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IX Seminário Internacional Redes Educativas e Tecnologias. Rio de Janeiro, de 05 a 08 de junho de 2017 1 PARA PENSAR AS OCUPAÇÕES ESCOLARES ENQUANTO MOVIMENTO E ATO PEDAGÓGICO Julio Cesar Roitberg SOBRE O QUE PRETENDO FALAR E DE QUE LUGAR Proponho, para contar estas histórias estudantis sobre as ocupações escolares, falar do meu lugar de professor de Português, da educação básica, lecionando no ensino médio técnico integral, de uma escola técnica, na zona oeste, onde desenvolvo uma pesquisa sobre as ocupações escolares. Trabalho em uma escola que passou por três eventos que eu considerei críticos: greve dos professores, funcionários e administrativos; greve de estudantes em apoio às suas professoras e seus professores; e ocupação estudantil, a Escola Técnica Santa Cruz (ETESC), unidade da Fundação de Apoio às Escolas Técnicas do Rio de Janeiro (FAETEC), da Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, em Santa Cruz, no extremo oeste do Rio de Janeiro. Diante desta configuração, começo em um ponto entre dois eventos que, decididamente, seriam marcos da minha pesquisa: a configuração daquela escola antes e depois da ocupação (ROITBERG, 2016). Depois, resolveria o que considerar nesta “configuração”, já que se trata de uma pesquisa multirreferencial, cujos caminhos vem sendo construídos durante o percurso. Creio que, assim, possa acompanhar as estratégias e as táticas das juventudes que surpreendem e encantam. Toda a mídia global que reforça o senso comum, a estereotipização, a indústria do consumo, não deslustra sua éticaestética (OLIVEIRA, 2009), revelada nos movimentos, gritos de guerra, refrões, com pandeiros, apitos, cornetas e rojões a explodir, tanto nos atos e nas manifestações, quanto nas ocupações de diversos espaços, além dos escolares, que, devido ao inusitado, ao diferente, à surpresa, ao ineditismo e à agilidade das ações, deixaram e tem deixado o governo e as redes escolares da educação básica pública perplexos. Apitaços, gestos, rostos pintados e narizes de palhaços compõem os jograis repetidos por estudantes que, à deixa do megafone, sentam-se no meio de avenidas, fechando vias públicas, artérias da cidade como estratégia anárquica bem mais funcional do que a extensão, de ponta a ponta de uma rua, quando estendem faixas quando o sinal fica vermelho. Gritam os incomodados: “Baderneiros! Onde estão os pais destas crianças que não botam os filhos nas escolas?!”. DO QUE LANÇAR MÃO PARA ENTENDER O INUSITADO No início de 2016, durante um período de greve docente, os estudantes secundaristas das escolas públicas do Rio de Janeiro, em apoio às professoras e professores e reivindicando melhorias

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IX Seminário Internacional Redes Educativas e Tecnologias. Rio de Janeiro, de 05 a 08 de junho de 2017 1

PARA PENSAR AS OCUPAÇÕES ESCOLARES

ENQUANTO MOVIMENTO E ATO PEDAGÓGICO

Julio Cesar Roitberg

SOBRE O QUE PRETENDO FALAR E DE QUE LUGAR

Proponho, para contar estas histórias estudantis sobre as “ocupações escolares”, falar do

meu lugar de professor de Português, da educação básica, lecionando no ensino médio técnico

integral, de uma escola técnica, na zona oeste, onde desenvolvo uma pesquisa sobre as ocupações

escolares. Trabalho em uma escola que passou por três eventos que eu considerei críticos: greve dos

professores, funcionários e administrativos; greve de estudantes em apoio às suas professoras e seus

professores; e ocupação estudantil, a Escola Técnica Santa Cruz (ETESC), unidade da Fundação de

Apoio às Escolas Técnicas do Rio de Janeiro (FAETEC), da Secretaria de Estado de Ciência e

Tecnologia, em Santa Cruz, no extremo oeste do Rio de Janeiro. Diante desta configuração, começo

em um ponto entre dois eventos que, decididamente, seriam marcos da minha pesquisa: a

configuração daquela escola antes e depois da ocupação (ROITBERG, 2016). Depois, resolveria o

que considerar nesta “configuração”, já que se trata de uma pesquisa multirreferencial, cujos

caminhos vem sendo construídos durante o percurso. Creio que, assim, possa acompanhar as

estratégias e as táticas das juventudes que surpreendem e encantam. Toda a mídia global que

reforça o senso comum, a estereotipização, a indústria do consumo, não deslustra sua éticaestética

(OLIVEIRA, 2009), revelada nos movimentos, gritos de guerra, refrões, com pandeiros, apitos,

cornetas e rojões a explodir, tanto nos atos e nas manifestações, quanto nas ocupações de diversos

espaços, além dos escolares, que, devido ao inusitado, ao diferente, à surpresa, ao ineditismo e à

agilidade das ações, deixaram e tem deixado o governo e as redes escolares da educação básica

pública perplexos. Apitaços, gestos, rostos pintados e narizes de palhaços compõem os jograis

repetidos por estudantes que, à deixa do megafone, sentam-se no meio de avenidas, fechando vias

públicas, artérias da cidade como estratégia anárquica bem mais funcional do que a extensão, de

ponta a ponta de uma rua, quando estendem faixas quando o sinal fica vermelho. Gritam os

incomodados: “Baderneiros! Onde estão os pais destas crianças que não botam os filhos nas

escolas?!”.

DO QUE LANÇAR MÃO PARA ENTENDER O INUSITADO

No início de 2016, durante um período de greve docente, os estudantes secundaristas das

escolas públicas do Rio de Janeiro, em apoio às professoras e professores e reivindicando melhorias

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na qualidade da educação, protagonizaram o movimento de ocupação escolar, fato inédito nos

movimentos estudantis: em abril daquele ano, ocuparam mais de 70 escolas em apenas dois meses.

Como havia me decidido iniciar a minha pesquisa através de um mergulho nos cotidianos de uma

escola (ALVES, 2008), estudando, a partir dali, os processos que constituem as lutas e resistências

das juventudes, tanto o impacto diante do inusitado, quanto a curiosidade crítica (FREIRE, 2011)

me levaram a aproveitar aquela oportunidade: a ETESC, a minha escola, também fora ocupada. Ao

especificar o meu interesse no movimento das ocupações escolares, enquanto processo de luta e

resistência estudantil, decidi visitar outra escola, também ocupada, a fim, de, cessada a ocupação,

ao retornar à ETESC, ter uma vivência e experiência que me facilitasse ponderar a respeito

daqueles dois coletivos. A “visita” ao Colégio Estadual Visconde de Cairu, cujos estudantes me

franquearam a permanência enquanto professor daquela outra rede e pesquisador, durou três meses,

durante os quais, duas a três vezes por semana, me deslocava até o Meier, bairro tradicional e

boêmio no subúrbio carioca, cortado pela linha do trem, com intenso comércio e zona residencial.

Na volta diária, de trem, registrava, no meu caderno, os atos e as atitudes expressos nos devires,

paixões, dramas, amores, amizades, companheirismo, disputas, traições, as representações daquela

comunidade estudantil. No segundo semestre de 2016, voltando à ETESC, iniciei as buscas pelas

pistas, pelos rastros, pelos indícios (GINZBURG, 2006) nas imagens, nas conversas, no estarjunto

daquelxs alunsx, definindo, como marcos para a pesquisa o período entre a sua ocupação, incluindo

o histórico anterior, cortada pela desocupação até a eleição do grêmio para a gestão 2016/2017.

Com a experiência e vivência da ocupação no Cairu, guardadas as diferenças entre as duas escolas,

durante a ocupação – momento único daquelas comunidades – entendi que o confinamento de

adolescentes durante três meses, geraria situações críticas de relacionamento, mesmo sendo a

ETESC uma escola de período integral, de segunda a sábado. Mas, o que seria ocupar um espaço já

ocupado?! As escolas ocupadas, relativamente opunham-se às escolas não ocupadas, não só em

relação ao aproveitamento espacial, como, também, nas ações, horários, tarefas, no trânsito, no

cardápio; tornaram-se, durante a ocupação, em “contraespaços” (FOUCAULT, 2013; p. 20). O

filósofo apresenta “estes espaços diferentes, esses outros lugares, essas contestações míticas e reais

do espaço em que vivemos” (...), diferente das “utopias” (...) as “hetero-topias”, espaços

absolutamente outros (...)”. “Situados, esses lugares reais, fora de todos os lugares” (Idem; p. 20-

21), à noite, jogando baldes d’água uns nos outros, com as luzes apagadas, pelos corredores;

brincando de pique esconde e de skate dentro da escola, alegres como no tempo de criança, nas

brincadeiras em baixo dos lençóis, os “ocupas” fizeram com que, através do inventar, adaptar,

conformar, relocar os espaços, a escola se tornasse em festa. O planejamento vinha sendo gestado,

na imaginação coletiva, há tempos, nas reuniões e assembleias da ocupação. Afinal, “o espaço

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chama a atenção, e antes da ação a imaginação trabalha” (BACHELARD, 1978; p. 205). Ouvindo

xs alunxs, desconfiei que, habitando aquele espaço coletivo, naquela “casa”, não só os hábitos, mas,

os estados de emoção potencializados poderiam ter gerado conflitos, aproximações e

distanciamentos, incluindo o respeito – ou não! - às diferenças, p. ex., opção política, cor da pele,

orientação sexual, religiosa, etc.

M.(16) (...) A minha primeira e única escola, além da FAETEC, é uma escola evangélica.

Apesar de eu ser católica, era uma escola evangélica. Então, já era muito fechada. Eu vivia

num mundo muito fechado. A partir do momento que eu saí do meu bairro pra vim estudar

na FAETEC, as coisas já mudaram. Perspectivas, as pessoas que eu falava, como eu falava

com as pessoas, já mudou (...).ETESC 20/07/2016

As consequências daquele confinamento poderiam explodir na disputa historicamente mais

importante daquela escola: a direção do grêmio, na primeira eleição após a ocupação. Encerrada a

greve e a ocupação da ETESC, de volta como professor, passei observar os inerrelacionamentos, na

sala de aula e nos outros espaços do prédio, do campus, no refeitório, no pátio, na “graminha”, na

quadra, na “biquinha”. Vivenciava os cotidianos daquela escola, depois da ocupação, buscando, nas

histórias e narrações, as “lembranças” (BENJAMIN, 2012) do movimento. Havia combinado não

fotografar xs estudantes durante a ocupação, para interferir o mínimo possível naqueles cotidianos,

entretanto, no final de 2016, quase no recesso, alguns estudantes cederam generosamente diversas

fotografias de toda a ocupação, com xs colegas dentro e fora da escola, compondo o material de

pesquisa, além de boletins, panfletos, cartilhas e adesivos referentes ao movimento, jornais que

adquiri, de março até junho de 2016. Para contar o que tenho vivenciado, venho desenvolvendo

uma “metodologia-filosofia” das conversas (OLIVEIRA, 2009): através das conversas, em um

ambiente bacana, onde haja confiança, os assuntos são gerados e ampliados de acordo com o “rumo

da prosa”. Com isto, quero proceder a um estudo multidisciplinar oportunizando reflexões sobre a

intertextualidade e a polifonia dos textos de maneira ampla. Pretendo associar a intencionalidade

textual, com os registros e as anotações das conversas com voluntárixs da pesquisa, à utopia da

linguagem, às “narrativas fotográficas” (VAZ, 2006), à “sociologia da imagem” (MARTINS,

2011), à ideologia do discurso (KRISTEVA, 1974, p. 127-138), às subjetividades em negociação

(REGO, 2010), durante a minha permanência cotidiana em uma ocupação escolar. Minha primeira

excursão seria um teste: xs alunxs me convidaram a ir em uma manifestação na sede da FAETEC. E

eu fui.

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Figura 1 Organizando (Foto cedida)

O OLHAR DE QUEM OLHA A OCUPAÇÃO

Três da tarde em Quintino, bairro do subúrbio carioca onde se localiza uma das maiores

escolas técnicas do estado do Rio de Janeiro - E.T.E. República, a sede da rede. Dezenas de

estudantes se deslocaram para um ato de protesto, na tentativa de abrir um canal de diálogo - marca

da horizontalidade daquela juventude de “ocupas”. Além da militância e da pesquisa, mais pela

simpatia e amizade dos laços estreitados, aproveitei o convite do grêmio e fui com elxs, de trem,

numa deliciosa viagem e entre brincadeiras, zoação, azaração, chegamos. Fomos a pé da estação até

o campus, subindo e descendo a ladeira íngreme, sempre brincando. Assim como nas manifestações

de 2013 (SAKAMOTO 2013), aquele ato foi organizado pelas redes sociais. Junto a outros

presidentes de grêmios, R. (17) puxava o coro, pulando e batendo palmas entre todos, enquanto o

ato era filmado e transmitido online pela internet, pelos celulares dxs estudantes, o que pode ter

garantido a sua entrada. Os seguranças também filmavam, com outras intenções. Eu filmava não me

detendo apenas nas faixas e nas bandeiras dos grêmios e das organizações estudantis. Procurava os

detalhes.

DANÇANDO NA RAMPA

A “presidência” havia se negado a dialogar, a receber a estudantada que havia se deslocado,

muitxs, a centenas de quilômetros de suas escolas. Meia hora ao som de apitos, pandeiros e muitos

refrões, e, apesar de todo o clima de alegria, elxs deram mostra que não estavam ali para

brincadeira. Como nenhum representante fora até elxs – mesmo com muitos burocratas olhando

pelas janelas do prédio -, um estudante coloca a mão em concha na boca e grita: “Galera, vamos

puxar uma assim: “Vem, resistência, vamos ocupar a presidência!”. Imediatamente todxs começam

a repetir, gritando, batendo palma e pulando: “Vem, resistência, vamos ocupar a presidência!”. As

lideranças passavam entre os manifestantes gritando, batendo palma, puxando e estimulando.

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FILMA EU, PROFESSOR!

Figura 2 Momento (Foto do autor)

Em Quintino, na rampa da presidência, ao darem uma pausa, dirijo-me a uma das

manifestantes, ativista do grêmio e pergunto se ela não quer cantar a música que haviam feito sobre

a repetição diária da mesma refeição em sua escola, para eu filmar. M., entusiasmada, mais outrxs

colegas, imediatamente, começa a cantar batendo palma. “Todo dia na ETESC é segunda...” Um

estudante ironiza, falando sobre a visita de um assessor da presidência em sua unidade quando

afirmara que “só” na segunda feira é que tem atum. Para aquela moça, de 16 anos, na medida em

que, em todos os dias, é servida a mesma comida: macarrão com atum, às vezes, variando com ovo,

isto só serviria de piada. Logo a seguir, passa um aluno e pede, fazendo pose, pedindo: “filma eu,

professor!”. Ao se deparar com a possibilidade em se ver eternizado diante da minha câmera, um

artefato tecnológico de grande valor agregado na sociedade da exposição, assim como para ele, o

aluno expressa o que o seu registro, traduzido em pixels, digitalizados, lhe permite: a perenidade

desta “linguagem mediadora” representada através das imagens. O presidente do grêmio faz a

convocação pedindo sentar informando a negativa em recebê-lxs. Enquanto tudo isto acontecia,

com nossas imagens já circulando através das redes sociais, chega a notícia que uma emissora de

TV estava colocando no ar, ao vivo, tudo aquilo. Apesar de avessos à “velha mídia”, estas

juventudes ainda necessitam da TV para, deslocando-se de sua posição, saírem do anonimato.

“Interconectados através de “um sistema de comunicação interpessoal independente do controle da

velha mídia” (SAKAMOTO, 2013; p. 90), os jovens, ao mesmo tempo em que se utilizam das redes

sociais para convocação, protestos, abaixo assinados digitais, não dispensam o uso daquelas. Os

estudantes levantam-se e reiniciam os gritos e as palmas, cada vez mais alto e rápido, quase que

ensurdecedor, eufóricos, embriagados pela comoção coletiva, pulando na rampa. Que tremia. Daí

que não demorou a chegar um porta-voz tentando “conter os ânimos” através de um discurso

desqualificador, pretendendo infantilizar aquelxs jovens. Atitude já percebida no mês de junho,

diante da determinação judicial para desocupar o prédio da Seeduc, quando os estudantes disseram

que as autoridades tentaram negociar a desocupação em troca de balões e até uma festa, o que

acharam tremendamente infantil. Disseram, ainda, que ficaram toda a tarde participando de

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“atividades dinâmicas” promovidas pelas autoridades. “Segundo eles, a juíza chegou a oferecer uma

festa com DJs caso o local fosse desocupado. Por volta das 19h, alguns esvaziavam os balões na

garganta e gritavam palavras de protesto com a voz afinada pelo gás.” (Jornal Extra, 24/06/2016; p.

7) As conversas entre professores e estudantes rodavam em torno das manobras para o iminente

golpe na democracia – infelizmente, concretizado! - e o retorno da direita neoliberal,

fundamentalista e reacionária até a aprovação, no Senado da PEC 55, que ameaçava congelar os

investimentos na educação por 20 anos.

Figura 3 Empodere-se! (Foto do autor)

Essa e outras iniciativas do governo Temer, como a reforma do ensino médio, com a

eliminação de disciplinas tornadas obrigatórias pela LDB, e a chamada “Lei da Mordaça”,

sob o lema “escola sem partido”, desencadearam a maior mobilização dos estudantes

brasileiros já registrada desde o enfrentamento da ditadura militar nos anos 60-70, a

chamada “primavera secundarista”. No final de outubro, 1.108 escolas secundárias e 82

universidades se encontravam sob a ocupação dos estudantes, segundo levantamento da

UNE (União Nacional dos Estudantes|) e da UBES (União Brasileira dos Estudantes).

(Jornal TodaPalavra. Dez, 2016. p. 5).

Nas notícias do estado, o secretário tinha-se mostrado preocupado com um

‘fundamentalismo’ dentro da ocupação: o movimento era muito organizado e aparelhado por grupos

políticos, tendo uma dinâmica própria organizacional. Talvez o “aparelhamento” a que ele se

referia, em se tratando dos estudantes que participaram do movimento, não tenha sido realizado

“por grupos políticos”. Talvez ele tenha esquecido o mestre: “educação é um ato político” e que:

O mito da neutralidade da educação, que leva à negação da natureza política do processo

educativo e a tomá-lo como um quefazer puro, em que nos engajamos a serviço da

humanidade entendida como uma abstração, é o ponto de partida para compreendermos as

diferenças fundamentais entre uma prática ingênua, uma prática astuta e a outra crítica.

(FREIRE, 2011; p. 34)

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Diante de algumas fotografias, selecionadas dentre as do meu álbum de fotos, e outras do

movimento #ocupaetesc, em que aparecem faixas e cartazes com as inscrições “Salvem a

FAETEC”, “Mudar a política para mudar o Brasil”, mostradas na salinha do grêmio, no mês de

julho -, quando, normalmente, aconteceriam as férias escolares, escuto:

C.(16) – (...) Eu queria destacar o de cima: “mudar a política pra mudar o Brasil”.

Pra você vê que a luta política começa ali. Começa com você reclamando, porque faltou o

almoço e vai tomando uma dimensão muito grande. Porque uma coisa acarreta a outra.

(...)

M.(16) – E aí começa a incomodar os políticos. E quando incomoda eles, eles resolvem

fazer alguma coisa.

(...)

C.(16)– No início, você vai debater sobre a falta da comida e o dever de dar comida. Hoje a

gente vai debater sobre a bancada evangélica no Congresso que tá fazendo o que tá fazendo

aí.

(...)

M.– Outro tipo de bancada ou qualquer outra coisa que esteja errada assim...

C.– Isso é educação política.

M.– Um motivo vai despertando vários outros e vai despertando dentro da gente...

C.– O interesse de conhecer...

A.(16)– O interesse de correr atrás, e de estudar e de querer debater e conversar. Por

exemplo, eu: antes de começar a me envolver com o pessoal do grêmio e tal, eu ouvia um

debate sobre alguma coisa, eu sairia até de perto. Porque não me interessava, eu não tinha

vontade de...

M.– Antes, na verdade, eu devo ser uma das mais pequenininha.

L.– Antes da ocupação...

M.– Exatamente .

L.– Não tinha tanta conscientização...

M.– Não tinha consciência de que eu tinha tanto poder. Eu, podia dizer pra vocês, que eu

vivia num mundo bem fechado, da minha... Eu fui criado num bairro só. Sempre nesse

bairro. RISOS

(...)

C.– Isso é orientação política. ETESC 20/07/2016 12:00:30

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Os estudantes que ocupavam a Seeduc só sairiam dali, depois das reivindicações atendidas,

assim como na manifestação no República. Ali em Quintino, na rampa, parecendo não levar a sério

a situação, a mulher, com voz adocicada, falando baixo e pausadamente, pedia não ocupar o prédio,

pois lá havia muitos documentos, que, se danificados, poderia prejudicar a vida de muitxs

estudantes. A “orientação política” exercida durante o movimento de ocupação das escolas havia

formado uma militância que não se intimidava nem diante da ameaça de desocupação à força por

parte da polícia, como acontecera em São Paulo em 2015 (ORTELLADO, 2016), quanto mais,

diante da negativa de não os receber. Era muito pouco e estavam ali para tudo. Um dos presidentes

de grêmio diz que, diante do impasse “eles – os estudantes – não vão sair, enquanto não forem

atendidos”, referindo-se ao fato de que iriam permanecer na rampa da entrada do prédio. Pode ter

sido devido à ameaça da exposição pela mídia, convocada através dos celulares. Pode ter sido

porque xs estudantes não sairiam tão cedo de lá. Pode ter sido por tantos outros motivos. Mas, o

fato é que, logo após a informação que aquilo tudo estava sendo espetacularizado, ao vivo, pela TV,

a mulher diz que seriam recebidos por uma comissão de representantes. No momento em que R.,

visivelmente contrariado, me informava de que eles não aceitariam, e que iriam, sim, ocupar, chega

a notícia de que todos nós fomos convidados a entrar no auditório. O homem, no segundo andar, na

sacada do prédio, registrava tudo, inclusive, a mim. Era o olhar do outro que, ao fotografar, também

era fotografado.

NUMA RODA DE FOTOGRAFIAS, AS EXPLOSÕES DE ALEGRIA

Não é só para o controle e a dominação que a imagem vem se prestando na sociedade

contemporânea: na educação, ela já se mostrou efetiva, não só para o registro factual ou para o

conhecimento através de um momento que se pretende – como se fora possível! – congelar. A

fotografia é uma coadjuvante na educação, nas experiências estéticas, nas ações pedagógicas: sua

utilização, na sala de aula quanto, nos espaçostempos (ALVES, 2008) formativos, tem-se revestido

como experiências de aprendizagem significativas. Para Susan Sontag (2004; p. 108), a “fotografia

é vista habitualmente como um instrumento para se conhecer as coisas”, mas, ela, também, nos

permite a aquisição de informações. Logo depois que terminou a greve e a desocupação, fiz o

convite para uma roda de conversa. Convidado à sala do grêmio, fui mostrando algumas fotografias,

devagarzinho, uma a uma. Não demoraram as explosões de emoção quando se viram nas fotos,

revivendo, no grupo, - chorando, sorrindo, se emocionando -, momentos significativos vivenciados

e experienciados durante a ocupação. Percebi o quanto gostariam de e precisariam narrar aquelas

experiências ricamente vivenciadas em quase três meses de confinamento voluntário. Isto me

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motivou na minha segunda atividade, em sala de aula, agora, como produção textual (POSSENTI,

2000), representada pelas conversas gravadas ou filmadas que deveriam realizar com outrxs colegas

envolvidos com a ocupação de sua escola, tanto os a favor – os do movimento “Ocupa Já!” -,

quanto aqueles que se colocaram como contrários ao movimento – os do “Desocupa Já!”, o que

passou a ser o assunto da semana na imprensa televisiva e nos jornais (Jornal O Dia, 14/05/2016. p.

6). Além de ameaças pelas redes sociais e agressões de estudantes de fora da escola, os ocupas

também tiveram de conviver com as ameaças no interior das escolas, diante do enfrentamento dos

contrários ao movimento (Jornal O Dia, 7/5/2016. p. 6). Observo que, apesar destas ações entre xs

estudantes, fenômeno de base das juventudes (OLIVEIRA, 2009), não ocorreram, no Rio de

Janeiro, as ações truculentas do estado coercitivo, como, anteriormente, em São Paulo. Houve, sim,

um início de tentativa de intervenção, no C.E. Chico Anysio, na Tijuca e as ações violentas da

guarda municipal do Méier contra estudantes em manifestação. Dentre os comentários sobre eu

estar trazendo para a sala de aula a ocupação, me chamou a atenção uma aluna do grêmio, R. (16),

de que eu não sabia o quanto aquilo estava fazendo bem a muitos deles, pois, depois da ocupação,

estavam vivendo um momento muito triste em meio a uma disputa pela nova eleição do grêmio e o

final de um momento muito agradável na vida deles. Ela me falou que os professores não tocavam

no assunto e os poucos que falavam em suas aulas, era para criticar: a certeza de que eu poderia e

deveria continuar a ocupação. Nas nossas aulas.

Figura 4 #OcupaTudo (Foto do autor)

O QUE CANTA QUEM SE ENCANTA COM O TEMPO QUE PASSA LENTO

Noutra semana, na ETESC, comecei a aula sobre ritmo, pausa, versificação e rimas como

efeitos melódicos, pensando nas cantoras e nos cantores que, durante a ocupação, apoiaram os

“viradões culturais”, incluídos nas rodas de conversa - Mc Carol, Tico Santa Cruz, Crioulo Doido,

Fael, Clarice Falcão, Teresa Cristina, do Cairu. Alguns eu já conhecia; outros, eu conheci nas

conversas. Conversando com F. (19), ativista da UJS (União Jovem Socialista) e H. (17) estudante

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do Cairu sobre o evento que reuniu diversos artistas em apoio ao movimento, o Viradão Cultural,

uma delas, citando as letras de Criolo e de Clarice Falcão, disse que

ela saiu daqui esperançosa que tem toda uma juventude que ‘tá pensando diferente dos

adultos e dá pra você perceber que ainda é tempo, que alguma coisa vai mudar daqui a um

tempo, que não vai continuar essa confusão toda. A gente tá vindo. A gente vai ter a idade

deles daqui a algum tempo. A gente vai poder mudar isso. A gente já tá mudando agora,

aqui na escola. É meio que isso (H.).

Figura 5 O estado acuado (Foto do autor)

As produções literárias que chegam à escola quando não ignoram as transgressões

deliciosamente cantadas pelos jovens em suas músicas preferidas, estas são reforçadas pelo senso

comum como produto das camadas desfavorecidas econômico-culturalmente. Na escola - espaço

em que se espera democrático - ritmos como o funk, o “proibidão”, com o uso de palavrões nem ao

menos são elencados enquanto “licença poética”: as “obscenidades” pertencem às exceções

literárias. Assim como as formas linguísticas que se afastam da “língua culta”, elas são prescritas

pelas gramáticas preocupadas com o que “se deve dizer”. A abstração (se não, fetichização) da

língua, tomada como um todo único, padrão, tenta esconder a realidade da sociedade brasileira:

cindida em classes sociais (POSSENTI, 2000). As camadas economicamente favorecidas cada vez

mais cavam a distância entre as bordas de um abismo entre elas e os que nada (ou pouco) tem que

lhes atenda as necessidades básicas. Portanto, afirmo freireanamente ser importante tanto trazer os

saberes não escolarizados, de domínio dos estudantes às aulas quanto ensinar a modalidade e os

registros que eles não teriam acesso fora da escola. Conversando com C., na salinha do grêmio da

ETESC, ouço:

C.– E tem duas coisas que eu queria falar: ali, na escola que a gente vive hoje, parece que

nós somos uma tábua rasa. A gente chega sem cultura nenhuma. A gente chega sem os

nosso saberes, né?! Da nossa comunidade. E não! A gente vem com muita coisa. A gente

não vem puro, sem nada. A gente vem com as coisas que nós sabemos, que a gente

aprendemos vivendo. (...)

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Figura 6 Ruim é o seu preconceito ( Foto do autor)

No Brasil dos contrastes, neste século XXI, em que, em um extremo, sobeja a opulência, o

fastio, a exuberância em uma classe social favorecida economicamente, faltam condições básicas de

higiene, de habitação, saúde, transporte, educação às camadas populares; campeão em números de

violência contra mulheres, jovens pretos e pobres, comunidade LGBT, enfim, as minorias, no Rio

de Janeiro, assim como em outras metrópoles, moradores em periferias, de baixa escolaridade são

estigmatizados intencional e criminosamente longe das malhas da proteção social. Distante dos

aparelhos culturais, dos centros urbanos, xs estudantes das escolas públicas oriundxs, em grande

parte, das camadas populares e, em sua maioria, pobres e negrxs: representadxs pela mídia como

transgressores, baderneiros, transbordam a felicidade (BERINO, 2013). Cada vez mais se naturaliza

o extermínio desta jovem população adolescente: a violência do crime e do enfrentamento bélico

que as políticas públicas de pacificação procuram conter espanta pelos números. E nem ao menos

respeita os muros escolares: as balas já encontraram o seu caminho. Não estão mais perdidas. Mas,

a beleza resiste. Incrivelmente desafiando o pessimismo. Além desta atroz realidade, ouvir, ver e

sentir; conhecer as manifestações culturais, a beleza com que se revestem os símbolos e signos, a

linguagem, as roupas, adereços, piercings e alargadores, tatuagens, cabelos coloridos, os gostos

destas juventudes, oriundas das camadas populares, que habitam e colorem a escola pública

popular, relaciona-se diretamente ao respeito que os professores devem ter com os saberes do

educando. Tomando partido, “por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal

descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade?”, questiona, retoricamente, o nosso maior

educador. (FREIRE, 1996; p. 30).

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Figura 7 – Agenda (Foto do autor)

PARA UMA BREVE HISTÓRIA DO TEMPO NAS OCUPAÇÕES

Ter vivenciado a experiência de uma ocupação de uma escola diferente da que eu trabalho

me fez ver o tanto que existe em comum entre estudantes de bairros distantes, referentes às suas

demandas, gostos, medos, estar e fazer. A “rotina” daquela escola, depois de ter retornado à minha

após a desocupação, me deixou pensando que eram poucas as diferenças. Enquanto apoiador do

movimento estudantil, militante e pesquisador, procurava, nos detalhes da minha escola, o que

poderia, tanto auxiliar em nossa causa comum, assim como no movimento de ocupação, quanto na

minha pesquisa. Seguindo pistas, catando as “chaves de leitura” (GINZBURG, 2006; p. 95) através

da escuta atenta nas histórias, nas conversas, mergulhava naqueles cotidianos (ALVES, 2008).

Glamourizados pela mídia, xs estudantes que participaram do movimento passaram a ser alvo de

atenção, tanto por parte dos professores, dxs colegas, direção da escola, partilhando o seu “minuto

de fama” coletivo. Durante a ocupação, tanto a TV quanto os jornais faziam notícias diárias em

função do interesse despertado pela sociedade fluminense destacando o caráter inovador do

movimento, e, por muitos dos sujeitos da pesquisa, já considerado “histórico”. Estudantes

empoderados haviam tomado conta de toda uma escola, varrendo, fazendo sua comida, organizando

as tarefas, suas aulas. Seria um outro coletivo. Ironicamente, a autonomia deixou de ser um nome

de um projeto da Fundação Ayrton Senna, desenvolvido pela Seeduc, e passou a ser o pesadelo para

os tecnoburocratas da educação do estado. Eles não sabiam o que fazer para “expulsar” os

estudantes da escola. Para a administração, - meritocrática - era um pesadelo denso, o volume era

representado pelos números: segundo a Seeduc, até 6/06/2016, havia 79 colégios ocupados no Rio e

35 desocupados; 44 “respeitaram” a ordem judicial de liberar os acessos e 12 se negaram a cumprir

a ordem judicial de liberar os acessos. Em relação às escolas que mais perderam dias letivos, o

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Freire, 79 dias; O Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes, 43; o colégio em que eu permaneci

“acampado”, o Visconde de Cairu, 41 dias! Pesadelo que levou o ex secretário da educação,

Antônio Neto, na época, pedir exoneração de sua função. Na ocasião, sem condições de negociar

com xs estudantes que ocupavam o C.E. Chico Anysio, na Tijuca, bairro da zona norte, ele disse à

imprensa que “não sabe mais o que fazer e que a situação fugiu de controle.” (Jornal Extra,

9/4/2016: p. 7). Em carta manifesto na internet, estudantes daquele colégio, tido como a “menina

dos olhos” da Seeduc, após a sua desocupação, usando da ironia, agradeceram as lições recebidas

que “os fizeram protagonistas de sua própria história”, parodiando o principal objetivo do projeto de

educação integral, idealizado pelo ex secretário. “Trazer” aquela experiência estranhamente do

“tempo do agora”, movimento e ato pedagógico, daqueles espaçostempos, (ALVES, 208) passou a

ser a minha inquietação. Entretanto, numa ocupação, o dia passava lento... Sem o sinal da troca de

professores, como nas fábricas controlando o turno e a vida dos operários (FOUCAULT, 2009),

pouco se consultava os relógios: os celulares serviam para ouvir músicas e acessar as redes sociais.

As horas eram marcadas pelas refeições que eles mesmos, vivenciando em toda a potência, a

coletividade, a partilha, o sentimento comum, preparavam, com o que eles mesmos selecionavam,

obtidos, ou não, através de doações trazidas por apoiadorxs, assim como os “trocados” recebidos no

“sinal”, onde pediam contribuições aos motoristas. Naqueles cotidianos de uma escola tornada em

uma habitação familiar, o indivíduo cedia lugar ao coletivo: a necessidade de todos deveria

sobrepor-se às subjetividades, para e pela causa.

Eu – F. é sozinha aqui, na escola. Sozinha, não: A F. está sempre ocupada. Onde ‘tá o P.

(17), tá a F. Onde ‘tá o P., tá a F. (...)

F. (19) – Pois, é. A minha família acabei criando aí. Ontem mesmo a gente estava

conversando sobre isso. Como isso virou uma família.

EU – É muito doido isso, cara.

F. – Por que é tipo são as pessoas com que tu dorme, acorda. Tu caga junto. Tipo, são tua

família que ‘tá aqui. Tem pessoas que tão dormindo fixos, que tão há três semanas sem ir

pra casa. Eu ‘tô desde o início da ocupação.

EU – Tu tá direto aqui?!

F.– Eu fiquei três vezes fora, só. Três noites.

EU – Cria esse laço, mesmo, né?! 07/05/2016 13:13:25

Retornando à ETESC, diante de suas fotografias, durante a ocupação, na salinha do grêmio,

também ouvi:

M.– “Ocupaetesc”, que tá escrito ali.

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A.– Foi, exatamente. Foi, assim, quando a gente formou a nossa família aqui dentro da

escola e que não quero me separar nunca mais! Apesar de todas as divergências...

C.– Que outra escola teve uma comunidade de estudantes tão unida?!

A.– Realmente! Acho que agora nós não somos mais simples alunos. Nós somos amigos.

M.– A gente criou uma família! Além da convivência estudantil, a escola virou a nossa

casa.

A.– Já era a nossa casa.

M.– Sempre foi, que a gente passava onze horas do nosso dia aqui, gente!

A.– Eu falava: “mãe, minha escola é minha casa. Eu só venho pra cá pra dormir.”

M.– A diferença é que agora, eu tenho uma família dentro da minha casa. 20/07/2016

12:00:30

Figura 8 Ocupamos o que é nosso. (Foto do autor)

O desafio era trazer parte daquelas experiências em uma escola que volta a sua “normose”,

conforme H., agente de leitura do Cairu, que se voluntariou, durante a ocupação, para dinamizar a

biblioteca transformando-a, segundo ele, em uma “sala de leitura”. Durante a ocupação,

conversando comigo na sala de leitura sobre o apelo que ele vinha fazendo, junto à comunidade, à

divulgação das aulas no Cairu, me disse que, apesar de poucos alunos, as aulas estavam

acontecendo “normais”:

(...) Tá tendo aula. A gente só precisa que vocês divulguem pra todos. Pra todos voltarem à

escola. Porque a gente está com poucos alunos. Ou os alunos não querem assistir aula,

porque está tendo aula normal. Agora, o que eu chamo de normal, seria a normalidade que

deveria existir. Não essa normose. Não normose, porque antes era normose. Eu finjo que

ensino e ele finge que aprende. 24:10 Um virado pra nuca do outro. Sem integração

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nenhuma, por que que eu estou aprendendo isso? É aquela história que a gente sabe. (...) H.

10/04/2016 10:02:48

Então, durante as “aulas normais”, antes da ocupação, os aulões, nem pensar. Viradões

culturais, mostra de talentos só se fosse na semana de projetos. Mas, nos cotidianos escolares,

apesar da tentativa de controle através da normatização instituída, muito acontece fora da

normatização. Afinal,

Nem as escolas, nem seus mestres e educandos têm ficado à margem dessa rica e tensa

dinâmica social. Tornaram-se mais uma fronteira-território de disputa. Ignorá-la ou resistir

a ela é ingenuidade Podemos constatar que muitas escolas e redes e tantos mestres e

educandos têm acompanhado e respondido a essa rica dinâmica através de propostas,

projetos e reorientações curriculares. (ARROYO, 2013; p. 12)

Figura 9 O que rola nas rodas. (Foto do autor)

A criatividade e a sagacidade; a esperteza e a malandragem permitem realizar muitas

daquelas ações comuns durante a ocupação, através de outras práticas de currículo, como “criação

cotidiana”. (OLIVEIRA, 2012).

DESOCUPANDO, PARA CONCLUIR

Vistas como movimento e ato pedagógico, as ocupações escolares talvez possam se

constituir em um conceito a auxiliar na leitura de fatos que se entendam relativos ou diversos por

quaisquer vieses e recortes epistemológicos e metodológicos, ao que se deu no Rio de Janeiro,

protagonizado pelos estudantes secundaristas das escolas públicas da educação básica. Para tanto,

entendo necessário o recuperar das lembranças, através dos relatos e das experiências narradas neste

estudo da memória viva das ocupações das escolas no Rio de Janeiro. Através do resgate de

lembranças através de fotos, vídeos postados nas redes sociais, assim como entrevistas e conversas,

mostrou ser possível tornar as aulas bem mais produtivas e agradáveis a todxs. Com experiência

aproximada a de meus alunos e alunas, tendo vivenciado, assim como eles, a ocupação de uma

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escola, tive como estabelecer uma atmosfera agradável, ao compartilhar cotidianos semelhantes,

guardadas as singularidades de cada caso. Ao desafiar xs estudantes a refletir sobre um momento

intensamente vivido no coletivo, utilizando a mídia enquanto recurso pedagógico, com os registros

fotográficos realizados por elxs mesmxs, mostrados nas rodas de conversa, pude avançar tanto em

Português em discussões contextualizadas com a História, a Sociologia, a Filosofia, a Arte, a

política, a tecnologia, os direitos, a cidadania crítica e participativa, o respeito à diversidade - inter,

trans, multidisciplinarmente. Entendi que levar à sala de aula momentos por elxs vividos e

experienciados durante a ocupação tem facilitado e potencializado os estudos do português, tanto

em sua prática, reflexão na própria estrutura e funcionamento da língua em suas diversas

modalidades e registros, o que tem permitido a discussão de uma escola que pode se prestar tanto à

crítica da sociedade cindida em classes sociais, quanto à reprodução de uma ideologia a serviço de

um grupo economicamente favorecido. Assumo, freireanamente, a necessidade de levar à discussão

o fato da gramática normativa e prescritiva discriminar e fazer acepção do falar das camadas

populares, que frequentam as escolas públicas, desqualificados em seus saberes, gestos, falas e

imagens: ao eleger uma determinada modalidade da linguagem, como recorte de uma língua que

não se prende a um padrão, já que é um organismo vivo, em constante evolução, reforça a aceitação

das classes sociais enquanto característica de nossa sociedade. Estimulando os estudantes à leitura

crítica das postagens, que eles mesmos realizaram nas redes sociais, assim como suas

representações naqueles espaçostempos educativos (ALVES, 2008), potencializados pelo uso do

digital, pude verificar a relevância da utilização da mídia digital, assim como das redes sociais, para

a educação de jovens. Ao lançar mão da câmera digital, do celular, percebi possibilidades em me

utilizar destes dispositivos tanto para a minha formação, para a pesquisa, assim como para o ensino-

aprendizagem das alunas e dos alunos. Desta forma, advogo o uso das mídias tanto para a educação

quanto para a autonomia, para a crítica, para a emancipação intelectual, enfim, a socialização

política, o que verifiquei acontecer durante e após as ocupações das escolas que acompanhei,

experienciei, vivenciei. Concluo, portanto, que a recuperação das lembranças das “ocupações

escolares”, do protagonismo estudantil proposta, nesta pesquisa, enquanto categoria, como

movimento e ato pedagógico, através da produção de narrativas dxs estudantes protagonistas, com o

uso da tecnologia digital, tem representado mais do que um papel coadjuvante: ela representa um

ganho substancial nas lutas sociais, que repelem a liderança centralizadora, as determinações

verticais, a impossibilidade do diálogo, a que xs jovens estudantes da pesquisa mostraram-se - e

tem-se mostrado - avessxs.

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Figura 10 (Foto do autor)

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