Paradoxo Das Coisas Em Si Mesmas

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    GersonLuiz

    Louzado1

    O paradoxo das coisas em si mesmas

    I

    Em diferentes passagens da Esttica Transcendental, Kant estabelece, ou pre-tende ter estabelecido, que o espao e o tempo no convm s coisas em simesmas. Tal tese intrinsecamente conexa afirmao da idealidadetranscendental e da realidade emprica2 do espao e do tempo, bem como limitao de todo conhecimento especulativo da razo aos meros objetos daexperincia 3 e, por conseguinte, incognoscibilidade das referidas coisas emsi mesmas.

    O tratamento da contraposio central ao Idealismo Transcendental,

    Erscheinung versus Ding an sich selbst(e, correlativamente,phaenomenon versusnoumenon), tem sido, como se sabe, problemtico desde os tempos de Kant.No atual estado das coisas, tal distino tem sido usualmente submetida adois paradigmas de leitura que, tanto quanto parece, so pretendidos exaus-tivos e excludentes: as assim chamadas teorias dos dois mundos e do du-plo aspecto 4 .

    Segundo os adeptos da teoria dos dois mundos, a distino em questointroduziria uma diferena entre dois tipos de entidades. Os membros de umdos tipos (as coisas em si mesmas), malgrado sua incognoscibilidade (resultan-

    1 Depto. de Filosofia da UFRGS2 Isto , a validade objetiva relativamente ao que se pode apresentar sensibilidade.3 Kant, Crtica da Razo Pura, Bxxv-xxvi.4 Caracterizaes destes paradigmas so encontrveis, por exemplo, em Allison, Kants Transcendental

    Idealism(New Haven and London, Yale University Press, 1983), cap. 1 e em Idealism and Freedom(New York, Cambridge University Press, 1996), cap. 1, em Pippin, Kants Theory of Forms (NewHaven and London, Yale University Press, 1982), cap. 7, em Guyer, Kant and the Claims ofKnowledge (New York, Cambridge University Press, 1987) cap. 15, em Meerbote, TheUnknowability of Things in Themselves (em Beck (ed.), Proceedings of the Third International KantCongress, Dordrecht, D. Reidel Publishing Company, Synthese Historical Library, pp.415-423),entre outros. Convm, porm, observar que nos restringiremos, no que segue, s formulaesexpostas particularmente por dois intrpretes, Paul Guyer (em Kant and the Claims of Knowledge)e Henry Allison (em Kants Transcendental Idealism), representantes, respectivamente, da teoriados dois mundos e da teoria dos dois aspectos .

    o que nos faz pensar n019, fevereiro de 2006

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    te de sua insubmisso s condies formais da sensibilidade), desempenhari-

    am um certo papel na explicao das condies de possibilidade do conheci-mento emprico. Com efeito, a valer a assertiva kantiana de ser absurda asuposio das Erscheinungen, os apareceres5 , sem haver algo aparecendo6 , asditas coisas em si mesmas constituiriam o real sendo responsveis, median-te sua interao com o aparato cognitivo do sujeito, pela produo do materi-al (Erscheinung) sobre o qual as operaes cognitivas seriam levadas a cabo7 .

    A adeso a um tal paradigma de leitura parece engendrar pelo menos duasconseqncias conexas particularmente nocivas filosofia do Idealismo

    Transcendental: (i) supor-se-ia um conhecimento substantivo das coisas emsi mesmas, postulando, concomitantemente, sua incognoscibilidade e,correlativamente, (ii) da restrio da matria de todo conhecimento empricopossvel aos apareceres (Erscheinungen), isto , ao material eminentementesubjetivo gerado na interao entre sujeito e coisas, derivar-se-ia o fracasso detoda pretenso de conhecimento da realidade (uma vez que apenas o conhe-cimento das coisas elas mesmas, parte seu nexo com os sujeitos cognoscentes,poderia contar realmente como conhecimento), resultando da seja o ceticis-mo, seja, quando levado s ltimas conseqncias, o idealismo emprico.

    De um modo geral, a perplexidade concernente distino entre aparecer(Erscheinung) e coisa em si mesma (Ding an sich selbst) e phaenomenon enoumenon , gerada pela leitura do Idealismo Transcendental sob a gide dateoria dos dois mundos, se deixa resumir sob a forma de um paradoxoexpresso por Guyer8 do seguinte modo:

    Mesmo aqueles que no negam a evidncia das asseres dogmticas de Kant,

    que coisas tais como so em si mesmas no so realmente espaciais e temporais,

    sempre tm sido rpidos em notar um paradoxo aqui. O conceito de uma coisa

    em si mesma, argumentam, no outro que o conceito de uma coisa da qual nada

    pode ser conhecido; contudo, mesmo uma assero negativa que uma coisa no

    realmente espacial ou temporal uma pretenso (claim) definida de

    5 Para a traduo de Erscheinung, reservaremos a expresso aparecer. De outra parte, emprega-remos parecer, aparncia ou, ainda, iluso para verter Schein, e fenmeno paraphaenomenon. Sobre isto, ver Rubens Rodrigues Torres Filho, Dogmatismo e Antidogmatismo:Kant na sala de aula, em Cadernos de Filosofia Alem, no. 7, So Paulo, USP, 2001, pp. 71-72.

    6 Kant, Crtica da Razo Pura, Bxxvi-xxvii. Ver, tambm, A251-252 e Prolegmenos, AK. 4:314-315.

    7 Cf. Allison, Kants Transcendental Idealism, pp. 3-5, onde procede a caracterizao da standartpicture. Igualmente, cf. Guyer, op. cit., pp. 333-335.

    8 Guyer, op. cit., pp. 335.

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    conhecimento. Assim, Kant no sustenta tanto que nada pode ser conhecido sobre

    as coisas em si mesmas quanto que algo conhecido, a saber, que conhecemosque as coisas em si mesmas no so espaciais e temporais, mesmo se no

    conhecemos nada mais sobre elas? No estamos envolvidos em um paradoxo,

    como F. H. Jacobi disse mesmo antes de Kant poder lanar a segunda edio da

    Crtica, uma vez que sem a pressuposio da coisa em si mesma no posso entrar

    no sistema, porm, com esta pressuposio no posso permanecer nele?

    Se a teoria dos dois mundos parece promover a reduo ao absurdo dafilosofia do Idealismo Transcendental, ao pretender derivar desse acognoscibilidade e a incognoscibilidade do real, a teoria do duplo aspecto,por seu turno, busca justamente resgatar (em maior ou menor grau, segundoas variantes em espcie deste paradigma exegtico) tal filosofia. Trata-se, aqui,de garantir que, nem o Idealismo Transcendental resulta incompatvel com oconhecimento da realidade (das coisas tais como realmente so), nem requerum suposto conhecimento do incognoscvel. Para tanto, introduz-se uma dis-tino de nveis e, conseqentemente, de sentidos em que, no conjunto dafilosofia crtica, utiliza-se o par de opostos aparecer (Erscheinung) e coisa

    em si mesma: o nvel emprico e o nvel transcendental9

    .Em contextos de uso emprico, a distino relevante no seria propria-

    mente aquela entre as coisas tais como so em si e por si mesmas e seusapareceres (Erscheinungen) aos sujeitos cognitivos. Isso, claro, se entender-mos por coisas tais como so em si mesmas as coisas absolutamente aparta-das das conexes extrnsecas que mantm ou podem vir a manter com sujei-tos de conhecimento. Importaria, antes, distinguir entre as coisas como real-

    9 A linguagem da experincia (...) inclui tanto a experincia ordinria quanto a cientfica.Ambas envolvem uma dis tino entre aquelas propriedades que um dado objeto efe tivamentepossui e aquelas que ele meramente parece possuir para um observador part icular sob certascondies empricas especificveis. O objeto como ele realmente (com suas propriedadesefetivas) a coisa em si mesma no sentido fsico ou emprico, enquanto a representao doobjeto possuda por um observador particular sob dadas condies o que chamado deaparncia ou simulacro do objeto. O ponto principal aqui simples-mente que, no nvel emprico, ou na linguagem da experincia, aparncias e coisas em simesmas designam duas classes distintas de entidades com dois modos distintos de ser. Osmembros da primeira classe so mentais no sentido ordinrio (cartesiano) e os da segunda sono-mentais ou fsicos, no mesmo sentido. No nvel transcendental, contudo, as coisas sototalmente diferentes. A a distino entre aparncias e coisas em si mesmas se refere primaria-mente a dois modos distintos em que coisas (objetos empricos) podem ser consideradas: ouem relao com as condies subjetivas da sensibilidade humana (espao e tempo) e ,assim,como elas aparecem, ou independentemente destas condies e, assim, como elas so em simesmas (Allison, Kants Transcendental Idealism, p. 8).

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    mente so para os sujeitos (os objetos empricos) e como elas apenas parecem

    ser a tais sujeitos sua mera aparncia ou, ainda, a iluso (Schein) do ser dascoisas. A distino, no nvel emprico, ento, entre coisas em si mesmas (osobjetos empricos que, no nvel transcendental ou filosfico, so ditosErscheinungen) e blosse Scheine. Identifica-se, por conseguinte, no nvelemprico, Erscheinungen e Scheine, os apareceres e as aparncias ou iluses.Como as aparncias ou iluses (Scheine) seriam as resultantes da afeco, porparte dos objetos, dos sistemas sensrios segundo as circunstncias particula-res dos indivduos, poder-se-ia dizer que, para fazer valer a distino entreparecer ser e ser, os objetos empricos devem ser dotados de naturezasque lhes so prprias. Naturezas determinadas independentemente, no dasrelaes cognitivas em geral em que possam entrar com os indivduos, masdas circunstncias particulares desses circunstncias essas que responde-riam pela variedade do que parece ser a cada indivduo. De resto, seriajustamente por possuir naturezas empiricamente determinadas edeterminveis para ns, via conhecimento, que os objetos empricos confi-gurariam um fundo comum capaz de arbitrar e justificar as diferenas deopinies (fundadas no que parece ser a cada um) acerca da realidade

    (emprica). Assim, no nvel emprico, a diferenciao entre o objetivo e osubjetivo, entre o conhecimento e a mera opinio, passaria pela distinoentre o que h de universal e necessrio e o que h de peculiar e contingenteem todo nexo ou relao sujeito-objeto10 .

    No nvel emprico, em suma, encontramos a identificao dos apareceres(Erscheinungen) com as aparncias (Scheine), distinguindo-os das coisas em si.Faz-se, pois, equivaler a oposio apareceres e coisas em si mesmas com aoposio aparncias (ou iluses) e coisas em si mesmas. Concebe-se, ade-mais, as Erscheinungen/Scheine como ideais, isto , como dados privados de

    uma mente individual11 e as coisas em si como reais, isto , como pertencen-tes ao domnio do real entendido como domnio dos objetos da experinciahumana, intersubjetivamente acessvel, espao-temporalmente ordenado12 .Faz-se, por conseguinte, a oposio apareceres (Erscheinungen) e coisas em simesmas corresponder a uma oposio ontolgica, entre modos de ser, umaoposio entre entidades mentais e no-mentais no sentido ordinrio demental13 . Desse modo, ao que parece, estaramos habilitados a sustentar

    10 Cf. Allison, op. cit., pp. 6-8.11 Allison, op. cit., p 6.12 Id., ibid., p. 7.13 Id., ibid., p. 8.

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    que, contrariamente ao que sugere a teoria dos dois mundos, o conheci-

    mento humano o conhecimento das coisas como realmente so. No nvelemprico, efetivamente, os opostos Erscheinung e Ding an sich selbst (e ,correlativamente, ideal e real) exprimiriam uma diferena entre tipos de enti-dades, porm no entre os tipos que pretendem os tericos dos dois mun-dos. No que diz respeito, contudo, recusa de uma suposta postulao dacognio do incognoscvel, a passagem ao nvel transcendental e, por conse-guinte, a elucidao dos sentidos filosoficamente relevantes a serem atribu-dos s expresses Erscheinung e Ding an sich selbst deve fornecer elementossuficientes para proporcionar a sada do embarao.

    Do ponto de vista filosfico ou transcendental, aquele no qual refletimossobre o uso emprico dos conceitos distinto, pois, do nvel emprico, emque usamos os conceitos acerca dos quais refletimos filosoficamente14 , pre-tendem os adeptos dos dois aspectos que aparecer e ser em si mesmo nodiscriminam tipos de entidades. Antes, constituem dois modos distintos detratar as mesmas coisas, a saber, aquelas coisas que so objetos do conheci-mento emprico. Assim, aquilo que, no nvel emprico, dito ser em si mes-mo, no nvel transcendental, dito aparecer. Ser objeto emprico, ser

    cognoscvel, , pois, ser-para-sujeitos cognoscentes. O requisito de identida-de quanto ao objeto e de diversidade quanto aos modos de considerao noapenas resulta conforme a algumas das assertivas kantianas15 , como habilita obloqueio da reduplicao do modelo emprico na esfera transcendental. Seno fossem as mesmas coisas, estaramos s voltas com a postulao de umdomnio supra-sensvel de entidades (as coisas em si mesmas) constituintesda realidade para alm da pseudo-realidade emprica (os apareceres) talcomo pretende a teoria dos dois mundos, no por acaso acusada de confun-dir o emprico com o transcendental16 .

    Uma vez assumida, no nvel transcendental, a diferena entre coisa em simesma e aparecer (Erscheinung) como afeita antes ao modo de consideraoque ao alvo da considerao, temos que no se trata de distinguir coisascognoscveis e coisas incognoscveis, nem propriedades cognoscveis eincognoscveis de uma mesma coisa. Trata-se, antes, de distinguir o que ,segundo a diversidade dos modos de considerao, passvel de ser dito deuma e mesma coisa. Relativamente a um dado modo de considerao (en-quanto submissa s condies unicamente mediante as quais pode ser dada

    14 Cf. Meerbote, op. cit., p. 149.15 Como, por exemplo, em Kant, Crtica da Razo Pura, Bxix, xxvii-xxviii, A42 /B59, B306.16 Cf. Allison, op. cit., pp. 6, 8, 9-10.

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    aos sujeitos de cognio), passvel da atribuio de espao-temporalidade e

    de cognio, sendo concebida, pois, como um aparecer (Erscheinung). Relati-vamente a outro, onde considerada (mas no dada) parte de tais condiescognitivas, incapaz de uma tal atribuio de sorte que conceb-la comocoisa em si conceb-la fora da relao que unicamente a habilita ao conhe-cimento17 . Que as coisas se passem desta maneira parece ser justificado, pelomenos, pela seguinte razo: todo uso substantivo das expresses aparecer eser em si mesmo implica ou dois mundos (caso em que se supe introduzirdistino entre tipos de entidades) ou contradio caso se persista na pre-tenso de satisfao do requisito de identidade: uma mesma coisa tal e tal eno-tal e tal18 . Na forma como so caracterizados os modos de considerao,a noo de Erscheinung, ento, tida por primria e a de Ding an sich selbstporderivativa ( a considerao da coisa abstrao feita de sua sujeio a umaparte do conjunto sensvel-intelectual das condies cognitivas humanas),onde a assuno da ordem inversa redundaria na importao da tese dos doismundos pela positivao da noo de coisa em si mesma (e, portanto, a noode aparecer resultaria abstrativa uma opo por ignorar o que faria as coisasserem o que realmente so). O suposto deslocamento, no nvel transcendental,

    das expresses aparecer e ser em si mesmo de seu emprego substantivo(como caracterizao da coisa) para um emprego adverbial qualificador danatureza, no da coisa visada, mas da considerao pela qual se visa, junta-mente com a prioridade conferida primeira delas parece, porm, tornartrivial a assertiva de que nenhuma coisa, considerada como em si mesma, cognoscvel19 . Considerar uma coisa abstrao feita dos nexos que a habili-tam cognio seria consider-la enquanto incognoscvel20 .

    17 Cf. Allison, op. cit., pp. 240-242.18 Cf. Allison, op. cit., pp. 239-241.19 Acerca disso, Guyer (op. cit., p. 336) afirma : Allison tambm rejeita a antiga crtica que Kant

    inconsistente em asserir positivamente tanto que as coisas em si mesmas no so espaciais etemporais quanto que absolutamente nada conhecemos sobre as coisas em si mesmas. Ao contr-rio, Allison alega, o prprio conceitode coisas em si mesmas um conceito de coisas que no soespaciais e temporais, assim, embora Kant pudesse ser inconsistente ao asseverar qualquer pro-posio sinttica sobre as coisas em si mesmas, para ele, asseverar apenas que elas no soespaciais e temporais asseverar uma proposio analtica incua, essencialmente reiterandosua definio .

    20 Cf. Allison, op. cit., p. 7. Embora possa parecer estranho pretender que abstrativamente passe-mos de um conceito para seu oposto contraditrio, justamente isso que Allison pretende.Veja-se, por exemplo, Idealism and Freedom, onde a noo filosfica de coisa em si consideradaser obtida mediante a abstrao das condies da sensibilidade humana (p. 7), a partir da noode aparncia e o resultado o conceito de no-aparncia (p. 16).Veja-se, igualmente, Allison, The Non-spatiality of Things in Themselves for Kant, em Journal ofthe History of Philosophy, no. 14, 1976, p. 320.

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    Correlativamente ao deslocamento das noes de aparecer e de coisa

    em si mesma, encontraremos os conceitos de real e de ideal redefinidos:ideal atinente ao que h de universal e necessrio, logo, a priori, nascondies do conhecimento humano; real, por seu turno, tudo o quepode ser caracterizado e referido independentemente de quaisquer dascondies a priori sensveis de nosso conhecimento de sorte a podermosdizer que um objeto transcendentalmente real , por definio, um obje-to no-sensvel ou noumenon21 , onde, preciso que se observe, noumenondeve ser entendido como noumenon em sentido negativo, pelo qual Kantsignifica simplesmente o conceito de uma coisa enquanto no um obje-to de nossa intuio sensvel22 .

    II

    Se aceitarmos pelo menos as linhas gerais o que foi at aqui apresentado, pode-mos reconsiderar o paradoxo da coisa em si frente aos resultados obtidos.

    A fim de resgatar a fi losofia do Idealismo Transcendental das objeesoriundas da teoria dos dois mundos, adeptos do paradigma dos dois as-pectos pretendem introduzir diferenas de sentido no emprego das expres-ses Erscheinung e Ding an sich selbst. Tais diferenas de sentidocorresponderiam a diferentes nveis de anlise: emprico e filosfico. Dessamaneira, as mesmas coisas que so, em sentido emprico, coisas em si mes-mas e, em sentido filosfico, consideradas como apareceres (Erscheinungen),so cognoscveis. Por outro lado, ainda em sentido filosfico, resulta analticode considerar uma coisa como em si mesma a considerao desta coisa comoincognoscvel. Em vista disso, nada de errado haveria em dizer das coisas

    que, enquanto em si mesmas consideradas, so no-espaciais e no-tem-porais (ou, o que parece ser indiferente23 , no so nem espaciais nemtemporais), que so, portanto, incognoscveis. Que elas sejam no-espaci-ais, no-temporais e no-cognoscveis derivativo da natureza ou modo daconsiderao e, se configura conhecimento saber que so no-assim (ou, queno so assim), conhecimento relativo ao modo pelo qual se as considera, eno a elas mesmas. Podemos, pois, dizer que tanto verdadeiro que as coisas

    21 Allison, op. cit., p. 7.22 Id., ibid., nota 16, p. 7. Note-se que Allison toma pelo mesmo ser objeto no-sensvel e no

    ser objeto de intuio sensvel .23 Veja-se, por exemplo, Allison, op. cit., caps. 1, 5, 11.

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    em si mesmas so, empiricamente falando, realmente cognoscveis, quanto

    verdadeiro dizer que, transcendentalmente falando, so incognoscveis.Resulta interessante comparar tal soluo com aquela engendrada por Paul

    Guyer. Guyer sugere igualmente no ter Kant pretendido, com suas afirma-es concernentes idealidade do espao e do tempo, gerar semelhante para-doxo. De fato, o tipo de conhecimento implicado na afirmao da no-espacialidade e no-temporalidade das coisas em si mesmas seria, diz Guyer,filosfico, por meio de argumentos, e no sinttico de primeira ordem, pormeio de intuies e conceitos24 . Assim, bem ou mal, Kant permitiria que asmesmas coisas fossem incognoscveis, em um tipo de conhecimento, ecognoscveis, em outro. Em ambos os casos, segundo os paradigmas dos doismundos e dos dois aspectos, busca-se a distino de sentidos entre as ex-presses diretamente envolvidas como escapatria do paradoxo, coisas em simesmas para uns, conhecimento para outros.

    O que resta a considerar se uma soluo mais simples e conforme a letrade Kant no pode ser alcanada. Particularmente, se levarmos em conta apossibilidade de um dizer que, ao dizer de uma coisa que ela no assim(antes que dizer que no-assim), no passa por uma pretenso de conheci-

    mento acerca da coisa. Se conseguirmos isto, entenderemos, talvez, que pormeio de um juzo negativo, justamente por este no constituir uma pretensode conhecimento, teremos pelo menos evitado um erro.

    III

    bem conhecida a afirmao kantiana concernente ontologia: o pomposonome de uma ontologia deveria dar lugar quele mais modesto de analtica do

    entendimento puro25

    . Contudo, menos comentadas so as passagens ondeKant parece fazer apelo aos conceitos fundamentais da velha ontologia26 . Se,de fato, um reaproveitamento de tais conceitos levado a cabo, a discussorelativa a uma suposta duplicao ontolgica resultante da contraposio en-

    24 Cf. Guyer, op. cit., p. 336.25 Cf. Kant, Crtica da Razo Pura, A247/B303.26 Em Kant, op. cit., A290-292/B346-349. verdade que Kant afirma no ser isso algo de particular

    relevo, sendo necessrio apenas para a completude do sistema. Porm, como veremos no quesegue, a tbua da diviso do conceito de nada (=0) constitui um excelente instrumento para orealce da diferenciao, efetuada na seo Do fundamento da distino de todos os objetos em geralem phaenomena e noumena(Kant, op. cit., A235-260/B294315), entre noumenon em sentido nega-tivo enoumenon em sentido positivo.

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    tre aparecer e coisa em si (e, correlativamente, entre fenmeno e noumenon)

    teria apenas a ganhar com a investigao de tais passagens27 .Somos, pois, ao final da Analtica Transcendental28 , apresentados tabela

    das divises do conceito de nada (Nicht): o nada=0 dito de muitas maneiras,ens rationis, nihil privativum, ens imaginariume nihil negativum29 . Segundo Kant,malgrado ser a distino entre possvel e impossvel o ponto de partida usualde uma filosofia transcendental, justamente por consistir tal distino em umadiviso e por toda diviso pressupor um conceito dividido, um conceito maisalto tem de ser dado, e este o conceito de um objeto em geral (tomadoproblematicamente, sem decidir se algo ou nada)30 . Tal conceito, por seuturno, em conformidade com as categorias (que so os diferentes modos de

    27 1) Aos conce itos de todo, mui tos e uno, ope-se aquele que suprime tudo, isto , nenhumacoisa; e assim o objeto de um conceito para o qual no se pode obter absolutamente nenhumaintuio correspondente = nada , isto , um conceito sem objeto, como os noumena,que no podem ser contados entre as possibilidades, embora nem por isso tenha que fazer-sepassar por impossveis (ens rat ionis), ou como porventura certas novas foras fundamentais,que so pensadas, em verdade sem contradio, mas tambm sem exemplo da experincia, nopodendo por isso ser contadas entre as possibilidades. 2) A realidade algo; a negao nada,a saber, um conceito da falta de um objeto, como a sombra, o frio (nihil privativum). 3) Asimples forma da intuio, sem substncia, no em si mesma um objeto, mas a condiomeramente formal do mesmo (enquanto aparecer ), como o espao puro e otempo puro, que, na verdade, so algo como formas de intuir, mas no so elas mesmasobjetos susceptveis de intuio (ens imaginarium). 4) O objeto de um conceito que se contra-diz nada, pois o conceito nada, o impossvel, como por exemplo, a figura retilnea de doislados (nihil negativum). A tbua desta diviso do conceito de nada (pois a diviso paralela aesta de algo segue-se por si) teria, por isso, que ser disposta da seguinte maneira: Nada como:1. Conceito vazio sem objeto ens rationis; 2. Objeto vazio de um conceito nihil privativum ; 3.Intuio vazia sem objeto ens imaginarium ; 4. Objeto vazio sem conceito nihil negativum(Kant, Crtica da Razo Pura, A290-292/B346-348).

    28 Kant, op. cit., A290/B347.29 Em uma das raras observaes encontradas entre os exegetas acerca de uma tal diviso, consta-

    tamos: Esta curiosa e engenhosa classificao dos vrios sentidos do termo nada de interessepara ns principalmente por sua primeira diviso: conceito vazio sem objeto. O ens rationispode ser melhor definido em sua distino a partir da quarta diviso: objeto vazio sem concep-o, nihil negativum. O primeiro uma Gedankending; o ltimo uma Unding. O primeiro, naverdade, embora no contraditrio, mera fico (bloss Erdichtung), e conseqentemente nodeve ser tomado como caindo no campo do possvel. O ltimo um conceito que destri a simesmo e que, portanto, est em conflito direto com o possvel. O ens rationis inclui, Kantexplicitamente afirma, a concepo de noumena, que no deve ser contado entre as possibilida-des, embora no deva, por esta razo, ser igualmente declarado impossvel. Kant deve estartomando aqui noumena no sentido positivo. Como de costume, a tentativa de Kant em obterparalelos para as quatro classes de categorias fracassa. O assim chamado nihil privativum e o ensimaginarium no caem propriamente na denotao do termo nada. Isto bem evidente nosexemplos que Kant cita. O frio to real quanto o oposto com o qual contrastado, enquantoque o espao puro e o tempo puro no so negativos nem mesmo em um sentido convencional(Kemp Smith, A Commentary to Kants Critique of Pure Reason, New York, Humanity Books,1999, p. 424).

    30 Kant, Crtica da Razo Pura, A290/B346.

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    referncia a objetos em geral), deixa-se dividir, sucessivamente, em algo (al-

    guma coisa) e nada31 .Na Lgica de Jsche32 , somos informados que: (i) o conceito superior ,

    relativamente queles que lhe so imediatamente subordinados logicamente(seus inferiores), gnero, e os inferiores respectivos, espcies; (ii) o gneromais alto, gnero supremo, no (nem pode ser) ele mesmo espcie para ne-nhum outro gnero33 ; (iii) a operao de determinao lgica responde direta-mente pela gerao da srie de subordinao gnero-espcie entre conceitos34

    e, correlativamente, pelo agregado de conceitos coordenados constantes na de-finio (por gnero e diferena especfica) de um conceito inferior.

    A Crtica da Razo Pura35 , por sua vez, estabelece que os conceitos em geralso indeterminados relativamente ao que lhes estranho (isto , que no estcontido neles) e que, ademais, encontram-se, em relao ao que lhes estra-nho, submetidos ao princpio da determinabilidade36 de cada dois predicadosopostos contraditoriamente (B e no-B), apenas um pode aplicar-se a eles.

    Do exposto acima, parece possvel inferir que o procedimento de determi-nao lgica se faz por agregao de novos conceitos ao conceito do gnero.Aqui, os novos conceitos agregados (que introduziro sistematicamente as

    diferenas especficas no caminho percorrido de descenso da srie subordina-da) devem ser tais que o gnero (a sofrer o procedimento de formao dasrie) seja, em relao a eles, indeterminado. Caso contrrio (isto , caso nosejam estranhos ao gnero), nenhuma determinao de espcie seria real-mente efetuada: a determinao um predicado que vai alm do conceito dosujeito e o amplia. Portanto, no deve estar j contido nele37 .

    Ainda na Crtica da Razo Pura38 , verificamos que o princpio dadeterminabilidade regido pelo princpio da excluso do meio termo entre

    31 O princpio de construo apontado acima suscita, obviamente, muitas indagaes que, pelaextenso e complexidade, no sero aqui abordadas. Vamos, sem mais, assumir que o conceitomais alto de uma filosofia transcendental o conceito de Gegenstand berhaupt.

    32 Cf. Kant, Lgica, trad. de Guido Almeida, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1992, 9-10, p. 114.33 Cf. Kant, op. cit., 11, p. 115.34 Id., ibid., 15, p.116,35 Kant, Crtica da Razo Pura, A571/B599.36 Ver, igualmente, Kant, op. cit., A572/B600, nota.37 Kant, op. cit., A598/B626. Determinar, por conseguinte, julgar sinteticamente (cf. Kant, Os

    Progressos da Metafsica, Edies 70, 1985, p. 27). Com efeito, o conceito determinante devepoder funcionar como um predicado real ( estranho ao conceito a ser determinado) sob penado conceito da espcie resultar idntico ao conceito do gnero (caso o conceito determinanteestivesse contido no gnero - j na definio do gnero) ou idntico a alguma espcie j deter-minada (caso o conceito determinante estivesse j contido sob o gnero).

    38 Kant, Crtica da Razo Pura, A572/B600, nota.

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    dois predicados opostos (Princpio do Terceiro Excludo). Parece razovel

    sustentar que o Princpio do Terceiro Excludo funda o procedimento de divi-so lgica39 de um conceito e que o procedimento de determinao de umconceito corresponde, para conceitos, ao que a disjuno para juzos40 . As-sim, na diviso lgica ou determinao de um conceito, a esfera total do con-ceito a ser dividido em espcies , digamos assim, cortada segundo um con-ceito (que estranho ao conceito a ser dividido) e seu oposto contraditrio,os quais na esfera do conceito dividido determinaro as espcies complemen-tares (exaustivas e excludentes)41 .

    Ora, supondo correto o que foi apontado acima, possvel compreender atbua da diviso do conceito de nada como sendo a resultante do procedi-mento de diviso lgica do summum genus, o conceito de objeto em geral42 .Nesse caso, s diferentes espcies de nada (Nicht) corresponderiam diferentesespcies de alguma coisa (Etwas)43 e seriam, caso a caso, opostos mutuamenteexcludentes: a cada algo (Etwas) contrapor-se-ia um no-algo que seria, emrelao a este algo, nada. Assim, o nihil negativum, o logicamente impossvel,opor-se-ia ao logicamente possvel e esse ltimo compreenderia sob si osdemais tipos de nada e seus algos opostos44 . Poder-se-ia, ento, considerar a

    primeira diviso do conceito de objeto em geral como sendo entre no-coisa(Unding, nihil negativum, logicamente impossvel) e coisa (Ding, algo/Etwas,logicamente possvel).

    Ens rationis, por seu turno, o objeto de um conceito ao qual nenhumaintuio que possa ser dada corresponde45 . Ora, os objetos de um conceitopara o qual nenhuma intuio nos pode ser dada so objetos que, de ummodo ou de outro, deixam de satisfazer certas condies formais da experin-cia (as condies da sensibilidade). So, por conseguinte, transcendentalmenteimpossveis46 . Em vista disso, parece plausvel supor que o algo ao qual se

    39 Cf. Kant, op. cit., A73-74/B98-99, e cf. Kant, Lgica, 23-29, pp. 124-127.40 Cf. Kant, Crtica da Razo Pura, A576-577/B604-605.41 Cf. Kant, Lgica, 23-29, pp. 124-127.42 Cf. Kant, Crtica da Razo Pura, A290-291/B346-348.43 Kant, op. cit.,A291/B348.44 Tome-se, por exemplo, o ens rationis que nada (no pode ser contado entre os possveis), mas

    no um nada como o o nihil negativum o ens rationis no deve, por esta razo, ser igualmen-te declarado impossvel. Como quer que seja, parece que aquilo que Kemp Smith (ver nota 28)afirma acerca do nihil privativume do ens imaginariumvale igualmente para o ens rationis ele ,frente ao nihil negativum, um algo: o que Gedankending (coisa-de-pensamento) no , por issomesmo, Unding (no-coisa).

    45 Kant, op. cit., A290/B347.46 Cf. o primeiro postulado do pensamento emprico em geral (id., ibid., A218/B265).

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    contrape o ens rationis seja o objeto de um conceito ao qual uma intuio

    nos pode ser dada, isto , o objeto de uma experincia possvel 47 , o aparecer(Erscheinung) ou, quando determinado, o fenmeno.

    Em primeiro lugar, observe-se que a primeira diviso do conceito de obje-to em geral (nihil negativum versus Etwas/algo/coisa) corresponde oposioentre o impossvel lgico e o possvel lgico. J a segunda diviso, operada noconceito de Etwas (aquela entre ens rationis e phaenomenon), corresponde oposio entre o impossvel real e o possvel real o que nos permite perce-ber a impossibilidade no-lgica tpica dos conceitos dos entia rationis: seusobjetos no so objetos de uma experincia possvel.

    Em segundo lugar, como Kant inclui expressamente os noumena entre osentia rationis ao mesmo tempo em que distingue dois sentidos de noumenon, opositivo e o negativo, foroso determinar em qual destes sentidos os noumenaso ali includos.

    Na Crtica, em B307, encontramos:

    Se por noumenon entendemos uma coisa enquanto no objeto de nossa intuio

    sensvel, na medida em que abstramos do nosso modo de intuio dela, ento se

    trata de um noumenon em sentido negativo. Se, todavia, entendemos por ele umobjeto de uma intuio no-sensvel, ento admitimos um modo peculiar de

    intuio, a saber, a intelectual, que, porm, no a nossa e da qual tambm

    pouco podemos entrever a possibilidade. Este seria o noumenon em significao

    posi tiva.

    Nessa passagem, o que distingue a noo de noumenon positivo daquelade noumenon negativo , respectivamente, ser intuvel no-sensivelmente con-traposto no ser intuvel sensivelmente. Mais que isso, o noumenonem sentido

    negativo no apenas uma coisa enquanto ela no objeto de nossa intuiosensvel. Ela s no intuvel sensivelmente na medida em que abstramos denosso modo de intu-la. Agora, se a noumenalidade negativa dependente deuma operao de abstrao efetuada a partir do fenmeno e se o procedimen-to abstrativo o inverso daquele da diviso lgica, ento a passagem do fen-meno noumenalidade negativa uma passagem de espcie a gnero48 . Isso

    47 Cf. id., ibid., A238-239/B298.48 Observe-se que o fato do conceito que institui o gnero ser, no que diz respeito a sua definio,

    logicamente independente daqueles conceitos aptos a introduzir uma diferena especfica (econstituir, assim, espcies do gnero), configura a indeterminao do gnero frente a estes lti-mos. Assim, em uma espcie AB, onde A define o gnero, A no contm e no pode conter

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    significa, basicamente, (i) que os noumena em sentido negativo no podem

    ser identificados com os entia rationis e (ii) que o noumenon em sentido nega-tivo deve, isto sim, ser identificado com o conceito de algo . Restasaber se os noumena em sentido positivo no poderiam ser entia rationis. Paratanto, vejamos uma outra passagem da Crtica onde Kant parece prefigurar adistino entre os dois sentidos de noumenon:

    Todavia, j est no nosso conceito que quando denominamos certos objetos

    , como apareceres , de entes dos sentidos

    (phaenomena), distinguindo nosso modo de intu-los de sua natureza em si

    contrapomos estes entes dos sentidos quer aos mesmos objetos em sua natureza

    em si (conquanto nela no os intuamos), quer a outras coisas possveis que de

    modo algum so objetos dos nossos sentidos (enquanto objetos pensados apenas

    pelo entendimento) chamando-os de entes do entendimento

    (Noumena)49 .

    Aqui os objetos, enquanto apareceres ou fenmenos, soduplamente contrapostos: (i) com eles mesmos em sua natureza em si e (ii)

    com outras coisas possveis que de modo algum so objetos de nossos senti-dos. Como no primeiro caso a contraposio feita entre o objeto segundoseu fenmeno e o mesmo objeto segundo sua natureza em si, tal contraposiono pode ser estimada traduzir-se na contraposio vigente entre fenmeno eens rationis. Ao contrrio, pelo fracasso dessa alternativa no requisito de iden-tidade, resta-nos supor a equiparao do par objeto segundo o nosso modode intu-lo e natureza em si deste mesmo objeto com o par fenmeno enoumenon em sentido negativo. Em tais circunstncias, fica perfeitamentesatisfeito o requisito de identidade: um mesmo objeto, caindo sob a espcie,

    cai igualmente sob o gnero. Mais que isso, a natureza em si do objeto, por seralcanvel apenas mediante a abstrao da diferena que responde pela

    em si (em sua definio) nem B nem no-B. Isto sugere a legitimidade de afirmarmos de algoque seja AB, quando considerado exclusivamente como A (do ponto de vista do gnero,portanto), que este algo no B e no no-B. Quando, de um ente sensvel qualquer xque da espcie AB, resolvemos efetuar a passagem ao gnero ao consider-lo abstrao feitade seu ser B, isto significa estim-lo tanto como o x que A no sendo B (isto , como umA que no B) quanto como o x que A no sendo no-B (como um A que no no-B). Desse modo, em tal passagem abstrativa, seramos legitimados a conceb-lo como oalgo A no sendo B nem no-B. Dito de outro modo, mediante tal passagem, pensamos oente x indeterminadamente quanto ao ser B.

    49 Kant, Crtica da Razo Pura, B306.

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    50 Na verdade, se podemos conceber cognoscvel e incognoscvel como introduzindo asdiferenas especficas geradoras da dicotomia fenmeno e ens rationis , a natureza em sido objeto, pensada na indeterminao intensional do gnero frente aos conceitos das diferenasespecficas, no ser nem cognoscvel nem no-cognoscvel (incognoscvel).

    especificidade do fenmeno (o respeito s condies sensveis da experin-

    cia), pensvel, mas no cognoscvel50 .Se a equiparao proposta aqui correta, temos a identificao da noo

    de natureza em si do objeto com a noo de coisa em geral , a qual,mediante passagem abstrativa, alcanada sob a forma da indeterminaoquanto ao seu ser cognoscvel. Assim, considerar um objeto segundo sua na-tureza em si seria considerar esse objeto simplesmente enquanto algo/coisa.Dito de outro modo: as mesmas coisas que, enquanto fenmenos, socognoscveis, no o so, enquanto concebidas meramente como coisas.

    De outra parte, parece razovel proceder identificao da contraposioobjetos segundo nosso modo de intu-los versus outras coisas possveis queno podem ser objetos dos nossos sentidos com a contraposio fenme-nos versus entia rationis. O que quer que seja um ens rationis, umaGedankending, por pertencer a essa espcie de coisa , por definiono-cognoscvel (por ns) e no , nem pode ser, um fenmeno. Assim, pelamanifesta identidade entre o que visado pelas expresses outras coisas pos-sveis que de modo algum so objetos de nossos sentidos e objetos de umaintuio no-sensvel (isto , os noumena em sentido positivo), teramos a

    identificao desses ltimos com os entia rationis.O que foi dito at aqui permite a seguinte representao da tbua da divi-

    so do conceito de nada (at onde nos interessa):

    Objeto em geralCoisa Noumenon NegativoPossvel Lgico

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    Como um balano, reconsideremos algumas das coisas alcanadas at aqui:

    (i) o conceito de objeto em geral se deixa dividir em nihil negativum (o impos-svel lgico, contraditrio ou, ainda, o impensvel) e seu oposto: algo/coisaem geral (Etwas) o pensvel, no-contraditrio; (ii) o conceito de coisa/ algoem geral, por seu turno, deixa-se dividir em ens rationis (o pensvel que no-sensvel, no-dvel, no-cognoscvel ou, ainda, o impossvel real) e seuoposto: aparecer (Erscheinung) ou fenmeno o pensvel que sensvel ,cognoscvel, dvel ou, ainda, o possvel real); (iii) o ens rationis identifica-secom o noumenon positivo donde temos que a oposio entre aparecer oufenmeno e noumenon positivo aquela do sensvel e do no-sensvel, ouainda do cognoscvel e do no-cognoscvel, isto , dos conceitos que soopostos contraditoriamente; (iv) o noumenon negativo, por ser a passagemabstrativa de um aparecer para seu gnero, identifica-se com algo/coisa(Etwas),enquanto no aparecer isto , com coisa abstrao feita desta espcie decoisa. Isto nos permitiu identificar coisas em si mesmas com os noumena ne-gativos; (v) dado isso, foi-nos permitido dizer que uma coisa, abstrao feitada espcie de coisa que ela , no cognoscvel (antes que: no-cognoscvel). Que ela seja, nessas circunstncias, assim, se explica justa-

    mente por haver, do ponto de vista do gnero (das notas que o definem,quaisquer que sejam elas), a indeterminao frente s espcies (que so, nes-se caso, introduzidas pelos conceitos opostos cognoscvel incognoscvel ouainda, se preferirmos, sensvel no-sensvel).

    Se o exposto nesta seo correto, podemos finaliz-la assim: as coisasem si mesmas, isto , as coisas enquanto coisas, no so sensveis nem no-sensveis. Assim, se dissermos delas que no so sensveis, por meio de umjuzo negativo, evitamos pelo menos um erro (que estaramos incorrendo aodizer delas que so no-sensveis, isto , mediante juzo infinito51). Ademais,

    sabermos apenas que elas no so assim nem no-assim, no parece implicarque saibamos o que elas so.

    IV

    Para concluir, podemos voltar ao chamado paradoxo da coisa em si, tal comofoi formulado por Guyer:

    51 Ver : B97-98.

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    Mesmo aqueles que no negam a evidncia das asseres dogmticas de Kant, que

    coisas tais como so em si mesmas no so realmente espaciais e temporais, sempretm sido rpidos em notar um paradoxo aqui. O conceito de uma coisa em si mesma,

    argumentam, no outro que o conceito de uma coisa da qual nada pode ser

    conhecido; contudo, mesmo uma assero negativa que uma coisa no realmente

    espacial ou temporal uma pretenso (claim) definida de conhecimento. 52

    Parece razovel pretender que, fosse legtimo considerar que nossas pretensesde conhecimento se deixam exprimir por juzos afirmativos (A B ou A no-B), e que, alm disso, os juzos negativos (A no B ou A no no-B)exprimem antes uma ignorncia, nenhum problema adviria da circunstncia dese sustentar quer que as coisas em si mesmas no so espaciais, quer que no sotemporais. Tampouco adviria algum problema da circunstncia de se sustentarque as coisas em si mesmas no so cognoscveis, pois nenhuma pretenso deconhecimento se deixaria exprimir a.

    Se as estimaes feitas acima so plausveis, no haveria paradoxo das coisasem si, no sendo, por conseguinte, necessrio distinguir dois tipos de conheci-mento, o filosfico e o emprico, para resolv-lo. Tampouco pareceria necess-

    rio, para o mesmo fim e pelas mesmas razes, distinguir entre sentido emprico etranscendental, quer de coisa em si, quer de aparecer . Almdisso, se os termos em que feita esta distino por defensores da teoria dosdois aspectos foram corretamente expostos, ainda que fosse necessrio distin-guir o modo emprico do modo transcendental de falar das coisas, para outrosfins exegticos concernentes ao Idealismo Transcendental, tal distino no po-deria ser feita da mesma maneira.

    52 Guyer, op. cit., p. 335

    Gerson Luiz Louzado