Para Uma Musica Borromeana

download Para Uma Musica Borromeana

of 24

Transcript of Para Uma Musica Borromeana

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    1/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 40

    Para uma Msica Borromeana

    Gilson Beck1

    Introduo

    Este artigo explora a construo musical atravs da psicanlise de orientao lacaniana,

    com destaque para RSI e o n borromeano. Ele surgiu como subproduto de um trabalho

    de investigao sobre a tcnica da composio musical.

    O texto foi escrito com base na interveno que fiz no Seminrio da Antena do Campo

    Freudiano, em Lisboa. Apresentei a aspetos da minha pesquisa que tratam da relao

    entre Msica e Psicanlise. Estes foram levemente desenvolvidos para o presente artigo,

    que apresenta tambm algumas das referncias de Lacan.

    Agradeo Antena do Campo Freudiano pelo seu convite. Agradeo ao psicanalista

    Jos Martinho pelo convvio, aulas, seminrios, acompanhamento e estmulo para

    enveredar por esta rea, e, principalmente, por ter nomeado a presente proposta esttica:

    Msica Borromeana.

    Agradeo tambm ao psicanalista Luis Francisco Espndola Camargo2pelo seu trabalho

    de mestrado, o primeiro que li sobre a relao da Msica com a Psicanlise e onde vi

    pela primeira vez o n borromeano.

    N Borromeano

    O n borromeano um objeto topolgico que Lacan utiliza no seu ltimo ensino. Ele

    formado por, no mnimo, trs rodelas de fita3, ligadas de maneira que, se uma delas se

    1 Msico e Compositor. Foi aluno de composio musical de Almeida Prado e Christopher Bochmann.Desenvolve pesquisa em organizao e elaborao sonora na composio musical, informtica aplicada msica. http://www.gilsonbeck.blogspot.com.br/2 CAMARGO, Luis Francisco Espndola (2004).A Escuta do No-Sentido: na Lingustica, na Msica ena Psicanlise. Dissertao de Mestrado, Universidade Federal de Florianpolis, Brasil

    3 Em Lacan, ronds de ficelle. Cf. LACAN, Jacques (1974-75). Le Sminaire, Livre 22 : R.S.I., pp. 16.http://staferla.free.fr/ visitado em 18/07/2012.

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    2/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 41

    desfizer, as restantes soltam-se. Este n faz-se com os anis entrelaados de tal forma

    que nenhum deles fique preso diretamente ao outro, mas sim unidos a trs, como

    explica Darmon:

    cada crculo passa por cima de um segundo crculo e por debaixo de um

    terceiro, mas esse terceiro tem a particularidade de passar, ele prprio, por

    baixo do segundo, o que constitui o encaixe prprio ao n borromeano.4

    Esta amarrao cria uma interdependncia dos elementos envolvidos, sempre em

    triangulao e nunca em pares. Os anis ficam presos e em relao indireta: dois

    elementos s permanecem ligados na presena de um terceiro, aquele que efetivamente

    realiza a amarrao. A unidade do n amarrado borromeanamente d-se quando as trs

    dimenses se atam deste modo entre si.

    Dias detalha a inter-relao dos elos do n borromeano da seguinte maneira:

    H sempre, para dois dos trs elos, um terceiro que realiza a nodulao e que,

    na sua funo, ex-siste aos outros dois, apesar de sua presena ser necessria

    aos dois como ponto de apoio, de nodulao.5

    O n borromeano pode ser apresentado atravs da figura plana que se segue, ainda que

    no hajam anis perfeitamente planos:

    4 DARMON, Marc (1994). Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Mdicas ed., pp.228.

    5 DIAS, Maria das Graas Leite Villela (2006). Le sinthome. Rio de Janeiro: gora [online], vol.9, n.1http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982006000100007 visitado em 18/07/2012.

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    3/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 42

    RSI a sigla que Lacan utiliza para Real, Simblico e Imaginrio. Atravs destas trs

    dimenses, ele estabelece uma arquitetura repartida da atividade psquica6, dado que a

    realidade psquica um n borromeano RSI.

    No SeminrioR.S.I., Lacan define o Real da seguinte maneira: On pourrait dire que le

    Rel, c'est ce qui est strictement impensable. a serait au moins un dpart7. Dito de

    outro modo, o Real no pode ser transformado em palavras e conceitos seno de

    maneira parcial e incompleta. O Real no o Simblico, nem o Imaginrio, mas o que

    os torna incompletos, aquilo que lhes escapa. Por esta razo, o Real s pode ser

    deduzido e suportado atravs das outras duas dimenses.

    Seguindo no texto de Lacan, l-se:

    que c'est dans la mesure o l'inconscient se suporte de ce quelque chose

    ce quelque chosequi est par moi dfini, structur, comme le Symbolique, c'est

    de l'quivoque, fondamentale ce ce quelque chosedont il s'agit sous ce terme

    du Symbolique 8.

    Desta citao de Lacan podemos deduzir que o inconsciente, estruturado como uma

    linguagem, suportado pelo equvoco que reina no Simblico.

    Martinho acrescenta:

    O Simblico lacaniano reduz-se, em ltima instncia, aofactoda linguagem.

    Se a linguagem uma doena congnita da espcie, se o ser que ela aliena

    se queixa sempre do excesso ou da falta das palavras, a existncia destas que

    destri as coisas-em-si, permite que se representem como objectos, se

    memorizem, se ordenem e transformem no pensamento. A linguagem

    6 Sous la forme dun noeud de variables, R,S,I, Lacan tablit une architecture rpartie de lactivitpsychique. COURSIL, Jacques (1998). Jacques Lacan, Lpistmologie R.S.I., pp. 2.http://www.coursil.com/bilder/3_language/Language%20Theory/Lacan%20RSI.pdf visitado em18/07/2012.7 LACAN, J. (1974-75). op. cit., pp. 11. Traduo livre: Pode-se-ia dizer que o Real o que estritamente impensvel. Isto seria, ao menos, um comeo.8 LACAN, J. (1974-75) op. cit., pp. 11. Traduo livre: que na medida em que o inconsciente sesuporta de essa qualquer coisa essa qualquer coisa que por mim definida, estruturada, como o

    Simblico, do equvoco, fundamental a esta essa qualquer coisa da qual trata-se sobre o termo doSimblico

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    4/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 43

    tambm o que possibilita a actividade literria, artstica e cientfica e, como no

    poderia deixar de ser, a psicanlise.9

    No Simblico esto tambm contidas as normas e os hbitos do humano, osconhecimentos que este adquire, inclusive os seus erros. atravs da linguagem que o

    sujeito procura relacionar-se com o Real, mesmo se permanece incompleto na hora de

    falar e pensar sobre este.

    Devia deixar o leitor imaginar o que o Imaginrio, mas observo aqui o que diz

    Coursil: Limaginaire reprsente la capacit du sujet crer du discours 10 .

    Desdobrando: o Imaginrio reside na capacidade que tem cada um de organizar os

    meios universais e particulares da criatividade.

    Lacan mostra ainda, sob o seguinte aspeto, a interdependncia das trs dimenses do n

    borromeano:

    Vemos que o objeto (a) se encontra no centro do n, no ponto comum s trs

    dimenses. Ele uma criao de Lacan, que d nome ao que no tem nome, para que sepossa falar e pensar nisso. Na realidade, o objeto(a) a causa do desejo, o que Freud

    chamava o objeto perdido. No se trata propriamente do seio da relao me-beb,

    mas daquilo que o sujeito busca e s percebe de maneira fugidia.

    9 MARTINHO, Jos (1999). Para que serve o Simblico in Ditos - Conferncias Psicanalticas.Lisboa: Fim de Sculo Lda., pp 38-39.

    10 COURSIL, Jacques (1998). op. cit., pp. 4. Traduo livre: O Imaginrio representa a capacidade dosujeito de criar um discurso.

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    5/24

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    6/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 45

    disse, pela existncia das palavras que podemos representar, memorizar, ordenar,

    transformar e lembrar de objetos.

    Recapitulando, o material abstrato a converso, em elementos abstratos, do materialgerador atravs de um agente sistematizador. Esse processo no tem ordem fixa e pode-

    se partir de qualquer um para criar a composio.

    A partir da observao e sistematizao das trs dimenses, percebi que elas se

    assemelham a RSI.

    Agente Sistematizador e Simblico: Definiu-se o agente sistematizador como qualquer

    sistema que ordene o material gerador, sistema que tem as funes de uma linguagem,

    com as regras que permitam gerar uma composio. Toda a composio precisa de uma

    coerncia interna, de uma linguagem para se estruturar. Essa linguagem pode arrastar

    consigo alguns conceitos e algumas prticas que fazem parte da sua tradio.

    O Simblico reduz-se ao facto da linguagem. Nela esto contidas as caractersticas de

    uma civilizao. Posso dizer que o agente sistematizador o Simblico da composio

    musical. Uma parte constituinte da Composio Musical , pois, o Simblico.

    Material Abstrato e Imaginrio: O material abstrato permite que se trate o material

    gerador como um conceito a que se aplicam as operaes da composio. Para

    transformar e desenvolver a ideia em composio necessrio o uso da imaginao e os

    conhecimentos tcnicos do compositor.

    No texto de Coursil, tnhamos a seguinte definio do Imaginrio: capacidade do

    sujeito de criar um discurso. O Imaginrio , pois e tambm, uma parte constituinte da

    Composio Musical, dos processos mentais de elaborao do material gerador atravsdo agente sistematizador (Simblico).

    Material Gerador e Real: se o Real lacaniano impossvel e impensvel, de onde vem a

    ideia para a composio musical? Do material gerador, pois este assemelha-se aqui ao

    incognoscvel do Real.

    A ideia musical apresenta-se atravs de uma linguagem especfica, com a qual o

    compositor est familiarizado, quer esta seja uma linguagem adquirida, como no caso

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    7/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 46

    das msicas tonais, ou uma linguagem inventada, como nos compositores que inventam

    ou desenvolvem linguagens prprias e particulares11.

    Do mesmo modo que o Real no se apresenta de forma direta e livre, sem a mediaodo Imaginrio e do Simblico, o material gerador no est dissociado do agente

    sistematizador e do material abstrato. Assim, digo que a outra parte constituinte da

    Composio Musical o Real.

    Para me auxiliar na conceo de RSI na Arte, em particular da Msica, tomo um trecho

    de Martinho:

    pelo entrelaamento do Real (a matria-prima), do Simblico (a linguagem,

    assim como os cdigos prprios a cada uma das artes) e do Imaginrio

    (individual, colectivo e potencial) que o vazio central da obra se apreende.

    Circunscrever o vazio, constitu-lo como ponto de partida do espao de

    inscrio, representao e criao, no o mesmo que preenche-lo.12

    Pode-se, assim, perceber melhor a amarrao borromeana das dimenses RSI aplicadas

    Composio Musical. Resumidamente:

    O Imaginrio reside nas operaes que o compositor efetua dentro do Simblico para

    produzir o Real da composio.

    O Simblico est nos padres da articulao do Imaginrio que se apoia sobre parte do

    Real.

    O Real o que s aparece atravs da manifestao (incompleta) do Simblico criada

    pelo Imaginrio.

    Mas como se d a composio musical propriamente dita? Cito Lacan:

    11 Como exemplo, cito aqui uma linguagem alcanada (inventada) como o dodecafonismo deSchoenberg. Outra o serialismo integral, uma linguagem desenvolvida a partir do dodecafonismo, que

    tem suas diferenas em relao a ela e suas peculiaridades em relao s outras linguagens.12 MARTINHO, Jos (1999). A Propsito do Objecto de Arte inDitos, pp. 116

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    8/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 47

    il y suffit de faire passer en ces deux points ce qui tait dessous dessus. En

    d'autres termes, il faut que le Rel surmonte - si je puis dire - le Symbolique

    pour que le noeud borromen soit ralis. 13

    Este subir ou passar do Real sobre o Simblico o que realiza a amarrao

    borromeana dos trs anis sobrepostos e no amarrados, conforme mostra a figura

    abaixo.

    Mais adiante, no texto do Seminrio R.S.I, Lacan adverte que, para haver nodulao,

    no pode haver dominao do Real sobre o Simblico, mas uma passagem do Real

    sobre o Simblico. Essa passagem uma mudana de localizao no espao

    tridimensional em que o n borromeano se faz, o que pode ser entendido como a

    necessidade de que o Real se apoie sobre o Simblico para que o n borromeano passe a

    ex-sistir como tal.

    Ressalta, nesta explicao da amarrao feita por Lacan, que o Real da composio

    musical precisa encontrar e surmonter o Simblico que serve de apoio para ele, e que,

    ao mesmo tempo, amarra ao Imaginrio. por este ao do Real sobre o Simblico e,

    13 LACAN, Jacques (1974-75). op. cit., pp. 59. Traduo livre: lhe suficiente fazer passar nestes

    dois pontos o que estava abaixo para cima. Em outros termos, necessrio que o Real suba sobre [cubra,prevalea] - se eu posso dizer - o Simblico para que o n borromeano seja realizado.

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    9/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 48

    consequentemente, sobre o Imaginrio, que se faz o n borromeano. E tambm atravs

    desse surmonter que emerge, no espao comum aos trs, o objeto(a).

    O objeto(a) um vazio comum aos trs anis. Martinho, na citao feita anteriormente,fala que pelo entrelaamento de RSI que o vazio central da obra se apreende. no

    espao que est aberto e circunscrito pela amarrao de RSI que surge o objeto

    produzido pelo compositor no seu ato de compor: a pea musical.

    Msica no Sculo XX

    A msica no sculo XX passou por grandes transformaes. Em Abromont e De

    Montalembert l-se:

    Ce chapitre, en raison de la richesse et de la multiplicit des courants

    musicaux rcents, ne peut constituer qu'une introducition aux principales

    volutions et rvolutions musicales.14

    Um primeiro aspeto a destacar dessas transformaes foi o primado dos intervalos em

    relao escala e ao modo. Antes do sculo XX, as melodias se sustentavam sobre

    escalas ou modos. Quando uma melodia era transposta, os intervalos de um tema

    normalmente transitavam, indiferentemente, do menor para o maior, de acordo com o

    grau da escala ou de acordo com o modo. A relao intervalar original era alterada para

    adaptar-se s necessidades, sendo suficiente manter o contorno meldico.

    Com o passar do tempo, os compositores mantiveram os intervalos absolutos como

    estruturantes da melodia. Destaco que a prtica deste tipo de estruturao meldica foi

    usada pelos compositores da Segunda Escola de Viena 15 . Nos motivos desses

    compositores as melodias mantm a sua constituio intervalar, independente de qualseja a transposio. A manuteno dos intervalos cria distores nas escalas e modos, o

    que chamou-se de tonalidade suspensa, levando progressivamente ao abandono dos

    sistemas modal e tonal, chegando ao que se chama de msica atonal. Na msica

    14 ABROMONT, Claude; De MONTALEMBERT, Eugne (2001). La musique aprs la tonalite inGuide de la Thorie de la Musique. Paris: ditions Henry Lemoine, pp. 315. Traduo livre: Estecaptulo, em razo da riqueza e da multiplicidade das correntes musicais recentes, no se pode constituiralm de uma introduo s principais evolues e revolues musicais.

    15 Considera-se Arnold Schoenberg, Anton Webern e Alban Berg os compositores da Segunda Escola deViena.

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    10/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 49

    contrapontstica, a manuteno dos intervalos absolutos ir resultar em novas formas de

    estruturar e pensar as relaes verticais.

    Em oposio ao tonalismo, a msica atonal tem a inteno de no sustentar um centropolarizador definido, ou seja, no ter uma tnica ou uma nota que seja priorizada em

    relao s outras. Assim, a msica atonal torna-se uma msica sem hierarquia entre as

    notas da escala cromtica e que utiliza, necessariamente, a totalidade desta escala antes

    que qualquer uma delas se repita. A partir dessa utilizao das doze notas em srie surge

    a srie dodecafnica e a msica dodecafnica.

    A srie dodecafnica possibilita uma quantidade de operaes com o conjunto de suas

    notas, operaes chamadas de verses seriais, que so a leitura dos intervalos entre as

    notas da srie de quatro maneiras diferentes: Original a leitura normal;

    Retrgrado a leitura de trs para a frente; Inverso a leitura em espelho, a leitura

    do Original com os intervalos na direo oposta - ascendente vira descendente e vice-

    versa; Retrgrado do Inverso a leitura do Inverso de trs para a frente.

    Cada uma dessas quatro verses seriais poder ser transposta para qualquer nota da

    gama cromtica e sistematizada pela Matriz Dodecafnica, que nada mais do que

    uma tabela de doze linhas e doze colunas que contm todas as transposies da srie,

    com o Original na primeira linha e o Inverso na primeira coluna. Atribuindo um nmero

    a cada uma das doze notas cromticas, pode-se fazer uma matriz dodecafnica somente

    com nmeros. Tal como nas verses seriais onde as caractersticas intervalares entre as

    notas so mantidas, esta matriz dodecafnica numrica mantm as relaes (a qualidade

    das relaes) entre os nmeros.

    Com a utilizao de uma matriz dodecafnica feita com nmeros, abre-se apossibilidade de utiliz-la para ordenar os outros parmetros da msica. Basta converter

    para nmeros os parmetros desejados, qualificando-os16atravs de nmeros, lidando

    com suas caractersticas de forma abstrata.

    Um dos primeiros desenvolvimentos, que comeou a manifestar-se ainda

    antes de 1950, foi o serialismo total, ou seja, a extenso do princpio das

    16 Cf. a citao de Lacan na seco Proposta de Msica Borromeana adiante neste artigo.

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    11/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 50

    sries de Schoenberg a outros parmetros alm das alturas. Se as doze notas da

    escala cromtica podiam ser seriadas, como fizera Schoenberg, tambm

    podiam seriar-se os factores de durao, intensidade, timbre, textura, pausas, e

    assim sucessivamente. Contudo, enquanto nos sculos XVIII e XIX todos estes

    elementos - em particular os que dizem respeito melodia, ao ritmo e

    harmonia - eram convencionalmente interdependentes (havendo certas formas

    consagradas de os combinar entre si), agora todos podiam ser considerados

    como simplesmente permutveis.17

    Grout e Palisca seguem dizendo que os compositores conseguiram um controle total

    sobre cada pormenor da composio, mas que este controle d origem a uma pea comefeito de combinao aleatria. Esta msica por natureza atemtica, ou seja, o ouvinte

    no percebe a presena de temas como entidades meldicas, rtmicas e harmnicas, nem

    as variaes desses temas, muito menos o sentido de progresses e de movimentos

    orientados.

    Um dos exemplos clssicos (e didticos) da aplicao deste mtodo a pea Mode de

    Valeurs et d'Intensits do compositor Olivier Messian. Outro exemplo de msica escrita

    utilizando o Serialismo Integral Le Marteau sans Matredo compositor Pierre Boulez.

    Outro aspecto a ser destacado das transformaes da msica no sculo XX a

    incorporao de novos sons, que passaram a ser considerados como musicalmente

    utilizveis: cluster, piano preparado, a voz humana utilizada para produzir outros sons

    que no o do canto, instrumentos eletrnicos e instrumentos de percusso, para ficar em

    apenas alguns exemplos.

    Desses novos sons surgiram correntes composicionais que utilizaram as caractersticasdo som como componentes estruturais para a composio. As caractersticas do som

    tornaram-se mais essenciais do que a melodia, a harmonia ou o ritmo. Pode-se dizer que

    Edgard Varse criou uma forma que se define, por assim dizer, pelas massas e blocos

    sonoros contrastantes 18 . Outros compositores, notadamente o compositor Gyrgy

    17 GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. (1994). Histria da Msica Ocidental. Lisboa: Gradiva

    Publicaes Ltda., pp. 743. Traduo de Ana Lusa Faria. Ttulo Original:A History of Western Music.18 GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. (1994). op. cit. pp. 744

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    12/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 51

    Ligeti no seu Requiem ou em Lux Aeterna, utilizaram do conceito de continuum

    sonoro ou de massa sonora que, em outras palavras, a msica feita por um som

    contnuo, por vezes ininterrupto, que se transforma com o passar do tempo.

    A busca pela estruturao musical a partir do som em si deu origem, ao longo da dcada

    de 1970, a uma corrente tcnica e esttica denominada Espectralismo. Esta corrente tem

    como base o modelo do timbre instrumental. A partir de estudos acsticos detalhados,

    auxiliados por recursos tecnolgicos computacionais, cada componente do som torna-se

    parmetro para a composio musical.

    Les instruments de leurs orchestres peuvent souvent tre compars aux

    harmoniques et aux partiels des spectres sonores des diffrents timbres. Un

    spectre dit 'harmonique' met les diffrentes frquences en relation comme dans

    le timbre d'un instrument hauteurs dtermines. Un spectre 'inharmonique' est

    plus proche d'un bruit. Tous les stades intermdiaires entre ces deux spectre

    sont envisageables.19

    Com o continuum sonoro, perde-se a noo de ritmo e ganha-se a noo de durao.

    No se identificam ritmos, clulas rtmicas ou contornos rtmicos. O que se percebe

    que os sons iniciam e terminam, tendo uma durao especfica, uma durao que

    relaciona-se com o que vem antes, com o que vem depois e com o que est sobreposto.

    Por ltimo, cito o computador como um dos grandes transformadores da msica no

    sculo XX.

    Nenhum outro desenvolvimento do perodo posterior a 1950 atraiu tantas

    atenes ou trouxe ao mundo da msica um to grande potencial de

    importantes mutaes estruturais como a utilizao de sons electronicamente

    produzidos ou manipulados.20

    19 ABROMONT, Claude; De MONTALEMBERT, Eugne (2001), op. cit., ppp. 331. Traduo livre:Os instrumentos das suas orquestras podem freqentemente ser comparados aos harmnicos e s parciaisdos espectros sonoros de diferentes timbres. Um espectro dito 'harmnico' coloca as diferentesfrequncias dispostas da maneira como elas se relacionam no timbre de um instrumento de alturasdeterminadas. Um espectro dito 'inarmnico' mais prximo de um rudo. Todos os estgios

    intermedirios entre esses dois espectros so concebveis..20 GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. (1994). op. cit. pp. 745.

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    13/24

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    14/24

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    15/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 54

    pea toda construda a partir de um motivo que comum a tudo o que aparece na

    pea.

    Essa ideia de um motivo comum a todos os elementos da pea reforada pelocompositor e terico Schoenberg na sua conceitualizao do termo motivo:

    In as much as almost every figure within a piece reveals some relationship to

    it, the basic motive is often considered the 'germ' of the idea. Since it includes

    elements, at least, of every subsequent musical figure, one could consider it the

    'smallest common multiple'. And since it is included in every subsequent

    figure, it could be considered the 'greatest common factor'.24

    O motivo como germe de toda a composio musical pode ser observado numa

    grande quantidade de composies em diversos perodos da histria da msica. Para

    enriquecer a reflexo sobre a proposta, tomo como base as fugas do perodo barroco,

    que, conforme vamos observar, so bons exemplos de Msica Borromeana.

    As fugas so estruturadas de tal maneira que todas as figuras musicais subsequentes so

    variaes do motivo inicial. Este motivo inicial to importante na estrutura da Fuga

    que, na anlise musical, ele recebe um nome especial: sujeito. Um segundo motivoimportante o contra-sujeito, ou seja, um motivo que acompanha o sujeito e que a ele

    contraste e complemento.

    Tendo o sujeito como ponto e partida, toda a elaborao da msica feita a partir dele e

    em relao com ele. Na forma Fuga encontramos uma seco que se chama Stretto, um

    procedimento tcnico que faz com que todas as vozes, em simultneo, executem o

    sujeito em diversas variaes. Assim, temos uma elaborao complexa que utiliza o

    mesmo material como germe do trecho musical.

    A partir do momento em que, na Fuga, a escolha das alturas se d em relao com um

    ponto em comum que o sujeito, todos os motivos e estruturas que esto na pea

    24 SCHOENBERG, Arnold (1967). Fundaments of Musical Composition, London: Faber and FaberLimited, pp. 8. Traduo livre: Como quase toda figura dentro de uma pea revela alguma relao comele, o motivo bsico frequentemente considerado o 'germe' da ideia musical. Desde que ele incluielementos, ao menos, de todas as figuras musicais subsequentes, pode-se considerar que ele o 'mnimo

    mltiplo comum'. E como ele includo em toda figura subsequente, ele pode ser considerado o 'mximodivisor comum'.

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    16/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 55

    musical esto entrelaados de maneira borromeana. Desta maneira, pode-se dizer que as

    Fugas so as origens da Msica Borromeana.

    No momento em que um dos motivos alterado de uma maneira que no tem relaodireta com o sujeito, e indireta com os outros motivos variaes do sujeito, cria-se um

    elemento sem relao com o restante da composio musical, destruindo a estrutura de

    toda a pea. Os motivos funcionam como os anis amarrados borromeanamente entre si.

    A alterao de um motivo-anel, de forma a no relacion-lo com os outros, faz com que

    este se diferencie causando o desprendimento e a desamarrao que desfazem a pea.

    Como uma pequena ilustrao das manipulaes que podem ser feitas com os motivos,

    fao um grfico para analisar o sujeito. Este termo tcnico da Fuga no um termo

    utilizado em outras peas como esta Inveno, mas o utilizo, pois quero demonstrar o

    procedimento que aplicado tanto na fuga como noutras formas imitativas. O sujeito

    da Inveno n1 as notas d, r, mi, f, r, mi, d, sol em semicolcheias:

    Com o sujeito apresentado dessa maneira pode-se criar algumas abstraes. Ao analisar

    as distncias entre as notas, monta-se o seguinte conjunto [+1 +1 +1 -2 +1 -2 +4]. A

    distncia entre as notas uma espcie de quantidade de passos que se d entre uma e

    outra. feito da seguinte maneira: d a r = +1, r a mi = +1, mi a f = +1, f a r = -2

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    17/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 56

    (f-mi e mi-r) e assim sucessivamente. Quando anda-se para cima o intervalo leva o

    sinal de positivo (+) e quando o passo para baixo leva o sinal de negativo (-).

    Este motivo pode ser invertido pelo simples processo de inverso dos sinais. O contornomeldico invertido (o que subia, agora desce e vice-versa) mantendo alguma

    semelhana e relao. Esse processo utilizado no primeiro desenvolvimento do sujeito

    e aparece na partitura entre os compassos 3 e 4 na mo direita. Nota-se que o contorno

    permanece o mesmo, mas as direes esto trocadas. Se transformarmos os intervalos

    em um conjunto numrico, temos o conjunto [-1 -1 -1 +2 -1 +2 ]. Transcrevo abaixo um

    trecho do compasso 3.

    Nos dois exemplos no foram realizadas alteraes nas questes temporais, sendo uma

    nota tocada depois da outra na mesma durao. O grfico representa cada nota com a

    diferena de um espao de tempo entre elas. Se realizarmos a aumentao temporal,

    teremos uma nota a cada dois espaos de tempo. Esse processo chama-se aumentao

    e aparece pela primeira vez na partitura entre os compassos 3 e 4 na mo esquerda.

    Nesta aumentao (compassos 3 e 4) o sujeito fragmentado, ou seja, utiliza-se apenas

    um segmento do sujeito. O fragmento utilizado so as 5 primeiras notas substituindo o

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    18/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 57

    salto 25 -2 pelo -5, ou seja, mantm-se o salto e aumenta-se o tamanho. Pode-se

    representar esta fragmentao pelo conjunto [+1 +1 +1 -5], assim percebe-se a relao

    com o motivo inicial representado pelo conjunto [+1 +1 +1 -2 +1 -2 +4]. Transcrevo

    abaixo o compasso 3 onde o motivo fragmentado aparece duas vezes, a ltima nota do

    primeiro fragmento a primeira nota do segundo fragmento.

    Atravs desses trs grficos possvel perceber como um sujeito pode ser transformado

    num conceito abstrato ou num conjunto. Essa transformao de um motivo musical em

    algo mensurvel um exemplo de como a msica serial trabalhou os seus parmetros:

    conceitualizar algo para transform-lo.

    Se o objetivo fosse fazer fugas, eu no precisaria propor uma Msica Borromeana. A

    proposta de Msica Borromeana baseia-se no princpio de inter-relao e

    interdependncia das dimenses envolvidas na composio, princpio que foi esboado

    acima. Na proposta, o princpio de inter-relao ampliado para todos os parmetros

    envolvidos na composio. Ou seja, a pretenso da proposta de Msica Borromeana

    de que a durao, as alturas, a forma, a quantidade de motivos e outros demaisparmetros da pea estejam relacionados, interligados e que sejam interdependentes.

    Formulao da Msica Borromeana

    Em Ponto, Linha e Plano, Kandinsky aponta para a falta de uma mensurao precisa

    na arte abstrata, assim como para o uso do nmero como ferramenta de medio:

    25 O termo tcnico salto indica o movimento meldico que no por grau conjunto, neste caso,com intervalo maior que 1.

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    19/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 58

    a relao das dimenses define a noo do ponto, o que hoje s pode ser

    avaliado intuitivamente - falta-nos uma mensurao precisa. Com a

    evoluo futura desses meios de expresso, sero indispensveis noes mais

    precisas que podero ser obtidas atravs da medio. A frmula numrica ser

    inevitvel.26

    A possibilidade de converter os elementos musicais em algo mensurvel, que no

    destrua as caractersticas do objeto original que est a ser analisado e trabalhado,

    possibilita uma funo comum para operar os elementos envolvidos na msica. A partir

    do momento em que se desenvolve uma tcnica com a qual se consegue trabalhar as

    duraes, as notas, as dinmicas, as quantidades de motivos, as quantidades de seces,os timbres e os demais parmetros da composio convertidos em um sistema comum e

    abstrato (numrico ou no), possvel que as informaes de uma instncia possam ser

    aplicadas em outra instncia.

    Ou seja, quando se converte o contedo intervalar de um motivo em um conjunto

    numrico e utiliza-se este conjunto numrico para controlar as duraes, faz-se o

    cruzamento das informaes de uma instncia composicional com outra. Os fatores

    organizacionais, melhor dizendo, as qualificaes do contorno meldico de um motivosero utilizadas para controlar as duraes de outra estrutura.

    Esse procedimento pode ser aplicado para relacionar qualquer instncia envolvida na

    composio. Para tal, faz-se necessrio estabelecer uma medida mnima para cada uma

    das instncias composicionais. Ou seja, uma durao mnima, um intervalo mnimo,

    uma quantificao mnima.

    A conceo da existncia de um mnimo indivisvel, de uma partcula adotada comoindivisvel tem origem no que Bochmann chama de Msica Isobemtica. O termo

    Isobemtico feito da unio de duas palavras gregas.Isodesigna aquele que tem o

    mesmo valor com outro conjunto27, tal como em isotrmico que o que tem igual

    temperatura ou isomtrico que o que tem dimenses iguais. O outro termo Bema

    26 KANDINSKY, Wassily. Ponto, Linha, Plano. Lisboa: Edies 70, Ltd., pp. 37 e 38.

    27 SENSAGENT : Encyclopdie en ligne, Thesaurus, dictionnaire de dfinitions et plus. Visitado em18/07/2012. http://dictionnaire.sensagent.com/%CE%AF%CF%83%CE%BF%CF%82/el-el/

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    20/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 59

    que significa a maneira de andar, a taxa de caminhar ou executar, posio relativa de

    uma srie28. Bema pode ser simplificado pelo termo passo. Portanto, Isobemtico

    algo feito com passos iguais, com tamanhos que tm o mesmo valor, com

    deslocamentos por uma unidade constante e regular.

    A propsito da quantificao, Lacan diz que a quantificao, no fundo, uma

    qualificao:

    Voil un des piliers du discours psychanalytique. Mme ce discours, comme

    tous les autres, je l'ai qualifi de quadripode. Peut-tre que je l'ai qualifi

    comme je viens de vous dire, hein, je l'ai qualifi, justement, je considre que

    c'est une qualification, quadripode, et pas une quantification, hein, parce que

    plus je vais, plus je suis convaincu que nous ne comptons que jusqu' trois.29

    Dessa maneira, a qualificao de qualquer elemento musical, seja atravs de um

    conjunto numrico ou qualquer outro mtodo de conceitualizao, um destacar,

    observar e reter as qualidades do objeto ou do elemento utilizado na composio

    musical.

    Com a mensurao, que uma forma de conceituar, pode-se trabalhar todas asinstncias envolvidas na composio com o mesmo conceito. Ou melhor, pode-se

    compor com um conceito ou uma qualificao aplicada a todas as instncias. Esta

    conceo possibilita que os parmetros de uma instncia alterem os parmetros da outra,

    provocando um entrelaamento das instncias estruturais.

    Visto que a composio musical est na amarrao do RSI, a pea surge no lugar do

    objeto(a). A proposta de Msica Borromeana de construir uma msica a partir do

    ponto comum de todas as dimenses envolvidas na composio musical. Cada um dos

    crculos um parmetro tal como a altura (frequncia, nome da nota), durao, forma,

    28SENSAGENT : Encyclopdie en ligne, Thesaurus, dictionnaire de dfinitions et plus. Visitado em18/07/2012. http://dictionnaire.sensagent.com/%CE%B2%CE%AE%CE%BC%CE%B1/el-el/29 LACAN, Jacques (1973-74). Le Sminaire, Livre 21 : Les non-nupes errent, pp. 58.http://staferla.free.fr visitado em 18/07/2012. Traduo livre: C est um dos pilares do discursopsicanaltico. Mesmo este discurso, como todos os outros, eu o qualifiquei de 'quadripodo'. Talvez eu otenha qualificado como eu recm vos disse, hein, eu o qualifiquei, justamente, eu considero que isto

    uma qualificao, 'quadripodo', e no uma quantificao, hein, porque quanto mais eu avano, mais eusou convencido que ns s contamos at trs.

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    21/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 60

    dinmica ou outro parmetro envolvido na composio musical. O ponto central, o do

    objeto(a), o ponto em que todos os parmetros se relacionam, o espao em que cada

    um dos parmetros est em relao comum com todos os outros parmetros.

    Na proposta de Msica Borromeana, o objeto(a) o ponto central e comum a todas as

    dimenses envolvidas. Ele condensa em si a qualificao, mas tambm a quantificao

    de todas as instncias da amarrao. , pois, a partir da que a msica se faz.

    Por isso, ouso chamar a este objeto o objeto causa da composio, semelhana do

    objeto (a), causa do desejo.

    Como na Fuga, a partir do momento em que o sujeito delimitado, todo o ato da

    composio flui para o elaborar em funo do objeto causa.

    Este objeto no se deixa prender, nem apreender diretamente. Ele escapa e adquire

    sempre outra forma, manifestando-se diferentemente do esperado. Quando tentamos

    definir o objeto causa da composio, este transforma-se. O conceito e a mensurao do

    objeto na composio pedem esta transformao, pois o objeto o ponto estrutural da

    pea musical e no o principal ponto de observao e audio. Podemos dizer que o

    objeto(a) como causa ausente da msica est presente em toda a composio.

    Heidegger escreve:

    Onde o artista e o processo e as circunstncias da gnese da obra permanecem

    desconhecidos, que mais puramente ressai este choque, este 'que' do ser-

    criado da obra.30

    Dito de outro modo: onde o modo de fazer que une e integra a pea inteira est menos

    exposto, l, precisamente, onde a pea foi melhor trabalhada e construda. Isto no

    significa que o compositor deva esconder os seus procedimentos e mecanismos.

    O processo e as circunstncias de que fala Heidegger so o Simblico e a tcnica

    composicional. O Real da pea o que do ser-criado da obra. O colocar-em-obra do

    Simblico um exerccio estilstico tal como o estudo da harmonia e do contraponto.

    30 HEIDEGGER, Martin (2008).A Origem da Obra de Arte,Lisboa: Edies 70, Ltd, pp. 52.

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    22/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 61

    Como dizia Lacan, para que a amarrao Borromeana acontea necessrio que o Real

    surmonte o Simblico.

    O trabalho do compositor consiste finalmente no objeto causa de composio. Se umadas trs dimenses (RSI) deixar de se ligar s demais, a composio desamarra-se,

    fazendo com que as dimenses do n borromeano se desprendam. isto que faz com

    que o compositor tenha de se responsabilizar por todos os elementos e alteraes que

    faa sua msica, pois sua responsabilidade manter a pea amarrada, manter a pea

    com um desejo e um objeto que oriente a ao.

    Finalizando, a Msica Borromeana entrelaa o Simblico (uma linguagem musical) o

    Imaginrio (elaborao musical) e o Real (o impensvel).

    Exemplo de Msica Borromeana

    Para a minha palestra no Seminrio da Antena do Campo Freudiano compus uma pea

    eletroacstica que ilustra o objeto da composio borromeana e mostra o resultado do

    processo. Esta chama-se Sinos Borromeanos31.Foi feita utilizando apenas um som, uma

    nica amostra sonora, o que na msica eletrnica se chama sample.

    O conjunto utilizado para a composio [4, 7, 3, 4] e constitudo de elementos da

    srie de Lucas. Esta srie foi a origem do grfico de proliferao32que utilizei como

    agente sistematizador para a composio.

    No campo formal, este conjunto foi aplicado para gerar 4 partes, sendo A, B, C, A. Ou

    seja, trs partes distintas mais a repetio da primeira. O tamanho (durao) de cada

    uma das partes seguiu a ampliao desse conjunto pela srie de Lucas, resultando em

    [843, 1364, 521, 843]. A menor durao adotada na pea, o Bema da durao foi 80milisegundos (0,08 segundos), o que resulta numa primeira parte com 67,44 segundos

    (1 minuto e 7,44 segundos) e assim sucessivamente.

    31 Sinos Borromeanosest disponvel no blogue http://gilsonbeck.blogspot.com para escuta e download.Ela foi composta utilizando o PureData e estou disponvel a distribuir os arquivos que so uma espcie departitura.

    32 Detalhes sobre o grfico de proliferao e as operaes feitas para a composio desta pea estoescritos no meu trabalho de mestrado disponvel em http://gilsonbeck.blogspot.com .

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    23/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 62

    No campo das alturas, ou melhor dizendo, no campo das tessituras, o contorno do

    conjunto [4, 7, 3, 4] foi invertido. Assim, a seco A que explora a regio mdia, a

    seco B que explora a regio grave e a seco C que explora a regio aguda.

    No campo dos materiais, a seco A relativamente movimentada, que, na sua

    estruturao, contm o material de todas as outras subseces. A seco B uma nota

    pedal grave sobre a qual surgem 7 acordes, sendo assim uma seco lenta e

    contemplativa. A seco C feita de vrias notas, no registro agudo, apresentando-se

    como uma seco de movimento que conduz ao retorno da seco A para finalizar a

    pea.

    A quantidade de subdivises de cada parte seguiu os nmeros absolutos do conjunto.

    Assim, A tem 4 subdivises, B tem 7 subdivises (7 acordes) e C tem 3 subdivises.

    Espero que esta pequena e no exaustiva exposio dos mecanismos tcnicos utilizados

    na composio da pea sirva para ilustrar o entrelaamento das dimenses

    composicionais na proposta de Msica Borromeana. Obviamente que a Msica

    Borromeana pode apresentar diversos resultados e pode ser utilizada para a produo de

    outras peas com outros contedos.

    Ressalto que o mais importante que o Real da composio possa se manifestar de

    alguma forma. Esta proposta no uma cartilha tcnica, mas uma reflexo sobre um

    fazer composicional que tenta conduzir a resultados consistentes, produtores de uma

    experincia esttica.

    Fechamento

    Espero que estes apontamentos possam, de alguma maneira, contribuir para odesenvolvimento do dilogo entre Psicanlise e Msica, e Msica e Psicanlise.

    As relaes que apresentei entre a prtica composicional, RSI, o n borromeano e o

    objeto(a) tm ainda de ser desenvolvidas, melhor justificadas e elaboradas.

    Sobram algumas reflexes: ser que a msica surge como o objeto(a) do sujeito que

    compe? Como se d borromeanamente a dinmica social da obra de arte, do artista e

  • 7/25/2019 Para Uma Musica Borromeana

    24/24

    Afreudite Ano VIII, 2012 n. 15/16

    pp. 40-63

    Msica e Psicanlise 63

    dos protetores da Arte33? A msica pode ser fruto de um dos discursos formulados por

    Lacan?

    Talvez seja tambm o momento de produzir algumas peas construdas a partir destaminha formulao.

    A msica de hoje tem vrios caminhos abertos, e j no h o bem estabelecido que se

    segue ou ao qual se buscam alternativas. A inveno constante dentro desta

    multiplicidade, levando o compositor a um posicionamento e responsabilizao pelo

    caminho adotado.

    Segundo o psicanalista Jorge Forbes34, a sociedade contempornea est organizada com

    um lao social horizontal, onde as padronizaes do mundo pr-globalizao no so

    mais vigentes. O indivduo passa a ter de inventar uma atitude frente ao mundo,

    inveno pela qual ele se responsabiliza. Este vai ter que ser tanto uma coisa para

    poder ter a flexibilidade de estar em vrios lugares35. Dentro da multiplicidade, o

    compositor levado a assumir a sua prpria postura composicional e ser tanto esta

    postura adotada para poder sustent-la no meio da diversidade.

    Todavia, uma viso que no se fizesse de um certo ponto de vista e que nos desse, porexemplo, todas as faces de um cubo de madeira de uma s vez uma pura contradio

    nos termos, pois, para serem visveis em conjunto, todas as faces de um cubo de

    madeira deveriam ser transparentes, isto , deixariam de ser as faces de um cubo de

    madeira.36

    33 Os conceitos e Artista, Obra de Arte e Protetores da Arte so desenvolvidos em HEIDEGGER, op. cit.34FORBES, Jorge (2003). Gerao mutante in Voc quer o que deseja?, Rio de Janeiro: Editora BestSeller, pp. 24-2835 FORBES, Jorge. Conferncia no ciclo Inveno do Contemporneo promovido pela CPFL Cultura.Campinas. http://youtu.be/PRdPyqSd8Gw ca. 4'40, visitado em 18/07/2012.

    36 FRAYZE-PEREIRA, Joo A (2005). Arte, dor: inquietudes entre esttica e psicanlise, So Paulo:Ateli Editorial, pp. 102