapassagem da infâmia de ser louco e faz chegar até nós a

fama de um artista. Ao tratar dos homens infames, Foucault considerou aqueles que,

nas suas infelicidades, nas suas paixões, naqueles amores e naqueles ódios, houvesse al-

go de cinzento e de ordinário aos olhos daquilo que habitualmente temos por digno de

ser relatado; que, contudo, tenham sido atravessados por um certo ardor, que tenham si-

do animados por uma violência, uma energia, um excesso na malvadez, na vilania, na

baixeza, na obstinação ou no infortúnio, tais que lhes proporcionassem, aos olhos daque-

les que os rodeavam, e à medida da sua própria mediocridade, uma espécie de medonha

ou lamentável grandeza.28

Superada a infâmia e atingida a condição de “autor”, examine-se esta função. Ela

é “característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns

discursos no interior de uma sociedade”29

. Vejamos de que maneira Qorpo-Santo insiste

em imprimir a sua marca - inclusive tornando-se personagem do autor que ele é -, ao

mesmo tempo, dissolvendo-a.

Para sair da condição de infame, é necessário estabelecer um discurso no qual o

leitor/fruidor construa uma idéia de “autor”. É necessário realizar uma criação - espaço

de origem da escrita. E desaparecer ou criar um modo de aparecer como discurso. Diz

Foucault: “trata-se de retirar ao sujeito (ou ao seu substituto) o papel de fundamento

originário e de o analisar como uma função variável e complexa do discurso”30

. Deste

modo, o esforço de um “pobre louco” para estabelecer contato com o mundo real através

da organização de uma linguagem pode constituir aquilo mesmo que faz da obra de

Qorpo-Santo a criação radical de uma obra de arte. Em contrapartida, o mesmo Fou-

cault, em História da loucura, diz que a obra de um louco afirma-se pelo que ela não é:

arte. Mas se impõe como arte ao espelhar a loucura da sociedade.31

27

GARCIA-ROZA. Introdução à metapsicologia freudiana (3). Zahar, Rio, 1995, p. 143. 28

FOUCAULT, Michel. “A vida dos homens infames”. In O que é um autor? Passagens, Lisboa, 1992,

p. 97. 29

FOUCAULT. “O que é um autor?” In O que é um autor? Op. cit., p. 46. 30

Idem, p. 70. 31

FOUCAULT, Michel. História da loucura. Perspectiva, São Paulo, 1993. Referimo-nos ao último capí-

tulo, “O círculo antropológico”. Nele, Foucault contrapõe as experiências da loucura nos séculos

XVIII e XIX, interrogando sobre a verdade da loucura e suas determinações; o olhar que incide

Page 23: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

23

Dizíamos sobre o modo como, no mundo moderno, o pensamento encontra-se a-

travessado em todas as direções pelo não-pensamento. Isto constitui o advento do in-

consciente, “mancha negra” (expressão de Foucault) que habita o homem e o circunda.

Mas Foucault adverte: é necessário não sucumbir à tentação de psicologizar todo conhe-

cimento, não tentar fundar na psicologia uma ciência geral32

. A advertência serve para

que compreendamos a produção de arte inserida num modo do homem estar no mundo e

não reduzida apenas à expressão de um indivíduo. E ponderemos, com Deleuze:

[...] Se bem que ela remeta sempre a agentes singulares, a literatura é agenciamento co-

letivo de enunciação. A literatura é delírio, mas o delírio não é assunto de pai-mãe: não

há delírio que não passe pelos povos, as raças e as tribos, e não freqüente a história uni-

versal.33

Apontamos para o problema da heteronímia e tomamos por base os argumentos

arrolados por filósofos contemporâneos a respeito da obra, da criação e do autor. Passe-

mos a descrever o campo onde esses problemas devem ser examinados: as peças teatrais

de Qorpo-Santo.

Na edição de Qorpo-Santo - teatro completo34

, aparece o seguinte “recado” do

dramaturgo a possíveis encenadores:

As pessoas que comprarem e quiserem levar à Cena qualquer das Minhas Co-

médias - podem; bem como fazer quaisquer ligeiras alterações, corrigir alguns erros e

algumas faltas, quer de composição, quer de impressão, que a mim por numerosos es-

torvos - foi impossível.

Vê-se, no trecho acima, que, para Qorpo-Santo, não está em questão a figura jurídica do

autor - aquele que recolhe somas por direito autoral e pode ser responsabilizado pelo

que diz ou escreve - cujo advento se dá em torno do século XVIII. Importa, sim, o ato de

convocar outras autorias a completar-lhe a obra e, paradoxalmente, torná-la o que ela é:

incompletude. Ele vive, por assim dizer, algo como um pressentimento do texto cênico:

sobre o louco: reconhecimento de quem olha, pois o lugar da loucura é o de uma noite na qual se

esconde a verdade do homem, abismo da sanidade. A psicologia aparece como parte das revira-

voltas do homem moderno com a verdade: conhecimento que, portanto, não esgota o verdadeiro.

A linguagem do louco dá-se como explosão lírica. Mas uma explosão que é “ausência de obra”,

repetição dessa ausência, como no caso de Artaud. “A loucura é ruptura absoluta de obra” (p.

529). Em Nietzsche, sua loucura é o lugar a partir do qual “seu pensamento se abre sobre o mun-

do moderno” (p. 529), para argüi-lo sobre sua saúde. “[...] no tempo dessa obra que desmoronou

no silêncio, o mundo sente sua culpabilidade” (p. 530). 32

Cf. FOUCAULT. As palavras e as coisas, op. cit. 33

DELEUZE, Critique et clinique, op. cit., p. 15. 34

Obra citada.

Page 24: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

24

obra que se constrói com tal autonomia perante o texto, que pode chegar até mesmo a

dispensá-lo.

Porém, mais curioso é o comparecimento da assinatura do autor no interior de

algumas peças. Ele se torna personagem. Ocupa um lugar de sujeito; lugar que se torna-

rá vazio para abrigar um novo nome. Em Um credor da fazenda nacional, o Credor se

apresenta:

CONTADOR - Será...(lendo) Castro...Car...Cirilo, Dilermando!?

CREDOR - Não! É um requerimento meu, assinado - José Joaquim de Qampos Leão,

Qorpo-Santo.

Diante da inoperância dos funcionários, o Credor é substituído por um personagem de

nome “Outro”; e assim realiza o desejo de seu mesmo: incendeia a repartição que não

lhe paga a dívida.

Em várias das peças, a função escritor passa do homem empírico José Joaquim

de Campos Leão para um personagem que se assina Qs, C-S. e ainda outros. A vida apa-

rece como escrita. Esses “escritores” comportam-se como quem procura fixar o discurso

(escrita) para nele fixar sua existência (seu ser). Em Lanterna de fogo,

ROBESPIER - [...] Ainda eu não fiz o que fez certo escritor francês, que escreveu du-

zentos livros! Mas o tenho feito talvez em milhões de mulheres; e tãobém de homens

cousa que julgo que ele tãobém não faria. [...]

Robespier se refere, provavelmente, a Balzac. Note-se a insistência na preposição em. A

escrita se inscreve em alguém ou algo. Absorve e funde-se com este algo e lhe dá con-

sistência. Se Robespier não fez duzentos livros, Balzac não escreveu (em) milhões de

mulheres e homens. As duas escritas (ou inscrições) se equivalem.

Em Um parto, transtornos na composição de uma comédia:

CÁRIO (depois que entra) - Como se transtornam as coisas do mundo! Quando pensaria

eu que indo à casa de um médico fazer uma ligeira visita, havia de transtornar uma co-

média!? Quanto é preciso ao homem que se dedica a composições intelectuais, ter regi-

me certo ou invariável!

O “mais importante trabalho” de Cário é o mesmo “mais improfícuo trabalho”

de Impertinente (As relações naturais): trocou-se apenas o sinal da operação de compor

a escrita. Nos dois casos, o ato de escrever se dá no momento mesmo em que a “obra”

acontece em cena; escrita e palco coincidem no tempo presente. A fala de Cário é a úl-

tima do segundo ato. Ele continuará a composição da comédia assumindo o nome de

Ruibarbo. A obra se sabe obra e sujeito. Continuando a escrita, Ruibarbo “justifica” a

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25

proposta ortográfica do escritor empírico Qorpo-Santo; ou seja, o personagem tornou-se

autor, ao contrário da anterior transformação do autor em personagem:

RUIBARBO – [...] quando preciso escrever palavras em que usam letras dobradas, mas

em que uma delas é inútil, suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do

Império do Brasil! [...] Bem sei que a razão é - assim se escreve no Grego; no Latim, e

em outras línguas de que tais palavras se derivam; mas vocês que querem, se eu penso

ser assim mais fácil e cômodo a todos!? Finalmente, fixemos a nossa Língua; e não nos

importemos com as origens!

Na peça A impossibilidade da santificação; ou A santificação transformada, a

função de escritor é preenchida por cinco diferentes figuras. Além disso, a peça é ante-

cedida por uma longa “Explicação”. Nela o editor do volume de Qorpo-Santo - Teatro

completo, Guilhermino César, considera que

o elemento confessional patenteia-se. O A. relata aí o seu conflito em termos confusos.

Assim, em lugar dos “começos de comédia prometidos no título, temos nesse trabalho

de Qorpo-Santo mais um testemunho da perturbação mental que o dominava em 1866.35

Ressaltamos o caráter burlesco da “Explicação”, o que impessoaliza a narrativa e coloca

o sujeito empírico num lugar estranho ao discurso, distanciando-se de si e criando um

outro.

A peça se inicia com o personagem C-S recebendo a visita de um credor e em

seguida a de um velho amigo (V.A.). Chega depois uma viúva e C-S se despede como se

a visita fosse ele. De fato, C-S passa a ocupar este papel. Daí, mostra-se construindo a

narrativa de que faz parte:

C-S - [...] Substituída por alguns minutos entretanto por uma velha impertinente com

quem entretive o seguinte colóquio:[...]

Rapivalho toma o lugar do escritor, passa-o a Bipolar e em seguida é Ridinguínio a tor-

nar-se escritor da peça que neste momento se encerra:

RIDINGUÍNIO (para o público) - Não há dúvida, comecei por Comédia e acabo por

Romance! Representar-se-á portanto em todo o mundo habitado, pela primeira vez, uma

novíssima peça teatral tríplice, chamada - Comédia, Romance e Reflexões! (Bate nas

palmas até cair o pano.)

Como se vê, Ridinguínio cumpre também a função de público a aplaudir seu próprio

espetáculo.

Duas páginas em branco esboça em dois pequenos atos (as páginas) um enredo:

agruras de um jovem casal apaixonado e obrigado a se separar. A fala final de Mancília

refere-se à escrita:

Page 26: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

26

MANCÍLIA - Das duas páginas em branco, eu já fui hoje uma escritada; a outra o meu

velhinho (batendo-lhe no ombro) há de escritar amanhã.

A personagem sabe: ela é a escrita. Uma página que deixou de ser branca. Ou permane-

ce branca: potencialidade de todas as escritas.

Em Dous irmãos, o homem se apresenta fora de sua alta hierarquia perante os

outros seres:

ANTÔNIO (para José) Conheces Pedro, o Marinho?

JOSÉ - Não; quem é? Onde mora? é cousa que se coma, que se beba, que se vista?! ou

que se durma; se passeie, ou se dance!?

(A cada palavra - coma, beba, etc - faz todo sinal com a boca, lábios, etc.)

Uma briga de arrancar narizes e queixos dá-se entre Antônio e José, até que entra Ma-

nuel. Antônio refaz a ele a pergunta, desta vez tratando o irmão com o nome de José. Ou

seja: Manuel tomou o lugar de José e este o de Pedro (ausente).

Qorpo-Santo põe em causa a própria noção de personagem como sujeito de uma

narração. Para Anatol Rosenfeld, o que constitui a narrativa, seja teatral ou de ficção, é o

personagem, definido na “dimensão temporal do evento ou da ação”36

. Mas que signifi-

ca “situar-se no tempo e ser tempo”? O próprio conceito de tempo explode em QS numa

fragmentação de linguagem que não deixa lugar à mais remota “imitação de caracteres”,

tão cara a Aristóteles37

e ao racionalismo. Comportamentos, padrões morais escoam;

junto com eles, qualquer esboço de um modelo universal de homem. Cai-se, então, num

radical desprestígio da idéia de indivíduo-personagem como decalque do indivíduo,

ideal ou empírico.

Sendo de tal modo evanescentes, as personagens de QS apresentam-se em ima-

gens que mostram seu duplo: seu espectro. Ao se instaurar a imagem de um morto-vivo

ou de um criado-amo, cria-se um ponto zero na contraposição de um sinal positivo e um

negativo. Mas a imagem não se fixa no zero para tornar-se um nada. Ela passa pelo zero

no sentido de sua recriação, que é, ao mesmo tempo, revisão de seu passado (de morto a

vivo, de criado a amo). Trata-se de um jogo de cartas: as figuras não têm volume ou

reverso; combinam-se e recombinam-se infinitamente entre si; vivem suas vigências no

curto instante que as separa de um novo lugar de sujeito, um novo recombinar-se. É

35

CÉSAR, Guilhermino. In Qorpo-Santo – teatro completo, op. cit., p. 321. 36

ROSENFELD, Anatol. “Literatura e personagem”. In CÂNDIDO, Antônio et alii. A personagem de

ficção. Perspectiva, São Paulo, 1981, p. 23. 37

ARISTÓTELES, op. cit.

Page 27: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

27

desta maneira que também o autor comparece: carta de baralho. Ou para deixar, no seu

lugar, o riso: único sujeito, tal como o sujeito do discurso, para Mallarmé, é a palavra,

conforme lembra Foucault em As palavras e as coisas.38

A problematização do ato de escrever transparece nessa dramaturgia. A presença

explícita do personagem QS (às vezes CS ou mesmo Qorpo-Santo) inclui um olhar que

observa, questiona e instaura mais uma modalidade de sujeito: a do crítico (leitor) no

interior da própria obra. Vale lembrar a “brechtiana” e bufa autocrítica no discurso de A

separação de dois esposos

MULHER - Tu és o diabo! Ainda não vi um homem mais ciumento! Tudo ele faz nas-

cer, ou pender, do, ou para o sentido, ou lado mau! Quase que ia dizendo - Arre lá con-

tigo! Mas como me parece não ser expressão portuguesa; ou ser um erro contra as regras

de sintaxe...salvo se quiséssemos fazer dessas palavras um advérbio de aversão ou de

espanto; não direi. Mas...estás hoje algum tanto insuportável!

Diz Foucault:

Olhando para as modificações históricas ocorridas, não parece indispensável, longe dis-

so, que a função autor permaneça constante na sua forma, na sua complexidade e mesmo

na sua existência. Podemos imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fos-

sem recebidos sem que a função autor jamais aparecesse.39

Se há desaparecimento do autor para dar lugar à obra, junto com ela emerge a

“função autor”. O interesse de Foucault é pensar o exercício da função, as condições, o

domínio etc.

A este baile de máscaras, as identidades comparecem para se perder. Vejamos o

ponto de vista de Barthes sobre o sujeito autor:

a linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito, vazio fora da pró-

pria enunciação que o define, basta para fazer “suportar” a linguagem, quer dizer, para a

esgotar.40

Não sei se acabo por concluir ou confundir. Mas não resisto a lembrar que Qorpo-Santo

nomeou personagens de seu teatro com paráfrases de nomes de personagens do seu tem-

po ou de sua tradição.O Robespierre da Revolução Francesa torna-se Robespier em Lan-

terna de fogo; o poeta clássico Malherbe no bufo Malherbe de As relações naturais;

Almeida Garrett perde um t em Um assovio. Acontece que o século XIX brasileiro (es-

pecialmente em sua segunda metade) é um fulcro de idéias em que se afunilam as tradi-

38

FOUCAULT. As palavras e as coisas. Op. cit. 39

FOUCAULT. “O que é um autor?” In O que é um autor? Op. cit., p. 70. 40

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Edições 70, Lisboa, 1987, p. 51.

Page 28: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

28

ções e se esparge a modernidade. Vimos, em Foucault, a introdução de um discurso que

rompe com uma certa idéia de representação e inaugura a “parceria” da poesia (Mallar-

mé) e da filosofia (Nietzsche)41

. Qorpo-Santo, não leu nem sofreu influência direta

desses autores, mas viveu no seio de um século pululante de manifestações.

41

FOUCAULT. As palavras e as coisas, op. cit.

Page 29: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

29

PALCO

O tempo há de vir

Em que te hás de rir!

Q.S.

Não é por mor da digressão que faremos um passeio pela história da cena, mas

para traçar o caminho que vai da transcendência à imanência, da origem àquilo que al-

guns têm como morte do teatro (sua possível reencarnação). No percurso, a irrupção de

Qorpo-Santo, seu modo de desconstruir a cena transcendente em pleno auge (roman-

tismo brasileiro). Modo também de reconstruir um palco onde o corpo (o seu próprio)

comparece não para consagrar sua ausência, mas para ocupar seu espaço como e de si-

mesmo.

É a oralidade que propicia o rompimento de fronteiras espaciais e temporais, a-

través do canto. Pouco antes do advento da polis, do alfabeto, da moeda, Hesíodo (sécu-

lo VIII-VII A.C.) quase os prevê em Os trabalhos e os dias, mas não pode conceber

ainda uma poesia não oral. Cultor de Memória (Mnemosyne), o poeta nomeia; ao fazê-

lo, torna presente a coisa nomeada. Cerca de dois séculos mais tarde, Platão - homem da

polis, da escrita em prosa e do pensamento metafísico - diz que o nome é signo, conven-

cional ou não, da coisa (Crátilo).

A Teogonia de Hesíodo é sinopse de mitos de muitas procedências; poesia de te-

or encantatório, estruturante do cosmos e do mundo:

sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos

e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações.

(27-28)

Page 30: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

30

As Musas podem mentir, não trazendo os fatos à luz; dando ao não-ser o estatuto

de ser, através da enunciação; identificando o símil e o ser-mesmo. Ou podem desocul-

tar: retirar os fatos do reino noturno do não-ser e fundá-los como presença. O tempo é o

do presente, revelação que joga no esquecimento o passado e o futuro. Desse rompimen-

to de limites temporais funda-se o Ser, “encanto das vozes”42

(Musas presentes no poe-

ta), presença do divino. Reciprocidade indissolúvel de ser e linguagem: um está no ou-

tro; um se manifesta no outro; cada um é si-mesmo e o outro.

As Musas são filhas de Zeus e de Mnemosyne:

ele a freqüentou nove vezes

quando girou o ano e retornaram as estações

com as mínguas das luas e muitos dias completaram-se.

(68-9)

Bisnetas (ou quarto elo da cadeia genealógica) da Terra, esta, como Zeus, só ga-

nha ser ao aparecer no e pelo canto das Musas. Elas são, então, divindades primordiais.

O tempo ganha espessura na imbricação linguagem/ser. Zeus é sujeito que funda e obje-

to fundado pelo canto; as Musas não o sucedem, mas lhe são contemporâneas; são, elas

e ele, tempos contíguos (não contínuos), permanentes. O canto do poeta (e nele o das

Musas) suspende o presente empírico e instala deuses e homens num presente cósmico,

que vige na e da não-vigência de passado e futuro. Nada se sucede, nada continua, nada

é causa ou efeito. Alteridade e Ipseidade coincidem tanto quanto diferem entre si, propi-

ciando a concomitância de seres e eventos. Se as Musas presentificam o que é, as Moirai

definem o ser e o circunscrevem: impedem que cada deus seja (ou queira ser) o que ele

não é; se as Musas fundam o tempo, as Moirai fundam o espaço. Tempo e espaço, por

sua vez, são qualidades instauradas pelo deus que as ocupa; tornam-se seus atributos:

seu ser e qualidades não anteriores a ele.

O canto presentifica o ser de Zeus como modelo: seu poder e sua justiça dão a

medida do poder e da justiça dos reis, cuja Verdade se funda no canto.

Os hinos de Hesíodo, as epopéias de Homero, os cantos dionisíacos são formas

teatrais totalizadas, anteriores à subdivisão da poesia em gêneros. Teatro constituído

pelo ato de cantar, dançar, tocar a lira, revelar verdades e dizer “mentiras símeis aos

42

Cf. a importante “Introdução” do Professor J.A. A. Torrano à Teogonia de Hesíodo. Massao Ohno, São

Paulo, 1981.

Page 31: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

31

fatos”. Representar é (a)presentar: fazer presente. A bacante que se embriaga e canta

Dionisos torna-se o próprio deus embriagado.

As narrativas de Homero e Hesíodo atuam no sentido contrário ao da catarse a-

ristotélica, que procura identificar o espectador com o herói da tragédia para purgá-lo

das emoções (piedade e terror) vividas pelo personagem. Identificação com o mundo

jurídico da polis, distanciamento do mito. Distância de palco e platéia delimitada pelo

modo de ocupação dos espaços físicos.

Um habitante da polis, já na passagem do século VI para o V A.C., destacou-se

do coro ditirâmbico e passou a dialogar com ele. Antes disso, Arquíloco de Paros entoou

os primeiros cantos líricos e abriu caminho para o sujeito trágico - que copiará uma i-

déia de herói. Representará: tornará presente um ser ausente, que pré-existe e pré-

consiste, independentemente do discurso que o enunciará. Representar é repetir o já ha-

vido (passado mítico) e projetar (idealizar) o que deverá ser. Aristóteles fixa o tempo da

narrativa em passado, presente, futuro (Poética). A polis cria um tempo profano (histó-

rico) que será bom e proveitoso conforme o êxito das ações. Antígona traz para o palco

o tempo mítico (Antígona) e a lei da cidade (Creonte): trágica é a desmedida (hybris)

de ambos os lados. Na luta entre o tempo mítico e o atual da polis, instala-se a terapia

catártica, que propicia uma pedagogia do bom senso e do senso comum. Imita-se agora a

Idéia disciplinadora das idéias. Representar é repetir o duplo ideal da polis. O teatro é o

lugar onde se contempla o mito para submetê-lo a exame pelo pensamento racional:

verificação da identidade entre o modelo (o mito) e a cópia (o espetáculo). Contemplar é

perceber o mundo – ato que engendra o sujeito contemplativo.

No teatro medieval, a cena dedica-se aos episódios da história sagrada. A partir

dos adros das igrejas, toma-se o espaço das ruas com duas modalidades básicas de pal-

co: um, sobre rodas, percorre praças e ruas onde o aguarda o público. O outro, chamado

“palco simultâneo”, subdivide-se em tantos compartimentos (“mansões”) quantos fo-

rem os episódios narrados. Neste caso, o público é que se desloca.

O palco grego dispõe de maquinarias que fazem mudar a paisagem, voar os deu-

ses. O medieval possui alçapões, desloca nuvens, comporta dragões a cuspir chamas;

verticaliza o mundo ao construir perante o espectador os espaços de inferno, terra e céu.

Em ambos, a ordem divina fixa o mundo e o dá por conhecido. Encenar os mitos gregos

Page 32: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

32

ou passagens da Bíblia judaico-cristã é repetir didaticamente os ditames de uma ética e

uma moral que se querem eternas.

A fachada de um templo grego ou o fogo infernal a subir de um alçapão do palco

medieval são marcos materiais que atualizam os feitos do passado (como são, nas cida-

des, os monumentos). Os cenários dão lugar à presença virtual dos mitos (tempo e lugar

para sua vigência); presença atual da convenção que materializa tempo e lugar da narra-

tiva. Conexão de tempos e espaços virtuais e atuais.

O Renascimento concebe o universo como um campo infinito, descentrado e

sem margens. Funda-se uma nova metafísica, na qual o homem deixa de ser sujeito re-

ceptivo às informações do mundo e dobra-se sobre si mesmo para tornar-se também

objeto de seu próprio conhecimento. A partir de agora, construirá sua consciência e sua

identidade. A liberdade assim adquirida manifesta-se na atitude do homem viajante.

Explorar novos mundos é explorar a ausência de centro, desterritorializar-se e reterrito-

rializar-se nas novas terras descobertas: deslocar as próprias origens. A nova Física de

Galileu e a nova Geografia, a paixão pela descoberta, as viagens pelo espaço inauguram

não apenas uma nova era. Cria-se sobretudo uma nova experiência de tempo (também

viagem) onde a memória concretiza-se como História. Este novo sujeito viajante, des-

bravador de “mares nunca dantes navegados”, assenhoreia-se de um mundo sem mapas

e constrói os percursos para as cartografias.

O palco é campo liso, informe, tornado território pelas idas e vindas da narrativa.

O texto diz o lugar de um episódio, uma tabuleta indica a saída de uma casa para ou-

tra.O cenário figura o ambiente de forma sintética. O teatro de Shakespeare coloca em

cena Grécia (Sonho de uma noite de verão) e Roma (Antônio e Cleópatra), desloca-se

para Veneza (O mercador de Veneza, Otelo), Verona (Romeu e Julieta), Dinamarca

(Hamlet), uma ilha misteriosa (A tempestade). Mundos distantes em tempo e espaço, tão

mais dóceis à invenção de Shakespeare quanto maior for sua curiosidade pelos hábitos

de estrangeiros visitantes ou visitados por ingleses - milagres das novas rotas comerci-

ais.

Hamlet vive o drama do homem reflexivo em exercício radical da dúvida; Ro-

meu e Julieta morrem pela escolha amorosa. Habitam um palco, o elisabetano, que se

configura como espaço liso, neutro, à espera das marcas da ação. Destaque-se a mobili-

Page 33: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

33

dade oferecida por esta cena, herdeira da medieval. Em um dado momento, quando sur-

giram as primeiras companhias profissionais, a velha carroça acomodou-se no pátio de

alguma hospedaria:

se aproveitar esse palco era utilizar recursos tradicionais do teatro popular da Idade Média,

usá-lo era, também, gozar da liberdade medieval, nascida do total desconhecimento das

convenções do teatro da antigüidade.43

A “liberdade medieval” refere-se principalmente à não observação (por desco-

nhecimento) das unidades aristotélicas: o enredo se estrutura em longos períodos de

tempo e múltiplos locais. É suficiente que um personagem se desloque de um lado a

outro da plataforma para que mude o lugar da ação.

A monumentalidade do teatro medieval - com o seu ostensivo apelo aos sentidos

- indica a atitude de materializar o mundo espiritual: instalar o reino de Deus na Terra.

Ou fazer esquecer a Terra e apontar para o Céu, como faziam as esquálidas madonas

cuja silhueta vertical é a mesma das catedrais góticas, por exemplo. Mas para Shakespe-

are importam a agilidade da ação fracionada e as mudanças de lugar. Importa agora

olhar o mundo como ele pode vir a ser, no campo neutro do palco: lugar aberto para a

fixação de territórios, a exemplo das terras do Novo Mundo.

Neutro e também eficaz é o palco italiano. À frente de um cenário único constru-

ído (geralmente uma fachada com três portas ou três portas para três fachadas diferentes,

o texto é recitado, bem como são executadas as piruetas e pantomimas. A perspectiva

horizontaliza o olhar, tal como na pintura. O desejo é de ver o homem habitando um

mundo caracterizado definitivamente como objeto para o conhecimento. Perspectiva

que inclui o próprio sujeito que olha, tornando-o objeto.

Ao fim do século XIX, as distâncias e fronteiras começam decididamente a apa-

gar-se. As experiências de Antoine (Paris) e Stanislavski (Moscou), por exemplo, têm

suas teorias e práticas rapidamente divulgadas. É a era, também, da iluminação elétrica.

Esses dois fatores aliam-se para traçar os contornos definitivos do teatro do século XX.

Para o naturalismo, a oportunidade de reproduzir o real como nunca antes possível, se-

guindo a trilha do ilusionismo do século XVIII. Para os simbolistas, a luz elétrica pro-

porciona a delimitação de espaços oníricos: a luz se torna cenografia. A tecnologia da

eletricidade dá sustentação a ambas as postulações.

Page 34: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

34

A ambição naturalista mostra, desde o nascedouro, o seu limite: a representação

não tardará a exibir a teatralidade, ao invés da pretendida cópia fiel da natureza. Com o

advento do cinema, o teatro obriga-se a buscar redefinições, sua identidade. A arquitetu-

ra do palco passa a ser questionada em relação à platéia. Antoine, com suas exigências

de exatidão naturalista, conduz à consciência de que: 1) a boca-de-cena é algo a ser mo-

dulado; ela não será mais apenas moldura neutra do palco; 2) o espaço fala das relações

entre as personagens e o mundo. Mais tarde, Brecht irá explorar exatamente as contradi-

ções entre esses elementos; 3) a “quarta parede” fecha imaginariamente o palco e o se-

para da platéia. Enquanto o espectador toma a atitude de um voyeur que flagra os acon-

tecimentos “verdadeiros” da cena, os atores fingem ignorar que são vistos e podem ago-

ra dar as costas (!) ao público.

A tradicional representação na ribalta

rompe a ilusão teatral; lembra ao espectador que ele existe enquanto espectador, e que aque-

le que fala e age na sua frente não é somente um personagem, mas ao mesmo tempo alguém

que representa um personagem. Trata-se portanto de uma modalidade da representação tea-

tral que pode ser condenada em nome de certos princípios (e é essa a posição de Antoine),

mas que pode ser igualmente reabilitada em nome de princípios diferentes (Brecht).44

A cópia naturalista, exacerbando a busca da verdade, realça essa ausência. No

máximo, a verdade da cópia (e não a cópia da verdade) aparece como teatralidade. An-

toine busca nos objetos do real a sua materialidade histórica. Mas a posta de carne ver-

dadeira colocada no lugar de um adereço de papelão mostra apenas que ambos não pas-

sam de “efeitos do teatro”.45

Com o naturalismo e o simbolismo, todos os elementos do espetáculo passam a

ser alvos de indagações. Em Antoine e Stanislavski, a luz cria atmosferas e pode marcar

o tempo (dia/noite, inverno/verão). Com Appia, Craig, Vilar, ela será cenografia; en-

quanto em Brecht, Grotowski, Peter Brook, ela não permitirá que o espectador se esque-

ça de estar no teatro. É o fim daquela luz que apenas tornava visível o espetáculo.

O espaço naturalista dedica-se ao ideal de fazer esquecer o teatro; o simbolista

indaga sobre sua especificidade. Compor a cena será como construir um quadro em três

dimensões. Organizam-se as formas, relacionam-se as cores, os cheios e os vazios, os

43

BÁRBARA HELIODORA. A expressão dramática do homem político em Shakespeare. Paz e Terra,

Rio de Janeiro, 1978, p. 172. 44

ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral, 1880-1980. Zahar, Rio, 1982, p. 29. 45

ROUBINE, Jean Jacques, op. cit.

Page 35: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

35

claros e os escuros. A cor simbolista encontrará seus correspondentes na subjetividade

do espectador: o vermelho é sangue e poder; o negro, a morte e a dor.

Com o simbolismo, Jarry pôde radicalizar a proposta de solicitar do espectador

sua participação imaginativa. Num ataque ao figurativismo, o dramaturgo pede a Lugné-

Poe (encenador de Ubu rei) cartazes que indiquem os campos de neve. Se o cartaz faz

ver o campo de neve, ele é, ao mesmo tempo, cartaz. Mostra-se ao espectador que o

lugar é o teatro a evocar a neve. Processo que nega a verossimilhança e afirma a teatra-

lidade. O ator deve, portanto, abrir mão de assemelhar-se ao personagem: ele poderá

cumprir a função de porta, por exemplo, modelando para tal o seu corpo.

Meyerhold chega a falar de um “quarto criador” ao referir-se ao espectador posto

ao lado do autor, do diretor e do ator. Alguém que, ao assumir as convenções, verá o

teatro como teatro. O ator, por seu lado, jamais pode esquecer-se da presença do públi-

co. Qualquer semelhança com Brecht não é mera coincidência.

No centro do problema, a pergunta sobre o que são o teatro e o palco. De qual-

quer ângulo que se responda, o espectador surge comprometido com o espetáculo. Ao

longo de todo o século XX, ele aprenderá a “ler” as sugestões e alusões nos lugares da

afirmação, da descrição e da redundância.

O naturalismo situa-se numa linha limítrofe: encerra uma era onde a verossimi-

lhança (desde Aristóteles) afirmava-se como o próprio do teatro: reino do texto e da

palavra; lugar da verdade transcendente. Sua explosão abre a era do encenador, que rei-

na sobre a cena - mundo do espaço e da imanência. Tem-se como definitiva, neste senti-

do, a encenação do Tartufo, de Molière, por Antoine, em 1907. A unidade de lugar de-

saparece e cede espaço a quatro cenários da casa de Orgonte. É o fim da cena clássica

como ponto de convergência de destinos e personagens diante de um palácio ou templo.

Muito apropriadamente, lembra Jean-Jacques Roubine46

que firma-se uma “semântica

do palco”. Nela, a encenação não mais tem por tarefa realçar as preciosidades de uma

obra-prima através de sua recitação. Trata-se agora de conferir ao texto um sentido; ex-

plicitar suas entrelinhas. O encenador será autor. Daí que autores como Nelson Rodri-

gues dediquem-se a “escrever a cena”. Pode haver quem, humoristicamente, sugira a

46

ROUBINE, op. cit., pp. 25-26.

Page 36: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

36

edição de suas “rubricas completas”. No mesmo caminho, Q.S. e seu diálogo com os

possíveis leitores e encenadores.

De certa maneira, o teatro moderno retoma a “véspera” da tragédia grega: a pala-

vra de Homero e Hesíodo instaurava a presença do objeto nomeado. O palco naturalista

segue o caminho de, segundo Roubine, uma possível

concretização do sonho do capitalismo industrial: a conquista do mundo real. Conquista ci-

entífica, conquista colonial, conquista estética... O fantasma original do ilusionismo natura-

lista não é outra coisa senão essa utopia demiúrgica que se propõe a provar que dominamos

o mundo, reproduzindo-o.46

Dominar o mundo pelo conhecimento era o sonho de Zola. Colocar a vida sob a

mira de um microscópio construído pelo romance (O romance experimental) ou pelo

teatro (O naturalismo no teatro). Copiar a realidade é apreendê-la no ato mesmo de co-

nhecê-la. No bojo mesmo da estética da reprodução do real, a teatralidade simbolista

abre caminho para um teatro onde o pensamento fura as malhas do conhecido e abre-se

para a representação de seu próprio abismo.

Jacques Derrida47

, ao analisar as propostas formuladas por Antonin Artaud em

cartas e manifestos sobre o “teatro da crueldade”, chama atenção para alguns aspectos

interessantes do ponto de vista de uma crítica à prática e à teoria do teatro no Ocidente.

Crítica centrada na idéia da origem do teatro coincidindo com sua morte: Dionysos é

sacrificado pelo palco da polis. Buscar a véspera da origem é colocar-se no limite da

representação. Limite humanista do teatro clássico e sua metafísica. Pois, para atraves-

sar as noções de imitação e catarse, é preciso destruir os caracteres individuais e colo-

car-se na plena alegria do devir. Estão em jogo os próprios alicerces do teatro, num pa-

ra-além das técnicas e tecnologias do palco. Uma vez abalado este, necessária e inevita-

velmente abala-se o público. Artaud desentroniza a palavra para dar toda potência à ce-

na; a representação não mais repetirá um presente (do texto) anterior a ela e espacializa-

do alhures. Buscar a representação originária é instaurá-la no seu próprio espaço. Trata-

se de

47

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Perspectiva, São Paulo, 1995. Referimo-nos ao ensaio

“O teatro da crueldade e o fechamento da representação”.

Page 37: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

37

Espaçamento, isto é, produção de um espaço que nenhuma palavra poderia resumir ou com-

preender, em primeiro lugar supondo-o a ele próprio e fazendo assim apelo a um tempo que

já não é o da dita linearidade fônica [...]48

Representação experimentada no âmbito das imagens do sensível tornado pre-

sente por si mesmo. Crueldade entendida na sua acepção mais pura: o “cru”, o “puro”, o

“rigor”, o “si-mesmo”. Os manifestos de Artaud são um gesto e um grito de morte ao

texto e seu poder de submeter o palco. No entanto, a palavra tem lugar garantido, mas

regulado no interior do sistema mais amplo do teatro. Não se trata, portanto, de panto-

mima ou improviso. A palavra comparecerá descarnada, despida de sua roupagem con-

ceitual; importam as sonoridades, as intensidades. Espaço compreendido no intervalo

entre som e conceito, significado e significante, alma e corpo, autor e ator. Escritura

hieroglífica, de coordenação do fonético com o pictórico. Palavra-objeto.

O fim das dicotomias sujeito/objeto, espectador/espetáculo, palco/platéia impõe

a destruição da cena clássica e sua metafísica; coloca no lugar a festa e sua imanência.

Em vez de repetição, presença: presente não furtado de si próprio. Festa que consome o

presente, sem a economia da repetição. Diferença decididamente pura.

Mas a proposta de Artaud49

envia o problema da representação para os limites do

possível: se a festa não pode repetir-se, o teatro não se dá. Se o pensamento de uma re-

presentação sem representação aponta para o impossível,

se não nos ajuda a regular a prática teatral, permite-nos talvez pensar a sua origem, a véspe-

ra e o limite, pensar o teatro de hoje a partir da abertura da sua história e no horizonte da

sua morte.50

Na linha de um teatro fora do perímetro da metafísica, Qorpo-Santo trabalha na

repetição da diferença (no seio do Mesmo, como vimos com Foucault). Pois se sua cena

não quer repetir o Modelo transcendente, ela deseja repetir seu presente de cena; ser

espetáculo e não festa. Presente afirmativo de um palco que, no entanto, esgota-se em si

mesmo. Presentação. Teatralidade situada entre a desconstrução do palco (desteatraliza-

ção) e sua reafirmação (reteatralização). Uma nova gramática que não se contenta em

deter-se (deixar-se deter) por nenhum desses movimentos; por nenhum modelo, porque

quer continuamente remodelar-se.

48

DERRIDA, op. cit., p. 157. 49

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Max Limonad, São Paulo, 1984. Conferir especialmente as

cartas e manifestos sobre a crueldade. 50

DERRIDA, op. cit., p. 174.

Page 38: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

38

Em As relações naturais, o criado Inesperto informa sobre a impossibilidade de

todos os modelos apriorísticos. Suas tarefas domésticas realizam-se no mesmo movi-

mento de desfazerem-se. Ordenar o mundo é vê-lo desobedecer à ordem:

INESPERTO [...] - Por mais que arrume (atirando com uma bota para um lado; com um li-

vro para outro, com uma bandeja no chão; com um espanador para um canto; e assim com

tudo o mais que se achava arrumado), sempre encontro esta sala, este quarto, ou como o

quiserem chamar...câmara, dormitório, ou não sei que mais - desarrumado! [...]

Nesta (des)ordem, o corpo, o homem e o mundo fogem a toda hierarquia. O a-

moroso casal octogenário de Mateus e Mateusa briga atirando um contra o outro peda-

ços do respectivo corpo (ele) ou exemplares da Bíblia e da Constituição do Império (e-

la). Na disputa final, Mateus chega a quase desmontar-se como um boneco. Não é ex-

cessivo lembrar que o Sacatrapo (Os encantos de Medéia) de Antônio José da Silva (O

Judeu) perde a cabeça em cena e fica rodando às cegas até encontrá-la e recolocá-la.

Não é de espantar: O Judeu está inserido na feérica tradição cômica medieval. Seu palco

(o Teatro do Bairro Alto de Lisboa), na primeira metade do século XVIII, pretende um

máximo de ilusão através do aparato de maquinaria, como é próprio da estética barroca.

O palco de Qorpo-Santo é máquina de desmascaramento da ilusão. Escrita onde

a palavra e o objeto apresentam-se em indissolúvel unidade. Ou a unidade pode desfa-

zer-se para efeitos cômicos. A palavra-hieróglifo de Artaud realiza-se na livre associa-

ção de sons e imagens. Nessas trilhas já caminhava Q.S. em Um assovio:

LUDUVINA - Visto que me troca o nome, eu lhe trocarei o chapéu. (Tira o que ele tem na

cabeça e põe-lhe outro mais esquisito.) O nome que me deu, regula com o chapéu que eu

lhe ponho: e dê graças a Deus não o deixar com a calva à mostra!

A concretude da palavra (indissolubilidade de nome e presença da coisa nomea-

da) pode levar a limites de “encenabilidade”; ou servir como provocação ao encenador.

Veremos os estudantes de Um parto em apuros com a proliferação de uma cabra em

cena. Estes cenários (ou adereços) vivos radicalizam o desconstruir-se do palco (ou

impõem uma teatralidade radicalmente assentada na presença). Vejamos agora as com-

pras de Simplício em Lanterna de fogo:

SIMPLÍCIO (entrando) - Que diabo de zangas estou eu sempre a ter! Hoje fui ao mercado

fazer compras do necessário para o dia; o que havia de achar para comprar! Galinhas mor-

tas, frangos vivos, gatos e ratos! (Atira com todas estas cousas, as quais trazia dentro de

um saco que vinha às costas; saltam ratos, gatos, galinhas e frangos por todo o cenário.)

Page 39: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

39

O início desta mesma peça mostra Robespier dizendo que procura um objeto

(herança de seu pai). Ao final, ele declara que o objeto é a mulher presente em cena.

Entre as duas pontas, episódios aleatórios: procura sem método ou direção.

Vale a pena lembrar a encenação realizada há mais de vinte anos pelo Giramun-

do Teatro de Bonecos, de Belo Horizonte, sob direção de Álvaro Apocalypse. As rela-

ções naturais aparecia ambientada num cenário detalhada e requintadamente realista.

Mesmo não tendo assistido ao espetáculo, pode-se imaginar o efeito de transbordamento

de estruturas provocado pelo contraste entre o texto e a cena.

Embora correndo o risco de recair na digressão, passemos rapidamente os olhos

por experiências teatrais recentes e seu uso do espaço. Comecemos por relembrar, com

Roubine51

, a encenação de Orlando Furioso (poema de Ariosto), realizada por Luca

Ronconi (Itália, 1969). Nas três versões do espetáculo, Ronconi (inspirado em Artaud)

aprofunda gradativamente a proposta de fragmentar a narrativa. Na primeira versão, o

público assiste sentado em cadeiras giratórias: ele é circundado pelas aventuras cava-

lheirescas, monstros, feiticeiras, amores de Carlos Magno e seus soldados. Na segunda,

movem-se espectadores e espetáculo; cenas simultâneas passam através do público em

carrinhos móveis. Na terceira e última versão, o encenador explora a verticalidade do

espaço, usando a tradicional maquinaria para fazer voarem cavalos de metal, animais

pré-históricos, hipogrifos. Os carrinhos que conduzem cenas e atravessam em velocida-

de os espaços onde se encontra o público não apenas ultrapassam os limites ce-

na/espectador. O público entrosa-se no espetáculo: ele é floresta, mar, participa das bata-

lhas:

há feridos e mortos espalhados pelo chão, agonizando e gemendo. Alguns espectadores fo-

ram vistos precipitando-se piedosamente para tentar socorrê-los. Na verdade, essa epopéia

acabou sendo um triunfo da ilusão teatral!52

A ausência de lugares marcados e o risco de machucar-se com os carrinhos colo-

cam o espectador numa situação de desconforto físico que se soma à necessidade de

escolher as seqüências da narrativa. Participação corporal e intelectual, portanto. Lu-

dismo, trânsito pelo imprevisto, disponibilidade: como numa feira popular.

51

ROUBINE, op. cit. 52

Idem, p. 95.

Page 40: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

40

Mais recentemente, entre nós, experiências como o Tiradentes de Aderbal Freire

Filho (Rio de Janeiro, 1992) colocam o espectador a caminhar pelos espaços da ação e a

tomar vinho com os Inconfidentes. Experiências que celebram a festa permanecendo nos

limites do espetáculo. Ao tomar vinho com Cláudio Manuel da Costa, o espectador co-

mo que se torna também inconfidente, porém sem estar de posse dos meandros da repre-

sentação. Não sabe o texto, não conhece as seqüências - prerrogativas do ator. Permane-

cem, ator e espectador, o primeiro no tempo presente da narrativa; o outro, no limiar do

presente empírico com a adesão ao tempo ficcional. Artaud radicalizado romperia o li-

mite.

A digressão, embora mais uma vez longa, é útil para que percebamos a enverga-

dura da empreitada de Qorpo-Santo. Ele fragmentou o seu texto como que a intuir (ou

mesmo pretender) um espaço em explosão. Nele, o tempo não pode linearizar-se. Num

espaço como o de Orlando, o calidoscópio textual seria levado às últimas conseqüên-

cias.

Page 41: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

41

CRÍTICA

Será que para termos ciência não devamos tê-la? Ilusão!

Tantos têm uma e outra coisa... logo, este mundo é incom-

preensível.

Q.S.

Cessou a euforia dos anos de descoberta. Tendo em vista a já grande quantidade

de ensaios, teses e dissertações universitárias provocadas pelo louco de Vila do Triunfo,

é necessário agora retomar a discussão e repensar o já dito. São três os pontos de vista

centrais: 1)trata-se mesmo de um louco, portanto não há obra de arte; 2) louco, porém

genial; 3)artista. Um denominador comum salta aos olhos: as considerações são feitas a

partir do autor e não a partir da obra.

Embora buscando dialogar com cada um destes três pontos de vista, não é nosso

desejo encaminhar argumentação voltada para o autor. Interessa pensar a obra e sua in-

serção na cultura brasileira (mais especificamente no que diz respeito ao teatro); sua

linguagem, seu mundo interior.

Já vimos, com Foucault, indagações sobre a função do autor. Vejamos agora,

com Roland Barthes53

, o outro lado da questão: aquilo que convencionamos chamar

obra. Sua existência é material; seu destino, o de habitar as prateleiras e dar suporte ao

texto. Este, por sua vez, é uma tecitura que habita a linguagem e dá suporte ao discurso.

O texto foge das estantes para atravessar a obra ou um conjunto de obras. Essa travessia

dá-se sob o signo da rebeldia a classificações e hierarquias: o texto se volta contra as

idéias de “boa literatura”, gênero. Além disso, situa-se nos limites de racionalidade ou

legibilidade das regras de enunciação. O texto aparece fora do âmbito da doxa, no lugar

do paradoxo, onde o significado e o significante tensionam-se - potência de variações.

53

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Edições 70, Lisboa, 1987.

Page 42: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

42

Cabe aqui nos determos sobre a natureza dessa “potência de variações” quando

se trata de um texto teatral. Nunca é demais relembrar sua especificidade. Houve mo-

mentos, como no teatro elisabetano, em que o espetáculo erigiu-se como confortável

morada do texto dramático. Falamos das dimensões da cena, sua distribuição espacial, o

lugar (físico e social) no qual se colocou em relação ao público. Um palco projetado dá

ao ator um contato próximo com sua platéia; outro, interior, para cenas mais intimistas,

como a do quarto de Julieta, salas de trono; um palco superior pode abrigar o balcão de

Julieta ou dar lugar às aparições do Fantasma, em Hamlet. O espaço cênico é também

metonímico: uma árvore mostra uma floresta, um alçapão é um túmulo ou todo um ce-

mitério. Shakespeare pôde apresentar toda a sua poesia nesse campo neutro e, por força

de sua voz, fazer ver a madrugada em plena luz do dia: paradoxo evidente. A palavra é

senhora do espetáculo.

Em outras latitudes, a “Commedia dell’Arte” dá à cena a primazia: a pantomima

assumiu o poético, no trânsito do sonoro ao plástico. Do (relativo) improviso dos atores

a partir do roteiro, fabulam-se os diálogos (e os silêncios). A máscara tipifica a persona-

gem; o ator é também autor.

O teatro moderno, ao reconhecer no texto escrito uma virtualidade da cena, abole

a submissão dela à literatura. É que o palco, já vimos, tornou-se, desde o fim do século

passado, um problema. O encenador deixou de apenas transpor as palavras do espaço

literário para o espaço áudio-visual. Ele agora é também o codificador de uma lingua-

gem que se define por configurar a unidade agregadora de elementos como a luz, o ce-

nário, o figurino, o trabalho de atores e... o texto. Unidade tornada possível pela leitura

desse texto – efetuada pelo diretor – e cujo sentido condicionará o desempenho dos ele-

mentos cênicos, todos eles constituintes do conjunto. A função de leitor, desempenhada

pelo diretor, é crítica, mas é a tarefa criadora que fará dele encenador. O que funda a

literatura é a seqüência das unidades significativas apresentadas pelas palavras e ora-

ções. O espetáculo é fundado naquilo que se oferece materialmente à percepção: os ato-

res e os cenários. Deste modo, o teatro é uma espécie de reino dos sentidos (sensação,

percepção), sobre a base do sentido, como diz Anatol Rosenfeld54

. O espetáculo atualiza

(coloca em ato) o texto, tornando os acontecimentos da cena fatos presentes. O ator se

54

Cf. ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto. Perspectiva, São Paulo, 1976.

Page 43: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

43

apodera da palavra do autor. Ao corporificar sentidos e significados, cria outros, com a

tensão de gesto, voz e corpo. Ou, nas palavras de Roland Barthes,

O que é a teatralidade? é o teatro menos o texto, é uma espessura de signos e de sensa-

ções que se edifica sobre a cena a partir de um argumento escrito, é este tipo de percep-

ção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que

submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior.55

É considerando (ou desdenhando) a especificidade dessa “espessura de signos” (tex-

to/encenação) que o crítico se movimenta. Seu trabalho passa a compô-la. Diria Mário

de Andrade que a crítica é um ato de amor. Qorpo-Santo parece metaforizar a prolifera-

ção advinda deste acasalamento (crítica/obra de arte) em Um parto, onde uma cabra dá

cria em cena, provoca ânsias de orgia gustativa e, ainda, náuseas. Caberá ao encenador

ler os signos para passá-los ao palco: a solução seria, por exemplo, usar bonecos no lu-

gar das cabras? O discurso, à maneira de Artaud, desafia a hipótese de um cataclisma da

linguagem, pois é com a presença imediata (não representada) de tão ariscos animais na

cena que se pode dissolver o espetáculo, por razões óbvias.

UMA MULHER (muito atenta, ouvindo alguns gemidos) – Quem gemerá? Quem estará

doente? Será minha avó, ou meu avô!? Sabe-o Deus; eu apenas desconfio, e nada posso

afirmar! Entretanto, convém indagar. (Aproxima-se de uma porta, escuta, e volta.) Ah!

quem há de ser? (Arrastando.) É a cabritinha de minha avó, tia, e irmã, que acaba de pa-

rir três cabritos. Ei-los. (Atira-os ao cenário.)

MELQUÍADES (entrando) – Oh! que espetáculo é este! Cabritos em meu quarto de

dormir! Oh! mulher, donde veio isto!?

A MULHER – Ora, de onde havia de vir! Boa pergunta! O Sr. Não sabe que seus avós

têm o luxo de criar cabras!? E que criando-as por força hão de parir!?

O texto não “quer dizer”, como a obra, pois resulta de um múltiplo espaço de re-

ferências, paralelismos, associações, perpendicularizações, desvios. É um sistema infini-

to e descentrado (paradoxo de sua estrutura), tal como a própria linguagem. Uma gramá-

tica do evento; um atravessamento de sentidos, numa explosão à big bang: disseminado-

ra, multidirecional. A voz do texto entrecruza-se com as de outros textos, anteriores e/ou

contemporâneos.

Em sua demoníaca qualidade plural, o texto exige a participação lúdica do leitor;

participação que o produz como leitor e produz a leitura. É preciso uma cumplicidade

com o texto. Nela, o crítico deixa de ser um leitor do tipo que Barthes56

considera “de

consumo”: preso ao significado, ao “gosto”, à “qualidade” da obra. Mas fruir o texto é

55

BARTHES, Roland. Essais critiques. Du Seuil, Paris, 1964, pp. 41-2. 56

BARTHES, O rumor da língua. Op. cit.

Page 44: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

44

praticar as relações de linguagem (prazerosas “relações naturais”, poderia dizer Qorpo-

Santo), penetrar em sua intimidade. Fazer circular um diálogo.

A crítica desempenha um papel na intertextualidade, como “outro”. Ela se loca-

liza em uma das direções possíveis que o sentido aponta. Mas está necessariamente situ-

ada no presente, em seu presente. Tempo condicionado na e pela história. A crítica freu-

diana só é possível depois de Freud, mas Édipo e Hamlet já há muito exercitavam suas

virtualidades. É da captura de uma virtualidade que a crítica constrói seu texto, no entre-

cruzar de suas condições de pensamento com as linhas multidirecionais (e sempre proli-

ferantes) da obra. O horizonte de possibilidades do crítico é, portanto, tão amplo quanto

o da obra. O diálogo se situa numa zona de risco: o crítico, preso às condições de pen-

samento de seu tempo, vive o desejo de aprisionar a obra. Desejo destinado ao malogro:

a legitimação ou deslegitimação não é trabalho dele, mas da própria obra, na plenitude

de sua incontrolabilidade.

É nestas dimensões que desejamos retomar a crítica dedicada ao teatro de Qorpo-

Santo. Compreender como se situou ela para com as relações obra/texto, texto/leitor,

texto/espectador. Indagar sobre esses papéis e seus desempenhos. Colocar o crítico no

lugar de um personagem. Para isso, citaremos alguns exemplos tanto de crítica jornalís-

tica como de trabalhos acadêmicos sobre o teatro do louco de Vila do Triunfo. É com

comentários a esse material que esperamos entrar na discussão.

Comecemos por Yan Michalski, em entusiástico artigo datado de 8/2/1968 e pu-

blicado no Jornal do Brasil. Dava-se a primeira apresentação de Qorpo-Santo fora do

Rio Grande do Sul. Depois de mencionar a originalidade e o caráter de provável “pre-

cursor mundial do teatro do absurdo”, antecedente em décadas a Alfred Jarry, Yan passa

a descrever o que pensa ser o mais importante:

[...] dentro do mais delirante clima de aparente loucura, ele desfecha impiedosos golpes

contra alguns dos aspectos mais rançosos do seu meio ambiente. [...] Qorpo-Santo man-

tém a platéia num quase permanente estado de hilaridade, que não exclui, bem entendi-

do, uma reflexão crítica, nem impede que de vez em quando um misterioso vento de trá-

gica ameaça sopre na platéia, e nos faça pensar em Beckett e Pinter.57

Note-se a agudeza da abordagem, ao referir-se a uma “aparente loucura” com a

qual o espetáculo propõe sua crítica (que podemos dizer “de costumes”). Essa suposta

57

Apud CÉSAR, Guilhermino. Qorpo-Santo – teatro completo. Op. cit., “Introdução”.

Page 45: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

45

loucura não diz respeito, no comentário de Yan, ao estado mental do autor, mas a situa-

ções da própria linguagem. “Loucura” também relacionada com o humor satírico da

crítica social. É quanto ao “misterioso vento de trágica ameaça” que desejamos tecer

comentários mais extensos. A (justificada) euforia do momento provocou comparações

apressadas com os autores europeus do absurdo. A questão hoje se coloca em outros

termos: em se tratando de absurdo, qual o sentido do de Qorpo-Santo? Será o mesmo de

Beckett ou Ionesco?

Conforme têm ressaltado unanimemente os estudiosos, o chamado teatro de ab-

surdo versa sobre o desamparo do homem diante da falência da religião, da fé no pró-

prio homem, do progresso etc. Angústia que se dá no plano da constatação da falta de

sentido da existência. A morte de Deus é a morte da transcendência – sentido unificador

de todas as coisas, explicação e fim de tudo. O próprio riso de Ionesco ou Beckett é iro-

nia à falta de sentido, o que o aproxima do trágico. Tragédia do exílio no mundo; tragé-

dia da nostalgia de sentido, nostalgia de transcendência. A espera de Godot ocorre (ou

transcorre) na ausência de esperança na vinda de Godot.

O absurdo de Qorpo-Santo dá-se, ao contrário, no âmbito da imanência. Tudo se

passa na mais plena adesão ao caráter infinito da existência, encontrado no bojo mesmo

da finitude. Na obra, a vida se encerra nas absurdidades do cotidiano (pois se trata de

paródia da comédia de costumes) e sua proliferação de sentidos. Não há ausência, mas

abundância de sentidos. Opção que aparece no próprio nome escolhido por Joaquim

José de Campos Leão para o personagem-autor que decidiu desempenhar: Qorpo-Santo,

em contraste com um possível espírito santo (as minúsculas são intencionais). No volu-

me II da Ensiqlopédia ou Seis mezes de uma enfermidade, à página 16, encontra-se:

Se a palavra corpo-santo foi-me infiltrada em tempo em que vivi completamente separa-

do do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma palavra hei sido impeli-

do para esse mundo.58

Santidade, pois, avessa à castidade.Escolha de uma santidade que se expressa

tanto pela ausência como pela presença de contato com o corpo feminino. É santo o cor-

po em suas relações com o corpo; “relações naturais”. Tomada de posição pela imanên-

cia.

58

Apud CÉSAR, Guilhermino. Qorpo-Santo – teatro completo. Op. cit., “Introdução”.

Page 46: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

46

Guilhermino César, editor crítico do teatro de Q.S. – a quem devemos a reunião

das dezessete peças -, faz, em sua introdução, um também entusiástico comentário sobre

aquele que considera louco, porém gênio:

Para exemplificar – o primeiro ato de Eu sou vida; eu não sou morte, onde vejo, se me

permitem, uma obra-prima. Tem ela, na sua extrema brevidade, o que basta para agra-

dar, para existir como valor dramático: linguagem adequada, verossimilhança, veemên-

cia, espírito.59

A velha “verossimilhança” aristotélica, filha do conceito de mimesis, impera, a-

qui, ao lado da “linguagem adequada”. Preso ainda a uma estética normativa, o crítico

não se dá conta de que não se trata, em Q.S., de imitar uma idéia, pois, “idéia”, no senti-

do platônico, não há. À arte já não cabe adequar-se a nenhum a priori, a nenhum mode-

lo. “Saber armar um conflito” não tem nenhum significado quando noções como “ação”

perderam sua vigência, conforme vimos no capítulo dedicado ao discurso de Q.S. Mais

adiante, apesar do enaltecimento feito ao dramaturgo a partir de pressupostos realistas,

Guilhermino César chama atenção para a originalidade de uma estética oposta:

O teatro nonsense, só descoberto pelos europeus depois de Jarry, é criação sua. Quando

estudamos, na dramaturgia moderna, a ação de Ionesco, comparada com a de Qorpo-

Santo, assistimos com este último à irrupção violenta do gênio.60

A condição de criador do não-senso (duvidosa, pois não-senso sempre houve no

universo do grotesco) faz-se sob a égide da loucura e não no interior de uma problemáti-

ca da linguagem. Por este raciocínio, Q.S. só teria libertado seu “gênio” porque não teve

as censuras costumeiras a um homem de “bom senso”. Ou, inversamente, só liberou sua

loucura por ser um gênio. Mais ainda: só um louco ousaria tocar nas feridas da moral

sexual da sociedade em que viveu. Outra vez, o diálogo não se dá com o texto, mas com

o autor, ou melhor, com sua suposta loucura.

A dissertação de mestrado de Flávio Aguiar, Os homens precários – inovação e

convenção na dramaturgia de Qorpo-Santo, foi defendida na Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da USP, no início dos anos 70. Tem a euforia dos primeiros

tempos de descoberta da obra de Q.S. e a importante função de levantar a bibliografia de

e sobre ele. Além disso, estuda o contexto do teatro brasileiro entre a Monarquia e a

República. Utiliza-se das discussões em voga na década de 70 sobre o teatro do absurdo.

59

CÉSAR, Guilhermino, op. cit., p. 56. 60

Idem, p. 57.

Page 47: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

47

Trata-se de trabalho de grande importância como abertura e prospecção para futuros

estudos. Justifica-se, pois, estar citada em todos (ou quase todos) os trabalhos posterio-

res.

Escritos sobre um Qorpo – também dissertação de mestrado defendida na USP -,

de Maria Valquíria Alves Marques, busca mapear alguns aspectos do conjunto da obra

de Qorpo-Santo. Trata-se, para Maria Valquíria, de um diário

constituído de pequenos textos sobre política, medicina, direito, astronomia, culinária,

filosofia, em doses homeopaticamente semióticas. Um calidoscópio para ser lido ao sa-

bor do acaso. Assim é sua Ensiqlopédia.61

Espaço que Maria Valquíria define como de exercício dos complexos de Édipo e

de castração, origens do “Santo”. A escrita qorpo-santesca não propõe a construção de

um novo modo de representar (ou desconstruir a representação):

É a eterna representação de seu “romance familiar” que está por trás de seus

escritos, em que ele encena a possível articulação de seu fantasma com seu desejo.

Entramos no discurso psicótico.62

Aqui se colocam dificuldades. O que Valquíria chama de “discurso psicótico”

será suficiente para o diagnóstico dos complexos apontados? A construção de persona-

gens (de acordo com o que já vimos em outro capítulo deste trabalho) dá lugar, no dis-

curso teatral, à instauração de uma cena psicanalítica? Personagens de tal modo esque-

máticos servem para análises deste teor? Ou se trata de uma recusa, por parte de Maria

Valquíria, do enfrentamento com o discurso poético e teatral? Enfrentamento com a

saúde ou a sua procura. A psicanalização da literatura, conforme Deleuze, é “infantiliza-

ção” dela: redução a uma procura de pai-mãe. A literatura nasce da ultrapassagem do

EU-TU, no caminho da expressão da terceira pessoa, desentronizando a primeira e a

segunda. Não uma terceira pessoa genérica, mas “uma singularidade no mais alto nível:

um homem, uma mulher, um animal, uma barriga, uma criança...” A potência do artigo

indefinido realiza-se na ascese de um indivíduo. Processo que, interrompido, resulta na

psicose, não na literatura.

A literatura aparece então como uma empreitada de saúde: não que o escritor tenha for-

çosamente uma grande saúde [...], mas ele goza de uma irresistível pequena saúde que

vem daquilo que ele viu e ouviu das coisas muito grandes para ele, muito fortes para ele,

irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe no entanto devires que uma robusta sa-

61

MARQUES, Mria Valquíria Alves. Escritos sobre um Qorpo. Anna Blume, São Paulo, 1993, p. 13. 62

Idem, p.32-3.

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48

úde dominante tornaria impossíveis. Daquilo que ele viu e ouviu, o escritor retorna com

os olhos vermelhos, os tímpanos perfurados. Que saúde bastaria para libertar a vida por

todas as partes onde ela está aprisionada pelo e no homem, pelos e nos organismos e os

gêneros?63

Esse delírio é, por excelência, libertador: da linguagem, do povo que se constrói

livre no processo aberto pelo escritor em gozo de sua “pequena saúde”. Seu delírio não é

doença que planeje uma raça grandiosa (fascismo), mas luta precisamente contra ela.

A estudiosa comenta trecho “autobiográfico” em que Q.S. fala de reminiscências

infantis: “[...] o qual ao som de palavras que ferirão começou a desenvolver-se guiando

meus passos”. Grifamos o termo “ferirão”. Diz Maria Valquíria, depois de tecer comen-

tários sobre manifestações inconscientes:

O “santo” iria subir ao céu ao som de palavras que o “ferirão”. A conjunção

verbal confunde o passado e futuro nessa articulação que procura conservar a presenti-

dade do som. A letra como corpo gráfico da imagem acústica vai se tornar seu cavalo de

batalha na representação de suas pulsões.64

Há um detalhe não percebido por Valquíria. A grafia praticada no século XIX

para o pretérito perfeito na terceira pessoa do plural confunde-se com a da mesma pes-

soa no futuro do presente. Freqüentemente, o acento tônico paroxítono é omitido (ou

pelo autor ou pelo copista), o que resulta numa absoluta coincidência de grafias para os

dois tempos verbais. Assim: ferirão por ferírão (feriram). Não se trata, portanto, de uma

confusão de tempos onde o que impera é o presente sonoro de um verbo. Até porque,

mesmo escrevendo sem o acento (para cujo uso não havia norma), a sonoridade é a da

flexão do verbo ferir na terceira pessoa plural do pretérito perfeito, revelada pelo con-

texto. O uso do acento – conforme atestam manuscritos e edições de outros autores do

mesmo período – mostra, muitas vezes, a abertura e o fechamento de vogais e não a

tonicidade. Conclui-se que o problema desloca-se do terreno “psicanalítico” para colo-

car-se decididamente no campo da crítica textual. Ao definir a produção de Q.S. como

“Arte psicótica, sem dúvida”,65

Valquíria deixa de perguntar-se sobre os conceitos de

arte e psicose. Deixa de argüir sobre a possibilidade do texto de dialogar com a cultura

onde se insere, argüição na qual surgirá inevitavelmente a questão sobre a contraface

63

DELEUZE, Gilles. Critique et clinique. Op. cit., p. 14. 64

MARQUES, Maria Valquíria Alves. Op. cit., p. 79. 65

Idem, p. 91.

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49

social e sua saúde. Evita os problemas propriamente ligados à linguagem e à produção

de arte.

Vale também perguntar qual é ou quais são as exigências da crítica com relação

à obra. A atitude de buscar somente no autor a fonte de sentidos dispensa o crítico de

exigir do seu próprio texto o diálogo com o texto que enseja o seu trabalho. A figura do

autor traz para o crítico um universo já mapeado (como se não houvesse autonomia en-

tre autor e obra). Daí a identificação de influências, levantamento dos problemas históri-

cos que supostamente originaram ou contextualizaram o texto etc. O crítico navega,

então, através do mundo dos significados, inseridos e referidos em conceitos universais,

sem dar-se conta que o significado não coincide nem fundamenta a verdade sem admitir

em seu seio, ao mesmo tempo, o erro. Está em evidência o que Deleuze chama de “con-

dição de verdade”: a verdade “não se opõe ao falso, mas ao absurdo: o que é sem signi-

ficação, o que não pode ser verdadeiro nem falso”66

.

A solução da “loucura” de Qorpo-Santo pode relacionar-se com a busca, por par-

te dos críticos, de um Eu que fundamente o discurso. “Eu” que, primeiro em relação aos

conceitos e ao mundo, deixe implícitas as sig-nificações, num terreno já pressuposto.

Assim, centrada no autor (um Eu), a discussão reporta-se a uma suposta verdade do dis-

curso: se as proposições são falsas, o autor (aquele que fala) é louco. Mas, diz também

Deleuze:

O Eu não é primeiro e suficiente na ordem da fala senão na medida em que en-

volve significações que devem ser desenvolvidas por si mesmas na ordem da língua. Se

estas significações se abalam, ou não são estabelecidas em si mesmas, a identidade pes-

soal se perde [...]67

No contexto deste significado fugidio, é necessário que nos coloquemos acima

da “condição de verdade”, já que não se trata de lidar com o verdadeiro ou o falso de

uma proposição, mas com o seu sentido, algo de incondicionado na condição de verda-

de. Algo que habita a superfície das coisas, acontecimento irredutível do “expresso da

proposição”: a expressão. Mas não se confunde com as proposições; situa-se na frontei-

ra entre elas e as coisas. “Não perguntaremos, pois, qual é o sentido de um acontecimen-

to: o acontecimento é o próprio sentido”68

.

66

DELEUZE, Lógica do sentido. Op. cit., p. 16. 67

Idem, p. 18. 68

Idem, p. 23.

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50

Com estas considerações, podemos correr o risco de afirmar que o sentido do a-

contecimento no teatro de Qorpo-Santo substitui o da ação (causalidade, imbricação de

implicações e conclusões). A coerência (tida como condição de verdade do discurso

teatral) entre o princípio, o meio e o fim dá lugar à fragmentação: sentidos multidirecio-

nais não submissos à ordem do tempo cronológico. É preciso instalar-se na ordem dos

paradoxos (criados até mesmo pelas significações) e sua potência geradora de sentidos.

Potência que desdenha as noções de universal, particular, afirmação, negação. Pois to-

dos esses opostos relacionam-se com as significações. O sentido ultrapassa os opostos

porque neutraliza em seu ser todos eles ao mesmo tempo. Exterioridade e interioridade

desfazem-se num espaço aberto, como o de As relações naturais:

TRUQUETRUQUE (batendo em uma porta) – Estará ou não em casa? A porta está fe-

chada, não vejo (vigia no buraco da chave) se é por dentro se é por fora que está a cha-

ve [...]

Deleuze chama atenção para o fato de que absurdo (ausência de significação) e

não-senso não se confundem.

É que os objetos impossíveis – quadrado redondo, matéria inextensa, perpetuum mobile,

montanha sem vale etc. [...] são extra-existentes, reduzidos a este mínimo e, enquanto tais,

insistem na proposição.69

Trata-se do sentido do não-senso, relação intrínseca, co-presença. Cabe aos sig-

nificados determinar coerências; os paradoxos se realizam nos vazios de significação,

operando para gerar contradições. O sentido é produzido pela circulação do não-senso,

voltando-se ora para o significante, ora para o significado. Não se trata, pois, chama

atenção Deleuze, de uma filosofia do absurdo (Camus): aí o não-senso é pura oposição

ao sentido, sua insuficiência ou deficiência. Na estrutura do texto, o sentido é abundan-

te, excessivo: não-senso que se opôs à ausência de sentido para fazê-lo proliferar como

presença.

É dessa produção de sentido que vivem o teatro e a poesia de Qorpo-Santo; não

como origem ou princípio (Deus), nem como algo a ser recuperado. O sentido está no

efeito de colocar em cena marido e amante sem que se saiba quem é um ou outro (Eu

sou vida; eu não sou morte), mas ambas as possibilidades como desafios de captação

(ou captura). A sátira social ganha, assim, a configuração de um carnaval de sentidos,

69

Idem, p. 37.

Page 51: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

51

onde a moralidade é desmascarada e remascarada continuamente: filha/amante (Mateus

e Mateusa), família/bordel (As relações naturais). O texto desgramaticaliza-se e nova-

mente se gramaticaliza. O sentido e o não-senso residem (revezando-se ou coexistindo)

na superfície do papel e do palco.

Realmente, falta, ao teatro de Qorpo-Santo, “bom senso” (direção única, seta do

tempo dirigindo-se do passado mais diferenciado ao futuro menos diferenciado). Falta

também “senso comum” (que identifica o diferente sobre o pano-de-fundo do Mesmo;

unidade do Eu que sabe, percebe, imagina). Complementaridades que aparentemente

estabelecem a linguagem; no entanto, a sua ausência opera a doação de sentidos, na po-

tência plena dos paradoxos. Discurso que desdenha Cronos (“bom senso”) e instala-se

em Aion: presente sempre esquivado; linha que salta de um acontecimento a outro, pas-

sado e futuro ao mesmo tempo. Assim, em Um parto:

MELQUÍADES – [...] Que judias! São (abrindo o relógio) nove horas do dia, cinco da

tarde, duas da noite, seis da madrugada, e ainda dormem! – É muito, muito grande, (fi-

gurando com as mãos o tamanho) grandíssimo dormir! [...]

Não temos a pretensão de diagnosticar psicoses em Qorpo-Santo; faltam-nos ins-

trumentos. Por outro lado, interessa-nos argüir sobre as possibilidades cênicas desse

estranho teatro que coloca em causa os seus fundamentos: lugar que faz ver um aconte-

cimento ficcional, mediante a presença de atores a executá-lo. Qual a natureza desse

“acontecimento ficcional” em Q.S.? No entanto, algumas palavras devem ser ditas sobre

sua suposta loucura.

Conforme aponta Foucault em As palavras e as coisas, o louco e o poeta consti-

tuem duas experiências culturais básicas no Ocidente, a partir do advento da moderni-

dade e a ruptura promovida por ela entre a linguagem e as coisas. O louco é aquele per-

sonagem (freqüentador do barroco e da psiquiatria do século XIX) que habita a analogia,

jogando sem regras com as noções do Mesmo e do Outro. Ele é Diferente por não co-

nhecer a Diferença. O poeta reconhece as diferenças, mas arbitra a semelhança ou a des-

cobre sob o fundo mesmo da diferença. Face a face um com o outro, louco e poeta trafe-

gam nos limites (o marginal e o arcaico) das identidades e diferenças:

[...]o louco garante a função do homossemantismo: reúne todos os signos e os preenche

com uma semelhança que não cessa de proliferar. O poeta garante a função inversa; sus-

tenta o papel alegórico; sob a linguagem dos signos e sob o jogo de suas distinções bem

determinadas, põe-se à escuta de “outra linguagem”, aquela sem palavras nem discursos,

Page 52: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

52

da semelhança. O poeta faz chegar a similitude até os signos que a dizem, o louco carre-

ga todos os signos com uma semelhança que acaba por apagá-los.70

A nova experiência de linguagem realizada pelo poeta liberta-o, libertando seu

discurso; a experiência do louco aprisiona-o em similitudes que ele não opera: é percor-

rido por elas. Aprisionamento que o coloca em solilóquio, não em interlocução.

Ao traçar considerações sobre a linguagem do esquizofrênico Antonin Artaud,

Deleuze chama atenção para a natureza devoradora do não-senso artaudiano: ele tragou

todo sentido. Sob a aparente semelhança entre as figuras do poeta e do louco, diferenças

decisivas: a linguagem do poeta dá-se na superfície (zona de fronteira entre o indivíduo

e a cultura), enquanto a do esquizofrênico, na profundidade de seu corpo. Tudo acontece

como se fosse na carne, afetando-a e mortificando-a; a palavra perdeu sua possibilidade

de autonomizar-se em relação ao sujeito (cujo suporte é o corpo) que a proferiu. A de-

signação torna-se vazia; a manifestação, indiferente; a significação, falsa. Para o poeta, o

campo de luta com a palavra é a linguagem; para o esquizofrênico, trata-se de destruir a

palavra e fazer triunfar a paixão do corpo. Corpo dilacerado (para o qual a própria pala-

vra é estilete), tornado ele mesmo excremento; aí não há lugar para o grotesco (ultrapas-

sagem de limites), pois o limite se aboliu na ausência de superfície.

Produzir sentido, não aprisioná-lo, são os esforços do poeta. Liberar a lingua-

gem, não viver sua paralisia. A relação psicanálise/obra de arte não se dá

Certamente, tratando, através da obra, o autor como um doente possível ou real, mesmo

se lhe atribuímos o benefício da sublimação. Não é, certamente, “fazendo a psicanálise”

da obra. Pois os autores, se são grandes, estão mais próximo de ser médico do que doen-

te. Queremos dizer que eles próprios são admiráveis diagnosticistas, admiráveis sinto-

matologistas.71

Um desses “clínicos da civilização”, Qorpo-Santo cria, com sua obra, um espaço

onde ficam expressas as mazelas sexuais e morais da sociedade brasileira do século

XIX. O esquizofrênico Artaud realizou em seu corpo o coroamento de suas obsessões

anais: morreu de câncer no reto. Qorpo-Santo, que fez de seu corpo uma decisão de i-

manência e de sua escrita uma paródia do romantismo, realizou a morte gloriosa de to-

dos os românticos: pela tuberculose. À maneira de Castro Alves ou Álvares de Azevedo

(para citar apenas apaixonados e tísicos nacionais), fez de seu próprio corpo uma obra

de arte; estetizou a morte. Mas, ao contrário daqueles juvenis ocasos que não esperaram

70

FOUCAULT, As palavras e as coisas, op. cit., pp. 64-5. 71

DELEUZE, Lógica do sentido. Op. cit., p. 244.

Page 53: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

53

sequer os vinte e cinco anos, a morte de Qorpo-Santo não é afirmação de sua subjetivi-

dade transcendente: ela afirma uma escrita (incorpórea) que se inscreve no corpo e dele

se desprende.

Uma terceira hipótese crítica pode auxiliar o trabalho do analista: o exame do es-

tatuto da arte e seus modos de acontecer. Para Alain Badiou, o século XX assiste ao

esgotamento das doutrinas que estabeleceram vínculos entre a arte e a filosofia. Trata-se

de vínculos: a) didáticos (Platão – a arte, sob vigilância da filosofia, teria seu lugar ga-

rantido na polis sob a condição de dar a conhecer a Virtude); b) clássicos (Aristóteles –

a arte é terapia através da “catarse”); c)românticos (Schelling, Nietzsche – a arte é en-

carnação; realização, no finito, da idéia filosófica abstrata). Tal esgotamento provoca

hoje “uma desesperada falta de laço entre a arte e a filosofia”72

. Um reatamento de laços

só será possível caso se reconheça a singularidade da arte, sua diferença com a ciência, a

política. A arte é processo: pensamento ativador de verdades irredutíveis a outras, inclu-

sive filosóficas. Mas a verdade da arte não se dá numa obra isolada; dá-se num processo

iniciado por um evento. A obra é um ponto da verdade do processo, “ponto-sujeito de

uma verdade artística”.73

A ação comunicativa das obras entre si e com a sociedade rea-

liza o que Badiou chama de “configuração artística”.

Se a arte é verdade singular, prossegue Badiou, ela condiciona a filosofia sem

deixar-se condicionar por esta, pois cabe às próprias configurações de arte pensar a si

mesmas nas obras que as compõem. A arte é, portanto, “pensamento do pensamento que

ela é”74

. O que confere aos eventos, obras e configurações uma total ausência de limites

e uma liberdade que se efetiva na mais completa imprevisibilidade.

Se a sociedade não pode demandar à arte que se pronuncie desta ou daquela ma-

neira segundo as mudanças que ela, sociedade, sofre, a arte pode, por seu lado, deman-

dar o seu deslindamento (embora não a sua decifração, como quer Barthes).

Ser vanguarda da vanguarda, ser teatro de absurdo muito antes do absurdo do sé-

culo XX é questão que o próprio processo de inserção da obra de Q.S. nessas configura-

ções será capaz de responder. E então o evento (advento) Qorpo-Santo revelará a sua

verdade.

72

BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do sujeito. Relume-Dumará, Rio, 1994, p. 25. 73

Idem, p. 27. 74

Idem, p. 29.

Page 54: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

54

AO APAGAR DAS LUZES

Estrelas do firmamento descem, e quais palitos os den-

tes limpam-me.

Q.S.

O teatro de Qorpo-Santo afirma-se como virtualidade radical. Sua lógica parado-

xal alimenta-se de desafiar as possibilidades do palco, sem reconhecer legitimidade em

nada que lhe seja externo. No lugar de toda norma, a única regra admitida por sua natu-

reza: estar sempre para além de todo limite. No lugar do velho “ridendo castigat mores”,

o riso grotesco. Riso antitrágico por excelência, não se vincula nem ao verdadeiro nem

ao falso, nem ao bem nem ao mal; suas relações são, como lembra Deleuze a respeito da

linguagem, com as condições de verdade. Situação de espreita em todas as direções, sem

se deter em nenhuma. Em sua imanência, o cômico rejeita qualquer modelo; ou aceita

todos com o único intuito de esgotá-los pelo ridículo.

Assim o teatro de Qorpo-Santo ri. E ri de quem pretenda detê-lo em definições.

Ri aniquilando e (re)inaugurando.

Nosso exame não acabou. A serpente morde a própria cauda. O círculo circula. E

circulando nos remete para as sempre proliferantes interrogações que lhe dão funda-

mento e razão de existir.

Da mesma forma que Impertinente sai da morte para argüir a vida, vamos ao tea-

tro para vê-lo a nos espreitar. Só pelo prazer de (re)fazer a cena.

Em pleno Maio de 1968, muitas cenas foram refeitas, muitas luzes se acenderam.

Poetas, filósofos, estudantes e loucos ganhavam as ruas de todo o mundo. Qorpo-Santo

surgia no Rio de Janeiro, nos palcos, nas arenas e na poesia:

Page 55: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

55

[...]

naquele inverno

o grupo Lire le Capital

reformulava a dialética anti-Hegel

e o estruturalismo continuava na onda

passando à frente de Bonnie & Clyde

sem desbancar Mcluhan, Chacrinha e o

teatro do absurdo institucionalizado

Qorpo-Santo é quem tinha razão

naquele maio.

Carlos Drummond de Andrade.75

75

Apud MARQUES, Maria Valquíria Alves. Op. cit., p. 29. A estudiosa cita, em pé-de-página, o título do

poema, “Relatório de maio”, publicado no Correio da Manhã, Rio, 26/5/1968.

Page 56: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

56

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Page 58: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

58

[PARA A “QUARTA-CAPA”]

Ser precursor do teatro do absurdo coloca sobre os ombros do morto o peso da tarefa de alçar um drama-

turgo brasileiro à alegre e ufanista posição de vanguarda da vanguarda.

***

Teatralidade situada entre a desconstrução do palco (desteatralização) e sua reafirmação (reteatralização).

Uma nova gramática que não se contenta em deter-se (deixar-se deter) por nenhum desses movimentos;

por nenhum modelo, porque quer continuamente remodelar-se.

***

Tendo em vista a já grande quantidade de ensaios, teses e dissertações universitárias provocados pela obra

do louco de Vila do Triunfo, é necessário agora retomar a discussão e repensar o já dito. São três os pon-

tos de vista centrais: 1)trata-se mesmo de um louco, portanto não há obra de arte; 2)louco, porém genial;

3)artista. Um denominador comum salta aos olhos: as considerações são feitas a partir do autor e não a

partir da obra.

***

O teatro de Qorpo-Santo afirma-se como virtualidade radical. Sua lógica paradoxal alimenta-se de desafi-

ar as possibilidades do palco, sem reconhecer legitimidade em nada que lhe seja externo. No lugar de toda

norma, a única regra admitida por sua natureza: estar sempre para além de todo limite. No lugar do velho

“ridendo castigat mores”, o riso grotesco. Riso antitrágico por excelência, não se vincula nem ao verda-

deiro nem ao falso, nem ao bem nem ao mal.

Page 59: Paradoxos de um comediante   Qorpo-santo

59

[FOTO DE C.G.]

Carmem Gadelha é professora do Curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação da UFRJ. Gra-

duada em Teoria do Teatro pela Universidade do Rio de Janeiro (UNI-RIO), é Mestre em Comunicação e

Cultura pela ECO. Atualmente conclui sua tese de doutoramento, na mesma instituição, com o tema O

corpo e o espaço no teatro. É autora de vários ensaios e artigos publicados em livros, jornais e revistas

especializados. Em parceria com Edwaldo Cafezeiro, publicou História do teatro brasileiro

(FUNARTE/UFRJ/UERJ, 1996). Da experiência como atriz, tem prazer em lembrar-se de Rasga coração,

dirigida por José Renato; e de Moço em estado de sítio, direção de Aderbal Freire Filho – ambos os textos

de Vianinha.

Paradoxos de um comediante: Qorpo-Santo é versão modificada de sua dissertação de Mestrado, realiza-

da com Bolsa de Estudos do CNPq e defendida em dezembro de 1996. O texto atual foi contemplado com

o primeiro lugar no I Concurso Nacional da ANDES-SN (Categoria Ensaio – Crítica de Arte), realizado

em 2000.

[FOTO DE Q.S.]

Nascido em 1829 (Vila do Triunfo – RS) e morto em 1883 (Porto Alegre), José Joaquim de Campos Leão

(Qorpo-Santo), anterior em décadas a Alfred Jarry (1873-1907), viria tornar-se “precursor do teatro do

absurdo”. Este título traz consigo não apenas a responsabilidade de definir o dramaturgo. Importa inserir

sua produção num circuito que reúne tantas diversificadas obras e procedimentos artísticos quantos pro-

blemas a respeito.

Foi poeta, “enciclopedista”, jornalista, professor e louco. Escreveu para o teatro:

As relações naturais, Mateus e Mateusa, Hoje sou um; e amanhã outro, Eu sou vida; eu não sou morte,

Um credor da Fazenda Nacional, Um assovio, Certa entidade em busca de outra, Lanterna de fogo, Um

parto, A separação de dois esposos, O marido extremoso; ou o pai cuidadoso, Uma pitada de rapé, O

hóspede atrevido; ou o brilhante escondido, A impossibilidade da santificação; ou a santificação trans-

formada, O marinheiro escritor, Duas páginas em branco, Dous irmãos.