Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev...

685
1

Transcript of Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev...

Page 1: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

1

Page 2: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

2

Page 3: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

3

Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra Civil Russa, a Segunda Guerra Mundial, o cerco de Leninegrado e a evacuação, fome e expurgações, Lenine e Estaline e, no crepúsculo dourado das suas vidas, vinte verões em Nova Iorque sem ar condicionado.

Que Deus vos abençoe.

Page 4: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

4

Agora numa estação de calmaria

Embora a terra nos venha a rodear As nossas Almas, que avistam esse imortal mar

Que nos trouxe aqui, Podem num momento viajar ali

E ver as Crianças na areia a brincar, E ouvir as vagas rolando sem parar.

WILLIAM WORDSWORTH

Page 5: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

5

LIVRO UM

LENINEGRADO

Page 6: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

6

PRIMEIRA PARTE

O CREPÚSCULO LUMINOSO

Page 7: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

7

O CAMPO DE MARTE

1

A manhã entrou pela janela, enchendo o quarto de luz. Tatiana Metanova dormia o sono dos inocentes, o sono da alegria agitada, das noites quentes e brancas de Leninegrado, do junho jasmim. Inebriada pela vida, dormia sobretudo o sono exuberante da juventude intrépida.

Não dormiu muito mais. Quando os raios de sol atravessaram o quarto e pousaram aos pés da sua

cama, cobriu a cabeça com o lençol, tentando esconder-se da luz do dia. A porta abriu-se e ouviu o chão ranger uma vez. Era sua irmã, Dasha.

Daria, Dasha, Dashenka, Dashka. Representava tudo o que Tatiana amava. Naquele momento, porém, a única coisa de que tinha vontade era de se a

esganar. Dasha tentava acordá-la e, infelizmente, estava a conseguir. As suas mãos vigorosas abanavam-na enquanto a voz, normalmente harmoniosa, parecia esganiçada:

- Psst! Tania! Acorda. Acorda! Tatiana gemeu. Dasha puxou-lhe o lençol. A diferença de sete anos que tinham uma da outra era mais evidente agora,

quando Tatiana queria dormir e Dasha estava a... - Para! – resmungou Tatiana, procurando desesperadamente o lençol atrás de

si e tapando-se de novo. – Não vês que estou a dormir? Pensas que és minha mãe? A porta abriu-se outra vez. Dois rangidos no soalho. Era mesmo a mãe. - Tania, queres acordar? Levana-te imediatamente. Não podia dizer que a voz da mãe fosse harmoniosa. Irina Metanova não tinha

nada de suave. Era baixa, barulhenta e cheia de uma energia indignada e transbordante. Trazia um lenço atado à cabeça, porque provavelmente já andara de joelhos a lavar o chão da casa de banho comum com o seu vestido azul de verão. Parecia descomposta e com o domingo estragado.

- O que foi, mãezinha? – perguntou Tatiana, sem levantar da almofada. O cabelo da Dasha tocou-lhe nas costas. Tinha a mão na sua perna e inclinou-

se como se fosse beijá-la. Tatiana sentiu uma ternura momentânea, mas antes de Dasha poder dizer fosse o que fosse, a voz ríspida da mãe fez-se ouvir de novo:

Page 8: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

8

- Levante-se depressa. Vão fazer um comunicado importante na rádio daqui a uns minutos.

- Onde estiveste ontem à noite? – segredou Tatiana a Dasha. – Já era de madrugada quando chegaste.

- E eu tenho culpa de que ontem a madrugada tenha sido à meia-noite? – murmurou Dasha com prazer. – Cheguei à meia-noite, uma hora perfeitamente respeitável. – Fazendo um sorriso aberto: - Dormias como uma pedra.

- A madrugada foi às três e não estavas em casa. Dasha fez uma pausa. - Vou dizer ao paizinho que fiquei do outro lado do rio quando as pontes

foram içadas, às três horas. - Pois faz isso. Explica-lhe o que andavas a fazer do outro lado do rio às três da

manhã. – Virou-se. Dasha estava particularmente bonita naquela manhã. Tinha o cabelo castanho-escuro e rebelde e um rosto animado, redondo, de olhos escuros, sempre reagindo a tudo. Naquele momento, a reação era de animada exasperação. Tatiana também se sentia exasperada... mas menos animada. Apetecia-lhe continuar a domir. Mas percebendo o olhar tenso da mãe, perguntou: - Que comunicado?

A mãe estava a tirar os lençóis do sofá. - Mãezinha! Que comunicado? – repetiu. - Só sei que vai haver um comunicado do Governo daqui a uns minutos –

eimou a mãe, abanando a cabeça como a dizer: não é evidente? Acordou com relutância. Comunicado. Era caso raro interromper-se a música

com comunicados do Governo. - Se calhar invadimos outra vez a Finlândia.. – Esfregou os olhos. - Está calada – disse a mãe. - Ou então invadiram-nos eles a nós. Ainda não desistiram de recuperar as

fronteiras que perderam o ano passado. - Nós não os invadimos – disse Dasha. – O que fizemos o ano passado foi

recuperar as nossas fronteiras, que perdemos na Grande Guerra. E vê se deixas de ouvir as conversas dos adultos.

- Não perdemos nada as nossas fronteiras – protestou Tatiana. – O camarada Lenine deu-as de livre vontade. Portanto, não conta.

- Tania, não estamos em guerra com a Finlândia. Levanta-te. Não saio da cama. - Então é com a Letônia? A Lituânia? A Bielorrúsia? Também não nos

apoderámos delas depois do pacto entre Hitler e Estaline? - Tatiana Georgievna! Cala-te! – A mãe tratava-a sempre pelos dois primeiros

nomes, o próprio e o patronímico, quando queria mostrar-lhe que não estava para graças.

Fingiu-se muito séria: - Que mais haverá? Já temos metade da Polônia.

Page 9: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

9

- Já te disse para estares calada! – exclamou a mãe. – Chega. Salta da cama. Daria Georgievna, põe a tua irmã fora da cama.

Dasha não se mexeu. Resmungando, a mãe saiu do quarto. - Tenho uma coisa para te contar! – murmurou Dasha com ar conspirador,

virando-se rapidamente para sua irmã. - Uma coisa boa? – Tatiana apurou logo o ouvido e sentou-se. Dasha

costumava falar pouco da sua vida adulta. - uma coisa ótima! – retorquiu Dasha. – Estou apaixonada! Tatiana revirou os olhos e deixou-se cair para trás. - Para com isso! – disse Dasha, saltando para cima dela. – Estou a falar a sério,

Tania. - Pronto, está bem. Conheceste-o ontem enquanto as pontes estavam

levantadas?- Sorriu. - Ontem foi a terceira vez. Tatiana abanou a cabeça, fitando a irmã, cuja alegria era contagiante. - Importas-te de sair de cima de mim? - Importo – respondeu, fazendo-lhe cócegas. – Só quando disseres: “Estou

muito contente, Dasha.” - Porque é que havia de dizer? – exclamou Tatiana, rindo – Não estou

contente... Para com isso! Porque havia de estar contente? Não estou apaixonada. Está quieta!

A mãe voltou a entrar com um tabuleiro, seis canecas e um samovar de prata – uma espécie de chaleira com uma torneira e um tubo interior onde se colocam brasas, para ferver a água para o chá.

- Estejam quietas, as duas! Ouviram? - Ouvimos, mãezinha – respondeu Dasha, fazendo cócegas à irmã uma última

vez. -Ai! – exclamou Tatiana o mais alto possível. – Mãezinha, parece-me que ela

me partiu as costelas. - Quem vos parte alguma coisa daqui a bocado sou eu. Já são crescidas de

mais para essas brincadeiras. Dasha deitou a língua de fora à irmã. - Muito crescida – comentou Tatiana. – A nossa Mamochka não sabe que só

tens dois anos. Dasha continuou com a língua de fora. Tatiana estendeu a mão e deu-lhe um

beliscão. Dasha guinchou e a irmã largou-a. - Mas o que é que eu disse? – berrou a mãe. Dasha inclinou-se e cochichou: - Vai ver quando o conheceres. É lindo! - O quê... mais do que aquele Sergei com que me torturaste? Não me disseste

que era lindíssimo?

Page 10: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

10

- Cala-te! – disse Dasha, dando=lhe uma palmada na perna. - Claro. – Com um sorriso aberto: - E isso não foi ainda a semana passada? - Nunca hás de compreender porque ainda és uma criança incorrigível. –

Ouviu-se outra palmada. A mãe berrou e as raparigas sossegaram. O pai, Georgi Vasilievich Metanov, entrou. Era um homem baixo, na casa dos

quarenta, com o cabelo encaracolado do pai. Este passou pela cama, lançando um olhar vazio a Tatiana, com as pernas ainda debaixo dos lençóis, e disse:

- Tania, é meio-dia. Levanta-te. Ou vai haver sarilho. Quero-te vestida daqui a dois minutos.

- Isso é fácil – retorquiu Tatiana, dando um salto e mostrando à família que continuava com a blusa e a saia do dia anterior. Dasha e a mãe abanaram a cabeça e esta última quase sorriu.

O pai desviou o olhar para a janela. - O que havemos de fazer com ela, Irina? “Nada”, pensou Tatiana. “Nada, desde que o paizinho olhe para o outro lado.” - Tenho de me casar para poder ter finalmente um quarto meu onde possa

vestir-me – comentou Dasha, ainda sentada. - Deves estar a brincar – replicou Tatiana, aos saltos na cama. Vais é ficar aqui

com o teu marido. Eu, tu e ele, todos na mesma cama, com o Pasha aos pés. Não é romântico?

- Não te cases, Dashenka – aconselhou a mãe com um ar distraído. – Desta vez a Tania tem razão. Não há espaço para ele.

O pai não disse nada e ligou o rádio. O quarto comprido e estreito tinha uma cama onde dormiam Tatiana e Dasha,

um sofá para os pais e um estrado de metal ocupado pelo irmão gêmeo de Tatiana, Pasha. Como o estrado estava aos pés da cama, Pasha dizia que era o cãozinho de companhia das raparigas.

Os avós, a Babushka e o Deda1 viviam no quarto contíguo, ligado ao deles por um curto corredor. Às vezes, quando chegava tarde e não queria acordar os pais para não os ouvir no dia seguinte, Dasha dormia no pequeno sofá de vestíbulo, que só tinha cerca de um metro e meio de comprimento. Seria mais apropriado para Tatiana, que também pouco mais tinha do que um metro e meio, mas o certo era que ela não precisava de dormir na entrada, visto que realmente chegava tarde. Quanto a Dasha, a cantiga era outra!

- Onde está o Pasha? – perguntou Tatiana. - A acabar de tomar o pequeno-almoço – respondeu a mãe, que não

conseguia estar quieta. Enquanto o pai estava sentado no sofá imóvel como uma casa, a mãe atarefava-se à sua volta, apanhando maços de tabaco vazios, endireitando os livros na prateleira e limpando a mesa baixa com a mão. Tatiana continuava de pé e Dasha sentada na cama.

Os Metanov tinham sorte: possuíam dois quartos e uma parte do corredor comum. Seis anos atrás, haviam posto uma porta a separá-los dos outros

Page 11: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

11

apartamentos. Era quase como se tivessem casa própria. Os Iglenko, que viviam do outro lado, eram obrigados a dormir os seis no mesmo quarto... e sem corredor. Esses, sim, tinham pouca sorte.

O sol filtrava-se através das cortinas brancas, que esvoaçavam. Tatiana sabia que só haveria um instante, um brevíssimo momento em que

seria iluminada pelas possibilidades do dia. Dali a pouco, tudo desapareceria. E desapareceu. No entanto... o sol invadindo o quarto, o barulho distante dos autocarros entrando pela janela aberta, aquele ventinho...

Era a parte do domingo de que mais gostava: o início. Pasha entrou com o Deda e a Babushka. Apesar de gêmeo de Tatiana, não se

parecia nada com ela. Era um rapaz robusto e moreno, uma versão do pai em ponto pequeno. Baixando a cabeça na direção dela, observou:

- Que cabelo tão bonito! Tatiana deitou-lhe a língua de fora. Ainda não tivera tempo de se pentear e

arranjar Pasha sentou-se no estrado baixo e a Babushka aconchegou-se ao seu lado.

Como era mais alta dos Metanov, a família aconselhava-se com ela em tudo exceto em assuntos de moralidade, caso em que se viravam todos para o Deda. A Babushka era categórica, pouco amiga de brincadeiras e de cabelo prateado. O Deda era humilde, moreno e bondoso. Sentando-se no sofá ao lado de Georgi, murmurou:

- É coisa importante, filho. 1 Babushka e Deda: avozinha e avozinho, em russo. ( N. do E.) O pai assentiu, ansioso. A mãe continuava a limpar, ansiosa. Tatiana observava a Babushka afagando as costas de Pasha. - Pasha – murmurou, gatinhando até ao fundo da cama e puxando o irmão -,

depois queres ir ao Parque Tauride? Aposto que te ganho às guerras. - Vai sonhando – retorquiu Pasha. – Nunca me hás de ganhar. Começou a ouvir-se uma série de estalidos vindos do rádio. Eram 12h30 do

dia 22 de junho de 1941. - Tania, cala-te e senta-te – ordenou Georgi à filha. – Vai começar, Irina, tu

também. Senta-te. O camarada Viacheslav Molotov, ministro dos Negócios Estrangeiros de Josef

Estaline, começou: “- Homens e mulheres, cidadãos da União Soviética, tenho instruções do

governo soviético e do seu dirigente, o camarada Estaline, para fazer o seguinte comunicado: às quatro horas da manhã, sem qualquer declaração de guerra e sem qualquer provocação da parte da União Soviética, tropas alemãs atacaram o nosso país e vários pontos das nossas fronteiras, bombardeando do ar Shitomir, Kiev, Sebastopol, Kaunas e outras cidades. Este ataque foi levado a cabo apesar de existir um pacto de não-agressão entre a União Soviética e a Alemanha, um pacto cujos termos foram escrupulosamente observados pela União Soviética. Fomos, atacados,

Page 12: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

12

embora, durante o período do pacto, o governo alemão nunca se tenha queixado de falta de cumprimento das suas obrigações por parte de URSS...

O Governo pede-vos, cidadãos e cidadãs da União Soviética, que cerreis ainda mais as fileiras em torno do glorioso Partido Bolchevique, do governo soviético e do nosso grande dirigente, o camarada Estaline. A nossa causa é justa. O inimigo será esmagado. A vitória será nossa.”

O rádio calou-se e a família ficou sentada num silêncio atónito e pesado. - Oh, meu Deus – disse finalmente o pai, olhando do sofá para Dasha. - Temos de ir imediatamente tirar dinheiro do banco – afirmou a mãe. - Outra vez evacuação não. Será que sobreviveremos a outra? É quase melhor

ficar na cidade – comentou a Babushka Anna. - E alguma vez conseguirei outro lugar de professor evacuadio? Tenho idade

para morrer, não para me mudar – observou o Deda. - O quartel de Leninegrado não vai entrar na guerra, pois não? A guerra vai

chegar ao guartel de Leninegrado? – perguntou Dasha. Guerra! Ouviste, Tania? Vou alistar-me. Vou lutar pela Mãe Rússia – exclamou

Pasha. Antes de Tatiana conseguir dizer o que estava a pensar, e que era um “Uau!”

imensamente entusiasmado, o pai saltou do sofá e, respondendo apenas a Pasha, exclamou:

- Que ideias são essas? Para onde pensas que vais? - Ora, Papochka. - Pasha sorriu: - Na guerra são sempre precisos homens. - Homens, sim. Não crianças – zangou-se o pai, ajoelhando-se no chão e

espreitando por baixo da cama de Tatiana e Dasha. - Guerra... não é possível! – comentou lentamente Tatiana. – O camarada

Estaline não assinou um tratado de paz? Tania, isso é a sério. A sério – retorquiu a mãe, servindo o chá. Tatiana tentou conter a emoção: - Teremos de ser evacuados? O pai puxou uma mala velha e estragada que estava debaixo da cama. - Já? – perguntou Tatiana, espantada. Sabia o que era a evacuação pelas histórias que o Deda e a Babushka lhe

contavam sobre a agitação por altura da Revolução de 1917, quando tinham ido viver para uma aldeia a oeste dos montes Urais, de cujo nome nunca se lembrava. Esperando pelo comboio com tudo o que passuíam, acotovelando-se lá dentro, atravessando o Volga de barca...

O que a entusiasmava era a mudança. O desconhecido. Estivera em Moscovo de passagem quando tinha oito anos... mais isso conta? Moscovo não tinha nada de exótico. Não era a África nem a América. Nem sequer os Urais. Era apenas Moscovo. Não havia nada além da Praça Vermelha, nadinha.

Em dias de passeio, os Metanov haviam visitado Tsarskoye Selo e Peterhof. Os Bolcheviques tinham transformado os palácios de verão do czar em riquíssimos

Page 13: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

13

meseus com jardins paisagísticos. Vagueando pelos corredores de Peterhof, pisando cuidadosamente os veios do mármore frio, Tatiana mal pudera acreditar que tivesse havido pessoas com tudo aquilo onde viver.

Mas depois a família regressava a Leninegrado, às duas divisões na Quinto Soviete e, antes de chegar ao quarto, Tatiana tinha de passar pelos seis Iglenko, que viviam ao fundo do corredor com a porta aberta.

Quando tinha três anos, a família passara férias na Crimeia, que naquela manhã fora atacada pelos Alemães. Dessa viagem, lembrava-se que fora a primeira vez que comera uma batata crua. E também a última. Vira girinos num lago e dormira numa tenda, com um cobertor. Recordava vagamente o cheiro da água salgada. Fora no gélido mar Negro que sentira a primeira e última alforreca da sua vida, passando-lhe pelo pequeno corpo nu e fazendo-a guinchar de alegre terror.

A ideia da evacuação revolvia-lhe o estômago. Nascida em 1924, o ano da morte de Lenine, depois da revolução, depois da fome, depois da guerra civil, Tatiana viera ao mundo depois de piar mas antes de qualquer coisa boa. Nascera durante.

Erguendo os olhos negros para ela, como se quisesse medir-lhe as emoções, o Deda perguntou-lhe:

- Em que estás a pensar, Tanechka? - Em nada. – Tentou acalmar-se. - O que irá nessa cabecinha? Estamos em guerra, percebes? - Percebo. - Não sei porquê, mas não me parece. – Depois de uma pausa: - A vida que

conheces acabou. Ouve bem o que te digo. De hoje em diante, nada será como imaginaste.

- pois não! – entusiasmou-se Pasha. – Vamos mandar os Alemães para o Inferno, que é o lugar deles. – Sorriu para Tatiana, que lhe devolveu o sorriso.

A mãe e o pai estavam calados. - Sim, e depois? – indagou o pai. A Babushka foi sentar-se no sofá ao lado do Deda. Pousando a mão grande na

dele, cerrou os lábios e assentiu de um modo que mostrou a Tatiana que sabia coisas que preferia guardar para si própria. O Deda também sabia, mas fosse lá o que fosse que ambos sabiam, não se comparava com a agitação que sentia. “Está bem”, pensou. “Não compreendem. Não são jovens.”

A mãe quebrou o silêncio das sete pessoas ali reunidas: - O que está a fazer, Georgi Vasilievich? - São muitos filhos, Irina Fedorovna. Muitos filhos com que me preocupar –

explicou-lhe tristemente, às voltas com a mala de Pasha. - A sério, pai? – observou Tatiana. – Com qual dos seus filhos gostaria de não

se preocupar? Sem responder, o pai foi às gavetas de Pasha no armário que todos

partilhavam e começou a atirar as roupas do rapaz para a mala, ao acaso.

Page 14: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

14

- Vou manda-lo embora, Irina. Vou manda-lo acampar para Tolmachevo. De qualquer forma, já ia para a semana com o Volodya Iglenko. Agora vai um bocadinho antes. E o Volodya também. A Nina não se importará nada que partam uma semana mais cedo. Vais ver que tudo se arranja.

A mãe abriu a boca e abanou a cabeça: - Tolmacheva? É seguro? Tens a certeza? - Absoluta. - Mas claro que não! – protestou Pasha. – Paizinho, a guerra começou! Não

vou acampar, vou mas é alistar-me. “Muito bem, Pasha”, pensou Tatiana, mas o pai virou-se e lançou um olhar de

cólera ao irmão e, sustendo a respiração, a rapariga de repente percebeu tudo. O pai agarrou Pasha pelos ombros e começou a abaná-lo: - O que estás a dizer? Endoideceste ? Alistar-te? Pasha debateu-se para se libertar, mas o pai não o largou. - Paizinho, largue-me. - Pavel, és meu filho e tens de me ouvir. A primeira coisa que vais fazer é sair

de Leninegrado. Depois discutimos. Agora tens é de apanhar o comboio. Havia qualquer coisa de embaraçoso e desajeitado naquela cena física numa

divisão tão pequena, com tanta gente a assistir. Tatiana teria gostado de se afastar, mas não sabia para onde. Á frente tinha a avó e o avô, atrás Dasha, à esquerda a mãe, o pai e o irmão. Baixou o olhar para as mãos e fechou os olhos. Imaginou-se deitada de costas no meio de um campo, comendo trevo-doce. Sem ninguém à volta.

Como é que as coisas tinham mudado numa questão de segundos? Abriu os olhos e pestanejou. Um segundo. Pestanejou de novo. Outro

segundo. Uns segundos antes, estava a dormir. Uns segundos antes, Molotov falara. Uns segundos antes, o pai falara. E agora Pasha ia partir. Abrir os olhos, fechar os olhos, abrir os olhos, fechar

os olhos. O Deda e a Babushka encontravam-se diplomaticamente calados, como

sempre. O Deda, Deus o abençoe, nunca perdia uma oportunidade para ficar calado. Nesse aspecto, a Babushka era exatamente o oposto mas, neste caso, decidira obviamente seguir-lhe o exemplo. Se calhar porque ele lhe apertava a perna de cada vez que ela abria a boca; fosse lá porque fosse, não falou.

Sem medo do pai e sem desanimar com a perspectiva longínqua da guerra, Dasha levantou-se e disse:

- Isso é uma loucura, paizinho. Porque o manda embora? Os Alemães nem sequer estão perto de Leninegrado. Não ouviu o camarada Molotov? Estão na Crimeia, a milhares de quilômetros daqui.

- Cala-te, Dashenka – ordenou ele. – Fazes lá ideia de como são os Alemães!

Page 15: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

15

- Não estão aqui, paizinho – repetiu Dasha numa voz forte, que não admitia discussões. Tatiana gostaria de conseguir falar de um modo tão persuasivo como ela, mas tinha uma vozinha fraca, com se ainda lhe faltasse alguma hormona feminina. E era quase verdade. Só começara a ter o período no ano anterior, e mesmo assim... quase não tinha período. Era mais uma espécie de vaivém. Chegara no inverno, decidira que não gostava e não voltara a aparecer até ao outono, altura em que se instalara como se nunca mais fosse embora. Desde essa altura, vira-o mais duas vezes. Se viesse com mais frequência, talvez conseguisse ter uma voz ativa como a de Dasha. O período da irmã era como um relógio.

- Daria! Não vou agora discutir contigo! – exclamou o pai. – O teu irmão não fica em Leninegrado. Pasha, veste-te. Enfia umas calças e uma camisa bonita.

- Paizinho, por favor... - Pasha! Já disse para te vestires. Não podemos perder tempo. Aposto que os

acampamentos vão ficar cheios não tarda nada, e depois não poderá entrar. Se calhar foi um erro dizer aquilo a Pasha, pois Tatiana nunca vira o irmão

mexer-se mais devagar. Devia ter demorado uns bons dez minutos a procurar a única camisa que tinha. Todos desviaram o olhar enquanto se vestia. Tatiana voltou a fechar os olhos, em busca do prado, do delicioso cheiro estival a groselhas e urtigas. Apeteceu-lhe mirtilos. Percebeu que tinha fome. Abrindo os olhos, observou o que se passava à sua volta.

- Não quero ir – protestou Pasha. - É só por algum tempo, filho – retorquiu o pai. – Uma precaução. No

acampamento estarás seguro, fora de perigo. Fica lá aí um mês, até vermos o desenvolvimento da guerra. Depois voltas e, se houver evacuação, sais daqui com as tuas irmãs.

Boa! Era o que Tatiana queria ouvir. - Georg – chamou o Deda suavemente. – Georg! - Sim, Papochka? – retorquiu ele numa voz respeitosa. Ninguém amava o

Deda mais que o pai, nem sequer Tatiana. - Georg, não podes evitar que o rapaz seja recrutado. Não podes. - Claro que posso. Ele só tem dezessete anos. O Deda abanou a cabeça grisalha: - Precisamente... dezessete anos. Vão leva-lo. Uma expressão de medo acossado perpassou o rosto do pai e desapareceu: - Não vão leva-lo, Papochka – respondeu em voz rouca. – Nem sei do que é

que está a falar. – Era evidente que não conseguia dizer o que sentia: calem-se todos e deixem-me salvar o meu filho da única maneira que sei. O Deda recostou-se nas almofadas do sofá.

Sentindo-se mal por causa do pai e querendo ajudar, Tatiana começou a dizer: - Ainda não estamos... – Mas a mãe interrompeu-a: - Pashechka, leva uma camisola, meu querido. - Não levo nada, mãe. Estamos em pleno verão! – exclamou ele.

Page 16: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

16

- Ainda há duas semanas tivemos geada. - E agora está calor. Não vou levar camisola nenhuma. - Ouve o que tua mãe te diz, Pavel – interveio o pai. – As noites devem ser

frias em Tolmachevo. Leva a camisola. – Pasha suspirou profundamente, com rebeldia, mas pegou na camisola e atirou-a para dentro da mala. O pai fechou-a. – Ouçam todos. O meu plano é este...

- Qual plano? – inquiriu Tatiana com alguma frustação. – Espero que o seu plano inclua comida, porque...

- Já sei porquê – cortou ele. – Agora cala-te e ouve. Isto também tem a ver contigo. – E começou a dizer-lhes o que queria que cada um fizesse.

Tatiana deixou-se cair para trás na cama. Uma vez que a evacuação não seria imediata, não estava interessada em ouvir mais.

Pasha ia sempre no verão para o acampamento de rapazes em Tolmachevo, Luga ou Gatchina. Preferia Luga, que tinha o melhor rio para nadar. E Tatiana também gostava mais que ele estivesse em Luga, perto da dacha, a casa de verão da família, onde lhe era possível ir visita-lo. O acampamento ficava apenas a cinco quilômetros da dacha, atravessando o bosque a direito. Por outro lado, em Tolmachevo, que distava vinte quilômetros de Luga, os vigilantes eram rigorosos e queriam toda a gente a pé ao nascer do dia. Pasha dizia que era como estar na tropa. “Bem, agora será como se estivesse”, pensou, sem dar atenção ao que o pai dizia.

Tatiana sentiu que Dasha lhe dava um beliscão na perna. - Ai! – exclamou alto de propósito, esperando que lhe ralhassem por a

magoar. Ninguém ligou. Ninguém disse nada. Ninguém sequer olhou para ela. As atenções viravam-se todas para Pasha que, magro e desajeitado, de calças castanhas e camisa bege já velha, permanecia de pé no meio da sala, com o vigor da adolescência... tão amado! E sabia-o.

Era o filho preferido, o neto preferido, o irmão preferido de toda a gente. Porque era o único rapaz. Tatiana levantou-se da cama, aproximou-se dele, passou-lhe o braço em volta

e disse: - Anima-te. Tens muita sorte. Vais acampar e eu vou a lado nenhum. Ele afastou-se ligeiramente, não porque se sentisse desconfortável com ela,

mas porque não achava que tivesse sorte. Tatiana sabia que o que o irmão mais queria era ser soldado e não ir para um acampamento idiota.

- Pasha – continuou ela jovialmente. – Primeiro tens de me ganhar às guerras. Depois, podes alistar-te para combater os Alemães.

- Cala-te, Tania – disse Pasha - Cala-te, Tania – disse o pai. - Paizinho – interpelou-o Tatiana -, posso fazer a minha mala? Também quero

ir acampar.

Page 17: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

17

- Estás pronto, Pasha? Vamos embora – ordenou ele, sem sequer responder à filha. Não havia acampamentos para raparigas.

- Tenho uma anedota para te contar, querido Pasha – insistiu ela, sem querer desistir e pouco abalada com a relutância do irmão.

- Não quero ouvir as tuas anedotas parvas, querida Tania. - Vais gostar desta. - Duvido. - Tatiana! Não é altura para anedotas! – censurou o pai com firmeza. O Deda interveio em favor da nata: - Georg, deixa-a lá. Baixando a cabeça para o avô, Tatiana começou: - Um soldado é levado para ser executado. “Que mau tempo”, diz para os

guardas. “Olha quem fala!”, dizem eles. “Quem tem de fazer o caminho de volta somos nós.”

Ninguém se mexeu. Ninguém sorriu. Pasha ergueu as sobrancelhas, beliscou-a e cochichou-lhe: - Essa foi boa, Tania. Ela suspirou. “Ainda hei de sentir-me nas nuvens”, pensou. “Mas não será

hoje.”

Page 18: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

18

2

- Tatiana, chega de despedidas. Daqui a um mês já vês o teu irmão. Anda lá abaixo abrir-nos a porta da rua. A tua mãe está com dores nas costas – disse-lhe o pai, enquanto se preparavam para transportar as coisas de Pasha, juntamente com vários sacos de comida suplementar.

- Está bem, paizinho. O apartamento tinha a estrutura de um comboio: um corredor comprido com

nove quartos. Duas cozinhas, uma à frente e outra atrás. As casas de banho e as retretes tinham ligações com as cozinhas. Vinte e cinco pessoas viviam nos nove quartos. Cinco anos antes, havia trinta e três pessoas no apartamento, mas oito tinham-se mudado, morrido ou...

A família de Tatiana vivia na parte de trás. Era melhor. A cozinha das traseiras era a maior das duas e tinha escadas que davam para o telhado e para o pátio; a jovem gostava de usar as escadas das traseiras porque assim podia sair sem passar pelo quarto de Slavin maluco.

A cozinha de trás tinha fogão maior do que a da frente e uma casa de banho mais ampla. E só três famílias as dividiam com os Metanov: os Petrov, os Sarkov e o Slavin maluco, que nunca cozinhava nem nunca tomava banho.

De momento, Slavin não se encontrava no corredor. Ótimo. Percorrendo-o até à porta da entrada, passou pelo telefone comum. Petr

Petrov estava a usá-lo, a sua prima Mariana morava num apartamento onde o telefone passava a vida avariado por causa da ligação defeituosa. Normalmente só conseguia contactar com ela escrevendo-lhe ou indo visita-la pessoalmente, o que não fazia muitas vezes porque Mariana vivia no extremo oposto da cidade, do outro lado do rio Neva.

Ao aproximar-se de Petr, viu que ele estava muito agitado. Era evidente que estava à espera de linha: embora o fio fosse curto de mais para lhe permitir andar de um lado para o outro, o certo é que o fazia com o corpo todo, apesar de não sair do lugar. Petr conseguiu a ligação precisamente na altura em que Tatiana passava por ele no corredor estreito; soube-o, porque ele gritou para o telefone:

- Luba! És tu? És tu, Luba? O seu grito foi tão inesperado e agudo que Tatiana deu um salto e bateu na

parede. Recompondo-se, passou depressa por ele e depois abrandou, para poder escutar:

- Luba, estás a ouvir? A ligação não é boa. Está toda a gente a tentar falar. Luba, volta para Leninegrado! Ouviste? A guerra começou. Traz o que puderes, deixa o resto e mete-te no comboio. Luba! Não, não é daqui a uma hora, nem

Page 19: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

19

amanhã... é agora, entendes? Imediatamente! – depois de uma curta pausa: - Deixa lá as nossas coisas! Estás a ouvir, mulher?

Virando-se, viu as costas rígidas de Petr. - Tatiana! – O pai olhava para ela com uma expressão colérica que dizia: se

não vieres imediatamente... Mas a rapariga deixou-se ficar para ouvir mais. O pai berrou do outro lado de

corredor: - Tatiana Georgievna! Anda cá ajudar! – Tal como a mãe, o pai só a tratava

pelo nome todo quando queria mostrar-lhe que não estava para brincadeiras. Tatiana despachou-se, pensando em Petr Petrov r perguntando-se porque seria que o irmão não podia ele próprio abrir a porta.

Volodya Iglenko, que era da idade de Pasha e que ia com ele para o acampamento, desceu as escadas com os Metanov, transportando ele a mala e abrindo ele a porta. Eram quatro irmãos. Não tinha outro remédio senão fazer as coisas sozinho.

- Pasha, eu explico-te – disse Tatiana calmamente. – É assim: pões a mão no puxador, puxas e a porta abre-se. Sais, e ela fecha-se atrás de ti. Vamos lá ver se consegues.

- Abre a porta e deixa-te de coisas, Tania – retorquiu Pasha. – Não vês que tenho as mãos ocupadas com a mala?

Já na rua, ficaram calados por um momento. - Tania – começou o pai -, pega nos cento e cinquenta rubros que te dei e vai

comprar comida. Mas não te demores, como sempre. Vai já. Estás a ouvir? - Está bem, paizinho, vou imediatamente. Pasha fungou de desprezo: - Vais mas é voltar para a cama – cochichou. - Vamos, é melhor irmos andando – disse a mãe. - Pois é – concordou o pai. – Vamos, Pasha. - Até à vista – despediu-se Tatiana, dando um murro no braço de Pasha, que

gemeu e, em resposta, lhe puxou o cabelo. - Prende o cabelo antes de saíres, sim? Ainda pregas um susto a que te vir. - Ou te calas ou corto-o rente – respondeu ela alegremente. - Vá, vamos embora – repetiu o pai, puxando Pasha. Tatiana despediu-se de Volodya, disse adeus à sua mãe, lançou um último

olhar às costas do relutante Pasha e subiu as escadas. O Deda e a Babushka saíram com Dasha. Iam ao banco levantar o dinheiro. Tatiana ficou sozinha. Soltando um suspiro de alívio, deixou-se cair na cama. Sabia que nascera muito tarde. Ela e Pasha. Devia ter nascido em 1917, como

Dasha. Houvera outros filhos depois dela, mas não por muito tempo: dois irmãos, um nascido em 1919 e outro em 1921, haviam morrido de tifo. Uma rapariga que viera ao mundo em 1922 morrera com escarlatina em 1923. Em 1924, com Lenine a

Page 20: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

20

morrer, o Novo Plano Econômico (esse breve regresso ao comércio livre) a chegar ao fim e Estaline conspirando para alargar a sua base de apoio na junta governativa, Pasha e Tatiana tinham saído com sete minutos de diferença do corpo de uma Irina Fedorovna de trinta e dois anos e muito cansada. A família queria Pasha, o seu rapaz, mas Tatiana fora uma surpresa. Ninguém tinha gêmeos. Quem tinha gêmeos? Era coisa de que quase nem se ouvia falar. Além disso, não havia espaço. Ela e Pasha tinham sido obrigados a dormir no mesmo berço durante as três primeiros anos de vida. Depois, Tatiana passara a dormir com Dasha.

Mas o problema persistia: estava a ocupar um espaço valioso. Dasha não se podia casar porque Tatiana se apoderara do lugar onde o seu futuro marido se deitaria. Dasha fazia-lho sentir muitas vezes, dizendo:

- Vou morrer solteirona por sua causa. A isto, Tatiana respondia imediatamente: - E depressa, espero, para eu poder casar e ter o meu marido deitado ao pé de

mim. Depois de ter acabado a escola no mês anterior, Tatiana arranjara trabalho

para não ter de passar mais um verão ocioso em Luga, lendo, remando e entretendo-se com brincadeiras parvas com os outros miúdos na rua cheia de poeira. Sempre passara o verão na sua dacha de Luga e no vizinho lago Ilmen, em Novgorod, onde os pais da sua prima Marina também tinham uma dacha.

No passado, Tatiana gostava de pepinos em junho, tomates em julho e talvez algumas framboesas em agosto; adorava apanhar cogumelos e mirtilos e pescar no rio: tudo prazeres muito simples. Mas aquele verão ia ser diferente.

Percebeu que estava farta de ser criança. Mas como, por outro lado, não sabia ser mais nada, arranjara trabalho na fábrica de Kirov, a sul de Leninegrado, o que era quase adulto. Agora trabalhava e lia sempre o jornal, abanando a cabeça à França, ao marechal Pétain, a Dunquerque e a Neville Chamberlain. Tentava mostrar-se muito séria, assentindo com ar de entendida relativamente às crises nos Países Baixos e no Oriente. Eram as suas concessões à idade adulta: Kirov e o Pravda.

Gostava do trabalho em Kirov, o maior complexo industrial de Leninegrado e provavelmente de toda a União Soviética. Ouvira dizer que algures na fábrica se construíam tanques. Mas duvidava. Nunca vira nenhum.

Fazia talhares. O seu trabalho era colocar as facas, garfos e colheres em caixas. Era a penúltima pessoa da cadeia de montagem. A rapariga que ficava a seguir selava as caixas. Tinha pena dela: selar era um frete. Ela, pelos menos, manejava três utensílios diferentes.

“Vai ser divertido trabalhar em Kirov este verão”, pensou Tatiana, deitada na cama. “Mas não tão divertido como a evacuação.”

Gostaria de ter algumas horas para ler. Começara havia pouco os contos sádicos e engraçados de Mikhail Zoshchenko sobre as irônicas realidades da União Soviética. Mas o pai dera-lhe instruções muito claras. Olhou com pena para o livro.

Page 21: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

21

Para quê tanta pressa? Os adultos comportavam-se como se houvesse fogo. Os Alemães encontravam-se a dois mil quilômetros de distância. O camarada Estaline não deixaria o tridor do Hitler embrenhar-se no país. E Tatiana nunca conseguia estar sozinha em casa.

Logo que percebera que não ia haver evacuação imediata, ficara menos entusiasmada com a guerra, era interessante? Sim, mas a história de Zoshchenko, “Banya” (“Os Banhos”), sobre um homem que ia aos banhos soviéticos, aproveitava para lavar a roupa e perdia a senha do casaco era de morrer a rir. “Onde há de um homem nu pôr a senha do casaco? Desapareceu durante o banho. Só ficou o fio. Apresento o fio ao empregado, que não o aceita. ‘Qualquer cidadão pode mostrar-me um fio’, diz. ‘E depois não haverá casacos para todos. Espere até os outros clientes se irem embora, e eu dou-lhe o casaco que restar.’”

Como não ia haver evacuação, Tatiana leu a história duas vezes, deitada na cama com as pernas na parede e sem poder mais de tanto rir.

No entanto, ordens eram ordens. Tinha de sair para comprar comida. Só que era domingo, e Tatiana só gostava de sair ao domingo toda aperaltada.

Sem pedir licença, calçou as sandálias vermelhas de salto alto de Dasha, com as quais andava como uma vitela recém-nascida com duas patas partidas. Dasha equilibrava-se melhor, mas também estava muito mais habituada.

Tatiana escovou o cabelo muito louro e comprido, desejando ter caracóis espessos e escuros como o resto da família. O dela era tão liso e louro: bah! Usava-o sempre atado num rabo de cavalo ou em trança. Naquele dia, fez um rabo de cavalo.

Era inexplicável como tinha o cabelo tão claro e escorrido. Em defesa da filha, mãe dizia que também tinha o cabelo louro e liso em criança. Sim, e a Babushka dizia que só pesava quarenta e sete quilos quando se casara.

Enfiando o único vestido de domingo que possuía, verificou a limpeza impecável do rosto, dentes e mãos e saiu do apartamento.

Cento e cinquenta rublos era uma quantia colossal. Não sabia onde fora o pai arranjar tanto dinheiro, mas a verdade era que aparecera em suas mãos como por magia e não tinha nada a ver com isso. A verdade era que tinha de regressar com... o que dissera o pai? Arroz? Vodca? Já se esquecera.

A mãe bem lhe dissera: - Georg, não a mande à rua. Não vai comprar nada. - A mãezinha tem razão. Mande a Dasha, paizinho – concordara Tatiana - Não! – exclamara ele. – Sei que és capaz. Vai à loja, leva um saco e traz... Que lhe dissera ele para trazer? Batata? Farinha? Ao passar pelo quarto dos Sarkov, viu Zhanna e Zhenya Sarkov sentados em

cadeiras de braços, bebendo chá e lendo com um ar muito descontraído, como se aquele fosse um domingo qualquer. “Que sorte a deles, com um quarto assim tão grande só para os dois!”, pensou Tatiana. O Slavin maluco não estava no corredor. Ótimo.

Page 22: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

22

Era como se o comunicado de Molotov duas horas antes não passasse de uma aberração num dia normal. Quase duvidou do que ouvira até sair e virar a esquina na Grechesky Prospekt, onde formigueiros de pessoas se precipitavam para a Nevsky Prospekt, a principal rua comercial de Leninegrado.

Nem se lembrava da última vez que vira tanta gente na rua. Dando rapidamente meia-volta, dirigiu-se à Suvorovsky Prospekt pelo outro lado. Queria findar a multidão. Se as pessoas iam todas para as lojas da Nevsky Prospekt, então ela dirigir-se-ia ao Parque Tauride, onde as mercadorias, embora mal fornecidas, tinham pouca freguesia.

Um homem e uma mulher passaram por ela, olharam para o seu vestido e sorriram. Ela baixou o olhar, mas também sorriu.

Envergava o seu esplêndido vestido branco com rosas vermelhas. Tinha-o desde 1938, quando fizera catorze anos. O pai comprara-lho a um vendedor ambulante numa cidade chamada Swietokryst, na Polônia, onde fora em viagem de trabakho, em representação dos serviços de distribuição de água de Leninegrado. Fora a Swietokryst, Varsóvia e Lublin. Quando regressara, até parecera que viajara pelo mundo todo. Trouxera chocolates de Varsóvia para Dasha e para a mãe, mas já tinham desaparecido havia muito tempo: dois anos e trezentos e sessenta e três dias. Tatiana, pelo contrário, ainda tinha o vestido de rosas carmesins bordadas no algodão grosso, macio e de uma brancura de neve. As rosas não eram botões mas sim flores desabrochadas. Era um vestido de verão perfeito, com alças fininhas, sem mangas. Apertava na cintura e caia em godés até pouco acima dos joelhos. Se andasse à volta suficientemente depressa, a saia abria-se em para-quedas.

O vestido só tinha um problema: em junho de 1941, já era muito pequeno. As alças de cetim que cruzavam nas costas, e que dantes apertavam sem esforço, tinham de ser constantemente desapertadas.

Achava horrível que o corpo com o qual se sentia cada vez menos à vontade fosse acabar por não caber no seu vestido preferido. Não que o seu corpo estivesse a desabrochar como o de Dasha, cheio de ancas, seios, coxas e braços. Não, nem por sombras. As suas ancas, embora redondas, continuavam pequenas e as pernas e os braços magrinhos, mas os seios aumentavam, e era aí que estava o problema. Se o peito tivesse permanecido na mesma, não seria obrigada a deixar as alças desapertadas, expondo aos olhares do mundo as costas nuas, desde as omoplatas ao fundo das costas.

Tatiana adorava o toque do algodão na pele e brincar com as rosas bordadas, mas detestava sentir o corpo a explodir metido num vestido que quase não a deixava respirar. Do que gostava era da lembrança do domingo em que o pusera pela primeira vez no corpo magricela de catorze anos e saíra para passear na Nevsky. Fora por isso que o vestira outra vez naquele domingo em que a Alemanha invadira a União Soviética.

A um outro nível, consciente e gritante, também adorava aquela etiqueta pequenina que dizia FABRIQUÉ EM FRANCE.

Page 23: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

23

Fabrique em France! Era muito bom ter qualquer coisa que não fora mal feita pelos Soviéticos mas antes romanticamente confeccionado pelos Franceses; haveria alguém mais romântico do que os Franceses? Eram mestres no amor. Todos os povos eram diferentes. Os Russos não tinham na capacidade de sofrimento, os Ingleses eram reservados, os Americanos ímpares no amor à vista, os Italianos no amor a Cristo e os Franceses na esperança do amor. Portanto, ao produzirem o seu vestido, tinham-no feito cheios de promessas, como que a dizer-lhe: “Veste-o, chérie, e com ele serás amada como nós amamos; veste-o e o amor será teu.” Por isso, nunca desesperava quando trazia o vestido branco de rosas vermelhas. Se fosse americano, seria feliz. Se italiano, começaria a rezar. Se inglês, dar-se-ia ares. Mas como era francês, nunca perdia a esperança.

No entanto, naquele momento, descia a Suvorovsky com um vestido que lhe apertava desconfortavelmente o peito adolescente.

Como um tempo tão agradável, até era pecado pensar que Hitler invadira a União Soviética num dia assim tão soalheiro e cheios de promessas. Tatiana abanou a cabeça. O Deda nunca confiara naquele Hitler e dissera-o desde o princípio. Quando o camarada Estaline assinara o pacto de não-agressão com Hitler em 1939, o Deda declarara que Estaline fora para a cama com o Diabo. E agora o Diabo traíra Estaline.

Era assim tanto de admirar? Não seria de esperar? Ou quereríamos que o Diabo se portasse como gente honrada?

Tatiana considerava o Deda o homem mais esperto da Terra. Desde que a Polônia fora esmagada em 1939 que o Deda dizia que Hitler havia de atacar a União Soviética. Há uns meses, na primavera, começara de repente a levar conservas para casa. Conservas de mais para o gosto da Babushka, que não estava grandemente interessada em gastar uma parte da pensão mensal do Deda numa coisa intangível como a precaução. E zombava dele:

- Que estás para aí a dizer? Guerra? – dizia, fuzilando com o olhar o fiambre em lata. – Mas quem achas que vai comer isso? Eu nunca hei de comer essa porcaria. Porque gastas dinheiro em porcarias? Porque não compras cogumelos marinados ou tomates? – E o Deda, que amava a Babushka mais do que qualquer mulher merece ser amada por um homem, baixava a cabeça, deixava-a resmungar à vontade e não dizia nada, mas no mês seguinte voltava a levar para casa mais latas de fiambre. Também comprava açúcar, café, tabaco e vodca. Mas com estes artigos tinha menos sorte, porque nos dias de aniversário, de anos de casados ou no Primeiro de Maio, a vodca era aberta, o tabaco fumado, o café bebido e o açúcar usado no pão, na massa para a torta e no chá. O Deda era incapaz de negar à família aquilo que rejeitava a si próprio. No dia dos seus ano, portanto, recusava-se a abrir a vodca. Mesmo assim, a Babushka ia ao saco tirar açúcar para lhe fazer torta de mirtilos. A única coisa que crescia uma ou duas latas por mês era o fiambre, que toda gente detestava e ninguém comia.

Page 24: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

24

A missão de Tatiana – comprar todo o arroz e toda a vodca que conseguisse – estava a revelar-se muito mais difícil do que esperava.

Nas lojas da Suvurovsky já não havia vodca. Havia queijo, mas o queijo não se conservaria muito tempo. Havia pão, mas o pão não se conservaria muito tempo o salame desaparecera, assim como os enlatados. E a farinha.estrugando o passo, percorreu a Suvorovsky, onze quarteirões ao todo, mais de um quilômetro: os enlatados e os alimentos que se conservavam mais tempo tinham-se esgotado em todas as lojas. E eram só três da tarde.

Passou por dois bancos de poupanças. Ambos fechados. Cartazes apressadamente escritos à mão diziam ENCERRADO. Ficou admirada. Porque fechariam os bancos mais cedo? Com certeza que o dinheiro não se esgotaria. Afinal de contas, eram bancos. Soltou uma risadinha para si própria.

Tatiana percebeu que os Metanov tinham perdido muito tempo ao deixarem-se ficar sentados, despachando Pasha, discutindo, olhando tristemente uns para os outros. Deviam ter ido imediatamente à rua, mas em lugar disso haviam levado Pasha. E Tatiana pusera-se a ler Zoshchenko. Devia ter saído uma hora mais cedo. Se ao menos tivesse ido à Nevsky Prospekt, poderia estar na fila, no meio da multidão.

Mas embora percorresse a Suvorovsky desanimada por não conseguir comprar nem uma caixa de fósforos, sentia o ar quente de verão transportando um odor estranho, o cheiro de um estado de coisas que não conhecia nem compreendia. “Será que nunca mais esquecereieste dia?”, pensou, inspirando profundamente. “Já muitas vezes disse: Oh, hei de lembrar-me sempre deste dia, mas depois esqueci-me dos dias que que achava que nunca esqueceria. Lembro-me de quando vi o primeiro girino da minha vida. Quem imaginaria uma coisa assim? Lembro-me da primeira vez que provei a água salgada do mar Negro. Lembro-me da primeira vez que me vi perdida no bosque. Se calhar é das primeiras vezes que nos lembramos. Nunca vivi uma guerra a sério. Por isso talvez não me esqueça desta.”

Tatiana encaminhou-se para as lojas que ficavam perto do Parque Tauride. Gostava daquela parte da cidade, longe da azáfama da Nevsky Prospekt. As árvores eram luxuriantes e altas, e havia menos gente. Agradava-lhe a sensação de um pouco de solidão.

Depois de procurar em três ou quatro mercearias, a única coisa que lhe apetecia era desistir. Estava a pensar seriamente em voltar para casa e dizer ao pai que não conseguira arranjar nada, mas a ideia de admitir perante ele que não fora capaz de levar a bom termo a pequena tarefa que ele lhe confiara enchia-a de angústia. Continuou a andar. Perto da esquina da Suvorovsky com a Ulitsa Saltykov-Schedrin havia uma loja com um longa fila que se estendia até a rua, de reto deserta.

Ajuizadamente foi pôr-se atrás da última pessoa. Mudando o peso de um pé para o outro, Tatiana esperou, perguntou as horas

e continuou à espera. A fila avançou um metro. Suspirando, perguntou à senhora

Page 25: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

25

que estava à sua frente para que era a fila. A mulher encolheu os ombros com um ar agressivo e afastou-se.

- O quê, o quê? – resmungou, apetando mais o saco de encontro ao peito, como se Tatiana fosse roubá-la. – Espera na fila como as outras pessoas e não faças perguntas parvas.

Continuou à espera. A fila avançou mais um metro. Perguntou outra vez as horas.

- Dez minutos depois da última vez que me perguntaste! – encolerizou-se a mulher.

Quando ouviu a jovem que se encontrava à frente da senhora mal-humorada pronunciar a palavra “bancos”, arrebitou as orelhas.

- Acabou-se o dinheiro – dizia ela a uma mulher mais idosa que se achava ao seu lado. Espero que tenha algum no colchão.

A mulher mais velha abanou a cabeça com um ar preocupado - Tinha duzentos rubros, as economias de uma vida. É o que trago agora. - Então compre, compre. Compre tudo. Os enlatados são especialmente... A mulher abanou a cabeça: - Não gosto de comida em lata. - Então compre caviar. Ouvi dizer que houve uma mulher que comprou dez

quilos de caviar no Elisey, na Nevsky. O que ela vai fazer com tanto caviar? Mas não tenho nada a ver com isso. Por mim vou comprar óleo. E fósforos.

- Compre sal – aconselhou a outra prudentemente. – Pode-se beber chá sem açúcar, mas não se podem comer papas de aveia sem sal.

- Não gosto de papas de aveia – respondeu a jovem. – Nunca gostei. Não consigo comer. É um caldo horrível.

- Então caviar. Gosta de caviar, não? - Não. Talvez alguns enchidos – retorquiu a jovem pensativamente. – Kolbasa

fumada. Olhe, há mais de vinte anos o proletariado é o czar. Já sei o que posso esperar.

A mulher que se encontrava à frente de Tatiana soltou uma exclamação de desdém. As outras duas viraram-se para trás.

- Claro que não sabe! – afirmou em voz alta. – Isso é guerra! – resmungou com um ar indignado, como se fosse uma locomotiva a chiar.

- Alguém lhe perguntou alguma coisa? - A guerra, camaradas! Bem-vindos à realidade que vos é oferecida por Hitler.

Compre o seu caviar e a sua manteiga e coma-os hoje à noite porque, e ouça bem o que lhe digo, os seus duzentos rublos nem pão vão dar pra comprar em janeiro,

- Cale-se! Tatiana baixou a cabeça. Não gostava de discussões. Nem em casa nem na

rua, entre desconhecidos. Duas pessoas saíam da loja com grandes sacos de papel nas mãos. - O que é que tem aí dentro? – perguntou delicadamente.

Page 26: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

26

- Kolbasa fumada – replicou o homem, de má vontade, afastando-se com um ar apressado. Parecia que tinha medo de que ela fosse atrás dele e o atirasse ao chão para lhe roubar a porcaria da kolbasa fumada. Tatiana permaneceu na fila. Mas nem sequer gostava de enchidos.

Passados mais trinta minutos foi-se embora. Como não queria desapontar o pai, encaminhou-se para a paragem do

autocarro. Ia apanhar o 22 para o Elisey, na Nevsky Prospekt, onde sabia que pelo menos vendiam caviar.

Mas depois pensou: “Caviar? Vamos ter de o comer para a semana. De certeza que não se aguenta até ao inverno. O que é que se pretende? Comida para o inverno?” Decidiu que não podia ser: ainda faltava muito para o inverno. O própriocamarada Estaline dissera que o Exército Vermelho era invencível. Em setembro já os porcos dos Alemães teriam desaparecido.

Ao dobrar a esquina da Ulitsa Saltykov-Schedrin, o elástico que lhe prendia o cabelo rebentou.

A paragem do autocarro ficava do outro lado da rua, paralela ao Parque Tauride. Quando atravessava a cidade para ir visitar a prima Marina, costumava apanhar o 136. Naquele dia, o 22 levá-la-ia ao Elisey, mas sabia que tinha de se despachar. Pela maneira como as mulheres tinham falado, em breve até o caviar desapareceria.

Descobriu mesmo à sua frente um quiosque que vendia gelados. Gelados! De repente, o dia desanuviou-se. Um homem lia o jornal, sentado num

banquinho debaixo de uma pequena sombrinha que o protegia do sol. Estugou o passa. Ouviu o barulho do autocarro atrás de si. Virando-se, viu-o aproximar-se.

Sabia que se corresse o apanharia facilmente. Desceu o passeio para atravessar a rua, olhou para o quiosque de gelados, olhou outra vez para o autocarro, olhou para o quiosque e parou.

Apetecia-lhe mesmo um gelado. Mordendo o lábio, deixou o autocarro afastar-se. “Não faz mal”, pensou. “O

próximo não tarda aí e, entretanto, sento-me na paragem a comer.” Aproximando-se do homem, perguntou ansiosamente: - Tem gelados? - Diz aqui gelados, não diz? E eu estou aqui sentado, não estou? Qual queres?

– Levantando os olhos do jornal, a sua expressão suavizou-se: - Qual queres, querida?

- Tem... – Tremendo um bocadinho: - Tem leite-creme? - Tenho. – Abriu a porta do congelador: - Cone ou copo? - Um cone, por favor – replicou ela, dando um saltinho. Pagou-lhe de bom grado; de bom grado lhe teria pago o dobro. Encantada

com o prazer que estava prestes a sentir, atravessou a rua a correr com os saltos

Page 27: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

27

altos, dirigindo-se para o banco debaixo das árvores, onde poderia comer o gelado em paz enquanto esperava pelo autocarro que a levaria a comprar caviar, porque a guerra começara.

Não havia ninguém na fila; ficou contente por poder saborear aquela delícia em privado. Tirou o papel branco de fora, atirou-o para o caixote do lixo ao lado do banco, cheirou o gelado e deu uma lambidela no caramelo doce, cremoso e frio. Fechando os olhos de felicidade, sorriu e rodou o gelado na boca, deixando-o derreter na língua.

“Que bom!”, pensou. “É bom de mais.” Como o vento lhe atirava o cabelo para o rosto, segurou-o com uma mão

enquanto lambia o gelado em círculos, em volta da bola macia. Cruzou e descruzou as pernas, atirou a cabeça para trás, deixou o gelado escorregar-lhe pela garganta e trauteou a canção que na altura andava na boca de toda a gente:

- “Um dia, eu e meu amor havemos de nos encontrar em Lvov.” Estava um dia perfeito. Durante cinco minutos não houve guerra; era apenas

mais um domingo glorioso de junho em Leninegrado. Quando ergueu o olhar, viu um soldado observando-a do outro lado da rua. Numa cidade como Leninegrado, ver um soldado não era nada de invulgar.

Havia milhares por todo o lado. Vê-los na rua era como ver velhinhas com sacos de compras, filas ou cervejarias. Normalmente, tê-lo-ia olhado de relance sem se deter, mas este soldado em especial estava de pé, do outro lado, contemplando-a com uma expressão que nunca antes vira. Parou de comer.

O seu lado da rua já estava na sombra, mas o outro nadava na luz da tarde, que batia de norte. Por um momento, devolveu-lhe o olhar e, quando o fitou de frente, alguma coisa se mexeu dentro dela; gostaria de poder dizer que se mexeu imperceptivelmente, mas não foi bem o caso. Sentiu-se como se as quatro divisões do coração lhe tivessem começado a lançar sangue ao mesmo tempo para os pulmões, espalhando-o por todo o corpo. Pestanejou e percebeu que estava com falta de ar. O soldado derretia-se, sob o pálido sol amarelo.

O autocarro chegou e Tatiana deixou de o ver. Quase gritou; levantou-se, não para apanhar o autocarro, não, mas para correr em frente e atravessar a rua, de modo a não o perder de vista. As portas abriram-se e o condutor olhou para ela. Tatiana, habitualmente sossegada e calma, quase lhe gritou para sair da frente.

- Vai entrar ou não, menina? Não posso ficar aqui eternamente. Entrar? - Não, não vou. - Então de que está à espera? – encolerizou-se ele, fechando as portas com

força. Tatiana recuou para o banco e viu-o a correr em volta do autocarro. O soldado parou. As portas voltaram a abrir-se. - Quer entrar? – perguntou o condutor.

Page 28: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

28

O soldado olhou para Tatiana e depois para o motorista. - Oh, por Lenine e Estaline! – trovejou o homem, batendo com as portas pela

segunda vez. Tatiana ficou de pé à frente do banco. Recuou, tropeçou e sentou-se

rapidamente. Com um ar negligente, encolhendo os ombros e rodando os olhos, o soldado

disse: - Pensei que era o meu autocarro. - Pois, eu também – replicou ela em voz rouca. - O seu gelado está a derreter – continuou ele gentilmente. E estava; pingava-lhe da ponta do cone de bolacha para o vestido. - Oh, não! – exclamou, sacudindo-se e fazendo uma nódoa. – Que lindo! –

murmurou, reparando que a mão que limpava o vestido não parava de tremer. - Há muito tempo que está à espera? – perguntou o soldado. Tinha uma voz

forte, profunda e com um quê de... não sabia. “Não é daqui”, pensou, mantendo os olhos para o ver melhor. Mas teve de os levantar até bem acima, porque ele era alto.

Envergava o uniforme, que parecia de domingo. O boné tinha uma estrela vermelha de esmalte. Usava dragonas de cordão cinzento-metalizado. Tinham um ar impressionante, mas Tatiana não fazia ideia do que significavam. Seria um soldado raso? Trazia uma espingarda. Os soldados andavam com espingardas? Do lado esquerdo do peito tinha uma medalha de prata debruada a ouro.

Por baixo do boné escuro, via-se que era moreno. “A juventude e o cabelo escuro ficam-lhe a matar”. Pensou Tatiana quando os seus olhos tímidos encontraram os deles, que eram cor de caramelo, ligeiramente mais escuros do que o gelado de leite-creme. Olhos de soldado? Olhos de homem? Sobretudo olhos tranquilos e sorridentes.

Tatiana e o soldado fitaram-se por um momento, que no entanto durou tempo de mais. Os desconhecidos entreolhavam-se apenas de raspão e desviavam logo o olhar. Pareceu a Tatiana que podia abrir a boca e dizer o nome dele. Virou a cara, sentindo-se quente e tonta.

- O seu gelado continua a derreter – repetiu o soldado. Corando, replicou muito depressa: - Oh, este gelado... já estou farta dele. – Levantando-se, atirou-o para o

caixote do lixo, desejando ter um lenço para limpar o vestido manchado. Não conseguia perceber se ele era tão jovem como ela; não, parecia mais

velho. Um rapaz novo observando-a com olhos de homem. Corou de novo, continuando a fitar o passeio entre as sandálias vermelhas e as botas pretas da tropa.

Chegou um autocarro. O soldado afastou-se dela e encaminhou-se na sua direção. Tatiana observou-o. Até a sua maneira da andar era de outro mundo; o passo seguro e demasiado comprido não parecia deslocado, ficava-lhe bem,

Page 29: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

29

encaixava. Era como tropeçar num livro que se pensava estar perdido. Ah, pronto, ei-lo aqui!

As portas do autocarro iam abrir-se, ele entraria, dir-lhe-ia adeus e ela nunca mais o veria. “Não vás!”, gritou mentalmente.

Ao aproximar-se do autocarro, o soldado abrandou o passo e parou. No último minuto, recuou e abanou a cabeça para o condutor, que fez um gesto de frustação com as mãos e fechou as portas, afastando-se do passeio.

Voltou para trás e sentou-se no banco. Tudo o que Tatiana tinha a fazer durante o dia varreu-se-lhe da cabeça num

abrir e fechar de olhos. Ficaram em sil6encio. “Como podemos estar calados?”, pensou Tatiana. “Se

mal nos conhecemos... Espera! Não nos apresentamos. Não sabemos nada um do outro. É natural que estejamos calados.”

Nervosa, olhou para um lado e para o outro da rua. Ocorreu-lhe de repente que talvez ele estivesse a escutar-lhe as batidas do coração, pois seria possível não as ouvir? O barulho até espantara os corvos das árvores que cresciam atrás deles. Os pássaros tinham voado para longe em pânico, com as asas batendo de modo frenético. Por causa dela, de certeza.

Precisava que o seu autocarro chegasse. Imediatamente. Sim, ele era um soldado, mas já vira soldados antes. E era bonito, sim, mas já

vira homens bonitos antes. No verão passado até conhecera soldados bonitos. Um deles... naquele momento não se recordava do nome (de resto, não se recordava de nada)... comprara-lhe um gelado.

Não era a farda nem o aspecto deste soldado que a afetava. Era a maneira como ele a olhara do outro lado da rua, separado dela por dez metros de cimento, um autocarro e os carris do elétrico.

Ele tirou um maço de tabaco do bolso do uniforme: - Quer um? - Oh, não, não – replicou Tatiana. – Não fumo. Voltou a guardar os cigarros no bolso: - Não conheço ninguém que não fume – comentou. Ele e a avó também eram as únicas pessoas que conhecia que não fumavam.

Não podia continuar calada: era patético. Mas quando abriu a boca para falar, as palavras que lembrou de dizer pareceram-lhe tão parvas que voltou a fechá-la, rezando para que o autocarro chegasse.

Não chegou. Por fim, o soldado falou de novo: - Está à espera do autocarro 22? - Estou – respondeu ela em voz esganiçada. – Espere! Não. – Vendo

aproximar-se um autocarro com o número 136: - É este que vou apanhar – afirmou sem pensar, levantando-se muito depressa.

- Cento e trinta e seis? – ouvi-o murmurar atrás dela.

Page 30: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

30

Tatiana dirigiu-se para o autocarro, tirou cinco copeques e entrou. Depois de pagar, encaminhou-se para o fundo e sentou-se mesmo a tempo de o ver entrar e encaminhar-se para o fundo.

Sentou-se na fila atrás dela, do lado oposto. Virou-se para a janela e tentou não pensar nele. Para onde ia o autocarro

136? Ah, sim, era o que apanhava para ir a casa de Marina, na Polustrovsky Prospekt. Pois então iria lá. Sairia na Polustrovsky e iria tocar à companhia da prima.

Espreitava o soldado pelo canto do olho. Para onde iria ele no 136? O autocarro passou o Parque Tauride e virou para a Liteiny Prospekt. Tatiana alisou o vestido e contornou as rosas bordadas com os dedos.

Curvando-se entre os bancos, endireitou as sandálias. Mas o que sobretudo fazia a cada paragem era rezar para que ele não saísse. “Aqui não”, pensava. “Aqui não. E aqui também não.” Não sabia onde queria que ele saísse; só que aqui não.

E ele não saía. Seguia calmamente sentado a olhar pela janela. De vez em quando, virava-se para a frente e, nessas alturas, juraria que olhava para ela.

O autocarro atravessou a Ponte Liteiny sobre o rio Neva e continuou a percorrer a cidade. Os poucos estabelecimentos que se viam da janela ou tinham longas filas ou estavam fechados.

As ruas começavam a ficar cada vez mais vazias... ruas claras e desertas de Leninegrado.

Uma paragem, outra e mais outra, embrenhando-se progressivamente na zona norte da cidade.

Caindo por instantes em si, percebeu que há muito passara a paragem de Marina, perto da Polustrovsky. Agora já nem sequer sabia onde estava. Inquieta, remexeu-se nervosamente no banco.

Para onde ia? Não sabia, mas não conseguia sair do autocarro. Primeiro, o soldado não parecia fazer tenções de sair e, segundo, não fazia ideia de onde estava. Se saísse ali, teria de atravessar a rua e apanhar o autocarro de regresso.

E afinal, o que queria? Ver onde ele saía e depois voltar lá um outro dia com Marina? A ideia fê-la estremecer.

Voltar para procurar o seu soldado. Era ridículo. De momento, só esperava conseguir retirar-se graciosamente e

regressar a casa. A pouco e pouco, as outras pessoas foram saindo. Por fim, só ficaram eles os

dois. O autocarro acelerou. Tatiana já não sabia o que fazer. O soldado não saía.

“Mas onde é que eu me meti?”, pensou. Decidiu sair mas, quando fez sinal, o condutor virou-se para trás e disse:

- Quer sair aqui, menina? Aqui só há complexos industriais, vai encontrar-se com alguém?

- Hã... não – gaguejou.

Page 31: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

31

- Então espere. A próxima paragem é a última. Envergonhada, voltou a sentar-se com um baque. O autocarro parou num terminal sujo. - Última paragem – anunciou o motorista. Tatiana saiu para o terminal quente e cheio de pó, construído num terreno

quadrado ao fundo de uma rua deserta. Com medo de se virar, levou a mão ao peito para acalmar o coração, que batia desenfreado. Que havia de fazer? Nada, a não ser apanhar o autocarro em sentido contrário. Afastou-se devagar do terminal.

Depois (e só depois!) de inspirar profundamente, olhou para a direita: lá estava ele, sorrindo-lhe alegremente. Tinha uns dentes brancos perfeitos, o que não era muito vulgar. Não conseguiu deixar de lhe devolver o sorriso. O alívio devia ter-se-lhe notado no rosto. Alívio, apreensão, ansiedade... e também mais alguma coisa.

De sorriso aberto, o soldado disse: - Está bem, desisto. Para onde é que vai? Que podia ela responder? Falava russo com um ligeiro sotaque. Corretamente, mas com uma pronúncia

diferente. Tentou perceber se o sotaque e os dentes brancos viriam do mesmo sítio e, se sim, de onde. Geórgia, talvez? Armênia? De algures perto do mar Negro. Tinha o ar de quem vinha de um lugar com água salgada.

- Desculpe? – replicou por fim. Ele voltou a sorrir: - Para onde vai? Erguendo a cabeça, ficou com um torcicolo. Era um miquinho de gente, e o

soldado parecia uma torre. Apesar dos saltos, mal lhe chegava à base do pescoço. Era outra coisa que tinha de lhe perguntar, se conseguisse recuperar a voz: a sua altura. “Os dentes, o sotaque e a altura são todos do mesmo sítio, camarada?”

Tinham parado feitos parvos no meio da rua deserta. Não havia grande atividade em volta do terminal, num domingo em que a guerra começara. Em vez de andarem a passear junto dos autocarros, as pessoas tinham ido pôr-se nas filas para comprar comida. Mas Tatiana não, porque estava parada feita parva no meio da rua.

- Enganei-me e não saí onde devia – gaguejou. – Tenho de voltar para trás. - Para onde ia? – repetiu ele com delicadeza, mantendo-se de pé em frente

dela, sem se mexer nem mostrar intenção de o fazer. De pé, completamente imóvel, eclipsando o sol.

- Para onde? – perguntou por uma questão de retórica. O seu cabelo parecia um ninho de ratos, não era? Nunca se maquilhava, mas naquela altura gostariade ter alguma cor nos lábios. Alguma coisa, qualquer coisa que não a fizesse sentir-se tão desengraçada e pateta.

- Vamos sair do meio da rua – sugeriu ele. Atravessaram-na. Apontando para um banco ao lado do sinal da paragem: - Quer sentar-se? – Podemos esperar aqui pelo próximo autocarro. – Sentaram-se, ele perto de mais dela.

Page 32: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

32

- Sabe, é muito esquisito – começou Tatiana, depois de pigarrear demoradamente. – A minha prima Marina vive na Polustrovsky Prospekt... eu ia lá...

- Mas isso foi há muitos quilômetros e uma dúzia de paragens atrás. - Não me diga – replicou Tatiana, corando. – Não devo ter dado por isso. Ele afivelou um ar sério: - Não se preocupe. Já volta para trás. O autocarro chega daqui a minutos. Olhando-o de relance, Tatiana perguntou: - Para onde... ia? - Eu? Eu estou no quartel da cidade e ando a fazer a patrulha. – Os olhos dele

cintilavam. “Oh, perfeito!”, pensou ela, desviando o olhar. “Ele apenas de patrulha e eu

quese em Murmansk. Que idiota!” Embaraçada e corada, sentiu-se tonta de repente. Baixou o olhar para os pés.

- Sem contar com o gelado, não comi nada o dia todo – disse em voz fraca, quase a perder os sentidos.

O soldado rodeou-lhe as costas com o braço e falou em voz firme e calma: - Não. Não desmaie. Aguente-se. Ela obedeceu. Tonta e desorientada, não queria ver a cabeça dele inclinada, observando-a

com um ar solícito. Cheirou-o. era um odor agradável e masculino que não tinha nada a ver com álcool ou o suor a que cheirava a maioria dos russos. Que seria? Sabonete? Água de colônia para homem? Os homens da União Soviética não usavam água de colônia. Não, era dele.

- Desculpe – prossegui debilmente, tentando levantar-se. Ele ajudou-a. – Obrigada.

- De nada. Sente-se bem? - Sinto. Suponho que isso é só fome. Ele continuava a ampará-la. O perímetro do antebraço dela cabia-lhe na mão,

do tamanho de um país pequeno, talvez a Polônia. Tremendo ligeiramente, Tatiana endireitou-se e ele largou-a, deixando um espaço quente e vazio no sítio onde tivera a mão.

- Primeiro sentada no autocarro, agora ao sol... – comentou ele, com alguma preocupação na voz. – Vai ver que passa. Venha. – Apontando: - Olhe o nosso autocarro.

Quem o conduzia era o mesmo motorista, que os mirou de sobrancelhas erguidas e não disse nada.

Desta vez, sentaram-se juntos, Tatiana junto da janela e o soldado com o braço estendido por cima das costas de madeira do banco dela.

Era verdadeiramente impossível olhá-lo assim de tão perto. Não havia maneira de se esconder dos seus olhos. E eram os seus olhos que Tatiana mais queria ver.

Page 33: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

33

- Não costumo desmaiar – afirmou, olhando pela janela. Era mentira. Passava a vida a desmaiar. Bastava alguém bater-lhe com um cadeira no joelho e caía logo ao chão, sem sentidos. Os professores da escola mandavam normalmente dois ou três bilhetinhos por mês para casa por causa dos seus desmaios.

Olhou-o de relance. Sorrindo sem poder conter-se, o soldado perguntou: - Como se chama? - Tatiana – respondeu, reparando-lhe nos pelos da barba, no nariz direito, nas

sobrancelhas pretas e na pequena cicatriz cinzenta visível na testa. Estava bronzeado por baixo da barba. Os dentes brancos eram magníficos.

- Tatiana – repetiu com a sua voz profunda. – Tatiana – disse mais devagar, com mais ternura. – Tania? Tanechka?

- Tania. Estendeu-lhe a mão, que ele agarrou antes de lhe dizer o seu nome. A mão pequena, magra e branca desapareceu na dele, enorme, quente e escura. Pensou que ele devia ouvir-lhe o coração através dos dedos, do pulso, de todas as veias que tinha debaixo da pele.

- Eu chamo-me Alexander. A sua mão continuava estendida e presa na dele. - Tatiana. Que lindo nome russo! - Alexander também – retorquiu, baixando os olhos. Por fim, retirou a mão com relutância. Ele tinha as mãos limpas, os dedos

longos e grossos e as unhas cortadas. Homem de unhas arranjadas era coisa rara na União Soviética que Tatiana conhecia.

Desviou o olhar para a rua. A janela do autocarro estava suja. Quem a lavaria, quando e com que frequência? Tinha de se agarrar fosse ao que fosse para não pensar. Sentia que ele estava quase a pedir-lhe para não se virar, quase a levantar a mão e a voltar-lhe o rosto para ele. Fitando-o, ergueu os olhos e sorriu:

- Quer ouvir uma anedota? - Estou mortinho por isso. - Um soldado é levado para ser executado – começou ela. – “Está mau tempo,

diz para a escolta. “Olha quem fala”, respondem eles. “quem tem de fazer o caminho de volta somos nós.”

Alexander riu-se de imediato e tão alto, não abandonando o rosto dela com os olhos alegres, que Tatiana sentiu-se a derreter um bocadinho por dentro.

- É muito engraçada, Tania. - Obrigada. – Sorrindo, disse rapidamente: - Sei outra. “General, que pensa da

batalha que vamos travar?” - Essa também sei – afirmou Alexandre. – O general diz: “Deus sabe que vai

ser perdida.” - “Então para que a travamos?” – continuou Tatiana. - “Para saber quem é o vencido” – rematou ele. Sorriram e desviaram o olhar um do outro.

Page 34: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

34

- Tem as alças desapertadas – ouviu-o dizer. - As quê? - As alças do vestido. Atrás. Desapertaram-se. Olhe, vire as costas para mim.

Eu aperto-lhas. Ela assim fez e sentiu-lhe os dedos puxando as alças de cetim. - Quer muito apertadas? - Assim está bem – respondeu em voz rouca, sem respirar. De repente

lembrou-se de que ele devia estar a ver-lhe o fundo das costas nuas por baixo das alças e ficou extremamente embaraçada.

Quando se virou para ele, Alexandre pigarreou e indagou: - Vai sair na Polustrovsky para ir visitar a sua prima Marina? É que já estamos

perto. Ou quer que a leve a casa? - Na Polustrovsky? – repetiu Tatiana, como se ouvisse a palavra pela primeira

vez. Ainda precisou de tempo algum tempo para perceber. Oh, valha-me Deus! – Pousando a mão na testa: - Oh, não, nem imagina... não posso voltar para casa. Vai ser um Deus me acuda!

- Porquê? Posso fazer alguma coisa para ajudar? Porque teria acreditado que ele falava a sério? Mais: porque se sentiria de

repente aliviada, mais forte e sem medo de ir para casa? Depois de lhe falar dos rublos que tinha no bolso e da tentativa falhada de

comprar comida, rematou: - Não percebo porque havia o meu pai de me encarregar disso. De toda a

minha família, sou a menos capaz de fazer alguma coisa bem feita. - Não se subestime, Tatiana. Além disso, posso ajuda-la. - Pode? Alexander disse-lhe que ia leva-la a uma loja só para oficiais chamadas

Voentorgs, onde poderia comprar muitas coisas de que precisava. - Se eu não sou um oficial... – objetou ela. - Pois não, mas eu sou. - É? - Sou. Alexander Belov, primeiro-tenente. Impressionada? - Cética – replicou ela. Alexander riu-se. Tatiana não queria que ele já tivesse

idade para ser primeiro-tenente. – Que medalha é essa? – perguntou, olhando-lhe para o peito.

- Valor militar – retorquiu ele, encolhendo os ombros com indiferença. - Sim? – Os cantos da boca ergueram-se-lhe num sorriso tímido de admiração:

- O que fez de tão militar e valoroso? - Nada de especial. Onde mora, Tania? - Perto do Parque Tauride... no cruzamento da Grechesky com a Quito Soviete

– retorquiu instantaneamente. – Sabe onde é? Alexander assentiu: - Faço patrulha por toda a cidade. Vive com os seus pais?

Page 35: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

35

- Claro. Com os meus pais, os meus avós, a minha irmão e o meu irmão gêmeo.

- Todos num quarto? – perguntou, sem qualquer inflexão na voz. - Não, temos dois! – exclamou ela alegremente. – e os meus avós estão numa

lista para terem outro quarto quando aparecer algum. - Há quanto tempo? – perguntou ele. - Desde 1924 – replicou ela. Desataram os dois a rir. Estavam no autocarro há uma eternidade. - Não conhecia ninguém com um irmão gêmeo – observou ele quando saíram.

– São muito amigos? - Somos, mas o Pasha às vezes é muito irritante. Pensa que tem sempre de

ganhar só porque é rapaz. - E não ganha? - Se estiver na minha mão, não. – Desviando o olhar dos seus olhos trocistas: -

Tem irmãos? - Não – respondeu. – Eu era o único filho dos meus pais. – Pestanejando,

continuou rapidamente: - Demos a volta à cidade, não foi? Felizmente, não estamos longe da loja. Apetece-lhe ir a pé ou prefere esperar pelo autocarro 22?

Tatiana mirou-o. Ele dissera era? Ele dissera “Eu era o único filho dos meus pais”? - Podemos ir a pé – retorquiu devagar, fitando-o pensativamente e sem se

mexer. Da testa alta ao queixo quadrado, os ossos da face eram salientes e claramente visíveis para os seus olhos curiosos. E, de momento, pareciam todos assentes em cimento, como se rangesse os dentes. Cautelosa, perguntou: - De onde é, Alexander? Tem um ligeiro... sotaque.

- Não tenho nada, pois não? – Baixando o olhar para os pés dela: - Consegue andar bem com esses sapatos?

- Consigo, não há problema. – Estaria a tentar mudar de assunto? A alça do vestido descaíra-lhe. De repente, ele endireitou-lha com o indicador, tocando-lhe na pele com a ponta do dedo. Tatiana corou. Detestava passar a vida a corar por tudo e por nada.

Alexander observou-a. O rosto descontraiu-se-lhe... o que era aquilo no seus olhos? Pareciam quase ofuscados.

-Tania... - Vamos embora – interpôs Tatiana, consciente da luz do dia, das brasas a

arder e da voz dele. Havia qualquer coisa de embaraçoso nestas sensações que de repente se lhe pegavam ao corpo como roupas molhadas.

As sandálias magoavam-lhe os pés, mas não queria que ele percebesse. - A loja é longe daqui?

Page 36: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

36

- Não. Vamos é ter de parar no quartel. Tenho de ir lá largar o serviço. E terei de a vendar o resto do caminho. Não posso deixá-la saber onde ficam as casernas dos soldados, pois não?

Tatiana nem o quis observar para ver se ele estava a brincar. - É verdade! – Fingindo indiferença: - Estamos para aqui a dar à língua e ainda

nem falámos da guerra. – Afivelou uma expressão séria: - Alexander, o que pensa de Hitler?

Porque parecia tão divertido com ela? Que teria dito de tão engraçado? -Quer mesmo falar da guerra? - Claro que sim – insistiu ela. – É um assunto grave. O ar de admiração não deixou os olhos dele. - É só guerra. Era inevitável. Já estávamos à espera. Vamos por aqui. Passaram pelo Palácio Mikhailovsky ou Castelo do Engenheiro, como às vezes

lhe chamavam, e atravessaram a pequena ponte na interseção dos canais Fontanka e Moika. Tatiana adorava a ponte de granito ligeiramente arqueada, para cujos parapeitos baixos por vezes trepava, caminhando depois sobre o muro. Mas naquele dia não, claro. Não ia agora portar-se como uma criança.

Depois de percorrerem a ponta ocidental do Letniy Sad, os Jardins de Verão, saíram nos terrenos relvados de Marsovo Póle, o Campo de Marte.

-Ou nos vamos embora e deixamos este país a Hitler – continuou – ou ficamos e lutamos pela Mãe Rússia. Mas se ficarmos será uma luta de morte. – Apontando: - O quartel fica do outro lado do campo.

- De morte? A sério? – Agitada, olhou para cima e abrandou o passo sobre a relva. Apetecia-lhe descalçar os sapatos. – Vai para a linha da frente?

- Vou para onde me mandarem. – Abrandando também o passo e acabando por parar: - Tânia, porque não se descalça? Vai sentir-se mais confortável.

- Estou bem. – Como saberia que os pés estavam a dar cabo dela? Seria assim tão óbvio?

- Vá lá – insistiu ele delicadamente. – Se os tirar será mais fácil para si andar na relva.

Tinha razão. Soltando um suspiro de alívio, curvou-se, desapertou as sandálias e descalçou-as. Depois endireitou-se e ergueu os olhos para ele:

- Está um bocadinho melhor. Alexander calou-se. - Agora é que ficou mesmo pequenina – disse por fim. - Não sou eu que sou pequenina. O Alexander é que é grande de mais. –

Corando, baixou os olhos. - Que idade tem, Tania? - Mais do que pensa – respondeu, tentando parecer mais velha e madura. A

brisa quente de Leninegrado soprou-lhe o cabelo louro para o rosto. Com os sapatos na mão, tentou afastar o cabelo com a outra. Quem lhe dera ter um elástico para fazer um rabo de cavalo! De pé à frente dela, Alexander estendeu o braço e afastou-

Page 37: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

37

lhe o cabelo. Os seus olhos passearam-lhe do cabelo para os olhos e para a boca, onde pararam.

Teria gelado à volta dos lábios? Sim, devia ser isso. Que vergonha! Lambeu os lábios, tentando limpar-lhes os cantos.

- O que é? Tenho gelado...? - Como sabe a idade que eu penso que tem? Diga-me: quantos anos tem? - Vou fazer dezessete. - Quando? - Amanhã. - Ainda nem sequer tem dezessete anos – repetiu Alexander, pasmado. - Faço amanhã! Insistiu ela indignada. - Pronto dezessete... Muito adulta. – Os seus olhos dançavam. - E o Alexander? Que idade tem? - Vinte e dois. Vinte e dois acabadinhos de fazer. - Oh. – Havia uma nota de desapontamento na sua voz. - O que foi? Sou muito velho? – perguntou sem conseguir esconder o sorriso

no rosto. - Uma antiguidade – retorquiu ela, sorrindo também. Atravessaram devagar o Campo de Marte. Tatiana seguia descalça, com as

sandálias vermelhas balançando ligeiramente nas mãos. Uma vez chegados ao passeio, a rapariga tornou a calçar-se e atravessaram a

rua em direção a um edifício castanho de quatro andares, sem qualquer identificação sem porta, para onde se entrava por um corredor profundo e escuro.

- Aqui é o Quartel Pavlov, onde estou colocado – indicou Alexander. - O famoso Quartel Pavlov? – Tatiana observou o edifício sujo. – Não pode

ser! - O que esperava? Um palácio cheio de neve? - Entro? - Só até ao porão. Vou entregar a minha arma e largar o serviço. Espere aqui. - Esta bem. – Depois de percorrerem a comprida arcada, chegaram a um

portão de ferro. Um jovem sentinela levantou a mão e fez a continência a Alexander: - Avance, meu tenente. Quem está consigo? - A Tatiana. Vai ficar aqui à minha espera, sargento Petrenko. - Claro que vai – retorquiu o guarda, examinando-a repticiamente, mas não

tão discretamente que ela não notasse. Tatiana observou Alexander atravessando um pátio do outro do portão de ferro, saudando um oficial alto, parando e cavaqueando por instantes com um amontoado de soldados que estavam a fumar, soltando uma gargalhada e prosseguindo o seu caminho. Nada o distinguia dos outros além do fato de ser mais alto e ter o cabelo mais escuro, os dentes mais brancos, os ombros mais direitos e o passo mais largo. Nada a não ser o fato de ter cor enquanto os outros pareciam cinzentos.

Page 38: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

38

Petrenko perguntou-lhe se queria sentar-se. Abanou a cabeça. Alexander dissera-lhe para esperar ali e não ia arredar pé.

Claro que não ia sentar-se na cadeira de outro soldado, embora até lhe apetecesse. De pé olhando pelo portão do quartel, à espera de Alexander, sentiu-se

flutuar na nuvem do destino, que emprestava à sua tarde laivos de improbabilidade e desejo.

Desejo de vida. Uma das frases preferidas do seu Deda era: - Do que eu gosto menos na vida é ela ser tão imprevisível. Oxalá fosse mais

como a matemática! Naquele dia, Tatiana tinha de discordar dele. Era um dia melhor do que qualquer um na escola ou na fábrica. Um dia

melhor do que qualquer outro na sua vida. Avançando um passo na direção do guarda, perguntou: - Diga-me: os civis podem entrar? Sorrindo, Petrenko respondeu piscando o olho: - Bem, depende do que o sentinela ganha com isso. - Chega, sargento – interrompeu Alexander, passando por ele num

andamento rápido. – Vamos, Tânia. – Já não tinha a espingarda. Exatamente quando se preparavam para atravessar o corredor até a rua, um

soldado saltou-lhes ao caminho, saído de uma porta secreta em que Tatiana não reparara. Assustou-a tanto que ela deu um gritinho, como se tivesse sido picada. Pousando a mão nas suas costas, Alexander abanou a cabeça:

- Dimitri! Porquê? O soldado deu uma gargalhada: - Porquê? Por causa das vossas caras! Tatiana recompôs-se. Estava enganada ou Alexander não só se aproximara

dela como também se pusera à sua frente, colocando-se ao mesmo tempo ao seu lado e protegendo-a? Que absurdo!

- Então, Alex? Quem é a tua nova amiga? – perguntou o soldado, sorrindo. - Dimitri, esta é a Tatiana. Dimitri apertou a mão dela vigorosamente, parecendo não a querer largar

mais. Tatiana retirou-se com graciosidade. Era de estatura média para um russo, mas baixo em comparação com

Alexander. Tinha cara de russo: um rosto grande e de feições ligeiramente apagadas, como se as cores tivessem todas secado. Tinha o nariz largo e arrebitado e os lábios extremamente finos, como dois elásticos soltos pegados um ao outro. No pescoço viam-se marcas de cortes da lâmina de barbear. Exibia um pequeno sinal preto por baixo do olho esquerdo. Não havia qualquer estrela vermelha de esmalte no seu boné e as dragonas não eram metálicas, como as de Alexander. As de Dimitri eram vermelhas com uma fina risca azul. Não se lhe viam medalhas no casaco da farda.

Page 39: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

39

- Muito prazer. Para onde vão? Alexander disse-lhe. - Se quiser, posso ajudá-la a levar as compras para casa. - Nós fazemos isso, Dima. Obrigado – cortou Alexander. - Não, não me custa nada. – Sorrindo: - Será um prazer. – Observava Tatiana.

– E então? Como é que conheceu o nosso tenente? – perguntou, caminhando ao lado dela enquanto Alexander seguia atrás. Ela virou-se e deu com ele fitando-a com uma expressão ansiosa. Os seus olhares tocaram-se e desviaram-se. Alexander pôs-se ao seu lado e desceu a rua. A loja Voentorg ficava mesmo na esquina.

- Encontrei-o no autocarro – explicou Tatiana a Dimitri. – Ele teve pena de mim e ofereceu-se para ajudar.

- Pois teve muita sorte – troçou Dimitri. – Não há ninguém que goste mais de ajudar uma donzela em apuros do que o nosso Alexander.

- Não sou propriamente uma donzela em apuros – murmurou ela, enquanto Alexander a empurrava com a mão, encaminhando-a para dentro da loja e pondo um ponto final na conversa.

Tatiana ficou espantada com o que encontrou atrás de uma simples porta de vidro com uma indicação que dizia SÓ PARA OFICIAIS. Primeiro, não havia qualquer fila. Segundo, a loja estava cheia de sacos e saquinhos e o cheiro a presunto e peixe fumado misturava-se com o aroma de cigarros e café.

Alexander perguntou-lhe quanto dinheiro tinha e ela disse-lhe, pensando que a quantia ia espantá-lo, mas ele só encolheu os ombros, dizendo:

- Podíamos gastar tudo em açúcar, mas é melhor sermos previdentes, não lhe parece?

- Como posso ser previdente se não sei para que estou a comprar tudo isso? - Compre como se nunca mais fosse ver nada disto. Deu-lhe o dinheiro sem pensar duas vezes. Ele comprou-lhe quatro quilos de açúcar, quatro quilos de farinha, três quilos

de aveia, cinco quilos de cevada, três quilos de café, dez latas de cogumelos marinados e cinco latas de tomate. Tatiana comprou também um quilo de caviar e, com os rublos que restavam, duas latas de fiambre para o seu Deda. Para si, comprou uma pequena tablete de chocolate.

Sorrindo, Alexander disse-lhe que pagaria ele o chocolate e comprou-lhe cinco tabletes.

Sugeriu-lhe que comprasse fósforos, mas ela discordou, explicando ( e pensando que estava a ser muito esperta) que não comiam fósforos. Sugeriu-lhe que comprasse óleo para motores. Ela disse-lhe que não tinha carro. Ele insistiu. Ela não queria. Não queria gastar o dinheiro do pai em coisas parvas como óleo para motores e fósforos.

- Mas, Tânia, o que é que vai fazer a farinha que comprou se não tiver fósforos para acender o lume? Assim vai ser difícil cozer pão – observou Alexander.

Page 40: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

40

Ela só cedeu quando descobriu que os fósforos custavam apenas uns copeques. Mesmo assim, só comprou uma caixa de duzentos.

- Não se esqueça do óleo, Tânia. - Quando tiver carro, compro óleo. - E se não houver querosene no inverno? - Qual é o mal? Temos eletricidade. Ele cruzou os braços: - Compre. - Disse “inverno”? – Tatiana fez um gesto de indiferença: - Deixe-se de

disparates! Inverno? Estamos em junho. No inverno já haverá guerra com os Alemães.

- Vá dizer isso aos londrinos – protestou Alexander. – Vá dizer isso aos Franceses, aos Belgas, aos Holandeses. Estão em guerra...

- Isso se quiser chamar guerra ao que os Franceses fizeram. Rindo, Alexander teimou: - Tatiana, compre o óleo. Vai ver que não se arrende. Ela até lhe teria dado ouvidos, mas a voz do pai ralhando-lhe por gastar

dinheiro à toa foi mais forte. Recusou-se a fazê-lo. Enquanto Alexander pagava, pediu a um empregado um elástico com o qual

prendeu muito bem o cabelo. Depois, perguntou como levariam todas as compras para casa.

- Não se preocupe. Foi por isso que vim – disse Dimitri. - Dima, acho que não é preciso – contrapôs Alexander. - Mas temos tanta... – começou Tatiana. - Dimitri, o burro de carga. É uma honra servir-te, Alexander. – Sorriu

afetadamente. Reparando no sorriso, Tatiana lembrou-se que lhe parecera que, quando

entrara na loja pela porta de vidro com o aviso SÓ PARA OFICIAIS, Dimitri ficara tão surpreendido como ela por estar dentro da Voentorg.

- Estão os dois na mesma unidade? – perguntou Tatiana a Dimitri enquanto metiam as provisões em caixotes de madeira para maças e saíam da loja.

- Oh não, não – respondeu ele. – O Alexander é oficial e eu sou só um soldado. Não, ele está muito acima de mim. O que o autoriza a mandar-me para a frente da Finlândia – rematou com o mesmo sorriso afetado.

- Não é para a Finlândia – corrigiu Alexander -, nem para a frente. É só para verificares os reforços em Lisiy Nos. De que te queixas?

- Não me queixo. Elogio a tua capacidade de previsão. Sem saber bem como reagir ao irônico estender dos lábios de borracha de

Dimitri, Tatiana olhou de soslaio para Alexander. - Onde é Lisiy Nos? – inquiriu. - No istmo da Carélia – retorquiu Alexander. – Vai bem assim?

Page 41: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

41

- Vou. – Estava ansiosa por chegar em casa. A irmã ia ter um ataque quando a visse aparecer com dois soldados. Levava o caixote mais leve, que tinha o caviar e o café.

- Não é muito pesado para si? – perguntou Alexander. - Não. – Na verdade, era bastante pesado e não sabia como ia conseguir

chegar ao autocarro. Porque iam de autocarro, não? Com certeza não tencionavam ir a pé do Campo de Marte à Quinto Soviete...

Como o passeio era estreito, seguiam em fila indiana, com Alexander à frente, Tatiana em segundo lugar e Dimitri fechando o cortejo.

- Alexander – ofegou Tatiana. – Será que... vamos a pé até minha casa? – Estava sem fôlego.

- Dê cá isso – disse ele, parando. - Não, eu consigo. Ele pousou o caixote, pegou no dela, colocou-o em cima do dele e levantou os

dois com toda a facilidade. - Esses sapatos devem estar a dar-lhe cabo dos pés. Vamos embora. Com o passeio já mais largo, podia caminhar ao lado de Alexander. Dimitri

seguia à sua esquerda. - Tânia, acha que estes nossos trabalhos nos vão dar direito a um copo de

vodca? - Sim, talvez o meu pai desencante alguma vodca. - E então diga lá, Tânia: costuma sair muito? – indagou Dimitri. Sair! Que pergunta mais esquisita! - Não muito – disse esquisita! - Já alguma vez foi a um chamado Sadko? - Não. Mas a minha irmã vai lá muitas vezes. Diz que é bonito. - Quer vir conosco ao Sadko no próximo fim de semana? – convidou Dimitri,

inclinando-se. - Hum, não, obrigada – replicou ela, baixando o olhar. - Venha lá! Vai ser divertido. Não vai, Alexander? Alexander não respondeu. Caminhavam os três lado a lado no passeio largo. Tatiana seguia no meio.

Quando outros transeuntes se aproximavam ao lado contrário, era Dimitri quem se punha atrás dela para os deixar passar.

A rapariga reparou que ele se desviava com um suspiro relutante, como se de um último recurso se tratasse, de uma batalha, como se estivesse a ceder território ao inimigo. De início, pensou que o inimigo eram os transeuntes, mas depressa percebeu que não: o inimigo era ela e Alexander, que nunca se desviavam , continuando a caminhar lado a lado, ombro a ombro.

- Está cansada? - inquiriu Alexander baixinho. Tatiana assentiu. - Quer descansar um bocadinho? - Pousou os caixotes.

Page 42: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

42

Dimitri imitou-o, fitando Tatiana: - E então onde é que vai divertir-se? - Divertir-me? Não sei. Vou ao parque. Vamos para a nossa dacha, em Luga. -

Virando-se para Alexander: - Diz-me de onde é ou tenho de adivinhar? - Vai ter que adivinhar, Tania. - De algum sítio com água salgada. - Ele ainda não lhe disse? - inquiriu Dimitri, aproximando-se muito. - Não consigo arrancar-lhe nada. - Que espanto! - Pronto, Tania - condescendeu Alexander. - Sou de Krasnodar, no mar Negro. - É isso, de Krasnodar - confirmou Dimitri. - Conhece? - Não. Não conheço nada. Dimitri olhou de relance para Alexander, que levantou os caixotes e disse

secamente: - Vamos. Passaram por uma igreja e atravessaram a Grechesky Prospekt. Tatiana ia tão

concentrada a pensar como havia de ver Alexander outra vez que passou o seu prédio sem dar por nada. Já percorrera umas centenas de metros quando parou, quase na esquina da Suvorovsky.

- Quer descansar mais um bocadinho? - perguntou Alexander. - Não. - Tentando falar com a voz neutra: - Já passamos o meu prédio. - Já passamos?! - exclamou Dimitri. - Como pode ser isso? - Passámos, pronto. Fica na esquina. Sorrindo, Alexander baixou a cabeça. Voltaram devagar para trás. Depois de entrarem pelo porta da rua, Tatiana disse: - É no terceiro andar. Acham que conseguem? E temos outro remédio? - inquiriu Dimitri. - Há elevador? Claro que não -

acrescentou. - Não estamos na América, pois não, Alexander? - Parece-me que não. Subiram as escadas à frente de Tatiana. - Obrigada - murmurou ela atrás de Alexander, sobretudo para si própria; na

verdade, estava apenas a pensar alto. E os seus pensamentos tinham-lhe saído alto de mais.

- Sempre às ordens - redarguiu ele sem se virar. A rapariga continuou a subir aos tropeções. Quando abriu a porta do andar comum, rezou para que o Slavin maluco não

estivesse no meio do corredor, mas desta vez a sua prece não foi atendida, porque ele encontrava-se estendido com o tronco no corredor e as pernas dentro do quarto: um homem-cobra, magro, maltrapilho, malcheiroso. O cabelo grisalho e oleoso, parecido com uma esfregona, cobria-lhe grande parte do rosto.

- O Slavin andou outra vez a arrancar o cabelo - sussurrou ela para Alexander, que seguia mesmo atrás de si.

Page 43: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

43

- Parece-me que esse é o menor dos seus problemas - cochichou-lhe ele. Com um grunhido, Slavin deixou Tatiana passar por ele, mas agarrou a perna

de Alexander, com um riso histérico. - Camarada - disse Dimitri aproximando-se atrás de Alexander e pondo a bota

em cima do pulso de Slavin -, larga o tenente. - Deixa Dimitri - interpôs Alexander, afastando Dimitri com o cotovelo. - Eu

trato do assunto. Slavin guinchou de alegria e agarrou-se com mais força à bota de Alexander. - A nossa Tanechka trouxe para casa um bonito soldado... perdão, dois

bonitos soldados! O que é que o teu pai vai dizer, Tanechka? Achas que aprova? Não me parece! Não me parece mesmo nada! Ele não gosta que tragas rapazes para casa. Dirá que dois é de mais para ti, Tanechka. Dá um à tua irmã, minha doçura. - Desatou a rir maldosamente. Alexander liberou a perna.

Slavin estendeu-se para agarrar Dimitri, mas olhou para o seu rosto e deixou a mão cair sem lhe tocar.

Guinchando para os três: - Isso, Tanechka. trá-los para casa. Traz mais! Trás-los a todos... porque

estarão mortos daqui a três dias. Mortos! Mortos pelo camarada Hitler, tão amigo do camarada Estaline!

- Esteve na guerra - explicou Tatiana, aliviada por já ter passado. - Costuma ignorar-me quando estou sozinha.

- Duvido - comentou Alexander. Tatiana corou: - A sério. Está zangado conosco porque o ignoramos. Debruçando-se para ela, Alexander observou: - Não é tão bom viver em comunidade? - E há outra maneira? - admirou-se Tatiana. - Não. É o preço para reconstruirmos as nossas almas egoístas e burguesas. - Isso é o que o camarada Estaline diz! - exclamou ela. - Eu sei - retorquiu Alexander, mantendo uma expressão séria. - Estou a citá-

lo. Tentando não rir, Tatiana conduziu-os até à porta de casa. Antes de abrir,

lançou um olhar a Alexander e Dimitri e anunciou com um suspiro entusiasmado: - Pronto, chegamos. - Abrindo a porta e sorrindo: - Entre, Alexander. - Também posso entrar? - perguntou Dimitri. - Entre, Dimitri. A família de Tatiana encontrava-se no quarto da Babushka e do Deda, em

redor da grande mesa. Tatiana espreitou do vestíbulo. - Cheguei! Ninguém sequer levantou a cabeça. - Onde estiveste? - perguntou a mãe com indiferença, como se estivesse a

dizer “Mais pão?”

Page 44: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

44

- Mãezinha, paizinho! Olhem a comida que comprei! O pai levantou brevemente o olhar do copo de vodca. - Muito bem, filha. - Seria igual se tivesse voltado de mãos a abanar. Com um

pequeno suspiro, lançou um olhar a Alexander, parado à entrada. Que expressão era aquela? Compaixão? Não, não era bem compaixão. Ternura.

- Pouse os caixotes e venha comigo - cochichou-lhe ela. Entrando no quarto e tentando afastar da voz a agitação que sentia: - Mãezinha, paizinho, Babushka, Deda: quero apresentar-lhes o Alexander... - E o Dimitri - disse rapidamente, como se ela se tivesse esquecido dele. - E o Dimitri - rematou ela. Toda a gente se cumprimentou, fitando incredulamente Alexander e depois

Tatiana. A mãe e o pai permaneceram sentados a mesa, com dois copos e uma garrafa de vodca entre os dois. O Deda e a Babushka foram sentar-se no sofá para os soldados terem mais espaço à mesa. Os pais de Tatiana pareciam tristes. Estariam a beber à saúde de Pasha e a empurrá-lo para baixo com aperitivos?

- Muito bem, Tania - felicitou-a o pai, levantando-se. - Estou orgulhoso de ti. - Fazendo um gesto para Alexander e Dimitri: - Vai um copo de vodca?

- Não, obrigado. - respondeu Alexander delicadamente, abanando a cabeça. - Vou entrar em serviço mais tarde.

- Abana a cabeça ti - disse Dimitri, dando um passo em frente. O pai serviu-o, carregando o cenho para Alexander. Que homem era aquele

que recusava um copo de vodca? Fossem quais fossem as suas razões para recusara hospitalidade do pai, Tatiana sabia que, por causa disso, seria Dimitri a cair-lhe nas boas graças. Era uma coisa sem importância, mas a impressão causada seria duradoura. E, no entanto, Tatiana ainda gostava mais dele por ter recusado.

- Tania, compraste leite? - inquiriu a mãe. - O paizinho disse-me para comprar só coisas que não se estraguem. - De onde é? - perguntou o pai a Alexander. - Da região de Krasnodar. O pai abanou a cabeça: - Vivi em Krasnodar quando era novo. Não parece de lá. - Mas sou. Para mudar de assunto Tatiana perguntou: - Alexander prefere antes chá? Posso ir fazer, se quiser. Ele aproximou-se e ela teve de inspirar profundamente. - Não, obrigado - respondeu calorosamente. - Não posso demorar-me. Tenho

de regressar. Tatiana descalçou as sandálias. - Desculpem. Tenho os pés... - Sorriu. Tentara fingir que não a magoavam, mas

as bolhas do dedo grande e do mindinho estavam a sangrar. Alexander olhou-lhe para os pés e abanou a cabeça. Depois, fitou-a de frente.

A mesma expressão perpassou-lhe os olhos cor de amêndoa.

Page 45: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

45

- Descalça é melhor - pronunciou baixinho. Dasha entrou no quarto e ficou especada a olhar para os dois soldados. Parecia saudável e radiosa. Para Tatiana, até talves um tanto saudável e

radiosa de mais, mas antes de conseguir proferir um único som, a irmã exclamou alegremente:

- Alexander! O que estás a fazer aqui? Dasha nem sequer olhou para Tatiana que, perplexa, mirou Alexander e

indagou: - Conhece a Dasha?... - Calou-se a meio da frase, vendo a compreensão, a

consciência e a infelicidade estampando-se-lhe no rosto de pedra. Voltou a Dasha e depois Alexander. Sentiu-se empalidecer. “Oh, não”, pensou.

“Oh, não, como é possível?” A expressão de Alexander tornou-se impassível. Sorrindo a Dasha, respondeu,

sem olhar para Tatiana: - Sim, eu a Dasha já nos conhecemos. - Bem, podes dizê-lo! - Dasha riu-se e beliscou-lhe o braço. - O que fazes aqui,

Alexander? Tatiana passeou o olhar pelo quarto para ver se mais alguém reparara no

mesmo que ela. Dimitri comia um aperitivo. O Deda lia jornal com os óculos postos. O pai bebia mais um copo. A mãe abria umas bolachas e a Babushka tinha os olhos fechados. Mais ninguém reparara.

- Vieram com Tatiana - explicou a mãe. - Trouxeram comida. - A sério? - Erguendo o rosto para Alexander, cheia de curiosidade: - Como

conheces a minha irmã? - Não conheço - retorquiu Alexander. - Encontrei-a no autocarro. - Encontraste a minha irmã mais nova no autocarro? Incrível! Parece obra do

destino! - Beliscou-o outra vez ao de leve no braço. - Vamos sentar-nos - propôs Alexander. - Afinal acho que aceito um copo de

vodca. - Aproximou-se da mesa colocada no centro do quarto pelo lado da parede, enquanto as duas irmãs permaneciam perto da porta.

Inclinando-se, Dasha segredou: - É aquele de que te falei! - Devia pensar que estava a falar baixinho. - Aquele quê? - Hoje de manhã - sussurrou Dasha. - De manhã? - Estás parva? É ele! Tatiana percebeu. Não estava a ser parva. Para ela, não havia manhã. Só

existia o autocarro e Alexander. - Oh! - exclamou, recusando-se a sentir fosse o que fosse. Estava demasiado

espantada. Dasha avançou e sentou-se na cadeira ao lado dele. Mirando tristemente as

suas costas fardadas, Tatiana foi arrumar as compras.

Page 46: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

46

- Tanechka - gritou-lhe a mãe -, arruma tudo no lugar! Não faças como de costume.

Tatiana ouviu-o dizer: - Por mim, qualquer copo serve. - Isso - aprovou o pai, servindo-o. - Um brinde! Às novas amizades! - Às novas amizades - repetiram todos. - Tania, venha brindar conosco - convidou Dimitri. Ela aproximou-se, mas o pai

disse que não, que Tania era muito nova para beber. Dimitri pediu desculpa e Dasha observou que beberia por ela e pela irmã, ao que o pai comentou que parecia que já tinha bebido. Todos riram, exceto a Babushka, que tentava passar pelas brasas, e Tatiana, que só queria que o dia acabasse.

Transportando os caixotes um a um do corredor para a cozinha, ia ouvindo pedaços da conversa.

- O Trabalho nas fortificações tem de ser acelerado. - É preciso deslocar tropas para as fronteiras. - Os aeroportos têm de ser postos a funcionar em condições. É preciso instalar

armas nas posições avançadas. E tem de se fazer tudo em passo mais do que acelerado.

Um pouco depois, ouviu o pai: - Oh, a nossa Tania trabalha em Kirov. Acabou agora a escola... um ano mais

cedo! Tenciona ir para a Universidade de Leninegrado no próximo ano, quando fizer dezoito. Olhando para ela não se percebe... mas acabou a escola um ano mais cedo. Já tinha dito?

Tatiana sorriu. - Não percebo porque quis ir trabalhar para Kirov - acrescentou a mãe. - É tão

longe! Praticamente já fora de Leninegrado. E ela não sabe tomar conta de si própria.

- E para quê, se tu toda a vida lhe fizeste tudo? - cortou o pai. - Tania! - gritou a mãe. - Já que estás aí, lava a louça do jantar, sim? Tatiana arrumou tudo o que comprara na cozinha. Enquanto transpostava os

caixotes, olhava de relance para as costas de Alexander. A Carélia e os Finlandeses e as suas fronteiras, os tanques, a superioridade das armas, os bosques pantanosos traiçoeiros onde era tão difícil conquistar terreno, a guerra com a Finlândia em 1940 e...

Estava na cozinha quando Alexander, Dasha e Dimitri saíram. Alexander nem olhou para ela. Parecia um cano cheio de água ao qual Dasha fechara a torneira.

- Despede-te, Tania - incitou Dasha. - Vão-se embora. Oxalá fosse invisível! - Adeus - disse de longe, limpando as mãos enfarinhadas ao vestido branco. -

E mais uma vez obrigada pela ajuda. - Eu acompanho-te até lá fora. - Dasha agarrou-se ao braço dele.

Page 47: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

47

Dimitri aproximou-se de Tatiana e perguntou-lhe se podiam encontrar-se outra vez. É possível que tivesse dito que sim ou que houvesse assentido. Na verdade, mal o ouviu.

Baixando os olhos para ela, Alexander disse: - Foi um prazer conhecê-la, Tatiana. É possível que lhe tivesse retribuído o cumprimento, mas não lhe parecia. Saíram os três, deixando-a especada na cozinha. A mãe apareceu à porta: - O oficial esqueceu-se do boné. Tatiana tirou-o das suas mãos mas, antes de ter tempo de dar um passo que

fosse na direção do corredor, Alexander surgiu de novo... sozinho. - Esqueci-me do boné. Ela deu-lho sem dizer nada e sem olhar para ele. Pegando o boné, os dedos dele pousaram nos dela por um momento, o que a

fez levantar a cabeça. Fitou-o com tristeza. Que faríam os adultos? Por ela, só lhe apetecia chorar. Mas não tinha outro remédio senão engolir a dor e comportar-se como uma pessoa crescida.

- Lamento - disse Alexander, tão baixinho que pensou que ouvira mal. Depois, virou-se e afastou-se.

Tatiana deu com a mãe observando-a de cenho carregado: - Que pensas que estás a fazer? - Dê graças por termos comida, mãezinha - retorquiu, começando a arranjar

alguma coisa para comer. Barrou um pedaço de pão com manteiga, comeu um bocado com distraído abandono e depois deu um salto, atirando fora o resto.

Não havia sítio nenhum para onde ir. Nem a cozinha, nem no vestíbulo, nem no quarto. Do que gostaria era de ter um quartinho só seu, para onde pudesse ir escrever pequenos nadas no diário.

Mas como não dispunha de nenhum quartinho só seu, não tinha diário. Pelo que sabia dos livros, era suposto os diários estarem cheios de apontamentos pessoais e palavras íntimas. Bem, no seu mundo não havia palavras íntimas. Cada um guardava para si os seus pensamentos íntimos ao deixar-se ao lado de outra pessoa, ainda que essa outra fosse a irmã. Aliás, era a primeira vez que se via com qualquer tipo de pensamento íntimo. Lev Tolstói, um dos seus escritores preferidos, escrevera um diário em rapaz, adolescente e jovem, um diário para ser lido por milhares de pessoas. Não era esse tipo de diário que gostaria de ter. Queria um no qual pudesse escrever o nome de Alexander, sem ninguém ler. Queria um quarto onde pudesse dizer o seu nome em voz alta, sem ninguém ouvir.

Alexander. Em vez, disso, voltou para o quarto, sentou-se ao lado da mãe e comeu uma

bolacha. Os pais falavam do dinheiro que Dasha não conseguira levantar do banco, que

fechara mais cedo, e um pouco da evacuação, mas nada sobre Pasha... como poderiam? Tatiana também não disse nada de Alexander... como poderia? O pai

Page 48: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

48

falou de Dimitri, observando que parecia muito bom rapaz. Sentada à mesa, calada, Tatiana tentava chamar a si toda a sua força de adolescente.

Quando Dasha voltou, fez-lhe sinal para que a seguisse até ao quarto. Tatiana obedeceu. Girando nos calcanhares, a irmã perguntou:

- Então? O que achaste? - De quê? - Tinha a voz cansada. - Tania, dele! Que achaste dele? - É simpático. - Simpático? Não brinques comigo! Que te disse eu? Já conheceste alguém

mais bonito? Conseguiu esboçar um sorriso. - Eu não tinha razão? Não tinha? - riu Dasha. - Tinha, Dasha. - Não é incrível que o tenhas conhecido? Que coincidência! - Pois é! - concordou monocordicamente, de pé no quarto. Apetecia-lhe sair,

mas a porta estava bloqueada pelo corpo agitado de Dasha, que sem se dar por isso desafiava Tatiana, que não estava à altura de discutir com ela, nem muito nem pouco. Como de costume, não disse nem fez nada. Sempre fora assim. A irmã era sete anos mais velha e mais forte, mais esperta, mais divertida e mais bonita. Ganhava sempre. Sentou-se na cama e Dasha deixou-se cair ao seu lado.

- E o Dimitri? Gostaste dele? - Acho que sim. Olha, não te preocupes comigo. - Quem esta preocupado? - Despenteando-lhe o cabelo: - Dá uma

oportunidade ao Dima. Parece-me que gostou de ti. - Parecia admirada. - Deve ter sido do vestido.

- Se calhar... Olha, estou cansada. Fartei-me de andar. Dasha pousou o braço nas costas da irmã: - Gosto muito do Alexander, Tania. Tanto que nem sei explicar. Sentiu um arrepio. Tendo conhecido Alexander, tendo caminhado lado a lado

com Alexander, tendo sorrido a Alexander, compreendia tristemente que a relação de Dasha com ele não era capricho passageiro que em breve acabaria que, desta vez, a irmã falava sério.

- Não expliques nada, Dasha. - Um dia hás de saber. Olhou de soslaio para a irmã, sentada na ponta da cama. Abriu a boca. Passou

um momento. O que lhe apetecia dizer era: “Mas Dasha, o Alexander atravessou a rua por

minha causa”. “Entrou no autocarro por minha causa e foi até a outra ponta da cidade por

minha causa”. Mas não podia dizer nada daquilo à irmã mais velha.

Page 49: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

49

O que lhe apetecia dizer era: “Já tiveste que chegasse. Podes arranjar outro quando quiseres. És encontadora, esperta, bonita e toda a gente gosta de ti. Mas ele, quero-o para mim.”

O que lhe apetecia dizer era: “E se ele gostar mais de mim?” No momento, não disse nada. Nem tinha a certeza se alguma coisa daquilo

era verdade. Especialmente a última parte. Como podia ele gostar mais dela? Era só olhar para Dasha, com o seu cabelo, seu corpo... E calhar também percorrera a cidade e fora até o outro lado do rio por causa de Dasha, às três horas da manhã, com as pontes sobre o Neva içadas. Na verdade, não tinha nada a dizer. Fechou a boca. Que perda de tempo, que piada de mau gosto!

Dasha examinou-a: - Tania, o Dimitri é soldado... Não sei bem se estás preparada para um

soldado. - O que quer isso dizer? - Nada, nada. Só talvez tenhas de te ataviar um bocadinho. - Ataviar-me, Dasha? - Sentiu o coração encolhendo-se contra os pulmões. - Sim. Sabes, talvez uma corzinha nos lábios, uma pequena conversa... - Puxou

o cabelo da irmã. - Pode ser que sim, mas fica para outro dia. Envergando o vestido branco de rosas vermelhas, enroscou-se, virada para a

parede.

Page 50: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

50

3

Alexander descia a Ligovsky em passo acelerado. Não disseram nada durante uns minutos. Depois , quase sem fôlego, Dimitri

disse: - Família simpática! - Muito - replicou Alexander calmamente. Não estava sem fôlego, nem queria

falar com Dimitri sobre os Metanov. - Lembro-me da Dasha - continuou Dimitri, quase sem conseguir acompanhá-

lo. - Vi-a umas vezes contigo no Sadko, não foi? - Foi. - Mas a irmã é de se tirar o chapéu, não achas? Alexander não respondeu. - O Georgi Vasilievich disse que a Tania tinha quase dezessete anos -

acrescentou Dimitri. Estremecendo: - Dezessete? Lembras-te dos nossos dezessete anos?

Alexander continuou a caminhar: - Bem de mais. - Gostaria de se lembrar menos dos seus dezessete anos.

Dimitri estava a falar com ele. - Não ouvi. O quê? - Achas que ela é uma jovenzinha de dezessete ou uma sabidona de

dezessete? - repetiu o outro pacientemente. - Sejas como for, muito nova para ti - respondeu friamente. Dimitri ficou calado. - É muito bonita - afirmou finalmente. - É, mas mesmo assim muito jovem para ti. - E que te interessa isso? Tu andas atrás da irmã mais velha e eu vou tratar de

conhecer a mais nova. - Soltando uma risada: -Porque não? Fazíamos um grupinho engraçado, não te parece? Dois grandes amigos, duas irmãs... há aqui uma simetria...

- Dima - interrompeu Alexander - , e a Elena de ontem à noite? Disse-me que gostava de ti. Posso apresentar-vos para a semana.

Fazendo um gesto de desinteresse, Dimitri indagou: - Por acaso falaste com a Elena? - Rindo: - Não. Arranjo dúzias como a Elena.

Além disso, porque não a Elena também? Não. A Tatiana não é como a outras. - Esfregou as mãos e sorriu.

Nem um músculo se mexeu no rosto de Alexander. Nem um piscar de olhos, nem um apertar dos lábios, nem um franzir das sobrancelhas. Só as suas pernas se moviam, descendo a rua cada vez mais depressa.

Page 51: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

51

Dimitri começou a correr. - Alexander, espera. Olha, quanto à Tania... só para ter a certeza... não te

importas, pois não? - Claro que não - respondeu em tom monocórdico. - Porque havia de me

importar? - Já cá não está quem falou. - Dando-lhe uma palmada nas costas: - És um

bom amigo. Agora muito rapidamente: queres que combine alguma coisa... - Não! - Mas vai passar a noite de serviço. Vai lá, vamos divertir-nos, como sempre. - Não. Hoje não. - Depois de uma pausa: - Outra vez não, está bem? - Mas... - Estou atrasado - cortou Alexander. - Vou ter de ir a correr. Encontramo-nos

no quartel.

Page 52: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

52

MARÉS INEXPLORADAS

1

Na manhã seguinte, quando acordou, a primeira imagem que viu mentalmente foi o rosto de Alexander. Tatiana não falou com a irmã e, aliás, tentou até nem olhar para ela. Quando ia sair, Dasha disse:

- Parabéns. - Parabéns, Tanechka - repetiu a mãe, apressando-se a sair. - Não se

esqueçam de fechar a porta. O pai beijou-a na testa: - O teu irmão também faz dezessete anos. - Eu sei, paizinho. O pai era engenheiro hidráulico nos serviços de distribuição de água de

Leninegrado. A mãe, costureira numa unidade de produção de uniformes num hospital de Nevsky. Dasha, ajudante de uma dentista. Trabalhava com ele desde que saíra da universidade, dois anos atrás. Haviam tido um romance mas, uma vez acabado, Dasha continuara lá porque gostava do trabalho. Era bem pago e não havia muito a fazer.

Tatiana foi para Kirov, onde passou a manhã em reuniões, ouvindo discursos patrióticos. O encarregado do seu departamento, Sergei Krasenko, perguntou se alguém queria inscrever-se no Exército Voluntário do Povo para cavar trincheiras no Sul, ajudando assim a derrotar os odiados Alemães.

Hoje, os Alemães eram odiados. Ontem, eram amados. Como seria amanhã? Ontem, Tatiana conhecera Alexander. Krasenko continuava a falar. As fortificações a norte de Leninegrado, ao longo

da antiga fronteira com a Finlândia, iam ser portas em alerta defensivo. O Exército Vermelho desconfiava que os Finlandeses tentariam reconquistar a Carélia. Tatiana endireitou-se. Carélia, Finlândia. Alexander falara do assunto no dia anterior. Alexander... Voltou a recostar-se.

As mulheres ouviram Krasenko, mas ninguém se ofereceu para nada. Isto é, ninguém exceto Tamara, que estava a seguir a Tatiana na linha de montagem.

- O que tenho a perder? - murmurou com fevor, pondo-se em pé. Bem lhe parecia que o trabalho de Tamara era muito aborrecido.

Page 53: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

53

Antes do almoço, distribuíram-lhe uns óculos de proteção, uma touca para o cabelo e uma bata castanha. Depois do almoço, já não estava a empacotar colheres e garfos. Pela linha de montagem, chegavam-lhe agora pequenas balas cilíndricas de metal. Caíam doze de cada vez em pequenas caixas de cartão, que Tatiana tinha depois de arrumar em grandes caixotes de madeira.

Às cinco horas, tirou a bata, a touca e os óculos, passou o rosto por água, refez o rabo de cavalo e saiu do edifício, percorrendo a Stachek Prospekt ao longo do famoso muro de Kirov, uma estrutura de cimento de sete metros de altura que se estendia por quinze quarteirões da cidade. Palmilhou três deles até a paragem de autocarro.

E na paragem de autocarro, à sua espera, encontrava-se Alexander. Quando o viu, o rosto iluminou-se-lhe. Foi mais forte do que ela. Levando a

mão ao peito, parou por um momento. Ele sorriu-lhe. Corou, engoliu fosse o que fosse que lhe picava na garganta e caminhou na sua direção, reparando que ele tinha o boné de oficial nas mãos. Gostaria de ter esfregado melhor a cara.

Tinha tantas palavras na cabeça que estava incapaz de fazer conversa de circunstância, precisamente na altura em que mais necessitava dela.

- O que faz aqui? - perguntou timidamente. - Estamos em guerra com a Alemanha - disse Alexander. - Não tenho tempo

para andar com fingimentos. Sentindo que devia dizer alguma coisa, qualquer coisa para as palavras dele

não se perdessem no ar, Tatiana exclamou: - Oh! - Parabéns! - Obrigada! - Vai fazer alguma coisa especial hoje a noite? - Não sei. Como é segunda-feira, toda a gente deve estar cansada. Vamos

jantar. Talvez fazer um brinde. - Suspirou. Num mundo diferente, talvez o convidasse para o seu jantar de anos. Mas neste mundo, não.

Puseram-se à espera. Pessoas com cara de poucos amigos iam-se aproximando. Tatiana não se sentia carrancuda mas, olhando para a fila de homens e mulheres à espera do autocarro, pensou: “É este o ar que terei quando estiver aqui sozinha com eles?”

“É este o ar que terei o resto da minha vida?” Mas depois lembrou-se: “Estamos em guerra. Como será o resto da minha

vida?” - Como sabia que eu estava aqui? - O seu pai ontem disse-me que trabalhava em Kirov. Tive esperança de a

encontrar à espera do autocarro. - Porquê? - perguntou jovialmente. - Tivemos assim tanta sorte com os

transportes públicos? Alexander sorriu:

Page 54: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

54

- O povo soviético ou a Tatiana e eu? Ela corou. O autocarro número 20 chegou com espaço para duas dúzias de

pessoas. Entraram três dúzias. Alexander e Tatiana continuaram à espera. - Venha. Vamos a pé - sugeriu ele, empurrando-a delicadamente. - A pé para onde? - Para casa. Quero falar consigo. - A minha casa fica a oito quilómetros daqui. - Fitando-o, hesitante, lançou um

olhar para os pés. - Os seus sapatos hoje são confortáveis? - Sorria. - São, obrigada - retorquiu, maldizendo a sua timidez de rapariguinha. - Olhe, e se fôssemos a pé até à Gevorova Ulitsa e depois apanhássemos o

elétrico número 1? Acha que consegue? Aqui toda a gente está à espera do autocarro ou do trólei. Por isso, vamos apanhar o elétrico número 1.

Tatiana pensou. - Parece-me que esse elétrico não para a minha porta - disse por fim. - Pois não, mas pode mudar na Estação de Varsóvia e apanhar o elétrico

número 16 que para na esquina da Grechesky com a Quinto Soviete, ou ir comigo no elétrico número 2, que me deixará a mim perto do quartel e a si no Museu Russo. - Depois de uma pausa: - A outra alternativa é irmos a pé.

- Não vou andar oito quilómetros, por mais confortáveis que sejam os meus sapatos - protestou ela. - Vamos para o elétrico. - Já sabia que não ia sair na estação de comboios para apanhar outro elétrico sozinha.

Mas como ainda não chegara passados oito minutos, concordou em palmilhar alguns quilómetros até ao número 16. Da Govorova passaram à Ulitsa Skapina, que serpenteava diagonalmente para norte até terminar do canal Obvodnoy, o canal circular.

Tatiana não queria chegar nem ao elétrico dela nem ao dele. Apetecia-lhe caminhar ao longo do canal azul. Como dizer-lhe isto? E também tinha outras coisas para lhe perguntar. Tentava sempre não ser muito desabrida. Tentava encontrar as palavras certas, mas como receava sempre dizer algo que não fosse apropriado, preferia não dizer nada, o que era tomado como timidez exagerada ou altivez. Dasha nunca tinha este problema. Dizia sempre a primeira coisa que lhe vinha a cabeça.

Sabia que tinha de confiar mais na sua voz interior que, de resto, estava a falar bem alto.

Tinha imensa vontade de lhe fazer perguntas sobre Dasha. - Não sei como hei de dizer-lhe isto - começou ele. - Pode pensar que estou a

ser presumido. Mas... - Calou-se. - Se eu pensar que esta sendo presumido, é porque provavelmente está -

observou ela delicadamente. Ele continuou calado. - Mas fale.

Page 55: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

55

- Tem que dizer ao seu pai que tire o seu irmão de Tolmachevo. Enquanto ouvia estas palavras, contemplava a Estação de Varsóvia com as

suas decorações imperiais à direita, de outro lado da rua, e pensava vagamente como seria visitar Varsóvia, Lublin e Swietokryst... e de repente falavam-lhe de Pasha, Tolmachevo e...

Não estava à espera. Queria outro coisa. Em vez disso, Alexander mencionava Pasha, que não conhecia nem nunca vira.

- Porquê? - perguntou por fim. - Porque há perigo de Tolmachevo cair nas mãos dos Alemães - respondeu

Alexander depois de uma pausa. - O quê? - Não compreendia nem queria compreender. Preferia não

compreender. Não queria preocupações. Sentira-se muito feliz por Alexander ir ter com ela sem ninguém lhe pedir nada, de livre vontade. Mas havia qualquer coisa na sua voz... Pasha, Tolmachevo, os Alemães, três palavras juntas numa só frase, pronunciadas friamente por um homem quase desconhecido, de olhos quentes. Ter-se-ia dado ao trabalho de ir a Kirov só para a alarmar? Para quê? - Que posso fazer?

- Diga ao seu pai para tirar o Pasha de Tolmachevo. Porque o mandou para lá? Para estar em segurança? - Alexander estremeceu e uma sombra perpassou-lhe o rosto. Sem pestanejar, Tatiana observou-o atentamente, esperando mais, esperando explicação. Mas nada. Nem sequer palavras.

Pigarreou: - Há lá acampamentos de rapazes. Foi por isso que o mandou. - Eu sei - disse ele, assentindo. - Muitas, imensas pessoas desta cidade

mandaram os filhos para lá ontem. - Falava sem expressão. - Alexander, os Alemães estão na Crimeia - contrapôs Tatiana. - Foi o que o

camarada Molotov disse. Não ouviu o discurso? - É verdade, estão na Crimeia. Mas temos uma fronteira de dois mil

quilómetros com a Europa. O exército de Hitler está em cada centímetro desta fronteira. Tania, do Sul da Bulgária ao Norte da Polónia. - Fez uma pausa. Ela não disse nada. - De momento, Leninegrado é o local mais seguro para o Pasha. A sério.

Tatiana mostrou-se cética: - Como tem tantas certezas? - Animando-se: - Porque é que a rádio não para

de dizer que o Exército Vermelho é o mais forte do mundo? Temos tanques, aviões, artilharia e armas. A rádio não diz o mesmo que o Alexander. - Pronunciou estas palavras quase em tom de censura.

Ele abanou a cabeça: - Tania, Tania, Tania. - O que foi, o que foi, o que foi? - disse, vendo que Alexander quase riu,

apesar da sua expressão séria, o que também quase a fez rir. - Tania, Leninegrado viveu tantos anos com uma fronteira hostil com a

Finlândia apenas a vinte quilômetros para norte, que nos esquecemos de amar o Sul. E é aí que reside o perigo.

Page 56: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

56

- Se o perigo reside aí, porque manda o Dimitri para a Finlândia onde, na sua opinião, está tudo calmo?

- Reconhecimento - replicou Alexander depois de um silêncio. Tatiana sentiu ele deixara alguma coisa por dizer. - O que quero dizer - continuou - é que o nosso sistema defensivo está todo concentrado no Norte. Mas Leninegrado não possui uma única divisão, um só regimento, uma única unidade militar a sul e a sudeste. Compreende o que estou a dizer?

- Não - retorquiu com um ar um tanto desafiador. - Fale com o seu pai sobre o Pasha - repetiu. Calaram-se, continuando a percorrer as ruas calmas lado a lado. O sol punha-

se, as folhas estavam imóveis, e só Alexander e Tatiana se moviam languidamente no verão, abrandando no fim de cada quarteirão, olhando para o passeio, observando os sinais de trânsito. Tatiana pensava: “Por favor, que isto não acabe nunca.” E ele? Que pensaria?

- Ouça - começou Alexander -, aquilo de ontem... Desculpe o mal-entendido, mas que podia eu fazer? Eu e a sua irmã... Não sabia que era a sua irmã. Conhecemo-nos no Sadko...

- Eu sei. Claro. Não precisa me dar explicações. - Fora ele que levantara a questão, o que queria dizer muito.

- Evidentemente que preciso. Desculpe se... - depois de uma pausa: - … a pertubei.

- Não, não faz mal. Não há problema. Ela já me tinha falado de si. O Alexander e ela... - Calou-se. Queria acrescentar que não se importava, mas as palavras ficaram-lhe presas na garganta. - E então? Como é o Dimitri? Simpático? Quando volta de Carélia? - Teria dito aquilo para se armar? Não tinha a certeza. Só sabia que queria mudar de assunto.

- Não sei. Quando acabar o que tem que fazer. Daqui a uns dias. - Olhe, estou a fica cansada. Podemos apanhar um elétrico? - Claro - anuiu ele devagar. - Vamos esperar o número 16. Já estavam sentados no transporte público quando ele falou outra vez: - Tatiana, eu e a sua irmã... não era a sério. Vou dizer-lhe... - Não! - exclamou ela. Os dois homens que seguiam impertubáveis à sua

frente viraram-se com um olhar de interrogação. - Não - repetiu em voz mais baixa, mas igualmente obstinada. - Alexander, é impossível. - Tapou o rosto com as mãos e destapou-o de novo: - Ela é a minha irmã mais velha, percebe?

Eu era o único filho dos meus pais. As suas palavras de violino ecoaram-lhe dentro do peito.

- Ela é a minha única irmã - continuou mais docemente. Depois de uma pausa: - E gosta mesmo de si. - Precisaria de dizer mais? Achava que não mas, a julgar pela expressão de desagrado, sim, parecia que sim. Encolhendo os ombros: - Rapazes há muitos. O que eu nunca terei é outra irmã.

Tudo o que Alexander disse foi:

Page 57: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

57

- Não sou um rapaz. - Homens, então - gaguejou Tatiana. Aquilo era muito difícil para ela. - O que a leva a pensar que haverá outros homens? Embora aturdida, persistiu: - O facto de vocês serem a metade da população do mundo. Mas sei com

certeza que só tenho uma irmã. Como ele não respondeu, Tatiana atreveu-se a perguntar-lhe: - Gosta da Dasha, não gosta? - Claro que sim, mas... - retorquiu ele baixinho. - Então está arrumado. Não vale a pena falar mais no assunto - interrompeu

ela, apesar de esta ser a última coisa que lhe apetecia dizer. Suspirou profundamente.

- Não - concordou Alexander com um breve suspiro. - Acho que não. - Isso. - Pôs-se a olhar pela janela. Sempre que pensava no que gostaria de ser na vida, Tatiana lembrava-se do

avô e da dignidade com que vivia a sua vida simples. poderia ter sido o que quisesse, mas escolhera ser professor de Matemática. Não sabia se fora o ensino da irrefutável matemática que levara o Deda a enfrentar os problemas mais intangíveis com a mesma atitude com que resolvia uma equação ou se fora a própria essência da sua natureza que o atraíra para o absoluto da matemática mas, fosse como fosse, sempre o admirara. Quando lhe perguntavam o que queria ser quando crescesse, respondia invariavelmente: “Quero ser como meu avô”.

E sabia o que o avô faria: nunca pisaria o coração da irmã. O elétrico passou pela Praça da Insurreição e começou a descer a Grechesky,

Alexander pediu-lhe para sair umas paragens antes da Quinto Soviete, perto do Hospital Grechesky, de paredes de tijolo vermelho, no cruzamento de Segundo Soviete com a Grechesky.

- Nasci neste hospital - comentou Tatiana, apontando. Alexander caminhava ao seu lado: - Então, Tania, diga-me: gosta do Dimitri? Passou um minuto até conseguir responder-lhe. Que resposta esperava? Estaria a tirar nabos da púcara para Dimitri ou para si

próprio? E que havia de dizer? Se dissesse que não, que não gostava dele, poderia ferir os sentimentos de Dimitri, e não queria isso.

Se dissesse que sim, que gostava dele, então feriria os sentimentos de Alexander, e também não queria isso. O que diziam as raparigas crescidas? Não costumavam fazer um certo joguinho? Negar, brincar, fazer de conta.

Alexander pertencia a Dasha. A sua irmã mais nova dever-lhe-ia uma resposta honesta?

Queria. - Não - disse finalmente. O mais importante era não ferir os sentimentos de

Alexander.

Page 58: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

58

Pela expressão do seu rosto, viu que lhe dera a resposta certa. - Mas a Dasha diz que eu devia dar-lhe uma oportunidade. O que acha? - Que não - atirou ele de imediato. Tinham parado no cruzamento da Segundo Soviete com a Grechesky

Prospekt. A cúpula da igreja que ficava em frente da casa dela cintilava umas centenas de metros à frente. Tatiana não suportava vê-lo partir. Agora que viera, pedira o impossível e fora rejeitado, tinha de não voltar a vê-lo assim. Assim a sós.

Não podia deixá-lo partir. Ainda não. - Alexander - perguntou baixinho, olhando-o de frente -, os teus... pais ainda

vivem em Krasnodar? - Não. Não vivem em Krasnodar. Tatiana não desviou o olhar. Os olhos dele mergulharam nos dela. - Há muitas coisas que não posso mas quero explicar. - Então explica - incitou ela docemente, sustendo a respiração. - Não te esqueças de que nada do que está a acontecer no Exército

Vermelho... a confusão, a falta de preparação, a desorganização... pode ser entendido se não examinarmos os acontecimentos dos últimos quatro anos. Percebes?

Tatiana não se mexia. - Não. O que tem isso a ver com os teus pais? Alexander aproximou-se dela, protegendo-a do sol que se punha. - Os meus pais morreram. A minha mãe em 1936 e o meu pai em 1937. -

Baixando ainda a voz: - Foram mortos - sussurrou. - Pela NKVD (Polícia Secreta Soviética de 1934 a 1943)... a Polícia não lá muito secreta. Agora tenho de ir, está bem?

A expressão chocada de Tatiana devia tê-lo feito hesitar, porque deu-lhe uma palmadinha na mão e sorriu tristemente:

- Não te preocupes. Às vezes as coisas não correm como planejamos, não é? Independentemente de as termos planejado muito ou de as desejarmos muito. Verdade?

- É verdade - retorquiu ela, baixando os olhos. Não sabia porquê, mas parecia-lhe que ele não estava a falar dos pais. - Alexander, queres...?

- Tenho de ir - interrompeu ele. - Até um dia destes. Só lhe apetecia perguntar quando, mas tudo o que disse foi: - Está bem. Não tinha vontade de voltar a casa, à cozinha... Queria estar de novo no

elétrico, na paragem, até na loja, na rua... em qualquer lado menos em casa, sem ele.

Quando chegou ao seu prédio, parou no patamar desenhando discretamente o algarismo oito com os dedos, preparando-se para enfrentar as escadas.

Com o coração pesado, iniciou a subida.

Page 59: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

59

2

A família discutia a guerra. Não havia jantar de anos, mas não faltava o que beber. Nem muitas discussões em voz alta. Que iria acontecer a Leninegrado? Quando Tatiana chegou, o pai e o avô discordavam quanto às intenções de Hitler, como se ambos o conhecessem pessoalmente. A mãe só queria saber porque não falara o camarada estaline com o povo. Dasha, por seu lado, perguntava se devia continuar a trabalhar.

- Qual a alternativa? - atirou o pai, irritado. - Olha para a Tania. Ainda mal tem dezessete anos e não pergunta se deve continuar a trabalhar.

Todos olharam para Tatiana, incluindo Dasha... infelizmente. - Faço dezessete hoje, paizinho - anunciou ela, pousando a bolsa. - É verdade - exclamou o pai. - Claro. este dia foi de doidos. vamos fazer um

brinde da Pasha. - Depois de uma pausa: - E da Tania. O quarto parecia mais pequeno por Pasha não se encontrar com eles. Tatiana encostou-se à parede, pensando na melhor altura para falar no irmão

e em Tolmachevo. A única pessoa que reparou nela apoiada à parede foi Dasha que, erguendo o olhar do sofá, disse:

- Come uma canja de galinha. Está no fogão. - Achando a ideia boa, foi à cozinha, serviu-se de duas conchas de cenouras e de um pedaço de galinha e sentou-se à janela a observar o pátio, enquanto a sopa arrefecia ao seu lado. Não conseguia comer nada quente. Ardia por dentro.

Quando regressou ao quarto, ouviu a mãe a tentar consolar o pai: - Sabes - disse por fim -, Napoleão também veio para a União Soviética com os

seus exércitos em junho. - Napoleão! - guinchou a mãe. - Que tem Napoleão a ver com isto, Georgi

Vasilievich? Por favor, tem dó! Tatiana abriu a boca para falar, para dizer qualquer coisa sobre Tolmachevo,

mas não só tinha a certeza da mensagem que devia transmitir à sua família madura, sabida e intolerante como de repente lhe ocorreu que talvez tivesse de explicar de onde lhe vinham as informações sobre o futuro avanço dos Alemães na Rússia.

“Talvez?”, pensou. Fechou a boca. Sentado ao lado da mãe, o pai olhava o copo vazio: - Vamos beber mais um. À saúde do pasha. - Vamos para Luga! - exclamou a mãe. - Para a nossa dacha, longe da cidade. Como poderia Tatiana continuar calada?

Page 60: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

60

- Se calhar... - tossiu, com a confiança de um cordeiro, falando atabalhoadamente, admirada com a sua própria audácia. - Se calhar, entretanto podíamos mandar vir o Pasha do acampamento.

O pai, a mãe, Dasha e a Babushka, todos ficaram a olhar para Tatiana confusos e cheios de remorsos, como se estivessem espantados por ela saber falar e, ao mesmo tempo, arrependidos por terem discussões de adultos na presença de uma criança.

A mãe desfez-se em lágrimas: - Podíamos não, devíamos. Faz anos hoje e está lá sozinho. “Também faço anos”, pensou Tatiana. Decidindo ir tomar banho, levantou-se. - Onde vais? - perguntou-lhe o pai. - Lavar-me. - Porquê? - atirou a mãe. - Leva mas é a louça para a cozinha. Dasha saiu, mas Tatiana não lhe perguntou onde ia. Provavelmente, ter com

Alexander. Como nunca tivera pena de si própria, não era naquela altura que iria começar. Se havia alguma coisa a lamentar era o rumo dos acontecimentos, que a tinham levado a apaixonar-se para depois a mão absurda do destino esmagar os seus sentimentos.

Mas ter pena de si própria... não ia perder tempo com tais demônios. Esforçou-se para reler algumas histórias de Tchékhov, cuja inércia nunca

deixava de a acalmar. Ao fim de ler sete contos, o último dos quais sobre uma rapariga sentada num banco com um homem mais velho, ficou com sono.

O Deda e o pai continuavam a discutir a guerra. O Deda dizia que havia muita gente que não a considerava um pura tragédia. A ideia de guerra era terrível, mas não lhes traria liberdade? Este horror não acabaria por resultar nalgum bem? Não aliviaria as costas da Rússia do fardo dos bolcheviques, dando ao país a oportunidade de uma vida nova, normal e humana?

Ouviu a voz do pai, empastada de vodca: - Nada aliviará as costas da Rússia do fardo das bolcheviques. nada nos trará

uma vida normal. Tatiana pensou que o pai era pessismista. A vodca costumava pô-lo ainda

mais taciturno. Alguma coisa havia de lhes dar a oportunidade de uma vida nova. Mas o quê?

Sabia lá! Adormeceu. Acordou à 1h45 da manhã com um som que nunca antes ouvira lá fora. O

barulho ensurdecedor de uma sirene estilhaçava o lusco-fusco da noite. gritou e o pai foi ter com ela, dizendo-lhe para não se preocupar porque era apenas um alarme aéreo. Quis saber se tinha de se levantar; os Alemães já estavam a bombardeá-los?

- Dorme, querida Tanechka - aconselhou ele. Mas como podia fazê-lo com a sirene a guinchar e Dasha fora de casa? Passados uns minutos a sirene calou-se, mas a irmã continuava sem aparecer.

Page 61: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

61

3

Na reunião da manhã, em Kirov, disseram a Tatiana que, devido ao esforço de guerra, a jornada de trabalho passava a terminar às sete da tarde, até novas ordens. “Até novas ordens é até a guerra acabar”, pensou ela. Krasenko informou os trabalhadores de que ele e o secretário do partido de Moscovo tinham decidido acelerar a produção do KV-1, um tanque pesado, e anunciou que a defesa de Leninegrado estaria a cargo dos tanques, munições e artilharia que conseguissem fabricar em Kirov. Estaline não deslocaria as armas da frente sul para a frente de Leninegrado para proteger a cidade.

Fosse o que fosse que Leninegrado conseguisse produzir para se defender, tanto no que dizia respeito a armas como a alimentos, teria de ser suficiente.

Depois da reunião, houve tantos operários a oferecerem-se para a frente que Tatiana pensou que a fábrica iria fechar. Mas não teve sorte. Ela e outra operária, uma mulher de meia-idade com ar cansado, voltaram à cadeia de montagem de projéteis.

Mais tarde, o martelo elétrico avariou-se e foi aobrigada a fechar os caixotes pregando-os à mão. Às sete horas, não podia com as costas nem com o braço.

Tatiana e Zina caminhavam ao longo do muro de Kirov. Antes de chegarem à paragem do autocarro, viu o cabelo preto de Alexander acima das cabeças das pessoas.

- Tenho de ir - disse, soltando a respiração e estugando o passo. - Até amanhã. Zina resmungou qualquer coisa. - Olá - saudou-o, com o coração aos saltos e a voz firme. - Que fazes aqui? -

Estava cansada de mais para fingir desinteresse. Sorriu. - Vim para te levar para casa. Passaste bem os anos? Falaste com os teus pais? - Não. - Não às duas perguntas. - Não falei com eles Alexander. - Evitando o assunto dos anos: - E se fosse a

Dasha a falar com eles? É muito mais corajosa do que eu. - É? - Muito mais! Eu sou uma medricas. - Tentei falar com ela sobre o Pasha. Ainda está menos preocupada do que tu.

- Encolhendo os ombros: - Olha, o problema não é meu. Só faço o que posso.- Lançou um olhar à fila de pessoas: - Nunca mais apanhamos o autocarro. Queres ir a pé?

- Só até o elétrico. Não me consigo mexer. Estou exausta. - Parou, arranjando o rabo de cavalo: - Há muito tempo que estás à espera?

Page 62: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

62

- Há duas horas - replicou ele. De repente, sentiu-se menos cansada. Olhou para ele, admirada.

- Esperaste duas horas? - Mas o que não disse foi: “Esperaste duas horas por mim?” - O dia de trabalho passou a ser até às sete. Desculpa teres esperado tanto - rematou suavemente.

Afastando-se da multidão, atravessaram a rua e encaminharam-se para a Ulitsa Govorova.

- Porque andas com isso? - perguntou Tatiana, apontando para a espingarda. - Estás de serviço?

- Só entro às dez, mas tenho ordens para andar sempre armado. - Eles ainda não estão aqui, pois não? - indagou Tatiana, tentando parecer

jovial. - Ainda não - foi a sua curta resposta. - A espingarda é pesada? - Não. - Fazendo uma pausa e sorrindo: - Queres pegar-lhe? - Quero. Deixa ver. Nunca peguei numa espingarda. - Tirando-lhe das mãos,

ficou admirada com o seu peso e com a dificuldade que era segurá-la nas duas mãos. Andou um bocadinho com ela e devolveu-lha: - Não sei como consegues carregar com a arma e com as outras coisas todas.

- Não só carregar com ela como também dispará-la. E correr, deitar-me ao chão e saltar com ela nas mãos e com todas as outras coisas nas costas.

- Não sei como consegues - repetiu. Quem lhe dera ser assim forte! Pasha nunca mais lhe ganharia a brincar às guerras.

O elétrico chegou e entraram. Estava apinhado de gente. Tatiana desistiu do seu lugar em favor de uma senhora mais velha. Com ar de quem nunca tivera a intenção de se sentar, Alexander agarrou-se a tira castanha do tejadilho com uma mão e à espingarda com a outra. Tatiana segurou-se no suporte de metal parcialmente enferrujado. De vez em quando, o elétrico travava, ela ia de encontro a ele e pedia desculpa. O corpo dele parecia tão sólido como o muro de Kirov.

Apetecia-lhe sentar-se sozinha com ele a ouvi-lo falar dos pais. Mas com certeza que não poderia pôr-se a fazer-lhe perguntas no elétrico. De resto, seria bom saber dos pais dele? Conhecer a sua vida não a faria sentir-se ainda mais próxima dele, quando o que queria era a maior distância possível?

Permaneceu calada. O elétrico chegou a Vosnesensky Prospekt, onde apanharam o número 2 até ao Museu Russo.

- Bem vou andando - disse Tatiana, extremamente relutante, quando saíram. - Não queres sentar-te um bocadinho? - perguntou de repente Alexander. -

Podemos descansar num banco dos Jardins Italianos. Queres? - Está bem - replicou ela, tentando não dar pulos de alegria enquanto dava

passinhos curtos ao seu lado. Quando sentaram, Tatiana percebeu que havia qualquer coisa que o

preocupava muito, qualquer coisa que ele queria dizer mas não conseguia. Esperava

Page 63: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

63

que não fosse sobre Dasha. “Não resolvemos já isso?”, pensou. Por ela, não. Mas ele era mais velho. Devia ter resolvido.

- Que prédio é aquele Alexander? - indagou, apontando para o outro lado da rua.

- Oh, é o Grande Hotel Europa. Aquele e o Astória são os melhores hotéis de Leninegrado.

- Parece um palácio. Quem tem autorização para ficar lá? - Os estrangeiros. - Aqui há uns anos, o meu pai foi a Varsóvia em serviço, e quando voltou

disse-nos que havia pessoas polacas de Cracóvia no hotel onde ficou em Varsóvia! Imaginas? Não acreditámos nele durante uma semana. Como é que as pessoas polacas podiam estar num hotel de Varsóvia? - Soltanto uma risadinha: - É como eu ficar ali no Europa.

Alexander observou-a com um ar divertido: - É que existem sítios onde as pessoas podem viajar a vontade dentro do seu

próprio país. Tatiana fez um gesto como que a mandá-lo calar. - Provavelmente. Como a Polónia. - Engolindo em seco e pigarreando: -

Alexander... tenho pensado muito nos teus pais. - Tocou-lhe suavemente no ombro. - Conta-me o que aconteceu.

Com um suspiro de alívio escapando-lhe da boca, Alexander começou: - O teu pai não se enganou, sabes? - Depois de uma pausa: - Não sou de

Krasnodar. - A sério? E de onde és? - Já ouviste falar de uma cidade chamada Barrington? - Não. Onde é? - Em Massachusetts. Pensou que ouvira mal. Os seus olhos esbugalharam-se. - Massachusetts? - arquejou. - Na... na América? - Sim. Na América. - És de Massachusetts, na América? - repetiu Tatiana, atónita. - Sou. Durante um minuto, talvez dois, Tatiana perdeu a voz. As pancadas

ensurdecedoras e e eletrizantes do coração martelavam-lhe nos ouvidos. Fez um esforço para não ficar de boca aberta.

- Estás a brincar comigo - disse por fim. - Também não sou assim tão crédula. Alexander abanou a cabeça. - Não estou a brincar. - Sabes porque não acredito? - Sei. Porque estás a pensar: mas quem quereria vir para aqui? - Exatamente.

Page 64: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

64

- A vida em comunidade foi uma grande desilusão para nós. Viemos... bem, pelo menos o meu pai... cheio de esperança e, de repente, não havia duches.

- Duches? - Não interessa. Onde estava a água quente? Nem sequer podíamos tomar

banho na pensão residencial onde ficámos. Tens água quente? - Claro que não. Fervemos água no fogão e juntamo-la à água fria do banho.

Aos sábados, vamos lavar-nos aos banhos públicos. Como toda a gente em Leninegrado.

Alexander assentiu: - Em Leninegrado, em Moscovo, em Kiev, em toda a União Soviética. - Temos sorte. Nas cidades grandes, há água corrente, o que nem sequer

existe na província. Foi o que o Deda me contou de Molotov. - E tinha razão - assentiu ele. - Mesmo em Moscovo, os autoclismos só

fun¬cionavam às vezes; o cheiro acumulava-se nas casas de banho. Mas eu e os meus pais adaptámo-nos. Cozinhávamos numa fogueira e achávamos que éramos a família Ingalls.

-Quem? -A família Ingalls viveu no Oeste americano no fim do século XIX. E cá

está¬vamos nós, na utopia socialista. Uma vez disse ao meu pai com alguma ironia que ele tinha razão, isto era muito melhor do que Massachusetts. Ele respondeu-me que não se constrói o «socialismo num país» sem grandes esforços. Creio que durante algum tempo acreditou mesmo nisso.

- Quando vieram? - Em 1930, depois do crash da bolsa de 1929. - Reparando no seu rosto

inexpressivo, suspirou: - Não interessa. Eu tinha onze anos e nunca quis sair de Barrington.

- Oh, não! - murmurou Tatiana. - Cozinhar num fogãozinho a querosene deitou-nos abaixo. Viver no escuro...

Viver com maus cheiros pôs-nos num estado de desânimo que nunca teríamos podido imaginar. A minha máe começou a beber. E porque não? Toda a gente bebia.

- É verdade - concordou ela. O seu pai bebia. - E quando bebia e a casa de banho estava ocupada por outros estrangeiros

que viviam no nosso palácio de Moscovo - fazendo uma pausa — .. .que não era como o Grande Hotel Europa... a minha mãe corria ao parque a fazer as suas necessidades nas casas de banho públicas... um buraco no chão. — Estremeceu ao pronunciar estas palavras. Tatiana também se arrepiou, apesar do fim de tarde ameno. Docemente, tocou outra vez no ombro de Alexander e, como ele não se mexeu, como estavam sentados debaixo das árvores, como não havia vivalma por perto, apertou os dedos delgados contra o tecido do uniforme e não os retirou. - Aos sábados - continuou ele -, eu e o meu pai... como tu, a tua mãe e a tua irmã... íamos aos banhos públicos e esperávamos duas horas na fila para entrar. A minha

Page 65: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

65

máe ia sozinha à sexta-feira, suponho que desejando ter dado à luz uma filha para náo estar sozinha, para não sofrer tanto por minha causa.

- Sofria por tua causa? - Terrivelmente. Ao princípio, não tive problemas mas, com o passar dos anos,

comecei a acusá-los pela vida que levava. Nessa altura, morávamos em Mos¬covo. Éramos setenta idealistas... mas idealistas com filhos, vivendo como tu, dividindo três casas de banho e três pequenas cozinhas num andar.

-Hum... - Gostas? Ela pensou: - No nosso andar só somos vinte e cinco. Mas... que posso dizer? Gosto mais

da nossaDacha em Luga. — Olhando-o de relance: — O tomate é fresco e as manhãs cheiram a limpo.

- Pois! — exclamou Alexander, como se ela tivesse proferido a palavra mágica: limpo.

- Não gosto de estar em cima das outras pessoas o tempo todo — acrescentou.

- Ter um bocadinho de... — Calou-se. Não encontrava a palavra apropriada. Com as pernas esticadas, Alexander virou-se um pouco mais para ela e

exa¬minou-lhe o rosto. - Percebes o que quero dizer? - indagou Tatiana, acanhada. - Percebo, Tania — confirmou, assentindo. - Então devíamos alegrar-nos por os Alemães nos atacarem? - Isso seria trocar Satã pelo Diabo. Abanando a cabeça, a rapariga replicou: - Que ninguém te apanhe a falar assim. - Mas, com a curiosidade da

juven¬tude: - Qual deles é Satã? - Estaline, que é ligeiramente mais equilibrado a nível mental. - Tu e o meu avô... - murmurou Tatiana. - O quê? O teu avô concorda comigo? - Sorriu. - Não. — Devolvendo-lhe o sorriso: - Tu é que concordas com o meu avô. - Tania, não tenhas a mínima dúvida: algumas pessoas, especialmente na

Ucrânia, podem pensar que Hitler as vai salvar de Estaline, mas verás a rapidez com que ele destruirá essas ilusões. Tal como as destruiu na Áustria, na Checos¬lováquia e na Polónia. Seja como for, depois da guerra, e qualquer que seja o resul¬tado, pressinto que aqui na União Soviética voltaremos ao ponto de partida. - Procurando as palavras certas: — Tens sido... protegida pela tua família? - per¬guntou, preocupado.

Apertando-lhe o ombro com os dedos, Tatiana respondeu: - Não temos grande experiência pessoal. — Não queria falar no assunto.

Assustava-a. — Uma vez ouvi dizer que alguém do trabalho do paizinho foi preso. E aqui há uns anos um homem e a filha, que viviam lá no prédio, desapareceram e

Page 66: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

66

foram substituídos pelos Sarkov. - Pensou nas suas palavras. O pai teimava que os cáusticos e carrancudos Sarkov eram informadores da NKVD. — Tenho sido protegida, sim.

- Eu não — observou Alexander, tirando um cigarro e o isqueiro. — Nada. E por isso não consigo deixar de pensar nos meus pais, que vieram para cá com tantas esperanças e que foram destruídos por aquilo em que acreditavam quase desde que nasceram. — Acendeu o cigarro: — Importas-te que fume?

- Não. - Observou-o. Gostava do seu rosto. - Mas o que foi? A vidaamericana não deve ser assim tão boa, se um americano como o teu pai deixou o seu país.

Alexander não falou enquanto fumava o cigarro inteiro. - Deixa-me dizer-te exatamente o que foi: nos anos vinte... a Década

Vermelha... o comunismo estava muito em moda na América, entre os ricos. Quando Alexander fizera dez anos, o seu pai, Harold Barrington, quisera que

ele se tornasse membro da juventude comunista, os Jovens Pioneiros da Amé¬rica, da sua cidade. O grupo tinha poucos membros e precisava de sangue novo Ele recusara, alegando que já estava nos escuteiros. Barrington era uma cidadezinha do Leste de Massachusetts, à qual fora dado o nome dos Barrington, que aí viviam desde Benjamin Franklin. O antepassado de Alexander combatera nas guerras da Independência. No século XIX, os Barrington tinham dado à cidade quatro presidentes da câmara e haviam lutado e morrido na Guerra Civil.

O pai queria deixar a sua marca no clã Barrington e seguir o seu próprio caminho. A mãe, Gina, chegara de Itália ao virar do século, com dezoito anos, disposta a abraçar o estilo de vida americano, o que fizera de alma e coração aos dezenove, mudando o nome para Jane e casando com Harold Barrington. Deixara a família em Itália para também ela seguir o seu próprio caminho.

Ao princípio, Jane e Harold eram radicais; depois, tinham-se tornado sociais- democratas e, finalmente, comunistas. Viviam num país onde isso lhes era per¬mitido e tinham aderido incondicionalmente ao comunismo. Sendo uma mulher moderna e progressista, Jane Barrington não queria filhos, e Margaret Sanger, fundadora do Planeamento Familiar, dissera-lhe que não era obrigada a tê-los.

Ao fim de onze anos a ser radical com Harold, Jane decidira queafinal queria ter filhos. Precisara de cinco anos de abortos naturais para conseguir dar à luz Alexander, que nascera em 1919, tinha ela trinta e cinco anos e Harold trinta e sete.

Alexander vivera e respirara a doutrina comunista desde a idade em que começara a perceber inglês. No conforto do seu lar americano, rodeado por lareiras e cobertores de lá, já pronunciava palavras como proletariado, igualdade, mani¬festo e leninismo ainda antes de saber o que queriam dizer.

Aos onze anos, os pais tinham decidido viver as palavras que passavam a vida a proferir. Como estava constantemente a ser preso por participar em manifestações pouco pacíficas nas ruas de Boston, Harold Barrington dirigiu-se finalmente à União para as Liberdades Civis na América, pedindo ajuda para a obtenção do asilo voluntário na URSS. Estava disposto a renunciar à nacionalidade

Page 67: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

67

americana e ir para a União Soviética, onde poderia viver em comunhão com o povo, sem classes sociais, sem desemprego, sem preconceitos, sem religião. A nenhum deles agradava muito viver sem religião, mas eram pessoas progressistas e intelectuais, prontas a pôr Deus de lado para ajudar a construir a grande experiência comunista.

Harold e Jane Barrington tinham entregado os passaportes e, em Moscovo, haviam sido recebidos e aclamados como realeza. Só Alexander parecia reparar no cheiro das casas de banho, na falta de sabonete e nos mendigos com farrapos à volta dos pés que se juntavam do lado de fora das janelas do restaurante, esperando que os pratos sujos fossem para a cozinha de modo a poderem comer os restos. A esqualidez e embriaguez dos bares onde Harold Barrington levava o filho era tão deprimente que Alexander deixara de os frequentar, embora gostasse muito de acompanhar o pai.

Tinham um tratamento especial na pensão residencial onde estavam alojados juntamente com outros expatriados ingleses, italianos e belgas.

Harold e Jane haviam recebido os seus novos passaportes soviéticos, cortando definitivamente todos os laços com os Estados Unidos. Sendo menor, Alexander só teria direito ao passaporte soviético aos dezasseis anos, altura em que se apre¬sentaria ao serviço militar obrigatório.

O rapaz fora para a escola, aprendera russo e fizera muitos amigos. Ia-se adap¬tando devagar à sua nova vida quando, em 1935, fora comunicado aos Barrington que teriam de deixar os seus alojamentos grátis e fazer-se à vida. O governo soviético não podia continuar a sustentá-los. O problema fora que os Barrington não tinham conseguido arranjar quarto em Moscovo. Nem um único quartinho nal¬gum apartamento comunal. Mudando-se para Leninegrado e passando semanas a correr de um comité de alojamento para outro, haviam finalmente encontrado dois quartos num prédio esquálido do lado sul do Neva. Harold empregara-se na fábrica de Izhorsk. Jane bebia cada vez mais. Alexander baixava a cabeça e preocupava-se com a escola.

Tudo acabara em maio de 1936, o mês em que o rapaz fizera dezessete anos. Jane e Harold Barrington foram presos da forma mais inesperada... mas

também mais vulgar. Um dia, ela foi ao mercado e não regressou. Harold só queria fazer chegar uma mensagem a Alexander mas, depois de

uma discussão, havia duas noites que não o via. Quatro dias depois do desaparecimento da mulher, bateram suavemente à

sua porta às três da manhã. O que Harold não sabia era que os representantes do Comissariado do Povo

para os Assuntos Internos já tinham ido buscarAlexander. O inquisidor de Jane na Casa Grande era um homem chamado Leonid Slonko. - Que coisas estranhas diz, camarada Barrington. Como sabia eu que ia dizê-

las? - O senhor não me conhece - respondeu ela.

Page 68: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

68

- Conheço milhares como a senhora. «A sério? Milhares?», apeteceu-lhe dizer. «Viemos mesmo aos milhares dos

Estados Unidos?» - Sim, milhares - confirmou Slonko, como se ela tivesse falado. - Vêm todos. Para nos tomarem melhores e para viverem a vida sem

capitalismo. O comunismo exige sacrifícios sabe? Tem de pôr a sua estética burguesa de lado, de nos observar comos olhos de uma mulher soviética nova e reformada e não de uma americana.

- Eu pus de lado a estética burguesa — protestou Jane. — Desisti da minha casa, do meu emprego, dos amigos, de toda a minha vida. Vim para aqui e comecei unta vida nova porque acreditava. Tudo o que vos pedia era que não me traíssem.

- E como o fizemos? Sustentando-a? Vestindo-a? Dando-lhe emprego? Um sítio para viver?

- Então porque estou aqui?—perguntou. - Porque foi a senhora que nos traiu a nós — respondeu Slonko. — Não

podemos tolerar a sua desilusão quando estamos a tentar reconstruir a raça humana em beneficio de toda a Humanidade. Quando estamos a tentar varrer a pobreza e a miséria da face da Terra.

E acrescentou: - E diga-me uma coisa, camarada Barrington: quando mostrou o seu desprezo

pelo nosso país e foi à embaixada americana de Moscovo aqui há umas semanas, esque¬ceu-se de que renunciou à lealdade para com os Estados Unidos, defendendo a queda da democracia? Tendo ligações com a Frente Popular? Renunciando à nacionalidade americana? A senhora não é americana. Pouco lhes importa a eles se vive ou morre. - Rindo: - Que idiotas! Vêm para aqui caluniando os vossos Governos, os vossos costumes, os estilos de vida que vos repugnam. Mas ao mínimo problema, quem é que contactam?

- Slonko deu uma palmada na mesa. — Pode estar certa, camarada, de que o governo americano tem mais que fazer. Esqueceu-se de quem a senhora é. A sua ficha, a do seu marido e a do seu filho foram arquivadas e guardadas num cofre pelo Ministério da Justiça norte-americano. Vocês agora são nossos.

Era verdade. Jane fora à embaixada americana de Moscovo duas semanas antes de ser presa. Apanhara o comboio com Alexander. Devia ter sido seguida. A receção que tivera na embaixada fora, no melhor dos casos, gélida: os americanos não tinham qualquer interesse em ajudá-la a ela ou ao filho.

- Fui seguida? — perguntou a Slonko. - O que acha? A sua lealdade não vale nada. Fizemos bem em segui-la.

Fizemos bem em não confiar em si. Agora vai ser julgada por traição ao abrigo do artigo cin¬quenta e oito da Constituição Soviética. Sabe isso, não sabe? E também sabe o que a espera.

- Sei. Só gostaria que fosse depressa.

Page 69: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

69

- Para quê? — Slonko era um homem alto e imponente, já não muito novo mas ainda forrte e ágil. - Sabe com certeza o que o governo soviético pensa de si. A camarada cortou relações com o país em que nasceu e depois cuspiu no que a acolheu a si e à sua família. Vocês, os Barrington de Massachusetts, estavam a ir muito bem, muito bem mesmo na América, até terem decidido mudar de vida. Vieram para cá. Excelente, dissemos. Estávamos convencidos de que eram todos espiões. Vigiámo-vos porque somos prudentes, não vingativos. Vigiámo-vos e depois quisemos que andassem com os vossos próprios pés. Prometemo-vos que olharíamos por vós, mas para isso precisaríamos da vossa indiscutível lealdade. O camarada Estaline não espera... exige... nada menos.

«Acamarada foi à embaixada porque mudou deideiassobre nós, tal como tinha mudado deideias sobre a América. Eles disseram-lhe: Desculpe, mas não a conhecemos. Nós dissemos: Desculpe, mas não a queremos. E agora o que há de fazer? Para onde vai? Eles não a querem e nós também não. Mostrou-nos que não é de confiança. E agora?»

- Agora a morte — disse Jane. — Mas suplico-lhe que poupe o meu único filho. — Baixando a cabeça: — Era apenas um rapazinho. Nunca desistiu da nacionalidade americana.

- Desistiu quando se alistou no Exército Vermelho e se tomou russo — contrapôs Slonko.

- Mas não existe nenhuma ficha subversiva dele no Departamento de Estado Norte-americano. Ele nunca teve nada a ver com os comunistas. Suplico-lhe...

- Ora, camarada, ele é o mais perigoso de vocês todos. Jane viu o marido uma vez antes de se apresentar no tribunal presidido por

Slonko. Depois de um julgamento apressado, foi posta em frente do pelotão de fuzila¬mento, virada para a parede e com os olhos vendados.

Até ser preso, a preocupação de Harold Barrington com Alexander não era maior do que o seu desespero ao ver os sonhos desfeitos.

Já antes estivera preso; a cadeia não o incomodava. Ser preso por aquilo em que acreditava era uma honra da qual usara e abusara orgulhosamente na América. «Já estive nas melhores prisões de Massachusetts. Ninguém na Nova Inglaterra suportou tanto por aquilo em que acredita», costumava ele dizer.

A União Soviética revelara-se uma treta. O comunismo não estava a dar grandes resultados na Rússia, porque se tratava da Rússia. Harold achava que funcionaria muito bem na América. Aí é que era. Harold queria levá-lo de volta à sua terra.

A sua terra. Não acreditava que ainda lhe chamasse a sua terra. A União Soviética era ótima, mas não era à sua terra, e os comunistas

soviéticos sabiam-no. Por muito que lhe custasse acreditar, já não o protegiam. Agora era inimigo do povo. Compreendia.

Page 70: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

70

Ridicularizara a América. Desprezava a superficialidade e a falsa moralidade da América, odiava a ética individualista e defendia que a ideia da dernocracia só podia ser defendida por um idiota. Mas agora que estava numa cela soviética de cimento, só queria que o seu rapaz regressasse a esta América, a qualquer custo, a qualquer preço.

A União Soviética não podia salvar Alexander. Só a América. «Que fiz ao meu filho?», pensou Harold. «Que lhe deixo em herança?»Já nem

se lembrava do que era o comunismo. Tudo o que via era a admiração estampada no rosto de Alexander ao vê-lo num púlpito de Greenwich, Connecticut, gritando palavra de ordem numa tarde de sábado de 1927.

Quem é o rapaz a quem chamo Alexander? Se não sei, como saberá ele? Eu encon¬trei o meu caminho, mas como encontrará ele o dele num país que não o quer?

O que Harold mais desejou durante aquele ano de interrogatórios, negações, pedidos e confusão foi ver Alexander mais uma vez antes de morrer. Apelou à humanidade de Slonko.

- Não tentes puxar-me ao sentimento — disse Slonko. — É coisa que não tenho. Além disso, o sentimento não tem nada a ver com o comunismo, com a criação de urna ordem social mais elevada. O que, camarada, requer disciplina, perseverança e uma certa distância.

- Não é só distância — acrescentou Harold. — É separação. - O teu filho não virá visitar-te — rematou Slonko. — O teu filho morreu. Emudecida, Tatiana deixou-se ficar sentada ao lado de Alexander, acariciando

lhe obraçocom ambas as mãos. - Lamento muito— sussurrou, cheia de vontade de lhe tocar no rosto, mas

incapaz de se decidir a fazê-lo.— Estás a ouvir, Alexander? Lamento muito. - Estou. Deixalá, Tania— respondeu, levantando-se. — Os meus pais

morre¬ram mas eu ainda estou aqui.Já é alguma coisa. A rapariga permanecia imóvel: - Alexander, espera, espera. E oteu nome? Como é que passou de Barrington

para Belov? E o que aconteceu ao teu pai? Voltaste a ver os teus pais? Ele olhoupara o relógio: - Mas o que é que dá ao tempoquando estou contigo? - murmurou. -Tenho de

me ir embora. Vamos deixar isso paraoutra altura. — Estendendo-lhe a mão para a ajudar a levantar-se: — Outro dia.

O coração dilatou-se-lhe dentro do peito. Então haveria outro dia? Saíramlentamente do parque.

- Contaste à Dasha? — perguntou Tatiana. - Não — replicou Alexander semolhar para ela. A jovem seguia suavemente ao lado dele: - Pois fico contente por me teres contado a mim - afirmou por fim. - Eu também.

Page 71: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

71

- Prometes que me contas o resto um dia destes? - Um dia destes prometo. — Sorriu. - Até me custa acreditar que és americano, Alexander. É uma estreia absoluta

para mim. - Corou ao dizê-lo. Ele inclinou-se e beijou-a delicadamente na face. Tinha os lábios quentes e a

barba picava-lhe. - Vai com cuidado — recomendou-lhe. Com o coração apertado, Tatiana

assentiu, observando-o a afastar-se com uma emoção semelhante ao desespero. E se ele se virasse e a visse? Que pateta devia parecer, ali especada a olhar

para ele! Antes de ter tempo para pensar mais fosse o que fosse, Alexander virou-se. Apanhada, tentou mexer-se, mas as pernas trôpegas traíram a confusão que lhe ia na alma. Ele acenou-lhe. «Que vai pensar ao ver-me aqui de boca aberta a observá-lo?» Gostaria de ser um bocadinho mais astuciosa. Prometendo a si própria que iria tentar, levantou a mão e disse-lhe adeus.

Page 72: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

72

4

Dasha estava no telhado de casa. Por causa dos ataques aéreos, cada prédio já designara os seus trabalhadores, que deviam limpar os sótãos e fazer turnos nos telhados para a deteção dos aviões alemães.

Sentada, fumava um cigarro e falava muito alto com os dois irmãos Iglenko mais novos, Anton e Kirill. Perto deles viam-se baldes de água e pesados sacos de areia. Tatiana queria sentar-se ao lado da irmã, mas não podia.

Dasha levantou-se e disse: - Olha, vou-me embora. Ficas aqui? - Fico. O Anton protege-me. - Anton era o melhor amigo de Tatiana. Tocou no cabelo da irmã: - Não fiques aqui em cima muito tempo. Estás cansada? Chegaste muito

tarde. Já sabíamos que Kirov seria muito longe para ti. Porque não vais trabalhar com o paizinho? Assim chegarias a casa em quinze minutos.

- Não te preocupes, Dasha. Está tudo bem. — Sorriu, como que a tentar prová-lo.

Quando ela partiu, Anton Iglenko tentou animar Tatiana, que não estava com vontade de falar com ninguém. Só lhe apetecia ter um minuto, uma hora, um ano para refletir. Precisava de pensar para se libertar do que estava a sentir.

Por fim, descontraiu-se e começou a jogar á geografia. Anton fê-la rodar, obrigou-a a parar de repente e mandou-a apontar na direção da Finlândia. Depois, de Krasnodar. Para que lado ficavam os Urais? E a América?

A seguir, foi a vez de Tatiana fazer Anton rodar. Perguntaram todas as localizações geográficas de que se lembraram e,

qaundo acabaram, somaram as respostas certas. Quando ganhava, Tatiana punha-se aos saltos.

Mas naquela noite não o fez: limitou-se a sentar-se pesadamente no telhado. Só conseguia pensar em Alexander e na América.

Anton, louro e magricela, disse-lhe: - Não esteias com esse ar. Isto é muito entusiasmante. - É? - Claro que sim. Daqui a dois anos já posso alistar-me. O Petka partiuontem. - Partiu ontem para onde? - Para a frente. - Rindo: - Caso não tenhas reparado, Tania, estamos em

guerra. - Descansa que reparei - respondeu Tatiana um tanto trémula. - Tens notí¬cias

do Volodya? - Volodya estava com Pasha em Tolmachevo.

Page 73: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

73

- Não. Eu e o Kirill gostaríamos de ter ido. O Kirill está mortinho por ter idade para ir para a tropa. Diz que o Exército o aceita com dezessete anos.

- Pois aceita - confirmou ela, levantando-se. - E a ti, alguém te aceita com dezessete anos? — Anton sorriu. - Acho que não, Anton — replicou ela. — Até amanhã. Diz à tua mie que tenho

algum chocolate para ela, se quiser. Diz-lhe que apareça amanhã à noite. Tatiana desceu as escadas. Os avós liam no sofá. O pequeno candeeiro estava

aceso. Apertando-se entre eles, quase se lhes sentou ao colo. - O que se passa, querida? — perguntou-lhe o avô. — Não tenhas medo. - Não tenho medo, Deda. Só estou muito, muito baralhada. - «E não tenho

ninguém com quem falar», pensou. - Por causa da guerra? Tatiana refletiu. Estava fora de questão dizer-lhes o que lhe ia na alma. Por

isso, indagou: - Deda, sempre me disse «Tania, ainda tens tanto pela frente! Sê paciente

com a vida.» Ainda acha o mesmo? O facto de o avô não ter respondido logo deu-lhe a resposta. - Oh, Deda! - choramingou. - Oh, Tania! - exclamou ele, cingindo-a com um braço protetor enquantoa avó

lhe dava palmadinhas no joelho. - Este mundo deu uma reviravolta de um dia para o outro.

- É o que parece - assentiu Tatiana. - Se calhar devias ser menos paciente. - Foi o que pensei — assentiu. — Seja como for, acho que é um exagero dizer

que a paciência é uma virtude. - Mas não sejas menos moral — continuou o Deda. — Nem menos íntegra.

Não te esqueças das três perguntas que te disse para fazeres a ti própria se quiseres conhecer-te.

Gostaria que o Deda não lhas lembrasse. Não estava nada interessada em fazê-las naquela noite.

- Deda, nesta família deixamos a integridade toda para si. - Esboçando um leve sorriso: — Não resta nada para nós.

Abanando a cabeça de cabelo grisalho e espesso, o avô disse: - Tania, é só o que nos resta. Deitada na cama muito quieta, pensou em Alexander não só a contar-lhe a

sua vida como a afogá-la nela, do mesmo modo que ele próprio se afogara. Ouvindo-o com a boca ligeiramente aberta, parara de respirar de modo a que ele pudesse soprar-lhe para os pulmões as palavras, o seu próprio ser cheio de mágoa. Alexander precisava de alguém que carregasse aos ombros o peso da sua vida.

Precisava dela. Esperava poder fazê-lo. Não conseguia pensar em Dasha.

Page 74: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

74

5

A caminho de Kirov na quarta-feira de manhã, viu os bombeiros a construir novos depósitos de água e a instalar o que pareciam ser bocas de incêndio. «Leninegrado estará à espera assim de tantos fogos?», pensou. As bombas alemãs iriam incinerar a cidade? Não conseguia imaginá-lo. Era tão incrível como a América.

Ao longe, o grande Mosteiro-Catedral de Smolny começava a tomar uma forma irreconhecível. Um grupo de trabalhadores estendia-lhes por cima redes de camuflagem, que depois eram pintadas com tinta verde, castanha e cinzenta. Que fariam os trabalhadores com as agulhas da Catedral de São Pedro e São Paulo e do Almirantado, muito mais difíceis de tapar, embora também não tão facilmente identificáveis do ar? Por enquanto, ainda permaneciam esplendorosamente à vista.

Antes de sair do trabalho, Tatiana esfregou as mãos e o rosto até os pôr a bri¬lhar, plantou-se à frente do espelho ao lado do cacifo e escovou cuidadosamente o cabelo comprido, que deixou solto. Envergava uma saia às flores e uma blusa azul de manga curta e botões brancos. Mirando-se ao espelho, hesitou... pareceria que tinha doze ou treze anos? Era a irmã mais nova de quem? Oh, é verdade, de Dasha! «Por favor, está à minha espera!», pensou, antes de se precipitar para a rua.

Acelerou o passo até à paragem do autocarro, e lá estava Alexander de boné na mão.

- Gosto do teu cabelo, Tania. - Sorriu. - Obrigada - murmurou ela. — Só queria não cheirar a petróleo. Petróleo e

óleo. - Oh, não! - exclamou ele, fazendo rodar os olhos. -Estiveste outra fazer

bombas? Ela riu-se. Fitaram a multidão taciturna e cansada que esperava pelo autocarro. Depois

olharam um para o outro e disseram ao mesmo tempo: - Elétrico? - Assentindo, atravessaram a rua. - Pelo menos ainda temos trabalho - comentou Tatiana. - O Pravda diz que a

situação laboral não vai assim muito bem na tua América. Aqui na Uniáo Sovié¬tica há trabalho para toda a gente, Alexander.

- Pois — replicou, inclinando-se para ela enquanto caminhavam. - Não há desemprego nem na União Soviética nem na cadeia de Dartmoor... e pela mesma razão.

Ela sorriu e teve vontade de lhe chamar contrarrevolucionário, mas não o fez..

Page 75: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

75

Enquanto esperavam pelo elétrico, Alexander disse: -Trouxe-te uma coisa. — Estendendo-lhe um pacote embrulhado em papel

pardo: - Sei que fizeste anos na segunda-feira, mas só hoje tive oportunidade... - O que é? — Genuinamente surpreendida, pegou no embrulho. Sentiu um nó

formar-se-lhe na garganta. Baixando a voz, Alexander continuou: - Na América, temos um costume: quando nos dão presentes no dia de anos,

temos de abri-los e dizer obrigado. Tatiana baixou um olhar nervoso para o embrulho. - Obrigada. — Prendas era coisa a que não estava habituada. E então prendas

embrulhadas... nem pensar, mesmo quando só embrulhadas em papel liso casta¬nho.

- Não. Primeiro abres e depois agradeces. Ela sorriu: - Que faço agora? Tiro o papel? -Tiras. Rasga-o. -E depois? - Depois deitas fora. - O presente todo ou só o papel? - Só o papel — respondeu ele devagar. - Mas embrulhaste-o tão bem! Porque havia de o deitar fora? - É só papel. - Se é só papel, para que o puseste? - Importas-te de abrir o meu presente? A jovem rasgou o papel com impaciência, pondo a descoberto três livros: uma

volumosa coletânea de capa dura de Alexander Pushkin, O Cavaleiro de Bronze e Outros Poemas, e dois livros mais pequenos, um de um autor de quem nunca ouvira falar chamado John Stuart Mill, On Liberty, em inglês» e um dicio¬nário inglês-russo.

- Inglês-russo — exclamou Tatiana, sorrindo. — Se calhar serve-me menos do que pensas. Não sei falar inglês. Era teu?

- Era. E sem ele não vais conseguir ler Mill. - Muito obrigada por todos eles — agradeceu. - O Cavaleiro de Bronze era da minha mãe — explicou ele. - Deu-me umas

semanas antes de a terem ido prender. Tatiana ficou sem saber o que dizer. - Adoro Pushkin — murmurou. - Pensei que sim. Todos os russos o adoram. - Sabes o que o poeta Maikov escreveu de Pushkin? - Não. Corada por causa dos olhos dele, Tatiana tentou lembrar-se:

Page 76: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

76

- Disse... deixa ver... «Os seus sons deste mundo não são... Pelo seu ser imortal perpassada... A matéria terrena — emoção, angústia, paixão - em matéria divina foi transformada.»

- A matéria terrena - emoção, angústia, paixão - em matéria divina foi trans¬formada — repetiu Alexander.

Tatiana enrubesceu e olhou ao longo da rua. Onde estava o elétrico? - Já leste Pushkin? — perguntou com timidez. - Já, já li Pushkin - replicou ele, tirando-lhe o papel das mãos e deitando-o

fora. — «O Cavaleiro de Bronze» é o meu poema preferido. - O meu também! — exclamou Tatiana, erguendo para ele um olhar

deslum¬brado. - «Eram terríveis esses tempos / Inda é fresca a sua memória... / Amigos meus, empreendi / Dar-vos deles a minha história. / Triste conto que enceto aqui.»

- Tania, recitas Pushkin como uma verdadeira russa. - Eu sou uma verdadeira russa. O elétrico chegou. No Museu Russo, Alexander perguntou: - Queres andar um bocadinho a pé? Não poderia dizer que não, mesmo que quisesse. Mesmo que quisesse. Encaminharam-se para o Campo de Marte. - Mas tu trabalhas? - perguntou-lhe ela. - O Dimitri está em missão na

Carélia... e tu, não tens de fazer alguma coisa? - Tenho. - Com um grande sorriso: - Fico aqui a ensinar os outros soldados a

jogar póquer. - Pôquer? - É um jogo de cartas americano. Pode ser que qualquer dia te ensine. Além

disso, fui designado oficial responsável pelo recrutamento e treino do Exército Voluntário do Povo. Estou de serviço das sete às seis. Faço turnos dia sim dia náo das dez à meia-noite. — Calou-se.

Tatiana percebeu. Devia ser quando Dasha ia ter com ele. Alexander continuou rapidamente: - Portanto, tenho os fins de semana livres. Mas não sei por quanto tempo.

Desconfio que não muito. Estou aqui no quartel de Leninegrado para protegeu cidade. É o meu posto. Quando ficarmos sem soldados na frente, mandam-me para lá.

«E então ficaríamos sem ti», pensou ela. - Onde vamos? - Aos Letniy Sad... os Jardins de Verão. Mas espera. — Alexander parou não

muito longe da sua caserna. Alguns bancos contornavam o Campo de Marte do outro lado da rua. — Senta-te ali que eu vou arranjar o nosso jantar.

- Jantar?

Page 77: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

77

- Sim, pelos teus anos. Vamos fazer um jantar de anos. - Depois de se ofe¬recer para lhe trazer pão e carne: - Até pode ser que arranje caviar. - Sorrindo:

- Sendo uma verdadeira russa, gostas de caviar, não? - Hum! - exclamou ela. — E fósforos? — perguntou, lembrando-se da loja

Voentorg mas tentando não parecer trocista de mais para o caso de ele não achar graça. - Náo irei precisar de fósforos?

- Se precisares de acender alguma coisa, podemos usar a chama eterna do Campo de Marte. Passámos por ela no domingo, lembras-te?

Lembrava-se. - Não se pode tocar nessa chama bolchevique — redarguiu ela, afastando-se. - É quase um sacrilégio. Alexander soltou uma gargalhada: - Às vezes cozinhamos lá shish kebabs nas noites em que estamos de licença. É

um sacrilégio? Mas eu pensava que Deus não existia. Tatiana ergueu o olhar para ele, mas não por muito tempo. Estaria a

troçardela? - É verdade. Deus não existe. - Claro que não. Estamos na Rússia comunista. Somos todos ateus. A jovem lembrou-se de uma anedota: - O camarada Um diz para o camarada Dois: «Gomo vai a produção de batata

este ano?» O camarada Dois responde: «Muito bem, muito bem. Com a ajuda de Deus, a produção há de chegar-Lhe aos pés.» O camarada Um diz: «Camarada! Que conversa é essa? Sabes muito bem que o Partido diz que não há Deus.» Responde o camarada Dois: «E também não há batatas.»

Alexander riu: - Tens muita razão. Não há batatas. Agora, vá. Espera por mim ali. Venho já. Ela atravessou a rua e deixou-se cair no banco. Alisou o cabelo, meteu a mão

na bolsa de lona, acariciou os livros que ele lhe dera e sentiu-se invadida por... Mas que fàzia? Estava tão cansada que nem conseguia pensar bem. Alexander

não devia estar ali com ela. Devia estar ali com Dasha. «E sei que é verdade, porque se a Dasha me

per¬guntar onde estive, não poderei dizer-lhe», pensou Tatiana. Levantando-se, come¬çou a afastar-se, quando ouviu Alexander chamando-a:

- Tania! Aproximou-se esbaforido, com dois sacos de papel na mão: - Onde vais? Não precisou de responder. Ele viu-lhe a expressão do rosto. - Tania — começou com um ar conciliador —, prometo que te dou de comer e

te mando logo para casa. Mas deixa-me dar-te de comer, está bem? — Segurando os sacos com uma mão, pousou-lhe a outra no cabelo: — E pelos teus anos. Anda.

Não podia ir, e sabia-o. Sabê-lo-ia também Alexander? Mais: perceberia o turbilhão em que andava, aquela indescritível confusão de sentimentos?

Page 78: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

78

Atravessaram o Campo de Marte a caminho dos Jardins de Verão. Ao fundo da rua, o rio Neva brilhava ao sol, apesar de serem quase nove da noite.

Os Jardins de Verão não eram o melhor sítio para eles. Não encontravam nenhum banco vazio entre os caminhos, estátuas gregas,

ulmeiros gigantescos e pares de namorados, entrelaçados como ramos de roseiras. Tatiana caminhava de cabeça baixa. Por fim, arranjaram lugar perto da estátua de Saturno. «Não é o lugar ideal

para nos sentarmos», pensou Tatiana, uma vez que Saturno tinha a boca aberta e comia uma criança com um ar de indiferença.

Alexander trouxera um pouco de vodca, fiambre e pão branco. E também um frasco de caviar preto e uma tablete de chocolate. Tatiana estava com fome. Ele disse-lhe que podia comer o caviar todo. Ao princípio protestou, mas não com muita convicção. Depois de ter comido mais de metade com a pequena colher que ele trouxera, estendeu-lhe o resto:

- Acaba, por favor. Insisto. Bebeu um gole de vodca da garrafa e estremeceu involuntariamente;

detestava vodca, mas não queria que ele percebesse como era criança. Alexander riu-se do seu arrepio, tirou-lhe a garrafa da mão e bebeu um trago:

- Olha lá, não és obrigada a beber. Trouxe-o para celebrar os teus anos, mas esqueci-me dos copos.

Encontrava-se estirado sobre o banco e perigosamente perto dela, Se respirasse, tocar-lhe-ia. Com sentimentos tão intensos mergulhando na luminosa nascente que tinha dentro de si, a rapariga nem conseguia falar.

- A comida não está boa? — perguntou ele delicadamente. - Está. - Depois de pigarrear um pouco: — Quer dizer, está ótima, obrigada. - Queres mais vodca? - Não. Evitou o melhor que pôde os seus olhos sorridentes quando ele lhe

perguntou: - Alguma vez bebeste vodca a mais? - Hum - assentiu, sem levantar o olhar. — Tinha dois anos. Bebi para aí meio

litro. Tiveram de me levar ao serviço pediátrico do Hospital Grechesky. - Dois anos? E nunca mais? — A sua perna tocou acidentalmente na dela. Tatiana corou: - Não, nunca mais. — Desviou a perna e mudou de assunto para os Alemães.

Ele suspirou e falou um bocado do que se passava no quartel. Quando Alexander era o único a falar, ela podia observá-lo e passear-lhe os olhos pelo rosto. Ao repa¬rar-lhe nos pelos escuros que despontavam, apeteceu-lhe perguntar-lhe se alguma vez andava perfeitamente barbeado, mas achou que era um atrevimento e calou-se. Os pelos eram mais pronunciados em volta da boca, onde a sombraescurada barba lhe acentuava os lábios. Também teve vontade de lhe perguntar o que acon¬tecera para ter um dente ligeiramente lascado, mas não o fez. E durante todo este tempo

Page 79: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

79

só queria que ele não a mirasse com aquela expressão doce e sorridente dos seus olhos de veludo.

E queria devolver-lhe o sorriso. - Ainda sabes falar inglês, Alexander? - Sei. Mas não prático. Não faio desde que a minha mãe e o meu pai... Calou-

se. Abanando a cabeça, Tatiana disse: - Não, desculpa, náo queria... Era só para saber se podes ensinar-me algumas

palavras. Os seus olhos brilharam com tanta intensidade que ela sentiu todo o seu

sangue que tinha no corpo subir-lhe às faces. - Que palavras gostarias que eu te ensinasse em inglês, Tania? — perguntou

devagar. Não conseguiu responder-lhe, com medo de gaguejar. - Não sei — disse por fim. — Que tal vodca? - Oh, essa é fácil. Vodca. — Riu-se. Tinha um riso bonito. Um riso masculino sincero, sonoro e contagiante, que

começava no peito dele e acabava no dela. Pegando na garrafa de vodca, desenroscou a tampa.

- A que vamos brindar? — perguntou, erguendo a garrafa. — Como são os teus anos, vamos brindar à tua saúde. Ao teu próximo aniversário! Salut! Espero que seja bom.

- Obrigada. Também vou beber um gole — disse ela, tirando-lhe a garrafa. - Gosto de festejar os meus anos com o Pasha ao pé de mim. Sem responder ao seu comentário, Alexander pousou a vodca e olhou para

Saturno: - Outra estátua seria melhor, não achas? Até me custa engolir a comida ao ver

Saturno devorando um dos seus filhos inteiro. - Então onde gostarias de te ter sentado? - indagou Tatiana, saboreando um

quadradinho de chocolate. - Não sei. Talvez ali ao pé do Marco António. — Olhando em volta: —Achas

que há aqui alguma estátua de Afro... - Vamos? — propôs Tatiana, levantando-se de repente: - Preciso de desmoer

esta comida toda. — Mas que fazia ali? Enquanto saíam vagarosamente do parque e deambulavam até ao rio, Tatiana

teve vontade de lhe perguntar se o tratavam por outro nome além de Alexander, mas era uma questão pouco própria e não a pôs. Teria de se contentar com um passeio ao longo do pavimento de granito, ao cair da noite. Também não podia perguntar-lhe por que diminutivo afetuoso gostava de ser tratado.

- Queres sentar-te? - inquiriu ele passado algum tempo. - Por mim estou bem. A não ser que tu queiras. - Sim, vamos sentar-nos.

Page 80: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

80

Instalaram-se num dos bancos que davam para o Neva. Do outro lado do rio elevava-se a agulha dourada da Catedral de São Pedro e São Paulo. Com as pernas compridas abertas e os braços estendidos nas costas do banco, ocupava quase metade do banco. Tatiana sentou-se cautelosamente, tendo o cuidado de não tocar com a perna na dele.

Alexander tinha um ar descontraído e à vontade. Movimentava-se, sentava-se, descansava e recostava-se como se não se apercebesse minimamente do efeito que causava numa receosa rapariga que ainda mal fizera dezassete anos. O seu corpo projetava uma confiança intrínseca no seu lugar no Universo. Parecia dizer: «Tudo isto me foi dado. O corpo, a cara, a altura, a força. Não pedi nada,não fiz nada, não construí nada. Não lutei por nada. É um dom que agradeço todos os dias quando me lavo e me penteio, um dom de que não abuso nem no qual penso mais durante o dia. Não me orgulho nem me envergonho dele. Não me torna arrogante nem vaidoso, mas também não me armo em modesto ou humilde.»

Sei o que sou, dizia a cada gesto do seu corpo. Tatiana esquecera-se de respirar. Inspirando por fim, virou-se para o Neva. - Adoro perder-me a contemplar este rio - disse Alexander baixinho. -

Especialmente nas noites brancas. Não temos nada como isto na América. - Talvez no Alasca? - Talvez. Mas isto... este rio cintilante, a cidade em volta das suas margens o

sol a pôr-se atrás da Universidade de Leninegrado à esquerda e a nascer à nossa frente na Catedral de São Pedro e São Paulo... - Abanando a cabeça, calou-se. Ficaram sentados em silêncio. — Como disse Pushkin em «O Cavaleiro de Bronze»; -continuou. — «E, vedando ao escuro da noite... a entrada nos céus dourados,..»

- Interrompeu-se. - Não me lembro do resto. Tatiana sabia «O Cavaleiro de Bronze» praticamente de cor. Por isso,

conti¬nuou: - «Corre um sol a render o outro... Nem uma hora dando à noite.» Alexander

virou a cabeça para observar Tatiana, que continuou a contemplar o rio. - Tania, onde foste buscar essas sardas todas? — perguntou suavemente. - Eu sei, são tão aborrecidas... É o sol — replicou ela, corando e tocando no

rosto como se quisesse esfregar as sardas que lhe cobriam o nariz e se lhe espalha¬vam por baixo dos olhos. «Por favor, para de olhar para mim», pensou, com medo dos olhos dele e aterrorizada com o seu próprio coração.

- E o teu cabelo louro? - continuou ele com a mesma suavidade. - Também é o sol?

O braço dele atrás dela no banco não lhe largava o pensamento. Se ele qui¬sesse, poderia mexer a mão uns centímetros e tocar-lhe no cabelo, que lhe caía pelas costas. Mas não o fez.

- As noites brancas são um espetáculo, não achas? — perguntou sem tirar os olhos dela.

- É, mas em contrapartida temos o inverno de Leninegrado – murmurou ela.

Page 81: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

81

- Pois, o inverno não tem lá muita piada por aqui. - Às vezes, quando o Neva gela, vamos andar de trenó no gelo, mesmo

escuras. Só com as luzes efêmeras do Norte. - Tu e quem mais? - O Pasha, eu e os nossos amigos. Às vezes, eu e a Dasha. Mas ela é muito

mais velha. Não ando muito atrás dela. — Porque teria comentado que Dasha era muito mais velha? Estaria a ser mazinha? «Cala-te», disse com os seus botões.

- Deves gostar muito dela - observou Alexander. Que quereria dizer com aquilo? Preferia náo saber. - És tão amiga dela como do Pasha? - E diferente. O Pasha e eu... — interrompeu-se. Ela e Pasha comiam do

mesmo prato, que Dasha lhes preparava e servia. — Eu e a minha irmã dormimos na mesma cama. Diz-me que nunca poderei casar porque não quer o meu marido a dormir na cama connosco.

Os seus olhos encontraram-se. Tatiana não conseguia afastar o olhar. Esperou que ele não reparasse no seu rosto vermelho à luz dourada do sol.

- És muito nova para casar - replicou ele baixinho. - Eu sei — concordou Tatiana, como de costume um tanto na defensiva

quanto à sua idade. - Mas também não sou nova de mais. «Nova de mais para quê?» Mal o pensou, Alexander perguntou logo em voz

comedida: - Nova de mais para quê? A expressão dos olhos dele era de mais para ela. De mais no Neva, de mais

nos Jardins de Verão, de mais. Não sabia o que dizer. Que diria Dasha? Que diria um adulto? - Não sou nova de mais para entrar nos Voluntários do Povo - explicou

final¬mente. - Será que posso? E tu podias treinar-me. - Riu-se e calou-se, embaraçada.

Sem sorrir, Alexander estremeceu: - És nova de mais até para os Voluntários do Povo. Só aceitam pessoas com... - Não acabou. E ela ouviu a frase por acabar sem lhe perceber o sentido da

hesi¬tação na voz e das palpitações nos lábios. Tinha uma covinha no meio do lábio inferior, quase como um ninho aconchegado...

De repente, sentada à beira-rio na noite iluminada pelo sol, Tatiana não con¬seguiu olhar nem mais um segundo para os lábios de Alexander. Pôs-se de pé de um salto.

- É melhor ir andando. Faz-se tarde. - Está bem - retorquiu ele, levantando-se também, mas muito mais devagar. - Está uma noite muito bonita. - Pois está - concordou ela calmamente, sem olhar para ele. Começaram a

caminhar ao longo do rio. - Alexander, tens saudades da tua América?

Page 82: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

82

- Tenho. - Se pudesses, voltarias? - Acho que sim — respondeu em voz monocórdica. - E podes? Ele fitou-a: - Como? Quem me deixaria? Que direito tenho ao meu nome americano? Tatiana sentiu uma enorme vontade de lhe dar a mão; de lhe tocar, de o

consolar. - Fala-me da América. Já viste algum oceano? - Já, o Atlântico. E é um espetáculo. - Ésalgado? - É, e frio e imenso. E tem alforrecas e barcos à vela brancos. - Uma vez vi uma alforreca. De que cor é o Atlântico? - Verde. - Verde como as árvores? Ele passeou o olhar pelas árvores, o Neva e ela. - Verde um bocadinho como a cor dos teus olhos. - Então uma espécie de verde baço e escuro? — A emoção oprimia-lhe o

peito, dificultando-lhe a respiração. «Não preciso de respirar agora», pensou. «Tenho respirado toda a vida.»

Alexander sugeriu que regressassem pelo meio dos Jardins de Verão. Tatiana concordou, mas depois disse, lembrando-se dos namorados

abra¬çados: - Se calhar não. Não há um caminho mais rápido? - Não. Os grandes ulmeiros projetavam sombras compridas enquanto o sol

mergu¬lhava atrás deles. Atravessaram a entrada e percorreram o caminho estreito entre as estátuas. - O parque parece diferente à noite - observou ela. - Nunca estiveste aqui à noite? - Não — admitiu, acrescentando rapidamente: — Mas já estive de noite

nou¬tros lugares. Uma vez... Ele inclinou-se para ela: - Queres saber uma coisa, Tania? - O quê? — perguntou, afastando-se. - Quanto menos tiveres saído à noite, mais eu gosto. Emudecida, continuou a andar em passo não muito seguro, olhando para os

pés. Ele caminhava a seu lado, encurtando as passadas de soldado para não se

adiantar. Estava uma noite quente; os seus braços nus tocavam-lhe no tecido áspero da camisa da farda.

- Este é o melhor dos tempos, Tatiana. Queres saber porquê?

Page 83: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

83

- Não me digas, por favor. - Nunca mais haverá um tempo assim tão simples, sem complicações. - Chamas a isto sem complicações? — Abanou a cabeça. - Claro. — Depois de uma pausa: — Somos apenas amigos passeando no

cre¬púsculo luminoso de Leninegrado. Pararam na Ponte Fontanka. - Entro de serviço às dez — disse ele. — Podia acompanhar-te a casa... - Não, não é preciso. Não te preocupes. Obrigada pelo jantar. Não era possível olhar para o rosto de Alexander. O que a salvava era a altura.

Tatiana fitou-lhe os botões da farda. Desses não tinha medo. - Diz-me uma coisa — começou ele, depois de pigarrear —, como é que te

tratam quando querem chamar-te outra coisa além de Tania ou Tatiana? O coração dela deu um salto: - Quem? Alexander não disse nada durante o que lhe pareceram minutos. Tatiana recuou e, quando estava a cinco metros dele, olhou-lhe para a cara.

Tudo o que queria fazer era contemplar-lhe o rosto prodigioso. - Às vezes,chamam-me Tatia. Ele sorriu. Os silêncios atormentavam-na. Que fazer entretanto? - Es muito bonita, Tatia. - Cala-te - disse ela inaudivelmente, deixando de sentir as pernas. - Se quisesses, podias tratar-me por Shura — disse-lhe Alexander. «Shura! Que encanto! Adorava tratar-te por Shura», apeteceu-lhe dizer-lhe. - Quem é que te chama Shura? - Ninguém - replicou ele, fazendo a continência. Tatiana não se limitou a caminhar para casa. Voou. Cresceram-lhe brilhantes

asas vermelhas, com as quais atravessou o céu azul-escuro de Leninegrado. Jáperto de casa, o peso do coração cheio de culpa fê-la descer e as asas desapareceram-lhe. Prendeu o cabelo e certificou-se de que tinha os livros bem no fundo da bolsa. Mas ainda ficou uns minutos sem conseguir subir as escadas, encostada à parede do prédio, apertando os punhos contra o peito.

Dasha estava sentada à mesa de jantar com (que surpresa!) Dimitri. - Hátrês horas que estamos à tua espera — atirou-lhe ela impacientemente. - Onde estiveste? Conseguiriam cheirar Alexander caminhando ao lado dela por Leninegrado?

Transportaria consigo a fragrância do jasmim, do sol quente batendo-lhe nos bra¬ços nus, da vodca, do caviar, do chocolate? Veriam as sardas que tinha a mais na cana do nariz? «Andei a passear à luz do Polo Norte. Andei a passear e a aquecer o rosto ao sol do Norte.» Detetariam tudo nos seus olhos angustiados?

- Desculpem. Tenho andado a trabalhar até muito tarde.

Page 84: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

84

- Tens fome? - perguntou Dasha. — A Babushka fez costeletas e pure de batata. Deves estar esfomeada. Come um bocadinho.

- Não, não quero. Estou cansada. Dima, dê-me licença? - disse, saindoparase lavar.

Dimitri ficou mais duas horas. Como os avós quiseram deitar-se às onze,Dimitri, Dasha e Tatiana foram para o telhado, onde se sentaram a conversar aolusco-fusco até depois da meia-noite. Tatiana não conseguia falar muito. Dimtri,simpático e sem papas na língua, mostrou-lhes as bolhas com que ficara depois de ter passado dois dias inteiros a cavar trincheiras. Tatiana sentia-lhe os olhos procurando os seus e notava-lhe o sorriso quando erguia o rosto para ele.

- Diz-me uma coisa, Dima: és muito amigo do Alexander? - perguntou Dasha. - Sou. Há muito tempo. Somos como irmãos. No meio da confusão que lhe ia na cabeça, Tatiana pestanejou duas vezes,

tentando concentrar-se nas palavras de Dimitri. «Meu Deus», rezou na cama nessa noite, virando-se para a parede e tapando-

-se com o lençol branco e o fino cobertor castanho, «se estás aí algures, por favor ensina-me a esconder o que nunca soube mostrar».

Page 85: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

85

6

Tatiana passou toda a quinta-feira a pensar em Alexander, enquanto traba¬lhava nos lança-chamas. Depois do trabalho, ele estava à sua espera. Desta vez, não lhe perguntou porque fora. E ele não explicou. Não tinha prendas nem per¬guntas. Limitou-se a aparecer. Quase não falaram. Só os seus braços se tocavam; uma vez, quando o elétrico fez uma travagem mais brusca, Tatiana caiu para cima dele. Com o corpo sempre na mesma posição, Alexander amparou-a passando-lheo braço pela cintura.

- A Dasha convenceu-me a ir a vossa casa hoje à noite - disse ele calmamente. - Oh! - exclamou ela. - Ótimo. Claro. Os meus pais vão gostar de te ver outra

vez. Estavam muito bem dispostos hoje de manhã. Ontem a mãezinhafalou com o Pasha ao telefone e parece que ele está muito bem... - Calou-se. De repente, sentia-se muito triste para continuar.

Caminharam o mais devagar que puderam até ao elétrico número 16, entra¬ram e seguiram em silêncio com os braços apertados um contra o outro até ao Hospital Grechesky.

- Até logo, tenente. - Apeteceu-lhe dizer Shura,mas não conseguiu. - Até logo, Tatia - despediu-se ele. Nessa noite, encontraram-se pela primeira vez os quatro na Quinto Soviete

eforam darum passeio. Compraram gelados, um batido de leite e uma cerveja. Dashaparecia uma lapa pendurada no braço de Alexander. Mantendo uma certa distância de Dimitri, Tatiana fazia das tripas coração para não ver a irmã agarrada a ele. Achava profundamente desagradável ver Dasha tocar-lhe. Era infinitamente preferível saber que ela ia ter com ele a uma Leninegrado nebulosa, que não ima¬ginava nem nunca explorara, mas longe da sua vista.

Alexander parecia tão descontraído e satisfeito como qualquer soldado que andasse a passear de braço dado com alguém como Dasha. Mal olhava para Tatiana. Como ficavam Dasha e Alexander juntos? Ficavam bem? Melhor do que eles os dois? Não tinha respostas. Não sabia como ficava ao lado de Alexander. Só sabia o que sentia perto dele.

- Tania! — Dimitri falava com ela. - Desculpa, Dima. O quê? — Porque levantara ele a voz? - Estava a perguntar-te se não achas que o Alexander devia transferir-me do

corpo de fuzileiros para outro lado qualquer. Talvez para a divisão motorizada dele. - Se calhar... É possível? Na motorizada não é preciso saber conduzir tanques

ou algoassim? Alexander sorriu. Dimitri não disse nada.

Page 86: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

86

- Tania! — exclamou Dasha. - Sabes lá o que é preciso fazer numa divisão motorizada. Cala-te. Alex, vais atravessar rios e carregar sobre o inimigo? - Soltou uma risadinha.

- Não — contrapôs Dima. — Primeiro manda-me a mim saber se é seguro e só depois é que vai. E é promovido outra vez. Não é isso, Alexander?

- Mais ou menos retorquiu ele, caminhando ao seu lado. — Mas às vezes quando vou em pessoa, também te levo.

Tatiana mal conseguia ouvir. Porque caminhava Dasha tão perto dele? E como podia ele ir e levar Dimitri consigo? O que quereria dizer?

- Tania! — chamou Dimitri. — Tania, estás a ouvir? - Estou, claro. — Porque continuaria a levantar a voz? - Pareces distraída. - Mas não. Está uma noite muito bonita, não achas? - Queres dar-me o braço? Estás com ar de quem vai cair a qualquer

mo¬mento. Olhando descuidadamente para a irmã, Dasha disse: - Tem cuidado para ela não desmaiar. Nessa noite, Tatiana meteu-se na cama, tapou a cabeça com o cobertor e

fingiu estar a dormir quando Dasha se deitou ao seu lado, abanando-a ao de leve e sussurrando:

- Tania, Tania, estása dormir? - Não queria falar nem ouvir as confidências da irmã no escuro.

Só tinha vontade de dizer o nome dele uma vez em voz alta, Shura.

Page 87: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

87

7

Na sexta-feira, Tatiana reparou que ficara pouca gente em Kirov. Só os muito novos, como ela, e os muito velhos. Os poucos homens que restavam ou tinham mais de sessenta anos ou ocupavam lugares na administração, ou ambas as coisas.

Nos primeiros cinco dias de guerra, a falta de notídas da frente era para desconfiar. Os locutores da rádio anunciavam grandes vitórias soviéticas e não diziam absolutamente nada do poder militar alemão, da posição alemã na União Soviética, do perigo para Leninegrado ou de uma possível evacuação. O rádio estava ligado todo o dia. Tatiana enchia os lança-chamas com petróleo espesso e nitro- celulose, enquanto do outro lado das portas duplas abertas a máquina de metal cuspia projéteis de diferentes tamanhos para a correia de transmissão.

Ouvia o clinc, clinc, clinc das balas metálicas contando o passar dos muitos segundos que constituíam o seu longo dia, preenchido por aquele ruído ritmado.

E só pensava nas sete horas. Ao almoço, ouviu na rádio que o racionamento talvez começasse na semana

seguinte. Também durante o almoço, Krasenko disse ao seu reduzido pessoal que provavelmente começariam a fazer exercícios militares na segunda-feira e que o horário de trabalho ia ser prolongado até às oito da noite.

Antes desair, esfregou as mãos durante dez minutos para tirar o cheiro do petróleo, mas nãoconseguiu. Saindo apressadamente das portas da fabrica com Zina e caminhando aolongo do muro de Kirov, apeteceu-lhe falar a alguém do seu conflito e aflição.

Mas então viuobonéinclinado de Alexander, que o tirou da cabeça e ficou com ele nas mãos esperando porela, e imediatamente esqueceu tudo. Teve de se controlar paranãodesatara correr. Atravessaram a rua e encaminharam-se para a Ulitsa Govorova.

- Vamos andar um bocadinho.— Tatiana nem acreditava que fora ela a dizê-lo, depois do dia que tivera. Masjá não sentia o cansaço e sabia que não ia passarum único minuto com ele durante o fim desemana.

- O que é um bocadinho? Inspirou profundamente: - Vamos a pé. Percorreram lentamente as ruas quase desertas, anónimos para toda a gente.

Os carris do caminho de ferro e os campos ficavam à direita e os edifícios industriais da zona de Kirov erguiam-se à esquerda. Não havia sirenes, nem aviões sobrevoando o céu. Só o sol pálido brilhava. Não havia outras pessoas.

- Alexander, porque é que o Dima não é oficial como tu?

Page 88: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

88

Não respondeu logo. - Ele queria ser oficial. Entrámos juntos na Escola dos Candidatos a Oficial. Tatiana não sabia e disse-lhe que Dimitri nunca falara disso. - É natural. Entrámos os dois, pensando que iríamos permanecer juntos mas,

infelizmente, o Dima não conseguiu. - O que aconteceu? - Nada. Não era capaz de ficar tempo suficiente debaixo de água sem entrar

em pânico, não conseguia prender a respiração, não ficava quieto sob fogo de exercício, não se mantinha calmo, descontrolava-se, não tinha um bom tempo nos dez mil metros, não fazia cinquenta flexões seguidas. Não conseguiu. A muitos níveis. É um bom soldado. Muito bom soldado — corrigiu Alexander. - Mas não foi talhado para oficial.

- Não é como tu — comentou ela, acentuando o tu com entusiasmo. Divertido, ele lançou-lhe um olhar de relance: - Eu combato com muita raiva. O elétrico parou mesmo à sua frente. Entraram com relutância. - E como reage o Dimitri? Tatiana deixara de evitar Alexander quando os solavancos do elétrico os

faziam ir um contra o outro. Agora, vivia para aqueles solavancos. Sempre que o elétrico arrancava, ela acompanhava-lhe o movimento na direção dele, quase sem se segurar. E ele, qual pirâmide invertida, amparava-lhe a cintura com o braço. Ao fazê-lo naquela noite, permaneceu abraçado a ela e fez-lhe sinal para que con¬tinuasse a falar. Mas ela não conseguiu até ele retirar a mão.

- A quê? Ao fato de não ser oficial? - Não. A ti. - Mais ou menos como deves calcular. O elétrico parou. Para a amparar, Alexander agarrou-lhe no antebraço. Sentiu

o corpo todo percorrido por arrepios. Largando-a, continuou: - Acho que o Dimitri pensa que as coisas me caem todas do céu. - Que coisas? — indagou corajosamente. - Sei lá! As coisas de um modo geral. O Exército, a carreira de tiro... - Calou-se. Ela examinou-o, à espera. Que iria dizer a seguir? Que mais caía do céu a

Alexander? - Não é verdade - disse ela porfim. - Tiveste uma vida muito dura. - Eainda mal começou - retorquiu.Quando recomeçou a falar, Tatiana detetou

nele uma calma forçada. — Olha,o Dimitri e eu temos uma longa história em comum. Se conheço bem o Dima,não tarda nada vai contar-te histórias sobremim em que não quererás acreditar.Até me admira como ainda não o fez.

- Histórias verdadeiras ou verdadeiras mentiras? - Não posso responder a isso — replicou ele. — Algumas serão verdade

eoutras mentiras descaradas. O Dimitri temo... digamos, dom de misturar mentiras com adose de verdade suficientepara nos por malucos.

Page 89: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

89

- Que grande dom! E como é que eu sei? - Não sabes. Vai parecer-te tudo verdade. - Olhando para ela; - Se quiseres

saber a verdade, pergunta-me que eu digo-te. - Se eu te perguntar, dizes-me a verdade sobre seja o que for? - inquiriu,

erguendo o rosto para ele. - Digo. Tatiana suspendeu a respiração porque, por um momento, o coração deixou

de lhe bater dentro do peito. Mordeu o lábio para as palavras não lhe saírem. Apetecia-lhe perguntar-lhe: Amas-me? Teve vontade de se esbofetear até entrar num pânico tal que a paralisasse e não a deixasse sequer pensar nisso, mas era impossível. Ele queria uma pergunta? Pois era esta a pergunta que sentia gritar por entre os dentes cerrados, o silêncio e o coração parado.

- Tens alguma pergunta a fazer-me, Tania? - perguntou delicadamente. - Não - respondeu, baixando o olhar para a pega de metal e para a cabeça

grisalha da mulher que tinha à frente. - Chegámos - disse Alexander ao saírem no canal Obvodnoy. Não apanha¬ram

o segundo elétrico do costume. Percorreram a pé os cinco quilómetros que os separavam da casa dela.

Passaram por um portão de ferro em frente a uma porta, que não pareciam levar à entrada de prédio nenhum. Era como se tivessem sido construídos para nada. Alexander apontou:

- Estes portões, estas portas, podem estar a ouvir-te agora, ontem, amanha, em Kirov, do outro lado da tua cama...

- Estás a brincar! Quem está do outro lado da minha cama são os meus avos. Achas que são informadores?

- Não é isso. — Depois de uma pausa: — O que quero dizer é que... não se pode confiar em ninguém. E ninguém está seguro.

- Ninguém? — brincou Tatiana, observando-o. — Nem tu? - Eu de certeza que não. - Não se pode confiar em ti ou não estás seguro? - Sorriu. Ele devolveu-lhe o sorriso: - Não estou seguro. - Mas és oficial do Exército Vermelho! - Sim? Vai dizer isso aos oficiais do Exército Vermelho de 1937 e 1938. Foram

todos mortos. E é por isso que ninguém quer assumir responsabilidades nesta guerra.

Ela pôs-se silenciosamente ao seu lado e perguntou: - Eu estou segura? - Tatiana, somos seguidos, sempre, em toda a parte — sussurrou, inclinando- -

se para o seu ouvido. — Talvez chegue o dia em que alguém te salte de uma porta secreta e te leve à presença de um homem atrás de uma secretária, que vai querer saber o que o Alexander Belov te dizia durante os vossos passeios.

Page 90: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

90

- Já me contaste coisas de mais, Alexander Belov - declarou Tatiana, afas¬tando-se dele. - Porque o fizeste, se achavas que eu ia ser interrogada?

- Precisava de confiar em alguém. - Porque não contaste a Dasha e não puseste antes a vida dela em perigo? Ele fez uma pausa antes de responder: - Porque era em ti que precisava de confiar. - E podes - respondeu Tatiana animadamente, dando-lhe um ligeiro

empur¬rão com o corpo. - Mas faz-me um favor: não me contes mais nada, está bem?

- Tarde de mais — retorquiu, devolvendo-lhe o empurrão. - Quer dizer que estamos condenados? - perguntou ela rindo. - Para toda a eternidade. Queres um gelado? - Quero. - Abriu o rosto num sorriso. - Leite-creme, não é? - Sempre. Sentaram-se num banco enquanto ela comia, mas depois continuaram

sen¬tados a conversar, sem se mexer, até Alexander consultar o relógio e se levantar.

Já eram quase dez horas quando pararam na esquina da Grechesky com a Segundo Soviete, a três quarteirões do prédio dela.

Tatiana parou: - Vais lá a casa daqui a bocado? - Suspirando: - A Dasha disse que talvez

fosses. - Vou. - Suspirando também: - Com o Dimitri. Ela ficou calada. Estavam de frente um para o outro. Alexander encontrava-se tão perto que até conseguia cheirá-lo. Não conhecia

ninguém que cheirasse tão bem e tão a limpo como ele. Ao vê-lo abrir a boca, inclinar a cabeça e carregar o cenho, pensou que ia

dizer-lhe alguma coisa. Esperou com o corpo tenso, querendo-o desesperadamente e não o querendo, detestando as feias botas castanhas, desejando ter as sandálias vermelhas e lembrando-se de que pertenciam a Dasha, lembrando-se de que não tinha sapatos bonitos, apetecendo-lhe descalçar-se à frente dele e sentindo umaemoção e uma culpa que nunca antes conhecera. Deu um passo atrás. Alexander recuou:

- Vai. Nos vemos à noite. Ela afastou-se, sentindo os olhos dele nas suas costas.Virando-se viu-o a

observá-la à distância.

Page 91: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

91

8

Alexander e Dimitri apareceram depois das onze. Continuava claro lá fora. Dasha ainda não chegara. O patrão dela andava a fazer horas extraordinárias,tirando os dentes de ouro dos clientes. Em tempos de crise, as pessoas preferiam ter ouro em vez de dinheiro; o ouro não desvalorizava. Dasha trabalhava cada vez até mais tarde e detestava, pois só queria que toda a gente se comportasse como se a vida permanecesse igual ao que sempre fora no veráo de Leninegrado: lenta, quente, modorrenta e cheia de jovens apaixonados.

Pouco à vontade, Tatiana, Dimitri e Alexander esperavam na cozinha, enquanto a água gotejava para a pia de ferro fundido.

- Que ar macambúzio é esse? — perguntou Dimitri, olhando de um para o outro.

- Por mim, estou cansada - respondeu ela. Não era inteiramente mentia - E eu tenho fome - acrescentou Alexander, olhando-a de relance. - Tania, vamos dar uma volta. - Não, Dima. - Sim. O Alexander fica aqui à espera da Dasha. - Sorrindo: - Eles não

pre¬cisam de nós. Aliás, adorariam que os deixássemos sozinhos. Não é verdade, Alexander?

- Pois aqui não têm grande sorte — murmurou Tatiana. Graças a Deus! Alexander encaminhou-se para a janela e observou o pátio. - A sério que não posso - protestou ela. — Estou... Dimitri agarrou-lhe no braço: - Anda lá, Tanechka. Já comeste, não foi? Anda. Não demoramos, prometo. Ela fitou os ombros quadrados de Alexander. Apeteceu-lhe chamar-lhe Shura. - Alexander, queres alguma coisa da rua? - Não, Tania - respondeu, mirando-a. Os olhos tristes cintilaram por um

momento, mas foi uma chama breve, logo apagada pela sua força de vontade. - Vai lá para dentro. A Babushka fez carne pirozhki. Come um pouquinho. E também há borscht.. A mão de Dimitri jáestava a puxar Tatianapara o corredor. Teriam de

passarpor cima deSlavin, que descansava calmamente no chão, masparecia que não iahaver problema.Quando ela se aproximou, no entanto, ele mexeu-se,levantoua cabeça e agarrou-lhe o tornozelo.

Dimitri pisou-lhe o pulso e Slavin deu um grito, largou-a, ergueu o olhar para ela e choramingou:

- Fica em casa, querida Tanechka. Já é muito tarde para saíres. Fica em casa!

Page 92: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

92

- Não olhou para Dimitri, que praguejou contra ele e lhe pisou novamente o pulso.

Já na rua, perguntou-lhe se queria um gelado. Tatiana não queria que ele lhe comprasse nenhum gelado, mas disse:

- Está bem. Um cone de baunilha. - E foi-o comendo com ar infeliz enquanto caminhavam. A noite estava quente. Só pensava numa coisa.

- Em que pensas? - Na guerra — mentiu. — E tu? - Em ti — respondeu ele. - Nunca conheci ninguém como tu, Tania. É

com¬pletamente diferente das raparigas com quem costumo andar. Ela murmurou um obrigada infeliz e concentrou-se no gelado. - Espero que o Alexander entre e coma. A Dasha é capaz de ainda demorar

uma boa hora. - É disso que queres falar, Tania? Do Alexander? - O tom cortante da voz dele

foi evidente até para os seus ouvidos pouco treinados. - Não, claro que não - apressou-se a dizer. - Estou só a falar por falar. -

Mu¬dando de assunto: — Que fizeste hoje? - Cavei mais trincheiras. A linha da frente norte está quase completa. Para a

semana, os Finlandeses já podem vir. - Sorrindo pretensiosamente: - Bem... sei que deves pensar porque não sou oficial como o Alexander.

Tatiana não disse nada. - Porque não me perguntaste? - Não sei. - O coração acelerou-se-lhe dentro do peito. - É quase como se já soubesses. - Não, não sei. — Apeteceu-lhe deitar fora o resto do gelado e correr para

casa. - Tens falado com o Alexander sobre mim? - Não - respondeu, muito tensa. - Então porque não me perguntaste por que razão sou só um frontovike ele

um oficial? Não tinha resposta. Aquilo era muito estúpido. Detestava mentir. Não dizer

nada, manter o rosto inexpressivo e desviar o olhar já era difícil que chegasse. Mas mentir descaradamente? Não tinha treino para isso nem na língua nem na garganta.

- Eu e o Alex tencionávamos ser os dois oficiais. Era o nosso plano original. - Que plano? Dimitri não respondeu e a pergunta de Tatiana pairou no ar e olojou-se-lhe na

cabeça. As mãos começaram a tremer-lhe ligeiramente. Não queria estar sozinha com Dimitri. Não se sentia segura.

Page 93: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

93

Chegaram à esquina da Suvorovsky com o Parque Tauride. Embora o sol ainda estivesse a trinta graus no céu, o parque encontrava-se às escuras debaixo das árvores.

- Queres passear um bocadinho nos jardins? - perguntou Dimitri. - Que horas são? -Não sei. - Sabes uma coisa? Tenho mesmo de voltar para casa - observou Tatiana. - Não tens nada. - Tenho, Dimitri. Os meus pais não estão habituados a que eu esteja fora até

tarde. Vão ficar preocupados. - Não vão. Gostam de mim. — Aproximando-se dela: - O teu pai gosta muito

de mim. Além disso, os teus pais andam inquietos de mais com o Pasha para repa¬rarem nas horas a que entras e sais — acrescentou.

Ela estacou e deu meia-volta: - Vou para casa. - E começou a afastar-se ao longo da Suvorovsky. Ele agarrou-lhe no braço. - Não vá embora, Tania. — Sem a largar, continuou: - Anda. Vamos sen¬tar-

nos ali naquele banco ao pé das árvores. - Dimitri - disse ela, sem se mexer —, não vou contigo para árvores

nenhu¬ma. Importas-te de me largar? - Anda comigo para junto das árvores. - Não! Dimitri, larga-me! Ele aproximou-se apertando-a com força, cravando-lhe os dedos na pele. - E se eu não te quiser largar, Tanechka? O que fãzes? Não se afastou dele. Dimitri passou-lhe o braço livre pela cintura e puxo-a

para si. Muito composta e sem medo, olhou-o bem de frente e inquiriu: - O que estás a fazer, Dima? Perdeste o juízo? - Perdi - respondeu, inclinando-se para a beijar. Com um gritinho, Tatiana

desviou-se e baixou o rosto. - Não! Larga-me, Dimitri. — Não levantou a cabeça. De repente, ele soltou-a. - Desculpa — disse com a voz a tremer. - Tenho de ir já para casa — declarou ela, caminhando o mais depressa que

podia. — Dima, é muito velho para mim. - Não, não sou. Por favor, só tenho vinte e três anos. - Não é isso que quero dizer. Sou muito nova para ti. Preciso de alguém que...

- parou a pensar - ...espere menos de mim - rematou. - Muito menos? - Que não espere nada. - Peço muita desculpa, Tania. Não queria assustar-te assim.

Page 94: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

94

- Tudo bem — retorquiu sem olhar para ele. — Não sou do tipo de ir para debaixo das árvores. — Contigo, pensou com o coração apertado, ao lembrar-se dos Jardins de Verão.

- Agora sei-o. Acho que é por isso que gosto muito de ti. Só que às vezes não sei como hei de comportar-me contigo.

- Tem respeito e sê paciente. - Está bem. Vou ser paciente como Job. — Inclinando-se para ela: — Porque,

Tanechka, não tenciono deixar-te. Ela continuou a subir apressadamente a Suvorovsky. - Espero que a Dasha goste do Alexander — disse Dimitri de repente. - E gosta. - Porque ele gosta muito dela. - Sim? — retorquiu Tatiana em voz fraca. — Como é que sabes? - Ele quase parou as suas anteriores atividades descontroladas e

extracurri¬culares. Mas não digas nada à Dasha, claro, que vai ficar magoada. Apeteceu-lhe dizer que não fazia ideia do que estava a falar, mas teve medo

de que ele lhe dissesse. Quando chegaram a casa, Dasha e Alexander encontravam-se sentados no

pequeno sofá do corredor, lendo um volume de contos de Zoshchenko e rindo. - Esse livro é meu — resmungou Tatiana com um ar amuado. Foi a única coisa

que conseguiu dizer. Por qualquer razão misteriosa, Dasha achou o fato muito divertido e até

Alexander sorriu. Ao passar por ele, Tatiana tropeçou-lhe nas pernas completa¬mente esticadas e de certeza que cairia de frente se ele não a agarrasse de imediato. Mas também a largou de imediato.

- Tania, o que é que tens no braço? — indagou Alexander. - O quê? Oh, não é nada. — Desculpando-se apressadamente por estar muito

cansada, despediu-se e desapareceu no quarto dos avós, onde se sentou entre o Deda e a Babushka no sofa, a ouvir rádio. Tagarelaram calmamente sobre Pasha e ela não tardou a sentir-se melhor.

Mais tarde, quando estava virada para a parede, ouviu Dasha sussurrar: - Tania? Tania? Tatiana virou-se para a irmã: - O que é? Estou cansada. Dasha beijou-a no ombro. - Tania, agora nunca falamos. O nosso Pasha partiu e nós nunca falamos. Tens

saudades dele, não tens? Não tarda nada está aqui. -Tenho saudades dele e tu andas ocupada. Amanhã falamos, Dashenka - Estou apaixonada, Tania! — cochichou. - Fico contente por ti - respondeu-lhe ela, virando-se para a parede. Dasha beijou a nuca da irmã: - Acho que agora é que é. A sério. Oh, Tanechka, não sei o que hei de fazer!

Page 95: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

95

- Já experimentaste dormir? - Não consigo pensar em mais nada. Ele põe-me doida. É tão... quente e frio!

Hoje estava bem, descontraído e divertido, mas há outros dias...não entendo. Tatiana não disse nada. - Sei que não posso esperar muito de uma vez. Já é um milagre ele estar

finalmente a aproximar-se. Só consegui que ele viesse aqui no domingo passado, quando apareceu com o Dima e contigo.

Apeteceu dizer-lhe que não fora ela que conseguira nada, mas claro que se calou.

- A cavalo dado não se olha o dente. Acho que gosta da nossa família. Sabias que é de Krasnodar? Não vai lá desde que entrou no Exército. Não tem irmãos nem irmãs. Nunca fala dos pais. E... não sei explicar. Tão calado! Não gosta muito de falar de si próprio. - Depois de uma pausa: — Mas pergunta-me coisas de mim.

- Oh? — Foi a única coisa que Tatiana conseguiu dizer. - Diz-me que gostaria que não houvesse guerra. - Todos gostaríamos que não houvesse guerra. - Mas parece uma esperança, não é? Como se fosse possível uma vida melhor

com ele quando a guerra acabar. Tania, gosta do Dimitri? - perguntou para o cabelo da irmã.

Teve de fazer um esforço para conseguir falar. - Gosto - murmurou. - Ele gosta mesmo de ti. - Não gosta nada. - Gosta, sim. Não percebes nada destas coisas. - Percebo e sei que não gosta. - Queres falar de alguma coisa comigo ou fazer-me alguma pergunta? -Não! -Tania, não devia ser assim tão acanhada — disse Dasha, aparentando

indiferença - Já tens dezessete anos. Não podias ser um bocadinho mais flexível? - Para com o Dimitrii? Nunca, Dasha. Nos minutos antes de adormecer, Tatiana compreendeu que tinha menos

medo do caráter intangível da guerra do que do tangível de um coração magoado.

Page 96: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

96

9

No sábado, foi a biblioteca pública de Leninegrado e requisitou um livro de frases russo/inglês. Já conhecia mais ou menos aquele alfabeto estranho, que aprendera na escola. Passou grande parte da tarde a tentar dizer em voz alta uma quantidade de frases ridículas. Os ths, ws e rs eram muito difíceis. A frase «The weather will be thunder and rain tomorrow» parecia feita de propósito para a atormentar. Mas conseguia dizer muito bem.

No domingo, quando Alexander apareceu, esteve a colar-lhes tiras de papel nas janelas para evitar que os vidros se partissem devido às ondas de choque que poderia haver se e quando Leninegrado fosse bombardeada.

- Todo mundo tem de colar tiras de papel nas janelas - explicou. — Em breve haverá patrulhas a percorrer a cidade para as verificar. Se os Alemães chegarem a Leninegrado, não encontraremos mais vidro em lado nenhum.

Os Metanov observavam-no muito interessados, enquanto a mãe ia fazendo comentários sobre a sua altura, o bom trabalho que estava a fazer, a firmeza das suas mãos e como se equilibrava bem em cima do parapeito. Depois, quis saber onde aprendera a fazer aquilo.

- Ora, ele está no Exército Vermelho, mãezinha! - respondeu Dasha com impaciência.

- No Exército Vermelho ensinaram-te a trepar para os parapeitos, Alexander? - perguntou Tatiana. - Oh, cala-te, Tania! — riu-se Dasha. Alexander também riu, mas não disse

«cala-te, Tania». - Que desenho é esse que fez nas nossas janelas? - indagou a mãe quando ele

saltou para o chão. Tatiana, Dasha, a mãe e a Babushka fitavam a forma do papel colado na

janela. Em lugar das cruzes que as mulheres já tinham visto noutras janelas de Leninegrado, o desenho de Alexander parecia uma árvore. Um tronco grosso, ligeiramente inclinado para um lado, com folhas alongadas, mais compridas em baixo e afuniladas em cima.

«Amanhã o tempo vai ser de trovoada e chuva.» Visto tratar-se de sons que também não existem em português, optou-se por deixar a frase no orignal. ( N. Da. T.)

- O que é aquilo, meu jovem? — inquiriu a Babushka com ar majestoso. - Aquilo, Anna Lvovna, é uma palmeira — anunciou ele. - Uma quê? - perguntou Dasha, muito perto dele. Porquê sempre tão perto? - Uma palmeira.

Page 97: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

97

Junto da porta, Tatiana observava-o sem pestanejar. - Uma palmeira? — Dasha parecia intrigada. - É uma árvore tropical das Américas e do Pacífico Sul. - Hum. Estranha escolha para as nossas janelas, não? — comentou a mãe. - É melhor do que as cruzinhas do costume — murmurou Tatiana. Alexander sorriu-lhe. E ela devolveu-lhe ligeiramente o sorriso. - Olhe, meu jovem, quando chegar a vez das minhas janelas, não se ponhaa

inventar. As cruzinhas chegam-me muito bem. Não preciso de palmeiras – resmungoua Babushka. '

Alexander e Dasha saíram juntos, deixando Tatiana com a família rezingonae exausta. A seguir, foi à biblioteca de Leninegrado, onde passou horas a articularsons ingleses para si própria. Parecia extremamente difícil ler, falar e escrever nestalíngua. Da próxima vez que estivesse com Alexander, pedir-lhe-ia para dizer umaspalavras em inglês. Só para saber que som tinham. Já estava a pensar na próximavez que estaria com ele, como se fosse uma certeza. Jurou a si própria dizer-lheque talvez fosse melhor ele não ir mais a Kirov. Nessa noite, prometeu-o deitadana cama, virada para a parede, tocando no velho papel de parede com os dedos,afagando-o para cima e para baixo e pensando: «Prometo, prometo, prometo.»Levou então a mão ao chão entre a cama e a parede e tocou no livro que ele lhedera, O Cavaleiro de Bronze. Se calhar seria melhor dizer-lho noutro dia. Depoisde o ouvir falar inglês, depois de conversar com ele sobre a guerra, depois...

Ouviu-se mais uma sirene. Dasha voltou para casa bem mais tarde, acordandoTatiana, cujos dedos permaneciam na parede, sua confidente.

Page 98: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

98

10

Na segunda-feira, Krasenko chamou-a ao seu gabinete e disse-lhe que, embora estivesse a fazer um bom trabalho nos lança-chamas, tinha de a transferir imediatamente para o departamento de produção de tanques, porque chegara de Moscovo a ordem para Kirov produzir cento e oitenta tanques por mês, independentemente da sua capacidade ou mão de obra.

- Quem vai fazer os lança-chamas? - Eles próprios – retorquiu Krasenko, acendendo um cigarro. – És uma boa

rapariga, Tania. Vai. Come uma sopa na cantina. - Acha que os Voluntários do Povo me aceitam? – perguntou-lhe ela. - Não! - Ouvi dizer que já foram quinze mil pessoas de Kirov trabalhar nas trincheiras

da linha de Luga. É verdade? - A verdade é que não podes ir. Agora põe-te a andar! - Luga está em perigo? – Pasha encontrava-se perto de Luga. - Não – replicou Krasenko. – Os Alemães ainda estão longe. É só uma

precaução. Agora vai! Na produção de tanques, havia muito mais pessoas e a cadeia de montagem

era mais complicada, mas Tatiana tinha menos que fazer exatamente por isso. O seu trabalho consistia em colocar os pistões nos cilindros que ficavam por baixo das câmaras de combustão do motos V-12 a diesel.

A oficina de montagem era do tamanho de um hangar de aviões, com o interior cinzento e escuro.

Ao fim do dia, o motor a diesel estava no seu lugar, as faces de rolamento nas rodas e a carroçaria completamente montada, mas não havia interior, instrumentos, painéis, armas, caixas de mísseis, lança-projéteis ou tejadilho; praticamente nada que fizesse daquela máquina mais do que um carro blindado. Mas ao contrário do que sentia ao embalar munições para armas pequenas, produzir lança-chamas ou olear bombas GP altamente explosivas, montar metade de um tanque deu a Tatiana uma satisfação como nunca tivera em todo o primeiro mês de trabalho a tempo inteiro. Sentia-se com se tivesse feito o KV-1 sozinha. Outro motivo para orgulho: à tarde, Krasenko dissera-lhe que nem passava pela cabeça dos Alemães que um tanque pudesse ser assim tão bem construído, bem armado, fácil, ágil, simples e no entanto com 45 mm de aço a toda a volta e equipado com uma metralhadora de 85 mm . Pensava que o seu Panzer IV era o melhor tanque que havia.

- Tania – disse-lhe -, fizeste um excelente trabalho no motor a diesel. Se calhar devias ser mecânica quando fores adulta.

Page 99: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

99

Às oito da noite, correu para a rua com as mãos lavadas, a gola direita e o cabelo penteado, sem acreditar bem que estava a correr ao fim de onze horas de trabalho, mas apesar de tudo correndo, cheia de medo de que Alexander não estivesse à sua espera.

Mas estava. Esperava por ela, mas não sorria. Sem fôlego, Tatiana tentou recuperar a compostura. Estava sozinha com ele

pela primeira vez desde a última sexta-feira, sozinha num mar de estranhos. Apetecia-lhe dizer: «Estou tão contente por teres vindo!» Que teria acontecido à promessa: «Não voltes a aparecer...?»

Alguém gritou o seu nome e virou-se, relutante. Era Ilya, um rapaz de dezesseis anos que trabalhava com ela na cadeia de montagem dos tanques.

- Vais apanhar o autocarro? – perguntou, olhando de relance para Alexander, que não disse nada.

- Não, Ilya, mas vemo-nos amanhã. – Fez sinal a Alexander para que atravessasse a rua.

- Quem era? – indagou ele. - Tatiana olhou-o com uma expressão intrigada: - Quem? Oh, um rapaz com quem trabalho. - Ele anda a incomodar-te? - O quê? Não, não. – Na realidade, Ilya andava a incomodá-la um bocadinho. –

Comecei a trabalhar noutro departamento. Estamos a construir tanques para enviar para a linha Luga – explicou, orgulhosa.

Ele assentiu: - A que ritmo? - No meu departamento fazemos um de dois em dois dias – retorquiu ela. – É

bom, não é? - Para ajudar na linha de Luga, terão de construir dez por dia. Detectando qualquer coisa na sua voz, Tatiana ergueu o olhar e tentou

perceber, mas não conseguiu. - Está tudo bem? - Está. Calou-se a pensar. - Que se passa? - Nada. Junto da paragem do elétrico, as pessoas fumavam, caladas. Ninguém falava

com ninguém. - Queres ir a pé? – perguntou ela timidamente. Alexander abanou a cabeça: - Passei o dia todo em exercícios militares. Tocando-lhe com os dedos, Tatiana disse em ar de brincadeira: - Pensei que era isso que fazias sempre.

Page 100: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

100

- Eu não, eles. Manobras, tiro, mais abrigos antiaéreos. – Parecia desanimado. Já lhe conhecia assim tão bem os matizes da voz? Do rosto?

- Que se passa? – perguntou de novo. - Nada – repetiu ele. Mas depois pegou-lhe no braço e arregaçou-lhe a manga,

pondo a descoberto as nódoas negras. – Tania, o que é isso? - Ah! Nada. – Tentou retirar o braço mas ele, muito perto dela, não a largou. –

A sério que não é nada. – Incapaz de erguer o rosto para ele: - Vai lá. Estou bem. - Não acredito. Eu disse-te para não te meteres com o Dimitri. - Não ando a meter-me com ele. Olharam um para o outro. Depois, Tatiana fitou-lhe os botões da farda. - Não é nada, Alexander. É qie ele estava a tentar convencer-me a sentar-me

com ele. - Quero que me digas se ele tornar a agarrar-te desta maneira, ouviste? –

disse ele, largando-a. Tatiana não queria que seus dedos ternos e firmes a soltassem. - O Dima é bom rapaz. Só que está habituado a outro tipo de raparigas. –

Tossindo: - E quem não está? Olha, eu tratei do assunto e tenho a certeza de que não voltará a acontecer.

- Ai é? Assim como trataste de falar do Pasha à tua família? Ao princípio, não respondeu, mas depois replicou: - Eu disse-te que ia ser difícil. Se nem consegues levar a minha irmã de vinte e

quatro anos a fazê-lo! Porque não tentas tu? Aparece para jantar uma noite destas, bebe uma vodca com o paizinho e traz o assunto à baila. Vê como eles aceitam as coisas. Mostra-me como se faz, porque eu não sei.

- Não consegues falar com a tua família sobre o teu irmão e queres convencer-me de que sabes enfrentar o Dimitri?

- Isso mesmo – retorquiu ela erguendo um tanto a voz e pensando tristemente: «estamos a discutir? Porquê?»

Tinham lugar para se sentar no elétrico. Tatiana segurou-se ao banco da frente. Alexander tinha as mãos juntas no regaço. Estava calado e não olhava para ela. Havia qualquer coisa que continuava a preocupa-lo. Seria Dimitri? Mesmo assim seguiam juntos, com os braços e as pernas encostados um ao outro. A perna dele parecia de mármore. Tatiana não afastou o corpo: como se pudesse, como se tivesse escolha... Ele enfeitiçava-a.

Tentando diminuir a tensão, começou a falar da guerra: - Onde é a frente agora, Alexander? - Está a deslocar-se para norte. - Mas ainda está longe, não é? Longe de... Ele não olhou para ela: - Apesar das nossas fanfarronices militares, somos um país de civis –

resmungou. – As nossas manobras disparatadas, os nossos exercícios, os nossos

Page 101: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

101

aviões em terra, os nossos tanques patéticos... Não sabíamos com quem estávamos a meter-nos.

Ela apertou-se ligeiramente contra ele, absorvendo-o através da pele. - Alexander, porque parece o Dimitri tão relutante em ir combater? Afinal de

contas, é para correr com os Alemães do nosso país. - Ele quer lá saber dos Alemães! Só quer saber de uma coisa... – Calou-se. Tatiana ficou à espera. - Sabes, Tania, o Dimitri considera a autoconservação um direito inalienável. Ela mirou-o: - O que é... inalienável? - Um direito que ninguém pode pôr em causa – explicou ele, sorrindo. Tatiana pensou por um momento. - Quem diz? Temos esse tipo de direito? Não é geralmente reservado ao

Estado? - Temos? Onde? - Aqui. – Baixando a voz: - Na União Soviética. - Não , Tania, não temos. Aqui é mesmo reservado ao Estado. – Depois de

uma pausa: - E ao Dimitri. Especialmente a autoconservação. - Inalienável. Nunca tinha ouvido essa palavra – observou ela, pensativa. - É natural. – Com as feições do rosto mais suavizadas: - Como foi o resto do

teu domingo? O que fizeste? Como está a tua mão? Parece-me prestes a ir-se abaixo sempre que a vejo.

- É, andamos muito preocupados com a mãezinha. – Virou-se para a janela. Não queria falar outra vez de Pasha. – Sabes o que fiz ontem? Aprendi algumas palavras inglesas. Queres ouvir?

- Vamos sair. Depois quero, muito. Boas palavras? Não sabia bem o que ele queria dizer, mas mesmo assim corou. Saíram do elétrico. Ao passarem pela Estação de Varsóvia, Tatiana viu um

amontoado de gente: mulheres com filhos e velhos cheios de malas, esperando em desordem.

- De que estão à espera? – perguntou. - De um comboio. Eles é que são espertos. Vão-se embora desta cidade. - Embora? - Sim. – Calou-se. – Tania... devias fazer o mesmo. - Embora para onde? - Para qualquer lado. Para longe daqui. Porque seria que há uma semana a evacuação lhe parecia tão entusiasmante

e agora era como uma condenação à morte? Não era evacuação. Era exílio. - Segundo ouço dizer – continuou Alexander -, estamos a ser derrotados pelos

Alemães. Trucidados. Não temos preparação nem equipamento, tanques ou armas. - Não te preocupes – disse Tatiana com uma frivolidade fingida. – Amanhã já

teremos um tanque.

Page 102: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

102

- Apesar dos comunicados animadores da rádio, não temos nada a não ser homens, Tania.

- E realmente são bastante animadores – observou ela, tentando também parecer animada... mas sem conseguir.

- Tania? - Sim? - Estás a ouvir? É possível que os Alemães venham a caminho de Leninegrado.

Não é seguro. Tens de partir. - Mas a minha família não arreda pé! - Então parte sem eles. - Que conversa é essa, Alexander? – exclamou Tatiana, rindo. – Nunca na

minha vida estive sozinha em lado nenhum! Quase nem vou às compras sozinha! Não posso. E para onde? Para os Urais ou algum sítio desses para onde levam as pessoas evacuadas? É para lá que queres que eu vá? Ou para a América, a tua terra? Estarei segura lá? – Soltou uma risadinha. Era um disparate.

- Se fosses para a minha terra, podes ter a certeza de que estarias em segurança – retorquiu Alexander de modo severo.

Quando chegou a casa nessa noite, conversou com o pai sobre Pasha e a evacuação.

O pai ouviu-a o tempo suficiente para puxar três baforadas do cigarro. Tatiana contou-as. Depois levantou-se, apagando o cigarro para acentuar as suas palavras:

- Tanyusha, onde raio foste buscar essas ideias? Os Alemães não vêm para cá e eu não saio daqui. O Pasha está em segurança, tenho certeza. Olha, se ficas mais descansada, amanhã a mãezinha telefona-lhe para saber se está tudo bem. Pode ser?

- Tania, pedi para ser evacuado para o Oblast Molotov, a leste, perto dos Urais 0 disse o Deda. – Tenho um primo em Molotov.

- Que morreu há dez anos, Vassili – interrompeu a Babushka, abanando a cabeça. – Durante a fome de 1931.

- A mulher ainda vive lá. - Morreu de desinteria em 1928. - Isso foi a segunda mulher. A primeira, Naira Mikhailovna, ainda vive lá. - Em Molotov não. Não te lembra? Vive onde dantes vivíamos, naquela aldeia

chamada... - Mulher! Atirou-lhe o Deda. – Queres vir comigo ou não? - Eu vou consigo, Deda! Afirmou Tatiana com vivacidade. – Molotov é bonito? - Eu também vou, Vassili – disse a Babushka -, mas deixa de fingir que temos

parentes em Molotov. Tanto faz irmos para Molotov como para Chukhotka. - Chukhotka? – interveio Tatiana. – Isso não fica perto do Círculo Polar Ártico? - Fica – assentiu o Deda - E o estreito de Bering? - Sim – anuiu ele outra vez.

Page 103: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

103

Então, já que temos de ir para algum lado, se calhar devíamos ir mesmo para Chukhotka.

- Chukhotka? E pensas que me deixam ir? – inquiriu o Deda. – Acho que posso dar aulas de matemática lá?

- A Tania é tola – concordou a mãe. Tatiana calou-se. Não estava a pensar se o Deda podia ou não ensinar

matemática. Tivera uma ideia ridícula. Tão disparatada que desataria a rir se não tivesse À frente a sua severa família.

- Porque estás a pensar no estreito de Bering, Tania? – perguntou o Deda. - Por que pensa sempre coisas descabidas – intrometeu-se Dasha. – Tem uma

vida interior descabida. - Eu não tenho vida interior, Dasha. O que fica do outro lado do estreito de

Bering? - Ora, o Alasca! – respondeu o Deda. – O que tem isso a ver com o assunto? - Tania, vê se te calas, está bem? – observou a mãe. Na noite seguinte, o pai de Tatiana trouxe cadernetas com senhas de

racionamento quando voltou para casa. - Acreditam? Já há racionamento. Bem, nós cá nos arranjaremos. Até nem é

mau. – Os trabalhadores recebiam oitocentos gramas de pão por dia, mais meio quilo de carne e meio quilo de cereais por semana. Parecia muita comida.

- Mãezinha, tentou telefonar ao Pasha? – quis saber Tatiana. - Tentei. Até fui ao escritório das comunicações interurbanas da Ulitsa

Zhelybova. Mas não consegui. Amanhã tento outra vez. As informações da frente não pressagiavam nada de bom. Os boletins de

guerra, afixados por toda a cidade de Lenigrado nos painéis de madeira onde dantes se expunham os jornais diários, eram tão vagos que até pareciam fantasmagóricos. O locutor da rádio dizia que o Exército Vermelho estava a ganhar mas que as forças alemães conquistavam algum terreno.

«Como é que o Exército Vermelho pode estar a ganhar se as forças alemães conquistam terreno?» pensava Tatiana.

Uns dias mais tarde, o Deda anunciou que tinha grandes probabilidades de conseguir o tal posto de evacuação em Molotov e sugeriu que a família começasse a pensar em fazer as malas.

- Não vou para lado nenhum sem o Pasha – atirou a mãe. – Além disso, estamos a fazer fardas para o Exército Vermelho na fábrica de uniformes – continuou em voz mais calma. – Precisam de mim para o esforço de guerra. – Assentindo: - Mas não faz mal. A guerra acaba daqui a pouco. Não ouviram na rádio? O Exército Vermelho está a ganhar e a expulsar o inimigo.

O Deda abanou a cabeça: - Oh, Irina Fedorovna – replicou calmamente -, o inimigo é o exército mais

bem treinado e armado do mundo! Não sabe que a Inglaterra o combate há dezoito meses? Sozinha. A Inglaterra, com a sua RAF, ainda não derrotou o inimigo.

Page 104: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

104

- Mas Papochka, agora os nazis estão a travar uma guerra a sério e não apenas combates aéreos – interveio o pai, saindo em defesa da mulher. – A frente soviética é impressionante. As coisas não vão ser nada fáceis para os Alemães.

- Pois eu insisto que não fiquemos para ver se são fáceis ou difíceis. - Eu não saio daqui – repetiu a mãe. - Estou com a mãezinha – disse Dasha. «Aposto que estás», pensou Tatiana. Como não estava presente, Pasha não se pronunciou. Encontravam-se todos sentados no quarto comprido e estreito. O pai e a mãe

fumavam, a Babushka e o Deda abanavam silenciosamente as cabeças grisalhas e Dasha costurava.

Tatiana calava-se, pensando: «Eu também não saio daqui.» Estava entrincheirada. Cavara à sua volta uma trincheira chamada Alexander,

e não podia partir. Vivia para aquela hora do fim da tarde com ele, que a projetava rumo ao futuro e aos sentimentos ainda informes e dolorosos que não conseguia exprimir nem compreender. Amigos passeando no crepúsculo luminoso. Não podia ter mais nada nem desejava mais nada a não ser aquela hora ao fim de um longo dia, quando o coração lhe batia, a respiração se lhe acelerava e se sentia feliz.

Em casa, rodeava-se da família para se proteger, mas ao mesmo tempo afastava-se. Observava-a como agora, tentava perceber-lhe o estado de espírito e não confiava nele.

- Mãezinha, telefonou ao Pasha? - Telefonei. Consegui ligação, mas ninguém atendeu. Não houve resposta do

acampamento. Se calhar enganei-me no número. Liguei para Dohotino, a aldeia onde fica o acampamento, mas também não obtive resposta da junta soviética. Amanhã tento outra vez. Toda a gente está a fazer o mesmo. As linhas devem estar sobrecarregadas.

A mãe tentou uma e outra vez, mas em vão. As notícias da frente não eram boas e não se sabia nada da evacuação.

À noite, Alexander mantinha-se longe do apartamento. Dasha trabalhava até tarde. Dimitri encontrava-se perto da Finlândia.

Tatiana penteava-se todos os dias depois do trabalho e corria para a rua, pensando: «Por favor, está lá!» E todos os dias Alexander estava. Embora já não a convidassem para irem aos Jardins de Verão nem lhe sugerisse que se sentassem no banco debaixo das árvores, tinha o boné sempre na mão.

Exaustos e vagarosos, vagueavam do elétrico para o canal e novamente para o elétrico, despedindo-se com relutância na Grechesky Prospekt, a três quarteirões do prédio dela.

Durante as suas caminhadas, falavam da América de Alexander ou da sua vida em Moscovo, do lago Ilmen e dos verões que Tatiana passava em Luga. Umas vezes ele ensinava-lhe inglês, outras conversavam sobre a guerra, mas cada vez menos por causa da ansiedade com Pasha. Ora contava anedotas, ora mal falavam um com o

Page 105: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

105

outro. Às vezes Alexander deixava Tatiana usar a espingarda como vara de equilíbrio enquanto percorria um muro alto do lado do canal Obvodnoy.

- Não caias à água, Tania – disse uma vez. – Olha que não sei nadar. - A sério? – perguntou ela, incrédula, quase caindo. Agarrando na ponta da espingarda para equilibrar, respondeu com um sorriso

aberto: - Mas não vamos tentar descobrir, sim? Não quero ficar sem a arma. - Está bem – retorquiu ela, baloiçando precariamente em cima do muro e

rindo: - Sei nadar muito bem. Eu salvo-te a arma. Queres ver? - Não, obrigado. E às vezes, quando Alexander falava, Tatiana dava consigo de boca aberta e

ficava de repente pouco À vontade ao perceber que o observava tão fixamente que o queixo lhe descaíra. Não sabia para onde havia de olhar quando ele falava: se para os olhos cor de caramelo que pestanejavam, sorriam, brilhavam e ficavam sérios, se para a boca enérgica que se mexia, abria, respirava e falava. As pupilas dardejavam-lhe dos olhos para os lábios dele e passeavam-lhe do cabelo para o queixo, como se tivessem medo de perder alguma coisa se não abarcassem tudo de uma vez.

Havia fragmentos da sua vida fascinante de que Alexander não gostava de falar, como por exemplo da última vez que vira o pai, do que fizera para passar a ser Alexander Belov ou da medalha que recebera. Tatiana não se importava e só insistia delicadamente. Aceitaria o que ele quisesse dar-lhe e esperaria pacientemente pelo resto.

Page 106: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

106

11

- Os meus dias são tão longos! – disse-lhe Tatiana numa sexta-feira À noite, esboçando o sorriso cansado de quem trabalhou arduamente durante doze horas. – Hoje fiz-te um tanque inteiro, Alexander! Com uma estrela vermelha e o número 36. Sabes manobrar um tanque?

- Melhor do que isso. Sei comandar um tanque. - Qual a diferença? - Não faço nada a não ser gritar ordens e ser morto. Tatiana não lhe devolveu o sorriso: - E isso é melhor? – murmurou. – Quero ser transferida para a unidade da

padaria. Há pessoas com sorte que fazem pão em vez de tanques. - Quanto mais melhor – comentou Alexander. - Tanques? - Pão. - Prometeram-nos um bônus... acreditas?... se ultrapassarmos a nossa quota

na produção de tanques. Um bônus! – Soltando uma risadinha: - A economia do lucro durante a guerra. É estranho que queiramos trabalhar mais por um punhado de rublos: vai contra tudo o que nos ensinam desde que nascemos... mas é verdade.

- Pois, é verdade, Tania. Mas não te preocupes que eles hão de continuar a reeducar-te até não quereres trabalhar mais nem por um punhado de rublos de gratificação.

- Deixa de ser subversivo. – Sorrindo: - Não admira que não estejas seguro. Em qualquer caso, isto tudo quase matou a Zina, que se ofereceu como voluntária e disse que nada podia ser pior do que esta pressão.

Alexander ficou pensativo. O passeio era largo, mas caminhavam muito juntos, com os braços batendo um no outro.

- A Zina tem razão – disse finalmente. – Não cometas erros. Sabes a história do Karl Ots?

- De quem? - Era o diretor da fábrica de Kirov, quando ainda se chamava Oficinas Putilov.

Karl Martovich Ots. Depois do assassinato de Kirov, em 1934, Ots tentou manter a ordem e proteger os seus trabalhadores da ameaça da... retaliação, à falta de palavra melhor.

Tatiana ouvira o pai e o avô dizerem qualquer coisa de Sergei Kirov. - Prisão? Morte? – indagou. Alexander assentiu:

Page 107: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

107

- Sim. Um dia, durante a inspeção de um tanque T-28, detectou-se a falta de um parafuso. O tanque estava pronto para ser entregue ao Exército. Claro que houve logo um escândalo e uma busca frenética dos «sabotadores inimigos». – Alexander inspirou. Tatiana esperava. Quando pararam num cruzamento, continuou: - O Ots sabia que fora apenas um erro estúpido, uma distração do mecânico, que se esquecera de apertar o parafuso. E como sabia , recusou-se a autorizar uma caça às bruxas.

- Deixa-me adivinhar. Não conseguiu. - Foi como olhar para um furacão e dizer: «Mas é só vento!» - Um furacão?- repetiu ela, intrigada. - Centenas de pessoas desapareceram da fábrica. Tatiana baixou a cabeça: - O Ots? - Hum. Juntamente com ele desapareceram o seu competente sucessor e os

chefes do departamento de contabilidade, das unidades de produção de tanques, do departamento de pessoal e da oficina de máquinas, isso para não falar dos antigos funcionários da fábrica Putilov que tinham ido ocupar posições elevadas no Governo, como o secretário do Partido de Novosibirsk, o secretário do Partido da região do Neva... oh, e não nos esqueçamos do presidente da Câmara de Leninegrado, que também desapareceu.

O semáforo passou a verde, a vermelho e novamente a verde. Quando a luz vermelha se acendeu, atravessaram a rua já sem se tocarem. Tatiana seguia profundamente pensativa. Por fim, disse:

- Portanto, estás a avisar-me para ter cuidado com os parafusos? - Isso mesmo. - A Zina tem razão. Só nos faltava esse tipo de pressão. Anda esgotada. Só

quer ir para Minsk ter com a irmã. – Minsk era a capital da Bielorrússsia. Alexander esfregou os olhos e endireitou o boné: - Diz-lhe que esqueça Minsk e que se concentre nos tanques – observou com

voz tensa. – Quantos é suposto fazerem por mês? - Cento e oitenta. Estamos mesmo no limite. - Andam a exigir-vos de mais. - Espera lá. – Pousou-lhe a mão no braço e, surpreendida com a sua ousadia,

retirou-a. – Porquê esquecer Minsk? - Minsk caiu nas mãos dos Alemães há treze dias – declarou Alexander

gravemente. - O quê? - É verdade. - Há treze dias? Não, não. – Abanando a cabeça: - Não, Alexander, não pode

ser. Minsk fica só uns quilômetros a sul de... – Não conseguia dizê-lo. - Só a uns quilômetros não, Tania. Muitos – corrigiu ele, tentando tranquiliza-

la. – Centenas de quilômetros.

Page 108: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

108

- Não, Alexander. – Sentia as pernas a dobrarem-se-lhe. – Não são assim tantos. Porque não me disseste?

- São informações confidenciais do Exército! Digo-te o que posso, mas mais nada. Espero sempre que ouças alguma coisa parecida com a verdade na rádio. Quando sei que não, conto-te um bocadinho mais. Minsk caiu após seis dias de guerra.. Até o camarada Estaline ficou surpreendido.

- Porque não nos disse isso quando nos falamos a semana passada? - Chamou-vos irmãos e irmãs, não foi? Queria que todos se erguessem

prontos para lutar. De que serviria revelar-vos o avanço dos Alemães na União Soviética?

- E qual é ele? Como Alexander não respondeu, Tatiana perguntou em tom desanimado, mal

conseguindo pronunciar as palavras: - E o nosso Pasha? - Tania! – exclamou ele em voz alta. – Não percebo o que queres que eu faça.

Desde o primeiro dia que venho a dizer-te que o tirem de Tolmachevo! Tatiana virou a cara e esforçou-se por não chorar. Não queria que ele visse. - Ainda não estão em Luga – continuou Alexander, mais calmo. – Ainda não

chegaram a Tolmachevo. Tenta não te preocupares. Mas vou só dizer-te que no primeiro dia de guerra perdemos mil e duzentos aviões.

- Nem sabia que tínhamos mil e duzentos aviões. - Mais ou menos. - O que vamos fazer? - Vamos? – repetiu Alexander, fitando-a e fazendo uma pausa. Já te disse,

Tania. Sai de Leninegrado. - E eu já te disse que a minha família não sai sem o Pasha. Alexander não disse nada. Continuaram a caminhar. - Estás cansada?- perguntou baixinho. – Queres ir para casa? «Estou cansada, mas não quero ir para casa.» Permaneceu em silêncio. - Queres ir até à ponte do Palácio? Parece-me que há uma loja perto do rio

onde ainda se vendem gelados. Depois de comerem um gelado, Alexander e Tatiana caminhavam ao longo do

Neva em direção ao Poente, atravessando o esplendor verde e branco do Palácio de Inverno, quando a rapariga estacou, observando um homem do outro lado da rua.

À entrada do Ermitage encontrava-se um homem alto e magro, de meia-idade, com uma grande barba grisalha e uma expressão de profunda tristeza.

Tatiana reagiu instantaneamente ao seu aspecto. Que poderia levar um homem a ter semelhante expressão? De pé junto da traseira de um camião militar, vigiava uns jovens que transportavam caixotes de madeira pela rampa que descia do Palácio de Inverno. Era estes caixotes que o homem contemplava com o profundo desânimo de quem vê desaparecer o primeiro amor.

Page 109: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

109

- Quem é? – perguntou, fortemente impressionada com a sua expressão. - O conservador do Ermitage. - Porque está a olhar assim para os caixotes? - São a única paixão da sua vida – explicou Alexander. – E não voltará a vê-os. Tatiana examinou o homem. Quase lhe apetecia ir consolá-lo. - Devia ter mais fé, não achas? - Concordo, Tania. – Sorrindo: - Devia ter um bocadinho mais de fé. Quando a

guerra acabar, verá de novo os seus caixotes. - Pela maneira como olha para eles – acrescentou Tatiana -, quando a guerra

acabar vai trazê-los outra vez à mão. – Quatro camiões blindados cinzentos esperavam estacionados à entrada do museu. – Que se passará?

Alexander não respondeu, mas impediu-a de continuar a andar e fez-lhe sinal para que desse atenção a outros quatro homens que saíram das grandes portas verdes, transportando pela rampa mais caixotes de madeira cheio de furos.

- Quadros? Ele assentiu. -Quatro camiões de quadros? - E tenho a certeza de que é só uma pequena parte. - Alexander, porque estão a tirar os quadros do Ermitage? - Porque estamos em guerra. - E por isso tiram as obras de arte? – inquiriu Tatiana com indignação. - Tiram. - Se os preocupa tanto que Hitler possa chegar a Leninegrado, porque não

tiram as pessoas daqui? Alexander sorriu-lhe e ela quase se esqueceu do que perguntara. - Se as pessoas forem embora, quem ficará para combater os nazis? Os

quadros não podem lutar por Leninegrado. - Espera lá! Ninguém nos treinou para combater. - Mas treinaram-nos a nós. É por isso que estou aqui. Temos milhares de

soldados. Ergueremos barricadas e lutaremos. Primeiro, mandaremos os frontovik... - O Dimitri? - Sim... para as ruas com uma arma. Quando ele morrer, irei eu com um

tanque, como os que andas a fazer. Quando eu morrer e as barricadas estiverem destruídas e as armas e os tanques já não existirem, irás tu com um pedra.

- E quando eu morrer? – perguntou Tatiana. - Tu estarás na última linha de defesa. Quando morreres, Hitler entrará em

Leninegrado como entrou em Paris. - Não é justo. Os franceses não lutaram – disse ela, com vontade de estar em

qualquer lugar menos à frente dos homens que carregavam as obras de arte de Ermitage para dentro de camiões blindados.

- Eles não lutaram, mas tu lutarás. Por cada rua e cada edifício. E quando perderes...

Page 110: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

110

- A arte permanecerá. - Sim! A arte permanecerá – continuou Alexander, comovido. – E um outro

artista pintará um quadro glorioso, imortalizando-te com uma pedra na mão, lançando-a ao tanque alemão que te vai esmagar, tendo como pano de fundo a estátua de Pedro, o Grande, montado no seu cavalo de bronze. O quadro será pendurado no Ermitage, e no início da próxima guerra o conservador virá outra vez para a rua chorar os seus caixotes.

Tatiana viu os homens desaparecerem atrás das portas verdes e voltarem com mais caixotes passado pouco tempo

- Fazes parecer tudo muito romântico. Como se valesse a pena morrer por Leninegrado.

- E não vale? - Se calhar não é assim tão mau ser nazi. – Esticando o braço direito para a

frente: - Podemos saudar o Führer. De qualquer maneira, já saudamos o camarada Estaline. – Baixou o braço em saudação. – Não teremos liberdade e seremos todos escravos. E depois? Teremos comida e a vida. Uma vida livre é melhor, mas qualquer vida é melhor do que vida nenhuma.

Ele fitava-a sem responder. - Não podemos viajar para outros países – continuou ela. – Mas agora

também não podemos. Assim como assim, quem quer ir aos bairros degradados do mundo livre ocidental, onde as pessoas se matam por cinquenta... quê?... cêntimos? Não é o que nos ensinam nas escolas soviéticas? – Perscrutou os olhos dele. – Sabes, se calhar preferiria morrer à frente do Cavaleiro de Bronze com uma pedra na mão para que outros tivessem a vida livre que nem sequer imagino.

- Sim, acredito. – Num gesto simultaneamente desesperado e terno, Alexander pousou a palma da mão na pele nua de Tatiana, mesmo por baixo do pescoço. Tinha a mão tão grande que lhe ia da clavícula à parte de cima do busto. O coração quase lhe voou de dentro do peito para a mão dele.

Ergueu o rosto indefeso e viu-o curvar-se para ela. Nesse momento, um guarda fardado avançou até à curva do passeio e gritou:

- A circular! A circular! O que é que estão aí a olhar de boca aberta? Não há nada para ver. Chega! Já viram tudo. A circular!

Alexander retirou a mão, virou-se e lançou um olhar furioso ao guarda, que recuou resmungando que os oficiais do Exército Vermelho tinham tanto de obedecer à lei como os outros.

Quando se despediram uns minutos depois, não falaram do que acontecera. Tatiana não foi capaz de erguer o rosto para Alexander, o que de resto não fez mal, porque ele também não olhou para ela.

Em casa, o jantar era batatas frias e cebolas fritas frias. A jovem comeu depressa e subiu ao telhado, onde se sentou a examinar o céu, em busca de aviões inimigos, que no entanto bem poderiam ter arrasado toda a cidade sem ela dar por isso, pois a única coisa que via à frente eram os olhos apaixonados de Alexander e

Page 111: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

111

tudo o que sentia era a sua mão apaixonada no coração que lhe batia desenfreadamente dentro do peito.

Algures (em algum lugar) durante essas semanas, perdeu a inocência. A inocência da honestidade desapareceu para sempre, pois sabia que teria de viver uma mentira. Todos, todos os dias, num espaço exíguo, na mesma cama... à noite, sempre que tocava no pé de Dasha, sabia que viveria na mentira. Porque ela gostava dele.

Mas o que Tatiana sentia por Alexander era sério. As picadas dos remorsos não penetravam no que sentia por ele. «Oh, passear nas noites brancas de Leninegrado, noite após noite, enquanto a

madrugada e o crepúsculo se fundem em platina», pensava Tatiana virando-se para a parede, outra vez para a parede, para a parede como sempre. «Alexander, meus dias, minhas noites, cada pensamento meu. Afastar-te-ás de mim um dia e voltarei a ser eu. Seguirei em frente e apaixonar-me-ei por alguém, como toda a gente. Mas a minha inocência desapareceu para sempre.»

Page 112: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

112

12

Dois dias mais tarde, no segundo domingo de julho, Alexander e Dimitri foram buscar Tatiana e Dasha vestidos à paisana. Alexander envergava umas calças de linho preto e uma camisa de manga curta de algodão branco. Como nunca lhe aparecera de manga curta, até o momento Tatiana só lhe vira a pele do rosto e das mãos. Tinha os braços musculosos e bronzeados e a face barbeada. Também nunca o vira acabado de barbear. À noitinha, a barba já estava sempre a despontar-lhe. Com o coração aos saltos, pensou que ele estava tão bonito que até parecia impossível.

- Onde querem ir, meninas? Vamos a um sítio especial – propôs Dimitri. – A Peterhof.

Arranjaram um farnel e foram apanhar o comboio à Estação de Varsóvia. Peterhof ficava a uma hora de comboio. Percorreram um quarteirão ao longo do canal Obvodnoy, onde Tatiana e Alexander passeavam todos os dias. A rapariga seguia em silêncio. Uma vez, ao saltar do passeio estreito e ao avançar com Dasha, o braço nu de Alexander roçou o seu braço nu.

No comboio, Dasha insistiu: - Tania, diz ao Dima e ao Alex como chamas a Peterhof. Diz-lhes. Tatiana emergiu dos seus pensamentos: - O quê? Oh! Chamo-lhe a Versalhes da União Soviética. - Quando a Tania era pequena, queria ser rainha e viver no Grande Palácio,

não era, Tanechka? – perguntou Dasha. - Hum. - Como é que os miúdos de Luga te chamavam? - Não me lembro, Dasha. - Era uma coisa muito engraçada. A rainha de... a rainha de... Tatiana lançou um olhar a Alexander, que também a observou de relance. - Tania, qual seria oo teu primeiro ato enquanto rainha? - Devolver a paz à monarquia... e depois decapitar os transgressores. Todos riram. - Senti muito a tua falta, Tania – disse Dimitri. Alexander parou de rir e pôs-se

a olhar pela janela. Tatiana imitou-o. Estavam sentados na diagonal, em bancos de frente um para o outro.

Tocando-lhe no rabo de cavalo muito bem penteado, Dimitri observou: - Porque é que nunca soltas o cabelo, Tania? Vi-o uma vez solto e ficava-te tão

bem! Dasha replicou com indiferença:

Page 113: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

113

- Nem vale a pena falar nisso, Dima, porque ela é extremamente teimosa. Fartamo-nos de lhe dizer a mesma coisa: «Para que o tens tão comprido se andas com ele sempre preso?» Mas não. Nunca o usa solto, pois não, Tania?

- Não Dasha – replicou ela, desejando ter ali a sua parede ou qualquer coisa que lhe escondesse o rosto corado dos olhos redondos e silenciosos de Alexander.

- Solta-o agora, Tanechka – pediu Dimitri. – Vá lá. Tatiana tirou lentamente o elástico do cabelo, virou-se para a janela e

permaneceu silenciosa até chegarem ao seu destino. Uma vez em Peterhof, em lugar de fazerem uma visita guiada, vaguearam em

volta do palácio e dos Jardins Elíseos, encontrando finalmente um sítio recolhido na relva, debaixo das árvores, perto da Grande Cascata, onde fizeram o seu piquenique.

Comeram com gosto o almoço composto de ovos cozidos, pão e queijo. Dasha tinha levado vodca, que ela, Alexander e Dimitri beberam da garrafa. Tatiana recusou. Depois, toda a gente fumou exceto ela.

- Tania, tu não fumas, não bebes... Que é que fazes? – indagou Dimitri. - Rodas? – exclamou Dasha. – Não é, Tania? Em Luga, a Tania ensinava todos

os rapazes a fazer piruetas. - Todos os rapazes? – inquiriu Alexander. - Então havia rapazes em Luga? Perguntou Dimitri. - Como moscas à volta da Tania. - Mas que conversa é essa, Dasha? – Tatiana sentiu-se subitamente

embaraçada e fez um esforço para evitar os olhos de Alexander. Dasha deu-lhe um beliscão na coxa: - Conta lá como aqueles monstrinhos nunca te deixavam em paz. – Rindo: -

Eras como mel para os ursos. - Conta lá, Tania! – insistiu Dimitri. Alexander não disse nada. Tatiana estava vermelha como um tomate: - Dasha, eu devia ter sete anos. E também havia raparigas no grupo. - Sim, mas não te largavam – prosseguiu Dasha, olhando orgulhosamente para

a irmã. – A nossa Tania era um amor. Tinha os olhos muito redondos, umas sardas pequeninas e o cabelo mais do que louro, quase branco. Era como uma bola de sol branca rolando por Luga. As velhinhas adoravam-na.

- Só as velhinhas?- perguntou Alexander em voz monocórdica. - Faz uma roda, Tania! – pediu Dimitri pousando-lhe a mão nas costas. –

Mostra-nos de que é capaz. - Sim, Tania! – insistiu Dasha. – Vá lá! Este sítio é perfeito, não te parece? Aqui

à frente de um palácio magnífico, com fontes, relvados, gardênias a desabrochar... - Alemães em Minsk – rematou Tatiana, tentando não olhar para Alexander,

deitado de lado, com o braço apoiado no cotovelo. Parecia tão descontraído, tão familiar, tão...

E ao mesmo tempo intocável, inatingível.

Page 114: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

114

- Deixa lá os Alemães. Este lugar é bom é para amar. Era o que Tatiana temia. - Vá, Tania. – Alexander sentou-se direito e cruzou as pernas. – Mostra lá

essas famosas rodas. – Acendeu um cigarro. Dasha fez-lhe cócegas. - Tu nunca recusas uma roda. Mas naquele momento apetecia-lhe dizer que não. Suspirando, levantou-se da manta velha. - Está bem. Mas olhem que, francamente, não sei que rainha seria, fazendo

piruetas para os meus súbditos. Envergava um vestido. Não o tal vestido, mas um normal, cor-de-rosa. Depois

de se afastar uns metros, perguntou: - Estão prontos? – Ao longe, viu os olhos de Alexander devorando-a. – Cá vai –

anunciou, pondo o pé direito à frente. Lançou as pernas para o ar apoiando-se no braço direito, descreveu um arco perfeito com o corpo, apoiou-se no braço esquerdo, depois no pé esquerdo e, sem parar para respirar e com o cabelo a voar, girou mais uma e outra vez, seguindo uma trajetória reta na direção do Grande Palácio, da infância e da inocência, afastando-se de Dimitri, Dasha e Alexander.

Enquanto regressava com o rosto afogueado e o cabelo disparando em todas as direções, permitiu-se olhar de relance para Alexander, cuja expressão revelava tudo o que ansiava por ver.

Deixando-se cair por cima dele, Dasha riu: - Eu não disse? Ela tem muitos talentos escondidos. Tatiana baixou o olhar e sentou-se na manta. Esfregando-lhe as costas, Dimitri observou: - Hum, Tania, que mais truques tens na manga? - Mais nada – replicou delicadamente. Um pouco depois, Dimitri perguntou: - Dasha, Tania, o que é para vocês o amor? - O quê? - O que é o amor para vocês? O que significa? - Que interessa, Dima? – Dasha sorriu para Alexander. - Perguntei por perguntar. – Bebendo mais vodca: - Está um domingo

lindíssimo e este lugar é ebom para pergunta assim. – Sorriu para Tatiana. - Não sei. Alexander, achas que responda? – perguntou Dasha. Encolhendo os ombros e fumando, Alexander replicou: - Se quiseres responde. Tatiana começou a achar a manta muito pequena para os quatro. Estava

sentada de pernas cruzadas, com Dima deitado de barriga para baixo à sua esquerda e Alexander, com Dasha encostada a ele, à frente.

- Está bem. O amor... vejamos – começou Dasha. – Ajuda-me, Tania.

Page 115: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

115

- Tu sabes. Sei muito bem que sabes. – Não queria dizer que a irmã tinha muita experiência no ramo.

- Hum... amor. O amor é... ele aparece quando diz que vai fazê-lo – começou, dando uma cotovelada a Alexander. – Amor é quando ele não olha para as outras. – Dando-lhe mais uma, duas cotoveladas: - Que tal?

- Muito bem, Dasha – aplaudiu Alexander. Tatiana tossiu. - O que foi, Tania? Achas que não chega? – inquiriu a irmã. - Não, não. Está muito bem. – Mas a hesitação sarcástica notava-se-lhe

claramente na voz. - Estás a amar-te em espertinha? O que é que eu não disse? - Não, Dasha. Disseste tudo. Só me parece que o que descreveste tem a ver

com ser amado. – Fez uma pausa. Mais ninguém falou. – O amor não é o que tu lhe dás e não o que ele te dá a ti? Há alguma diferença? Estou redondamente enganada?

- Redondamente – confirmou Dasha, sorrindo-lhe. – Que sabes tu do assunto? - Nada. – Não olhou para ninguém. -Tanechka, e o que achas tu que é o amor? – indagou Dimitri. Sentiu que estavam a passar-lhe uma rasteira. - Diz-lá. O que é o amor para ti? – repetiu Dimitri. - Vá, Tania – teimou Dasha. – Para a Tania, amor é que a deixem sossegada

um verão inteiro, para poder ler em paz. Amor é... dormir até tarde... este é o primeiro amor. Amor é... gelado de leite-creme... não, o primeiro amor é este. Não me digas que a tua felicidade não seria total se pudesses levantar-te tarde durante todo o verão e passar o dia a ler e a comer gelado? – Rindo: - Amor é contar-nos anedotas tolas, tentando fazer-nos rir. Amor é... o Pasha! Definitivamente o primeiro amor. Amor é... oh! Rodas nuas! – exclamou Dasha com alegria.

- Rodas nuas? – perguntou Alexander, que não tirava os olhos de Tatiana. - Podemos vê-las?- quis saber Dimitri. - Oh, Tania, deviam ver-te a fazer essas rodas! No lago Ilmen, catapultava-se

nua cinco vezes seguidas para a água. – Com a alegria estampada no rosto: - Espera! É isso! É como te chamavam. Os miúdos tratavam-te por rainha das rodas do lago Ilemen!

- Era – confirmou Tatiana calmamente. – Mas não por rainha das rodas nuas do lago Ilmen.

Alexander tentava não se rir. Dasha e Dimitri rebolavam-se na manta. Muito corada, Tatiana atirou um pedaço de pão à irmã e disse: - Eu só tinha sete anos, Dasha. - Ainda tens sete anos. - Cala-te. Dasha atirou Ratiana para trás e pôs-se em cima dela.

Page 116: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

116

- Tania, Tania, Tania – guinchou, fazendo-lhe cócegas. – És muito engraçada. – Aproximando-se muito do seu rosto: - Olha para essas sardas. – Inclinando a cabeça, beijou-as. – Estás com mais. Deves andar muito ao ar livre. Nãi vens a pé de Kirov, pois não?

- Não, e sai de cima de mim. És muito pesada – retorquiu Tatiana, fazendo-lhe também cócegas e empurrando-a.

- Mas não respondeste à pergunta, Tania – tornou Dimitri. - Sim, responde à pergunta – repetiu Alexander. Precisou de alguns minutos para recuperar o fôlego. Por fim, disse: - Amor é... – Com o coração aos saltos, pensou no que podia dizer e no que

seria uma grande mentira. Qual seria a verdade? Uma verdade parcial, a verdade toda? O que podia dizer, sabendo quem estava a ouvir? – Amor é... – continuou devagar, olhando apenas para Dasha – quando ele tem fome e lhe damos de comer. Amor é saber quando ele tem fome.

- Mas tu não sabes cozinhar, Tania – protestou Dasha. – Não te parece que ele ia morrer à fome?

Dimitri soltou uma risadinha. - E quando ele está excitado? Que fazes então? – Riu tanto que ficou com

soluços: - Amor é saber quando ele está excitado? E dar-lhe de comer? - Cala a boca, Dimitri! – disse Alexander. - Que grosseiro, Dima! – exclamou Dasha. – Não tens classe nenhuma. –

Virando-se para Alexander e sorrindo, empurrou-o ao de leve e declarou ansiosamente: - Agora é a tua vez.

Sentada de pernas cruzadas, sem se mexer, Tatiana olhou para lá de Alexander, na direção do Grande Palácio, pensando nos dourados da dala do trono e em todos os sonhos que Peterhof lhe despertava em criança.

- Amor é... ser amado – disse Alexander. Com o lábio inferior a tremer, Tatiana não tirava os olhos do Palácio de Verão

de Pedro, o Grande. Dasha inclinou-se para ele, sorrindo: - Que bonito, Alexander! Só quando se levantaram e dobraram a manta para irem apanhar o comboio,

Tatiana se lembrou de que ninguém perguntou a Dimitri o que era o amor para ele. Nessa noite, virada para a parede, os remorsos não a largavam. Voltar assim

as costas a Dasha era admitir o inadmissível, aceitar o inaceitável, perdoar o imperdoável. Voltar-lhe as costas significava que a mentira ia ser o seu modo de vida enquanto tivesse uma parede escura para a qual se virar.

Como podia viver e respirar, dormindo todas as noites ao lado da irmã, de costas voltadas para ela? A irmã, que havia uns anos a levava a apanhar cogumelos em Luga, apenas com um cesto, sem faca e sem sacos de papel, “para os cogumelos não terem medo”. A irmã, que a ensinara a apertar os sapatos aos cinco anos, a andar de bicicleta aos seis e a comer trevos-doces. A irmã, que tomava conta dela

Page 117: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

117

verão após verão, que lhe desculpava as travessuras, que cozinhava, que lhe fazia tranças e que lhe dava banho quando era pequena. A irmã, que uma vez a levara a sair à noitecom os amigos, para ela ver como os rapazes se comportavam com as raparigas. Tatiana encostara-se desajeitadamente ao muro da Nevsky Propekr, comendo o seu gelado enquanto os rapazes mais velhos beijavam as raparigas mais velhas. Dasha nunca mais a levara com ela e, depois dessa noite, passara a protege-la mais do que nunca.

Não podia continuar assim nem por mais um dia. Tinha de dizer a Alexander que não fosse mais a Kirov. Era indiscutível que sentia de uma maneira, mas tinha de agir de outra, o que

também era indiscutível. Deixando a parede e virando-se para Dasha, afagou-lhe docemente os

caracóis espessos. - Que bom, Tanechka! – murmurou ela. - Gosto muito de ti, Dasha – afirmou Tatiana, com as lágrimas caindo-lhe na

almofada. - Hum, também te adoro. Agora dorme. Enquanto a cabeça lhe apresentava a lei incontestável do cerdo e do errado, a

respiração sussurrava o seu nome ao ritmo do bater do coração: SHU-ra, SHU-ra, SHU-ra.

Page 118: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

118

13

Na segunda-feira depois de Peterhof, quando um sorridente Alexander se encontrou com uma Tatiana muito séria em Kirov, ela disse-lhe, mesmo antes de o cumprimentar:

- Alexander, não podes vir mais aqui. Ele parou de sorrir, calou-se a olhá-la e, por fim, empurrou-a com a mão: - Anda. Vamos a pé. Percorreram o quarteirão até à Govorova. - Que se passa? - Olhava para o chão. - Isto não pode continuar, Alexander. Não pode. Ele permaneceu em silêncio. - Não pode - repetiu Tatiana, fortalecida pelo chão de cimento que pisava.

Ainda bem que seguiam a pé, pois assim não tinha de o olhar! — É muito difícil para mim.

- Porquê? - Porquê? - Desconcertada com a pergunta, calou-se. Não podia pronunciar

em voz alta nem uma das respostas que tinha para dar. - Somos só amigos, Tania, não é? - continuou ele em voz baixa. — Bons

amigos. Venho aqui porque sei que estás cansada. Tiveste um dia longo, tens muito que andar até casa e espera-te uma longa noite. Venho porque às vezes sorris quando estás comigo e parece-me que te sentes feliz. Faço mal? E por isso que venho. Não tem grande importância.

- Alexander! - exclamou ela. - Sim, fazemos de conta que não tem importância. - Inspirando: - Então porque não dizemos à Dasha que vens buscar-me a Kirov? Porque paramos todos os dias a três quarteirões do meu prédio?

- A Dasha não ia compreender. Ficaria magoada — respondeu ele devagar. - Claro que ficaria! É natural. - Mas isto não tem nada a ver com a Dasha. Os seus esforços para permanecer calma até lhe punham os dedos brancos: - Tem tudo a ver com a Dasha, Alexander. Não posso passar as noites

deitadaao lado dela, com medo. Por favor - implorou. Chegaram à paragem do elétrico. Alexander parou à sua frente: - Tania, olha para mim. Ela virou a cabeça: - Não - Olha para mim — teimou ele, pegando-lhe nas mãos.

Page 119: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

119

Tatiana ergueu os olhos para Alexander. As suas grandes mãos eram tãoreconfortantes!

- Tatia, olha para mim e diz: Alexander, não quero que venhas mais aqui. - Alexander, não quero que venhas mais aqui - murmurou ela. Ele não lhe largou as mãos e ela também não as retirou. - Depois do que se passou ontem, não queres que eu venha mais? -

perguntou,com a voz embargada. Tatiana não conseguiu olhar para ele ao dizer: - Especialmente depois de ontem. - Tania! — exclamou ele de repente. — Vamos dizer-lhe! - O quê? — Pensou que ouvira mal. - Sim! Vamos dizer-lhe. - Dizer-lhe o quê? — Subitamente sentia a língua gelada de medo. A blusa sem

mangas fê-la arrepiar-se. — Não há nada para lhe dizer. - Tatiana, por favor! — Com os olhos faiscando: - Vamos dizer a verdade

eaceitar as consequências. Vamos ser honestos. Ela merece. Vou acabar com ela e... - Não! — Tentou retirar as mãos. - Por favor, não. Por favor. Vai ficar de

rastos.- Depois de uma pausa: - Temos de pensar nos outros. - E nós— Apertou-lhe as mãos. - Tania... e tu e eu? - sussurrou. - Alexander! — Tinha os nervos em franja. - Por favor... - Faz-me tu o favor! — disse ele em voz alta. - Estou farto disto... só porque tu

não queres fazer o que é correto. - E é correto magoar as outras pessoas? - A Dasha ultrapassa o problema. - E o Dimitri? Como ele não respondeu, Tatiana repetiu: - E o Dimitri? - Deixa que eu preocupo-me com o Dimitri, está bem? - Mas estás enganado. A Dasha não ultrapassa coisíssima nenhuma. Achaque

.és o amor da vida dela. - Não tem razão. Nem sequer me conhece. Não suportava ouvir mais. Puxou as mãos. - Não, não digas mais nada. Alexander continuou à sua frente no passeio. - Sou um soldado do Exército Vermelho, e não um médico americano ouum

cientista inglês. Sou um soldado na União Soviética. Daqui até domingo, possomorrer a qualquer momento e de mil maneiras diferentes. Talvez este seja o nossoúltimo minuto juntos. Não o queres passar comigo?

Hipnotizada por ele, Tatiana tartamudeou: - Neste momento, só me apetece enfiar-me na cama... - Sim! — exclamou ele com fervor. — Enfia-te na cama comigo! Sentindo-se fraca, abanou a cabeça.

Page 120: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

120

- Não temos lado nenhum para onde ir... — sussurrou. Ele aproximou-se mais, pegou-lhe no rosto e falou em voz trémula: - Mas arranjamos, Tatiasha, havemos de... - Não! — gritou ela. Ele baixou as mãos. - Percebeste... mal — gaguejou ela. — O que eu queria dizer era que não

temosnada a fazer um com o outro. Alexander baixou então o olhar. E ela também. - A Dasha é minha irmã. Não compreendes? Não vou fazer sofrer a minha

irmã. Recuando um passo, Alexander retorquiu friamente: - É verdade! Já me tinhas dito. Existem mais rapazes. Irmãs é que não há

maisnenhuma. — Sem mais uma palavra, girou nos calcanhares e começou a afastar-se.

Tatiana correu atrás dele. - Alexander, espera! Ele continuou a andar. Não conseguia apanhá-lo. - Por favor, espera! - gritou para a Ulitsa Govorova. Apoiou-se à parede deum

prédio amarelo, murmurando: — Por favor, volta! Ele voltou. - Vamos - disse secamente. — Tenho de voltar para o quartel. - Ouve - teimou Tatiana. — Se pararmos agora, pelo menos não teremosnada

a esconder das pessoas que nos estão próximas, que nos amam e que confiamque nós não as vamos trair. A Dasha...

- Tatiana! — Alexander aproximou-se tão de repente que ela recuou, largoua parede e quase caiu ao chão. Agarrando-lhe nos braços: — Que conversa é essa?A traição... é uma coisa objetiva. Pensas que não é traição só porque ainda nãolhes dissemos nada?

- Cala-te! Ele não o fez. - Pensas que não é traição quando não consegues olhar para mim, porquetens

medo de que toda a gente veja o que eu vejo? Quando o rosto se te ilumina a um quarteirão de distância ao voares do teu estúpido emprego? Quando

soltaso cabelo, quando esses teus lábios tremem? Não estarão a trair-te? — Respirava pesadamente.

- Para com isso! — Corada, perturbada, tentava em vão que ele a largasse. - Tatiana, mentiste à tua irmã, ao Dimitri, aos teus pais, a Deus e a ti

própriadurante cada minuto que passaste comigo. Queres parar? - Alexander, para tu — murmurou ela. Ele largou-a.

Page 121: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

121

- Tens razão — ofegou ela, incapaz de respirar. - Mas não menti a mim própria. É por isso que não posso continuar. — Depois de uma pausa: - Por favor...não quero discutir contigo. E não tenho coragem para magoar a Dasha. Não tenhocoragem para nada disto.

- Coragem ou vontade, Tania? Abrindo as mãos num gesto de súplica, respondeu: - Coragem. Nunca menti assim na minha vida. - Percebendo o que estavaa

admitir, corou de vergonha. Mas o que podia fazer? Tinha de continuar: - Nemte passa pela cabeça o que me custa esconder isto da Dasha todos os dias, todosos minutos, todas as noites. O meu olhar vazio, os meus dentes cerrados, o meuaparente desinteresse... fazes ideia do que me custa?

- Claro que faço. — Naquele momento, parecia o mais carrancudo dos soldados.- Porque eu sei a verdade. E por isso que quero pôr um ponto final nestacharada.

- Pões um ponto final e depois? — irritou-se Tatiana. — Já pensaste bem? -Levantou a voz: — Pões um ponto final e depois? Apesar de tudo, tenho de continuara viver com a Dasha! — Rindo de exasperação: — Pensas que vais poder andarcomigo depois de acabares com ela? Pensas que, depois de lhe dizeres a ele e eu aela, podes aparecer lá em casa para jantar? Para dares à língua com a minha família?E eu, Alexander? Para onde vou eu? Contigo para o quartel? Não entendes quedurmo com ela na mesma cama? E que não tenho mais lugar nenhum para ondeir? - gritou. — Podes acabar com a Dasha se quiseres, mas mete na cabeça quenunca mais me verás.

- Não me ameaces, Tatiana — disse ele em voz alta, com os olhos a faiscar.- E pensava que era por isso que estamos aqui.

Ela gemeu, prestes a desfazer-se em lágrimas. Baixando a voz, Alexander continuou: - Pronto, não fiques assim. — Esfregou-lhe o braço. - Então deixa de me pôr assim! Ele retirou a mão. - A vida não para. Tu és homem. — Baixando o olhar: — Continua com

aDasha. Ela está bem para ti. É uma mulher e eu sou... - Cega! - exclamou ele. Parada na Ulitsa Govorova, desolada, Tatiana sentia-se a perder a batalha

contra o seu coração. - Oh, Alexander! O que queres de mim.,. - Tudo! - sussurrou ele com intensidade. Ela abanou a cabeça e crispou os punhos contra o peito. Alexander passou-lhe a mão pelo cabelo: - Tatia, peço-te pela ultima vez. - E eu também te peço pela última vez - volveu-lhe ela, mal conseguindo

pronunciar as palavras.

Page 122: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

122

Alexander deixou de lhe tocar. Ela deu um passo em frente e pousou nele a mão delicada. - Shura... a vida da Dasha não é minha. Não posso sacrificar a vida da

minhairmã. Não posso estragá-la só porque nos dá prazer... - Está bem - interrompeu ele, retirando a mão. - Já percebi muito bem.Vejo

que estava enganado. Podes parar, mas digo-te que vou fazer as coisas à minhamaneira e não à tua. Vou acabar com a Dasha e tu não voltarás a ver-me.

- Não, por favor... - Importas-te de te ir embora? - Apontando ao longo da rua: - Afasta-te

demim. Vai para casa ter com a tua Dasha. - Shura... - começou ela com angustia. - Não me chames isso - disse friamente, cruzando os braços. - Já te dissepara

ires! Vai-te embora. Tatiana pestanejou. Todas as noites, quando se despediam, o ar que respirava

doía-lhe nos pulmões. A sua ausência deixava um vazio físico. E uma vez no quarto, rodeava-se de outras pessoas para o sentir menos, para o desejar menos. Mas invariavelmente todas as noites tinha de se deitar com a irmã, virando-se paraa parede e rezando para não lhe faltarem as forças.

«Eu sou capaz», pensou. «Passei dezessete anos com a Dasha e só três semanascom o Alexander. Sou capaz de sentir de uma maneira e de me comportar tambémsó de uma maneira.»

Virando-se, afastou-se.

Page 123: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

123

14

Fiel à sua palavra, da próxima vez que Dasha foi ter com ele, Alexander levou-aa passear na Nevsky e disse-lhe que precisava de algum tempo para pensar. Dashachorou, coisa que ele detestou, porque odiava ver mulheres a chorar, e suplicou, o que também não lhe agradou muito. Mas não cedeu. Não podia dizer a Dasha que estava furioso com a sua irmã mais nova. Furioso com aquela criatura tímidae minúscula que lhe cabia na palma da mão e que, no entanto, se mantinha inabalável.

Uns dias mais tarde, quase se sentiu aliviado por já não se encontrar comTatiana quando descobriu que os Alemães estavam apenas dezoito quilômetros asul da mal fortificada linha de Luga, que por seu lado ficava só dezoito quilômetrosa sul de Tolmachevo. Chegou ao quartel a informação de que os Alemães tinhamarrasado toda a cidade de Novgorod numa questão de horas. Novgorod, a cidadea sudeste de Luga, onde Tatiana fazia rodas até ao lago Ilmen.

Embora com dezenas de milhares de efetivos, o Exército de Voluntários doPovo ainda mal começara a cavar as trincheiras de Luga.

Para prevenir a ameaça dos Finlandeses, tinham-se minado os campos, cavadotrincheiras antitanque e construído reforços de cimento a norte de Leninegrado.A linha da frente entre a Finlândia e a União Soviética, na Carélia, era a mais bemdefendida do país... e a mais calma. «O Dimitri deve estar contente», pensavaAlexander. No entanto, o avanço acelerado de Hitler a sul de Leninegrado apanharade surpresa o Exército Vermelho, que se apressara a edificar uma linha dedefesa de cento e vinte e cinco quilômetros ao longo do rio Luga, entre o lagoIlmen e Narva. Havia realmente algumas trincheiras, algumas plataformas paraos canhões e algumas armadilhas antitanque, mas nada que chegasse. Percebendoque era preciso fazer alguma coisa e sem demoras, o comando de Leninegradocarregara as barreiras de cimento antitanque da Carélia para Luga.

Entretanto, o Exército Vermelho recuava após dias e dias de contínuos combates.

Não era só recuar. Cedia terreno aos Alemães a um ritmo de quinhentos quilômetrosnas primeiras três semanas de guerra. Já não havia apoio aéreo e, apesardos melhores esforços de Tatiana, os poucos tanques do Exército Vermelho eramclaramente insuficientes. Em meados de julho, o exército era constituído sobretudopor esquadrões armados com espingardas, que lutavam contra os Panzer, aartilharia móvel, os aviões e os soldados de infantaria alemães. Os Soviéticos estavama ficar sem armas e sem homens.

Page 124: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

124

A esperança de defesa da linha de Luga recaía agora nos Voluntários doPovo, que não tinham treino nem, pior ainda, espingardas. Eram apenas ummuro de velhos e raparigas, erguendo-se contra Hitler. As armas que arranjavam,retiravam-nas dos cadáveres dos soldados do Exército Vermelho. Alguns voluntáriostinham pás, machados e picaretas, mas muitos nem sequer isso.

Alexander nem queria pensar no tempo que meia dúzia de paus aguentariamcontra os tanques alemães. Já sabia.

Page 125: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

125

A FERRO E FOGO

1

O mundo de Tatiana mudou quando Alexander deixou de ir ter com ela. Agora, era uma das últimas pessoas a largar o trabalho. Quando atravessavadevagar as portas duplas da fábrica, ainda se virava, ansiosa, esperando ver-lhe a cabeça, o uniforme, a espingarda, o boné nas mãos.

Caminhava ao longo do muro de Kirov, esperando pelos autocarros que continuamenterecolhiam os passageiros. Sentava-se no banco e esperava por ele. E depois percorria a pé os oito quilômetros até à Quinto Soviete, procurando-oe, de facto, vendo-o por todo o lado. Quando chegava a casa, às onze horas ou mais tarde, o jantar que a família lhe preparara estava velho e frio. Toda a gente ouvia ansiosamente a rádio, sem falar na .nica coisa que lhes ocupava o pensamento:Pasha.

Uma noite, Dasha chegou a casa debulhada em lágrimas e disse a Tatianaque Alexander queria um tempo. Chorou durante cinco minutos seguidos, enquanto a irmã lhe dava palmadinhas nas costas.

- Olha, não vou desistir, Tania. Não vou. Gosto muito dele. Deve estar apassar-se alguma coisa. Se calhar tem medo de se comprometer, como a maioria dos soldados. Mas não vou desistir. Disse-me que precisava de um tempo para pensar. Portanto, não é para sempre... só até pôr as ideias em ordem, não?

- Não sei, Dashenka. — Quem dizia que ia fazer uma coisa e fazia mesmo? Ninguém que Tatiana conhecesse.

Dimitri apareceu para a visitar uma vez e passaram uma hora juntos, rodeados pela família. Admirou-se por ele não ter lá ido mais vezes, mas o jovem deuuma desculpa, de resto bastante esfarrapada, na opinião de Tatiana. Parecia distraído. Não tinha qualquer informação sobre a posição dos Alemães na União Soviética. Ao fim da noite, a boca dele na face dela parecia tão distante como aFinlândia.

No telhado, os miúdos do prédio vigiavam em busca de aventuras, de bombasincendiárias que pudessem ir apagar. Mas não havia bombas. A única coisa queperturbava a calma da noite era o riso de Anton e dos amigos, sentados ao seulado, e o bater do seu próprio coração.

No telhado, Tatiana pensava no minuto da tarde, no minuto em que costumavasair da fabrica, virar a cabeça para a esquerda ainda antes do corpo e

Page 126: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

126

procuraro rosto dele. O minuto da tarde, quando descia apressadamente a rua com a felicidadelevantando-lhe os cantos da boca para o céu branco e as asas vermelhaslevando-a até ele, erguia o olhar e sorria.

À noite, continuava virada para a parede, voltando as costas à ausente Dasha,que nunca estava em casa.

Permaneceria assim infeliz se numa manhã os Metanov não ouvissem narádio que os Alemães estavam a avançar e que se encontravam quase em Luga,apesar de todas as medidas tomadas pelos heroicos soldados soviéticos. Não foiLuga que pôs a família em estado de choque e sem vontade de comer nem defalar, mas sim o facto de toda a gente saber que Luga ficava apenas a uns quilômetrosde Tolmachevo, onde pensavam... não, tinham a certeza de que Pashaestava bem protegido no acampamento.

Se os Alemães se preparavam para arrasar Luga, que aconteceria em Tolmachevo?Onde estaria o seu filho, neto, irmão?

Tatiana tentou consolar a família com palavras vãs: - Ele está bem, vão ver que está bem. - Como não deu resultado, tentou:-

Havemos de entrar em contacto com ele. Não chore, mãezinha. - Como tambémnão deu resultado, tentou: — Mãezinha, eu sinto que ele está bem. E o meuirmão gêmeo. Garanto-lhe que está bem. — Não valeu de nada.

Continuaram sem notícias de Pasha. Apesar do que dizia, Tatiana andavacada vez mais preocupada com o irmão.

O Soviete local não tinha respostas. E o municipal também não. Tatiana e amãe foram lá.

- Que posso dizer-lhe? — replicou à mãe a ríspida mulher de buço. – Asminhas informações só dizem que os Alemães estão perto de Luga. Não dizemnada de Tolmachevo.

- Então porque não respondem quando tentamos telefonar para os acampamentos?- inquiriu a mãe. — Porque é que os telefones não funcionam?

- Acha que sou o camarada Estaline? Sei lá! - Podemos ir a Tolmachevo? — perguntou a mãe. - O quê? Quer ir para a frente? Quer apanhar um autocarro para a

frente,camarada? Claro, claro. Boa sorte. — O buço grisalho da mulher moveu-se aoritmo das suas gargalhadas: — Natalia, anda cá, tens de ouvir isto!

Tatiana teve vontade de lhe responder com uma grosseria, mas não arranjoucoragem. Desejando ter-se esforçado mais por convencer a família, saiu com amãe do gabinete municipal.

Nessa noite, fingindo dormir com o rosto virado para a parede e a mão nochão em cima de O Cavaleiro de Bronze, ouviu os pais a conversarem baixinhoem voz lamentosa. A mãe começou a soluçar e o pai reconfortou-a:

- Vá. Então? — Depois, quando também ele começou a chorar, Tatiana sóteve vontade de estar em qualquer sítio menos ali.

Chegavam-lhe pequenos sussurros, fragmentos de frases, palavras tristes.

Page 127: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

127

- Pode ser que esteja bem — ouviu a mãe dizer. - Pode ser — repetiu o pai. - Oh, Georg! Não podemos perder o nosso Pasha. Não podemos. –

Numqueixume: — O nosso rapaz. - O nosso rapaz preferido — acrescentou o pai. — O nosso único filho. A mãe soluçou. Tatiana ouviu o roçagar dos lençóis. A mãe fungou. - Que Deus é este que no-lo leva? - Não existe Deus. Vá lá, Irina - consolou o pai. - Estás a fazer muito

barulho.Vais acordar a Tatiana e a Dasha. Continuou a chorar alto. Depois, baixando novamente a voz: - Quero lá saber! Porque é que Deus não levou uma delas? - Não digas isso, Irina. Não estás a falar a sério. - Porquê, Georg? Porquê? Sei que pensas como eu. Não trocarias a Taniapelo

nosso filho? Ou até a Dasha? Mas a Tania é tão tímida e fraca que nunca háde chegar a ser nada.

- Tímida ou não, que vida a espera? — indagou o pai. - Não é como o nosso filho - tornou a mãe. — Não é como o nosso Pasha. Tatiana tapou a cabeça com o lençol para não ter de ouvir mais. Dasha

continuavaa dormir. A mãe e o pai também acabaram por adormecer. Mas ela permaneceuacordada, com as palavras martelando-lhe dolorosamente nos ouvidos:Porque é que Deus não levou a Tania em vez do Pasha?

Page 128: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

128

2

No dia seguinte depois do trabalho, cheia de apreensões e não acreditandobem no seu descaramento, Tatiana dirigiu-se ao Quartel Pavlov, deu o nome deAlexander ao sorridente sargento Petrenko e esperou encostada à parede, rezandopara que as pernas não lhe falhassem.

Alexander saiu pelo portão passados uns minutos. A expressão muito tensado seu rosto foi momentaneamente atravessada por... mas só momentaneamente.Tinha olheiras.

— Olá, Tatiana — cumprimentou friamente, parando no corredor húmido aalguma distância dela. — Está tudo bem?

— Mais ou menos. E tu? Pareces... Pestanejando, Alexander respondeu: — Tudo bem. Como tens passado? — Não muito bem — admitiu Tatiana, imediatamente com medo de que

Alexanderensasse que era por sua causa. — Uma coisa... — Esforçou-se para que a voz nãolhe falhasse. Tinha medo por Pasha, mas não era só. E não queria que ele percebesse.Tentaria escondê-lo dele. — Alexander, tens alguma maneira de saber do Pasha?...

Ele lançou-lhe um olhar cheio de compaixão. — Oh, Tania! Para quê? — Por favor! Tens? Os meus pais estão desesperados - acrescentou. — E melhor não saber. — Por favor. A mãe e o pai precisam de saber. Não conseguem viver assim. -

«Preciso de saber. Não consigo viver assim.» — Achas que seria mais fácil se soubessem? — Não tenho dúvidas. É sempre melhor saber. Assim poderiam enfrentar a

verdade.— Falava sem olhar para ele. — A incerteza está a dar cabo deles. - Como Alexandernão respondeu, Tatiana mordeu o lábio e continuou: - Se soubessem, a Dasha,eu e talvez também a mãezinha íamos para Molotov com o Deda e a Babushka.

Alexander acendeu um cigarro. — Vais tentar... Alexander? — Sabia-lhe bem dizer o nome dele em voz

alta.Apetecia-lhe tocar-lhe no braço. Feliz e infeliz por voltar a ver o seu rosto, apetecia-lhe aproximar-se dele. Não envergava o uniforme completo. Devia estar a descansar,porque não tinha a camisa toda abotoada nem metida nas calças da tropa.Não poderia aproximar-se dele? Não, não podia.

Page 129: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

129

Fumava em silêncio. De cabeça inclinada, não tirava os olhos dela. Tatianaesforçou-se por não lhe mostrar a expressão que tinha nos olhos e esboçou umsorriso muito ténue.

— Depois vão para Molotov? — indagou ele. — Vamos. — Ótimo — respondeu Alexander sem qualquer inflexão nem hesitação

navoz. — Tania, quer eu saiba alguma coisa do Pasha quer não... tens de partir. O teuavô teve sorte em arranjar um lugar. A maioria das pessoas não está a ser evacuada.

— Os meus pais dizem que a cidade continua a ser o lugar mais seguro. É porisso que estão a chegar a Leninegrado milhares de pessoas vindas da província -afirmou Tatiana com autoridade.

– Não há nenhum lugar seguro na União Soviética – contrapôs Alexander. – Cuidado – avisou ela, baixando a voz. Alexander inclinou-se para ela e Tatiana ergueu os olhos, não com ansiedade,

mas com avidez. – O quê? O quê? – murmurou. Mas antes de ele poder responder-lhe, Dimitri

saiu do portão a correr. – Olá! – Franzindo o sobrolho para Tatiana: – Que estão a fazer aqui? – Vim ver-te – replicou Tatiana rapidamente. – E eu estou a fumar um cigarro – acrescentou Alexander. – Pois ele que deixe de se pôr a fumar exatamente quando me vens ver –

declarou Dimitri. Depois, sorrido: – Mas foi bom teres vindo. Estou contente. – Envolveu-a com o braço. – Deixa-me levar-te a casa, Tanechka – continuou afastando-se com ela. – Queres ir a algum lado? Está uma noite linda!

– Até à vista. Tania – despediu-se Alexander nas suas costas. Sentiu que as forças a abandonavam.

Alexander foi falar com o coronel Mikhail Stepanov. Combatera sob o comando do coronel na guerra do inverno de 1940 contra a

Finlandia. Na altura, o coronel ainda era capitão e Alexander segundo-tenente. Stepanov tivera muitas oportunidades de ser promovido, não só a general como a brigadeiro, mas recusara, preferindo continuar a comandar o quartel de Leninegrado.

Era um homem alto, quase tao alto como Alexander. Magro, sempre muito direito, o seu corpo movia-se no entando com delicadeza. A névoa de tristeza que lhe pairava nos olhos azuis não se dissipou quando sorriu a Alexander.

– Bom dia, meu coronel – saudou Alexander, fazendo a continência. – Bom dia, tenente – cumprimentou ele, dando volta à secretaria. – À

vontade, soldado. – Deram um aperto de mao. Depois, Stepanov voltou para tras da secretaria. – Como vai isso?

– Muito bem, meu coronel. – E então? O major Orlov trata-o bem?

Page 130: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

130

– Vai tudo bem, meu coronel. Muito obrigado. – Que posso fazer por si? Alexander pigarreou: – Vim só pedir uma informação. – Disse-lhe para estar à vontade. O jovem afastou os pés e pôs as mãos atrás das costas: – Queria saber dos voluntários, meu coronel. – Dos voluntários? Mas já sabe. É o tenente Belov que os tem treinado. – Não, em Luga, Em Novgorod. – Em Novgorod? – Stepanov abanou a cabeça. – Tem havido alguns combates

com os voluntários. A situação não é boa. – Não? – Mulheres soviéticas sem qualquer preparação atirando granadas aos

Panzer... Algumas nem sequer tinham granadas. Arremessavam pedra. – Perscrutando o rosto de Alexander: – Que interesse tem nisso?

– Meu coronel – retorquiu Alexander, batendo os calcanhares –, estou a tentar encontrar um rapaz de dezassete anos que foi para um acampamento perto de Tolmachevo. Ninguem atende o telefone e a família esta em pânico. – Alexander fez uma pausa e observou o coronel. – Um rapaz de nome Pavel Metanov. Foi acampar para Dohotino.

– Vá à sua vida. Vou ver se descubro alguma coisa. Mas não prometo nada. Alexander fez-lhe a continência: – Obrigada, meu coronel. Mais tarde, Dimitri apareceu na camarata que Alexander partilhava com mais

três oficiais. Jogavam às cartas. Alexander baralhava, com um cigarro languidamente pendurado na boca. Quase não se virou a olhar para ele.

Agachando-se ao lado de sua cadeira, Dimitri pigarreou: – Faça a continência ao seu oficial superior, Cherneko – admoestou o

segundo-tenente Anatoly Marazov, sem tirar os olhos das cartas. Dimitri levantou-se e pôs-se em sentido.

– Meu tenente! – disse. – À vontade, soldado. – Que se passa, Dima? – perguntou Alexander. – Nada – respondeu o outro calmamente, voltando a agachar-se. – Não tenho

para onde ir nem com quem falar. – Podes falar. Está tudo bem? – Sim, sim. Corre o boato de que vamos ficar aqui sem fazer nada. – Não é sem fazer nada, Chernenko – interrompeu Marazov. – Vamos ficar

para defender Leninegrado. – Os Finalandeses dizem que são cobeligerantes. – Dimitri fez um ar de

desprezo. – Se eles se aliam aos Alemães, estamos liquidados. Bem podemos depor as armas.

Page 131: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

131

– Que animação! – observou Marazov. – Belov, não foste tu que me deste este soldado?

Alexander virou-se para Dimitri: – O tenente Marazov tem razão. Admira-me a tua atitude, Dima.

Francamente, não tem nada a ver contigo. – Tentou não dar nenhuma inflexão a voz.

Dimitri sorriu, acanhado: – Não é bem o que esperávamos quando entramos no Exercito... – Como

Alexander não responder, continuou: – Estou a falar da guerra. – Não, não esperava a guerra. Alguém quer a guerra? – Depois de uma pausa:

– Era o que tu querias? – Sabes muito bem que não. Mas tive bastante menos hipóteses de escolha

do que tu; – Tiveste hipóteses de escolha, Belov? – indagou Marazov; Alexander pousou as cartas, apagou o cigarro e levantou-se. – Venho já – anunciou aos outros oficiais, saindo em grandes passadas. Dimitri

seguiu-o, dando passos mais pequenos. Havia demasiados oficiais no corredor; desceram as escadas e saíram para o pátio empedrado pela porta lateral. Passava de uma da manha. O céu não estava bem cinzento, e sim três tons mais escuro.

A uns metros de distancia, três soldados fumavam. Mesmo assim não conseguiriam ficar mais sozinhos.

– Dima, vê se paras com esses disparate – começou Alexander. – Eu não tive hipóteses nenhumas. Nem penses nisso. Que hipóteses tive?

– A de estares agora noutro lugar. Não respondeu. Só gostaria de estar em qualquer lado menos ali à frente de

Dimitri, que comentou: – A Finlandia é muito perigosa para nós neste momento. – Eu sei. – Não lhe apetecia nada falar sobre a Finlancia. – Muitos homeme de ambos os lados, tropas da NKVD por toda a parte. A

região de Lisiy Nos está cheia de tropas, deles e nossas, arame farpado e minas. Não é mesmo nada segura. Não sei o que vamos fazer. Tens a certeza de que os Finlandeses descerão de Vyborg até Lisiy Nos?

Alexander fumava sem dizer nada. Por fim, replicou: – Vão acabar por fazê-lo. Hão de querer recuperar as antigas fronteiras.

Chegarao a Lisiy Nos. – Que podemos fazer? Esperar, que remédio! – Vendo que Alexander

continuava calado, indagou: – Voltará a surgir uma boa altura? – Não sei, Dima. Teremos que esperar para ver; Dimitri suspirou: – E entretando podes transferir-me do Primeiro Regimento de Fuzileiros? – Dima, já te tirei do Segundo Batalhão de Infantaria.

Page 132: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

132

– Eu sei, mas ainda estou muito perto de um possível ataque. Os homens do Marazov fazem parte da segunda linha. Prefiro estar na faxina, nos abastecimentos ou coisa assim. – Depois de uma pausa: – Há mais hipóteses de fugir, não te parece?

– Queres ir para os abastecimentos? Levar munição às tropas da linha de frente? – perguntou Alexander, surpreendido.

– Estava a pensar mais na correspondência e nos cigarros das unidades de retaguarda.

Alexander sorriu: – Vou ver o que posso fazer. – Vá lá – disse Dimitri, apagando o cigarro no chão. – Anima-te. Que se passa

contigo? Por enquanto vai tudo bem. Afinal de contas, os Alemaes ainda não chegaram aqui e estamos com um verão magnifico.

Alexander não fez comentários. – Alex, queria falar-te de uma coisa... A Tania é tão boa rapariga... – O quê? – A Tania é muito boa rapariga. – Pois é. – E quero que continue assim. Ela não devia vir aqui nem, sobretuto, pôr-se a

falar contigo – rematou, depois de um momento de silencio. – Concordo. – Sei que somos amigos e que ela é a irmã mais nova da tua apaixonada de

momento mas, francamente, não quero que tua reputação manche a minha namorada. Ela não é da raça das tuas...

Avançando um passo para ele, Alexander disse: – Chega, Dimitri. – Estou a brincar – disse, rindo. – A Dash continua a vir cá? Não tenho ido lá

muito. A Tania trabalha até tarde. Mas a Dasha ainda vem, não é? – Vem. – Dash aparecia todas as noites, tentando tudo o que sabia e podia

para recomeçar o namoro com ele. Mas Alexander não ia contar nada disso a Dimitri.

– Mais uma razão para a Tania não vir aqui. Se a Dasha descobrisse, ia ficar aborrecida sem necessidade nenhuma, não te parece?

– Tens muita razão. – Alexander fitou Dimitri, que não se mexeu. – Tens mais um cigarro?

O outro levou imediatamente a mão ao bolso das calças caqui: – Que lindo! Um primeiro-tenente a pedir um cigarrinho a um magala! Adoro

que me peças coisas. Alexander pegou no cigarro e não disse nada. – Se não soubesse, diria que sentes alguma coisa pela Tanechka – declarou

Dimitri, pigarreando. – Mas sabes, não?

Page 133: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

133

Encolheu os ombros: – Acho que sim. É que a maneira como estavas a olhar para ela... – Nem penses nisso – cortou Alexander, puxando uma longa fumaça. – São

coisas da tua cabeça. – Eu sei, eu sei – suspirou Dimitri – Que posso dizer? Estou caidinho por ela. O cigarro ardeu lentamente até os dedos de Alexander. – Estás? – perguntou por fim. – Estou. Que admiração é essa? – Rindo com vontade: – Achas que um magala

como eu não merece uma miúda como a Tania? – Claro que não é isso. Mas pelo que sei não largaste as tuas atividades no

Sadko. – Que tem uma coisa a ver com a outra? – indagou Dimitri, encolhendo os

ombros. Antes de o outro poder responder, aproximou-se dele, baixou a voz e explicou: – A Tania é muito nova e pediu-me para não ter pressa. Respeito os seus desejos e sou paciente com ela. – Erguendo a sobrancelhas: – Mas ela vem. Devagar, mas vem...

Alexander atirou a ponta do cigarro para o chão e apagou-o com a bota. – Muito bem. Está tudo falado. – Começou a caminhar de volta ao edifício. Dimitri apanhou-o e agarrou-lhe no braço. Alexander virou-se e soltou-se com facilidade. – Não me agarres, Dimitri. – Os seus olhos faiscavam. O céu cinzento

escureceu mais um tom. – Não sou a Tatiana. Recuando uns passos, Dimitri disse: – Pronto, pronto. Para com isso. – Dando mais um passo atrás: - Tens mesmo

de cuidar desse teu mau gênio, Alexander Barrington – aconselhou, martelando bem todas silabas. Depois recuou ainda mais e sorriu. O cair da noite fê-lo parecer mais pequeno, com dentinhos mais afiados e amarelos, o cabelo mais oleoso e os olhos mais semicerrados.

Page 134: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

134

3

Na manha seguinte, Tatiana correu para o trabalho cheia de esperanças. Aprendera a ignorar as fardas azuis das ignóbeis e omnipresentes milícias armadas da NKVD, que com as suas espingardas obscenas se postavam à entrada de Kirov e patrulhavam a fabrica quase marchando, com as armas encostadas às ancas. Alguns militares examinavam-na quando passava: eram as únicas alturas da sua vida em que desejava ser mais pequena e insignificante do que já era. Observavam-não com expressões graves e impassíveis, mal pestanejando, enquanto ela pestanejava sem parar ao passar por eles muito depressa, empurrando as portas até ao relativo anonimato da linha de montagem.

Para que os trabalhadores não se entediassem e portanto não negligenciassem qualquer aspecto da produção da KV-1, rodavam de duas em duas horas. De acionar a roldana erguia o tanque e o colocava numa lagarta, Tatiana ia pintar a estrela vermelha nos tanques já acabados, prontos a entrar em ação. Pintava à pistola não só a estrela vermelha como também as palavras brancas POR ESTALINE!, que sobressaiam intensamente no fundo de tinta verde e lustrosa.

Ilya, o rapaz magricela de cabelo rapado à escovinha, começara a andar em cima de Tatiana quando vira que Alexander deixara de a ir esperar, fazendo-lhe mil e uma perguntas, às quais era bem-educada de mais para não responder. Mas no fim, até ela acabara por ceder a uma certa indelicadeza.

- Tenho de me concentrar no trabalho – dizia-lhe, sem perceber como se arranjava ele para estar sempre ao seu lado, fossem quantas fossem as vezes que era transferida durante o dia para as diferentes fases da montagem dos tanques. Na cantina, Ilya pegava no prato e sentava-se com ela e Zina, que não o suportava e lho dizia frequentemente.

Naquele dia, no entanto, Tatiana sentiu pena dele. – Está muito sozinho – disse, envolvendo um pedaço de costeleta no molho e

levando-o à boca. – Não deve ter ninguém. Fica Ilya. – E Ilya ficou. Sentia-se generosa. Mal podia esperar pelo fim do dia. Depois de ter falado

com Alexander na véspera, tinha a certeza de que ele a iria esperar a Kirov. Envergava sua saia mais leve e a blusa mais fresca e macia, e até tomara banho de manhã, apesar de ainda o ter feito na noite anterior.

Ao fim da tarde, saiu a correr das portas de Kirov, com o cabelo dourado solto e a brilhar e o rosto esfregado e cor-de-rosa. Sorrindo, virou a cabeça, mal respirando.

Alexander não estava lá.

Page 135: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

135

Já passava das oito. Sentou-se no banco até as nove, com as mãos no regaço. Depois, levantou-se e foi para casa.

Não havia notícias de Pasha. A mãe e o pai, desfeitos, choravam sem parar. Dasha não estrava em casa. O Deda e Babushka fazia lentamente as malas. Tatiana foi para o telhado e o sentou-se a observar os dirigíveis cruzando os céus do Norte como baleias brancas e a ouvir Anton e Kirill lendo Guerra e Paz de Tolstói e lembrando o irmão Volodya, perdido em Tolmachevo. Tatiana escutava, pensando em Pasha.

Alexander não fora espera-la. Portanto, não tinha noticias. Ou então tinha noticias más e não quisera encara-la. Mas ela sabia a verdade: não fora espera-la porque estava farto. Farto dela, dos seus modos infantis e dessa parte da sua vida. Tinham passeado como amigos nos Jardins de Verão, mas ele era um homem e estava farto.

Claro que fizera bem em não aparecer. E ela não iria chorar. Mas ter de enfrentar dia após dia em Kirov, noite após noite, a guerra e a si

própria sem ele e sem Pasha fazia a sentir um tal vazio que quase gemeu alto, apesar da presença de Anton e Kirill.

De momento, só precisava de uma coisa: de voltar a pousar o olhar no rapaz que respirara o mesmo ar que ela durante dezessete anos, na mesma escola mesma turma, no mesmo quarto, no mesmo ventre. Queria o amigo e o gêmeo de volta.

As noites brancas tinham acabado a 16 de julho. Sentada no telhado sob o céu que escurecia, pareceu-lhe sentir a presença de Pasha. O irmão não fora ferido. Estava à espera de que Tatiana o fosse buscar, e ela não o desiludiria. Não ia fazer como o resto da família, sentada pelos cantos a fumar e a afligir-se, sem fazer nada. Tinha a certeza de que lhe bastariam cinco minutos com a alegria de Pasha para esquecer muito do que se passara no mês anterior.

Esqueceria Alexander. E realmente era urgente que fizesse alguma coisa para o esquecer.

Depois de toda a gente ter ido para a cama, desceu as escadas, pegou numa tesoura de cozinha e começou a cortar impiedosamente o cabelo louro, que caía em grandes madeixas no lavatório comum. O pequeno espelho sujo mostrou-lhe apenas um reflexo vago. Tudo o que via eram os lábios carrancudos e os olhos tris¬tes e vazios, que pareciam mais verdes sem o cabelo a emoldurar-lhe o rosto. As sardas do nariz e debaixo dos olhos sobressaíam ainda mais. Parecia um rapaz? Tanto melhor. Parecia mais nova? Mais fraca? Que pensaria Alexander se a visse sem cabelo? Que interessava? Sabia o que ele pensaria. Shura, Shura, Shura.

Ao despontar da manhã, vestiu o único par de calças beges que encontrou, pegou num bocado de bicarbonato de sódio e de peróxido para os dentes, na escova de dentes (nunca viajava sem ela), foi buscar o saco-cama velho de Pasha, deixou um bilhete com uma frase à família e partiu para Kirov a pé.

Durante a sua última manhã no trabalho, mandaram Tatiana para os motores a diesel. Tinha de aparafusar as velas de ignição nas câmaras de combustão. As velas

Page 136: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

136

aqueciam o ar comprimido nos cilindros até se dar à ignição. Como era uma parte da cadeia de montagem em que já tinha muita experiência, fez o trabalho sem lhe prestar grande atenção e passou toda a manhã enchendo-se de coragem.

À hora do almoço foi falar com Krasenko, levando consigo a pressurosa Zina, e disse-lhe que queriam ingressar as duas no Exército de Voluntários do Povo. Havia mais de uma semana que Zina falava em se oferecer como voluntária.

Krasenko respondeu-lhe que era muito nova. Ela teimou. - Mas porquê, Tania? - indagou Krasenko com simpatia. - Luga não é sítio para

uma rapariga como tu. Ela explicou que sabia como a situação era desesperada. No trabalho, os

car¬tazes gritavam: «Para Luga — às trincheiras!» E afirmou que havia rapazes e raparigas de catorze e quinze anos a cavar trincheiras. Ela e Zina queriam fazer o queestivesse ao seu alcance para ajudar os soldados do Exército Vermelho. Zina assen¬tia, calada. Tatiana sabia que teria de ser Krasenko a passar-lhe uma licença.

- Por favor, Sergei Andreevich - suplicou. - Não. Ela insistiu, dizendo a Krasenko que a partir do dia seguinte meteria as folgas

a que tinha direito e que, de uma maneira ou de outra, iria para Luga. Partiria com ou sem a sua ajuda. Não tinha medo de Krasenko. Sabia que ele gostava dela.

- Sergei Andreevich, náo pode prender-me aqui. Quer impedir voluntárias cheias de energia de ajudarem a sua pátria e o Exército Vermelho?

Ao seu lado, Zina assentia. Krasenko suspirou profundamente, deu-lhes passes e autorizações para

dei¬xarem Kirov e carimbou-lhes os passaportes domésticos. Quando elas se prepara¬vam para partir, levantou-se e desejou-lhes boa sorte. Tatiana teve vontade de lhe dizer que ia procurar o irmão, mas como não queria que ele tentasse convencê-la do contrário, calou-se e só agradeceu.

As raparigas foram então para uma sala escura, do tamanho de um ginásio, onde, depois do exame médico, as equiparam com picaretas e pás que Tatiana achou muito pesadas. Depois, mandaram-nas de autocarro para a Estação de Var¬sóvia, de onde seguiriam num camião militar com destino a Luga.

Seriam camiões blindados como os que vira a transportar os quadros do Ermitage ou como os que Alexander dissera às vezes conduzir a sul de Leninegrado?

Não eram. Tratava-se apenas de camiões normais cobertos com oleados caqui, do tipo que se via constantemente em Leninegrado.

Entraram, apertando-se entre mais quarenta pessoas. Tatiana observou os soldados transportando caixotes para o camião. Teriam de se sentar em cima deles.

- O que está cá dentro? - perguntou a um soldado. - Granadas — respondeu ele, fazendo um sorriso aberto. Preferiu ficar de pé.

Page 137: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

137

Os sete camiões saíram em comboio da Estação de Varsóvia e meteram pela estrada que seguia para sul, rumo a Luga.

Em Gatchina, mandaram toda a gente sair e fazer o resto do caminho num comboio militar.

- Zina - disse Tatiana à amiga ainda bem que vamos de comboio. Assim podemos sair em Tolmachevo.

- Estás maluca? — volveu-lhe Zina. — Vamos todos para Luga. - Eu sei. Saímos as duas, mas depois apanhamos outro comboio para Luga. - Não. - Sim, Zina. Por favor. Tenho de sair em Tolmachevo. Tenho de procurar o ,

meu irmão. Zina fitou-a, incrédula. - Tania! Quando eu tedisse que Minsktinha caído, pedi-te para vires

comigoprocurar a minha irmã? — indagou, com os olhos pequenos e escuros pestanejando e a boca muito tensa.

- Não, Zina, mas acho que Tolmachevo ainda não caiu nas mãos dos Ale mães. Ainda tenho esperança.

- Nem penses que saio! Vou para Luga ajudar os nossos soldados, como toda a gente. Não quero que a NKVD me tome por desertora e me dê um tiro.

- Zina! - exclamou Tatiana. — Como podes ser desertora se és voluntária?Anda comigo, por favor.

- Já disse que não e acabou — rematou Zina, virando a cabeça. - Está bem. Mas eu vou.

Page 138: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

138

4

Um cabo enfiou a cabeça dentro do quarto de Alexander e gritou-lhe que o coronel Stepanov queria falar com ele.

O coronel estava a escrever. Parecia mais cansado do que há três dias. Ale¬xander esperou pacientemente. Stepanov levantou a cabeça e o jovem viu-lhe as olheiras debaixo dos olhos azuis e os sulcos profundos cavados no rosto pelo esforço de exercer a sua autoridade sobre subalternos de má vontade.

- Tenente, desculpe ter demorado algum tempo. Não tenho boas notícias para ti.

- Compreendo. O coronel baixou o olhar. - A situação em Novgorod era desesperada. Quando o Exército Vermelho

percebeu que os Alemães estavam a cercar as aldeias num raio de alguns quilôme¬tros, recrutaram os rapazes dos acampamentos em volta de Luga e Tolmachevo para ajudarem a entrincheirar a cidade. Um desses acampamentos foi Dohotino. Não sei nada especificamente do Pavel Metanov... — Pigarreando: - Como sabe, o avanço das forças alemãs foi muito mais rápido do que pensávamos.

Conversa soviética. Era como ouvir rádio. Diziam isto,mas queriam dizer aquilo.

- Meu coronel? O quê? - Os Alemães passaram Novgorod. - O que aconteceu aos rapazes dos acampamentos? - Tenente, não sei mais nada para além do que lhe contei. — Depois de uma

pausa: - Conhecia bem o rapaz? - Conheço bem a família, meu coronel. - Empenho pessoal? Alexander pestanejou: - Sim. O coronel Stepanov calou-se, brincando com a caneta e olhando para as

folhas que estava a escrever. Não levantou a cabeça nem quando voltou por fim a falar:

- Gostaria de ter melhores notícias para lhe dar, Alexander. Os Alemães atra¬vessaram Novgorod com os seus tanques. Lembra-se do coronel Yanov? Morreu. Os Alemães mataram militares e civis indiscriminadamente, pilharam o que pude¬ram e incendiaram a cidade.

Sem recuar um passo nem tirar os olhos do rosto do coronel, Alexander per¬guntou com energia:

Page 139: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

139

- Deixe ver se compreendi bem: o Exército Vermelho mandou rapazinhos para a linha da frente?

Stepanov levantou-se atrás da secretária: - Quer ensinar-nos como devemos agir nesta guerra, tenente? - Não queria parecer atrevido. — Bateu com os calcanhares um no outro e fez

a continência, mas não se mexeu. - No entanto, é pura loucura militar juntar rapazes sem experiência com oficiais bem treinados e fazer deles carne para canhão.

O coronel continuou atrás da secretária. Os dois homens, um muito jovem e o outro já velho aos quarenta e quatro anos, ficaram calados. Depois, o coronel falou em voz comovida:

- Diga aos pais que o filho morreu para salvar a Mãe Rússia. Morreu ao ser¬viço do nosso grande guia, o camarada Estaline.

Ainda nessa manhã, Alexander foi chamado ao portão da entrada. Desceu as escadas, receando que fosse Tatiana. Ainda não conseguiria enfrentá-la. Ten¬cionava ir ter com ela a Kirov, ao fim do dia. Viu Dasha ao pé de Petrenko. Parecia abatida e nervosa.

- Que se passa? - perguntou-lhe, puxando-a de lado e esperando que tam¬bém ela não tivesse lá ido tentar obter informações de Tolmachevo e Pasha.

Mas ela enfiou-lhe um papel na mão: - Olha para isto. Vê só o que a maluca da minha irmã fez! Desdobrou o bilhete. Era a primeira vez que via a letra de Tatiana, redonda,

pequenae nítida. Queridos mãezinha e paizinho: Alistei-me nos Voluntários do Povo para ir procurar o Pasha. Tania.

Esforçando-se para controlar a expressão do rosto, devolveu cuidadosamente o bilhete e indagou:

- Quando partiu ela? - Ontem de manhã. Quando nos levantámos, já não estava. - Dasha, porque não vieste imediatamente? Ela desapareceu ontem? - Pensámos que estava a brincar e que ia voltar. - Esperavam que ela voltasse com o Pasha? - inquiriu Alexander devagar - Sei lá! Ela mete umas ideias na cabeçal A sério que não a percebo. Se nem

sequer sabe ir à loja sozinha... quanto mais para a frente! A máezmha e o paizinho estão fora de si. Já andavam preocupadíssimos com o Pasha, e agora isto!

- Estão preocupados ou zangados? — quis saber Alexander. - Em pânico. Morrem de medo por ela... — Foi-se abaixo. Os olhos

mareja¬ram-se-lhe de lágrimas. — Meu querido - disse, aproximando-se dele e abraçando-o. O rosto de Alexander, no entanto, continuou tão fechado como um banco num dia feriado —, não sabia para quem havia de me virar. Ajuda-nos, por favor. Ajuda- -nos a procurar a minha irmã. Não podemos perder a minha Tania...

- Eu sei. - Por favor! Fazes isto... por mim? Dando-lhe palmadinhas nas costas, recuou:

Page 140: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

140

- Vou ver o que posso fazer. Passando por cima do seu superior imediato, o major Orlov, foi direitinho ao

coronel Stepanov, junto de quem conseguiu autorização para levar até à linha de Luga vinte voluntários e dois sargentos encarregados de conduzir um camião blindado cheio de munições. Sabia que a linha precisava muito de reforços. Disse a Stepanov que regressaria dali a uns dias.

Stepanov deu-lhe licença para se retirar, dizendo: - Volte, tenente. E traga os homens. — Depois de uma pausa: — Como

sempre. -Farei o possível, meu coronel. — Não eram muitos os voluntários que

regres¬savam ao quartel. Antes de partir, foi oferecer a Dimitri um lugar no seu destacamento, mas este

recusou. -Devias vir, Dima. - Vou quando me mandarem — retorquiu Dimitri, abanando a cabeça-, mas

não nado voluntariamente para as mandíbulas do tubarão. Não sabes o que acon¬teceu em Novgorod?

Alexander guiou ele próprio o camião, que levava homens, trinta e cinco espingardas Nagant, trinta e quatro espingardas Tokarevnovinhas em folha, duas caixas de granadas de mão, três caixotes de minas, sete caixas de munições, uma pilha de obuses e um barril de pólvora para os morteiros. O jovem ia pensando que ainda bem que o camião era blindado.

Quem lhe dera ter um dos tanques que Tatiana fizera! A ordem das três cidades a partir de Leninegrado era Gatchina primeiro,

depois Tolmachevo e por fim Luga. Em Gatchina já se ouvia o troar distante da artilharia. Os seus homens tremiam atrás dele enquanto desciam a estrada de terra.

Ouviam-se bombas explodindo como fogo de artifício. O pai surgiu-lhe à frente num clarão, como num sonho, querendo saber o que fazia ali às portas da morte antes de tempo.

- Faço-o por ela, pai! O sargento Oleg Kashnikov, um jovem soldado musculoso, perguntou: - Como disse, meu tenente? - Nada. É que às vezes falo com o meu pai. - Mas não era russo, meu tenente. Parecia inglês. Mas que sei eu? - Não era inglês. Só tolices sem sentido. Quando chegaram a Luga, o barulho do fogo de artilharia já não estava

dis¬tante. O terreno era plano e havia fumo e som. «E um som que não significa nada», pensou Alexander. «E o troar da raiva e da morte.»

Numa tarde de 4 de julho, depois de uma churrascada, a família fora passear de barco e ver o jogo de artificio em Nantucket Sound. Alexander, com sete anos, levantara os olhos para o céu, encantado com o arco-íris de luzes que explodia com

Page 141: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

141

grande baru¬lho. Não imaginava nada de mais espetacular do que todas aquelas cores vibrando, chuviscando e enchendo o céu de vida.

Aproximavam-se do rio Luga. A esquerda havia campos e à direita a floresta. Viu crianças com cerca de dez anos de idade apanhando o que restava das colheitas do ano. Em volta dos campos, soldados, velhos e mulheres cavavam trincheiras. Sabia que os campos seriam minados logo que estivessem ceifados.

Com a espingarda em riste, ordenou calmamente aos homens que se manti¬vessem vigilantes e foi procurar o coronel Pyadyshev, que estava a organizar uma linha de defesa de doze quilômetros ao longo do rio. Pyadyshev ficou satisfeito com as armas e mandou imediatamente os seus soldados descarregá-las e prepará-las para serem distribuídas.

- Só setenta espingardas, tenente? - perguntou. -É o que temos, meu coronel. Vêm mais a caminho. Levou então os seus subalternos para mais perto do rio, onde receberam pás

e cavaram durante umas horas. Estudando a floresta do outro lado com um par de binóculos, percebeu que os Alemães já estavam muito perto, embora ainda não em posição ofensiva.

Os homens comeram as conservas que tinham levado e beberam água do rio. Alexander entregou então o comando aos dois sargentos, Kashnikov e Shapkov, e foi procurar o grupo de voluntários que viera de Kirov havia mais de quatro dias.

Nesse dia, não encontrou ninguém. Mas no seguinte deu com Zina, que es¬tava no campo, inclinada com a sua pá. Desenterrava batatas, que atirava para um cesto, com terra e tudo. Alexander sugeriu-lhe que limpasse a terra primeiro, de modo a ter espaço para mais batatas. Preparada para lhe dar uma resposta torta, Zina lançou-lhe um olhar encolerizado mas, ao ver a estrela vermelha e a espingarda, não disse nada. Alexander percebeu que não estava a reconhecê-lo. «Nem toda gente pode ter a minha memória visual», pensou.

- Ando à procura da sua amiga, a Tatiana. Está aqui consigo? Zina levantou a cabeça e o medo faiscou-lhe nos olhos. - Não a vi. Deve estar por aí. — Fez um gesto vago. «De que terá medo?», pensou Alexander, dando um suspiro de alívio. - Onde? - Não sei. Separámo-nos quando saímos do comboio. - Separaram-se onde? - Não sei. — Estava claramente nervosa. Não acertou no cesto e as batatas

caíram no chão. Não foi apanhá-las e continuou a cavar. Alexander bateu duas vezes no solo com a espingarda. - Camarada Atapova! Pare. Endireite-se. Levante-se e esteja quieta. - Zina

obedeceu prontamente. — Lembra-se de mim? Ela abanou a cabeça. - Não acha estranho que eu saiba o seu nome? - Vocês têm maneira de descobrir essas coisas - tartamudeou Zina.

Page 142: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

142

- Chamo-me Alexander Belov. Costumava ir a Kirov esperar a Tatiana. É por isso que sei o seu nome. Lembra-se agora?

O alívio estampou-se no rosto fechado e coberto de terra de Zina. - A família da Tatiana está muito preocupada com ela. Sabe onde ela

está?Alívio e uma expressão de defesa. - Ouça — gritou Zina —, ela quis que eu saísse com ela, mas eu disse que não.

Não sou desertora. - Que saísse com ela onde? Além disso, não pode ser desertora - explicou ele.

- Está num exército de voluntários. Zina pareceu não perceber ou não querer perceber. - Seja como for, nunca mais a vi. Não veio para Luga connosco. Saltou do

comboio em Tolmachevo. Alexander empalideceu. - Saltou do comboio... - Quando o comboio abrandou num entroncamento, desceu o degrau e

sal¬tou. Vi-a rolar pela encosta abaixo. - Porque a deixou saltar do comboio? - perguntou com a expressão

endurecida. Elevando a voz, Zina volveu-lhe: — Deixar? Quem é que deixou? Eu disse-lhe para não ir. — Soltando

umagar¬galhada: — Queria que eu saltasse! Porque havia de ir com ela? Não ando à procura do meu irmão. Alistei-me no Exército de Voluntários do Povo pela Mãe Rússia.

Recuando um passo, Alexander comentou: — Então se fosse pela Mãe Rússia, saltaria de um comboio, camarada? Zina não respondeu. Virando-se, continuou a cavar batatas, resmungando: - Não ia agora saltar do comboio! Não quero ser desertora! Foi rapidamente procurar os seus homens. Meteu Kashnikov e cinco

voluntá¬rios no caminhão, agora sem munições, e conduziu-o para norte, rumo aTolmachevo.

A cidade estava praticamente deserta. Percorrendo as ruas, encontraram por fim uma mulher com uma criança e uma sacola, que lhes disse que Dohotino ficava três quilómetros a oeste.

- Mas não vão encontrar ninguém — acrescentou ela. - Absolutamente nin¬guém.

De qualquer modo, seguiram para lá. A mulher tinha razão. As casas haviam sido todas abandonadas e a aldeia bombardeada. Um incêndio ceifara meia dúzia de casas. Mesmo assim, Alexander chamou por ela:

- Tania! Tatiana! Procurou dentro de todas as casas, até das que o incêndio arrasara. Os seus

homens também chamaram por ela. Parecia-lhe estranho ouvir o nome dela pro¬nunciado por desconhecidos. Mas Kashnikov era um bom sargento. Não lhe fez

Page 143: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

143

perguntas. De resto, os homens estavam prontos a ajudar, nem que fosse só para quebrar a monotonia das horas passadas a cavar trincheiras.

- Tania! Tania! - As suas vozes ecoavam na pequena aldeia, no meio de cam¬pos e bosques. Não encontraram vivalma. Acharam bocados de coisas espalhados pelo chão, mantas, mochilas queimadas, escovas de dentes.

Nos arredores de Dohotino, deram com uma pequena tabuleta com uma seta: ACAMPAMENTO DE RAPAZES DEDOHOTINO.Os sete homens palmilharam dois quilómetros por um caminho no meio dos bosques e chegaram a um prado onde se viam dez tendas abandonadas montadas em fila perto de um grande lago.

Vasculhando-as, Alexander descobriu que deviam ser onze e não dez. Uma delas fora desmontada e as estacas desenterradas. O solo ainda estava revolvido no sítio de onde tinham sido arrancadas. Achando que era uma boa ideia, mandou os soldados desmontarem as outras dez. As tendas eram grandes e feitas de lona grossa.

A fogueira acesa pelos campistas estava fria, como se ninguém lhe tocasse há semanas. Não havia vestígios de comida nem de lixo deixado pelos rapazes ou pela jovem Tatiana.

Já era tarde quando regressaram a Luga. Ele e os seus homens montaram as tendas encontradas na floresta nas traseiras do acampamento militar. Alexander deitou-se no chão e tapou-se com o impermeável. Não conseguiu dormir durante muito tempo.

Na América, no acampamento dos escuteiros, montavam-se as tendas no bosque, comiam-se bagas e peixe pescado no lago e à noite acendiam-se fogueiras. Abriam-se latas de fiambre, assavam-se marshmallows, cantava-se e toda a gente se datava tarde.

Durante o dia, aprendiase a sobreviver na floresta e a fazer nós. Alexander levarauma vida idílica aos oito, nove, dez anos. Os meses de verão que passara no acampa mento dos escuteiros tinham sido os melhores da sua infância.

Sabia que, se não tivesse partido o pescoço ao saltar do comboio, Tatiana encontrara o acampamento vazio. Se fosse esperta, talvez até tivesse levado a tendaque faltava. Mas o que faria a seguir? Regressaria a Leninegrado?

Não lhe parecia. Se partira para procurar Pasha, não ia regressar semsaber dele. Depois de Tolmachevo, para onde iria?

Luga. Só podia ser. Iria para Luga porque seria para onde pensaria que Pasha fora... ajudar a edificar a linha de Luga.

Animado e esperançado, adormeceu. No dia seguinte, ao nascer do sol, ouviu o barulho distante de aviões. Fez

votos para que fossem aviões soviéticos. Não teve sorte. A cruz suástica negra via-se nitidamente mesmo a trezentos

metros de altitude. Duas formações de dezasseis aviões varreram o céu e deixaram cair qualquer coisa. Ouviu gritos de terror, mas não eram bombas. Dali a pouco, pedaços de papel brancos e castanhos começaram a descer como minúsculos para-

Page 144: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

144

quedas. Um deles pousou a frente da sua tenda. Apanhou-o. «Homem soviético!», proclamava o papel. «O fim chegou! Junta-te aos vencedores... e vive! Rende-te... e vive! O nazismo é superior ao comunismo. Terás comida, terás emprego, terás liberdade! Já!»

Os papéis castanhos eram vistos para atravessar a linha da frente. Alexander abanou a cabeça, atirou-os ao chão e foi lavar-se no afluente do Luga que atraves¬sava o bosque.

As nove da manhã, viu mais aviões com o símbolo nazi voando apenas a uma centena de metros do chão. Dentro, as metralhadoras pesadas dispararam contra as pessoas que trabalhavam nos campos.

Toda a gente correu a abrigar-se debaixo das árvores. Uma das tendas incen¬diou-se. «Os nazis não estão a lançar bombas», pensou Alexander, pondo o capa¬cete e saltando para uma trincheira. «Não, estão a poupar as suas preciosas bombas.»

Depois, percebeu que talvez eles estivessem a poupar algumas bombas, mas não as de fragmentação, que caíam dos aviões e explodiam no ar. Ouviu gritos, abafados pelo bombardeamento contínuo.

Procurou os seus homens nas trincheiras, mas não encontrou ninguém que conhecesse. O bombardeamento continuou por trinta minutos. A seguir os aviões afastaram-se, não sem antes lançarem mais folhetos, que diziam apenas «Rendição ou Morte».

Rendição ou morte. O fumo negro pairando no ar, os focos de incêndio e os queixumes dos seres

humanos pareciam-lhe apocalípticos. Cadáveres boiavam no Luga. Nas margens do rio, ao longo das valas e dos buracos reforçados com cimento, pessoas feridas retorciam-seno chão. Encontrou Kashnikov, vivo mas sem parte de uma orelha. O sangue escorria-lhe de modo abundante da ferida para a farda. Shapkov estava bem. Alexander passou a manhã ajudando a transportar feridos para as tendas de campanha e o resto do dia a cavar não trincheiras mas valas comuns. Ele e dezasseis dos seus homens abriram uma grande cova junto da floresta, dentro da qual depo¬sitaram os corpos de vinte e três pessoas que tinham morrido nessa manhã. Onze mulheres, nove homens, um idoso e duas crianças com menos de dez anos. Ne¬nhum soldado.

Examinou o rosto das mulheres uma por uma, com o coração parando-lhe de bater dentro do peito.

Vagueou então pelo meio dos feridos, mas não encontrou Tatiana. Até pro¬curou Pasha, pois vira uma fotografia dele aos treze anos, de pé ao lado da irmã, puxando-lhe as tranças louras.

Procurou Pasha mas apenas por reflexo, pois sabia que ele não estava em Luga.

Também não conseguiu encontrar Zina outra vez.

Page 145: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

145

Por fim, foi falar com o coronel Pyadyshev. Depois de se pôr em sentido por uns momentos, disse:

- É difícil trabalhar nestas condições, não é, meu coronel? - Não, tenente. — Era um homem pensativo, a ficar calvo. - A que condições

se refere? À guerra? - Não, meu coronel. Ao facto de não estarmos preparados para enfrentar um

inimigo impiedoso. Estou apenas a expressar o que sinto pelo que nos espera. Amanhã retomaremos os trabalhos de fortificação da linha.

- Tenente, recomeçarão hoje até já não haver luz. Pensa que o dia de amanhã é feriado para os nazis? Julga que não vão bombardear-nos outra vez?

Tinha a certeza de que o fariam de novo. - Tenente Belov, acabou de chegar e hoje trabalhou muito... - Cheguei há três dias — corrigiu Alexander. - Há três dias, está bem. Há dez dias que os Alemães bombardeiam a linha.

Houve bombardeamentos ontem... não sei onde estava... e no dia anterior. Todas as manhãs das nove às onze, como um relógio. Primeiro atiram os panfletos dizendo-nos para nos passarmos para o seu lado e depois bombardeiam-nos. Durante o resto do dia, enterramos os cadáveres e cavamos trincheiras. As unidades principais estão a avançar na nossa direção a um ritmo de quinze quilómetros por dia. Arrasaram-nos em Minsk, arrasaram-nos em Brest Litovsk e estão a acabar de nos arrasar em Novgorod. Nós somos os próximos. Tem razão, não temos hipóteses. Mas quando me diz que estamos mal preparados, respondo-lhe que não, fazemos tudo o que podemos e depois morremos. É assim. — Acendeu um cigarro com as mãos a tremer e apoiou-se na mesinha baixa.

Alexander fez a continência: - Continuaremos a fazer tudo o que pudermos. Enquanto ainda havia luz, deu a volta ao acampamento da linha da frente,

acompanhado por três dos seus homens. Passando pelas centenas de soldados estacionados nas margens do Luga à espera dos Alemães, jogando às cartas e fumando, admirou-se com a quantidade de graduados que viu. Parecia que um em cada dez homens era oficial. Muitos eram primeiros e segundos-tenentes, mas também havia capitães e bastantes majores. Todos na linha da frente, prontos a combater o inimigo. Linha da frente. Quem comandaria as tropas se os majores se encontravam no terreno? Nem queria pensar nisso.

Passou os campos a pente fino, dividindo-os segundo uma grelha e percorrendo-os de um lado ao outro, examinando o rosto de todas as pessoas que cavavam batatas ou trincheiras. Não a encontrou.

Foi de novo falar com Pyadyshev. - Mais uma pergunta, meu coronel: alguns voluntários da fabrica de Kirov

vieram para cá há cerca de cinco dias. Há algum sítio para onde possam ter sido mandados dar uma ajuda? Seria possível alguns deles terem ido mais para leste?

Page 146: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

146

- Comando estes doze quilômetros. Do resto, não sei. A última linha de de¬fesa até Leninegrado fica aqui. Depois, não há nada. Só a retirada. Ou a rendição.

- Não existe rendição, meu coronel — disse Alexander firmemente. - Antes a morte do que a rendição.

Foi a vez de o coronel pestanejar: — Volte para Leninegrado, tenente Belov. Volte para Leninegrado enquanto

pode. E leve os voluntários que trouxe consigo. Salve-os. Na manhã seguinte, quando foi falar com Pyadyshev, viu que durante a noite

a tenda do coronel fora desmontada, as estacas retiradas e os buracos tapados. Como cada vez chegavam ao rio mais soldados, a frente fora dividida em três seto¬res, cada um com o seu comandante, pois tornara-se claro que era difícil organizar tantas tropas a partir de um único posto. A tenda do novo comandante fora mon¬tada a cinquenta metros do lugar onde estivera a anterior. Este novo comandante não só não sabia onde estava Pyadyshev como também quem era Pyadyshev. Era o dia 23 de julho.

Alexander não teve tempo para admirar a rapidez do trabalho da NKVD, porque os bombardeamentos recomeçaram às nove da manhã, prolongando-se desta vez até ao meio-dia. Os Alemães matavam os soldados da linha da frente antes de atacarem com a infantaria, para o que não devia faltar muito. Desconfiava que a segunda parte da blitzkneg estava por uns dias. Ou ia procurar Tatiana ou ficava em Luga a enfrentar os tanques alemães.

Com o coração apertado, procurou-a de um lado para o outro ao longo do rio. Os seus homens foram levados para as trincheiras. Deram armas aos que trei¬nara pessoalmente, avisando-os de que separarem-se delas era um crime punível com a morte.

- Perder a arma é um crime contra a pátria! Mas durante o ataque aéreo seguinte viu três dos seus homens largando as

armas e correndo a abrigarem-se. Quando o bombardeamento acabou, sorriram timidamente a Alexander, que lhes devolveu um sorriso cansado, abanando a cabeça.

Passou outro dia. Os soldados ocuparam as suas posições ao longo das margens, montaram canhões de artilharia, minaram os campos de batatas e carregaram as hortaliças que podiam em camiões que seguiram para Leninegrado. O aperto que Alexander sentia no peito não o abandonou de manhã à noite.

Pasha estava perdido, isso era óbvio. Mas onde se teria metido Tatiana? Porque não conseguia encontrá-la?

Page 147: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

147

5

Tatiana saltou do comboio e rolou pela encosta abaixo sem grande dificul¬dade. Aquilo não era nada comparado com o que costumavam fazer em Luga, quando saltavam em corrida e desciam um talude duro, íngreme e cheio de seixos até ao rio. Bem vistas as coisas, aquela encosta verdejante até era macia, embora o ombro sobre o qual caíra lhe doesse um bocadinho.

Ao encontrar o acampamento de Dohotino abandonado, ficou desmorali¬zada e passou um dia numa das tendas, sem saber o que fazer. Nadou no lago e comeu mirtilos. Tinha umas tostas na mochila, mas preferia guardá-las.

Quando eram mais novos, ela e o irmão costumavam fazer corridas de um lado para o outro do rio Luga, a ver quem nadava mais depressa. Pasha era ligei¬ramente maior e mais forte do que Tatiana, que em compensação tinha mais resis¬tência do que ele. Da primeira vez que faziam a corrida, ganhava ele. Da segunda vez, ganhava ele. Da terceira, não ganhava. Tatiana sorriu com a lembrança de Pasha gritando de frustração e ela guinchando de alegria.

Ainda não ia desistir do irmão. Provavelmente, Pasha e os companheiros tinham ido fàzer trabalho voluntário algures perto de Luga. Decidiu seguir para Luga à procura dele. Talvez também encontrasse Zina e conseguisse convencê-la a regressar a Leninegrado. Não queria que, além de Pasha, também Zina lhe pesasse na consciência.

Na manhã seguinte, no entanto, os Alemães bombardearam a aldeia de Dohotino, que atravessava completamente sozinha. Correu a refugiar-se numa casa, mas de repente uma pequena bomba incendiária caiu pelo telhado e pegou fogo à parede de madeira que tinha à frente. Viu a velha lanterna de querosene mesmo a tempo. Esquecendo tudo, correu como uma louca. A casa explodiu uns segundos depois, ardendo de cima a baixo e incendiando mais três casas vizinhas e um estábulo. Ficou sem tenda, saco-cama, mochila e tostas.

Mergulhando nos arbustos atrás dos casebres, rastejou por cima das urtigas e escondeu-se debaixo de um carvalho tombado. O bombardeamento sobre a aldeia e a povoação vizinha de Tolmachevo prolongou-se por outra hora. As urtigas por onde acabam de passar ardiam. As bombas mergulhavam na floresta, incen¬diando os ramos mais altos, que caíam no solo onde se encontrava escondida.

«Vou morrer», pensou. «Sozinha nesta aldeia, debaixo de um carvalho. Nunca ninguém me encontrará. Quem da minha família virá procurar-me? Vou morrer aqui sozinha no bosque e transformar-me em musgo, e na Quinto Soviete abrirão uma garrafa de vodca, esquecer-me-ão comendo uns aperitivos e brindarão: À nossa Tania!»

Page 148: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

148

Quando o bombardeamento terminou, deixou-se ficar debaixo do carvalho por mais uma hora, não fosse o diabo tecê-las. O rosto e os braços inchados pica¬vam-lhe. .. urtigas. Melhor isso do que as bombas. Deu graças por se ter lembrado de guardar no bolso da camisa o passaporte doméstico com o carimbo de Krasenko. Sem ele, não iria longe. Seria detida numa das muitas barreiras do Exército ou no escritório de algum Soviete local.

Regressando a Tolmachevo, bateu à porta de uma casa e pediu qualquer coisa para comer. A família deixou-a ficar até de manhã. Quando partiu, descobriu um camião militar perto do Soviete local. Mostrou o passaporte e pediu boleia até Luga. O camião deixou-a na ponta mais oriental da linha de defesa de Luga, perto de Novgorod.

Passou o primeiro dia a apanhar batatas e a cavar trincheiras no campo. Como não via quaisquer grupos de rapazes envergando os uniformes dos acam¬pamentos, informou-se junto de um sargento, que resmungou qualquer coisa sobre Novgorod.

- Os voluntários dos acampamentos foram mandados para lá — disse, afastandose.

Novgorod? O lago Ilmen? Era onde estava o seu Pasha? Era para lá que devia ir? Tatiana lavou-se no rio e dormiu na erva, perto de uma árvore.

Na manhã seguinte, os aviões alemães bombardearam as batatas, as trinchei¬ras e Tatiana.

Era terrível ver as bombas de fragmentação, que explodiam como se quises¬sem matá-la só a ela. Percebeu que tinha de sair de Lugaa todo o custo. Vagueando através do fumo, ia pensando como faria para chegar a Novgorod. Três soldados aproximaram-se, perguntaram-lhe se estava ferida e mandaram-na segui-los até à tenda-hospital. Obedeceu com relutância. E ainda mais relutante ficou quando descobriu o que eles queriam: que tratasse dos moribundos. E havia muitos. Soldados, mulheres civis, crianças da aldeia, velhos. Todos na tenda montada à pressa, rodos a morrer.

Tatiana, que nunca vira a morte tão de perto, fechou os olhos. Só lhe apetecia fugir, mas era impossível. À entrada, as milícias da NKVD mantinham a ordem e asseguravam-se de que as voluntárias como ela ficavam onde deviam estar.

Com o coração apertado e os dentes cerrados, aprendeu a estancar feridas comprimindo-as com ligaduras esterilizadas. As feridas estancavam e depois os feridos morriam. O que não podia fazer, no entanto, era transfusões de sangue, pois não havia sangue. O que não podia fazer era impedir que as feridas infetassem; o que não podia fazer era evitar a dor. Os médicos não davam morfina aos moribundos, pois tinham ordens para a administrar antes aos menos feridos, com hipóteses de regressar à linha da frente.

Muitas pessoas poderiam ser salvas com sangue ou esse medicamento novo chamado penicilina; ou pelo menos não sofreriam as agonias da morte se houvesse morfina. O desespero que sentiu na primeira noite passada no hospital de cam¬panha quase se sobrepôs ao desespero que sentia por não encontrar o irmão.

Page 149: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

149

Na manhã seguinte, um soldado mortalmente ferido no peito perguntou-lhe se era rapaz ou rapariga.

- Rapariga — respondeu tristemente. - Prova — disse ele. Mas antes de poder prová-lo, o soldado morreu. No rádio perto da tenda dos oficiais ouviu vozes com sotaque alemão

convidando-a em russo a ir para a Alemanha com eles. Atiraram-lhe vistos para atravessar a linha da frente e, como não o fez, tentaram matá-la com bombas e metralhadoras. Depois, sossegaram até ao fim da tarde, altura em que recomeçaram os bombardeamentos. Entre os ataques, Tatiana lavou os moribundos e ligou-Ihes as feridas.

Na tarde seguinte, embrenhou-se um quilómetro nos campos, à procura de uma batata para comer. Ouviu os aviões antes de os ver e pensou: «Mas ainda não é noite!» Depois, mergulhou imediatamente no meio das plantas baixas, onde permaneceu durante quinze minutos. Quando os aviões partiram, levantou-se e correu para o hospital de campanha, que estava em chamas e de onde rastejavam corpos queimados e lamuriosos.

Centenas de voluntários sobreviventes pegaram em capacetes, baldes, chávenas e tudo o que encontraram e correram ao rio a buscar água para ajudar a apagar o incêndio. Demorou três horas, quase até ao fim da tarde, quando houve mais bombardeamentos. Depois caiu a noite. Já não havia tenda para os feridos, que jaziam no chão em cobertores ou diretamente na erva, gemendo e soltando os seus últimos suspiros ao ar do verão. Tatiana não podia ajudar ninguém. Sentada com o capacete verde com a estrela vermelha que usara para transportar água do rio, tudo o que podia fazer era continuar junto de uma mulher que perdera a filha durante o ataque e que estava gravemente ferida no ventre. Deitada à sua frente, chorava pela filhinha. Ajustando melhor o capacete, deu a mão à mulher e apertou-a até ela deixar de chorar.

Depois, levantou-se, caminhou até às árvores e deitou-se no chão. «A seguir sou eu», pensou. «Sinto que sim. A seguir sou eu.»

Como havia de chegar a Novgorod, cem quilómetros para leste? Lavou-se e dormiu no campo com o capacete na cabeça. Logo que o dia raiou,

olhou para o outro lado do rio e viu os torreões e as metralhadoras dos tan¬ques alemães. Um cabo que dormira ali perto reuniu Tatiana e mais alguns volun¬tários e mandou-os partir imediatamente para a cidade de Luga.

Chamando o cabo à parte, Tatiana perguntou-lhe calmamente se havia alguma maneira de ir antes para Novgorod. O cabo empurrou-a com a espingarda e gritou:

- Perdeu o juízo? Novgorod está nas mãos dos Alemães! A expressão de Tatiana fê-lo calar-se. - Camarada... como se chama? — inquiriu mais baixo. - Tatiana Metanova.

Page 150: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

150

- Camarada Metanova, ouça. É muito nova para estar aqui. Quantos anos tem? Quinze?

- Dezessete. - Volte para Luga imediatamente, por favor. Julgo que ainda há comboios

militares da estação de Luga para Leninegrado. É de Leninegrado? - Sou. - Não queria chorar à frente de um desconhecido. — A cidade de

Nov¬gorod está toda nas mãos dos Alemães? — perguntou em voz fraca. — E os volun¬tários que estavam lá?

- Quer calar-se com Novgorod? - berrou-lhe o cabo. - Não ouviu o que eu disse? Não há soviéticos em Novgorod. E em breve não haverá soviéticos em Luga, incluindo a camarada. Por isso, faça-me o favor, ponha-se a andar. Deixe-me ver o seu passaporte.

Ela mostrou-lho. Devolvendo-lho, o cabo disse: - Tem aqui uma dispensa de Kirov. Volte para lá. Vá-se embora. Como iria sem Pasha? Mas não o disse ao cabo. O seu grupo era composto por nove pessoas. Tatiana era a mais pequena e a

mais nova. Levaram o resto do dia a percorrer os doze quilómetros de campos e florestas que os separavam de Luga. Tatiana disse que iam chegar a Luga mesmo a tempo do bombardeamento e os seus cansados companheiros não lhe ligaram. Sentiu-se de novo em casa.

O grupo chegou à estação de Luga às seis e meia e ficou à espera do comboio, que não chegou. As sete horas, no entanto, ouviram-se os aviões alemães. Os voluntários juntaram-se dentro da pequena estação de tijolo, que ao princípio parecia tão segura e capaz de aguentar um pequeno bombardeamento e os tiros das metralhadoras.

Durante o ataque, uma das mulheres entrou em pânico, largou a gritar e cor¬reu para fora, onde foi imediatamente abatida. Os outros oito assistiram à cena, horrorizados. Depressa se tornou óbvio que aquilo que os Alemães queriam era destruir a estação que os escondia. O objetivo dos nazis era arrasar a linha férrea. Os aviões não iam sair dali enquanto a estação estivesse de pé. Tatiana sentou-se no chão com os joelhos encostados ao peito e puxou o capacete verde para cima dos olhos fechados. Achava que o capacete abafaria o som da morte.

A estação desfazia-se como papel molhado. Tatiana rastejava para longe das traves e dos tiros, mas não havia lado nenhum para onde pudesse ir. Sentia corpos à sua volta através do fumo. Febril, prestes a desfalecer, tateava-os com as mãos. Os tiros das metralhadoras chegavam-lhe da entrada, mas quando o teto se des¬moronou todos os sons se abafaram e deixou de ter medo. Só ficou a mágoa. Mágoa por Alexander.

Page 151: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

151

6

Alexander começava a perder a esperança. Do outro lado da fronteira natural que era o rio, os Alemães reuniam as suas tropas, tanques e batalhões de soldados prontos a disparar, agressivos e impecavelmente treinados, que nada faria deter, muito menos umas centenas de voluntários empunhando as suas pás.

Só se viam dois tanques soviéticos. Do outro lado do rio havia pelo menos trinta Panzers. O pelotão de vinte homens de Alexander estava reduzido a doze, e os campos de minas separavam-no agora de Leninegrado. Três dos seus homens tinham morrido quando estavam a pôr uma mina, que explodira. Não tinham qualquer experiência com minas: só com espingardas, mas essas haviam-lhes sido tiradas pelo Exército. Apenas Alexander e os seus dois sargentos continuavam na posse das suas.

Afastou-se do rio. Não sabia em que direção havia de procurar. Ao fim da tarde, o novo coronel chamou-o ao posto de comando. Nem por

sombras gostava tanto dele como de Pyadyshev. - Quantos homens ainda tem às suas ordens, tenente? - Só doze, meu coronel. - Chega. - Chega para quê? - Os Alemães acabam de bombardear a estação de caminhos de ferro de Luga — começou o coronel. — Agora, os comboios que vêm de Leninegrado com

mais homens e munições não conseguem chegar à linha da frente. Precisamos que vá com os seus homens desimpedir os carris para os engenheiros fazerem as repara¬ções que são necessárias e podermos restabelecer as ligações amanhã de manhã.

- Está a escurecer, meu coronel. - Eu sei, tenente. Gostaria de lhe dar luz, mas não posso. As noites brancas já

se foram, e isto tem de ser feito de imediato. Quando Alexander ia a sair, o coronel acrescentou, numa espécie de à-parte: - Ah! Disseram-me que havia voluntários escondidos na estação quando as

bombas a destruíram. É melhor retirá-los de lá. Na estação de Luga, Alexander e os seus homens verificaram os estragos à luz

das candeias de querosene. O que fora um edifício de tijolos jazia agora por terra. Os carris estavam destruídos ao longo de cinquenta metros.

- Está alguém aqui debaixo? Falem! - gritou Alexander. Ninguém respondeu. Aproximando-se dos escombros, repetiu:

Page 152: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

152

- Está aí alguém? Pareceu-lhe ouvir um gemido. - Estão todos mortos, meu tenente — disse Kashnikov. - Olhe para isto! - Sim, mas ouça... Está aí alguém? — Começou a afastar os grandes

pedre¬gulhos. — Ajudem-me, sim? - Devíamos ir primeiro aos carris, para os engenheiros poderem reparar a

eletricidade — sugeriu Kashnikov. Endireitando-se e fitando-o friamente de frente, Alexander volveu-lhe: - Carris antes de pessoas, sargento? - São as ordens do coronel, meu tenente — tartamudeou Kashnikov. - Não, sargento. São ordens minhas. Toca a andar! — Afastou pedregulhos,

pedaços de janelas e umbrais de portas. Havia pouca luz e era difícil ver. No meio da poeira e dos destroços, cortou-se com vidro partido e nem deu por nada. So percebeu quando o sangue de uma mão lhe sujou a outra.

Tinha a certeza de que o que ouvia não eram só grilos. - Ouviu? - Era um gemido muito baixinho. - Não, meu tenente — respondeu Kashnikov, observando-o com ar

preo¬cupado. - Kashnikov, perdeu as mãos? Mais depressa! Trabalharam com rapidez. Finalmente, encontraram um corpo debaixo dos tijolos e das vigas

queima¬das. Depois dois, três, uma pilha de cadáveres em pirâmide, sob os escombros, pareceu a Alexander que estavam arrumados de mais. Não era possível terem caído assim empilhados uns sobre os outros. Alguém os pusera assim. Apurou o ouvido. Outra vez o gemido. Afastou um homem morto e uma mulher, iluminando-lhes ansiosamente o rosto com a candeia de querosene. Outro gemido.

No fundo, por baixo do terceiro cadáver, encontrou Tatiana. Estava de costas para ele e com um capacete do Exército na cabeça. Não

reco¬nheceu nem as roupas nem o capacete, mas soube que era ela ainda antes de lho tirar pelo corpo delicado e pequeno que observara com atenção durante tantos dias.

- Tatia... - exclamou em voz incrédula. Libertou-a dos outros corpos e das vigas e afastou-lhe o cabelo do rosto.

Estava praticamente inconsciente e até parecia morta àquela luz fraca, mas era ela que soltava os gemidos baixinhos, que de resto continuavam a fazer-se ouvir a intervalos de alguns segundos.

Tinha a roupa, o cabelo, os sapatos e o rosto cobertos de pó e sangue. - Tania, vá - disse ele, esfregando-lhe a face e ajoelhando-se ao seu lado. -Vá. -

O rosto dela estava quente. Bom sinal. - Esta é a tal Tania? — perguntou Kashnikov. Alexander não respondeu. Pensava na melhor maneira de lhe pegar. Assim

coberta de sangue, não sabia onde se encontrava ferida.

Page 153: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

153

- Parece-me que está a morrer - declarou Kashnikov. - E o Kashnikov é médico? — atirou-lhe Alexander. — Não está nada a morrer.

Deixe-se de conversas. Fique aqui e limpe isto com os outros. Precisam da sua ajuda. Assuma o comando, sargento. Depois, regressem rapidamente a Lenine- grado. Está a ouvir? Consegue fazê-lo? Já lhes demos as armas e oito dos nossos homens. Agora que a encontrámos, o nosso trabalho em Luga terminou. Portanto, despachem-se. - Virou cuidadosamente e ergueu nos braços Tatiana que, inerte, continuava a gemer.

- Que faço aos feridos, meu tenente? - Está a ouvir mais alguma coisa? Aliás, nunca deu por nada, e agora fica de

repente preocupado? Estão todos mortos, mas se quiser verifique. Vou levá-la ao médico.

- Quer que vá consigo? Ha tem de ir de maca. - Não tem nada. Eu levo-a. Eram onze horas da noite quando Alexander chegou ao acampamento, depois

de ter caminhado três quilómetros com Tatiana nos braços. Procurou o médico, mas só encontrou o seu assistente, Mark, que dormia

numa tenda. - O médico morreu. Um estilhaço cortou-o em dois. - Há outro? - Não. Tenho de ser eu. - Então está bem. Passando uma vista de olhos pelo corpo ensanguentado de Tatiana, declarou- - Perdeu muito sangue. Deixe-a lá fora. — Voltou a deitar-se na cama de

cam¬panha. - Não - objetou Alexander parece-me que o sangue não é dela. - Era óbvio que

o assistente queria voltar a dormir, mas não estava disposto a deixá-lo; - É difícil perceber com tão pouca luz. Eu vejo-a amanhã, se ela continuar viva. Com Tatiana nos braços, Alexander nem se mexeu: - Vai vê-la agora, cabo. Sentando-se na cama de campanha, Mark suspirou: - É muito tarde, meu tenente. - Tarde para quê? Tem um lençol ou uma cama para ela? - Uma cama? Pensa que estamos nalguma estância de férias? Eu dou-lhe um

lençol. Estendeu o lençol branco no chão. Alexander ajoelhou-se com Tatiana nos

braços e pousou-a. Mark examinou-lhe a cabeça, o rosto e os dentes. Verificou- -lhe o pescoço e levantou-lhe os braços. Quando lhe ergueu a perna, a rapariga gemeu mais alto do que antes.

- Ah! — exclamou ele. — Tem aí a faca? Alexander entregou-lha. Tatiana envergava umas calças compridas. Mark cortou-lhes uma perna e

depois a outra. A canela e o tornozelo direitos estavam inchados e pisados.

Page 154: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

154

- Tem a tíbia fraturada — declarou. — Tanto sangue, e até agora só isto. Mas está fraturada em muitos sítios. Vamos ver o resto. — Desabotoando-lhe a blusa, rasgou-lhe a camisola interior, que em tempos fora branca, e observou-lhe o peito, vértebras e estômago.

O sangue sujava-lhe o corpo frágil. Alexander sentiu vontade de desviar o olhar. - Não sei o que é dela e o que não é — afirmou Mark, suspirando. - Neste

momento, a perna não está a sangrar. - Apalpou-lhe o estômago. - Tinha razão. Ela não está húmida nem fria.

Mais atrás, Alexander não disse nada. Sentia o coração ao mesmo tempo apertado e aliviado.

- Está a ver aqui? Tem três costelas fraturadas do lado direito. Onde a encon¬trou?

- Debaixo da estação dos comboios. Sob tijolos e cadáveres. - Então está explicado. Tem sorte por estar viva. Muita sorte. - Levantando-

se.-Não tenho cama para ela aqui no hospital de campanha. Leve-a para ali e deixe-a no chão. Alguém há de tratar dela de manhã.

- Não vou deixá-la no chão até de manhã. -Porque está preocupado? Ela não está tão ferida como muitos outros. -

Abanando a cabeça: — Devia, vê-los. -Sou um oficial do Exército Vermelho, cabo. Já vi homens feridos. De cer¬teza

que não tem nenhuma cama por aí? Mark encolheu os ombros: -Ela não tem estilhaços nos olhos nem feridas que lhe coloquem a vida em

perigo. Não vou pôr fora uma pessoa com uma ferida no estômago só para ela ter espaço.

-Claro que não - concordou Alexander. -Não sei o que vamos fazer-lhe amanhã — continuou Mark. — Ela precisa de

um hospital em condições, onde lhe endireitem a perna e a engessem imediata¬mente. Aqui não podemos fazer nada.

Alexander abanou a cabeça. A linha férrea estava bombardeada e o Exército requisitara-lhe o camião.

-Não se preocupe com ela amanhã. Tem mais toalhas e ligaduras para esta noite? - Baixando-se, tapou-a com o lençol em cima do qual estava deitada e ergueu-a nos braços. — E outro lençol.

Mark, relutante, encaminhou-se para o seu estojo médico. -E morfina? -Não, meu tenente. - Rindo: - Não tenho morfina para ela. Não há morfina

para uma miúda com uns ossos partidos. Terá de suportar a dor. Colocou três toalhas e algumas ligaduras em cima de Tatiana e Alexander

levou-a para a sua tenda.

Page 155: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

155

Depois de a pousar no lençol, fechou-lhe a blusa e foi ao rio buscar água com um balde. Quando regressou, rasgou uma toalha em bocados, mergulhou um na água fresca e começou a lavar-lhe o rosto e o cabelo. Limpou-lhe a testa, as faces, os olhos e a boca.

-Tatia, que maluca! — sussurrou. Viu-a abrir os olhos. Olharam-se em silên¬cio. - Tatia - murmurou de novo.

A mão dela ergueu-se para o rosto dele. -Alexander? — disse debilmente, sem qualquer surpresa na voz. - Estou a

sonhar? - Não. -Devo estar... — A voz arrastou-se-lhe. — Sonhava com... a tua cara. Que

aconteceu? -Estás na minha tenda. Que foste fazer à estação de Luga? Foi destruída pelos

Alemães. Ela demorou algum tempo a responder: -Acho que ia voltar para Leninegrado. E tu? O que estás a fazer aqui? Podia ter mentido; quando ela o rejeitara, sentira-se tão revoltado e

traídoque era o que lhe apetecia. Mas a verdade era demasiado evidente. -Vim a tua procura. -O que aconteceu? Porque tenho tanto frio? -Não é nada — apressou-se a responder. — O assistente do médico teve de te

rasgar as calças e... Levantou as mãos e tateou as roupas rasgadas. Alexander desviou o olhar.

Mantivera a distância e fingira muito bem com ela em Kirov, mas não conseguia fazer de conta que encontrá-la viva e coberta de sangue não significava nada, que salvá-la não significava nada, que ela não significava nada.

Tatiana levou a mão à frente dos olhos e observou o sangue. - É meu? -Acho que não. -Então que se passa? Porque não posso mexer-me? -Tens as costelas partidas... Ela gemeu. -E a perna. -As costas - murmurou ela. - Tenho alguma coisa nas costas. Ansioso e preocupado, Alexander perguntou: -O que sentes? -Não sei. Ardem-me. -Devem ser as costelas. Parti uma costela o ano passado, na guerra do

inverno. Parece que ficamos com as costas a arder. -E a supurar. Largando o trapo molhado no balde de água, Alexander olhou-a de frente: -Tania, ouves-me bem?

Page 156: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

156

-Hum. -Consegues sentar-te? Tentou fazê-lo. -Não - murmurou, juntando com as mãos a camisa e a camisola interior

rasgadas. Com o coração parecendo desfazer-se, Alexander ajudou-a a sentar-se. - Deixa-me tirar-te essas roupas. De qualquer maneira, não te servem para

nada. Estão empapadas em sangue. Não podes continuar com elas. Ela abanou a cabeça. -Tenho de te tirar — insistiu ele. — Quero ver-te as costas e limpar-te. Se

tiveres feridas abertas, podes apanhar uma infeção. Vou limpar-te, lavar-te o sangue do cabelo e ligar-te as costelas e a perna. Vais sentir-te melhor logo que esti¬verem ligadas.

Sentada encostada a ele, abanou de novo a cabeça. -Não tenhas medo, Tania - disse, abraçando-a. Como ela não disse nada,

despiu-lhe cuidadosamente a túnica e a camisola interior. Pequena, ferida e fraca, aninhou contra ele o corpo nu; ao pousar-lhe as mãos nas costas ensanguentadas, sentiu-lhe a pele quente. «Precisa tanto do meu carinho!», pensou, tateando deli¬cadamente para se certificar de que não havia golpes. «E eu preciso desesperada¬mente de lhe dar carinho.» - - Onde é que dói?

-Aí onde estás a tocar - sussurrou ela. - Mesmo onde tens os dedos. Inclinou-se sobre o seu ombro para espreitar. Tinha as costas sujas, mas o sangue já estava a coagular. -Provavelmente cortaste-te. Vou lavar-te as costas, mas parece-me que está

tudo bem. - Alexander apertou-lhe a cabeça contra o peito e pousou-lhe os lábios no cabelo húmido.

Depois, deitou-a no lençol branco. Ela tapou os seios com as mãos e fechou os olhos.

- Tatiasha, tenho de te limpar. Continuou, com os olhos fechados. - Deixa-me ser eu a fazê-lo — murmurou. - Está bem, mas nem consegues sentar-te sozinha! Ao princípio, não respondeu. - Dá-me uma toalha molhada. Eu lavo-me. -Tatia, deixa-me tratar de ti. — Fazendo uma pausa e inspirando: - Por favor!

Não tenhas medo. Não vou magoar-te. - Eu sei - murmurou ela, sem poder ou sem querer abrir os olhos. -Já sei. Não te preocupes. Fica assim. Vou... lavar-te à volta. Lavou-lhe o cabelo, os braços, a barriga e a parte de cima do peito, tudo àluz

bruxuleante de uma candeia de querosene pousada num canto da tenda. Tatiana gemeu quando ele lhe tocou nas costelas enegrecidas.

Enquanto a limpava, Alexander sussurrava com voz doce:

Page 157: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

157

-Um destes dias... não estou a dizer agora, mas qualquer dia talvez possas explicar-me o que estavas a fazer numa estação de comboios durante um bombardeamento. Pode ser? Pensa bem no que me vais contar. Vês a sorte que tens? Afasta um bocadinho os braços. Depois de te enxugar, ligo-te as costelas. Daqui a umas semanas estão boas. Vais ficar como nova.

Com os olhos ainda fechados e as mãos nos seios, Tatiana virou a cara. Alexander despiu-lhe as calças rasgadas, deixando-a só com a roupa interior, e lavou-lhe as pernas. Ela estremeceu e desmaiou quando ele lhe tocou na tíbia fraturada. Espe¬rou que ela voltasse a si.

- Dói muito? - Parece que me vão cortar a perna — murmurou. — Tens alguma coisa para

as dores? - Só vodca. - Não sou grande apreciadora de vodca. Enquanto ele lhe enxugava a barriga com a toalha, Tatiana, de olhos ainda

fechados e mantendo os seios tapados com as mãos, sussurrou: - Por favor... não olhes para mim. - A voz embargou-se-lhe. De voz também embargada, Alexander retorquiu: - Está bem, Tatiasha. - Inclinando-se, beijou-lhe a parte de cima do peito, onde

as mãos dela já não chegavam. - Está sossegada.- Deixou-lhe os lábios pousados na pele por um momento. Depois, endireitando-se: — Tenho de te virar. Preciso te lavar por trás.

- Não consigo virar-me sozinha. - Eu viro-te. - Depois de o fazer, lavou-lhe minuciosamente as costas com o

mesmo carinho. - Não tens nada nas costas. Só muitos golpes de vidro. O que te arde são as costelas.

Com o rosto no lençol, Tatiana murmurou: - Que vou vestir? Só tinha esta roupa. - Não te preocupes. Amanhã arranjamos alguma coisa. — Virando-a de novo,

sentou-a e esfregou-a. Ligou-a de trás para que o rosto não lhe ficasse apenas a centímetros dos seus seios, que ela continuava a tapar. Enrolando-lhe a ligadura em volta das costelas e atando-lha cuidadosamente debaixo dos braços, sentiu uma grande vontade de lhe beijar o ombro, mas não o fez.

Depois de a deitar, tapou-lhe a parte de cima do corpo com um cobertor e ligou-lhe a perna juntamente com um talo de madeira.

- Então? - perguntou, conseguindo sorrir. — Eu disse-te que ficavas como nova. Agora agarra-te a mim. — Ela mal conseguiu passar-lhe os braços em volta do pescoço.

Alexander pousou-a na cama que fizera no chão com o casaco e Tatiana ainda o abraçou por um momento, antes de o largar. A seguir, tapou-a com um cobertor de lá.

Ela aconchegou-se no cobertor e perguntou:

Page 158: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

158

- Porque tenho tanto frio? Não vou morrer, pois não? - Não - volveu-lhe, arrumando os lençóis e as toalhas. Vais ficar boa. -

Sor¬rindo: - Agora temos é de voltar à cidade. - Não posso andar. Como vamos conseguir? Dando-lhe umas palmadinhas na perna boa, Alexander retorquiu-lhe: - Tania, não te preocupes quando estás comigo. Eu resolvo tudo. - Não estou preocupada — disse ela, fitando-o à luz fraca. - Talvez os carris já estejam reparados amanhã. Só ficam a três quilómetros

daqui. Gostaria de ainda ter o camião, mas o exército ficou-me com ele.- Precisa mais do que eu. — Depois de uma pausa: - Temos de partir amanhã cedinho. - Aproximou-se dela. — Onde estavas antes de decidires servir de alvo aos Alemães?

- A montante do rio... servindo de alvo aos Alemães. — Engolindo em seco: - Eles estão do outro lado. - Eu sei. Amanhã ou depois chegarão a este. Temos de partir de manhãzinha.

Agora fica quieta. — Sorriu. — O meu fogão está mesmo aqui fora. Vou buscar água limpa ao rio para me lavar e depois foço-te chá. Tirou uma garrafa de vodca Ja mochila e levou-lha aos lábios, eíguendo-lhe ligeiramente a cabeça.

- Eu não... - Bebe. Vais ficar muito dorida. Isto alivia. Já tiveste alguma fratura? - Parti um braço aqui há uns anos — replicou ela, bebendo e arrepiando-se

toda. - Porque cortaste o cabelo? — indagou, segurando-lhe a cabeça, baixando o

olhar para ela e sendo obrigado a fechar os olhos por um instante para não con¬tinuar a vê-la tão de perto.

- Para não me estorvar. Acha horrível? — Ergueu para ele os seus olhos doces e indefesos.

- Não - respondeu em voz rouca. Precisou de toda a sua força para não se inclinar e a beijar. Deitando-a no casaco, saiu da tenda a precisar de se recompor emocionalmente. A vulnerabilidade dela trouxera à superfície os sentimentos que de resto mal escondia, onde agora boiavam, atormentadoramente perto, doloro¬samente longe. Foi ao rio, fez-lhe chá e tomou a entrar. Tatiana estava semiacordada e semiconsciente. Gostaria de ter morfina para lhe dar.

- Tenho aqui chocolate. Queres? Ela apoiou-se do lado bom e comeu um bocado, enquanto Alexander se

sen¬tava no chão com os joelhos levantados. - Queres o resto? Ele abanou a cabeça: - Porque fizeste esta maluquice, Tania? - Para encontrar o meu irmão. — Observou-o e afastou o olhar. - Porque não foste ao quartel ter comigo? - Já tinha ido uma vez. Achei que se soubesses alguma coisa me dirias. -

Fitando-o: - - Soubeste...

Page 159: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

159

- Lamento muito. — Contemplou-lhe o rosto redondo e pálido. Ela tentava mostrar-se corajosa. - Lamento muito, Tania, mas mandaram o Pasha para Novgorod.

- Oh ...não – gemeu, sufocando as lágrimas. – Não digas mais, por favor. – Começou a tremer sem conseguir parar. – Tenho tanto frio – disse, pousando-lhe a mão na bota. – Dás-me o chá antes de adormecer?

Ele levantou-lhe a cabeça e levou-lhe a caneca aos lábios. - Estou cansada – sussurrou ela, deitando-se sem tirar os olhos dele. Tal e qual

como em Kirov. Alexander começou a afastar-se. - Onde vais? - A lado nenhum. Vou dormir aqui e amanhã cedo partimos para casa. - No chão tens frio – sussurrou ela. – Anda cá. Ele abanou a cabeça. - Por favor, Shura – pediu Tatiana em voz doce, estendendo-lhe a mão. – Por

favor, anda cá. Não poderia dizer não mesmo que quisesse. Apagando a candeia, descalçou

as botas e despiu a farda ensangüentada e sujo, vasculhou a mochila à procura de uma camisola interior limpa, deitou-se no casaco ao lado de Tatiana e tapou-se a ele e a ela com o cobertor de lã.

Estava escuro como breu dentro da tenda. Deitou-se de costas. Tatiana, apoiada sobre o lado esquerdo, encaixou-se-lhe no braço. Alexander escutava o cantar dos grilos. Ouvia-lhe a respiração suave. Sentia-lhe o hálito quente no ombro e no peito. Sentia-lhe o corpo nu encostado ao seu. Não conseguia respirar.

- Tania? - Sim? – A voz ansiosa tremia-lhe. - Estás cansada? Cansada de mais para falar? - Cansada de mais para falar não – respondeu com menos ansiedade. - Começa do princípio e não pares até chegares à estação de Luga. O que te

aconteceu? Depois de ela lhe ter contado tudo, perguntou com voz incrédula: - Rastejaste para debaixo de um monte de cadáveres antes de a estação

desmoronar? - Foi. Calou-se por um momento. - Excelente manobra militar, Tatia. - Obrigada. Ficaram em silencio. Depois, Alexander ouviu-a chorar e apertou-a contra si. - Lamento muito pelo teu irmão. - Shura – começou ela tão baixinho que ele teve de fazer um esforço para a

ouvir -, lembras-te de eu te falar de mim e do Pasha no lago Ilmen, em Novgorod? - Lembro. – Afagou-lhe o cabelo.

Page 160: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

160

- A minha tia Rita, o tio Boris e a prima Marina ... - A prima Marina? - O quê? - A prima Marina que ias visitar de autocarro quando nos conhecemos? –

Sorriu na escuridão e sentiu a mão dela beliscando-lhe a barriga ao de leve. - Sim. Tinham uma dacha e um barco a remos no lago e eu e Pasha

costumávamos remar às vezes. Eu remava até meio do lado e ele a outra metade. Como não queria deixar de remar, o Pasha discutiu e discutiu, berrou e gritou e por fim disse: Queres este remo? Então toma lá! Atirou-mo e fez-me cair à água. – Arrepiou-se. Alexander ouviu-a soltar uma risadinha. – Não me aconteceu nada, mas como não queria que ele soubesse que estava bem, prendi a respiração e mergulhei por baixo do barco, ouvindo-o berrar por mim cada vez mais agitado e em pânico. De repente, saltou para me salvar e eu nadei até o outro lado, subi para o barco, peguei num remo e assobiei. Mas se virou, bati-lhe na cabeça. – Tatiana limpou o rosto com a mão que estivera a tocar Alexander. – Com aminha sorte, claro que ele perdeu os sentido. Tinha vestido um colete salva-vidas ...

- Tu não? - Não. Vi-o boiar na água de cara para baixo e pensei que também estava a

brincar comigo. Quis ver quanto tempo conseguia prender a respiração. Estava convencida de que não tanto como eu. Por isso, deixei-o boiar durante um minuto e depois outro. Por fim, mergulhei e puxei-o para o barco, nem sei bem como. E remei para a praia sozinha enquanto ele gemia, dizendo que eu lhe havia batido com muita força. O que eu ouvi dos meus pais quando viram a ferida na cabeça do Pasha! Depois de me terem castigado, ele disse a toda gente que estava a fingir e que nunca perdera os sentidos! – Recomeçou a chorar: - Sabes o que sinto? Parece-me que o Pasha vai sair da água a qualquer momento e dizer-me que foi só uma brincadeira.

Com a voz embargada, Alexander replicou: - Tatiasha, o remo dos malditos alemãs atingiu-o com força de mais. - Eu sei – sussurrou ela. – Custa-me muito pensar que estava sozinho, sem

nós. – Calou-se. Alexander ficou a ouvir-lhe a respiração recuperando seu ritmo. # Que estava sozinho, sem ti #, pensou ele. # Sentir-se-ia melhor se estivesse contigo.#

Escutou-lhe a respiração entrecortada, como se fosse perguntar-lhe alguma coisa. Continuou a afagar-lhe o cabelo, para lhe darânimo.

- O que é,Tatia? - Estás a dormir, Shura? - Não. - Senti a tua falta ...à minha espera em Kirov. Não faz mal dizer-te isto? - E eu a tua. – Tocando-lhe com os lábios no cabelo macio e dourado: - Não faz

mal nenhum.

Page 161: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

161

Sem dizer nada, ela afagou-lhe o peito com delicadeza e ternura. Ele congiu-a a si. Tatiana soltou um gemido de dor, outro e mais outro.

Passaram minutos. Minutos. E depois horas. - Estás a dormir, Shura? - Não. - Só queria dizer ...obrigada, soldado. Com os olhos abertos na escuridão, Alexander tentou visualizaralguns

momentos da sua vida, da infância, da mãe e do pai, de Barrington. Mas não viu nem sentiu nada, a não ser Tatiana acariciando-lhe o peito, com a com a cabeça pousada no seu braço dormente. Depois parou, colocou-lhe a mão no coração, que batia desenfreado, beijou-o ao de leve por cima da camisa e adormeceu.

Quando viu a primeira luz azul-acinzentada, Alexander chamou: - Tania! - Estou acordada. – Ainda tinha a mão no peito dele. Alexander desembaraçou-se e foi lavar-se à floresta, onde ainda estava

escuro. Era impossível fazê-lo nas margens do rio Luga. Os Alemãs encontravam-se do

outro lado a apenas setenta e cinco metros, com canhões e a artilharia apontados aos Soviéticos, que dormiam abraçados às metralhadoras. Mas ele não... ele dormira abraçado a Tatiana.

Regressado à tenda com água limpa, sentou-a embrulhada no cobertor, ajudou-a a lavar-se e deu-lhe um bocado de pão e mais chá.

- Como se sentes? Fresquinha? – Sorriu. - Sim – respondeu com voz fraca. – Acho que consigo apoiar-me na perna boa.

– Via-se-lhe na expressão que estava com dores terríveis. Alexander disse-lhe que esperasse e foi acordar o ajudante de médico, a

quem pediu roupas e alguns remédios. Mark não tinha remédios, mas arranjou um vestido que pertencia a enfermeira que morrera uns dias antes.

- Cabo, preciso nem que seja um grama de morfina. - Não tenho – atirou-lhe Mark. – Sabe que nos matam se roubarmos morfina?

Não tenho morfina para uma perna partida. Não terei nem que me traga com as tripas de fora. Prefere que dê nossa preciosa morfina a ela ou a um capitão do Exército Vermelho?

Alexander não respondeu. Voltando à tenda, sentou Tatiana e passou-lhe o vestido pela cabeça, tendo o

cuidado de não a magoar nem de olhar para o corpo nu e ligado. - És um homem muito bom – comentou ela, estendendo o braço pousando-

lhe a palma da mão no rosto.

Page 162: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

162

- Mas antes de mais um homem – replicou baixinho, encostando a cabeça a sua mão. Depois de uma breve pausa, continuou: - A perna deve doer-te muito. Bebe mais vodca para adormecer a dor.

- Está bem, Como queiras. Deixou-a beber uns goles: - Estás pronta? - Deixe-me aqui. Vai tu e deixa-me aqui. Hão de acabar por ter lugar pra mim

no hospital de campanha. As pessoas morrem e as camas ficam livres. - Achas que vim a Luga para agora te deixar à espera de uma cama no

hospital? – Desmontou a tenda e apanhou o casaco e um cobertor. Ela estava sentada no chão. – Deixa-me ajudar-te. Consegues apoiar-te só numa perna?

- Consigo – respondeu, gemendo e pondo-se em pé à frente dele. Mal chegava a parte de cima do peito. Alexander teve vontade de lhe beijar a cabeça. #Não levantes o olhar para mim, por favor#, pensou. Pouco segura, Tatiana agarrou-se a ele e cambaleou. – Passa-me a tua mochila. Assim é mais fácil para ti. – Ele obedeceu.

- Tania, vou agachar-me e tu agarras-te ao meu pescoço. Agarra-te bem, sim? - Está bem. E a tua espingarda? - Tu nas costas e a espingarda nas mãos. Vá, temos de nos despachar. Ela agarrou-se e ele endireitou-se com ela às costas, pegando depois a arma. - Pronta? - Sim. Ouviu-a gemer. - Dói? As mãos dela apertaram-lhe o pescoço. - Assim – assim. Percorreram assim os três quilômetros que os separavam da estação de Luga

que, apesar das suas esperanças, ainda não estava reparada. - E agora? – perguntou ela, ansiosa, quando ele parou para descansar. - Agora vamos pelo bosque até à próxima estação – retorquiu ele, dando-lhe

água para beber. - Quantos quilômetros são? - Seis. Ela abanou a cabeça: - Não, Alexander. Não podes andar mais seis quilômetros comigo às costas. - Tens outra solução? – Agachando-se à sua frente: - Vamos. Seguiam por um caminho da floresta para o norte, até à próxima estação de

comboios, quando ouviram os aviões mesmo acima das árvores. Por si, Alexander continuaria a andar, mas não queria fazê-lo com Tatiana às costas. Se caísse uma bomba, seria a primeira a ser atingida.

Desviou-se por isso do carreiro, penetrou no bosque e pousou-a ao lado de uma árvore tombada.

Page 163: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

163

- Deita-te – disse-lhe, ajudando-a. Deixou-se cair ao seu lado, agarrando a espingarda. – Vira-te de barriga para baixo e tapa a cabeça – Ela não se mexeu. – Não tenhas medo, Tania.

- Como posso ter medo agora? – perguntou com ar acanhado, deitadade costas e olhando para ele. Sem se mexer, pousou-lhe as mãos no peito.

- Vá lá – insistiu ele, fitando-a – O que é? Precisas de ajuda? Deveria ter trazido o teu capacete verde da estação.

- Alexander ... - Agora que é de manhã, voltei a chamar-me Alexander? Erguendo o olhar para ele, Tatiana sussurrou: - Oh, Shura ... – Alexander não conseguiu resistir mais. Inclinando-se, beijou-

a. Os lábios dela eram tão macios, jovens e cheios como imaginara que seriam.

Tatiana começou a tremer toda, beijando-o com tanta ternura, paixão e ansiedade que Alexander soltou um gemido involuntário. Sentia-se enfeitiçado pelas mãos dela apertando-lhe a cabeça e não a largando.

- Meu Deus ... – sussurrou para a sua boca entreaberta. O barulho ensurdecedor das bombas fê-lo parar. Alexander sentiu que alguma

coisa tinha queo parar. A copa de um pinheiro próximo incendiou-se e pedaços de ramos em chamas caíram na floresta úmida, muito perto deles. Virando-a de barriga para baixo, ficou deitado ao seu lado no musgo, tapando-a com o braço e metade do corpo.

- Estás bem? – murmurou. – Tens medo das bombas? - As bombas são o menos. Logo que o bombardeamento parou, Alexander disse: - Vamos embora. Temos de chegar à estação. Depressa. Ao levantar-se, Tatiana não ergueu os olhos para ele. Ele virou-lhe as costas e

agachou-se e ela subiu. Alexander passou-lhe os braços por baixo dos joelhos, pegou na espingarda e seguiu em frente.

- Sou pesada – disse ela nas suas costas. - Não mais do que a minha mochila – ofegou ele. – Segura-te bem. Não

tardaremos a chegar. De vez em quando, a espingarda batia-lhe na perna partida e Alexander

sentia-a contrair-se de dor, mas não gemia nem gritava. A determinada altura, ela pousou-lhe a cabeça nas costas e ele fez votos para que estivesse bem.

Percorreu os seus quilômetros que os separavam da estação seguinte com Tatiana às costas, sob um céu negro de fumo, por entre os bosques a arder. O bombardeamento parara ali perto, mas continuava a ouvir-se a toda volta o som das explosões e dos disparos da artilharia.

Chegados à estação, pousou-a no chão e deixou-se cair ao seu lado. Tatiana aproximou-se.

- Estás cansado? – perguntou-lhe docemente.

Page 164: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

164

Ele assentiu. Esperaram. A estação estava cheia... mulheres com bebes, os pais velhinhos e

todos os seus haveres. Sujos e em estado de choque, esperavam pelo comboio. Alexander pegou no pão que lhe restava e dividiu-o com Tatiana.

- Não, como tu – disse ela. – Precisas mais do que eu. - Comeste alguma coisa ontem? – perguntou-lhe Alexander. – Não, claro que

não. - Comi uma batata crua e alguns mirtilos na floresta. E o chocolate que me

deste. – Tinha todo o corpo e a perna encostados a ele. Pousou-lhe a cabeça no braço e fechou os olhos.

Alexander rodeou-a com o braço: - Vai correr tudo bem – tranqüilizou-a, beijando-lhe a testa. – Vais ver. Só mais

um bocadinho e fica tudo bem, prometo. O comboio chegou. Era um comboio de gado, sem lugares sentados. - Preferes esperar por um de passageiros? - Não – respondeu ela em voz fraca. – Não me sinto bem. Quanto mais

depressa chegar a Leninegrado, melhor. Vamos. Eu apoio-me numa perna. Alexander içou-a primeiro a ela para a plataforma e a seguir subiu ele.

Dezenas de outras pessoas amontoavam-se na carruagem. Puseram-se numa ponta, de onde viam a paisagem pelas portas abertas. Seguiram apertados um contra o outro durante várias horas, Tatiana com a cabeça no peito dele e Alexander amparando-a o melhor que podia pelos braços, já que não podia cingir-lhe as costelas nem as costas. A dada altura, sentiu-a começar a deslizar.

- Não, fica direita, direita – disse-lhe, ajudando-a. Ela abraçou-o e manteve-se de pé. As portas da carruagem estavam abertas para o caso de haver alguém que

quisesse saltar. O comboio seguia ao longo de campos e caminhos de terra batida cheios de camponeses soviéticos, arrastando com eles seus porcos, vacas, cabras, e de refugiados empurrando carrinhos de mão com seus haveres. Ambulâncias e motas tentavam percorrer os mesmos caminhos que toda esta gente. Alexander observou o rosto sombrio de Tatiana.

- Em que estás a pensar, Tatia? - Mas porque estão estes tontos a carregar a vida toda às costas? PR mim, sse

fugisse, não levaria nada. Só a mim própria. Ele sorriu: - E as tuas coisas? Tens coisas, não? - Tenho. Mas não as levaria. - Nem sequer o meu Cavaleiro de Bronze? Devias levá-lo. Ela levantouos olhos, tentando sorrir: - Esse talvez. Mas das duas uma: ou fujo para me salvar ou me atafulho de

coisas, atrasando-me e facilitando a vida do inimigo. Não te parece que devíamos

Page 165: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

165

pensar primeiro qual é o nosso objetivo? Vamos abandonar tudo e começar uma vida nova ou tencionamos continuar a que temos noutro lugar qualquer?

- Boa pergunta. - Também acho – retorquiu, observando os campos pensativamente. Inclinando-se, Alexander encostou a face à sua cabeça rapada e apertou-a

com mais força. Só lhe restava uma coisa da sua vida anterior; de resto, a América só existia na sua memória.

- Gostava tanto de ter encontrado o meu irmão! – ouviu-a murmurar. - Eu sei – replicou Alexander com emoção. – Gostava de o ter encontrado para

ti. Depois de um suspiro doloroso, Tatiana se calou. O comboio chegou AA Estação de Varsóvia a meio da tarde. Dentaram-se

tranquilamente num banco que dava para o canal Obvodnoy e ficaram à espera do elétrico número 16, que os levaria até ao Hospital Grechesky, perto da casa de Tatiana. O elétrico chegou.

- Vamos? – perguntou Alexander. - Não – respondeu ela. Ficaram sentados. Passou um segundo elétrico. - Vamos neste? - Não. Chegou o terceiro. - Não – disse ela mesmo antes de ele perguntar, pousando-lhe a cabeça no

braço. Quatro elétricos chegaram e partiram... e eles continuaram sentados ao lado

um do outro, sem falar, contemplando o canal. - Daqui a bocadinho, no próximo elétrico, vais levar-me outra vez à minha vida

antiga – disse ela por fim. Alexander não falou. Soltando um queixume, Tatiana murmurou: - Que vamos fazer? Não respondeu. - Naquele dia em Kirov, quando discutimos, tinhas... algum plano? Queria tirá-la de Leninegrado. A cidade não era segura: - Nem por isso. - Também achei – volveu-lhe, com a cabeça no braço dele. Outro elétrico chegou e partiu. - Shura, o que digo a minha família sobre Pasha? Ele apertou os lábios e tocou-lhe no rosto: - Que lamentas muito. Que fizeste o que pudeste. - Mas talvez ele esteja vivo algures, como eu. - Tu não estás algures. Estás comigo.

Page 166: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

166

Tatiana engoliu em seco e continuou: - Sim, mas não estava até ontem. Também me encontrava algures. – Olhando-

o com esperança: - Talvez? Alexander abanou a cabeça: - Oh, Tania! Ela desviou o olhar: - Foi difícil dares comigo? - Não muito. – Não queria dizer-lhe como tivera que vasculhar cada metro de

Luga. - Como sabias que eu estava em Luga? - Também andei à tua procura em Tolmachevo. - Sim, mas como sabias que eu tinha desaparecido? Alexander viu-a olhar para ele com uma expressão de amor e esperança que

não conseguiu suportar. - Ouve... foi a Dasha que me pediu para te procurar. - Sim? – A desilusão espalhou-se no rosto. – Ah! – Afastou-se dele até não lhe

tocar com nenhuma parte do corpo. - Tatia... - Olha, vem aí o nosso elétrico – disse ela, tentando levantar-se. – Vamos. Ele pegou-lhe no braço: - Deixa-me ajudar-te. - Não é preciso – respondeu, dando um saltinho agarrada a ele e gemendo de

dor. As portas do elétrico abriram-se. - Espera! – insistiu Alexander. – Já te disse que me deixes ajudar-te. - E eu já disse que não é preciso. - Ou esperas ou eu largo-te – repetiu ele com mais firmeza. - Então larga. Exasperado, Alexander suspirou e pôs-se à frente dela: - Para de saltar. Achas que as tuas costelas gostam? Agarra-te a mim que eu

levo-te lá para dentro. Já sentados e a caminho, Alexander perguntou: - Porque estás aborrecida? - Não estou aborrecida. Passado um bocado, passou-lhe o braço pelo ombro. Hirta, Tatiana continuou

a olhar pela janela. Ao fim de quinze minutos sem se falarem , chegaram a Grechesky. Alexander

levou-a ao hospital, onde as enfermeiras lhe deram imediatamente uma cama, vestindo-lhe uma camisa lavada e administrando-lhe um remédio para as dores.

- Sentes-te melhor com a morfina? – Sorriu. – O médico já vem tratar-te da perna e engessar-te. Depois vais dormir. Entretanto, tenho que ir andando. Vou

Page 167: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

167

dizer à tua família que estás aqui e tenho que ir buscar os meus homens. – Suspirando: - De certeza que ainda estão presos em Luga.

Tatiana encostou-se às almofadas e disse friamente: - Obrigada por me teres ajudado. Alexander sentou-se na cama e ela virou a cabeça. Ele pôs-lhe dois dedos no

queixo e puxou-lhe o rosto. Tatiana tinha os olhos marejados de lágrimas. - Tatia? Porque estás assim? Se a Dasha não tivesse dito nada, nunca teria ido

à tua procura. – Encolheu os ombros. – Não sei porquê, mas é assim que deve ser. Já estás aqui e estás bem. – Acariciando-lhe o queixo: - Passaste um mau bocado, sofreste muito...

Ela fungou e tentou virar a cabeça, mas ele não deixou. Sentia uma ternura imensa.

- Oh ...anda cá. – Abraçou-a docemente. – Tania, sejam quais forem as tuas perguntas, a reposta é sim – sussurrou, beijando-lhe o cabelo. Sentiu-a tentando afastar-se.

- Não tenho perguntas – respondeu secamente. – Já foram todas respondidas. Fizeste-o pela Dasha. Ela vai ficar muito agradecida.

Alexander abanou a cabeça e riu-se, incrédulo. Deixando Tatiana deitar a cabeça na almofada, inquiriu:

- E também te beijei pela Dasha? Ela corou. - Tania, não acredito que estejamos a ter esta conversa depois de tudo o que

passamos – continuou baixinho. - Tens razão. Nem sequer devíamos estar a falar. – Não olhava para ele. - Devíamos, mas não disto. - Vai-te embora, Alexander. Vai dizer à minha irmã que me salvaste a vida por

ela. - Não te salvei a vida por ela. Salvei-te a vida por mim – declarou. – E não

estás a ser justa, Tania. - Eu sei. – Assentiu tristemente, observando o cobertor. – Nada disso é justo. Alexander pegou-lhe na mão e fez um esforço para não a beijar outra vez,

causando-lhe mais mágoa a ela e a si próprio. No fim, com o coração apertado, pousou-lhe os lábios na palma da mão tremula e partiu.

Page 168: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

168

CERCADOS NO ESPAÇO

1

Quando Alexander saiu, Tatiana teve vontade de chorar, mas as costelas doíam-lhe muito. Tapou o rosto com o braço quando a enfermeira, Vera, entrou e disse:

- Ora, ora, pronto, já passou. Daqui a pouco está aqui a sua família. Não chore, olhe que lhe dói. Tem as costelas partidas. Porque não dorme? Vou dar-lhe qualquer coisa para dormir.

- Pode ser mais morfina? - Já lhe dei dois gramas. Quanto mais quer? – casquinou Vera. - Mais um quilo? Depois, adormeceu. Quando abriu os olhos, tinha a família sentada em volta da cama,

contemplando-a ora com amor ora com horror. Dasha segurava-lhe na mão. A mãe limpava os olhos. A Babuschka dava palmadinhas ansiosas na mão do Deda. O pai lançava-lhe olhares de censura.

- Tania, estás a dormir há dois dias – disse Dasha, sem parar de beijar o cabelo cortado da irmã.

A mãe afagou-lhe as mãos: - Que idéia foi a tua? – repetia vezes sem conta em voz chorosa. - Queria encontrar o nosso Pasha – respondeu, apertando a mão da mãe. –

Lamento, mas não consegui. - Que disparate, Tania – declarou o pai, caminhando até à janela. – Não

andaste na escola? Não acabaste um ano antes? O que te ensinaram? Obviamente, coisas pouco racionais.

- Tanechka, tu és a nossa bebé, o nosso anjo – acrescentou a mãe. – Que faríamos de te perdêssemos também a ti? – Soluçando: - Como poderíamos continuar a viver?

O pai disse à mãe para se deixar de baboseiras: - Não perdemos o Pasha! Estão sempre a chegar voluntários da linha da

frente. Ainda há esperança. - Vá dizer isso a Nina Iglenko – volveu-lhe Dasha. – Não se pode pôr um pé no

corredor sem a ouvir chorar pelo Volodya.

Page 169: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

169

- A Nina tem quatro filhos que vão todos para a frente se esta guerra não acabar depressa – respondeu o pai com severidade. – É melhor que se mentalize de que vai perdê-los. – Baixando a cabeça: - Mas nós só temos um. Não posso perder a esperança.

Tatiana só teve vontade de fugir. Sentia-se incapaz de lhes falar do que vira no rio Luga. Se lhes contasse que amortalhara cadáveres e que vira pessoas morrer, membros carbonizados e retorcidos e crianças serem atingidas à sua frente, ninguém acreditaria. Aliás, nem ela própria acreditava bem.

- És completamente maluca, Tania – disse Dasha. – Deixaste-nos numa aflição indescritível e arriscaste a vida do meu pobre Alexander. Sabes, ele foi à tua procura porque eu lhe pedi. Ele não queria... teve de passar por cima do seu superior.

- Tatiana, ele salvou-te a vida – acrescentou o Deda. - Salvou? – repetiu ela em voz fraca. - Oh, coitadinha! – exclamou a mãe, esfregando-lhe a mão. – Não te lembras

de nada. Georg, ela não se lembras. O que tu deves ter passado! - Mãezinha, não ouviu o Alexander dizer que a estação caiu em cima dela e

que a tirou do meio dos tijolos caídos? – inquiriu Dasha. - Aquele homem, Dashenka! – interveio o pai. – Onde o encontraste? É de

ouro, ouro puro. Agarra-o bem. - É o que tenciono fazer, paizinho. Nesse momento o homem de ouro puro entrou com Dimitri. A família correu

a rodeá-lo. O pai e o Deda apertaram-lhe vigorosamente a mão. A mãe e a babushka abraçaram-no. Dasha puxou-o e beijou-o na boca.

Beijou-o uma e outra vez. E tornou a beijá-lo. - Chega, Daria Georgievna – ordenou o pai. – Deixa o soldado respirar. Dimitri aproximou-se de Tatiana e rodeou-a com o braço. O seu olhar era ao

mesmo tempo preocupado e divertido. - Então, Tanechka? – Beijando-a na cabeça: - Parece que tuveste sorte. - Tatiana, creio que tens alguma coisa a dizer ao tenente Belov – declarou o

pai com solenidade. - Vão dar ao nosso tenente outra condecoração por valor militar – fungou

Dimitri. – Depois de deixar a Tatiana, voltou para ir buscar os seus homens e trouxe onze dos vinte que tinha levado. A maioria sem experiência. Melhor do que na Finlândia, não é verdade?

Avançando para a cama, Alexander indagou: - Como te sentes, Tania? - Espera! O que aconteceu na Finlândia? – perguntou Dasha, colada ao seu

braço. - Como te sentes, Tania? – repetiu ele. - Muito bem – respondeu, sem conseguir olhar para ele. Sorrindo à mãe: -

Sinto-me bem, mãe. Daqui a nada estou em casa.

Page 170: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

170

- O que aconteceu na Finlândia? – insistiu Dasha, sempre colada a ele. _ Não quero falar disso. - Eu conto – declarou Dimitri com vivacidade. – Na Finlândia, o Alexander

trouxe só quatro dos seus trinta homens, mas até esta derrota conseguiu transformar em vitória. Uma medalha e uma promoção. Não foi?

Sem lhe responder, Alexander perguntou a Tatiana: - Como está a tua perna? - Muito bem. Em breve estará como nova. - Em breve, não! – exclamou a mãe. – Em setembro! Só tiras o gesso em

setembro. Que vais fazer? - Ora! Andar engessada até setembro! Abanando a cabeça e fungando a mãe disse: - E o Alexander carregou-a às costas! Georg, às costas! – Agarrou-lhe nas

mãos: - Como poderemos agradecer-lhe? - Não é preciso – retorquiu ele, sorrindo para a mãe de Tatiana. – Tratem bem

dela. - Ainda bem que a nossa Tania só pesa cerca de três quilos – riu Dasha. - Agradece-lhe, Tania – insistiu o pai, quase tomando a cama de assalto na sua

ansiedade e gratidão. – Por amor de Deus, agradece-lhe por te ter salvado a vida! Com Dimitri segurando-lhe na mão, Tatiana esboçou um sorriso amarelo e

conseguiu olhar direto para Alexander: - Obrigada, Tenente. Antes de ele conseguir responder, Dasha tornou a abraçá-lo: - Como posso agradecer-te tudo o que fizeste pela minha família? – Sorriu,

encostando-se mais, Felizmente, a enfermeira entrou e mandou toda a gente sair. Dimitri inclinou-se e encostou a boca de borracha ao canto da de Tatiana: - Boa noite, querida. Amanhã venho visitar-te. Tatiana teve vontade de gritar. Dasha ainda ficou a endireitar-lhe os cobertores e a pôr-lhe uma almofada

debaixo da perna. Havia semanas que Tatiana não a via assim tão agitada. - Tania, se Deus existe, agradeço-Lhe por ti – murmurou. – Depois de te ter

trazido, tivemos uma grande conversa. Agradeci-lhe imenso e convenci-o a dar-nos outra oportunidade. Disse-lhe que com a guerra assim tão perto, não tínhamos nada a perder. E também lhe fiz notar que não teria feito nada se não sentisse alguma coisa por mim, ele respondeu: # Dasha, nunca disse que não sentia nada por ti#. – Beijou a cabeça de Tatiana: - Obrigada, minha adorada, obrigada por estares viva o tempo suficiente para ele te encontrar.

- Não tens de quê – respondeu em voz monocórdica. Se ele estava outra vez na vida de Dasha, também estaria outra vez na sua.

Porque sentiria um vazio tão grande? - Tania... achas que o Pasha está vivo?

Page 171: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

171

Tatiana pensou nos panfletos caindo do céu como confetti, nas bombas explodindo no ar como chuva metálica, na frieza das armas apontadas para ela e Alexander. E Pasha.

- Acho que não – respondeu, fechando os olhos. Fosse o que fosse que lhe tivesse acontecido, Pasha parecia ter perdido para sempre.

Continuava com os olhos fechados uma hora depois, quando ouviu a porta ranger. Ao abri-lo, viu Alexander sentado na cama. Como fizera para se deslocar a si e à spingarda de modo tão silencioso?

- Que fazes aqui? – perguntou-lhe. - Vim ver como estás. - Estiveste com a Dasha? Ele assentiu. - Vou a caminho de Santo Isaac. Faço patrulha aos ataques aéreos no alto da

catedral, na arcada da cúpula. Até à uma. O Petrenko está de serviço antes de mim. É um bom soldado. Se eu chegar um bocadinho atrasado, ele fica na minha vez. – A Catedral de Santo Isaac era a estrutura mais alta de Leninnegrado.

- Que fazes aqui? – repetiu Tatiana. - Queria ter a certeza de que estás bem. E queria falar-te da Dasha... - Estou ótima. A sério. Não te atrases para a tua patrulha. - Não te preocupes comigo. Como te sentes? - Bem – respondeu, lançando-lhe um olhar encolerizado. – És um herói, não

és, Alexander? A minha família pensa que a Dasha não podia ter escolhido melhor. – baixou a cabeça.

- Tatia... - Ela disse-me que estão outra vez juntos – continuou com uma alegria fingida

– Porque não? Com a guerra tão perto, que tens a perder, não é? O fracasso de Luga deu uma reviravolta nas coisas.

- Tatia... - Não me chamas Tatia – atirou-lhe. Ele suspirou: - Que querias que fizesse? - Deixa-me em paz, Alexander. - Como, Tatiana? - Não sei, mas arranja maneira. Viste como o Dimitri se mostrou solícito? As

melhores qualidades dele também vieram à tona. Não sabia que podia ser assim tão terno.

- É, beija-te com muita ternira. – Os olhos escureceram. - De facto anda muito terno. - E tu deixas. - Oh! Pelo menos não lhe bato. Alexander prendeu a respiração. Tatiana também. Nem acreditava no que

dissera.

Page 172: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

172

- O quê? – perguntou ele sarcasticamente. – Então é assim? Perturbada, não respondeu. Uma enfermeira entrou e deixou a porta aberta <para arejar>. Quando voltaram a ficar a sós, Alexander continuou: - Não sei o que queres que faça, Tania. Disse-te desde o princípio para não

jogarmos este jogo. – Depois de uma pausa: - Mas agora é tarde de mais. Agora o Dimitri... – Calou-se, abanando a cabeça. – Agora é duplamente difícil.

O que mais desejava era que ele a beijasse outra vez. - O que me leva a perguntar-te pela terceira vez que fazes aqui – teimou,

encolerizada. - Não estejas assim. - Não estou assim! Alexander levantou a mão para lhe tocar e ela afastou a cabeça. - Pois é – disse ele, levantando-se. – De mim afastas-te. – Já estava à porta

quando se virou: - E para tua informação, não consegues bater-lhe – rematou. Tatiana soube pela enérgica Vera que teria de ficar no hospital até meados de

agosto, altura em que as costelas já deviam estar suficientemente estáveis para poder andar de muletas. Tinha a tíbia fraturada em três sítios e o gesso ia-lhe do joelho aos dedos dos pés.

A família levava-lhe comida, que devorava com prazer. Pirozhkicom couve, bifes de frango, hambúrgueres e torta de mirtilos, que já não apreciava tanto como dantes desde a incursão no exército de voluntários.

Ao princípio, a mãe e o pai visitavam-na todos os dias. Depois, de dois em dois dias. Dasha irrompia pelo quarto radiosa, saudável, alegre e de braço dado com o tenente Belov, beijava Tatiana na testa e dizia que não se podia demorar. Dimitri sentava-se ao seu lado, envolvia-a com o braço e ia-se embora com eles.

Uma noite, quando jogavam os quatro às cartas para passar o tempo, Dasha disse a Tatiana que o dentista fora evacuado e que lhe pedira que fosse com ele para Sverdlovsk, do outro lado dos Urais. Mas ela recusara e arranjara emprego na fábrica de uniformes onde trabalhava a mãe.

- Agora não posso ser evacuada. Também sou indispensável para o esforço de guerra – comentou Dasha, sorrindo para Alexander e mostrando os dentes de ouro.

- Onde arranjaste isso? – Perguntou Tatiana. Dasha explicou que fora a forma de pagamento dos doentes que tinham ido

ao consultório no último mês pedindo que lhes tirassem o ouro da boca. - Ficaste-lhes com os dentes de ouro? – surpreendeu-se Tatiana. - Foram o meu pagamento - respondeu Dasha com indiferença. – Nem todos

somos tão puros como tu. Tatiana calou-se. Quem era ela para pregar sermões à irmã? Por isso, mudou o assunto e começou a falar da guerra, que era como o

tempo... havia sempre que dizer. Alexander contou que a linha de Luga estava prestes a sucumbir, e ela voltou a sentir a marca do fracasso. Tanto esforço da parte

Page 173: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

173

de milhares de pessoas, para se desmoronar tudo numa questão de dias. Deixou de fazer perguntas. Estar no hospital dava-lhe uma sensação de irrealidade ainda maior do que a povoação deserta de Dohotio. Metida entre quatro paredes cinzentas com uma janela, só via as pessoas que apareciam para a visita. Não sabia nada exceto aquilo que perguntava. Se na falasse nisso, talvez a guerra já estivesse acabado quando saísse do hospital.

<< E depois? >>, perguntava-se Tatiana. << Depois nada>>, pensava na escuridão da noite. <<Nada a não ser a vida

que tinha. Regressarei ao trabalho. Talvez me matricule na universidade para o ano, como tencionava. Sim, vou para a universidade, estudo inglês e talvez encontre alguém. Conhecerei algum russo simpático, a estudar para ser engenheiro. Casaremos e iremos viver com a mãe e a avó dele no seu apartamento comunitário. E depois teremos um filho. >>

Não conseguia imaginar uma vida assim. Não conseguia imaginar nenhuma vida exceto aquela cama de hospital, a janela aberta para os prédios da ProspektGrechesky, os flocos de aveia ao pequeno almoço, a sopa ao almoço e a galinha cozida ao jantar. Queria que Alexander a fosse visitar sozinho para lhe dizer que estava errada, que não tinha o direito de se portar mal. Queria senti-lo outra vez perto de si.

Lia as histórias de Zoshchenko sobre a irônica realidade da vida soviética, mas de repente já não lhes achava graça.

Deitada no quarto de manhã à noite, os dias pareciam-lhe longos e à noite não conseguia dormir. As lágrimas que via nos olhos da mãe pesavam-lhe no coração e o silencio do pai ainda mais. A sensação de fracasso por causa de Pasha dava-lhe a volta no estomago. Mas era a ausência de Alexander que mais a angustiava.

Ao inicio, teve pena, depois revoltou-se, a seguir revoltou-se por revoltar, sentiu-se magoada e por fim, resignou-se.

E foi no dia em que se resignou que Alexander apareceu a seguir ao almoço, quando não estava nada à espera, levando-lhe um gelado.

- Obrigada – disse baixinho. - De nada – respondeu ele igualmente baixinho, sentando-se na cadeira ao pé

da cama a vê-la come-lo. – Ando a pratulhar a cidade. Percorro as ruas verificando se as janelas tem tiras e se não há movimentações estranhas.

- Sozinho? - Não. – Pondo os olhos em alvo: - Com um grupo de sete homens de

quarenta anos que nunca viram uma espingarda. - Ensina-os. Deves ser um bom professor. Olhando de relance para ela, Alexander continuou: - Passamos a manha a levantar barricadas antitanque na ProspektMoscovo,

na direção sul. Agora não passam lá elétricos. – Depois de uma pausa: - Mas Kirov ainda está em funcionamento e a produzir tanques. Acabam de decidir mudar a

Page 174: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

174

fábrica para leste. A pouco e pouco, as industrias estão a sair daqui em camiões e nos últimos comboios. – Fez outra pausa. – Tania? Estás a ouvir?

- O quê? – perguntou, libertando-se do barulho ensurdecedor que lhe ia na cabeça.

- Que tal está o gelado? - Muito bom. Um presente inesperado. - Parece-me que essa é um boa maneira de pensar em muitas coisas da vida –

observou ele, levantando-se. – Tenho de ir andando. - Não! – exclamou Tatiana muito depressa. Depois, mais calma: - Espera. Voltou a sentar-se. - É sobre aquela noite... Desculpa, eu... Ele abanou a cabeça: - Deixa lá. Tatiana só tinha palavras de desanimo para lhe dizer. - Porque demoraste tanto a aparecer? - O que? Eu venho ver-te todos os dias. Ela não disse nada e ele também não. Olharam um para o outro. - Eu teria vindo sozinho, mas achei que não valia a pena – começou ele. – Nem

eu nem tu íamos sentir-nos melhor por causa disso. De repente, surgiu-lhe a imagem deledebruçando sobre ela, lavando-lhe o

sangue do corpo nu... respirou com dificuldade. Outra imagem... ela a dormir ao lado dele, nos seu braços, com os lábios encostados ao seu peito e as mãos a tocar-lhe. Sentindo-se mais perto dele do que de qualquer outro ser vivo. De pé, abraçando- o no comboio. E pior... a sensação visceral dos lábios dele abrindo os dela. Desviou o olhar.

- Tens razão. Eu sei – murmurou. Alexander levantou-se e, desta vez, não o impediu. - Até outro dia- despediu-se ele, debruçando-se e encostando-lhe os lábios à

cabeça. <<Bem, a cabeça já é alguma coisa>> pensou ela. Quando ele já estava ao pé

da porta, perguntou-lhe: - Vens outra vez, se puderes? Só por uns minutinhos. Com o boné nas mais, Alexander disse: - Tania... - Eu sei. Tens razão. Não venhas. - Tania, as enfermeiras todas... alguém fala da minha visita à frente da tua

família e isto acaba mal. << Mas acaba.>> - Tens razão. Não venhas.

Page 175: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

175

Quando ele partiu, Tatiana detestou-se. <<Sou muito má irmã. Sempre me achei boa, mas agora percebo que nunca fui posta à prova. E da primeira vez que sou... é só ver como me comporto.>>

Page 176: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

176

2

Uma semana mais tarde, acordou à noite sentindo que lhe afagavam o rosto. Quis abrir os olhos, mas aquilo parecia-lhe tanto um sonho e sentia-se tão drogada e cansada que os deixou fechados. Um homem de mãos grandes e cheirando a vodca acariciava-lhe a cara. Só conhecia um homem com as mãos grandes. Manteve os olhos fechados, mas sabia que o ritmo da sua respiração mudara ao despertar do sono profundo. Ele retirou a mão.

- Tatia? Queria tanto que a ilusão continuasse! A ilusão de estar a ser tocada por

Alexander numa noite de agosto. Abriu os olhos. Era mesmo ele. Estava sem o boné e tinha outra vezmesma expressão nos

olhos de mel; até na escuridão conseguia distingui-la. - Acordei-te? – sorriu. Ela sentou-se. - Acho que sim. – Estendeu a mão e tocou-lhe no braço. – Parece que estamos

a meio da noite. - E estamos. – Fitou o cobertor e ela observou-lhe o alto da cabeça preta. –

São mais ou menos três horas. Falavam quase num murmúrio. - Que se passa? Aconteceu alguma coisa? – perguntou ela. - Não. Só queria ver-te. Não consigo deixar de pensar... em ti aqui sozinha.

Estás triste? Sentes-te só? - Estou e sinto. – Aspirou o cheiro a vodca. – Andaste a beber? - Hum. – Os seus olhos vagueavam, ligeiramente desfocados. – Pela primeira

vez desde há bastante tempo. Tive a noite livre. Eu e o Marazov saímos e bebemos uns copos. – Calou-se. – Tatia...

O coração batia-lhe desenfreadamente dentro do peito. Esperou, prendendo a respiração. Ele tinha as mãos pousadas no cobertor. E as pernas dela estavam por baixo.

- Shura. – De repente, por um momento, sentiu-se feliz. Como se sentia ao sair de Kirov, quando virava a cabeça e o via sorrir. Mais feliz.

- Não encontro as palavras certas... pensei que se bebesse, talvez... - Todas as palavras que dizes são as certas. O que é? Alexander pegou-lhe nas mãos e levou-as ao peito, permanecendo com a

cabeça inclinada. Não disse nada. Que fazer? Tatiana era uma criança. Qualquer rapariga saberia o que fazer,

mas ela nem tinha ideia. # Sou como um bebe. Gostaria muito e saber o que fazer

Page 177: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

177

neste momento. Na minha cama de hospital, com as costelas ligadas e a perna engessada, mas sozinha com ele. #

O rosto de Dasha interpôs-se entre eles, como se a consciência de Tatiana não consentisse ao seu coração nem um momento de alegria roubada. # E deve ser assim#, disse com os seus botões, ansiando por lhe levantar a cabeça e o beijar. Derepente, o rosto de Dasha volatizou-se. Tatiana debruçou-se para ele e beijou-lhe o cabelo, que cheirava a sabonete e fumo. Alexander levantou a cabeça. Estavam apenas a uns centímetros um do outro; Tatiana cheirou-lhe o delicioso hálito a vodca, a Alexander.

- Estou tão feliz por teres vindo, Shura! – murmurou,sentino um formigueiro no baixo-ventre.

Ele inclinou a cabeça e beijou-a em cheio nos lábios. Largou-lhe as mãos e ela passou-lhe os braços em volta do pescoço, apertando-se contra ele. Beijaram-se numa febre... beijaram-se como se a respiração lhes fosse abandonar o corpo.

O formigueiro n ventre aumentou de uma forma insuportável; abriu a boca e gemeu. Alexander tomou-lhe o rosto entre as mãos:

- Doce, és tão doce! – murmurou. – não sei o que hei de fazer, Tania! – beijou-lhe e lambeu-lhe os lábios e encheu-lhe os olhos, as faces e o pescoço de beijos. Agarrada a ele, gemeu outra vez; sentia-se a arder por dentro. Os seus lábios eram tao insistentes e ávidos que Tatiana, subitamente incapaz de respirar ou estar sentada, começou a deslizar.

Alexander amparou-a. ela sentiu-lhe as mãos afagando-lhe as costas nuas pela abertura da camisa. Devagarinho, despertou-lha. Sentado na cama, completamente vestido, beijou-a e puxou-lhe a camisa para baixo. Tatiana soltou a respiração arrepiou-se.

Ele afastou-se um pouco, ainda abraçado a ela, ainda sussurrando. Os seus olhos ardiam.

- Tania, és de mais para mim... não me chegas em doses pequenas nem em grandes, aqui, na rua ou em qualquer lado... – As suas mãos abraçaram-na mesmo acima das costelas ligadas.

- Shura – murmurou, com a fraqueza e o desejo na voz. – O que me está a acontecer? O que é isto?

Alexander tomou-lhe os seios e acariciou-os. Depois, abriu as palmas das mãos e esfregou-lhe os mamilos em círculo. Tatiana gemeu. Ele esfregou com mais força, afastou-se, observou-lhos e sussurrou:

- Meu Deus... – Ela viu-o inclinando-se, metendo o mamilo na boca e chupando-o, enquanto lhe esfregava o outro com os dedos. Depois, também o chupou. Sentiu-se completamente fora de si ao ver os lábios de Alexander nos seus seios. Com as mãos prendendo-lhe a cabeça, gemeu tão alto que ele se afastou e lhe tampou a boca docemente com a mão. – Chiu – sussurrou. – Olha que te ouvem lá fora. – Com o polegar e o dedo mindinho da mão direita, acariciou-lhe os dois mamilos ao mesmo tempo. Tatiana gemeu com a mesma intensidade. A mão

Page 178: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

178

esquerda de Alexander tapou-lhe a boca com mais firmeza. – Chiu – disse, sorrindo e com a respiração entrecortada.

- Shura, vou morrer. - Não, Tatia. - Sopra para cima de mim. Ele obedeceu. Ela beijou-o com paixão, sem lhe largar a cabeça. A fricção e a

pressão que os dedos dele exerciam nos seus seios faziam-na delirar; gemeu com tanto abandono que Alexander se afastou. Sentada à luz azul, nua da cintura para cima, Tatiana observou-o de respiração entrecortada. Tinha as mãos cravadas no lençol do hospital.

- Tania – começou ele, olhando-a com admiração e desejo -, como podes ser tão inocente nos tempos que correm? Como podes ser tão inocente?

- Desculpa. Gostaria de saber mais. Pondo-se ao nível dela, abraçou-a. - De saber mais? - De ter mais experiência. Só ... - Estás a brincar, não é? – sussurrou Alexander com intensidade. – Não

percebes? É a tua inocência que me põe louco. Não entendes? As suas mãos acariciaram-na: - Não gemas. Ainda me prendem. Queria que ele... mas não tinha coragem para o dizes. Docemente, empurrou-

lhe a cabeça para baixo. A única coisa que conseguiu dizer num sussurro entrecortado foi:

- Por favor... Sorrindo, Alexander foi fechar a porta à chave. Como não conseguiu, pegou na

espingarda e prendeu-a no puxador. Regressando, deitou Tatiana na cama, tapou-lhe a boca, debruçou-se sobre os

seus seios e chupou-os até ela quase desfalecer, tremendo e gemendo-lhe na palma da mão.

- Meu Deus, ainda há mais? – murmurou ofegante. - Alguma vez fizeste mais? – perguntou-lhe Alexander, também ofegante. Tatiana fitou-o. dizer-lhe a verdade? Ele era um homem... como poderia fazê-

lo? Mas visto que não queria mentir-lhe, não disse nada. Ele sentou-se e puxou-a para si: - Fizeste? Diz-me a verdade. Por favor. Tenho de saber. Alguma vez fizeste

mais? Não queria mentir-lhe: - Não. Nunca fiz mais. Com os olhos vítreos de espanto, ansiedade e desejo, Alexander baixou a

cabeça: - Oh, Tania, que havemos de fazer?

Page 179: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

179

- Shura... – murmurou, esquecida do resto do Universo. Pegou-lhe nas mãos e encostou-as nos seios. – Por favor, Shura, por favor.

Alexander pousou-lhe suavemente a mãos nas pernas. - Aqui não podemos. - Então onde? Nem sequer conseguia erguer o olhar para ela. Tatiana percebeu que ele não tinha resposta. - E tu? – perguntou quase a chorar. – Não queres mais? Não queres nada para

ti? - Meu Deus! Quero! – Falou em voz rouca. - O que é? O que posso fazer? Sorrindo ao de leve, sussurrou: - Que tens para oferecer? - Não sei. – Tocando-lhe timidamente na coxa: - Mas faço o que quiseres. –

Beijou-lhe o pescoço. – O que quiseres. Diz-me o que hei de fazer e eu faço. – Pôs a mão mais acima. Tinha os dedos a tremer.

Foi a vez de Alexander gemer. Agarrando-lhe a mão, disse: - Espera, Tania... é isto mesmo que queres? - No sei – gemeu ela, lambendo-lhe os lábios. – Quero... De repente, a porta mexeu-se e um raio de luz entrou no quarto. Ouviu-se a

voz da enfermeira: - Tatiana? Está bem? Que se passa com a porta? Tatiana vestiu rapidamente a camisa e Alexander dirigiu-se para a espingarda,

pegou ela, acendeu a luz do quarto e abriu a porta. - Está tudo bem – afirmou com toda a formalidade. – Vim só dizer boa-noite à

Tatiana. - Boa noite? – guinchou a enfermeira. – Não está bom da cabeça? São quatro

da manhã. Não há visitas às quatro da manhã. - Enfermeira! Esquece-se de que sou um tenente do Exercito Vermelho? –

inquiriu Alexander, levantando a voz. - Ouvi gritos,pensei que ela não se sentia bem – disse a enfermeira, bastante

mais calma. - Mas estou bem – retorquiu Tatiana em voz rouca. – Estávamos a rir-nos. - Eu ia mesmo a sair – acrescentou Alexander. - Vai acordar os outros doentes. - Boa noite, Tatiana – despediu-se ele, penetrando-a com o olhar. – Espero

que a tua perna melhore. - Obrigada, tenente. Volte sempre. - Mas não às quatro da manhã – resmungou a enfermeira, entrando para ver

Tatiana. Nas suas costas, Alexander levou os dedos aos lábios e atirou-lhe um beijo. Depois, desapareceu.

Page 180: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

180

Não conseguiu dormir mais nem nessa noite nem na manhã seguinte. Pediu duas vezes a Vera que a lavasse e não parou de escovar obsessivamente os dentes e a língua durante todo o dia, para ter certeza que estava com o hálito puro. Não comeu e só bebeu água. À tarde, no entanto, mordiscou um pedaço de pão que ficara fora do almoço.

Pensara que ia ser assaltada pela culpa, que a força da consciência a impossibilitaria de se enfrentar a si própria e aos seus pensamentos. Mas não. A única coisa que recordava sem parar era cada minuto em que estivera com Alexander nos seios e nos lábios.

Nada na sua vida a preparara para ele. Nem a escola, nem a Quinto Soviete, nem Luga. Em Luga, tivera muitos

amigos e muitos verões de aventuras irrefletidas. Em Luga, houvera apenas o abandono da infância. E Pasha em casa minuto, jogo e brincadeiras dessa infância.

Claro que uma vez ou outra dera com um dos amigos de Pasha a olhá-la mais demoradamente ou aproximando-se mais dela. Mas, por ela, nunca olhara mais demoradamente para ninguém.

Até Alexander. O que era novo. Transcendentalmente novo. Imemorialmente novo. Sempre

pensara que a sua familiaridade instantânea se baseava em coisas que compreendia, como a simpatia, a empatia, a ternura e a amizade. Duas pessoas aproximando-se. Precisando de se sentar juntas no elétrico, de tocar uma na outra, de rir. Precisando uma da outra. Precisando de felicidade. Precisando de viver a juventude.

Mas agora nem acreditava no seu imenso desejo. Na sua sufocante necessidade. Não conseguia imaginá-los. O formigueiro no baixo-ventre continuou inalterável durante todo o dia, enquanto se lavava, escovava os dentes e penteava o cabelo.

Ao fim da tarde, antes de Vera sair, pediu-lhe batom. Quando Dasha, Alexander e Dimitri apareceram, a irmã olhou para ela e disse: - Nunca te tinha visto om batom, Tania. Olha os teus lábios – observou, como

se percebesse pela primeira vez que Tatiana também tinha lábios Dimitri aproximou-se, sentou-se na cama e sorriu: - É verdade! Olha só! Apenas Alexander permaneceu calado. Tatiana não podia ler-lhe a expressão

porque não conseguia levantar os olhos para ele. Percebeu então que a consequência da noite anterior seria a sua total incapacidade de voltar a olhar para ele em público.

Ficaram pouco tempo. Alexander levantou-se e disse que tinha que ir andando.

Tatiana ficou sentada, paralisada, até ouvir baterem à porta. Alexander entrou e fechou-a. Endireitou-se. Ele aproximou-se em grandes passadas, sentou-se na cama e, com um gesto terno e possessivo, limpou-lhe o batom dos lábios.

- Mas que é isto? – perguntou

Page 181: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

181

- Todas as raparigas põem batom – replicou ela, limpando rapidamente a boca e sentindo-se sem ar. – Incluindo Dasha.

- Pois eu não quero que ponhas nada nessa cara tão bonita – volveu-lhe ele, afagando-lhe a face. – Deus sabe que não precisas.

- Está bem. – Limpou a boca e ficou à espera. Deixando cair a cabeça na almofada, ergueu para ele os olhos ansiosos e sérios, os lábios ansiosos e sérios.

Alexander ficou calado. - Tania – começou finalmente com um grande suspiro -, ontem à noite... Ela gemeu. - Vês? – continuou, com a resolução desvanecendo-se-lhe do olhar. – É

exatamente isso que não podes fazer. - Está bem – concordou em voz rouca, agarrando-se à sua manga.

Endireitando-se, contornou-lhe os lábios com os dedos. – Shura... Alexander desviou a cara e levantou-se. O brilho desaparecera-lhe do olhar.

Observou-o, confusa. - Desculpa o que aconteceu a noite passada – disse friamente. – Bebi de mais.

Aproveitei-me de ti... - Não – retorquiu, abanando cabeça. - Aproveitei – teimou ele. – Foi um erro terrível. Sabes. Melhor do que eu que

não devia ter vindo aqui. Sem falar, Tatiana abanou a cabeça. - Eu sei, Tania – volveu-lhe ele com o rosto crispado. – Vivemos uma vida

impossível. Onde podemos... - Aqui – murmurou ela, corando muito e sem olhar oara ele. A enfermeira entrou para ver Tatiana e observou Alexander pelo canto do

olho. Permaneceram em silêncio até ela sair. - Aqui? – repetiu Alexander. – Com as enfermeiras do outro lado da porta?

Quinze minutos e já está? É o que queres? Não respondeu. Por ela, até cinco minutos com as enfermeiras dentro do

quarto. Permaneceu de olhos baixos. - Sim, e depois? – Soltando um suspiro profundo: - E nós? – Fez uma pausa. –

E tu? - Não sei – replicou, mordendo o lábio para não chorar. – E as pessoas todas? - As pessoas todas arranjam-se nos becos, contra uma parede! – exclamou

Alexander. – E nos bancos de jardim, nos quartéis e nos apartamentos comunitários, com os pais no sofá! As pessoas todas não têm a Dasha na cama. Não têm o Dimitri. – Desviando o olhar: - Tu não és as pessoas todas, Tatiana.

Ela virou-lhe as costas. - Mereces mais do que isso. Não queria que ele visse as suas lágrimas. - Vim aqui pedir-te desculpa e dizer-te que não voltará a acontecer. Cega por um momento, fechou os olhos, tentando não tremer.

Page 182: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

182

- Está bem. Alexander deu a volta à cama e pôs-se à frente dela. Não largava a espingarda.

Tatiana limpou o rosto. - No chores, Tania – pediu, comovido. – Ontem cheguei aqui disposto a

sacrificar tudo, inclusive a ti, para satisfazer o desejo que me queima desde o dia em que nos conhecemos. Mas Deus olhou por ti e impediu-nos. Mais impediu-me a mim, e eu, ao nascer do dia, estou menos confuso... – Fazendo uma pausa: - Embora mais desesperado por ti. – Inspirou profundamente, fitando a espingarda.

Ela não conseguia falar. - Tu e euu... – começou Alexander, interrompendo-se e abanando a cabeça. –

Esta altura é má para nós. Ela virou-se de barriga para cima e tapou a cara com o braço. A altura, o

lugar,vida. - Não podias ter pensado nisso tudo antes de vires aqui? Não podia ter

refletido bem antes da noite passada? - Não consigo ficar longe de ti. Ontem à noite estava bêbado. Mas hoje estou

sóbrio. E peço desculpa. Com as lágrimas dando-lhe um nó na garganta, não disse nada. Alexander saiu sem lhe tocar.

Page 183: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

183

3

Luga ardera, Tolmahevo caíra, os homens do general alemão Von Leeb tinham cortado a linha férrea Kingisepp- Gatchina e, apesar dos esforços de centenas de milhares de voluntários, que cavavam trincheiras sob o fogo dos morteiros, nenhuma das linhas da frente ia aguentar-se muito tempo. Apesar das ordens para que a linha férrea não se rendesse, a linha férrea rendeu-se.

E Tatiana continuava no hospital, impossibilitada de andar, impossibilitada de caminhas de muletas, impossibilitada de apoiar a tíbia fraturada, impossibilitada de fechar os olhos e ver fosse o que fosse pra além de Alexander.

Não conseguia arrancar a mágoa de dentro dela nem apagar a chama que nela ardia.

Em meados de agosto, poucos dias antes da data fixada para regressar a casa, o Deda e a Babushka foram ao hospital dizer-lhe que iam sair de Leninegrado.

- Tanechka, estamos muito velhos pra ficar na cidade durante a guerra. Não conseguiremos sobreviver aos bombardeamentos, aos combates ou a um cerco. O teu pai quer que partamos e tem razão, temos de ir. Estaremos melhor em Molotov. O teu avô conseguiu lá um bom lugar de professor, e durante o verão ficaremos...

- E a Dasha? – interrompeu Tatiana com esperança. – Também vai? O Deda respondeu que Dasha não queria deixar a irmã. <<Nao é a mim que ela não quer deixar>>, pensou Tatiana. O Deda disse-lhe que, quando tirasse o gesso, ela, Dasha e talvez também a

sua prima Marina iriam para Molotov. - É difícil ires agora com a perna partida – concluiu. <<Sim>>, pensou Tatiana, <<sem o Alexander para me carregar às costas,

realmente é difícil>>. - Então a Marina também fica em Leningrado? - Fica – respondeuDeda. – A tia Rita está muito doente e o tio Boris em

Izhorsk. Perguntávamos-lhe se queria vir conosco, mas disse-nos que não podia deixar a mãe no hospital nem o pai numa altura em que se prepara para ir combater os Alemães.

O pai de Marina, Boris Razin, era engenheiro em Izhorsk, uma fábrica como Kirov e, à medida que os Alemães se aproximavam, os trabalhadores preparavam-se para combater enquanto produziam tanques, granadas e lança foguetes.

- A Marina devia ir – observou Tatiana. – Ela... – tentou usar palavras menos duras:-... não reage muito bem à pressão.

- Nós sabems – retorquiu o Deda. – Mas, como sempre, são os laços do amor e da família que impedem as pessoas de se salvarem. Eu e a tua avó temos sorte por

Page 184: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

184

sermos os nossos próprios laços. Diria mesmo correntes e não só laços. – Sorriu à Babushka.

- Não te esqueças de que eu e o Deda te amamos muito, Tanechka – disse a Babushka, dando umas palmadinhas no cobertor. – Sabes isso, não sabes?

- Claro que sim, Babushka – anuiu Tatiana. - Quando vieres para Molotov, apresento-te à minha boa amiga Dusia. É

velha, muito religiosa e vai adorar-te. - Excelente – murmurou, sorrindo com um ar fatigado. O Deda deu-lhe um beijo na testa: - Vêm aí dias difíceis para todos nós. Especialmente para ti, Tania. Para ti e

para Dasha. Agora que o Pasha não está aqui, os teus pais precisam mais do que nunca de vocês. A tua coragem vai ser posta à prova, como a de toda a gente. Vai haver apenas uma bitola, a da sobrevivência, e caber-te-á a ti determinar a que preço. Não baixes a cabeça e, se tombares, tomba com a certeza de que não comprometeste a alma.

A babushka puxou-o pelo braço: - Chega. Tania, faz o que puderes para sobreviver e não te preocupes com a

tua alma. Esperamos ter-te em Molotov no mês que vem. - Nunca ponhas em risco o que o coração te diz estar certo, minha neta. – O

Deda levantou-se e abraçou-a. – estás a ouvir? - Muito bem, Deda – replicou Tatiana, correspondendo ao seu abraço. Mais tarde, quando Dasha chegou com Alexander e Dimitri, Tatiana disse que

o Deda pedira que fossem ter com eles em setembro, quando tirasse o gesso. - Isso não vai ser possível – comentou Alexander. – Não haverá comboios em

setembro. Normalmente mantinha uma distancia cuidadosa e silenciosa e evitava falar

com ela. Tatiana gostaria de lhe responder, mas continuava com os sentimentos num

turbilhão e não tinha a certeza de conseguir esconder o tremor da voz nem a doçura dos olhos. Não disse portanto nada, como de costume, nem olhou para ele. Dimitri achava-se sentado ao seu lado.

- O que quer dizer isso dizer? - Quer dizer que não haverá comboios – repetiu Alexander. – Havia comboios

em junho, e poderiam ter partido nessa altura. Havia comboios em julho, mas aí a Tatiana partiu a perna. Em setembro, quando a perna dela estiver boa, não sairá um único comboio de Leningrado, a menos que aconteça um milagre até à altura em que os Alemães chegarem a Mga.

- Que tipo de milagres? – perguntou Dasha com esperança. - A rendição incondicional dos Alemães – respondeu ele secamente. – Quando

perdemos em Luga, o nosso destino ficou traçado. É claro que vamos tentar travar os Alemães em Mga, a central ferroviária com ligações a toda a Uniao Soviética. Aliás, temos ordens para não deixarmos cair Mga nas mãos dos Alemães em

Page 185: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

185

circunstancia alguma. Agora é ilegal entregar caminhos de ferro aos nazis. – Sorriu. – Mas tenho uma capacidade insondável de ver o futuro. A lei será infringida e não haverá comboios em setembro.

Tatiana ouviu o que a sua voz dizia nas entrelinhas: Tania, disse-te uma e outra vez para partires. Não me deste ouvidos e agora, com a perna partida, não podes sair daqui.

Page 186: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

186

4

Comparada com o que encontrou quando regressou a casa em meados de agosto, a vida de Tatiana no hospital fora uma verdadeira alegria.

Finalmente capaz de andar com muletas (embora mal), deu com Dasha fazendo o jantar para Alexander e este último alegremente sentado a mesa, comendo, brincando com a mãe, discutindo política com o pai, fumando, descontraindo-se e sem ir embora. E sem ir embora.

E sem ir embora. Sentou-se à mesa com ar sorumbático e mordiscou a comida como um rato

com a pança cheia. Mas quando se iria embora? Estava ficando muito tarde. Não tinha hora de

recolher? _ Dimitri, a que horas é o teu recolher? - Às onze, replicou Dimitri. – Mas hoje o Alexander tem a noite livre. - Oh. - Tania, já sabes? A mãezinha e o paizinho estão a dormir no quarto do Deda e

da Babushka – sorriu Dasha. – Agora temos um quarto só para nós. Havia alguma coisa na sua voz que não lhe agradou. - Não, não sabia. – Mas quando se iria Alexander embora? Dimitri regressou ao quartel. Antes das onze, a mãe e o pai prepararam-se

para se retirar. Inclinando-se para Dasha, a mãe cochichou: - Ele não pode ficar, ouviste? O teu pai até dá saltos. Mata-nos às duas. - Está bem mãezinha – sussurrou Dasha. – Ele vai-se já embora, prometo. <<E já vai tarde>>, pensou Tatiana. Quando os pais foram para acama, Dasha chamou Tatiana à parte e

murmurou: - Tania, importas-te de ir ao telhado brincar com o Anton? Por favor? Queria

passar uma hora sozinha com o Alexander... no quarto, Tania! Tatiana saiu e deixou-os a sós. No seu quarto. Foi à cozinha e vomitou na pia. O zumbido que a enchia de náuseas

continuou-lhe na cabeça mesmo depois de ter subido ao telhado, sentando-se com Anton, que supostamente estava de serviço, mas quando adormecera em vez de observar o céu. Felizmente, a noite era calma. Nem de longe se ouvia o som da guerra. Pôs-se a chorar na noite sem luar.

<<A culpa é minha>>, pensou. <<Toda minha.>> Estremecendo, riu alto. Anton mexeu-se. <<A culpa é minha e de mais ninguém.>>

Page 187: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

187

Se não tivesse decidido ir sozinha buscar Pasha, se não se tivesse alistado nos voluntários e partido para sabe Deus para onde, sendo atacada e quebrado uma perna, ela Dasha teriam ido para Molotov com o Deda e a Babushka. E o impensável não estaria agora a acontecer no seu quarto.

Ficou sentada no telhado até Dasha subir as escadas algum tempo depois, fazendo-lhe sinal para entrar.

Na noite seguinte, a mãe disse-lhe que já que estava em casa todo o dia com a perna partida e sem nada para fazer, teria que começar a preparar o jantar para a família.

Quem cozinhava sempre era a Babushka Anna, que não trabalhava. Aos fins de semana, a mãe cozinhava. Às vezes, Dasha cozinhava. Nas festas, como o Ano Novo, toda a gente cozinhava; toda a gente, exceto Tatiana, que depois arrumava a cozinha.

- Eu não me importava, mãezinha... se soubesse. Dasha deu-lhe pouca importância: - Não tem nada que saber. - Pois não, Tania – sorriu Alexander. – Não tem nada que saber. Faz uma coisa

boa. Uma torta de hortaliças, por exemplo. <<Porque não?>>, pensou Tatiana. Enquanto a perna sarava, precisava de

ocupar as mãos ociosas. Tentaria. Não podia continuar no quarto a ler durante todo o dia, ainda que a leitura fosse um livro de frases russas e inglesas. Ainda que fosse uma segunda leitura de Guerra e Paz, de Tolstói. Não podia continuar sentada todo o dia no quarto a pensar em Alexander.

Como as muletas lhe estavam a dar cabo nas costas, pô-las de lado e foi à loja a coxear, com a perna engessada. A primeira coisa que cozinharia na vida seria uma torta de hortaliças. Também gostaria de fazer uma de cogumelos, mas não havia.

Só conseguiu acertar na massa ao fim de três tentativas, que lhe levaram cinco horas. Cozinhou também uma canja de galinha para acompanhar a torta.

Alexander chegou para jantar juntamente com Dimitri. Extremamente nervosa com o facto de ele ir provar a sua comida, até sugeriu que os dois militares regressassem ao quartel para comer.

- E não provava a tua primeira torta? – brincou Alexander. Dimitri sorriu. Comeram, beberam e falaram do seu dia, da guerra, da evacuação e da

esperança que havia de encontrar Pasha. Depois, disse o pai: - Está um bocadinho salgada, Tania. - Não, só não deixaste a massa levedar tempo suficiente – acrescentou a mãe.

– E pususte-lhe cebolas a mais. Porque não arranjaste qualquer coisa além de hortaliças?

- Tania, da próxima vez, deixa as cenouras da sopa cozerem mais. E põe-lhe uma folha de louro. Esqueceste-te do louro – observou Dasha.

Dimitri sorriu: - Para a primeira tentativa, não está nada mal, Tania.

Page 188: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

188

Alexander esytendeu-lhe o prato: - Está ótimo. Dás-me mais um pedacinho de torta? E mais sopa? Depois do jantar, Dasha chamou Tatiana à parte e cochichou-lhe em voz

suplicante: - Vais um bocadinho com o Dimitri para o telhado? Ele não fica até tarde. Tem

de se ir embora. Por favor? Os miúdos do prédio passavam a vida no telhado. Dimitri e Tatiana não

estavam sozinhos. Mas Dasha e Alexander estavam. Aquilo de que Tatiana precisava era de não o ver a ele nem à irmã. A ele,

durante toda a vida. À rima, por duas semanas. Dali a duas semanas, quando o verão acabasse, certamente que a paixão de Dasha também acabaria. Nada sobrevivia Ao inverno de Leningrado.

Mas podia Tatiana não ver Alexander? Talvez conseguisse enganar toda a gente, mas não se enganava a si própria. Prendia a respiração durante todo o dia até à noite, quando o ouvia aproximar-se no corredor. Nas últimas duas noites, parara à sua porta, sorrira e dissera:

- Olá, Tania. - Olá Alexander – respondera, corando e olhando-lhe para as botas. Não era

capaz de o olhar de frente sem que alguma parte do corpo lhe tremesse. Depois, dava-lhe de comer. Depois, Dasha chamava-a à parte e cochichava. Estava disposta a cerrar os dentes e afastá-lo. Sempre soubera qual era o

caminho correto e não o recusava. Mas tinha de o palmilhar todas as noites? À medida que os dias passavam, foi percebendo que era muito nova para

esconder bem o que lhe ia no coração, mas suficientemente crescida para saber que tinha o coração nos olhos.

Receava que, ao fitar Alexander, alguma coisa no seu olhar chamasse a atenção de Dimitri e o fizesse pensar: <<Espera lá, porque está ela a olhar para ele?>> Ou pior: <<O que é aquilo nos olhos dela?>> Ou pior ainda: <<Porque desvia o olhar? Porque não olha para ele como toda a gente? Como eu olho para a Dasha e a Dasha para mim?>>

Olhar para Alexander condenava-a, mas não o olhar também a traía, e talvez ainda mais.

E Dimitri parecia perceber tudo. Quer olhasse quer não olhasse, os olhos atentos de Dimitri estudavam Alexander, estudavam Tatiana.

Ele era mais velho. Sabia esconder melhor. Tratava-a quase sempre como se só a tivesse conhecido na noite anterior,

naquela mesma noite ou uma hora antes: talvez uma hora enfeitiçante, talvez uma hora de embriaguez e certamente uma hora de fumo, mas conseguia comporta-se como se ela não lhe dissesse nada. Nem ele a ela.

Page 189: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

189

Como? Como escondia os passeios em Kirov e os braços batendo um contra o outro, a

vida que lhe contara num desabafo, as mãos irrequietas nos seus seios, os lábios beijando-a e tudo o que lhe dissera? Como escondia Luga de toda a gente? Luga, quando lavara o seu corpo ensangüentado? Quando se deitara nua e ele lhe beijara o cabelo e a abraçara com ternura, enquanto o coração lhe batia desenfreado dentro do peito? Como escondia o seu olhar? Quando estavam sozinhos, Alexander contemplava Tatiana como se não existisse mais ninguém no mundo.

Era essa a mentira? Era esta a mentira? Se calhar os adultos eram assim. Beijavam os seios de alguém e depois faziam

de conta que isso não significava nada. E quando conseguiam fingir muito bem,é porque eram mesmo adultos.

Ou se calhar beijavam os seios e isso realmente não significava nada. Como era possível tocar assim num ser humano e não significar nada? Por outro lado, talvez isso quisesse dizer que se é realmente adulto. Não sabia, mas sentia-se confusa e humilhada ao imaginar-se nas mãos de

Alexander, que quase não se dava ao trabalho de a chamar pelo nome. Baixava os olhos e só desejava que desaparecessem todos. Mas às vezes,

quando toda a gente conversava à volta da mesa e ela andava pela sala a recolher as chávenas vazias, ele contemplava-a de relance e, por um momento, mostrava-lhe o seu verdadeiro olhar.

Tudo o que tinha com Alexander eram gestos sem significado: ele abria-lhe a porta, ela passava por ele, tocava-lhe ao de leve e ficava com energia para o resto do dia. Ou então fazia chá, estendia-lhe a xícara e as pontas dos dedos dele roçavam (acidentalmente?) nas dela, o que lhe dava energia para mais um dia. Até à próxima vez que o visse. Até à próxima vez em que uma parte dele tocasse numa parte dela. Até à próxima vez em que a cumprimentasse com um «Olá, Tania». Mas numa altura em que Dimitri já entrara e Dasha não estava presente, Alexan¬der fizera um grande sorriso e dissera:

- Olá, Tania! Cheguei! - Tivera de se rir, embora não quisesse. Quando erguera o olhar, vira-o a rir-se em silêncio.

Uma noite, ao provar o seu queijo blinchiki, Alexander comentou: - Tania, nunca comi nada tão bom. Sentiu-se muito animada, até Dasha o beijar e dizer: - Tanechka, tens sido um presente do céu para todos nós. Não sorriu, mas quando viu Dimitri a examiná-la esboçou um sorriso que sabia

ser falso. Mais tarde, com Alexander e Dasha sentados no sofá, Dimitri observou: - Dasha, tenho de reconhecer que nunca vi o Alexander tão feliz como agora

contigo. - Toda a gente sorriu, incluindo Alexander, que não olhou para o rosto sério deTatiana. «Pois, e graças a mim», pensou, carrancuda, encontrando o olhar de Dimitri.

Page 190: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

190

Continuou a aprender a cozinhar e a fazer tortas doces, pois via que Alexander as apreciava tanto que acabava com elas numa refeição, que terminava com chá e cigarros.

- Sabes do que também gosto? — perguntou uma vez. O coração de Tatiana parou de bater. - Panquecas de batata. - Não sei fazer isso. Onde estavam os outros? A mãe e o pai no outro quarto. Dasha fora á casa de

banho. Dimitri não se encontrava presente. Alexander lançou-lhe um sorriso contagiante, só para ela.

- Batatas, farinha, algumas cebolas. Sal. - Isso é de... Dasha regressou. No dia seguinte, fez panquecas de batata regadas com molho de natas e toda

a gente as devorou, dizendo que nunca comera nada tão delicioso. - Onde aprendeste a fazê-las? - perguntou Dasha. O único pequeno prazer que Tatiana tinha era dar de comer a Alexandre . Era

um prazer mais intenso e menos maculado pela mágoa enquanto a família não regressava a casa e ela cozinhava sozinha, ansiando por ver o seu rosto. Durante o jantar, as nuvens começavam a acastelar-se, e depois acontecia uma de duas coisas: ou Alexander partia para o quartel, o que era mau, ou Dasha pedia para ficar sozinha com ele, o que era pior.

Para onde iriam antes de terem um quarto por sua conta? Não os imaginava nos becos e bancos de que Alexander lhe falara no hospital. Dasha, sempre a irmã mais velha e protetora, nunca lhe falava disso. De resto, nunca lhe falava de nada.

Nunca ninguém lhe falava de nada. E nunca estava a sós com Alexander. Ele escondia tudo. Mas uma noite, depois do jantar, quando foram todos para o telhado, Anton

perguntou a Tatiana se queria jogar ao estonteante jogo da geografia e ela respondeu-lhe que provavelmente não conseguia andar à roda só numa perna.

- Vá lá, tenta - insistiu Anton. - Eu seguro-te. - Está bem. - Como até lhe apetecia ficar tonta, fechou os olhos e saltitou

apoiando-se na perna boa, amparada pelas mãos amigas de Anton, que riu histe¬ricamente quando ela foi incapaz de acertar na direção de todos os países do mundo. Ao abrir os olhos, Alexander fitava-a com uma expressão tão carrancuda que até lhe custou respirar, como se tivesse partido outra vez as costelas. Endirei¬tando-se, foi sentar-se ao lado de Dimitri, pensando que talvez afinal os adultos não conseguissem esconder tudo.

- É um jogo divertido — observou Dimitri, rodeando-a com o braço. - Pois é - acrescentou Dasha. — Mas quando vais crescer? Alexander não disse nada.

Page 191: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

191

De todas as pequenas bênçãos que agradecia, aquela por que dava mais graças era por a perna partida a impedir de ir passear a sós com Dimitri. E também dava graças por haver sempre alguém a entrar ou a sair do apartamento. Mas nessa noite, quando desceram do telhado, quase entrou em pânico ao ver que os paistinham ido dar um passeio na agradável noite de agosto, deixando os dois paressozinhos.

Percebeu o sorriso insinuante de Dimitri e sentiu-lhe a insinuante proximi¬dade. Dasha sorriu a Alexander e indagou:

- Estás cansado? Tatiana mal conseguia continuar de pé apoiada numa perna. Foi Alexander quem a salvou: - Não, Dasha. Tenho de ir andando. Vamos, Dimitri. Este protestou que não precisava de ir, sem tirar os olhos de Tatiana. - Precisas sim, Dima. O tenente Marazov quer falar contigo antes do recolher.

Vamos - contrapôs Alexander. Tatiana ficou-lhe agradecida, embora fosse um bocado como se os Alemães

lhe cortassem as pernas e depois quisessem que ela lhes agradecesse por não a matarem.

Quando a mãe e o pai regressaram, pediu-lhes calmamente que nunca mais saíssem à noite, nem sequer para irem beber um copo de cerveja numa noite quente de agosto.

Durante o dia, caminhava devagar pelas redondezas, procurando comida nas lojas do bairro. Começava a reparar que havia falta de carne de vaca e de porco. Nem sequer arranjava os duzentos e cinquenta gramas de carne a que cada pessoa tinha direito por semana. De vez em quando, conseguia comprar galinha.

Ainda havia couve, maçãs, batatas, cebolas e cenouras. Como a manteiga escasseava, teve de começar a gastar menos na massa das tortas, que agora sabiam pior, embora Alexander continuasse a comê-las alegremente. Arranjava farinha, ovos e leite. Nunca comprava muitas coisas, porque não podia com elas: só o suficiente para fazer uma torta ao jantar. À tarde, dormia uma sesta, estudava as suas palavras inglesas e ligava o rádio.

Ouvia rádio todas as tardes, porque a segunda pergunta do pai mal chegava a casa era:

- Há novidades da frente? - E a primeira coisa que queria saber era: - Há novidades? — Deixando por dizer: Há novidades do Pasha?

Sentia-se por isso na obrigação de ouvir rádio para saber um mínimo sobre a posição do Exército Vermelho ou o avanço do exército de Von Leeb. Mas preferia não saber. De vez em quando, sim: ouvir relatórios áridos sobre a frente levantava-lhe o moral. Até a derrota às mãos dos homens de Hider era melhor do que o que tinha de suportar dentro de si todos os dias. Ligava o rádio com a esperança de que as notícias desesperadas por esse mundo fora a animassem.

Page 192: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

192

Quando o locutor começava a enumerar as frequências abertas de rádio, então era porque não acontecera nada de extraordinário. Normalmente, haviaalgumas notícias. Mas antes de o locutor começar a falar, ouvia-se uma série de ruídos sombrios e pausas, como o rá-tá-tã de uma máquina de escrever. O boletiminformativo propriamente dito durava apenas uns segundos: mais ou menos três frases curtas sobre a frente russo-finlandesa.

— Os exércitos finlandeses estão a recuperar rapidamente o território que perderam na guerra de 1940.

- Os Finlandeses estão a aproximar-se de Leninegrado. — Os Finlandeses encontram-se em Lisiy Nos, apenas a vinte quilômetros dos

limites da cidade. Seguiam-se depois algumas frases sobre o progresso alemão. O locutor lia

devagar, esticando o boletim sem notícias de modo a transmitir um significado que não estava lá. Depois de ouvir a lista das cidades a sul de Leninegrado que tinham caído nas mãos dos Alemães, a jovem ia consultar o mapa.

Quando descobriu que Tsarskoye Selo estava sob o domínio alemão, ficou tão chocada que até esqueceu Alexander enquanto se recompunha. Tsarskoye Selo, tal como Peterhof, era um palácio de verão dos antigos czares e o sítio onde Alexander Pushkin escrevia durante o verão mas, pior do que tudo, ficava apenas dez quilómetros a sudeste da fabrica de Kirov, localizada nos limites da cidade de Leninegrado.

Os Alemães estavam a dez quilômetros de Leninegrado? - Estão - confirmou Alexander nessa noite. — Os Alemães estão muito perto. A cidade mudara durante o tempo que Tatiana passara em Luga e no hospital. As agulhas douradas do Almirantado e da Catedral de São Pedro e São Paulo

tinham sido pintadas de cinzento. Havia soldados nas ruas e as fardas azul-escuras das milícias da NKVD davam ainda mais nas vistas do que os militares. Todas as janelas da cidade tinham tiras contra as explosões; as pessoas andavam nas ruas depressa e com determinação. Tatiana sentava-se às vezes num banco ao lado da igreja, observando-as do outro lado da rua. No céu flutuavam os omnipresentes dirigíveis, alguns redondos e outros ovais. As rações estavam ligeiramente mais reduzidas, mas ainda conseguia arranjar farinha suficiente para fazer tortas de batata, de cogumelos e de couve. Alexander levava muitas vezes as suas rações quando ia jantar. Havia galinha que chegasse para cozinhar uma canja com cenou¬ras bem cozidas. O louro desaparecera do mercado.

Dimitri levou Tatiana para o telhado, deixando Dasha e Alexander sozinhos no quarto, envolveu-a com o braço e disse:

— Tania, por favor. Sinto-me tão triste! Quanto tempo mais vou ter de esperar? Não podemos avançar mais um bocadinho hoje à noite?

Ela pousou-lhe a mão no braço e perguntou: - Que se passa?

Page 193: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

193

- Preciso que me reconfortes - respondeu, abraçando-a, beijando-lhe a face e tentando chegar-lhe à boca. Havia qualquer coisa de pouco natural no facto de ele lhe tocar, mas não conseguia perceber o quê.

- Dima, por favor — murmurou, afastando-se ligeiramente e fazendo um sinal a Anton, que se aproximou e se pôs à conversa com eles até Dimitri se fartar e se ir embora.

- Obrigada, Anton - agradeceu. —As ordens - replicou ele. - Mas porque não lhe dizes para te deixar em paz? - Podes não acreditar, Anton, mas quanto mais lho digo, mais ele não me

larga. - Os homens mais velhos são assim, Tania - replicou Anton com autoridade,

como se fosse muito entendido no assunto. - Não percebes nada de nada? Se cede¬res, ele deixa-te em paz! - Riu-se.

Tatiana também soltou uma gargalhada: - Se calhar tens razão. Os homens mais velhos devem ser mesmo assim. Continuou a entreter Dimitri com cartas ou livros, anedotas ou vodca. A vodca

era especialmente boa, porque ele costumava beber um bocadinho de mais e adormecer no pequeno sofá do vestíbulo. Tatiana pegava então no casaco da avó, subia ao telhado sem ele, sentava-se com Anton e pensava em Pasha e Alexander.

Passava o tempo com Anton, contava anedotas, lia Zoshchenko e Guerra e Paz e perscrutava o céu de Leninegrado, pensando quanto faltaria para os Alemães chegarem à cidade.

Pensando quanto tempo faltaria para muita coisa. E quando os outros miúdos se iam deitar, continuava sentada no telhado, à

luz da candeia de querosene, a pronunciar palavras inglesas do dicionário e do livro de frases. Decorou pen, table, love, the United States of America, potato pan- cakes 1. Gostaria de ter dois minutos a sós com Alexander para lhe dizer algumas frases divertidas que estava a aprender.

Uma noite do fim de agosto, com Anton dormindo ao seu lado, tentou pen¬sar numa maneira de voltar a endireitar a sua vida.

Em tempos, tudo estivera nos eixos. Tanto quanto era possível. De repente, a 22 de junho, a vida transformara-se num caos constante, triste e sem fim. Mas nem tudo era tristeza.

Sentia a falta da hora do fim da tarde com Alexander em Kirov mais do que admitia para si própria. A hora do fim da tarde em que se afastavam, aproximavam e vagueavam juntos pelas ruas vazias; quando falavam e se calavam e o silêncio corria nas suas palavras como o lago Ladoga corre para o Neva, que corre para ogolfo da Finlândia, que corre para o mar Báltico. A hora do fim da tarde em que sorriam e o branco dos seus dentes a ofuscava, em que riam e o seu riso lhe pene¬trava os pulmões, em que nunca tirava os olhos dele e só o via a ele.

1 Caneta, mesa, amor, Estados Unidos da América, panquecas de batata. (N. da T.)

Page 194: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

194

A hora do fim da tarde em Kirov, quando estavam sozinhos. Que fazer? Como fazer? Tinha de sarar por dentro. Por si, pela irmã e por

Alexander. Eram duas da manhã. Envergando apenas um velho vestido de verão e um

casaco, Tatiana tinha frio. Mas provavelmente seria melhor passar o resto da vida no telhado do que lá em baixo, com a esperança desesperada da mãe e do pai por causa de Pasha ou com o murmúrio suplicante de Dasha... Tania, vai-te embora para eu ficar a sós com ele.

Pensou na guerra. «Se os aviões alemães aparecessem agora e largassem uma bomba no nosso prédio, talvez eu conseguisse salvar toda a gente e morrer. Fariam luto por mim? Chorar-me-iam? Alexander desejaria que as coisas fossem diferentes?»

Diferentes como? Diferentes quando? Sabia que Alexander já desejava que as coisas fossem diferentes. Desde o

princípio que desejara que fossem diferentes. Mas mesmo então, ainda no autocarro, apenas um com o outro, haveria

algum sítio para onde Tania e Shura pudessem ir, se quisessem estar sozinhos por dois minutos a dizer frases inglesas um ao outro, além do caminho de Kirov?

Tatiana não conhecia tal lugar. Alexander conheceria? Não valia a pena pensar nisso. Só se torturaria ainda mais. Como se

precisasse... «Só quero algum alívio», pensou. «É pedir muito?» Mas nada a aliviava: nem a reserva de Alexander, nem a sua ocasional

impa¬ciência com Dasha, as suas variações de humor ou o facto de ele ganhar sempre quando jogavam às cartas; nada aliviava o que sentia nem a necessidade que tinha dele. Alexander não dispunha de muitas noites livres. Ou tinha de regressar para o recolher ou estava de serviço em Santo Isaac. Só lhe davam uma ou duas noites livres por semana, mas mesmo assim eram de mais.

E aquela noite era uma delas. Por favor, Tania, por favor vai-te embora para eu ficar a sós com ele.

Ouviu um roncar distante. Os dirigíveis cruzavam o céu. As horas da noite, da manhã, do dia, as horas... Era preciso fazer alguma coisa.

Mas o quê? Desceu as escadas. Fez um chá para aquecer as mãos frias. Estava sentada,

exausta, no peitoril da janela da cozinha olhando para o pátio às escuras quando, pelo canto do olho, viu Alexander a passar pela porta. Depois, ouviu os seus passos abrandando e voltando para trás. Parou à porta. Por um momento, não falaram.

- Que estás a fazer? - perguntou ele baixinho. - À espera de que te vás embora para me poder deitar - respondeu friamente

e com coragem.

Page 195: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

195

Entrou, hesitante, na cozinha. Tatiana lançou-lhe um olhar zangado. Ele aproximou-se. A ideia de poder cheirá-lo amoleceu-lhe o coração. Mas

Alexander parou. - Quase nunca fico até tarde - disse. - Ótimo. Agora que ninguém estava a vê-la, fitava-o sem pestanejar. Contemplando-a com remorsos e compreensão, Alexander afirmou: - Sei que tem sido muito difícil para ti, Tatiana. Perdão. A culpa é minha. O responsável sou eu. Não te disse? Nunca devia ter entrado no teu quarto do

hospital naquela noite. Oh! Porque antes era suportável? - Era melhor do que agora. -Tens razão. — Apetecia-lhe saltar do parapeito e atirar-se para os seus

braços, andar de elétrico, sentar-se no banco, dormir com ele numa tenda. Queria senti-lo outra vez junto de si. Outra vez em cima de si. Mas respondeu: - Diz-me uma coisa: foste tu que mexeste os cordelinhos para o Dima estar todas as noites em Leninegrado? É que todas as noites que passa aqui tenta tomar liberdades comigo.

Os olhos dele brilharam: - Realmente falou-me disso. - A sério? - Seria por isso que andava tão frio? - O que te contou o Dima? - Estava muito cansada para se sentir zangada com Dimitri. Alexander

aproxi¬mou-se. «Só mais um bocadinho e conseguirei cheirar-te», pensou ela. — Não interessa - retorquiu ele, parecendo magoado. - E achaste que ele estava a dizer-te a verdade? - Diz-me tu. - Sabes que mais, Alexander? — Passou as pernas para o lado de dentro do

parapeito e pousou a caneca. Ele aproximou-se: - Não, Tatia — retorquiu suavemente. Tatiana cheirou-lhe a virilidade, o champô, o sabonete. Sorriu debilmente e

voltou a ficar séria: - Faz-me um favor e não te chegues a mim, peço-te. Está bem? - Faço o melhor que posso — replicou ele, recuando um passo. - Não - disse Tatiana, indo-se depois abaixo: - Porque vens cá? - murmurou.-

Não continues com a Dasha. - Suspirando profundamente: - Como depois de Kirov. Vai-te embora. Vai fazer a tua guerra. E leva o Dimitri. Ele não aceita as minhas recusas e eu estou a ficar farta. — «De vocês todos», apeteceu-lhe acrescenta. Daqui a pouco, vou ficar farta de lhe dizer que não - rematou, para impressionar.

- Para com isso! Não posso partir agora. Os Alemães estão muito perto e vocês vão precisar de mim. — Depois de uma pausa: — Tu vais precisar de mim.

Page 196: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

196

- Não vou nada. Eu fico bem. Por favor, Alexander... isto é muito difícil para mim. Não percebes? Diz adeus à Dasha, diz-me adeus a mim e leva o teu Dimitri contigo. — Calou-se. — Por favor, por favor vai-te embora.

- Tania — murmurou ele em voz quase inaudível —, como poderei não te ver? Ela pestanejou. - Quem irá dar-me de comer, Tania? Voltou a pestanejar. - Então muito bem - retorquiu, perturbada. - Eu faço-te o jantar e divirto, -me

com o teu melhor amigo enquanto tu te atiras à minha irmã. Percebi bem agora? É perfeito, não é?

Alexander girou nos calcanhares e foi-se embora. A primeira coisa que fez quando acordou na manhã seguinte foi ir ter com

Vera ao Hospital Grechesky. Enquanto a enfermeira lhe examinava as costelas, perguntou:

- Vera, posso fazer alguma coisa por aqui? Há algum trabalho para mim no hospital?

O rosto amável de Vera estudou-a: - Que se passa? Está com um ar tão triste! É por causa da perna? - Não, estou... — A sua doçura calou fundo em Tatiana, que quase abriu a

boca e desabafou a sua amargura com a mulher de cabelo branco. Quase. Mas dominou-se. - Não, nada. O problema é que não posso ir a lado nenhum. Estou farta. Passo a noite no telhado a ver se há bombas. Acha que há alguma coisa para eu fazer aqui?

Vera ficou pensativa: - Uma ajudinha dava-nos jeito. Apurou imediatamente o ouvido: - Para fazer o quê? - Tanta coisa! Pode pôr-se à secretária a tratar de papeladas, servir comida no

bar, fazer pensos, tirar a temperatura e talvez até aprender enfermagem melhorar. Tatiana fez um sorriso aberto: - Isso é fantástico, Vera! — Depois, carregou o cenho: - Mas o que farei com

Kirov? Devo regressar lá para fazer tanques logo que me tirem o gesso. A propósito quando me tiram?

— Tatiana! A linha da frente é em Kirov! — exclamou Vera. — Claro que não vai para lá. Não é assim tão valente. Agora dão às pessoas uma espingarda e trei¬nam-nas para combater antes de continuarem a trabalhar. Saiu mesmo a tempo, sabe? E aqui temos sempre falta de pessoal. Há muitos a oferecer-se para lutar e poucos a regressar. — Sorrindo: — Nem todos têm um oficial a desenterrá-los do meio dos escombros.

Se pudesse evitar ir a casa, era o que teria feito. Nessa noite ao jantar, incapaz de conter o entusiasmo, anunciou à família que

arranjara emprego perto de casa.

Page 197: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

197

— Isso! Vai trabalhar — disse o pai. — Até que enfim! Assim podes almoçar lá. — Se for agora, a perna nunca mais fica boa e vai ficar a coxear para toda a

vida - protestou Alexander. — Mas não pode continuar sem fazer nada! - exclamou o pai em voz alta. -

Não temos como alimentá-la. Disseram-me no emprego que iam diminuir outra vez as rações. E cada vez vai ser pior.

— Eu vou trabalhar, pai — retorquiu Tatiana, ainda animada. - E como menos, está bem?

Torturando o puré de batatas com o garfo, Alexander lançou-lhe um olhar colérico do outro lado da mesa.

O pai pousou o garfo com força: — A culpa é tua, Tania! Devias ter partido com os teus avós! Seria mais fácil

devido à situação alimentar em que nos encontramos e não correrias o perigo que corres ao ficar em Leninegrado. — Abanou a cabeça. - Devias ter ido com eles.

— Que está a dizer, paizinho? — inquiriu ela, já nada animada e um tanto mais alto do que alguma vez falara com o pai. — Sabe muito bem que não pude ir com o Deda por causa da perna. - Franziu o sobrolho.

— Pronto, Tania — interveio Dasha, pousando a mão no braço da irmã. - Já chega.

Foi a vez de a mãe atirar com o garfo: — Para começar, não terias a perna partida se não fossem os teus disparates,

Tania! Tatiana sacudiu a mão de Dasha e virou-se para a mãe: — Talvez eu não fosse tentar encontrar o Pasha se a mãezinha não tivesse

dito que preferia que eu morresse em vez dele! A mãe e o pai ficaram sem fala a olhar para a filha. Toda a gente na sala se

calou. — Eu nunca disse uma coisa dessas! — gritou a mãe, levantando-se da mesa.

— Nunca! — Eu ouvi, mãezinha! — Nunca! - Eu ouvi! «Porque é que Deus não levou antes a nossa Tania?» Lembra-se

mãezinha? Lembra-se, paizinho? - Vá lá, Tania - contemporizou Dasha em voz trémula. - Eles não queriam dizer

isso. - Vá lá, Tanechka - acrescentou Dimitri, dando-lhe a mão. - Acalma-te. - Tatiana! — berrou o pai. — Não te atrevas a falar assim connosco, quando a

culpa é tua! A jovem tentou respirar profundamente e acalmar-se, mas não conseguiu. - Minha? - gritou ao pai. - Diga antes sua! Foi o paizinho que mandou o Pasha

para a morte e depois ficou sentado sem fazer nada...

Page 198: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

198

O pai levantou-se de repente e deu-lhe um estalo tão violento que ela caiu da cadeira.

Alexander pôs-se em pé e empurrou o pai de Tatiana: - Não - disse. — Não! - Saia daqui! — berrou o pai. — Isto é só entre nós. Ponha-se a andar! Alexander ajudou-a a levantar-se. Estavam entre o sofá e a mesa de jantar,

perto de Dasha, que tinha a cabeça trémula entre as mãos e continuava sentadatal como Dimitri. O pai e a mãe ofegavam, de pé ao lado um do outro.

Tatiana tinha sangue no nariz. Mas agora Alexander estava entre ela Apertando-se contra ele e agarrando-se-lhe à manga, berrou:

- Pode bater-me quanto quiser, paizinho. Até pode matar-me. Não será por isso que o Pasha voltará. E ninguém se vai embora porque não há sítio nenhum para onde ir!

Vociferando, o pai tentou bater-lhe outra vez, mas Alexander impediu-o. - Não - disse abanando a cabeça, com um braço estendido para trás

ampa¬rando Tatiana e o outro à frente dele. Dasha levantou-se por fim e, em lágrimas, correu para o pai e agarrou-lhe«

braços. - Papochka, Papochka, não, por favor. — Virando-se para a irmã, gritou:- Olha

o que fizeste! — Tentou passar por Alexander, que a impediu de o fazer. - Que queres? - perguntou ele calmamente. Sem compreender, Dasha fitou-o: - O quê? Ainda estás a defendê-la? Olha o que ela fez! A mãe chorava. O pai continuava a gritar, muito vermelho. Dimitri olhava para

o prato. Tatiana, atrás de Alexander, assistia ao seu confronto com Dasha. - Já chega - ordenou ele. — Ela não fez nada. Parem todos com isso. Se lhe

tivessem dado ouvidos em junho, quando ainda era tempo, não estariam agora a discutir e o vosso filho e irmão talvez ainda estivesse vivo. Agora é tarde. Deixem-na em paz. — Virando-se para ela: — Estás bem? — Tirou um guardanapo da mesa estendeu-lhe: — Faz força no nariz para estancar o sangue. Vá. Depressa.

Voltou-se então para o pai de Tatiana: - Georgi Vasilievich — começou —, sei que estava a tentar salvar o seu filho. - Depois de uma pausa: — Acredite que sei. Mas não faça da Tania o seu bode

expiatório. O pai atirou com o copo de vodca, praguejou e foi a cambalear para o outro

quarto. A mãe seguiu-o, batendo a porta atrás de si. Tatiana ouviu os seus soluços. - É sempre assim - comentou, pouco segura. - Chora e alguém vai pedir-lhe

desculpa. Normalmente sou eu. Dasha continuava de pé, lançando um olhar fulminante a Alexander: - Não posso acreditar que te puseste ao lado dela contra mim. - Não me venhas com tretas, Dasha — retorquiu Alexander em voz alta.

Page 199: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

199

- Pensas que me pus do lado dela porque não te deixei bater na tua irmã mais nova que tem uma perna partida? Porque não bates em alguém do teu tamanho? Ou porque não me bates a mim? Eu sei porquê. Porque só o farias uma vez - rematou em voz zangada.

- Tens razão — anuiu Dasha, tentando dar-lhe um estalo. Ele agarrou-lhe a mão e afastou-a com força: - Estás descontrolada, Dasha. Vou-me embora. Dimitri, que não abrira a boca, suspirou, levantou-se e partiu com ele. Mal saíram, Dasha atirou-se a Tatiana, que não conseguiu equilibrar-se e caiu

em cima da mesa e do puré de batatas que cozinhara uma hora antes. - Olha o que fizeste! — berrou Dasha. — Olha o que fizeste! A porta abriu-se e Alexander entrou. Agarrou no braço de Dasha, afastou-a da

irmã e disse: -Tania, dás-nos um minuto, por favor? A rapariga saiu e fechou a porta atrás de si, ainda com o guardanapo apertado

ao nariz. Ouviu Alexander aos berros e Dasha a vociferar. De pé no corredor, ela e Dimitri entreolharam-se, incomodados. - Ele é assim. Tem um génio de fugir - comentou Dimitri, encolhendo os

ombros. Tatiana ia a dizer que nunca o vira perder a cabeça, mas achou melhor ficar

calada, tentando ouvir. - Era preferível ele sair e deixar a família entender-se, não achas? Amanhã é

outro dia - disse Dimitri. - Isso lembra-me uma anedota: «Vassili, porque é que estás sempre a bater-

me? Não fiz nada de mal.» E o Vassili responde: «Devias dar graças. Se soubesse o que andas a fazer, matava-te.»

Dimitri riu como se fosse a coisa mais engraçada que ouvira durante todo o dia.

A voz de Alexander chegou-lhes do quarto: — Não compreendes? — gritava a Dasha. — Não é ela que está a afastar-me,

és tu... com o teu comportamento. Como podes pensar que eu alguma vez me vou pôr do teu lado quando bates na tua irmã?

Dasha disse qualquer coisa. — Não me venhas com desculpas esfarrapadas. Não preciso delas. - Pausa.-

Não, não posso continuar. Ouviram-se soluços histéricos: — Por favor, Alexander, por favor não vás, por favor, desculpa, tens razão,

meu amor, tens razão. Por favor, não vás. Que posso fazer? Queres que lhe peça desculpa?

— Dasha, se tocas outra vez na tua irmã, acabo tudo contigo. Percebes? — Nunca mais lhe bato - prometeu Dasha.

Page 200: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

200

Silêncio no quarto. Tatiana ficou estupefata. Sem saber para onde olhar, limpou o sangue do nariz, fitou Dimitri e encolheu

os ombros: — Nem para discutir têm um momento a sós. Bem, pelo menos parece que

está tudo bem. — O corpo começou a escorregar-lhe para o chão. Dimitri amparou-a, sentou-a no sofá do corredor e limpou-lhe o rosto,dando-

lhe umas palmadinhas nas costas: — Sentes-te bem? — perguntou-lhe mais do que uma vez. Os Sarkov bateram à porta do vestíbulo, perguntando se acontecera alguma

coisa. Como o apartamento era comunitário, toda a gente sabia quando havia uma discussão. Toda a gente ouvia. Tudo.

— Não, está tudo bem — respondeu Tatiana. — Foi só uma discussãozinha. Dasha saiu porta fora e pediu desculpa à irmã com um ar carrancudo. Depois

voltou para dentro. Tatiana pediu a Dimitri para se ir embora e subiu a coxear até ao telhado, onde se sentou, rezando para que caísse uma bomba.

Às tantas, viu Alexander saindo pela porta das escadas e aproximando-se dela. Estava sentada a falar com Anton, e embora o coração lhe tivesse dado um salto, não lhe ligou. Tinha as mãos nas de Anton, que lhe fez sinal e parou de falar. Sus¬pirando, virou-se:

— O que foi? - indagou tristemente. — Dá-me a tua mão — murmurou ele. — Não. — Dá-me a tua mão. Ela falou em voz alta: — Anton, lembras-te do Alexander da Dasha? Vá, deem um aperto de mão. Anton largou Tatiana e cumprimentou Alexander, que disse: - Anton, importas-te de nos deixar a sós? O rapaz afastou-se com relutância e parou suficientemente perto para poder

ouvir. _ Vamos para mais longe — sugeriu Alexander a Tatiana. - Custa-me andar sempre de um lado para o outro. Por mim, estou bem aqui. Sem discutir mais, pegou nela ao colo, avançou uns passos e pousou-a num

canto do telhado onde não havia nem Anton nem Mariska, a rapariguinha de sete anos que vivia praticamente no telhado porque os pais passavam a vida embria¬gados no segundo andar.

- Dá-me as mãos, Tania. Obedeceu de má vontade. Tinha as mãos a tremer. - Estás bem? - perguntou suavemente. - Isto acontece muitas vezes? - Estou. Acontece de vez em quando. - Abanando a cabeça: - Porquê? - Nunca deixarei que ninguém te faça mal.

Page 201: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

201

- E de que serve isso? Agora estão todos furiosos comigo. Já estiveste a namo¬rar com a Dasha e agora vais-te embora, mas eu fico naquela cama, naquele quarto, naquele vestíbulo. E continuo a não prestar para nada.

A expressão dele era de pena e ternura: - Não estive a namorar. Não deixarei que te façam mal. Quero lá saber se a

Dasha descobrir ou se o Dimitri... — Calou-se. Tatiana fez um esforço para ouvir. - Quero lá saber se o mundo todo descobrir. Não deixarei que ninguém te faça

mal. - Espreitando-lhe o rosto: — E sabes que estou a falar a sério. Por isso, se não queres que te estrague os planos para poupar a Dasha, aconselho-te a teres mais cuidado com as pessoas que te batem.

- Mas em que mundo vives? - perguntou ela. - Não é assim na tua América?. Aqui na Rússia, os pais batem aos filhos e os filhos nem piam. As irmãs mais velhas batem nas mais novas, e as mais novas nem piam. É assim.

- Eu sei, mas tu és muito pequena para te baterem. Além disso, ele anda a beber muito, o que o torna mais irritável. Precisas de ter cuidado com ele.

As suas mãos quentes eram um consolo. Tatiana semicerrou os olhos, imagi¬nando apenas uma coisa. A boca abriu-se-lhe num gemido silencioso.

- Não faças isso, minha querida - pediu ele, apertando-lhe as mãos com mais força.

- Shura, estou perdida. Não sei o que hei de fazer. Estou completamente perdida.

De repente, retirou as mãos e indicou-lhe com os olhos a escada, de onde surgira Dasha, que se aproximava deles.

Parando ao seu lado, disse: — Vim falar com a minha irmã. — Olhando de um para o outro: - Não sabia

que ainda estavas aqui. Disseste que tinhas de ir. — E tenho - replicou ele, levantando-se e dando-lhe um encontrão amoroso,-

Até daqui a uns dias. Tu, Tania, vai ver se o nariz não está partido. Mal conseguiu assentir. Quando ele saiu, Dasha sentou-se ao seu lado: — O que queria o Alexander? — Nada. Só ver se eu estava bem. — Naquele instante, foi tomada pelo desejo

de contar tudo. Por isso, antes que abrisse a boca para o fazer, continuou muito depressa: — Sabes uma coisa, Dasha? És a minha irmã mais velha, adoro-te e ama¬nhã já vai estar tudo bem outra vez, mas neste momento és a última pessoa com quem quero falar. Percebo agora que te baixo muito a cabeça quando queres que fale, que me vá embora ou seja o que for. Amanhã baixo-a outra vez, mas neste momento não quero falar contigo. Quero ficar aqui sentada a pensar. - Depois de uma pausa, rematou firmemente: — Por isso, vai-te embora, Dasha.

A irmã não se mexeu.

Page 202: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

202

- Olha, Tania, desculpa, a sério. Mas não devias ter dito aquilo ao paizinho e à mãezinha. Sabes como estão de rastos por causa do Pasha. Sabes que já se sentem culpados.

- Dasha, não quero ouvir as tuas desculpas esfarrapadas! - O que é que te deu? - perguntou Dasha. - Nunca falaste assim. Com

nin¬guém. - Porfavor, Dasha, por favor. Vai-te embora. Tatiana ficou sentada no telhado até de manhã, embrulhada no velho casaco,

com as pernas e o rosto frios. Espantava-a aquela intimidade inabalável com Alexander. Embora não

falas¬sem muito um com o outro, embora ele se mostrasse frio com ela, embora as últimas palavras trocadas houvessem sido amargas, não tinha dúvidas de que o homem que a fora buscar a Luga a defenderia se fosse necessário. Essa convicção dera-lhe força para gritar com o pai e dizer-lhe o que nunca se teria atrevido a proferir, por muito verdade que fosse e por muito que quisesse dizê-lo, se não houvesse sentido a força de Alexander.

Atrás dele, sentira-se ainda mais valente, sem querer saber do nariz a sangrar nem das costelas a doer. Sabia que não deixaria sequer Dasha tocar-lhe; sabia-o tão bem que, de repente, na escuridão da noite, sentiu-se em paz consigo própria, com a vida e até com a irmã.

Dimitri, como já esperava e apesar de tudo o que jurava sentir por ela, não fizera nada. A sua opinião sobre ele não mudara uma vírgula. Dimitri era um homem soviético. Não o culpava por isso... por ser fiel à sua natureza.

No entanto, reunia todas as forças para negar a sua, pois sabia que pertencia a Alexander de corpo e alma.

Pensara que podia desembaraçar-se dele e cada um seguir a sua vida. Era um embuste. Não se tratava aqui de ultrapassar uma paixoneta pelo pretendente da irmã

mais velha, mas sim da lua de Júpiter e do sol de Vénus alinhando-se no céu por cima da sua cabeça.

Page 203: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

203

5

Quando Alexander entrou no quarto, Dimitri estava deitado no beliche de cima.

- Que se passa? - indagou com um ar fatigado. - Isso pergunto eu - respondeu o outro. - Vejamos. Náo estive mesmo agora contigo? Vou dormir. Tenho de acordar

amanhã às cinco. - Então vou direto ao assunto — volveu-lhe Dimitri, saltando do beliche. - Quero que pares com o jogo que andas a fazer com a minha namorada. - Estás a falar de quê? - Náo posso ter ao menos isto só para mim? Já tens uma vida boa, náo tens?

Pensa em tudo o que queres e tens. É tenente do Exército Vermelho com uma companhia de homens às tuas ordens. Eu náo estou na tua companhia...

- Pois náo, mas está na minha, soldado - interrompeu Anatoly Marazov, sal¬tando do beliche ao lado do de Alexander. - Já é tarde e temos dias muito difíceis pela frente. Náo devia levantar a voz. Está aqui por favor.

Dimitri fez-lhe a continência. Junto dele, Alexander não disse nada. - Em sentido, soldado — ordenou Marazov, aproximando-se. - Pensei que só

tinha vindo aqui para descansar e esperar pelo seu amigo. - É apenas um pequeno problema entre mim e o tenente - replicou Dimitri. - O problema só é pequeno, soldado, se nãome interromper o sono de que

tanto preciso. De contrário, deixa de ser pequeno. Agora, à vontade. - Marazov, de ceroulas, caminhou em volta de Dimitri, completamente fardado: - E esse pequeno problema não pode esperar até amanhã?

Alexander deu um passo em frente: -Tenente, pode conceder-nos uns minutos? Tentando não sorrir, Marazov inclinou a cabeça: - Como queira, tenente. - Nós vamos lá para fora. Saíram para o corredor; Alexander fechou a porta atrás dele. - Que se passa, Dima? Não arranjes sarilhos com o teu comandante! - Deixa-te de tretas! Diz-me: nunca estás satisfeito? — Mantendo uma certa

distância, atirou-lhe — Podes ter as miúdas que quiseres. Porque queres a minha? Alexander precisou de todas as suas forças para não lhe fazer a mesma

pergunta a ele. - Não faço ideia do que estás a falar. Bateram-lhe e eu ajudei-a.

Page 204: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

204

- Não passo de lixo. Obedeço às ordens de toda a gente e engulo tudo. Ela é a única pessoa que me trata como um ser humano.

«É mais forte do que ela. Trata toda a gente assim.» - Mas, Dima, tu também tens a tua vida - tornou Alexander. - Pensa em tudo o

que não queres e não tens. Não te mandaram para o Sul, onde há tantos homens a cair na máquina de picar carne de Hitler. A unidade do Marazov fica aqui até a linha da frente chegar a Leninegrado. Tratei disso pessoalmente. Para te ajudar. - Depois de uma pausa: - Porque sou teu amigo. - Dando um passo na sua direção: - Tenho sido muito bom para ti ao longo destes anos. Que acon¬teceu à nossa amizade?

- Aconteceu o amor — atirou-lhe Dimitri. - Agora, ela é mais importante para mim. Quero sobreviver à merda desta guerra... por ela.

- Oh, Dimitri! — exclamou ele, calando-se. — Então sobrevive... por da. Quem te impede?

- É possível que ela tenha alguma paixoneta, mas não é real. Como poderia ser? Ela não sabe quem tu és — sussurrou, fazendo uma pausa. — Ou sabe?

O coração bateu-lhe descontroladamente. A lâmpada ao pé deles estava fun¬dida. A do fundo do corredor acendia-se e apagava-se. Ouviam-se risos masculinos nalguns quartos e o barulho de água a correr. Continuavam calados em frente um do outro. A que estaria Dimitri a referir-se? Ao seu passado indiscreto? À América? Lançou-lhe um olhar zangado.

- Claro que não - disse por fim. - Não sabe absolutamente nada. - É que se soubesse, as coisas seriam muito perigosas, não achas? Para nós. Alexander avançou na direção de Dimitri, que pôs as mãos abertas à frente e

recuou para a parede. - Deixa-te de merdas. Já te disse que ela não sabe nada. - Não quero prejudicar ninguém — afirmou Dimitri em voz submissa, ainda

com as mãos levantadas. — Só quero tentar a sorte com a Tania. Cerrando os dentes, Alexander girou nos calcanhares e regressou à camarata. Deitado na cama com os braços atrás da cabeça, Marazov perguntou-lhe: - Queres que trate do Chernenko? Ele está a dar-te problemas? Alexander abanou a cabeça: - Não te preocupes. Eu cá me arranjo. - Podemos transferi-lo. - Já foi transferido. Quatro vezes. - Oh, como ninguém o quer, manda-lo para mim? - Para ti não. Para o Kashnikov. - Sim, e o Kashnikov é meu. Marazov pegou numa garrafa, bebeu um trago de vodca, passou-a a

Alexan¬der e continuou: - Não temos homens suficientes que possamos atirar à frente dos tanques do

Hitler para defender Leninegrado. Vamos ter de nos render, não é?

Page 205: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

205

- Espero que não. Vamos combater nas ruas com pedras, se for preciso. - Sorriu.

Marazov fez-lhe a continência do outro lado da camarata e deixou-se cair na almofada.

- Tenente Belov, náo te tenho visto quando estás de folga. Havias de ver as miúdas que aparecem ultimamente no clube. — Fez um sorriso aberto.

Alexander devolveu-lhe o sorriso e abanou a cabeça: - Para mim, acabou-se. O outro soergueu-se, surpreendido: - Não percebo as palavras que te saem da boca, tenente. Ouço, penso que

estás a falar russo, mas não acredito. O que se passa? Como Alexander não respondeu, Marazov continuou: - Espera, espera! Não estás... oh, não! - Riu com gosto. - Deixa-te de mer¬das!

O que te aconteceu? Não estás a morrer, pois não? - A dormir é que não estou — retorquiu-lhe Alexander. - Quem posso acordar? Não vou guardar isto só para mim! Debruçando-se no beliche, bateu com a almofada no oficial que dormia

embaixo: -Grinkov, acorda! Náo vais acreditar quando te disser... - Vai-te lixar! - resmungou Grinkov, atirando a almofada ao chão e virando-

lhe as costas. Alexander riu-se: - Para com isso, seu filho da mãe — disse a Marazov. - Para com isso, se não

queres ser tu transferido. - Quem é? - Não sei do que estás a falar — replicou, tapando o rosto com uma almofada. - Espera! É a miúda de quem falas sempre durante o sono? Tirando a almofada da cara, disse, admirado: - Eu não falo quando estou a dormir. - Ai isso é que falas. E como! Grinkov, o que diz o Belov quando está a dormir? — Vai-te lixar — repetiu Grinkov, virando-se para a parede. - Não, não é isso. É um nome de mulher. É... é... Alexander, devias conta tudo

aos oficiais teus camaradas. — Sim, porque posso confiar muito em vocês, não é? — comentou Alexander,

virando-se de lado. Marazov bateu palmas: - Quero conhecê-la. Quero conhecer a mulher que arrumou o vadio do nosso

Alexander. Mais tarde, deitado sem conseguir dormir, Alexander pensou que voltar a

juntar os fragmentos de um coração despedaçado não era um passeio ao campo. Se a vida na União Soviética lhe ensinara alguma coisa, fora isso. Mas tentaria... depois de falar com ela. Tudo seria mais fácil depois de falar com ela.

Page 206: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

206

Sabia que, para ter luz em vez de trevas, precisava de a merecer. E obviamente ainda não chegara a altura. Ainda tinha de conquistar as suas estrelas.

Page 207: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

207

6

De manhã, a mãe perguntou a Tatiana se estava contente. - Não - respondeu. - Não especialmente. Quando saíram todos, começou a preparar-se para se dirigir ao hospital.

Bate¬ram à porta. Quando foi abrir, deu com Alexander. - Não posso deixar-te entrar - disse ela, apontando para Zhanna Sarkova, que

saiu do quarto e parou no corredor, observando-os com ar desconfiado. A ansiedade e o nervosismo misturavam-se em partes iguais dentro de Tatiana. Não podia deixá-lo entrar e fechar a porta com Sarkova a ver, mas...

- Não te preocupes — tranquilizou-a ele, entrando. — Tenho lá em baixo um destacamento inteiro à minha espera. Vamos erguer barricadas nas ruas que ficam a sudeste. - Depois de uma pausa: - As notícias são terríveis. Mga caiu ontem nas mãos dos Alemães.

- Oh, não! - Recordou as suas palavras sobre os comboios. - O que significa isso para nós?

Alexander abanou a cabeça: - E o fim. Só vim ver se estás bem, depois do que se passou ontem. E se não

vais trabalhar - rematou com ênfase. -Vou. - Não, Tatia. - Vou, Shura. - Não. — Levantou a voz. Olhando para trás dele, Tatiana observou: - Podes ter a certeza de que aquela mulher vai dizer à minha família que

esti¬veste aqui. Não tenhas dúvidas. - Por isso é que vai dar-me o boné que deixei aqui ontem. Fui castigado esta

manhã durante a inspeção. Preciso dele. Deixou a porta aberta enquanto Alexander ia ao quarto buscar o boné. - Não vas para o hospital, por favor — pediu ele, saindo para o corredor. - Alexander, estou a dar em doida. Durante todo o dia, todos os dias. Pelo

menos no hospital verei gente a sofrer a sério, o que me vai animar. - A tua perna nunca mais ficará boa se passares o dia apoiada nela. Só faltam

duas semanas para tirares o gesso. Vai trabalhar nessa altura. - Se ficar aqui mais duas semanas... o hospital para onde irei será um

mani¬cômio!

Page 208: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

208

- Quem me dera que Kirov não ficasse na linha da frente! - suspirou Ale¬xander. - Podias voltar a trabalhar lá e eu iria esperar-te todos os dias. - Depois de uma pausa: — Como fazia dantes, lembras-te?

Lembrava-se? O coração bateu-lhe com força dentro do peito. Mas Sarkova, plantada no

corredor, observava-os através da porta aberta. - Chega! Estou farto - murmurou ele, fechando-a. Tatiana abriu a boca: - Oh, não! — exclamou. — Cada vez pior! Ele aproximou-se dela. Ela recuou. Alexander avançou outro passo na sua direção: - Como está o teu nariz? - Bem. Não está partido. - E como é que sabes? - Aproximou-se mais. Ela pôs-lhe as mãos à frente: - Shura, porfavor. Bateram à porta com força: - Tanechka, estás bem? - Bem, obrigada — gritou. A maçaneta rodou e Sarkova abriu a porta: - Vim perguntar-te se queres que te faça alguma coisa para comeres.. - Não, obrigada, Zhanna - respondeu, muito séria. Sarkova lançou um olhar de poucos amigos a Alexander, que se virou para

Tatiana e pôs os olhos em alvo, quase a fazendo rebentar de riso. - Íamos a sair — anunciou. - Sim? Onde vão? — Eu vou trabalhar... — Não vais nada — murmurou ele. — E o tenente Belov vai erguer barricadas. Alexander dirigiu-se a Zhanna: — Barricadas, camarada Sarkova. - Avançando para ela: - Sabe o que são?

Estruturas com quase três metros de altura e quatro de espessura, ao longo de vinte quilômetros.

Sarkova recuou para o corredor. — Cada barricada tem oito apoios de metralhadoras, dez postos antitanque,

treze postos de morteiros e quarenta e seis posições de metralhadoras. -Oh! — É assim que protegemos a cidade que amamos — rematou Alexander,

batendo com a porta. Atrás dele, Tatiana abanava a cabeça com um sorriso no rosto.

Page 209: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

209

— Agora é que vão ser elas! — Pegando na bolsa: — Vamos, construtor de bar¬ricadas.

Saíram, fechando a porta à chave e deixando Sarkova na cozinha comunitária resmungando para o chá.

Ao ajudá-la a descer as escadas, Alexander pegou-lhe na mão. Tentou retirá-la.

— Alexander... — Não. — Apertou-a contra si no patamar. Tatiana sentiu dentro de si o rumor da madeira crepitando na fogueira. — Olha, vou pedir à Vera para me pôr a trabalhar no refeitório. Queres

apa¬recer para almoçar? — Sorriu. — Eu sirvo-te. Ele abanou a cabeça: — Embora poucas coisas me deem mais prazer do que comer a tua comida... — sorriu — .. .vamos muito para sul. Não conseguirei chegar a tempo do

almoço. — Shura, larga-me. Estamos no patamar do meu prédio... Continuou a agarrar-lhe a mão. Pressentindo qualquer coisa, ela perguntou; — Que se passa? Alexander hesitou. Os olhos cor de chocolate transmitiram-lhe a sua tristeza. — Oh, Tania! Tenho de falar contigo. — Suspirando: — Tenho de falar contigo

sobre o Dimitri. — O que foi? — Agora não. Temos de falar com calma e a sós. Anda ter comigo hoje à noite

a Santo Isaac. O turbulento coração de Tatiana galopou-lhe dentro do peito. Santo Isaac! — Alexander, se mal consigo percorrer três quarteirões até ao hospital, como

queres que chegue a Santo Isaac? — Mas sabia que iria à catedral nem que tivesse de rastejar arrastando a perna atrás de si.

- Eu sei. Não quero que faças o caminho todo sem ajuda. As ruas são seguras, mas tu... - Afagou-lhe o rosto. - Não tens ninguém que possa levar-te lá? O Anton não. Uma amiga. Uma amiga em quem confies, que possa ajudar-te e que te deixe ali perto. Depois, poderás percorrer um ou dois quarteirões sozinha.

Ficou calada. - E como volto para casa? Alexander sorriu, cingindo-a mais a si: - Como sempre, eu trago-te a casa. 0a observou-lhe os botões do casaco. - Tania, precisamos desesperadamente de um momento a sós. E tu sabes que

sim. Sabia. - Mas não está certo. - É a única coisa certa.

Page 210: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

210

- Está bem. Vai. -Virás? - Vou tentar. Agora vai. - Levanta... Antes de ele acabar de falar, Tatiana ergueu o rosto para ele. Beijaram-se

lon¬gamente. - Fazes ideia do que sinto? - murmurou Alexander com as mãos no cabelodela. - Não - respondeu Tatiana, agarrada a ele e com as pernas entorpecidas.- Só

faço ideia do que eu sinto. Nessa noite, aconteceu um milagre. O telefone da prima Marina funcionou e

Tatiana pediu-lhe que a fosse visitar. Quando ela apareceu por volta das oito, parecia que nunca mais ia parar de abraçá-la.

- Marinka, és a prova viva de que existe um Deus no céu. Precisava tanto de ti! Que tens feito?

- Sabes muito bem que Deus não existe. Que tenho feito? - riu Marina. - Larga-me. Isso pergunto-te eu: que tens feito? Soube das tuas aventuras em

Luga. - Pestanejou: — Estou desolada por causa do nosso Pasha. - Animando-se um pouco: — Pareces um rapaz.

- Tenho imensa coisa para te contar. - Isso é óbvio! - Sentou-se à mesa onde ainda no dia anterior Tatiana estivera

atrás de Alexander. — Há alguma coisa para comer? Estou cheia de fome. Marina tinha as ancas largas, os seios pequenos, os olhos escuros, o cabelo

preto e curto e o rosto cheio de sinais. Com dezanove anos, frequentava o segundo ano da Universidade de Leninegrado. Era o que Tatiana tinha de mais parecidocom uma amiga chegada e confidente. Marina, Tatiana e Pasha haviam passado muitos dias de verão em correrias por Luga e Novgorod. A diferença de idades só começara a notar-se cerca de um ano antes, altura em que Tatiana deixara de fazer parte do grupo de Marina.

Tatiana apressou-se a ir buscar pão, queijo e chá, que ofereceu á prima dizendo:

- Come depressa, porque tenho de ir dar um passeio, está bem? Esse vestido fica-te bem. Como foi o teu verão?

- Não vamos nada passear. Se não podes andar! Fala comigo aqui. - No outro quarto, a mãe, o pai e Dasha ouviam rádio. Marina e Tatiana, cuja família não lhe falava desde o dia anterior, estavam sozinhas. Mastigando e examinando a prima da cabeça aos pés: - Começa pelo cabelo. Que lhe aconteceu? E porque andas com a saia tão comprida?

- Cortei o cabelo. A saia esconde o gesso. Levanta-te. Temos de ir - declarou, puxando o braço de Marina. Estava com pressa. Alexander dissera-lhe para apareceràs dez, já eram nove e ainda não saíra da Quinto Soviete. Estaria disposta a contar tudo a Marina para que ela a ajudasse? Tornou a puxar o braço gorducho da prima: — Vamos. Chega de comer.

Page 211: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

211

- Mas como vais andar? Mal consegues coxear! E porque tens de ir seja lá onde for? Quando tiras o gesso?

- Então vamos coxear. Parece-me que nunca mais tiro o gesso. Que tal estou? Marina parou de comer e observou-a: - Que é que disseste? - Disse para irmos. - Muito bem. — Limpou a boca e levantou-se: — Que se passa? - Nada. Porquê? - Tatiana Metanova! Sei que há qualquer coisa que não está nada bem. -O quê? -Tania, conheço-te há dezessete anos e nunca me perguntaste que tal

estavas. -Se o teu telefone não passasse a vida avariado, talvez te perguntasse.

Respondes-me ou podemos ir? - Tens o cabelo muito curto, a saia muito comprida e a blusa branca e

apertada...que se passa? Por fim, conseguiu que Marina saísse. Desceram a Grechesky devagar até á

Praça da Insurreição, onde apanharam um elétrico que as levou da Prospekt Nevsky ao Almirantado. Tatiana apoiava-se ao braço da prima. Tinha alguma dificuldade em andar e falar ao mesmo tempo, uma vez que precisava de quase todas as suas energias para caminhar.

- Diz-me uma coisa, Tania. Porque saltaste de um comboio em movimento?Foi assim que partiste a perna?

- Não, mas saltei de um comboio em movimento porque tinha de ser. - E a tonelada de tijolos que caiu em cima de ti também foi porque tinha de

ser? -casquinou Marina. — Foi assim que partiste a perna? - Foi- Queres estar calada? A prima riu-se. Depois, mais suavemente: - Estou desolada por causa do Pasha, Tanechka. Era um rapaz excelente. - É verdade. Não calculas como gostaria de o ter encontrado. - Eu sei. - Fez uma pausa. — Não tem sido um grande verão. Não te vejo desde

antes de a guerra começar. Tatiana assentiu. - Quase me viste. Estive quase a ir visitar-te no dia em que a guerra começou. - Porque não foste? Gostaria de poder contar tudo à prima e de lhe revelar as suas emoções,

consciência, medo e confusão. Em vez disso, falou-lhe de Dasha e do namorado, dela o de Dimitri, do que se passara em Luga e dos esforços de Alexander para a encon¬trar. O que não disse à prima foi a verdade.

Se ela própria tinha dificuldade em não escorregar à frente de Dasha no gelo da mentira onde patinava, como podia confiar em Marina, que não tinha nada a perder? Por isso, não lhe falou de nada, mas sentiu que a verdade abria um abismo

Page 212: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

212

entre ela e aqueles que amava. «Como é possível?», pensou, chegando aos Jardins do Almirantado e sentando-se num banco. «Como é possível que seja a mentira, a traição e o embuste a ligar-me a outros seres humanos e não a verdade, a con¬fiança e a sinceridade? Como é possível não confiar um assunto pessoal a alguém da minha família? Esta vida parece gerar o desprezo pelos outros.»

Os Jardins do Almirantado ficavam nas margens do Neva, entre a Ponte do Palácio e Santo Isaac. Náo estava longe de Alexander. Esforçando-se, talvez conseguisse

ouvi-lo respirar. Sorriu. Os grandes ulmeiros estendiam os seus ramos verdejantes sobre caminhos e bancos, como nos Jardins de Verão. A diferença era que nos Jardins de Verão Tatiana passeara e sentara-se com ele.

- Há alguma razão para estarmos aqui, Tania? — perguntou Marina. - Não. Viemos aqui para nos sentarmos a conversar. - Gostaria de ter um

relógio. Que horas seriam? - Costumava vir a este parque — comentou Marina. - Uma vez trouxe-te aqui,

lembras-te? Tatiana corou de repente: - Sim... lembro. -Tive na minha vida bons momentos, que não me parecem assim tão

distantes. Achas que voltaremos a vivê-los? - Claro que sim, Marinka. Estou a contar com isso, porque por enquanto ainda

não tive nenhum. — Sorriu à prima. Marina soltou uma gargalhada: - Nem com o Dima? - Claro que não! — replicou, não dizendo mais nada. Marina passou o braço em volta dela: - Não estejas triste. Hás de conseguir sair desta cidade. Abanou a cabeça: - Não. Já não há comboios, Marinka. Mga caiu. - Há três dias que não sabemos do paizinho — disse Marina em voz baixa - Está a combater em Izhorsk. Fica perto de Mga, não fica? - Fica - respondeu ela em voz desolada. Marina apertou mais a prima contra si: - Acho que ninguém vai sair desta cidade. A minha mãe está muito doente e o

meu pai... - Eu sei - interrompeu Tatiana, dando-lhe umas palmadinhas na perna. - Havemos de conseguir. Temos de ser fortes. - Sim, especialmente tu - retorquiu Marina, abanando a cabeça e

estremecendo como que a afastar os pensamentos tristes. - Queres dizer-me porque me trouxeste aqui?

- Não.

Page 213: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

213

- Tania... - Não. Não tenho nada para dizer. Marina fez-lhe cócegas no braço: - Fala-me do Dimitri. - Não há nada para falar. - Nem acredito que andes com um soldado! - casquinou, lançando-lhe depois

um olhar de interrogação: - Oh, não! Vais encontrar-te com ele aqui mais tarde? - Não! — gritou ela. — Eu e o Dima somos só amigos! - Conta-me dessas. Os soldados só sabem ser amigos de uma maneira, Tania. Foi a sua vez de lançar à prima um olhar de interrogação: - Que estás a dizer? - Não te lembras que andei com um soldado o ano passado? - Deu um

estalidode desprezo com a língua. — Quando vi a vida que ele levava, disse-lhe que não queria ter nada a ver com o assunto. Este verão andei com um estudante muito simpático. Alistou-se e foi para Fornosovo. — Calou-se. — Nunca mais soube dele..

- Não querias ter nada a ver com quê? Com a guerra? - Com a guerra não. Com as mulheres. - Mulheres? — indagou em voz fraca. - Mulheres... miúdas para passar um bocado, mulheres de má vida,

prostitutas... todos os tipos de mulheres. Enchem os bares, os clubes e os quartéis,oferecendo-se aos militares, que as aceitam. Todos. É isso que fazem. Como fumar um cigarro- Sempre que estão de folga, sempre que têm o fim de semana livre, sempre que se encontram de licença. - Abanou a cabeça. - Não sei como consegues agarrar o Dimitri. Mulheres fáceis, mulheres difíceis, raparigas mais novas como tu, para os soldados é tudo o mesmo... uma grande farra.

A voz saiu-lhe fraca e horrorizada: - Marinka, que estás a dizer? Em Leninegrado não. Isso é só no Ocidente. tNa

América. Marina rebentou a rir: - Adoro-te, Tania. - Passando-lhe um braço pelos ombros: - A sério. És tão... - O Alexander não é assim — murmurou Tatiana, abalada. - Quem? Ah, o namorado da Dasha! Não? Pergunta à tua irmã. - Rindo: - Como pensas que se conheceram? Tinham-se encontrado no Sadko. - Não estás a dizer... - Pergunta à Dasha, Tania. - Não sabes do que estás a falar! - Sentiu-se arrependida de lhe ter

telefonado. Como se calou, Marina continuou: - Olha, o que quero dizer é que tens de ter cuidado com o Dimitri.

Especialmente tu. E que eles querem algumas coisas. E quando não as conseguem, arranjam-nas na mesma. Percebes?

Page 214: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

214

Continuou calada. Como teriam começado a falar daquilo? - Ainda és amiga do Anton Iglenko? E um bom rapaz e gosta muito de ti. - Marina! — Abanou a cabeça. — O Anton é meu amigo. - Com as mãos

imóveis no colo, respirou pesadamente. - Não gosta de mim. A prima sorriu e despenteou-lhe o cabelo: - És adorável, Tania. E cega, como sempre. Lembras-te do Misha e da paixão

que tinha por ti? - Quem? — Esforçou-se por recordar. - O Misha de Luga? Marina assentiu: - Durante três verões seguidos. O Pasha não conseguia afastá-lo de ti. - Estás maluca. — Ela e o Misha costumavam andar pendurados nas árvores

de cabeça para baixo. Ensinara-o a fazer rodas. E ao Pasha também. - Alguma vez falaste com a Dasha sobre estas coisas, Tania? - Meu Deus, não! — exclamou, tentando levantar-se. Sentia-se como se

estivesse a ser repetidamente esfaqueada com uma faca embotada. Marina ajudou-a a ter-se de pé. - Pois sugiro-te que o faças. Ela é a tua irmã mais velha e devia ajudar-te. Mas tem cuidado com o Dimitri. Não queres ser mais uma marca no cinto de

um soldado, pois não? Tatiana tentou pensar em Alexander tal como o conhecia. Não sabia dessa sua

faceta. Veio-lhe à memória a cabeça dele beijando-lhe docemente a parte de cima dos seios quando jazia ferida na sua tenda. Abanou a cabeça. A descrição de Marina não correspondia ao seu Alexander.

Lembrou-se então do comentário de Dimitri sobre as suas atividades extra curricu-lares. Sentiu-se doente.

- Vamos para casa - sugeriu, desanimada. Caminharam devagar até á paragem do

elétrico da Nevsky. Tatiana disse a Marina que não precisava de acompanhá-la a casa. - Não há problema. Consigo ir sozinha da Praça da Insurreição atécasa. Olha. O teu elétrico deve estar a chegar. Não te preocupes comigo.

A prima respondeu-lhe que não ia deixá-la sozinha à noite no meio da cidade. Tatiana nem se lembrara de que podia haver perigo.

- O Alexander disse-nos que a violência diminuiu muito desde o início da guerra. Quase não existe atualmente.

- Então, se o Alexander vos disse... - começou Marina, espreitando o rostoda prima. — Estás bem?

- Estou ótima. Vai. - Foi então que viu no seu rosto uma relutância triste em que ainda não reparara, de tão absorta que estava nos seus próprios problemas. Examinou-a por um momento. Não via nada. Estendendo a mão, tocou-lhe na face. Marina pestanejou e Tatiana compreendeu. — Quem tens em casa? - perguntou

baixinho. — Quem te espera em casa?

Page 215: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

215

- Ninguém — replicou no mesmo tom de voz. A mãezinha está no hospital. O paizinho desapareceu. Ao fundo do corredor, os Lublin...

- Não fiques sozinha, Marinka — interrompeu Tatiana suavemente. - Anda viver connosco. Agora temos espaço. O Deda e a Babushka foram-se embora. Não vais ficar sozinha. Anda. Dormes comigo e com a Dasha.

- A sério? Assentiu: - A sério. - Falaste com os teus pais, Tania? - Não é preciso. Faz as malas e anda. A tua mãe é irmã do meu pai, que evi-

dentemente não vai dizer que não. Anda, sim? Marina abraçou a prima: - Obrigada — sussurrou. — Tenho-me sentido tão sozinha sem a mãezinha e o

paizinho! Tatiana deu-lhe umas palmadinhas nas costas: Eu sei... Olha! O teu autocarro! Dizendo-lhe adeus, Marina correu a apanhar o autocarro, deixando-a

sentadano banco á espera do elétrico. Sentia o estômago às voltas. O elétrico chegou. As portas abriram-se. O condutor olhou para ela. Tatiana

abanou a cabeça e o elétrico partiu. Como podia não ir ter com Alexander? Não era capaz de ficar longe dele. Levantando-se, coxeou ao longo dos Jardins do Almirantado rumo a Santo

Isaac. Dois soldados caminhavam na sua direção. Parando em frente dela, bateram

com as espingardas no chão e perguntaram-lhe onde ia. Ela disse-lhes. Um dos soldados respondeu-lhe que a Catedral de Santo Isaac estava fechada

àquela hora da noite. Ela replicou que sim mas que andava à procura de um tal tenente Belov. Conheciam-no. As suas expressões graves suavizaram-se. Um delescomentou:

- Eu bem te disse, Viktor. Devíamos ter-nos matriculado na escola de oficiais, mas não me deste ouvidos.

- Pensei que íamos ter mais trabalho e não mais... - Lançou um olhar a Tatiana e calou-se. — Quem devo anunciar?

- Sou a prima de Krasnodar. - Oh, prima! — exclamou Viktor. - Bem, venha connosco. Nós levamo-la até

ele. Não sei como vai subir até à arcada de observação com essa perna engessada. São cerca de duzentos degraus em espiral. - Não se preocupe - rematou ela. Santo Isaac nunca lhe parecera tão longe da Nevsky, embora ficasse a menos

de ura quilómetro. Quando chegaram à catedral, estava ofegante e com a perna a doer. Á frente do edifício, na margem do Neva, viu os contornos da estátua de

Page 216: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

216

Pedro, o Grande, montado no seu cavalo: o Cavaleiro de Bronze não passava de uma silhueta indefinida, coberta por uma estrutura de madeira cheia de lonas e areia. Fora man¬dado erigir por Catarina, a Grande, em memória de Pedro, o Grande, que edificara Leninegrado1. Naquela noite, não se via nem o cavalo preto nem o seu majestoso cavaleiro com a mão estendida; só sacos de areia, a proteger a estátua dos Alemães.

Viktor. - Acabaram-se as excursões noturnas. Aproveite bem este encontro com o tenente Belov, prima.

Penetraram na entrada cavernosa de granito. Tatiana ouviu o ligeiro bater do pêndulo que os comunistas tinham colocado dentro da catedral, com o objetivo de transformarem o local de oração num museu da ciência.

0 czar Pedro, o Grande (1672-1725), fundou a cidade de Sampetersbuigo, chamada Leninegrado durante o regime comunista. (N. da T)

O soldado que guardava a estreita abertura para a escada perguntou se tinham a certeza de que Tatiana podia passar.

- Acho que sim. Não tem bombas com ela. - Revistaram-na? - Eu revisto. — Passou-lhe as mãos pelas costelas, provocando-lhe um esgar.

Sentiu uma ansiedade crescente. Estar sozinha com três soldados num edifício escuro e Alexander lá em cima, sem poder ouvi-la, fê-la recear coisas que não podia imaginar. «E um medo irracional», disse com os seus botões, enquanto as mãos de Viktor lhe desciam até às ancas. Quando ele a apertou com mais força abandonou-se ao medo.

- Um de vocês pode ir dizer-lhe que estou aqui? — pediu, tentando afastar-se . Inspirou profundamente: — Sabem que mais? Vou andando. Digam-lhe que perguntei por ele.

Ouviu-se uma voz das escadas: - Larga-a. - Era Alexander, que apareceu à entrada com a espingarda. Tatiana

soltou um suspiro de alívio. Viktor apressou-se a soltá-la. - Não é nada, tenente. Estávamos só a ver se tinha armas. Diz que é a sua

prima de... - Soldado! - Aproximou-se dele com um ar ameaçador. - Nós temos normas,

soldado. Até no Exército Vermelho temos normas que nos proíbem de molestar rapariguinhas. A menos que queira um processo disciplinar, o melhor é eu não o

apanhar outra vez a fazer isso. — Pousando as mãos nas costas de Tatiana, ordenou:

- Vocês os dois, voltem para a rua, que é o vosso lugar. Cabo, fique aqui até ser substituído pelo Petrenko e pelo Kapov.

- Sim, meu tenente — entoaram os três em uníssono. O cabo foi ocupar oseu posto à entrada.

Alexander tentava não sorrir.

Page 217: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

217

- Vai ser uma certa escalada — continuou, empurrando-a com a mão para as escadas. - Anda. - Quando deram a volta a uma coluna e já ninguém podia vê-los,

fez um sorriso aberto: — Tania... estou tão contente por teres vindo! Suspirando, derretendo-se, aquecendo, Tatiana respondeu suavemente: - Eu também. - Assustaram-te? São inofensivos. — Acariciou-lhe o cabelo. - Se são assim tão inofensivos, porque desceste? - Ouvi a tua voz e a deles. Eles são inofensivos, mas tu parecias assustada. -

Olhava para ela tão... - O que foi? — perguntou ela timidamente. - Nada. - Agachando-se à sua frente: - Vá. Agarra-te ao meu pescoço. Ainda te

lembras de como se faz? - Vais subir duzentos degraus comigo às costas? - É o mínimo que posso fazer depois de teres vindo até aqui. Podes segurar-

me na arma? Apoiando-se ao corrimão, começou a subir com as mãos dela em volta do seu

pescoço- Esperando que ele não reparasse, Tatiana beijou-lhe silenciosamente a parte de trás da túnica militar.

Alexander levou-a até uma arcada circular envidraçada, com cinco colunas que tapavam parcialmente a vista do horizonte e do céu. Pousando-a, tirou-lhe a espingarda e encostou-a à parede da cúpula dourada.

- Temos de sair para a varanda, onde se vê melhor. Não te importas? - Sorriu. _ Estamos muito alto. Não tens medo das alturas, pois não?

- Não - respondeu, erguendo o olhar para ele. Saíram para um varandim estreito com um corrimão baixo de ferro que

rodeava a arcada da cúpula. «A vista daqui seria de cortar a respiração se Leninegiado não estivesse a preparar-se para a guerra», pensou Tatiana. As luzes estavam todas apagadas. Na escuridão da noite, nem conseguia distinguir os dirigíveis brancos que flutuavam silenciosamente no céu. O ar fresco cheirava a água limpa.

- Que achas? E bonito? — Aproximou-se. Tatiana, entre ele e o corrimão, não podia mexer-se nem que quisesse.

- Hum - balbuciou, perscrutando a noite, com medo de o olhar, não fosse ele ver-lhe o coração. Que fazes aqui sozinho noite sim noite não?

- Nada. Sento-me no chão. Fumo. Penso. Alexander passou-lhe os braços pela cintura e uniu as mãos na barriga dela,

apertando-a contra ele. Os seus lábios sussurraram-lhe pertinho do pescoço: - Oh, Tatia... Que instantâneo foi o desejo! Como uma bomba explodindo, fragmentando-

se e incendiando-lhe todos os nervos! Desejo não. Desejo ardente por Alexander.

Page 218: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

218

Tentou afastar-se, mas ele segurou-a. Só lhe apeteceu deixar-se cair ao chão. Porquê? Porque seria que só tinha vontade de se deitar de cada vez que ele lhe tocava?

- Espera, Shura! — murmurou sem reconhecer a própria voz que, rouca de paixão, dizia: Anda cá, anda, anda. Fechando os olhos, tartamudeou: - Não estou a ver nenhuns aviões.

- Eu também não. - Mas vêm? — Gemeu baixinho, - Vêm. Por fim, os cartazes têm razão. O inimigo está mesmo aqui à porta.

"Continuava a beijá-la debaixo das madeixas do cabelo. -Achas que temos alguma hipótese de fugir? - Nem pensar. Estás encurralada na cidade. — O hálito quente e os lábios

húmidos no pescoço faziam-na arrepiar-se. - Como será? Ele não respondeu. - Disseste que querias falar comigo... — começou ela em voz rouca. - Falar? — perguntou Alexander, cingindo-a mais a si. - Sim, falar... comigo... sobre... — Não se lembrava sobre quê. - O Dimitri? Ele afastou-lhe a blusa e beijou-a no ombro. - Gosto da tua blusa — sussurrou, com a boca na pele dela. - Para, Shura, por favor! - Não — volveu-lhe, esfregando-se nas suas costas. — Não consigo parar -

Respirava-lhe para o cabelo. — Tal como não consigo parar de respirar. As suas mãos subiram-lhe até abaixo dos seios, provocando-lhe uma dor

ligeira e estranha nas costelas. Não se conteve: gemeu. Apertando-a mais, ele virou-a, pousou-lhe a boca no pescoço e sussurrou:

- Não, não podes fazer barulho. Ouve-se tudo lá em baixo. - Então tira as mãos de cima de mim — retorquiu-lhe Tatiana. - Ou tapa-me

aboca. - Eu tapo-te a boca. — Beijou-a com paixão. Dali a três segundos, estava pronta a desfalecer. - Shura - disse, agarrando-se a ele. - Meu Deus, tens de parar! Como paramos? - O ventre vibrava-lhe com intensidade. Não paramos. - Paramos sim. - Não paramos nada - repetiu ele sem afastar os lábios. - Não, não é... Estou a falar disto. Como se alivia isto? Não posso passar os

dias assim, a pensar em ti. Como se consegue alívio? Ele afastou os lábios dos dela. - O que mais desejo na vida — murmurou com paixão — é mostrar-te como se

consegue alívio, Tania. - As mãos dele apertaram-na como um torno.

Page 219: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

219

Tatiana recordou as palavras de Marina. Para os soldados, somos apenas mais uma conquista. E apesar da certeza inabalável naquilo em que acreditava, apesar daquele momento divino com Alexander num lugar santo no céu de Leninegrado, a hesitação tomou conta dela. Não confiando nos seus instintos, amedrontada e cética, empurrou-o.

- O que foi? O quê? — perguntou ele. Tentou reunir coragem e procurou encontrar as palavras certas. Tinha medo

de perguntar, medo de ouvir a sua resposta, medo de que ele ficasse zangado ou aborrecido. Alexander não o merecia e, afinal, confiava e acreditava tanto nele que até se estimava menos ao pensar que podia dar algum crédito às palavras malescolhidas da cínica Marina. As suas frases, porém, pesavam-lhc no peito e andavam-lheàs voltas no estômago ansioso e perturbado.

Não queria sobrecarregá-lo com mais um fardo. O que tinha já era suficientemente pesado. Mas ao mesmo tempo não podia continuar a permitir que ele lhe tocasse. As suas mãos passeavam-lhe ternamente das ancas ao cabelo e do cabelo às ancas.

- O que foi» Tania? — indagou ele. — Diz-me o que foi. - Espera. Shura, podes...? — Coxeou um pouco para o lado. - Espera. Para,

estábem? Ele não a seguiu. A uns metros de distância, Tatiana sentou-se no chão e levou os joelhos ao peito. - Fala-me do Dimitri — pediu, sentindo-se um tanto vazia. - Não - disse ele, continuando de pé e cruzando os braços. - Primeiro diz-me o

que aconteceu. Abanou a cabeça. Não podia ter uma conversa daquelas com ele. - Nada, a sério. - Sorriu. Teria conseguido um bom sorriso? A julgar pela sua

expressão carrancuda, não. -Só... Nada. - Mais uma razão para me dizeres. Baixando o olhar para a saia comprida castanha e para os dedos dos pés

espreitando do gesso, inspirou profundamente: - Shura, isto é muito, muito difícil para mim. - Eu sei. - Agachou-se no sítio onde estava e pousou os braços nos joelhos. - Não sei como hei de dizer-te isto - começou ela, sem levantar a cabeça. -

Abre a boca e fala. Como sempre. Não arranjava coragem. - Alexander, temos muito mais coisas importantes a resolver e a discutir... -

Lançou-lhe um olhar rápido. Ele examinava-a com curiosidade e preocupação. -Nem acredito que estou a desperdiçar assim os minutos que temos juntos... - Calou-se. - Mas... — Ele não disse nada. — Eu sou...? - Que estupidez! Que sabia ela do assunto? Suspirou. — Olha, sabes quem me ajudou a vir para cá? A minha prima Marina.

Page 220: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

220

Alexander anuiu, sem sorrir. - Excelente. E o que tem ela a ver connosco? Alguma vez irei conhecê-la? -

Talvez não queiras depois de eu te contar o que ela me disse... - Fez uma pausa. - Sobre os soldados. - Levantou os olhos. A súbita expressão de compreensão de Alexander foi perpassada pelo aborrecimento e pela culpa.

Não era o que queria ver. - Contou-me algumas coisas interessantes. -Aposto que sim. - Não estava a faiar de ti... - Que alívio! - Tentava só pôr-me de sobreaviso por causa do Dimitri, mas disse-me que

para os militares as raparigas são só uma conquista e mais umas marcas no cinto. - Calou-se, achando que já tivera muita coragem em dizer o que dissera. Ele aproximou-se devagar de Tatiana. Não lhe tocou. Sentando-sejunto dela,

disse por fim: - Tens alguma pergunta a fazer-me? - Queres que te faça alguma pergunta? - Não. - Então não faço. - Não disse que não responderia. Só que não queria. Gostaria de conseguir levantar os olhos para Alexander, mas não queria voltar

a ver a culpa no seu rosto. «E se depois do nosso verão, depois de Kirov de Luga e de todas as coisas inimagináveis e de cortar a respiração que senti... e se depoisde tudo isto descobrir aqui e agora que a Marina tinha razão?», pensou. Não era capaz de perguntar. Mas sentir o que sentia com base numa mentira...Como poderia continuar calada?

- Qual é a tua pergunta? - repetiu Alexander, com tanta ternura e paciência, tão tudo o que sempre fora, que Tatiana, como sempre amparada pela sua força, abriu a boca e segredou:

- Shura, é o que eu sou para ti? Outra conquista? Só que mais difícil? Sou sói mais uma marca difícil no teu cinto? — Levantou para ele os olhos hesitantes

e vulneráveis. Alexander envolveu-a nos braços de uma vez, como um embrulhinho, beijou-

a na cabeça e murmurou: - Não sei o que hei de fazer contigo. — Afastou-se ligeiramente e segurou-lhe

o queixo com as mãos em concha. Os seus olhos faiscavam. — Tatiasha, queconversa é essa? - perguntou em tom de súplica. - Já te esqueceste do hospital?Conquista? Não sabes que se quisesse poderia ter feito de ti o que bem me apetecesse nessa noite, na seguinte ou em qualquer outra? — Fitando-a, continuou aindamais baixinho: - E tu terias acedido sem olhar para trás. Já te esqueceste de quefui eu que pus um ponto final na nossa loucura desesperada?

Ela fechou os olhos.

Page 221: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

221

Alexander prendeu-lhe o rosto firmemente nas mãos. - Vá, abre os olhos. Olha para mim, Tania. Ela abriu os olhos envergonhados e apaixonados e deu com Alexander a

observá-la com uma imensa ternura. -Tania, por favor, não és uma conquista nem uma marca no meu cinto. Sei

como é difícil o que estás a sentir. Gostaria que não te preocupasses minimamente com coisas que sabes não serem verdade. — Beijando-a com paixão: - Sentes oslábios? Quando te beijo - beijou-a ternamente -, não sentes os meus lábios? Que te dizem eles? Que te dizem as minhas mãos?

Fechou os olhos e gemeu. Porque se sentia tão abandonada perto dele, por- quê? Ele tinha razão: de resto, não só teria feito dela o que lhe apetecesse naquela altura como também agora, no chão frio e duro da cúpula dourada. Quando abriu os olhos, Alexander observava-a com o esboço de um sorriso.

- Se calhar, não devias perguntar-me se ésmais uma marca no meu cinto e sim porque não ésmais uma marca no meu cinto - disse suavemente.

Tatiana agarrou-se-lhe às mangas com as mãos a tremer. - Está bem. Porquê? — murmurou. Alexander riu-se. Ela pigarreou. - Sabes que mais me disse a Marina? - Oh, outra vez a Marina! - Suspirando e afastando-se: - Que mais te disse a

Marina? Tatiana voltou a apoiar-se nos joelhos: - Que os militares passam a vida a ser assediados por prostitutas e nunca

dizem que não. - Ora, ora. - Abanou a cabeça: - Estou a ver que a Marina é um problema.

Ainda bem que não saíste do autocarro para a visitar naquele domingo de junho. - Concordo - anuiu, com o rosto iluminando-se de ternura ao recordar o

encontro no autocarro. E o rosto dele devolveu-lhe a mesma ternura. O que estava a pensar? O que estava a fazer? Zangada consigo própria,

aba¬nou a cabeça. - Agora ouve. Não queria falar-te de nada disto, mas... - Inspirou profundamente: - Quando ingressei no Exército, percebi que uma relação

verdadeira com as mulheres ia ser difícil, tanto devido à natureza das nossas funções como - encolheu os ombros — às realidades da vida soviética. Não há quartos, apartamentos ou hotéis onde a mulher e o homem soviéticos possam encontrar-se. Queres a verdade? Cá vai. Mas não tenhas medo do que te vou dizer nem medo de mim por to dizer. É verdade que nas folgas de fim de semana íamos beber uns copos e nos encontrávamos com todo o tipo de mulheres dispostas a... brincarem com os militares sem outras consequências. — Calou-se.

- E tu... - prendeu a respiração — .. .brincavas?

Page 222: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

222

- Uma vez por outra — respondeu sem olhar para ela. — Mas não fiques aborrecida, por favor.

- Não fico — articulou. «Espantada, sim. Cheia de dúvidas, sim. Fascinada contigo, outra vez sim.»

- Tentávamos só divertir-nos um bocadinho. Eu mantinha sempre a distância. Detestava compromissos... - E a Dasha? - Que é que tem? - perguntou Alexander com um ar fatigado - A Dasha..— As palavras não lhe saíram. - Tatia, por favor. - Abanou a cabeça. - Não penses nisso. Perguntava á

Dashaque tipo de rapariga era. Não sou eu que vou dizer-te. - Mas a Dasha é um compromisso! - exclamou ela. - A Dasha representa

outras consequências. A Dasha tem coração. - Não. Tem-te a ti. Suspirou pesadamente. Custava-lhe muito conversar sobre Alexander e airmã.

Ouvi-lo falar de raparigas sem importância era muito mais fácil Sentada com os braços em volta dos joelhos, pensou que gostaria de lhe perguntar como era agora, mas não teve coragem. Preferia não lhe perguntar nada. Era melhor concentrar-se no que acontecera antes da noite no hospital, antes de a confusão do seu corpo a cegar para a verdade que sentia nele.

Alexander afagou-lhe as coxas. - Sinto que estás com medo. - Acrescentou baixinho: - Tania, peço-te... não

deixes que a estupidez se interponha entre nós. - Está bem - assentiu, arrependida. - Não deixes que essas tretas que não têm nada a ver connosco te afastem de

mim. Já temos tanto a separar-nos! — Depois de uma pausa: - Tudo! - Está bem, Alexander. - Esquece, Tania. De que tens medo? - De estar enganada a teu respeito - sussurrou ela. - Como seria possível estares enganada a meu respeito? Logo tu? - Frustrado,

cerrou os punhos. — Não vês que é exatamente porque fui o que fui que me aproximei de ti? E depois? Não viste a minha solidão?

- Mais ou menos... através da minha - replicou, crispando as mãos no peito e encostando-se ao corrimão. - Shura, estou rodeada de meias-verdades e insinuações. Tu e eu já não temos nenhum momento a sós, como tínhamos...

- Um momento de privacidade - rematou Alexander, pronunciando a palavra em inglês.

- De quê? - Não conhecia a palavra. Teria de ver quando chegasse a casa. - E agora? Além da Dasha, ainda...

- Todas essas coisas que te preocupam... desapareceram da minha vida.Sabes porquê? Porque quando te conheci soube que, se continuasse e se alguma vez me

Page 223: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

223

fizesses perguntas, não conseguiria olhar-te de frente e dizer-te a verdade. Teriade te mentir. — Fitava-a com intensidade. A verdade habitava os seus olhos.

Tatiana sorriu-lhe e soltou o ar, dissipando o aperto que sentia no estômago, Só queria que ele se aproximasse e a abraçasse.

- Desculpa, Alexander. Desculpa a minha dúvida. Sou muito nova. - És muito tudo. Meu Deus! - exclamou. - Isto é de doidos... nunca temos

tempo para explicar, para falar, um minuto para... «Nós tivemos um minuto», pensou Tatiana. «Tivemos os nossos minutos no

autocarro, em Kirov, em Luga e nos Jardins de Verão. Tivemos minutos de cortara respiração. Mas o que queremos», refletiu, engolindo as lágrimas, «é a eternidade».

- Desculpa, Shura. - Agarrou-lhe as mãos: - Não queria aborrecer-te. - Se conseguíssemos ter um momento de privacidade - continuou Alexander,

dizendo novamente a palavra em inglês nunca mais duvidarias de mim. - O que é privacidade? indagou. Ele sorriu tristemente: - É estar ao abrigo da vista ou da presença de outros seres humanos. Em dois

quartos com outras seis pessoas, é impossível qualquer intimidade - explicou em russo. - Dizemos então que queremos privacidade.

- Ah! - Então aquela era a palavra que procurava desde que o conhecera! Corando: - Não existe palavra para isso em russo.

-Eu sei. - E existe na América:? - Claro. Privacidade. Permaneceu calada. Alexander aproximou-se e cercou-a com as pernas. -Quando estaremos novamente sós, Tania? - perguntou, espreitando-lhe o

olhar. - Estamos sozinhos agora. - Quando poderei beijar-te outra vez? - Beija-me agora - sussurrou ela. Mas ele não o fez. Com uma expressão taciturna, disse: - Sabes que pode ser nunca mais? Os Alemães estão aí à porta. Sabes o que

significa? A vida, tal como a conheceste, acabou. - E este verão? - perguntou ela. — Nunca mais nada foi o mesmo desde o dia

22 de junho. - Pois não - concordou ele. - Mas até agora estávamos só a preparar-nos.

Neste momento é a guerra. Leninegrado será o campo de batalha da nossa liberdade.

E no fim, quantos continuaremos de pé? Quantos seremos livres? OH. meu Deus! - É por isso que apareces sempre que podes, mesmo que isso signifique andar

como o Dimitri atrás de ti? — indagou Tatiana.

Page 224: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

224

Assentindo e suspirando, Alexander retorquiu: - Tenho sempre medo de que seja a última vez que te vejo. Dobrada sobre os joelhos, engoliu em seco: . - Porque é que... andas sempre com ele? Não podes dizer-lhe para me

deixarem paz? A mim não me liga. Que hei de fazer? Alexander não respondeu e Tatiana tentou ansiosamente atrair-lhe o olhar. - Fala-me do Dimitri, Shura - pediu baixinho. - O que lhe deves? Alexander observou os cigarros. - Deves-lhe... eu? — indagou em voz fraca. - O Dimitri sabe quem eu sou, Tatiana. - Cala-te — pediu quase inaudivelmente. - Se te contar, não vais acreditar - começou ele. - Mas se p fizer, não

poderemos voltar atrás. - Já não podemos voltar atrás — afirmou ela, com uma oração nos lábios. - Não sei o que lhe hei de fazer - continuou ele. - Eu ajudo-te - volveu-lhe Tatiana, assustada. - Fala. Alexander sentou-se diagonalmente de frente para ela, encostando-se á

parede da varanda estreita e esticando as pernas na sua direção. Tatiana continuou sentada contra o corrimão. Sentia que ele não a queria muito perto. Descalçando o seu único sapato, estendeu até às suas botas um pé que era metade do tamanho dos dele.

Arrepiando-se como se afastasse um bicho, Alexander começou sem olhar para ela:

- Quando a minha mãe foi presa, a NKVD também me prendeu a mim. Nem sequer pude despedir-me dela. — Fitou o vazio: - Como podes calcular, não gosto de falar da minha mãe. Fui acusado de distribuir propaganda capitalista aoscatorze anos, quando ainda estava em Moscovo e ia às reuniões do Partido Comunista com o meu pai. Por isso, aos dezessete anos, fui preso em Leninegrado e levado para Kresty, a cadeia para presos de delito comum. Não tinham lugar para mim em Shpalerka, a Casa Grande, o centro de detenção para os presos políticos. Fui condenado logo ali em cerca de três horas - continuou com desprezo. - Nem sequer se deram ao trabalho de me interrogar. Penso que estavam muito ocupados com presos mais importantes. Apanhei dez anos em Vladivostok. Imaginas?

- Não - retorquiu Tatiana. - Sabes quantos éramos no comboio para Vladivostok? Mil. Um deles disse-

me: «Oh, ainda agora saí e já vou outra vez.» Contou-me que o campo para onde

íamos tinha oitenta mil pessoas. Oitenta mil, Tania! Um campo apenas. Respondi-lhe que não acreditava. Tinha acabado de fazer dezessete anos. - Olhando para ela: - Como tu agora. Que podia fazer? Não ia passar dez anos da minha juventude na cadeia, pois não?

- Não.

Page 225: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

225

- Sabes, sempre tinha acreditado que a minha vida seria boa. A minha mãe e o meu pai acreditavam em mim. Eu acreditava em mim...A cadeia nunca fizera parte dos meus planos. Não roubava, não andava a partir janelas, não aterrorizava velhinhas. Não teinha feito nada de mal. Decidi não ir. Ao atravessar o rio Volga perto de Kazan, acima de um precipício de trinta metros de altura...percebi que estava ali a minha última oportunidade de não ir para Vladivostok pelo que me parecia o resto da minha vida. Tinha muita esperança. Por isso, saltei para o rio. – Soltando uma gargalhada: - Tinham tanto a certeza de que eu morrera na queda que nem se quer pararam o comboio.

- Não sabiam quem tinham pela frente – comentou Tatiana, com vontade de o abraçar. Mas ele estava muito longe. – Foi quando saltaste que descobriste que sabias nadar? – Sorrio.

Alexander devolveu-lhe o sorriso. As solas das suas botas tocavam as plantas dos pés dela.

- Sabia nadar um bocadinho. - Tinhas alguma coisa contigo? - Nada. - Identificação? Dinheiro? - Nada. – Pareceu a Tatiana que Alexander queria contar-lhe mais qualquer

coisa, mas ele continuou: - Era o verão de 1936. Depois de fugir, fui para o sul em barcos de pesca do Volga, a pé ou em carroças puxadas por cavalos. Pescava, trabalhava nas quintas e avançava para o sul. De Kazan para Ulyanovsk, onde Lenine nasceu...uma cidade interessante, como um santuário. Depois para Saratov, descendo o Volga, pescando, trabalhando na colheita, progredindo. Fui dar a krasnodar, perto do mar negro. Tencionava atravessar a Geórgia e entrar na Turquia. Esperava alcançar a fronteira algures nas montanhas do Cáucaso.

- Se não tinhas dinheiro... - Nenhum. Mas fui ganhando pelo caminho, e esperava que os meus

conhecimentos de inglês me ajudassem quando chegasse à Turquia. Em Krasnodar, o destino interveio. Olhando-a de relance: - Como sempre. O inverno foi brutal e a família com quem eu estava, os Belov...

- Belov! – exclamou Tatiana. Alexander assentiu: - Uma família de agricultores. Pai, mãe, quatro filhos, uma filha. –

Pigarreando: - E eu. Apanhamos todos tifo. Os trezentos e sessenta habitantes da aldeia de Belyi Yar adoeceram todos com tifo. Oito décimos da população sucumbiu, incluindo os Belov, cuja a filha foi a primeira a morrer. Com medo de que a epidemia chegasse à cidade, as autoridades de Kranosdar e a Polícia incendiaram a aldeia. As minhas roupas foram todas queimadas e eu fiquei de quarentena até morrerou melhorar.

Melhorei. Um funcionário do Soviete local pediu-me a identificação para poder tratar da papelada. Sem hesitar um momento, disse que me chamava

Page 226: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

226

Alexander Belov. Como tinham queimado a aldeia toda...- Ergueu as sobrancelhas. – Só na União Soviética! Enfim, como tinham incendiado a aldeia, o funcionário não podia confirmar se eu era de facto Alexander Belov, o membro mais novo da família.

Tatiana fechou a boca. - Portanto, deram-me um bilhete de identidade e um passaporte doméstico

novinhos em folha. E passei a ser Alexander Nikolaevitch Belov, nascido em Krasnodar, órfão aos dezessete anos. – Desviou o olhar.

- Qual era o teu nome americano? perguntou Tatiana em voz fraca. - Anthony Alexander Barrington. - Anthony! – exclamou. Ele abanou a cabeça: - O Anthony era por causa do pai da minha mãe. Mas chamaram-me sempre

Alexander. –Tirou um cigarro: - Não te importas? Fez que não com a cabeça. - Bom – continuou ele -, regressei a Leninegrado, onde fiquei com uns

parentes dos Belov. Precisava de voltar a Leninegrado...- Hesitou. - ...já te digo o porquê. Fui para casa da minha *tia* Mira Belov e da família. Viviam do lado de Vyborg. Não viam os sobrinhos há séculos...perfeito. Eu era um estranho para eles. – sorrindo: Mas deixaram-me ficar. Acabei a escola. E foi lá que conheci o Dimitri.

- Oh, Alexander, nem acredito no que passaste quando eras tão novo! - Ainda não acabei. Eu costumava brincar com ele. O Dimitri era um miúdo

magricela, impopular e sem graça. Quando brincávamos às guerras no recreio, acabava sempre feito prisioneiro. Chamávamos-lhe Dimitri POW Chernenko. Dizíamos que a União Soviética devia ter assinado a Convenção de Genebra de 1929 só por causa dele, porque consegui ser ferido, preso ou morto de cada vez que brincávamos, arranjando-se para ser sempre apanhado sem ajuda de ninguém.

- Continua, por favor. - Descobri então que o pai dele era guarda prisional em Shpalerka. – Calou-se. Tatiana prendeu a respiração. - Os teus pais ainda estavam vivos? - Não sabia, e por isso escolhi tornar-se amigo do Dimitri, Esperava que talvez

ele me ajudasse a ver os meus pais. Sabia que se estivessem vivos deviam sofrer torturas por minha causa. Queria fazer-lhes saber que estava bem. – Depois de uma pausa: - Especialmente à minha mãe – esclareceu, dominando o tom de voz. – Tínhamos uma relação muito próxima.

Os olhos de Tatiana encheram-se de lágrimas. - E o teu pai? Encolhendo os ombros, respondeu: - Era o meu pai. Tivemos algumas discussões nos últimos anos. Que posso

dizer? Ele achava que sabia tudo e eu também. Era assim. Quase petrificada, não pestanejou ao fitar Alexander. - Devem ter-te amado tanto, Shura! – Engoliu em seco.

Page 227: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

227

- Amaram – respondeu, dando uma passa longa e entristecida no cigarro. – Amaram-me muito.

O coração despedaçava-se-lhe por Alexander. - A pouco e pouco fui conquistando a confiança do Dimitri – continuou ele. –

Fomos sendo cada vez mais amigos. O Dima apreciava muito o facto de eu o ter escolhido para ser o meu melhor amigo.

- Oh, Shura! – compreendia. Gatinhando até ele, abraçou-o. – Tinhas de confiar no Dimitri.

Ele apertou-a a si com uma mão, continuando com o cigarro na outra. - Pois. Tive de lhe dizer quem era. Não tinha outro remédio senão confiar

nele. Ou deixava os meus pais morrerem ou confiava nele. - Confiaste no Dimitri – repetiu Tatiana incredulamente, largando-o e

sentando-se ao seu lado. - Confiei. Baixou o olhar para as mãos grandes, como se tentasse encontrar

nelas a resposta para sua vida. – Mas não queria. O meu pai, como bom comunista, ensinou-me a nunca confiar em ninguém e, embora não fosse fácil, aprendi bem a lição. Mas é difícil viver assim, e eu queria poder ao menos confiar numa pessoa. Só uma. E precisava mesmo da ajuda do Dimitri. Além disso, éramos amigos. Prometi a mim próprio que seria amigo dele para toda a vida se conseguisse ver os meus pais. E foi exatamente o que lhe disse: <<Dima, serei teu amigo para toda a vida. Ajudar-te-ei no que puder.>> - Acendeu outro cigarro. Tatiana esperou, sentindo um peso cada vez maior no peito. – O pai do Dimitri descobriu que já era tarde para eu ver minha mãe. – Com a voz embargada: - Contou-me o que acontecera. Mas o meu pai continuava vivo, embora não por muito tempo, ao que parecia. Já estava preso há quase um ano. O Chernenko meteu-me a mim e ao Dimitri dentro de Shpalerka, e falamos cinco minutos com o espião estrangeiro Harold Barrington. Eu, o meu pai, o Dimitri, o pai dele e outro guarda. Sem privacidade.

Pegou na mão de Alexander: - Como foi? Ele olhou em frente. - Provavelmente como imaginas que deve ter sido - replicou, dominando a

voz.-E de uma brevidade muito amarga. Na pequena cela cinzenta de cimento, Alexander observou o pai e Harold

Barrington olhou para o filho sem se mexer da cama. Dimitri ocupava o centro da cela e Alexander encontrava-se ao seu lado. O guarda e o pai de Dimitri estavam atrás deles. Uma lâmpada nua pendia do

teto. Falando em russo, Dimitri disse a Harold: - Só podemos ficar aqui um minuto, camarada. Compreende? Só um minuto. - Está bem - retorquiu Harold, engolindo as lágrimas. — Obrigado por virem

visitar-me. É bom ver aqui dois rapazes soviéticos. Como te chamas, meu filho?- perguntou a Dimitri.

Page 228: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

228

- Dimitri Chemenko. - E tu, meu filho? — Com o corpo a tremer, fitou Alexander. - Alexander Belov. Harold assentiu. - Pronto, já viram o prisioneiro. Agora vamos — disse o guarda. - Espere!— objetou Dimitri. — Queríamos que o camarada soubesse que não

será esquecido, apesar do seu crime contra a nossa sociedade proletária. De olhos postos no pai, Alexander não dizia nada. - É por causa do seu crime contra a nossa sociedade que não será esquecido -

acrescentou o guarda. Mordendo os lábios, Harold observou Dimitri e Alexander, que estava de

costas voltadas para o guarda mas de frente para o pai. - Popov, posso dar-lhes um aperto de mão? -perguntou ao guarda. Este encolheu os ombros e avançou um passo: - Mas eu fico a ver. Despacha-te. - Nunca ouvi ninguém falar inglês, camarada Barrington - disse Alexander. - Pode dizer-nos alguma coisa em inglês? Harold aproximou-se de Dimitri e apertou-lhe a mão. - Thank you — disse em inglês. Depois, dirigindo-se ao filho, pegou-lhe na mão e apertou-a entre as suas.

Alexander abanou ligeiramente a cabeça, tentando fazer sinal ao pai para que ficasse calmo.

Em inglês, Harold sussurrou: - Quem me dera ter morrido em vez de til ÓAbsalão, meu filho querido!3 - Cale-se — articulou Alexander. 3 Antigo Testamento, Livro de Samuel. (N. da T.) Largando-lhe a mão, Harold desviou-se um pouco. Debateu-se para não

chorar, mas não conseguiu. - Então vou falar em inglês — disse em russo. — Uns versos corruptos de

Kipling. - Chega -protestou o guarda. - Não tenho tempo... - «Se suportares ouvir verdades que disseste» - começou em voz alta -

«Torcidas por velhacos para convencer ingénuos...» -As lágrimas deslizaram-lhe pelo rosto. - «Se vires desfeito aquilo para que tens vivido...» — A sua voz era agora apenas um mur-múrio. -«E o construíres de novo com ferramentas gastas. .» Recuando, benzeu-o.

- Vamos!— berrou o guarda. Alexander articulou para o pai em inglês: - Amo-o, pai. Depois saíram. Tatiana chorava. Alexander rodeou-a com o braço.

Page 229: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

229

- Oh, Tania... — disse, limpando-lhe o rosto. - O esforço que fiz para não perder a compostura foi tão grande que rachei este dente aqui de lado. Vês? - Mostrou-lhe um pré-molar de cima. - Agora já sabes. Assim, consegui ver o meu pai uma vez antes de ele morrer, o que nunca teria sido possível sem a ajuda do Dimitri. - Com um grande suspiro, retirou o braço.

- Fizeste uma coisa incrível pelo teu pai - observou ela, sentada ao seu lado. Os lábios tremeram-lhe: — Reconfortaste-o antes de morrer. - Sentindo-se

muito acanhada mas invadida pela emoção, com o coração a transbordar de amor por ele, pegou-lhe na mão, inclinou a cabeça e beijou-a. Corando e pigarreando, sol¬tou-a e levantou os olhos.

-Tania, mas quem és tu? - perguntou ele, comovido. - Sou a Tatiana - respondeu ela, dando-lhe a mão. Ficaram sentados em

silêncio. - Mas há mais. Ela assentiu: - O resto já sei. - Tirou-lhe um cigarro do maço. Bastara-lhe uma ponta da

verdade para perceber tudo. Sabia o resto até à altura em que Alexander lhe dissera que dera a Dimitri aquilo que ele nunca tivera antes. Não se tratava ali de amizade, camaradagem ou fraternidade. As mãos tremiam-lhe ao pôr o cigarro na boca dele e pegar no isqueiro. Acendeu-o, chegou-lho à cara e, quando de inspirou, beijou-o na face e apagou a chama.

- Obrigado — agradeceu ele, fumando metade do cigarro antes de continuar. Beijou-a: - Não gostas do hálito dos fumadores?

4 Poema «Se», de Rudyard Kipling. (N. da T.) - Gosto do teu hálito de qualquer maneira, Shura — volveu-lhe, corando de

novo. Depois, continuou: — Deixa-me adivinhar o resto. Tu e o Dimitri matricularam-se na universidade. Tu e o Dimitri foram para a tropa. Tu e o Dimitri ingres¬saram juntos na escola de oficiais. E o Dimitri chumbou. - Baixando a cabeça-Ao princípio, não se importou muito. Continuaram amigos. Ele sabia que farias qualquer coisa por ele. Depois, começou a pedir — rematou, erguendo o olhar.

- Estou a ver que sabes tudo. - O que te pede ele, Shura? - Tudo e mais alguma coisa. Não olharam um para o outro. - Pede-te que o transfiras, que abras exceções para ele, que lhe concedas

pri¬vilégios e que lhe dês um tratamento especial. - Isso. - Mais alguma coisa? Ficou calado por uns minutos. Passou tanto tempo que Tatiana pensou que

ele se esquecera da sua pergunta. Esperou com paciência. Por fim, disse com a voz perpassada de qualquer coisa:

Page 230: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

230

- Muito de vez em quando, miúdas. Seria de pensar que há que chegue para todos, mas ocasionalmente acontecia eu andar com uma que o Dimitri queria. Ele pedia-me e eu desaparecia. Ia procurar outra e a vida decorria normalmente.

Tatiana fitava o vazio com os olhos de um verde-marinho muito claro. - Diz-me uma coisa. O Dimitri só te pedia raparigas de quem tu gostavas, não

era? -Como? - Não queria qualquer das tuas namoradas. Pedia-te as raparigas de quem via

que gostavas. Era então que pedia. Acertei? Alexander ficou pensativo: - Acho que sim. - E quando te disse que me queria - prosseguiu ela devagar -, tu recuaste. - Não. Mostrei-lhe um ar indiferente, esperando que ele te deixasse se

pensasse que não eras importante para mim. Infelizmente, o tiro saiu-me pela culatra.

Tatiana assentiu, abanou a cabeça e desatou a chorar. - Pois, não estás a conseguir lá muito bem, Shura. Ele não me deixa em paz. Alexander puxou-a para si: - Eu disse-te que isto é uma confusão terrível. Neste momento, até posso ir

para o Japão, porque agora o Dimitri apaixonou-se mesmo e quer-te para ele. - Calou-se.

Ela estudou-o durante um momento e apertou-se contra ele. - Shura, vou dizer-te uma coisa. Estás a ouvir? - Estou. - Não fiques assim tão em suspenso. — Conseguindo sorrir: — Que pensas

que vou dizer? - Não sei. Neste momento não estou muito em condições de adivinhar seja o

quefor. Tens um filho pequeno que vive com uma tia afastada? Tatiana riu-se. - Não. - Fez uma pausa. - Mas estás pronto? -Estou. - O Dimitri não se apaixonou por mim. Alexander afastou-se ligeiramente. Ela abanou a cabeça. - Não. Nem por sombras. Acredita no que te digo. - Como sabes? - Sei. - Então o que quer de ti? Que não lhe passe pela cabeça... - De mim, nada. O que o Dimitri quer... ouve com atenção... aquilo que

ambiciona, que deseja, que cobiça, é o poder. E a única coisa importante para ele. O amor da sua vida. Poder. - Poder sobre ti?

Page 231: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

231

- Não, Alexander! Sobre ti. Eu sou só o meio que permite atingir o fim. Munições.

Fitou-a com ar cético. Ela continuou: - O Dimitri não tem nenhumas e tu tens todas. Tudo o que consegue é

atra¬vés de ti. É a sua vida. - Abanando a cabeça: - Que triste para ele! -Triste para ele!? — exclamou Alexander. - De que lado estás? Calou-se por um momento. - Olha para ti, Shura. E olha para ele. O Dimitri precisa de ti, alimenta-se,

protege-se e cresce à tua custa. Se fores mais forte, também se torna mais forte. Sabe disso e depende inteiramente de ti para lhe dares muitas coisas que lhe pro¬porcionas com prazer. E no entanto... quanto mais tens, mais ele te odeia. A auto-conservação pode ser o que o move, mas mesmo assim sente-se diminuído e humilhado de cada vez que és promovido, que sobes um degrau na hierarquia, que recebes uma condecoração, que arranjas uma namorada nova ou que ris de alegria no corredor cheio de fumo. E é por isso que quanto mais poderoso te tor¬nas, mais ele quer de ti.

- Provavelmente vai acabar por querer alguma coisa que eu não poderei dar-lhe - disse Alexander, olhando de relance para Tatiana. - Que farei então?

-Cobiçar o melhor que tu tens acabará por precipitá-lo no Inferno. - Sim, e a mim na morte. - Abanando a cabeça: - Ele não diz, mas em todas as

suas súplicas e pedidos está a ameaça velada de que basta uma palavra, umaacusação vaga sobre o meu passado americano ao general da NKVD do quartel, para eu desaparecer instantaneamente na pança da justiça soviética.

Tatiana assentiu tristemente: - Eu sei. Se tivesse mais, talvez não quisesse tanto. - Estás enganada, Tania. Não tenho nada bons pressentimentos quanto ao

Dimitri. Acho que cada vez vai querer de mim...até me tirar tudo. - Não, quem está enganado és tu, Shura. O Dimitri nunca te tirará tudo. Nunca

terá assim tanto poder. - <<Talvez queira, mas não te conhece>>, pensou, erguendo para ele um olhar de adoração. – Além disso, todos sabemos o fim do parasita quando acontece alguma coisa ao hospedeiro – sussurrou.

Alexander baixou o olhar para ela. - É, procura outro hospedeiro – replicou por fim – O que achas que o Dimitri

quer mais de mim? - O que tu queres mais. - Mas, Tania, aquilo que eu quero mais és tu – retorquiu ele intensamente. Ela fitou-o: - Pois sou, Shura. E ele sabe-o. Como eu disse há bocado, o Dimitri não está

nada apaixonado por mim. O que quer é ferir-te a ti. Alexander ficou calado por uma eternidade, sob o céu de agosto. Tatiana murmurou por fim:

Page 232: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

232

- Onde está o teu rosto corajoso e indiferente? Mostra-lho e ele recuará e pedir-te-á aquilo que querias mais antes de mim.

Não se mexeu nem falou. - Antes de mim. – Porque estava tão calado? – Shura? – Pareceu-lhe senti-lo

arrepiar-se. - Chega. Não posso falar mais disto contigo. Não conseguiu ficar com as mãos quietas: - Tudo isto...tudo isto entre nós e a minha Dasha, agora e para sempre...e

continuas a procurar-me sempre que podes. - Já te disse que não consigo ficar longe de ti. Estremecendo de tristeza, replicou: - Meu Deus, temos de desistir desta loucura, Shura. Nem acredito no pouco

que estamos destinados um ao outro. - Não me digas! – Alexander sorriu: - Aposto a minha espingarda em como foi

por puro acaso que acabaste há dois meses sentada naquele banco. Tinha razão. Tatiana lembrava-se sobretudo do autocarro que decidira não

apanhar para comprar um gelado. - E como sabes? - Porque foi por puro acaso que passei por ele. – Fazendo que sim com a

cabeça: - Pelo contrário, o destino mete-se entre nós...e quando nos esforçamos cerramos os dentes e nos afastamos um do outro, debatendo-nos para nos recompormos, o destino volta a interferir e caem do céu tijolos que eu tiro de cima do teu corpo vivo e torturado. Também foi porque não estamos destinados um ao outro?

Ela engoliu um soluça: - Tens razão – anuiu suavemente. – Não podemos esquecer-nos de que te

devo a vida. – Fitando-o: - Não podemos esquecer-nos de que te pertenço. - Assim já gosto – volveu ele, abraçando-a com mais força. - Recua, Shura – sussurrou ela. – Recua e leva as tuas armas contigo. Poupa-

me a ele. – Depois de uma pausa: - Se acreditar que não estás interessado em mim, perderá o interesse. Vais ver. Ir-se-á embora para frente. Ainda temos de enfrentar a guerra antes de chegarmos à outra margem. Fazes isso?

- Farei o possível. - Vais deixar de aparecer? – perguntou em voz trêmula. - Não. Não consigo recuar assim tanto. Mas fica longe de mim. - Está bem. – O coração deu-lhe um salto. Agarrou-se a ele. - E perdoa a minha frieza desde já. Posso confiar em ti? Assentindo, Tatiana esfregou a cara no seu braço, apertando a cabeça contra

ele. - Confia em mim – murmurou. – Confia em mim. Alexander Barrington, nunca

te trairei. - Sim, mas alguma vez me rejeitarás?- Perguntou ele com ternura.

Page 233: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

233

- Só na frente da minha Dasha – replicou. – E do teu Dimitri. Levantando-lhe o rosto, Alexander indagou com um sorriso irônico: - Não te parece agora que foi bom Deus ter-nos feito parar no hospital? Ela devolve-lhe um ligeiro sorriso. - Não. – Fitaram-se um ao outro. Sentada aconchegada nos seus braços,

encostou a palma da mão à dele. – Olha – disse baixinho -, as pontas dos meus dedos mal chegam ao teu segundo nó.

- Estou a olhar – sussurrou ele, entrelaçando os dedos nos dela e apertando-lhe tanto a mão que ela gemeu, corando a seguir.

Puxando-lhe o rosto para o seu, beijou-a junto do nariz. - Alguma vez te disse que adoro as tuas sardas? São muito atraentes. Ela ronronou. Os seus dedos permaneceram entrelaçados enquanto se

beijavam. - Tatiasha...tens uns lábios espantosos...- fazendo uma pausa e afastando-se: -

Tu és... – Ela abriu os olhos com relutância. - ...esqueces-te de ti. É uma das tuas características mais atraentes e irritantes...

- Não percebo o que queres dizer... – Estava incapaz de pensar. – Como é possível que não haja neste mundo um único sítio para onde possamos ir, Shura?

- A voz embargou-se-lhe. – Que vida é está? - A vida comunista – replicou Alexandre. Abraçaram-se mais. - És muito doido! – exclamou ela com meiguice – Para que discutiste comigo

em Kirov se sabias que tínhamos tanto contra nós? - Enfurecia-me contra o destino. É a única coisa que posso fazer. Recuso-me a

ser derrotado. Teve vontade de lhe dizer amo-te, Alexandre, mas não conseguiu. Amo-te.

Inclinou a cabeça. - Tenho um coração muito verdinho...- Empurrando-a um bocadinho para

trás, beijo-a entre os seios. Quem me dera não ter de fazer de conta que não o vejo! De repente, afastou-se e pôs-se em pé de um salto. Tatiana também ouviu um

barulho atrás deles, na arcada. O sargento Petrenko espreitou para a varanda e anunciou que eram horas da mudança de turno.

Alexander desceu com ela às costas. Depois, rodeando-a com os braços, seguiram a coxear pelas ruas da cidade até à Quinto Soviete. Passava das duas da manhã. O dia seguinte começaria para os dois às seis horas, mas continuavam agarrar-se um ao outro, aproveitando o resto da noite. Alexandre desceu a Nevsky Prospekt com Tatiana nos braços. Ela segurava-lhe na espingarda. Ele levava-a às costas.

Palmilhando sozinhos as ruas escuras de Leninegrado.

Page 234: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

234

7

Na tarde seguinte, depois do trabalho, Tatiana encontrou a mãe lamentando-se no quarto e Dasha sentado no corredor, chorando para uma chávena de chá. Os Metanov tinham acabado de receber um telegrama do extinto comando de Novgorod, informando que o comboio onde seguiam Pavel Metanov e centenas de outros jovens voluntários fora atacados pelos alemães a 13 de julho de 1941. Não houvera sobreviventes.

<<Uma semana antes de eu ter ido à procura dele>>, pensou Tatiana, percorrendo os quartos de um lado para o outro. <<Que fiz no dia em que o comboio do meu irmão foi pelos ares? Trabalhei, andei de elétrico? Pensei nele uma vez que fosse? Tenho pensado nele desde então. Tenho sentido sua falta. Querido Pasha, perdemos-te e nem sabíamos. A perda mais triste de todas é quando continuamos durante umas semanas, uns dias, uma noite, um minuto a pensar que está tudo bem, e afinal a estrutura da vida já se desmoronou. Devíamos estar a chorar-te, e em vez disso fazíamos planos, íamos trabalhar, sonhávamos e amávamos sem saber que já não estavas conosco.

Como é possível não termos sabido? Houve algum sinal? A tua relutância em partir? A mala feita? O fato de não

termos notícias tuas? Queremos alguma coisa que nos avise, para que da próxima vez possamos

dizer: Espera, está aqui o sinal. Para que da próxima vez saibamos. E choremos desde o início.

Poderíamos ter-te prendido mais tempo? Poderíamos ter-nos agarrado a ti, abraçado, brincado contigo mais uma vez no parque para travar o destino por mais uns dias, mais uns domingos, mais umas tardes? Valeria a pena ter-te mais um mês antes de te perdermos? Sabendo o teu futuro inevitável, valeria a pena ver o teu rosto mais um dia, uma hora, um minuto, antes de desapareceres para sempre? Sim.

Sim, teria valido a pena. Por ti. E por nós.» O pai estava embriagado e a mãe limpava o sofá, chorando para o balde de

água. Tatiana ofereceu-se para o fazer, mas ela empurrou-a. Na cozinha, Dasha chorava enquanto fazia o jantar. Sentiu-se invadida por uma sensação intensa de mortalidade, uma enorme ansiedade pelos dias que tinha à frente. Qualquer coisa podia acontecer num futuro forjado por um presente incompreensível, no qual o seu irmão gêmeo já não estava vivo.

Preparando o jantar, disse a Dasha:

Page 235: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

235

- Há um mês, perguntaste-me se eu achava que o Pasha ainda estava vivo, e eu respondi-te...

- Como se eu te ligasse alguma coisa, Tania - atirou-lhe a irmã. - Então porque perguntaste? — indagou, surpreendida. - Achei que talvez me desses alguma resposta reconfortante. Olha, não quero

falar disso. Pode ser que não estejas chocada, mas nós estamos. Quando chegou para jantar, Alexander ergueu as sobrancelhas numa

expres¬são de interrogação, e Tatiana contou-lhe do telegrama. Ninguém comeu a couve com o fiambre enlatado que Dasha preparara a náo

ser Alexander e Tatiana que, apesar de uma leve esperança, já viviam com a perda de Pasha desde Luga.

O pai permaneceu no sofá com a mãe sentada ao seu lado, escutando o tic- -tac, tic-tac do metrónomo do rádio.

Dasha foi tratar do samovar, deixando Alexander e Tatiana a sós. Sem dizer nada, de inclinou ligeiramente a cabeça e observou-a. Olharam-se por um momento.

- Coragem, Alexander — murmurou ela. - Coragem, Tatiana. Saiu e foi para o telhado procurar bombas na noite fria de Leninegrado. O verão chegara ao fim. O inverno estava à porta.

Page 236: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

236

SEGUNDA PARTE

O ABRAÇO FRIO DO INVERNO

Page 237: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

237

ACOSSADOS E SITIADOS

1

Qual seria o preço da mentira? A cada passo, a cada pulsação, a cada relatório do Gabinete de Informação Soviético, a cada lista de baixas e a cada caderneta mensal de racionamento?

Tatiana mentia desde que acordava até que adormecia num sono confuso. Gostaria que Alexander deixasse de aparecer. Mentira. Gostaria que acabasse com Dasha. Ai dela! Mais uma mentira. Tinham-se acabado as idas a Santo Isaac. Isso era bom. Mentira. Haviam terminado as viagens de elétrico, os canais, os Jardins deVerão, Luga,

os lábios, os olhos e a respiração palpitante. Ótimo. Ótimo. Ótimo. Mais mentiras. Ele mostrava-se frio. Tinha a capacidade insondável de se comportar como se

náo existisse nada atrás do seu rosto sorridente, das mãos firmes ou do cigarro quase todo fumado. O seu rosto mostrava-se impassível a Tatiana. Isso era bom. Mentira.

O recolher obrigatório foi decretado em Leninegrado no início de setembro. As rações voltaram a ser reduzidas. Alexander deixou de ir lá a casa todos os dias. Excelente. Mais uma mentira.

Quando aparecia, mostrava-se extremamente meigo com Dasha à frente de Tatiana e de Dimitri. Isso era bom. Mentira.

A rapariga enchia-se de coragem, virava-se, sorria a Dimitri e cerrava o coração num punho apertado. Também conseguia fazê-lo. Mentira.

Servir chá. Um gesto tão simples, mas tecido de enganos. Servir chá a alguém antes dele. As mãos tremiam-lhe com o esforço.

Gostaria de quebrar o feitiço que era Leninegrado no princípio de setembro, de quebrar o círculo de tristeza e amor que a rodeava.

Amava Alexander. Ah, finalmente uma verdade. Depois de saberem o que acontecera a Pasha, o pai trabalhava apenas espo

radicam ente e andava cada vez mais embriagado. O fato de estar em casa estor¬vava Tatiana, para quem era mais difícil cozinhar, limpar, andar pelos quartos ou ler. Mais mentiras. Não era isso que tornava as coisas mais difíceis. Era o que as tornava desagradáveis. Os únicos momentos de paz que tinha era quando ia sen¬tar-se no telhado, mas mesmo assim relativos. Não havia paz dentro dela.

Page 238: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

238

Enquanto lá estava, fechava os olhos e imaginava-se a caminhar sem gesso, sem coxear, com Alexander. Desciam a Nevsky até à Praça do Palácio, percorriam o cais, rodeavam o Campo de Marte. Atravessavam a Ponte Fontanka, vagueavam pelos Jardins de Verão, voltavam ao cais, seguiam para Smolny, palmilhavam o Parque Tauride até à Ulitsa Saltykov-Schedrin, passavam o seu banco rumo à Suvorovsky e regressavam a casa. E ao caminhar com ele, parecia-lhe que traçava o resto da sua vida.

Vagueava com ele mentalmente pelas ruas do seu verão enquanto, sentada no telhado, ouvia as explosões e as rajadas das metralhadoras. Consolava-a pouco saber que os tiros não estavam tão perto como em Luga. Alexander também não estava tão perto como em Luga.

As suas visitas minguaram tanto como as rações. Estava a racionar-se como o Comité de Leninegrado racionava a comida. Sentia a sua falta. Desejava estar novamente a sós com ele nem que fosse por um segundo, só para ter a certeza de que o verão de 1941 não fora uma ilusão, de que de facto caminhara ao longo de um canal segurando a sua espingarda enquanto ele a observava, rindo.

Mas já não havia grande vontade de rir. - Os Alemães ainda não chegaram aqui, pois não, Alexander? - perguntou

Dasha enquanto bebiam chá... maldito chá. — Quando vierem, vamos fazer recuar o Von Leeb?

- Vamos - respondeu Alexander. Mas Tatiana sabia. Mais uma mentira. Com uma expressão taciturna, observava Dasha encostando-se a ele. Então,

desviava o olhar e dizia a Dimitri: - Queres ouvir uma anedota? - O quê, Tania? Não, agora não. Desculpa, estou preocupado. - Está bem - retorquia, observando-o a sorrir para Dasha. Mentiras, mentiras e

mais mentiras. Mas tudo o que Alexander estava a fazer não chegava, pois Dimitri não a

deixava em paz. Entretanto, Marina nunca mais lhe dissera se ia ou não viver com eles. No

hospital, Vera e as outras enfermeiras andavam ansiosas com a guerra. Tatiana tambémsentia que a guerra já não era qualquer coisa no rio Luga, qualquer coisa que engoliraPasha, travada pelos Ucranianos nas suas aldeias distantes envoltas em fumo ou pelos Ingleses na longínqua cidade de Londres. Estava ali à porta.

«Bem, é bom que chegue alguma coisa, porque não me imagino a continuar assim», pensava.

A cidade parecia ter a respiração em suspenso. E ela também. Durante quatro noites seguidas, fritou couve para o jantar, cada dia com

menos óleo. - O que andas a cozinhar para nós, Tania? - perguntou a mãe. - Chamas a isto cozinhar? - comentou o pai. - Nem sequer consigo molhar o pão no óleo. Onde está o óleo?

Page 239: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

239

- Não arranjei nenhum - explicou. As notícias da rádio não podiam ser mais deprimentes. Tatiana achava que os

locutores deviam esperar que os resultados soviéticos na frente fossem particularmente maus para começarem a emissão. Depois da queda de Mga no fim de agosto, soubera que Dubrovka estava a ser atacada. A mãe da mãe, a Babushka Maya, vivia em Dubrovka, uma povoação rural do outro lado do rio, mesmo à saída dos limites da cidade.

Dubrovka caiu a 6 de setembro. De repente, Tatiana teve boas notícias, o que era tão difícil de conseguir como

óleo. A Babushka Maya ia viver com eles para a Quinto Soviete! Infelizmente, Mikhail, o padrasto da mãe, morrera de tuberculose uns dias antes. Quando os Alemães queimaram Dubrovka, a Babushka Maya fugiu para a cidade.

Quando chegou, ficou com um quarto e a mãe e o pai voltaram a ir dormir com Dasha e Tatiana. Acabara-se o «por favor, Tania, vai-te embora».

A Babushka Maya sempre vivera em Leninegrado e nem lhe passara pela cabeça ser evacuada.

- A minha vida e a minha morte são aqui - disse à neta enquanto desfazia as malas.

Casara com o primeiro marido no virar do século e tivera a mãe de Tatiana. O marido desaparecera na guerra de 1905; nunca mais voltara a casar, mas vivera durante mais de trinta anos com o pobre tio Mikhail, que era tuberculoso. A rapa¬riga perguntara uma vez à Babushka porque nunca casara com o tio Mikhail, e ela respondera:

- E se o meu Fedor volta, Tanechka? Ficaria numa situação embaraçosa! A Babushka pintava e estudava arte; expusera nas galerias de arte antes da

Revolução, mas desde 1917 que ganhava a vida a ilustrai material de propaganda para os bolcheviques. Na sua casa de Dubrovka, havia por todo o lado cadernos cheios de desenhos de cadeiras, alimentos e flores.

A sua chegada, a Babushka disse à neta que não tivera tempo de tirar nada de casa antes de esta arder.

- Mas não te preocupes, Tanechka. Eu desenho-te outra cadeira. - E se me desenhasse antes uma bonita torta de maça? É a época delas. Na noite seguinte, a 7 de setembro, Marina chegou finalmente mesmo antes

do jantar. O pai, inexperiente ajudante de atirador num tanque que ele próprio construíra, morrera em combate nos arredores de Izhorsk. Os Metanov gostaram muito do tio Boris, cuja morte teria sido um golpe terrível se a família não houvesse já sido atingida pelo pesadelo que fora a perda de Pasha.

A mãe de Marina continuava hospitalizada; alheia à guerra, morria lentamente de insuficiência renal. A ingenuidade de Tatiana surpreendia-se até a si própria. Como era possível acontecer fosse o que fosse que não tivesse a ver com a guerra? Primeiro o tio Misha e agora a tia Rita. Havia qualquer coisa de

Page 240: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

240

universalmente injusto no fato de as pessoas morrerem de causas que não tinham nada a ver com as trincheiras que Alexander cavara.

O pai observou a mala de Marina. A mãe observou a mala de Marina. Dasha observou a mala de Marina. Tatiana disse:

- Deixa-me ajudar-te a desfazer a mal, Marina. O pai perguntou se ela ia ficar, e Tatiana respondeu: - Acho que sim. - Achas que sim? - O pai dela morreu e a mãe está a morrer. Pode ficar conosco algum tempo,

não? - Não disseste ao tio Georg que me convidaste para morar aqui, Tânia? –

indagou Marina. – Não se preocupe, trouxe minha caderneta de racionamento, tio Georg.

O pai lançou um olhar zangado a Tatiana. A mãe lançou um olhar zangado a Tatiana. Dasha lançou um olhar zangado a Tatiana, que sugeriu:

- Vamos arrumar as tuas coisas, Mariana. Nessa noite, houve um pequeno problema ao jantar. As raparigas deixaram a

comida no fogão por um momento e, quando regressaram à cozinha, viram que as batatas fritas, as cebolas e um pequeno tomate haviam desaparecidos. A frigideira estava vazia e suja. Algumas batatas tinham-se pegado ao fundo e aí permaneciam presas, cobertas por um pouco de óleo. Dasha e Tatiana olharam em volta incrédulas, e até voltaram a entrar, pensando que talvez já tivessem levado o jantar para dentro e se houvessem esquecido.

As batatas tinham desaparecido. Dasha, que nunca se atrapalhava, arrastou Tatiana com ela e foi bater a todas

as portas, perguntando pelas batatas. Zhanna Sarkova abriu. Tinha um aspecto tão despenteado e esfarrapado que quase parecia da família do Slavin maluco.

- Está tudo bem? – perguntou Tatiana. - Ótimo! – atirou-lhe Zhanna. – Batatas--- o meu marido desapareceu! Não o

viste no Grechesky, não? Abanou a cabeça - Se calhar foi ferido. - Onde? – indagou Tatiana delicadamente. - Como hei de saber? Não, não vi as estúpidas das vossas batatas. – bateu com

a porta. Slavin estava deitado no chão, falando sozinho. O seu quartinho cheirava a

tudo menos batatas fritas. - Como vai alimentar-se? – perguntou Tatiana quando passaram por ele. - O problema não é nosso – retorquiu Dasha. Os Inglenko nem sequer se encontravam em casa. Depois da perda de

Volodya, que parecera juntamente com Pasha, Petr Iglenko passava os dias e as noites na fabrica que derretia restos de metal velho para fazer munições. E tinham

Page 241: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

241

acabado de receber mais más noticias. Petka, o filho mais velho, morrera em Pulkovo. Só restavam os dois mais novos, Anton e Kirill.

- Coitada da Nina?! – exclamou Dasha. – Que conversa é essa, Tânia? Ela ainda tem dois filhos. Diz antes que sorte tem a Nina.

Quando chegaram à porta que dava para a sua entrada, Dasha observou: - Estão todos a mentir. - Estão todos a dizer a verdade – protestou a irmã – Não é fácil esconder

batatas e cebolas fritas. Nessa noite, os Metanov comeram pão com manteiga e passaram o tempo a

lamentar-se. O pai berrou com as filhas por lhe terem perdido o jantar. Não esquecendo o

aviso de Alexander de que devia ter cuidado com as pessoas que podiam bater-lhe, Tatiana não reagiu.

Depois do jantar, no entanto, a família decidiu não arriscar mais. A mãe e a Babushka foram buscar a comida enlatada, os cereais, grão, sabão, sal e vodca e empilharam-nos em todos os cantos, incluindo na entrada, atrás do sofá.

- É uma sorte termos uma porta a separar o nosso vestíbulo das outras aves de rapina – comentou a mãe. – Se não fosse assim, nunca conseguiríamos conservar a nossa comida.

Mais tarde, quando Alexander apareceu e soube o que acontecera às batatas, aconselhou os Metanov a terem sempre a entrada de trás para a cozinha fechada à chave.

Dasha apresentou Alexander a Marina. Deram um aperto de mão e ambos olharam um para o outro mais tempo do que seria normal. Embaraçada, marina recuou, desviando o rosto. Alexander sorriu e passou o braço por cima do ombro da namorada.

- Então é esta a tua prima Marina, Dasha!!- Tatiana teve vontade de abanar a cabeça, enquanto Marina, perplexa, permanecia sem fala.

Mais tarde, na cozinha, perguntou à prima: - Tânia, porque é que o Alexander da Dasha olhou para mim como se me

conhecesse? - Não faço idéia. - Ele é adorável. - Achas? – indagou Dasha, que ia a passar por elas em direção à casa de

banho, deixando Alexander sozinho no corredor. – Pois tira o cavalinho da chuva – acrescentou alegremente. – Ele é meu.

- Não te parece? – cochichou Marina. - Se calhar. Ajuda-me a lavar esta frigideira, sim? À entrada, o adorável Alexander fumava ria para Tatiana. O pai continuava a resmungar por causa da chegada de Marina, cujas rações

de estudante de pouco adiantariam para a família. Alem disso, mais uma boca para alimentar só viria ainda mais o pouco que já tinham.

Page 242: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

242

- Ela só veio para comer as latas de fiambre do meu pai – disse à mãe, fitando as latas. Tatiana ficou sem saber se ele queria come-las ou beijá-las.

- Ela é sua sobrinha, paizinho – murmurou para que Marina não ouvisse – A única filha da sua Irmã.

Page 243: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

243

2

No dia seguinte, 8 de setembro, a cidade agitou-se logo desde manha. - Ataque aéreo! Ataque aéreo! – anunciava o rádio. No hospital, Vera agarrou a mão de Tatiana e perguntou: - Estás a ouvir este barulho? Foram até à entrada da frente, na Ligovskt, e Tatiana ouviu um ribombar

distante, que não se aproximava mas que aumentava de freqüência. Calmamente, explicou:

- São só morteiros, Verochka. Produzem este som quando lançam as bombas. - Bombas? - Sim. É uma maquina assente no chão... não sei exatamente como funciona...

que dispara bombas grandes, bombas pequenas, bombas explosivas, com detonadores curtos e compridos. As de fragmentação são as piores. Mas também tem umas bombas pequenas antipessoais. Disparam cem de cada vez. São terríveis.

Vera fitou Tatiana, que encolheu os ombros: - Luga. Preferia não ter ido! Mas... olha, serras-me a perna? Entraram. - E se te serraste só o gesso? Parece-me que serrar-te a perna é capaz de ser

um tanto drástico. Era a primeira vez que via a perna em mais de seis semanas. Gostaria de

dispor de um pouco mais de tempo para contemplar a perna emagrecida sem o gesso mas, coxeando de um lado para o outro, ouviu uma grande agitação ao fundo do corredor, na sala das enfermeiras, que subiram as escadas a correr. Tatiana seguiu-as a arrastar a perna, que lhe doía quando se apoiava nela.

No telhado, viu duas formações de oito aviões cada uma passando por cima da sua cabeça. Percorrida metade da cidade, houve uma explosão, seguida de incêndios e fumo negro. << está a acontecer >> , pensou. <<Os Alemães bombardeiam Leninegrado. Pensei que tinha deixado tudo pra trás em Luga. Pensei que o que vi La fosse o pior que ia ver na vida. Na altura, pelo menos pude sair de Luga e vir parar aqui. E agora? Para onde posso ir?>>

Chegou-lhe às narinas um cheiro acre e acido. << O que é isso? >> , pensou. -Vou para casa ter com a minha família –disse a vera. Mas aquele cheiro não

lhe saia da cabeça. À tarde, já todos sabiam. Os armazéns Badayev, que abasteciam Leninegrado,

haviam sido bombardeados pelos alemães e estavam agora em escombros e chamas. O cheiro ocre era açúcar queimado.

Page 244: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

244

- Que vai acontecer a Leninegrado, paizinho? – perguntou Tatiana. Toda a família se encontrava solenemente sentada à mesa.

O pai não tinha resposta. - Provavelmente o que aconteceu ao Pasha. A mãe desfez-se em lágrimas. - Não fales assim! – exclamou. – Vais assustar as pequenas. Dasha, Tatiana e Marina entreolharam-se. O bombardeamento prolongou-se até meio da tarde. Anton foi buscar Tatiana e subiram os dois para o telhado. Por muito estranho

que fosse caminhar sem o gesso, não era mais estranho do que ver colunas de fumo preto no céu de Leninegrado.

<< O Alexander tinha razão >> , pensou. << Tem tido sempre razão. Tudo o que me disse ia acontecer, aconteceu mesmo. >> Com o coração inchando de respeito e amor, prometeu a si própria dar ouvidos a todas as palavras que ele proferisse dali em diante. Foi então que um arrepio de medo a percorreu.

Ele não lhe dissera que se lutaria ate à morte nas ruas da cidade? Dimitri com uma arma, Alexander com uma granada e Tatiana com uma

pedra. Não lhe dissera que comprasse comida como se fosse voltar a Vê-la? <<Se

calhar exagerou >> , pensou, sentindo-se apenas um bocadinho mais aliviada. Não insistira para que saísse da cidade quando ia buscá-la a Kirov? Com o fumo negro pairando sobre Leninegrado com uma lápide, pensou no futuro da família e foi assaltada por maus pressentimento, por uma escuridão dolorosa.

Anton observava o céu com ansiedade. - Tânia! – exclamou. – Há bocado consegui. Caiu aqui uma bomba incendiária

e apaguei-a com isso! – Apontou para o pau que tinha na mão, cuja ponta estava atada a um semicírculo de cimento que parecia um capacete militar.

Saltando e acenando com o punho para o céu, Anton gritou: - Vá, venham outra vez, estou à espera! - Anton, és tão doido como o Slavin – riu Tatiana. - Oh, muito mais! – retorquiu alegremente. – Ele não esta no telhado, pois

não? Viam-se vários incêndios na direção de Nevsky e do rio. De repente, a mãe espreitou da porta das escadas e, sem se atrever a sair

para o telhado, berrou: - Tatiana Georgievna! Estás maluca? Anda imediatamente para baixo. A mãe desceu a resmungar, mas voltou passados dez minutos, desta vez com

Alexander e Dimitri. Bem no alto do telhado, Tatiana abanou a cabeça: - Trouxe reforços? - Tatiana, anda lá para baixo conosco – disse Alexander, caminhado em

grandes passos na sua direção. Dimitri ficou no patamar com a mãe.

Page 245: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

245

Tatiana não se mexeu. Alexander ergueu as sobrancelhas. - Imediatamente, Tania. - Não posso deixar o Anton aqui sozinho, pois não? – protestou ela, com um

suspiro. - Eu fico bem, Tânia – gritou ele, erguendo o pau para o céu. – Eles que

venham! Quando ia sair, Alexander voltou-se para Anton e disse: - Põe o capacete na cabeça, soldado. Já no quarto, Dimitri censurou-a: - Tania, querida, não devias ir para o telhado durante um ataque aéreo. - bem, também não vale muito a pena ir para lá noutras alturas. – retorquiu

em tom monocórdico. – A não ser para me bronzear. - Estás na cidade errada para te bronzeares. – atirou-lhe Alexander. –

Francamente, Tania, o que tens na cabeça? O Dimitri e a tua mãe estão cobertos de razão. Queres deixar os teus pais sem dois dos seus três filhos? Nem todas as bombas são incendiarias; nem todas nos aterram inocentemente aos pés como bombas mortas. Já esquecestes de Luga? O que pensas que acontece quando uma bomba explode durante a queda? A onda provocada pela explosão faz ir pelo ar o vidro, a madeira e o plástico. Para que pusemos tirar de papel em todas as janelas da cidade? Que pensas que te aconteceria se fosse atingida por essa onda?

- Se calhar podemos pôr umas tirinhas de papel em mim. Talvez uma palmeirinha – replicou ela secamente.

- Cala a boca! – exclamou Dasha. – Não arranjes mais problemas. Não quero ver os nossos valentes rapazes a desenterrarem-te outra vez. – Apertou-se contra Alexander.

- A façanha não foi minha – disse Dimitri com os olhos a faiscar. – Não é verdade, Alexander?

- Sabes que mais , Tania? Porque não vai começar a fazer o jantar e nos deixas aqui a conversar um bocadinho? – sugeriu a mãe. – Marina, vai ajudar a Tania.

Cozinhou batatas com um pouco de manteiga, feijões e cenouras.<< Isso não chega para toda a gente >>, pensou, fritando uma lata de fiambre, que ninguém apreciava.

- Os teus pais ainda não gostam muito de falar à tua frente, pois não? – inquiriu Marina.

- Não, nem por isso. - Os soldados protegem-te muito. Especialmente o Alexander – comentou ela. - Ele protege toda a gente – afirmou Tatiana. – Podes ir buscar mais

manteiga? Acho que esta não chega. O jantar foi sombrio nessa noite. Alexander e Dimitri iam partir a frente, e

toda a gente receava mencionar o fato... os alemães no meio da sua cidade e eles indo combater... Tatiana sabia que, ao contraio de Dimitri, Alexander não ia

Page 246: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

246

combater para a linha da frente, mas isso de pouco a consolava ao imaginá-lo a comandar a sua companhia de artilharia.

Mesmo assim, foi ela que conseguiu perguntar alegremente enquanto toda a gente bebia os eu chá preto:

- E agora? - Usem o abrigo lá de baixo – disse Alexander. – é uma sorte este prédio ter

um. Há muitos que não tem. Usem-no todos os dias. Dasha, não deixes a tua irmã ir para o telhado. Diz-lhe que deixe os rapazes entenderem-se com as bombas. Estás a ouvir, Dasha?

- Estou, querido. Tatiana ouviu-o perfeitamente. - Havia muita comida nos armazéns que arderam, Alexander? – perguntou. Ele encolheu os ombros. - Açúcar e alguma farinha. Talvez o suficiente para uns dois dias. Não é com os

armazéns Badayev que temos de nos preocupar. É com o cerco dos Alemães à cidade.

- Nem acredito que eles estão aqui em Leninegrado! – exclamou Dasha. – Pareciam tão longe no verão!

- Não é bem um circulo – murmurou Tatiana. - Mas quem és tu para discutir com um tenente do exército? – gritou-lhe o

pai, embriagado. Alexander levantou a mão e disse calmamente. - O teu pai tem razão, Tania. Não discutas comigo. Mesmo que tenhas razão. Ela evitou sorrir. Também sem sorrir, Alexander continuou: - Infelizmente, os Alemães têm a geografia do lado deles. Há muita água à

volta da cidade. – Sorriu. – Ou melhor: com o golfo, o lado Ladoga, o rio Neva e os Finlandeses ao Norte, o circulo em volta de Leninegrado está quase completo. – Olhando para Tatiana: - Assim está melhor?

Ela murmurou qualquer coisa de ininteligível e deu com o olhar de Marina. Dimitri sentou-se mais perto dela, passou-lhe o braço pelos ombros e

encostou-lhe o rosto ao cabelo. - O teu cabelo está a crescer, Tanechka – observou – Deixa-o crescer, sim?

Adorava-o comprido. <<O que o Alexander faz não e suficiente>>, pensou ela.<< O que fazemos não

é suficiente. Quanto tempo mais conseguiremos continuar assim? Temos de deixar de falar um com o outro à frente do Dima, da Dasha e do resto da minha família, ou ainda haverá sarilho>>Como se lhe lesse o pensamento, Alexander aproximou a cadeira da de Dasha.

- Mas os Alemães estão ao longo do Neva todo, Alexander? – perguntou ela. - Á volta da cidade sim. Até o lago Ladoga e Shlisselburg.

Page 247: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

247

Shlisselburg era uma pequena cidade erigida na extremidade do Lago Ladoga, no ponto em que o Neva saía o lago e, em curvas sinuosas, percorria os setenta quilômetros que o separavam de Leninegrado, desaguando depois no golfo da Finlândia.

- Shlisselburg está nas mãos dos Alemães? – insistiu Dasha. - Não – suspirou Alexander. – Mas amanhã estará. - E depois? - Depois lutamos para não deixar os Alemães entrarem em Leninegrado. - Agora que os armazéns arderam, como é que os alimentos vão chegar à

cidade? – perguntou a mãe de Tatiana. - Não só os alimentos como também o querosene, a gasolina e as munições –

acrescentou Dimitri. - Primeiro, impedimos os Alemães de entrarem e depois preocupamo-nos

com o resto – replicou Alexander. Dimitri soltou uma gargalhada desagradável. - Eles que entrem, se quiserem. Todos os edifícios importantes de

Leninegrado foram minados. Fábricas, museus, catedrais, pontes. Se Hitler entrar na cidade, morrerá nos seus escombros. Não vamos travar Hitler mas sim morrer com ele.

- Não, Dimitri. Vamos travar Hitler, sim senhor – declarou Alexander. – antes de os Alemães entrarem na cidade.

- Então Leninegrado agora também é terra queimada? – interveio Tatiana. - Que vai ser de nós? Ninguém respondeu. Abanando a cabeça, Alexander falou finalmente: - Eu e o Dimitri partimos amanhã para Dubrovka. Se pudermos, havemos de

travar os eu avanço. - Mas porque temos de ser nós a interpor-nos entre os Alemães e esta

cidade? – protestou Dimitri – Porque não se rende Leninegrado? Minsk rendeu-se. Kiev rendeu-se. Tallinn rendeu-se, mas primeiro ardeu de cima a baixo. A Criméia rendeu-se. A Ucrânia rendeu-se alegremente! – estava a ficar terrivelmente agitado.

- vamos matar os nossos homens todos para Hitler não entrar aqui? Deixá-lo entrar!

- Mas, Dimochka, a tua Tania está aqui – protestou a mãe. – E a Dasha do Alexander também.

- Oh, e não se esqueçam de mim – interrompeu Marina. – Embora não pertença a ninguém, também estou aqui.

- Isso, Dima – acrescentou Alexander. – Queres desimpedir o caminho a Hitler para ele chegar à tua namorada?

- Pois. Não sabes o que os Alemães fazem às mulheres ucranianas? – inquiriu Dasha.

- Eu não sei. O que é? – perguntou Tatiana.

Page 248: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

248

- Nada – replicou Alexander suavemente. – Dás-me mais um bocadinho de chá?

Tatiana levantou-se. Dimitri baixou o olhar para a Chávena vazia. - Também trago para ti, Dima. Baixando a cabeça, Marina disse: - O meu pobre paizinho não conseguiu travá-los. Parece que ninguém

consegue pará-los, não é? Alexander ficou calado. - É verdade! – exclamou Dimitri. – Temos três divisões absolutamente

patéticas. Não vai chegar, nem que o ultimo homem morra e o ultimo tanque seja destruído!

Alexander levantou-se e fez a continência. - E com isso temos de ir. Deixa lá o chá, Tania. – Virando-se para Dimitri: -

Sentido, soldado! Vamos. A tua vida esta entre os Metanov e Hitler. – Não olhou para Tatiana.

- É precisamente disso que tenho medo – murmurou Dimitri. Quando iam a sair, Dasha chorou agarrada ao namorado. - Prometes-me que regressas vivo? -Farei o possível – Olhou então para Tatiana. A rapariga não chorou nem pediu a mesma promessa a Dimitri. Quando eles

partiram, foi buscar uma bolacha, na qual tocou como numa ferida. - Gosto muito do teu Dima, Tania – comentou Marina. – É a pessoa mais

honesta que conheço. Gosto disso num soldado. Fitou a prima, espantada: - Que soldado não quer ir combater? Podes ficar com ele, Marina.

Page 249: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

249

3

Na manhã seguinte, enquanto se vestiam, os Metanov ouviram na radio que uma bomba incendiaria caíra no telhado de um prédio da Sadovaya Ulitsa e que a patrulha de serviço não conseguira apagá-la a tempo. Explodira, matando as nove pessoas que lá se encontravam, todas com menos de vinte anos de idade.

<<O meu irmão tinha menos de vinte anos >>, pensou Tatiana, calcando os sapatos. A perna palpitava-lhe.

- Estás a ver? Eu não te disse? – exclamou a mãe – É perigoso andar no telhado.

- Estamos no meio de uma cidade cercada, mãezinha. É perigoso andar seja onde for.

O bombardeamento começou precisamente ás oito da manhã, ainda ela nem sequer saíra para ir buscar as rações. A família amontoou-se toda no abrigo anti-aéreo. Tatiana roia as unhas, inquieta, e tamborilava nos joelhos, mas nada ajudava.

Ficaram ali sentados durante uma hora. Depois, o pai entregou a Tatiana a caderneta de racionamento e pediu-lhe

que fosse buscar as suas rações. - Podes trazer também as minhas, Taneschka? – pediu a mãe. – Ainda tenho

de coser muito antes de ir trabalhar. Ano a fazer horas extraordinárias e trago fardas para coser em casa. – Sorrindo: - Uma farda para o nosso Alexander, dez rublos para mim.

Tatiana perguntou a Marina se queria ir com ela à loja, mas esta declinou, dizendo que ia ajudar a Babushka a vestir-se. Dasha estava na cozinha a lavar roupa na pia de ferro fundido.

Por isso, foi sozinha até uma grande loja no canal Fontanka, perto do Teatro da Tragédia e da Comélia, onde se representava Noite de Reis de Shakespeare às sete da tarde. A fila para a loja prolongava-se ao longo do cais.

Tatiana esqueceu Noite dos reis por completo quando ao balcão e chegou soube que as rações haviam sido novamente reduzidas depois do incêndio do dia anterior nos armazéns Badayev.

A caderneta de racionamento do pai deu direito a meio quilo de pão, mas as outras só a trezentos e cinqüenta gramas cada uma. Marina e a Babuchka receberam apenas duzentos e cinqüenta gramas. Por junto, tinham cerca de dois quilos de pão. Além do pão, conseguiu comprar algumas cenouras, rebentos de soja e três maçãs. Trouxe também cem gramas de manteiga e meio litro de leite.

Depois de regressar a casa a correr, comunicou à família a redução das rações, mas ninguém ficou preocupado.

Page 250: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

250

- Dois quilos de pão? – disse a mãe, parando de coser. – É mais do que suficiente. Chega e sobra. Não é preciso atafulharmo-nos de comida em tempo de guerra. Podemos apertar um bocadinho o cinto. E ainda temos aquelas reservas todas. Não vai haver problema.

Tatiana dividiu o pão ao meio, uma metade para o pequeno-almoço e outra para o jantar, e depois cada metade em seis porções. Deu ao pai mais pão e menos a si própria.

No hospital, nem valia a pena ter pretensões a aprender com Vera. Estava reduzida a limpar as sanitas e as banheiras dos pacientes e a lavar-lhes a roupa suja da cama. Servia o almoço e até comia também. Às vezes, apareciam soldados para as refeições. Quando via algum, perguntava-lhe sempre se estava no Quartel Pavlov. O bombardeamento intermitente prolongou-se durante todo o dia.

Nessa noite, ainda teve tempo para fazer o jantar e arrumar a cozinha antes de a sirene tocas, às nove. De volta ao abrigo antiaéreo, permaneceu sentada durante o tempo infindável. << Só passaram dois dias >>, pensou. << Quanto mais tempo teremos de suportar isto? Da próxima vez que vir o Alexander, arranco-lhe a verdade sobre que isto ainda vai durar>>.

O abrigo, comprido, estreito e pintado de cinzento, tinha duas lanternas de querosene para cerca de sessenta pessoas sentadas nos bancos ou encostadas às paredes.

- Paizinho, quanto tempo mais? – perguntou Tatiana. - Umas horas – respondeu com ar fatigado. O seu hálito cheirava muito a

vodca. - Paizinho... – Tatiana insistiu - ... não, os combates, a guerra... quanto tempo

mais? - Sei lá! – retorquiu, tentando levantar-se. – Até estarmos todos mortos? - O que se passa com o paizinha, mãezinha? - Oh, Tanechka, não é possível que sejas assim tão cega. O que se passa com o

paizinha é o Pasha. - Não sou cega – resmungou ela, afastando-se. – Mas a família precisa dele. Aproximando-se de Dasha e de Marina, perguntou: - Dasha, a Marina disse-me que o Misha de Luga esteve apaixonado por mim.

Acho que ela está maluca, não te pareces? - Está maluca. - Obrigada. Marina fitou Tatiana e depois Dasha: - Malucas estão vocês. E tu, Dasha, ainda hás de engolir o que disseste. - Estás a ver, Tania? – Dasha nem sequer olhou para a irmã. – Se calhar, de

quem precisas é do Misha e não do Dimitri. – Suspirou. No dia seguinte passou-se o mesmo. Desta vez, Tatiana levou consigo

cadernos do subterrâneo, de Dostoiévski.

Page 251: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

251

No outro dia, disse com os seus botões. Estou farta. Não consigo passar o meu tempo sentada a tamborilar nos joelhos. Por isso, enquanto a família descia, deixou-se ficar para trás, voltou a atravessar o apartamento a correr e subiu as escadas das traseiras ate o telhado, onde Anton, Mariska, Kirill e mais umas pessoas que não conhecia observavam o céu. Com o bocadinho de sorte, talvez ninguém desse pela sua falta.

As explosões e os assobios das bombas eram terríveis no telhado. Ficou la durante duas horas. Para grande desapontamento geral, nenhuma bomba caiu ali perto. Não se enganara. Ninguém percebera que não fora para o abrigo.

- Onde te sentaste, Tanechka? – perguntou-lhe a mãe. – Do outro lado, perto da lanterna?

- Sim, mãezinha. No havia noticias de Alexander nem de Dimitri. As raparigas andavam

aflitíssimas. Mal conseguiam mostrar-se amáveis uma para a outra e muito menos face às outras pessoas. Só a Babushka Maya, imperturbável e calada, continuava a pintar.

- Babushka, onde vai buscar essa paz de espírito? – perguntou-lhe Tatiana uma noite, afagando-lhe o cabelo comprido, que começava a ficar grisalho.

- Já sou muito velha para me preocupar, minha querida. Não sou nova como tu. – Sorrindo: - Nem tenho esse teu desejo de viver. – Olhando para cima do ombro, tocou-lhe no rosto.

- Não diga isso. – Indo para frente da avó, abraçou-a: - E se o Fedor voltar? Afagando a cabeça da neta, a Babushka Maya replicou: - Eu não disse que não queria viver, mas sim que não tenho esse teu desejo. Tatiana andava preocupada com Marina, que saía de casa de manhã cedo e só

regressava à noite. Primeiro ia à Universidade de Leninegrado e depois dirigia-se ao hospital, para visitar a mãe.

De noite, a mãe cosia. De noite, o pai bebia, gritava e dormia. De noite, Dasha e Tatiana ouviam as noticias da rádio. De noite, havia bombardeamentos e ela esgueirava-se para o telhado.

Durante o dia, ouvia o som da guerra. Nunca havia silencio em Leninegrado. O barulho dos bombardeamentos era de dois tipos: ou longe ou perto, interrompendo-se brevemente ao almoço e à noite.

Tatiana trabalhava, comprava pão, tratava da perna e parecia que a sua vida não parara como o elétrico na noite branca, perto do canal Obvodonoy.

A Babushka Maya tinha um quarto só para ela. A mãe dormia sozinha no sofá e o pai na cama de Pasha. Tatiana, Marina e Dasha ocupavam o mesmo leito. A jovem quase dava graças por aquele amortecedor, que lhe permitia enfrentar a crise dos bombardeamentos desviando os olhos da crise da irmã, que tinha o direito de amar Alexander em tempo de guerra.

Mas nem por isso era um grande amortecedor. Uma noite, Dasha passou por cima de Marina e abraçou Tatiana:

Page 252: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

252

- Tania, querida, estás a dormir? - Não. O que foi? - Pensas neles a morrer? – perguntou no escuro. - Meninas, amanhã tenho aulas – protestou Marina. – Durmam. - Claro. – Tatiana ouviu a irmã a choramingar baixinho. - Achas que estão mortos? – indagou Dasha, agarrando-se a ela. Tatiana inspirou dolorosamente, pensando em Alexander. - Não. Acho que não. – Não queria falar com a irmã sobre ele. Nem naquele

momento nem nunca. – Dasha, preocupa-te contigo. Olha as condições em que estamos a viver. Já viste bem? No hospital perguntaram-me se me importava de deixar a cozinha para ir lá acima ajudar a tratar das vitimas dos bombardeamentos. Concordei, mas depois vi o que restava delas. – Fez uma pausa. –Viste um prédio inteiro que ruiu na Ligovsky?

- Não. - Uma rapariga de dezessete anos... - Como tu. – Dasha apertou-a. - Sim... debaixo dos escombros. O pai tentou ajudar os bombeiros a salvá-la. Passaram o dia a escavar. Às seis horas, quando saí do hospital, tinham

acabado de encontrá-la. E já estava morta. Com um buraco na testa. Dasha não disse nada. - Saíste do hospital às seis? – inquiriu Marina. – Mas às seis houve

bombardeamentos. Não foste para o abrigo? - Nem fales disso, Marinka – observou Dasha, sussurrando depois ao ouvido

da irmã: - Se não começas a ir para o abrigo, faço queixa de ti. Nesta noite, as sirenes acordaram-nas às três da manhã. Evidentemente que

os Alemães queriam divertir-se um bocadinho. Tatiana virou-se para a parede e teria continuado a dormir, se a família não a houvesse arrastado para fora da cama. Apertada contra os outros no patamar atrás das escadas, pensou: <<as coisas não podem piorar muito mais>>.

Page 253: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

253

4

Os dois jovens regressaram a 12 de setembro, primeiro dia e noite sem bombardeamentos. Voltaram de Dubrovka apenas para vir buscar mais homens e armas.

Alexander apareceu para grande alivio da chorosa Dasha, que não o largou por um segundo e se recusou a ajudar a fazer o jantar. Dimitri agarrou-se à namorada como Dasha se agarrou a Alexander, mas enquanto este ultimo conseguiu devolver-lhe os abraços, Tatiana ficou a passear o olhar em volta da sala, sem saber o que fazer.

- Pronto, pronto – dizia, debatendo-se para não fitar o cabelo preto e o corpo grande de Alexander e fracassando redondamente. Ver os contornos dele à sua frente teria de lhe bastar para reconfortá-la. Teria de passar sem os braços dele no seu corpo.

Quando Dimitri foi lava-se e Dasha saiu a correr para fazer chá, Mariana observou:

- Sabes, Tania, podias mostrar um bocadinho mais de interesse pelo homem que está em frente a combater por ti.

<<Já mostro interesse que chegue >>, pensou ela, mal conseguindo tirar os olhos de Alexander.

- A tua prima tem razão, Tania – concordou ele, fazendo um sorriso aberto. - Pelo menos podias mostra tanto interesse como a Zhanna Sarkova, que

quando passamos pela porta ligeiramente entreaberta estava deitada na cama com um copo encostado à tua parede.

- Estava? Alexander pegou na espingarda, bateu uma vez energicamente com ela contra

a parede e levantou a voz: - Já ouviram esta? Um homem mostra o apartamento a um amigo, que lhe

pergunta: <<Para que é esta bacia de metal? Oh, é o relógio falante >>, replica, dando-lhe com um martelo e provocando um som ensurdecedor. – Alexander tornou a bater na parede. – De repente, uma voz do outro lado frita: <<São duas da manha, seu filho da mãe !>>

Tatiana riu tanto que ele pousou a espingarda e deu-lhe umas palmadinhas nas costas.

- Obrigado, Tania. – Sorrindo: - Estou a cair de fome. O que há para jantar? Ao dirigir-se para a cozinha, Tatiana teve de passar pelos olhos de Marina.

Fritou duas latas de fiambre, cozinhou um bocadinho de arroz que Alexander levara e aqueceu uma canja que em tempos tivera galinha. Enquanto cozinhava, ele entrou

Page 254: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

254

para se lavar. Tatiana prendeu a respiração. Ele aproximou-se do fogão e levantou as tampas das panelas.

- Hum, fiambre! Arroz. O que é esta água? Escusas de me dar isto. - Não é água, é sopa. – respondeu baixinho. Assim debruçando, tinha a cabeça

muito perto do braço dela. Aproximando-se três centímetros, poderia tocar-lhe. Ainda com a respiração suspensa, aproximou-se três centímetros. - Tenho tanta fome, Tania. – Ergueu os olhos para ela, mas antes de poder

dizer mais fosse o que fosse, Marina apareceu e disse: - Alexander, a Dasha pediu-me para te dar uma tolha. Esqueceste-te. - Obrigado – agradeceu, pegando na toalha e desaparecendo. Tatiana ficou a

fitar a canja, talvez esperando ver-se refletida nela. Marina dirigiu-se ao fogão, espreitou pra dentro da panela e perguntou: - Alguma coisa de interessante aqui dentro? - Não, nem por isso. – Endireitou-se. - Hum – fez a prima, afastando-se. Pois aqui fora sim. Ao jantar, Dasha perguntou: - Os combates são muito intensos? Comendo com gosto e satisfação, Alexander replicou: - Saber, é estranho, mas não. Nos primeiros dois dias sim, não é verdade,

Dima? Ele sabe por que passou-os nas trincheiras. Era obvio que os Alemães estavam a tentar que respondêssemos em força. Como não o fizemos, deixaram de atacar. Os nossos batedores juraram-nos que parecia que os alemães estavam a construir trincheiras permanentes. Trincheiras e bunkers de cimentos.

- Permanentes? O que quer isso dizer? – perguntou Dasha. Ele explicou devagar. - Que provavelmente não vão invadir Leninegrado. Toda a família acolheu a noticia com agrado, excerto o pai, que adormecera

no sofá, e Tatiana, que viu no rosto de Alexander uma hesitação de mau agouro, uma certa relutância em dizer a verdade.

Mordendo o lábio, inquiriu cautelosamente: - Isso é bom? -É – respondeu imediatamente Dimitri, como se ela estivesse a falar com ele. -Não, não é – redargüiu Alexander devagar. – Pensei que íamos lutar como

homens... - E morrer como homens! – interrompeu Dimitri, batendo na mesa. - E morrer como homens, se fosse preciso. - Fala por ti. Eu prefiro que os Alemães fiquem nos bunkers durante dois anos

e mantêm Leninegrado à fome a ter de agüentar o fogo deles. - Oh, francamente! – exclamou Alexander, pousando o garfo e a faca, e

ditando Dimitri. – Não achas que este arrastar nas trincheiras não fica bem a ninguém? Parece mais covardia. – Lançou-lhe outro olhar frio, limpou a boca e

Page 255: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

255

estendeu a mão para a vodca. Do outro lado da mesa, Tatiana empurrou a garrafa na sua direção.

- Não é nada covardia – declarou Dimitri. – É esperteza. Sentam-se à espera e, quando o inimigo enfraquecer, atacam. Chama-se a isso estratégia.

Brincando nervosamente com o fiambre, a mãe indagou: - Dimochka, não estás mesmo a falar em matar Leninegrado à fome, pois não?

No sentido literal? - Não, não. Só no sentido figurativo. Tatiana estudou Alexander, que permaneceu calado. - Há mais vodca?- perguntou Dimitri, erguendo a garrafa quase vazia. - Apetece-me beber até cair para o lado. Todos fitaram o pai, desviando depois o olhar. - Alexander – começou Tatiana em voz animada -, a Nina Iglenko veio cá hoje

pedir um bocadinho de farinha e de fiambre. Como temos muito, dispensei-lhe algum. Disse-me que gostaria de ter sido tão previdente como nós...

- Tania! – interrompeu ele. Ela recostou-se pesadamente na cadeira. Não se enganara. Ele tinha informações que não estava a revelar. – Não desperdices nem um grama de comida, seja qual for a razão. Percebes? Nem que a Nina Iglenko te pareça ter mais fome do que tu.

-Não andamos assim com tanta fome! – protestou Tatiana. - Pois não, Alexander – acrescentou Dasha. – E já tivemos racionamentos

antes. Onde estavas durante a campanha finlandesa do ano passado? - A combater Finlandeses – respondeu com ar carrancudo. << Porque é que a

Dasha transforma sempre a guerra numa campanha ou num conflito? Andará a escrever propaganda pra o radio? >>, pensou Tatiana. – Ouve bem o que te vou dizer Dasha, e vocês também – continuou Alexander. – Agarrem-se à vossa comida como se fosse a ultima coisa entre vocês e a morte, sim?

- Tens de ser assim tão serio? – indagou Dasha, amuando. – Onde está o teu famoso sentido de humor? Não vamos morrer à fome. O comitê de Leninegrado há de fazer entrar alimentos. Não estamos completamente cercados pelos Alemães, pois não?

Ele acendeu o cigarro: - Dasha, faz-me um favor. Poupa a comida. - Está bem, meu querido. Tens a minha palavra. – Beijou-o. Alexander virou-se para Tatiana: -E tu também, Tania. - Está bem. – Meu querido. – Prometo. – Não o beijou. - Durante quanto tempo foi Londres bombardeada no verão de 1949,

Alexander? – inquiriu Dasha. - Quarenta dias e quarenta noites. - Pensar que vai ser o mesmo tempo aqui? Era a pergunta que Tatiana queria ouvir. E nem tivera de a fazer.

Page 256: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

256

- Mais. Os bombardeamentos continuarão até Leninegrado se render ou cair, ou nós fazermos recuar os Alemães.

- Vamos render-nos? – quis saber Dasha. – Se tiver de ser, até o eu combato os nazistas na rua de Leninegrado.

Tatiana pensou que Dasha, a rapariga que ia sentar-se todas as noites no abrigo antiaéreo, estava a mostrar-se muito corajosa.

Alexander abanou a cabeça: - É uma experiência que não te aconselho, Dasha. Os combates de rua são

devastadores, tanto para os sitiados como para os atacantes. A perda de vida é enorme. E enquanto o nosso amado dirigente talvez não tenha em grande apreço vidas dos seus homens, Hitler mostra um interesse surpreendentemente saudável pela raça ariana. Não me parece que vá arriscar os seus homens por Leninegrado. – Olhando de relance para Tatiana: - Se calhar o Dima vai ver o seu desejo realizado – rematou, com um desprezo mal disfarçado.

A rapariga observou Dimitri, estirado no sofá ao lado do pai, ou a dormir ou embriagado, e foi buscar as chávenas de chá.

- Vai ser como em Londres? – De olhos brilhantes, Dasha afastou para trás o cabelo encaracolado: - Londres foi bombardeada mas as pessoas continuaram as suas vidas. Havia discotecas e os jovens dançavam. Vimos fotografias. Parecia tudo tão alegre! – Sorriu a Alexander e afagou-lhe a perna.

- Mas onde é que tu vives, Dasha? Londres? – perguntou, afastando-se dela. - No que te diz respeito, Londres bem podia ser em Marte. Não há discotecas

em Leninegrado neste momento. Achas que vão abri-las para o bloqueio? Dasha fez expressão amarga: - Bloqueio? - Dasha, não houve bloqueio em Londres. Percebe a diferença? - E aqui há? Ele não respondeu. A mãe, Dasha, Marina e a Babushka apertavam-se em volta da mesa,

devorando Alexander com o olhar. Tatiana encontrava-se parada à porta, com as mãos cheias de chávenas e pires. Sem olhar para ele, disse:

- Claro que sim. Por isso é que os Alemães se meteram nas trincheiras. Não vão perder o seus homens mas sim matar-nos à fome, não é, Alexander?

- Olhem, já chega de perguntar por hoje. Mas não desperdicem comida – rematou ele.

A mãe indagou, incrédula: - Ouvi dizer que os Alemães estão em Peterhof. È verdade? - Lembras-te de quando fomos a Peterhof, querido? –murmurou Dasha,

dando-lhe a mão. – Oh, Alexander, foi um dia tão feliz! O ultimo dia de despreocupação que tivemos. Lembras-te?

- Lembro – assentiu ele, sem olhar para Tatiana.

Page 257: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

257

- Nunca mais nada foi o mesmo desde esse dia maravilhoso – entristeceu-se Dasha.

Virando-se para a mãe, Alexander continuou: - Irina Fedorovna, Peterhof esta realmente nas mãos dos Alemães. Os nazistas

tiraram os tapetes do palácio e estão a forrar as trincheiras com eles. - Querido, se calhar o Dimitri tem razão. – Dasha bebia o chá. – Ainda há três

milhões de pessoas em Leninegrado. Não é gente demais para sacrificar? – Depois de uma pausa: - O comando de Leninegrado já pensou em render-se?

Alexander estudou Dasha. Tatiana tentava perceber a expressão dos seus olhos.

- Que dizer – continuou Dasha -, se nos rendermos... - Redemo-nos e depois? Dasha, os Alemães não nos querem para nada. A ti de

certeza que não. Não leste o que fizeram na Ucrânia? -Tento não ler. - Mas eu li – afirmou Tatiana em voz baixa. - Durante algum tempo, ali o Dimitri pensou que talvez não fosse má idéia ser

prisioneiro num campo alemão... até saber que os nazistas fuzilaram os prisioneiros, pilharam e queimaram as aldeias, deram cabo ao gado, arrasaram os celeiros e mataram os judeus e depois as mulheres e as crianças.

- Mas não antes de violarem as mulheres – acrescentou Tatiana. Dasha e Alexander fitaram-na boquiabertos. - Passa-me o doce de mirtilo, Tania – pediu Dasha. - E para de ler tanto – disse Alexander em voz baixa, fitando a chávena de

chá. Levando uma colher de doce de mirtilo à boca, Dasha perguntou: - Bem, se há bloqueio em Leninegrado, como é que os mantimentos vão

entrar na cidade? - Temos bastante. Poupamos muito – volveu-lhe a mãe. - Não sei, mãezinha – declarou Dasha firmemente. – Aí acho que concordo

com o Dimitri. Devíamos... Olhando inexpressivamente a Tatiana, Alexander abanou a cabeça: - Não... Não achas, Tania? ... <<Não vacilaremos nem fracassaremos. Iremos

até o fim... Lutaremos nos mares e oceanos... No ar, defenderemos a nossa ilha a todo o custo.

- Lutaremos na praias >> – continuou Tatiana corajosamente, sem tirar os olhos dele. – <<Lutaremos nos campos e nas ruas... Lutaremos nos montes >> – rematou, percebendo que tinha as mãos a tremer. – Churchill.

Frustrada, Dasha abespinhou-se: - Podes ir fazer-nos mais chá, Churchill? Marina foi para a cozinha ajudá-la e sussurrou: - Nunca na vida vi pessoa mais densa e tapada do que a tua irmã, Tania. - Não sei o que queres dizer – replicou, pálida e quieta.

Page 258: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

258

Uns dias mais tarde, Tatiana e Dasha fizeram o inventario das provisões que lhes restavam, a maior parte das quais comprada com a ajuda de Alexander no primeiro dia de guerra.

O efêmero primeiro dia de guerra. Parecia tão longínquo como se pertencesse a outra vida, a outro tempo. Fora apenas há dois meses e já pertencia tão irrevogavelmente ao passado? No presente, os Metanov tinham quarenta e três latas de quilo de fiambre,

nove de tomate e sete garrafas de vodca. Quando os armazéns Badayev haviam ardido oito dias antes, eram onze. <<O paizinho deve andar a beber mais do que pensamos >>, refletiu Tatiana.

Tinham dois quilos de café, quatro de chá e um saco de dez quilos de açúcar, divididos em trinta bolsas de plástico. Tatiana contou também quinze latas pequenas de sardinhas fumadas, um saco de quatro de cevada, seis de aveia e outro saco de dez quilos de farinha.

- Parece bastante – afirmou Dasha. – Quanto tempo poderá durar o cerco? - Segundo o Alexander, ate o fim. Tinham sete caixas de duzentos e cinqüenta fósforos cada. A mãe disse que também dispunham de novecentos rublos em dinheiro, o

que chegava para comprar mantimentos no mercado negro. - Então vamos, mãezinha – sugeriu Tatiana. – Já. As irmãs foram com a mãe a uma loja que abrira em agosto em Oktabrskiy

Rayon, perto da Catedral de São Nicolau. Quando chegaram lá ao fim de mais de uma hora, ficaram a olhar, incrédulas, para os preços dos poucos produtos que se viam nas prateleiras. Havia ovos, queijo, manteiga, fiambre e até caviar. Mas o quilo do açúcar era a dezessete rublos. A ma riu-se para a porta, mas Tatiana agarrou-lhe no braço:

- Não seja forreta, mãezinha. Compre. - Larga-me, minha parva – resmungou ela. – Achas que sou idiota para

comprar açúcar a dezessete rublos o quilo? Olha o queijo! Dez rublos por cem gramas! Estão a brincar conosco? – Gritou ao empregado: - Estão a brincar? É por isso que não tem filas à porta, como as lojas russa normais! Quem vai comprar comida a preços destes?

O jovem empregado esboçou um sorriso e abanou a cabeça: - Meninas, ou compram ou tem de sair. - Vamos embora – ordenou a mãe. Tatiana não se mexeu. - Mãezinha, não se lembra do que o Alexander nos disse? – tirou os rublos

que poupara do emprego em Kirov e do hospital. Não era muito. So ganhava vinte rublos por semana, e entregava dez aos pais. Mas conseguira amelhar cem rublos, com os quais comprou um saco de cinco quilos de farinha por uns ultrajantes quarenta rublos (<< para que precisamos de mais farinha?>> ), quatro pacotes de fermento por dez rublos, um saco de açúcar por dezessete e um quilo de fiambre

Page 259: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

259

enlatado por trinta. Como lhe sobravam três rublos, perguntou o que podia comprar com eles. O empregado deu-lhe à escolha entre uma caixa de fósforos, quinhentos gramas de chá ou pão velho que poderia torrar para fazer tostas.

Tatiana ponderou cuidadosamente e optou pelo pão. Passou o resto do sábado a cortar o pão em pedaços que torrava no forno,

enquanto a mãe, o pai e até Dasha se riam dela. - Gastou três rublos em pão velho e agora está a torrá-lo. Se pensa que vamos

comê-lo, está muito enganada! – Ignorando-os, só pensava nas palavras de Alexander na loja Voentorg.<< Compra a comida como se nunca mais fosses vê-la>>.

Nessa noite, Alexander ouviu a historia e disse: - Irina Fedorovna, devia ter gasto até ao ultimo copeque dos seus novecentos

rublos comprando pão velho. – Depois de uma pausa: - Como a Tania. <<Obrigada, Alexander >>, pensou Tatiana, que se encontrava do outro lado

da sala cheia de gente. Havia vários dias que não tocava nele. Esforçava-se tanto para se manter longe, como ele lhe pedira.

A mãe não lhe ligou: - Não fui educada para gastar dezessete rublos a comprar açúcar. Não é,

Giorgi? Giorgi já estava a dormir no sofá. Voltara a beber demais. - Não é, mãezinha? A Babushka Maya pintava: - Talvez, Irina. Mas... e se o Alexander tiver razão?

Page 260: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

260

5

Os Alemães eram a pontualidade em pessoa. As sirenes desligavam-se e o metrônomo do radio marcava duzentas batidas por minuto todas as tardes às cinco.

A assustadora monotonia das bombas caindo sobre Leninegrado era ultrapassada apenas pela assustadora monotonia das mentiras que Tatiana vivia no seu intimo, pelo medo constante por Alexander e pela frustração com o pai, tão afastado de tudo que já nem sequer sabia que ainda era setembro.

- Impossível – disse uma tarde ao ouvir a sirene. – Parece que já nos bombardeiam há mil dias.

- Só há onze, paizinho – replicou Tatiana em voz serena. – Só há onze. A sua frustração não era só com ele. A mãe refugiava-se no trabalho. A

Babushka pintava como se não houvesse guerra. Marina só se preocupava com a mãe... além disso, não estava muito interessada em falar com a prima. E Dasha... bem, Dasha só pensava em Alexander.

O Deda e a Babushka estavam em segurança em Molotov. Acabava de receber uma carta deles. Pasha desaparecera para sempre.

Dimitri andava pensativo e infeliz, e bebia muito das poucas vezes que aparecia. Uma noite, chegara a empurrar Tatiana contra uma parede. Não sabia o que aconteceria se Dasha não tivesse entrado.

O seu único conforto eram os amigos do telhado e Alexander. Quando lá subiu, a pequena Mariska saltitava de um lado para outro, como de

costume, esperando que aparecessem mais aviões e que caíssem mais bombas. A criança semi-abadonada de sete anos corria alegremente, acenando para as formações de aviões.

- Aqui! Aqui! – gritava sem parar, com o cabelo encaracolado saltando ao rimo dela.

Anton encontrava-se a postos, pronto a extinguir as bombas incendiarias com o capacete de cimento na ponta do pau.

- Anton – disse Tatiana, deixando-se cair no chão de alcatrão e exibindo uma tosta -, e se a bomba cair em cima de ti? Tens o capacete no estúpido do pau, mas que vais fazer se a bomba te cair em cima? Põe-no na cabeça e senta-te ao meu lado.

Ele não o fez e continuou a falar agitadamente das bombas de fragmentação, que desfaziam uma pessoa antes de ela poder levantar a cabeça para ver o que estava a acontecer. A rapariga quase juraria que Anton gostaria de ver alguém desfeito.

Page 261: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

261

Mastigando a tosta, observou com uma expressão ao mesmo tempo divertida e fatigada a figura impossivelmente pequena de Mariska, que correu para ela, perguntando:

- Ei, Taneschka, o que estás a comer? - Uma tosta. – Metendo a mão no bolso: - Queres? A pequena assentiu fervorosamente, arrebatou-lhe a tosta da mão, engoliu-a

inteira num abrir e fechar de olhos e inquiriu: - Tens mais? De repente, Tatiana viu em Mariska qualquer coisa que nunca notara antes. Levantando-se, deu a mão à pequena. -Onde estão a tua mãe e teu pai? – indagou, encaminhando-se com ela para

as escadas. - A dormir, acho – respondeu ela, encolhendo os ombros. Anton gritou-lhe: -Não, Tania. Deixa-a. Mas ela levou a criança par ao quarto. - Mãezinha, Papochka, olhem, têm aqui uma visita – anunciou Mariska. A mãe e o Papochka não se mexeram na única cama do quarto. Ambos

estavam deitados de barriga para baixo, nas almofadas nojentas. O quarto cheirava à retrete comunitária.

- Anda lá para cima comigo, Mariska. Vou arranjar-te alguma coisa para comeres.

Na manhã seguinte às seis e meia, Tatiana, já lavada e vestida, parou ao lado da irmã adormecida.

- Dashenka, posso sugerir-te que não faças da sirene das oito horas o teu despertador pessoal? Levanta-te imediatamente e anda comigo à loja.

Dasha mal se mexeu. - Porque, Tania? Estás a sair-te tão bem sozinha. - Vá – Insistiu, destapando Maria e Dasha. – Venham ver o espetáculo matinal. As raparigas não se mexeram. - Ou então podem assistir o acontecimento principal todos os dias às cinco –

tornou ela, voltando a tapá-las. Nem os olhos de Dasha nem os de Marina se abriram. - E se falharem esse, tentem o da noite – rematou, saindo do quarto. – É às

nove em ponto. <<Talvez o Alexander esteja em Leninegrado>>, pensou. <<Talvez apareça

hoje à noite e nem fale como se ainda estivesse vivo, como se eu ainda estivesse viva. Alguém pode falar comigo? Já não me sinto perto de ninguém; toda a agente desapareceu dentro de si própria, como se não existisse. Aparece, Alexander >>, disse com os seus botões, apertando o casaco e descendo vivamente a Nekrasova em direção à loja. <<Aparece e lembra-me que ainda estou viva>>.

Page 262: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

262

Nessa noite, Alexander apareceu mesmo entre os ataques aéreos, levando com ele a sua ração de costume. Tatiana foi à cozinha fazer arroz com feijão para o jantar. Ele seguiu-a e o coração bateu-lhe com mais força, mas depois entraram Zhanna Sakova, Petr Petrov e depois Dasha e Marina. E Alexander saiu da cozinha.

Durante o jantar, toda a família se encontrava em volta da mesa exceto o pai, embriagado no quarto ao lado. Tatiana podia falar com Alexander mas, com tantos olhos e rostos, não lhe era permitido contemplá-lo. Olhava para a comida ou para a mãe. Não podia fitar Dasha, nem Marina nem a Babushka, que parecia perceber sempre tudo.

Falando da má preparação do exercito soviético para defender o Neva dos Alemães, Alexander disse:

- Há dois dias, o meu batalhão subiu o Neva do outro lado de Shlisselburg para cavar trincheiras. Levamos alguns morteiros, mas estava tudo uma desorganização. Nem sequer se dava pela presença da... – baixou a voz - ... Onipresente NKVD.

- Também não podem estar ao mesmo tempo em toda a parte – interrompeu Tatiana. – Têm muitas coisas a seu cargo: as tropas das fronteiras, os guardas da fabrica de Kirov, as milícias de rua...

- A Gestapo – rematou Alexander. – Oh, e não esqueçamos os ministros da Administração Interna e os guardiões da segurança interna.

Todos esboçaram um sorriso. Tatiana sorriu para a comida. Tinha de lhe tocar para o consolar do passado e o trazer para o presente. Mas não podia: tanto a sua família como Dimitri estavam à volta da mesa. No entanto, Alexander precisava que lhe tocasse. Pois ia fazê-lo, e queria lá saber dos outros, que não precisavam dela para nada.

Pôs-se de pé e começou a levantar a mesa. Dando a volta para lhe tirar o prato, encostou a anca ao cotovelo dele por um momento e seguiu rapidamente em frente.

- Sabes, Tania, acho que se os Alemães tivessem atacado em condições nas primeiras duas semanas de setembro, teriam o sucesso garantido – continuou ele.

- Não tínhamos tanques nem armas em posição. Os únicos exércitos que possuíamos em frente de Shlisselburg, do outro lado do rio, eram uns últimos homens da forca da Carélia e alguns Voluntários do Povo, muito mal armados. – Depois de uma pausa: - Os Voluntários do Povo de Luga estavam bem treinados, Tania? Como sabemos, nem toda a gente tem a presença de espírito dela durante um bombardeamento.

- Para que estás a conversar com ela sobre a guerra? – interrompeu Dasha. - Não vês que não está nada interessada? Fala-lhe de Pushkin ou da cozinha.

Ela agora gosta de cozinhar. Achas que a guerra ainda nem começou. -Está bem. Queres falar de Pushkin, Tania? Ela perguntou, muito agitada:

Page 263: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

263

- Espera! Por falar em cozinhar... ou antes, em alimentos... onde achas que há uma loja onde eu possa ir em segurança? Seja onde for que vá, sou bombardeada. É ... incomodo.

Alexander riu-se: -É uma maneira de ver as coisas. Não vás a lado nenhum. Durante os

bombardeamentos, fica no abrigo. Ninguém disse nada. - A minha pergunta é: de onde atiram eles contra mim? – continuou

rapidamente, de modo a não deixar Dasha dizer fosse o que fosse. - Do monte Pulkovo. Nem sequer precisam dos aviões. Já reparaste que agora

há relativamente menos? - Não. Ontem à noite eram cerca de cem. - De noite sim, porque é mais difícil para nós atingi-los e eles não querem

desperdiçar o seu precioso poder aéreo. Por isso, instalam-se muito confortavelmente no monte Pulkovo e atiram-nos bombas que chegam a Smolny. Sabes onde é Pulkovo, não sabes, Tania? Fica junto a Kirov.

Ela corou... para os pratos que tinha na mão. Alexander tinha de parar com aquilo. <<Não, não pares. Preciso das tuas palavras para continuar a respirar>>. Quando regressou da cozinha, a mãe disse:

- Graças a Deus que já não trabalhas em Kirov, Tanechka. Alexander sugeriu-lhe que não fosse fazer as compras às Suvorovsky e ela

disse-lhe que não ia. - Vou a uma loja na esquina da Fontanka com a Nekrasova – informou. - Chego lá todas as manhãs às sete em ponto. Não é verdade. Dasha? - Sei lá! Nunca vou. - Se puderes evitar, não ande em ruas com a direção norte-sul – repetiu

Alexander, olhando-a de relance. Dasha soltou uma gargalhada. - Mas, querido, isso são metade das ruas de Leninegrado! - Como é que sabes? – perguntou Tatiana serenamente. – Só sais quando os

bombardeamentos acabam. - Dasha passou os braços à volta do pescoço de Alexander e deitou a língua de

fora à irmã: -Porque tenho juízo. - E tu, Tania? – perguntou ele calmamente, afastando os braços de Dasha do

rosto. – Só sais quando os bombardeamentos param? - Estás a brincar? – interveio Dasha. – Ela não tem juízo nenhum. Pergunta-lhe

quantos vezes vai para o abrigo. Fez-se silencio na sala cheia de gente. Os olhos dele faiscaram. - Oh, claro que vou – disse Tatiana, pouco à vontade. Encolhendo os ombros: -

Ontem fiquei sentada debaixo das escadas.

Page 264: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

264

- Durante três minutos. Alexander, ela não consegue ficar quieta. -Mas não tem ido para o telhado, pois não? Ninguém disse nada. A fim de evitar seu olhar, Tatiana fingiu-se muito

ocupada com a maquina de costura. - Posso andar na Nevsky Prospekt? – perguntou, sem levantar a cabeça. - Nunca. É onde os bombardeamentos são piores. Mas os Alemães andam

com cuidado para não atingirem o Hotel Astoria. Sabes onde é, Tania? Mesmo ao pé de Santo Isaac.

Ficou vermelha que nem um tomate. - Não interessa – apressou-se ele a continuar. – Hitler reservou a Astoria para

celebrar a vitoria, quando marchar na Nevsky com a sua bandeira. Evitem a Nevsky. E nunca andem do lado norte de uma rua com a direção leste-oeste. Perceberam todos?

Tatiana calou-se. - A celebração no Astoria está marcada para quando? – perguntou por fim. - Outubro. Pensa que os habitantes de Leninegrado já terão abandonado a

cidade em outubro. Mas garanto-vos que Hitler vai chegar atrasado. - Que faríamos sem ti, Alexander? – comentou Marina. Dando-lhe um abraço apertado, Dasha interveio: - Para com isso. Vai atirar-te ao soldado da Tania. - Podes ir, Marina – murmurou Tatiana, lançando um olhar a Dimitri, estirado

no sofá, quase inconsciente. - O que achas, Tania? Vou atirar-me ao teu soldado? – indagou Marina. <<Tens de fazer melhor, Alexander>>, pensou Tatiana. <<Ainda não chega>>. Quando estava a levantar a mesa depois do chá, Dimitri acordou e, meio

estremunhado, puxou-a para cima de si. - Tanechaka – sussurrou. – Taneschka... Ela debateu-se para se levantar, mas ele prendeu-a. - Tania, quando, quando? – Tresandava a vodca. – Não agüento esperar mais. - Vá, Dima, larga-me.- A respiração acelerou-se-lhe. – Tenho um trapo

molhado na mão. - Francamente, Dima! – exclamou a mãe. – Parece-me que ele anda a beber

demais, Tania. Tatiana ouviu a voz de Alexander mesmo atrás de si: -É verdade. – afastando os braços de Dimitri, ajudou-a a levantar-se – Não há

duvida de que anda a beber demais. – A sua mãe permaneceu nela o tempo suficiente para a apertar e a largar.

- O que se passa com ele, Tania? – inquiriu a mãe. – Anda estranho. Resmunga muito, fala pouco e não é nada amável contigo.

Sem fôlego, a jovem observou Dimitri e disse à mãe: - Quanto mais próximo se sente da morte, menos interessado está em mim. –

Girou nos calcanhares e encaminhou-se para a cozinha sem mirar Alexander, mas

Page 265: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

265

percebendo o olhar de Marina e da Babushka. Dasha estava no quarto ao lado, a tratar do pai.

Page 266: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

266

6

Tatiana pensava que agüentava. Pensava que agüentava tudo. Mas uma noite, duas semanas depois do incêndio dos armazéns Badayev, quando chegaram todos a casa e em vez de fazerem o jantar foram sentar-se para o abrigo antiaéreo, esfomeados e cansados, Dasha deixou-se cair ao lado dela e exclamou em vos agitada:

- Sabes uma coisa? Eu e o Alexander vamos casar! As candeias de querosene davam demasiada luz para esconder a explosão que

se deu dentro de Tatiana. Maria prendeu a respiração, mas Dasha, impermeável aos sentimentos da irmã, continuou a sorrir enquanto as bombas caiam lá fora.

- Que bom, Dasha! Parabéns – felicitou a mãe. – Finalmente, uma das minhas filhas vai ter uma família. Quando?

Sentado ao seu lado, o pai tartamudeou alguma coisa. - Tania! Ouviste? Vou casar! - Já ouvi, Dasha. – Virando-se, deu um olhar de compreensão e compaixão de

Marina. Não sabia o que era pior. Voltou-se outra vez para a irmã, que sorria de felicidade: - Parabéns. Deve estar muito feliz.

- Feliz? Radiante! Imaginas? Vou ser a Dasha Belova. – Soltando uma risadinha: - logo que ele tiver uns dias de folga, iremos ao registro.

- Não estás preocupada? - Não – disse Dasha, fazendo um gesto de indiferença com o braço. –

Preocupada com quê? O Alexander não está. Vamos conseguir. - Ainda bem que tens tanta certeza. - O que foi? – Passou o braço em volta dos ombros de Tatiana, que não sabia

como conseguia continuar sentada. – Não vou expulsar-te da cama. A Babushka dispensa-nos o quarto por uns dias. – Beijando-a: - Casada, Tania! Acreditas?

- Não. - Eu sei! Exclamou ela, muito agitada. – Eu também mal acredito. - Estamos em guerra. Ele pode morrer, Dasha. - Eu sei. Achas que não sei? Não sejas agourenta. - Não sou – disse Tatiana a tremer. Agourenta? Fechou os olhos. - Graças a Deus, saiu finalmente de Dubrovka. Agora está perto de

Shlisselburg, onde é mais calmo. – Sorrindo: - Sabes, fecho os olhos, tento senti-lo e sei que ainda está vivo. – Acrescentou com orgulho: - Tenho um sexto sentido apurado, sabes?

Marina tossiu. Abrindo os olhos, Tatiana fez uma expressão tão zangada que o ataque de tosse da prima acabou instantaneamente.

Page 267: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

267

- O que pretendes, Dasha? – murmurou. – Queres ser uma viúva em vez da namorada de um soldado morto?

- Tânia! Calou-se. De onde lhe viria algum conforto? Não da noite, da mãe ou do pai,

do Deda e da Babushka, que estavam longe, da Babushka Maya, velha demais para ligar fosse o que fosse, de Marina, que sabia demais sem saber nada, de Dimitri, atolado no seu inferno, nem certamente de Alexander, impossível, enlouquecedor, imperdoável Alexander.

A necessidade de ser consolada era tão grande que não conseguia continuar sentada e saiu do abrigo a meio do ataque, ouvindo a voz perplexa de Dasha atrás de si:

- Que lhe deu? Como passou a noite ao lado da parede, de Marina e de Dasha? Como

conseguiu? Não sabia. Foi a pior noite de sua vida. Na manha seguinte, levantou-se tarde, e em vez de ir à loja de costume na

esquina da Fontanka com a Nekrasova, encaminhou-se para a Velha Nevsky, perto da sua antiga escola. Ouvira dizer que tinha bom pão. A sirene antiaérea tocou, mas nem se deu ao trabalho de se abrigar.

Caminhava de olhos postos no chão. Os assobios penetrantes das bombas transportados pelo vento, o som das explosões e dos gritos distantes não eram nada comparados com a dor lancinante que sentia.

Percebeu de repente que a guerra já não a aterrorizava. O reconhecimento da ausência do medo era uma novidade para si. O intrépido da família sempre fora Pasha. Dasha era confiante. O Deda, brutalmente honesto, o pai rigoroso... e bêbado... a mãe mandona e a Babushka Anna arrogante. Tatiana carregava aos ombros magros as inseguranças escondidas de toda a gente. Inseguranças, sim.

Timidez, sim. Os seus medos, sim. Mas não os dela. Não tinha medo da guerra, que era como um raio caindo mil vezes por dia. Não, não era a guerra que a aterrorizava e sim o caos que lhe ia ao coração despedaçado.

Foi trabalhar. Ao bater das cinco horas, continuou a trabalhar. Ao bater das seis e das sete também. Às oito, estava a lavar o chão da sala das enfermeiras quando viu Marina empurrar as portas e encaminhar-se na sua direção. Não tinha vontade nenhuma de ver a prima.

- O que estás a fazer, Tania? Estão todos preocupadíssimos contigo. Pensam que morreste.

- Mas não morri. Estou aqui a lavar o chão. - Já devias ter saído há três horas. Porque não foste para casa? - Estou a lavar o chão , Marina. Não vês? Sai daí. Vais ficar com os sapatos

molhados. – Não levantou os olhos da esfregona. - Tania, está toda a gente à espera. O Dimitri e o Alexander também. Não

sejas egoísta. Não podem festejar o noivado da Dasha assim preocupados contigo.

Page 268: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

268

- Pronto – volveu-lhe entre dentes, empurrando a esfregona para a frente e para trás. – Já me encontraste. Estou aqui. Diz-lhes para não se preocuparem e vai festejar. Eu tenho trabalho. Estou de turno. Chego a casa mais tarde.

- Tania – começou Marina -, anda, querida. Sei que é difícil, mas tens de ir e fazer um brinde à tua irmã. Não achas?

- Estou a trabalhar! – berrou Tatiana. – Deixas-me em paz? – Com o olhar nevoado pelas lagrimas, baixou de novo a cabeça para a esfregona encharcada.

- Por favor, Tania. - Deixe-me em paz! – repetiu. – Por favor. Marina partiu com relutância. Tatiana lavou a sala das enfermeiras, o corredor, as casas de banho e os

quartos de alguns doentes. Depois, um medico pediu-lhe para o ajudar a tratar de cinco vitimas dos bombardeamentos, e foi com ele. Quatro delas morreram no espaço de uma hora. Sentou-se com a ultima, um velhinho de cerca de oitenta anos, ate também ele falecer. Morreu segurando-lhe a mão, depois de se ter virado para ela e sorrir.

Quando chegou a casa, Alexander e Dimitri já se tinham ido embora havia muito tempo e toda a gente dormia. Tatiana adormeceu no pequeno sofá da entrada, acordou antes do resto da família, lavou-se e foi fazer compras à Velha Nevsky.

Ao regressar depois do trabalho, o pai estava com um ataque de fúria. Ao principio, nem percebeu o que o zangava tanto e nem se deu ao trabalho de perguntar. Mas quando ele entrou aos berros pelo quarto, concluiu que devia ser alguma coisa com ela.

- Que fiz agora? – indagou com ar cansado. Na realidade, tanto lhe fazia. Tinha a voz entaramelada; a mãe, que também estava zangada mas sóbria,

surgiu vinda da entrada e explicou-lhe que na noite anterior, quando ela estava sabe-se lá onde enquanto a família festejava o casamento próximo de Dasha, uma miudinha chamada Mariska aparecera a pedir comida.

- E disse que há uma semana que alguém de nome Tatiana lhe dá de comer! – gritou a mãe. – Uma semana com a nossa comida!

- Ah! – Olhou para os dois: - É que os pais de Mariska passam a vida bêbados e não lhe dão de comer. Ela tinha fome e eu dei-lhe comida. Mãezinha, pensava que tínhamos muita. – Foi à cozinha buscar uma faca. O pai e a mãe seguiram-na aos berros.

No dia seguinte, Alexander e Dimitri apareceram depois do jantar, convidando as namoradas para um passeio antes do ataque aéreo e do recolher obrigatório. Tatiana não levantou o olhar para Dimitri nem Dasha, e muito menos para Alexander.

- O que te aconteceu ontem? – perguntou Dimitri – Ficamos imenso tempo a tua espera.

Page 269: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

269

- Estive a trabalhar – respondeu ela, tirando o casaco do prego da parede e passando por Alexander com os olhos posto no chão.

A calma envolvia a cidade. Percorreram em paz a Suvorovsky, na direção do Parque Tauride. Uma paz relativa, pois um prédio de esquina ruíra na Oitavo Soviete e os estilhaços de vidro pareciam pedaços de gelo cobrindo a rua.

Tatiana e Dimitri seguiam à frente de Alexander e Dasha. Dimitri perguntou-lhe porque caminhava de olhos postos no chão e ela encolheu os ombros e não disse nada. O cabelo louro, já crescidinho, tapava-lhe metade do rosto.

- Não é fantástico isto do Alexander e da Dasha – indagou ele, passando-lhe o braço à volta dos ombros.

- É – respondeu com frieza e em voz alta. – É fantástico isto do Alexander e da Dasha. – Nem levantou a cabeça nem olhou para trás. Sentia os olhos de Alexander nas suas costas e não sabia como ia continuar a andar em linha reta.

Soltando uma risadinha, Dasha disse: - Mandei uma carta ao Deda e à Babushka. Vão ficar contentes! Sempre

gostaram de ti, Alexander. – Ouviram-se alguns barulhinhos nas costas de Tatiana, que tropeçou no passeio. Dimitri agarrou-lhe o braço. – A Tania anda um bocado melancólica, Dima. Acho que também quer que a peças em casamento.

Ele apertou-lhe o braço: - Queres, Taneshka? O que dizes? Queres que te peça para casares comigo? Não respondeu. Pararam num cruzamento para deixar passar um elétrico. - Querem ouvir uma anedota? – perguntou Tatiana, continuando antes que

alguém tivesse tempo de falar: - <<Querida, quando nos casarmos, partilharei contigo os teus problemas e preocupações>>, diz o homem. Não, <<quando nos casarmos >>, responde o homem.

- Oh, essa é boa Tania – aplaudiu Dasha. Tatiana riu sem alegria e, ao rir, o cabelo voou-lhe para trás pondo a

descoberto uma nódoa negra acima da sobrancelha. Dimitri soltou uma exclamação. Ela baixou a cabeça, voltando a alisar o cabelo para cima do rosto.

- Que foi, Dima? – perguntou Alexander. Ele não respondeu, mas Alexander adiantou-se e parou à frente dela. Tatiana

baixou os olhos para o passeio. - Não é nada – murmurou. - Podes olhar para cima, por favor? – pediu ele. Teve vontade de levantar a cabeça e gritar. Mas com Dasha de um lado e

Dimitri do outro, não podia contemplar o rosto que amava. Não podia. O melhor que soube fazer foi repetir serenamente que não era nada.

- Ah, Tania. – Alexander empalideceu com o esforço de se manter impassível. – Ah, Tania.

- A culpa é toda dela – esclareceu Dasha, dando –lhe o braço. – Sabia perfeitamente que o paizinho estava embriagado e resolveu responder-lhe. Ele berrou-lhe por ela andar a dar de comer a uma miudinha...

Page 270: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

270

-Berrou comigo por causa da Mariska, mas bateu-me por não lhe lavar as camisas... – corrigiu Tatiana. – Que era tarefa sua.

- Como te abriu a sobrancelha assim? – perguntou Dimitri, preocupado. - Aí a culpa foi minha. Desequilibrei-me e caí. A gaveta da cozinha estava

aberta. Não é grave. - Ah, Tania – repetiu Alexander. - O que foi? – ergueu os olhos lívidos e tristes. Alexander baixou a cabeça. - Olha lá – defendeu-se Dasha. – Nem liguei ao que o paizinho disse. Estava

bêbado. Não ia agora pôr-me a discutir com ele por nada. - O nada sou eu? – indignou-se Tatiana. – Não podias dizer. <<Paizinho, eu é

que devia ter lavado as camisas e peço desculpa por não o ter feito?>> - Para que? Estava bêbado! - Ele está sempre bêbado! – gritou. – Sempre! E estamos em guerra, Dasha!

Não achas que já temos problemas suficientes? – Respirando pesadamente: - acredita que já temos problemas suficientes. – Fitou a irmã: - Deixa. Vamos atravessar.

Ouvia a respiração furiosa de Alexander nas suas costas. - Vamos embora, Dasha – disse de repente, puxando-lhe o braço e afastando-

se. Começou a correr com a Dasha ao seu lado. Tatiana e Dimitri ficaram sozinhos na Suvorovsky. - E como tens passado, Dima? – indagou ela, tentando sorrir. – Ouvi dizer que

os Alemães estão completamente entricheirados. Os combates pararam? - Não me digas que queres falar dos combates, Tania. -Quero, quero. É verdade que o Hitler fez circular uma diretiva ordenando aos

seus homens que varressem Leninegrado do mapa? Dimitri encolheu os ombros: - Ouvi dizer... – Calou-se, percebendo de repente. – Sabes que mais, Dima? É

melhor voltarmos para casa. - Sabes que mais, Tatiana? Acho que vou voltar para o quartel. Não te

importas? Tenho... – fez uma pausa - .... umas coisas para fazer. Está bem? - Claro, Dima – retorquiu ela, fitando-o junto dela, numa proximidade inútil,

distante e vã. Seria possível alguém interessá-lo menos? Achava que não. - Não sei quando virei outra vez. Disseram-me que o meu pelotão vai ser

mandado para o outro lado do rio. Apareço quando regressar. Se regressar. Se puder, escrevo.

- Claro. – Despediu-se dele à esquina da rua e ficou a observá-lo afastando-se. Não lhe parecia que fosse voltar a vê-lo tão cedo.

Foi para casa sozinha. Quando já estava perto do seu prédio, viu Alexander saindo a correr. Encontrava-se a uns dez metros dele. Ele parou por um momento para recuperar o fôlego e viu-a imóvel no passeio. O autodomínio de Tatiana era tão

Page 271: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

271

frágil que sabia que não seria capaz de enfrentá-lo. Girou por isso nos calcanhares e começou a caminhar depressa na direção oposta.

- Tania! – ouviu-o chamar na sua costa. Dali a bocado, estava à sua frente. Ela recuou e levantou os braços. - Deixa-me em paz. – pediu em voz fraca. – Deixa-me em paz. -Onde tens andado? – perguntou serenamente. – Há três dias que vou à loja

da esquina da Fontanka e da Nekrasova para tentar apanhar-te. - Pois apanhaste-me bem – observou ela. - Olha para ti, Tania. Como pudeste deixá-lo fazer-te isso? -É o que me pergunto uma e outra vez. E não só sobre ele... Alexander pestanejou: - Tania... - Não quero falar contigo! – gritou. Recuando outro passo, acrescentou muito

mais serenamente, com os lábios a tremer e os olhos marejados de lágrimas: - Nunca mais quero falar contigo. - Tania, posso explicar...? - Não. - Ouve-me um... - Não... - Tania... - Não! – Aproximou-se dele com os dentes rangendo. Nem acredito, mas

estava com vontade de lhe bater. Cerrou os punhos. Tinha vontade de bater Alexandre.

Ele fitou-lhe os punhos, olhou para ela e protestou com incredulidade. - Mas prometeu que me perdoaria... - Que perdoaria a tua expressão corajosa e indiferente, Alexander! – sibilou

entre dentes, com as lágrimas deslizando pelo rosto. Gemendo de dor. – E não teu coração corajoso e indiferente.

Antes que ele tivesse tempo de lhe responder ou a travar, correu para porta e galgou os três lances de escadas até a casa.

Encontrou o pai caído no chão da entrada, embriagado, mas também inconsciente. A mãe e Dasha choravam no quarto. “Oh meu Deus!”, pensou Tatiana, limpando a cara. “Será que não tem fim?”

- Tania, que atrapalhada! – cochichou Marina. – Não acredito no que o Alexander gritou quando entrou por aqui dentro. Olha o que fez à parede! – Agitada apontou para o estuque partido da entrada. – Disse ao teu pai que, ao beber assim, está a voltar as costas à família exatamente quando ela precisa mais dele e que a sua obrigação é proteger-vos e não fazer-vos mal. Parecia um tanque! – A rapariga estava muito impressionada. – “Para onde quer que vá se os nazis a bombardeiam lá fora e o próprio pai a tentar matar aqui dentro?” berrou. Tania estava imparável! – exclamou. – Disse à tua mãe para internar o teu pai no hospital. “A senhora é mãe...por amor de Deus, salve os seus filhos!” gritou-lhe. – Tatiana baixou o olhar. –

Page 272: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

272

“O teu pai estava muito embriagado e tentou bater-lhe. O Alexander agarrou-o pelos ombros, atirou-o contra a parede e saiu a praguejar. Não sei como não o matou. Acreditas?”.

- Acredito – murmurou ela, Alexander carregava o pai com ele para onde quer que fosse. Carregava o pai, a mãe e a si próprio. Como ela era a única pessoa do mundo em quem confiava, também Tatiana transportava essa cruz. Não muito, mas o suficiente para se lembrar dele naquela altura. Por um momento, que no entanto lhe bastou, deixou de ter pena de si e lamentou Alexander. Ao fazê-lo, sentiu-se menos zangada com ele.

- Desmaiou sem mais nem menos? – perguntou, sentando- no sofá examinando o pai.

- Não, acho que desfaleceu de medo? – Ouvistes, Tania? O alexander parecia que ia mata-lo!

- Já ouvi. - Oh, Tania, que vai fazer?. – indagou Marina, baixando a voz no corredor a

dois metros de um quarto e a três do outro. - Do que está falando? Para já, vou tentar ajuda-lo. Como o pai continuava inconsciente, as Metanov começaram a preocupar-se.

A mãe admitiu que talvez fosse melhor interna-lo durante uns dias, até ele estar sóbrio. Tatiana achou boa ideia. Havia já algum tempo que andava permanentemente embriagado.

Foi por isso que pediu a Petr Petrov que ajudasse a leva-lo para enfermaria dos alcoólicos do Hospital Suvorovsky. No Grechesky, onde trabalhava, não havia camas disponíveis.

As raparigas e Petr Petrov levaram-no então para o hospital (que ficava do lado norte de uma rua com a direção leste – oeste), onde foi admitido num quarto grande com mais quatro alcoólicos. Tatiana pediu uma esponja e água, lavou o rosto do pai e sentou-se, segurando a mão flácida.

- Lamento muito, paizinho- disse. Ficou ainda mais uns minutos, apertando-lhe a mão de vez em quando e

perguntando: - Está ouvindo, paizinho? Por fim, ele gemeu, dando-lhe a entender que talvez estivesse e abriu os

olhos desfocados. - Estou aqui, paizinho. Mesmo aqui. Olhe para mim. A cabeça dele rolou na almofada. Tatiana continuou a segurar-lhe na mão. - Vai ficar no hospital só uns dias. Até estar sóbrio. Depois volta para casa. Vai

correr tudo bem. – Sentiu-o apertar-lhe a mão. – Lamento muito não ter conseguido trazer o Pasha. Mas, sabe, nós ainda estamos aqui.

Viu-lhe lágrimas nos olhos. O pai abriu a boca, apertou-lhe a mão e sussurrou em voz rouca:

- A culpa é minha... Tatiana depôs-lhe um beijo na cabeça e disse:

Page 273: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

273

- Não, querido paizinho. Não é. Estamos em guerra. Mas tem de se pôr bom. - Ele fechou os olhos e ela foi embora. Em casa, Dasha zangou-se com ela e gritou-lhe, enquanto Marina tentava

acalmar os ânimos. Sentada no sofá do quarto, Tatiana calava-se e imaginava-se tranquilamente instalada entre Deda e a Babushka. A determinada altura, Dasha ficou tão furiosa que se inclinou para lhe bater, mas Marina impediu-a:

- Isso é ridículo, Dasha! Para! Ela libertou-se com um safanão e a prima exclamou: Para! Não vês que já lhe fizeram mal que chegasse? Tatiana observou Marina com doçura, lançou a Dasha um olhar frio, levantou-

se com um ar fatigado e fez menção de se dirigir ao outro quarto. Precisava de se deitar e de nunca mais ter um dia como aquele. Ou como o anterior. Ou como o anterior a esse. Dasha agarrou-a. Ela debateu-se e ergueu o rosto a irmã:

Dasha, daqui a pouco perco a paciência. Deixa-me em paz, sim? Olhava sem vacilar para a irmã, que largou e a deixou ir. Mais tarde, já na cama, Marina afogou-lhe as costas e murmurou: - Esta tudo bem, Tania. Vai ficar tudo bem. - E como sabe? Somos bombardeados todos os dias, há um bloqueio, daqui a

pouco não teremos que comer, o paizinho não consegue deixar de beber... - Não é disso que estou falando. - Então não sei do que é. Mas antes que me diga, cala-te. Dasha não estava na cama. Dormiu virada para a parede, com a mão no O Cavaleiro de Bronze e a

sobrancelha doendo. Mas de manhã já estava melhor. Pôs tintura de iodo no golpe e foi trabalhar com o rosto acastanhado devido ao antisséptico.

À hora do almoço, saiu do hospital e caminhou devagar até ao Campo de Marte, agora irreconhecível devido às trincheiras e aos nichos de cimento para as armas de artilharia erguidos a toda a volta. O campo em si estava minado; não podia pisar. Os bancos haviam sido todos retirados. Tatiana ficou parada a várias centenas de metros do arco que levava ao Quartel Pavlov, a observar os soldados que saíam fumando e rindo alto.

Deixou- se ficar durante meia hora e regressou depois ao hospital, pensando: <<Nem as bombas nem o meu coração despedaçado podem tirar-me a lembrança de quando caminhei descalça contigo em junho, com Campo de Marte.>>

Page 274: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

274

7

Nessa noite, durante o bombardeamento a seguir ao jantar, o Hospital Suvorosky, onde estava o pai foi atingido.

Caíram três bombas no hospital, que ardeu durante a noite, apesar dos esforços dos bombeiros. O edifício não era feito de tijolo, que resistiria ao fogo, mas de taipa revestida de lama, material de construção do início do século XVIII, muito usado em Leninegrado. O prédio implodiu e pegou fogo. As poucas pessoas capazes de andar saltaram pelas janelas e caíram aos gritos.

O pai, com a idade de quarenta e três anos, nascido no século anterior, roído pelo remorso e sem conseguir deixar de beber, nem se levantou da cama.

Dasha, Tatiana, Marina e a mãe desceram a Suvorosky a correr. Em horrorizada impotência, observaram o inferno conquistando bombeiros, mangueiros o edifício e a noite.

As raparigas ajudaram a atirar inúteis baldes de água para as janelas do rés do chão e tentaram abafar o fogo com a areia que se foi buscar aos telhados dos prédios vizinhos, mas foi tudo em vão. Tatiana ficou até de manhã a envolver corpos carbonizados em lençóis molhados fornecidos pelo Hospital Grechesky. Dasha e Marina regressaram a casa com a mãe.

Só meia dúzia de pessoas conseguiu salvar-se. Os bombeiros não encontraram o corpo do pai nem, de resto, perderem tempo a procurá-lo. Não iam corpos do hospital. Apagando as últimas chamas, um deles disse:

- Olha o prédio, minha menina. Achas que podemos tirar alguma coisas dali?. Esta tudo em cinzas. Quando arrefecer, tocas-lhe e desfaz-se em pó preto – Dando-lhe uma palmadinha distraída no ombro: - É a vida. Era o teu pai? Raios partam os Alemães. O camarada Estaline tem razão. Não sei como, mas hão de pagá-las caro!

Caminhando lentamente para casa de madrugada, recordou a altura em que ficara enterrada debaixo da estação de Luga, sentindo a vida esvaindo-se das três pessoas para baixo das quais rastejara. Esperava que o pai não estivesse acordado nem sofrido.

Quando chegou, pegou nas cadernetas de racionamento da família (menos na do paizinho) e saiu para comprar pão.

Se a vida nos dois quartos comunitários já era difícil antes da morte do pai, tornou-se quase impossível depois.

A mãe, inconsolável, não lhe falava. Dasha, zangada, não lhe falava. Tatiana não tinha bem a certeza se a irmã estava zangada por causa do pai ou

Alexander, mas como ela não lhe falava não havia maneira de saber.

Page 275: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

275

Marina ia todos os dias visitar a mãe a Vyborg e continuava a erguer para Tatiana um olhar cheio de compreensão.

E a Babushka pintava. Pintou uma torta de maçã que até lhe fez crescer água na boca.

Uns dias depois da morte do pai, Dasha pediu à irmã que fosse com ela ao quartel contar a Alexander o que aconteceu e Tatiana arrastou Marina consigo para lhe dar forças. Queria vê-lo, mas...havia tão pouco a dizer! Ou haveria demasiado a dizer? Não sabia, não conseguia perceber sem a ajuda dele e tinha receio de o enfrentar.

Nem Alexander nem Dimitri se encontravam no quartel. Anatoly Marazov foi à entrada e apresentou-se.

Tatiana já ouvira Alexander falar muito dele. - Não é superior do Dimitri?– perguntou - Não, o superior dele é o sargento Kashnikov, que tem um pelotão sob o

comando, mas foram todos mandados para Tikhvin por quem tem mais poder do que eu.

- Tikhvin? Do outro lado do rio? – indagou - Sim, atravessaram o Ladoga de barco. Não há homens que cheguem em

Tikhvin. - E o Alexander também? – informou-se Tatiana com a respiração

entrecortada. - Não, está na Carélia – replicou Mazarov, observando-a com a curiosidade-

Então é a tal? – Sorrindo: - A tal por quem ela abandonou as outras todas? - Não é ela – interrompeu Dasha bruscamente, pondo-se ao lado da irmã.- Sou

eu. A Dasha. Não se lembra: Conhecemo-nos no Sadko no princípio de junho. - Dasha – murmurou Mazarov. Tatiana empalideceu e encostou-se mais à

parede. Marina fitou-a. Mazarov virou-se para ela: - Como é que se chama? - Tatiana. Os olhos dele faiscaram por um momento. - Conhecem-se? – inquiriu Dasha. - Não. Nunca nos tínhamos encontrado – retorquiu. - Oh, é que de repente pareceu-me que estava reconhecendo a minha irmã –

explicou ela. Mazarov desviou o olhar de Tatiana. - Não, não – disse devagar, mas nos seus olhos voltou a brilhar uma vaga

familiaridade. Encolhendo os ombros: - Eu disso ao Alexander que estiveram aqui. Vou ter com ele á Carélia daqui a uns dias.

- E por favor diga-lhe também que nosso pai morreu – pediu Dasha. Tatiana virou-se e afastou- se, puxando Mariana.

Page 276: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

276

A família estava fragmentada como terra solta. A Babushka tratava da mãe, que não saía da cama nem queria ouvir as desculpas ou os pedidos de perdão de Tatiana, que por fim desistiu.

O vazio que sentiu era maior do que ela; a culpa e a responsabilidade assaltavam-se constantemente. A culpa foi minha, a culpa não foi minha, repetia a si própria de manhã enquanto cortava o pão, pondo algum no prato e comendo em silêncio. Demorava cerca de trinta segundos a comer a sua ração. Depois, apanhava as migalhas com o indicador, virava o prato e sacudia-o para a mesa. Tudo em trinta segundos. Trinta segundos de a culpa não foi minha, a culpa não foi minha.

Com a morte do pai, ficaram sem a sua ração de meio quilo de pão por dia. A mãe meteu finalmente duzentos rublos na mão de Tatiana, mandando-a

comprar comida. A rapariga regressou com sete batatas, três cebolas, meio quilo de farinha e um quilo de pão branco, que escasseava tanto como a carne.

Além disso, continuava a ir buscar as rações diárias. Na fica, à espera, pensou uma ou duas vezes, envergonhada que se não tivessem comunicado imediatamente às autoridades a morte do pai, poderiam ter continuado a receber a sua ração até ao fim de setembro.

Pensou-se com vergonha mas não deixou de o pensar. Porque quando setembro deu lugar a outubro e a intensidade da sua dor

diminuiu mas o vazio permaneceu, Tatiana percebeu que o vazio não era mágoa e sim fome.

Page 277: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

277

A NOITE CAIU

1

O ar de Leninegrado era perpassado por uma brisa fria mesmo durante os meses quentes de verão, como se o Ártico estivesse constantemente a lembrar à cidade que o inverno e a escuridão se encontravam apenas a umas centenas de quilómetros. Havia sempre gelo no vento, até nas noites claras de julho. Mas agora que outubro chegara, agora que a cidade plana e abandonada era bombardeada de dia e se erguia estéril e silenciosa de noite, o ar não era só frio e o vento, além do Ártico, transportava uma clara sensação de desespero e impotência. Tatiana agasalhava-se com um casaco cinzento, punha na cabeça o carapuço cinzento de Pasha com proteções para os ouvidos e enrolava um velho cachecol castanho à volta do pescoço e da boca, mas não podia evitar que o nariz lhe respirasse punhais de gelo.

A ração de pão fora novamente reduzida. Tatiana, a mãe e Dasha tinham agora direito a trezentos gramas e a Babushka e Marina a duzentos cada uma. Menos de um quilo e meio para todas.

Para além do pão, as lojas não distribuíam nem vendiam nada. Não havia ovos, manteiga, pão branco, queijo, carne, de qualquer tipo, açúcar, aveia, cevada, frita e nem hortaliça. Uma vez, no início de outubro, Tatiana comprou três cebolas e fez sopa. Estava bem boa. Teria ficado melhor com mais sal, mas era preciso poupá-lo.

A família socorria-se do que tinha e todas as noites abria uma lata de fiambre, dando graças ao Deda. Mas foi preciso deixar de usar a cozinha, porque o cheiro do fiambre espalhava-se pelo apartamento comunitário e Sarkova, Slavin e os Petrov apareciam muitas vezes, parando perto do fogão e perguntando a Tatiana:

- Achas que sobra um bocadinho para nós? Slavin emitia uma espécie de cacarejos fervilhando de maldade quando Dasha

os mandava dali para fora: - Isso, como o fiambre, minha menina! Come o fiambre. Recebi mesmo agora

o último relatório do Führer. Herr Hitler tem planos para fazer coincidir a retirada das suas tropas de Leninegrado com a tua última lata de fiambre. –

Rindo histericamente: - Não sabias?

Page 278: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

278

As Metanov compraram uma bourzhuika, pequeno fogão de ferro fundido que tinha um tubo cuja ponta Tatiana fez passar por um orifício da janela. Era na superfície plana de ferro da bourzhuikaque se cozinhava. Bastava um pouco de lenha para acender o fogão; o problema era que só aquecia uma pequena parte da sala.

Alexander continuava na Carélia e Dimitri em Tikhvin. Não sabiam nada deles. Na segunda semana de outubro, Anton viu o seu desejo realizado. Uma

bomba de fragmentação caiu sobre a Grechesky e um pedaço de metal atingiu-o, ferindo-o numa perna. Tatiana não estava no telhado mas, quando soube, levou-lhe uma lata de fiambre às escondidas, que ele devorou sozinho num abrir e fechar de olhos.

- Anton, então e a tua mãe? – censurou ela. - Ela come no trabalho. Tem sopa e papas de aveia. - E o Kirill? - Que foi, Tania? – atirou-lhe com impaciência. – Trouxestes isso a mim ou ao

Kirill? Também não lhe agradava nada o aspecto de Mariska, a quem o cabelo

encaracolado começara cair. Tatiana dava-lhe todos os dois papas de aveia às escondidas. Mas sabia que não podia continuar a fazê-lo; a família já não nadava nada contente com ela. As papas de aveia tinham bocadinho de sal e açúcar, mas nem manteiga nem leite. Não eram propriamente papas, mas sim um caldo, que Mariska devorava como se fosse à última refeição. Por fim, levou-a para a enfermaria das crianças do Hospital Grechesky, mas teve de lhe pagar ao colo durante a última parte do caminho.

Quando era pequena, às vezes esquecia-se de comer durante muitas horas. Depois, lembrando-lhe de repente, exclamava:

- Oh não, estou esfomeada! – O estômago protestava, a boca salivava. Devorava sopa, torta ou purê de batatas até se sentir a abarrotar, saía da mesa e já não se sentia esfomeada.

A sensação que tinha vagamente no fim de setembro e bastante mais acentuada no princípio de outubro era parecida na medida em que o estômago protestava e a boca salivava. De resto, devorava a sopa rala, o pão escuro e velho e as papas de aveia, saía da mesa e percebia que ainda se sentia esfomeada. Comia então algumas das tostas que fizera. Mas o saco diminuía de hora a hora. As noites eram muito longas. Dasha e a mãe tinham começado a levar algumas tostas no bolso quando iam trabalhar. Primeiro poucas e depois cada vez mais. Babushka mordiscava tostas durante todo dia enquanto pintava ou lia. Marina também levava algumas para a universidade e outras para a mãe moribunda.

Numa manhã fria, depois de comprarem a bourzhuika, a mãe deu a Tatiana o resto do dinheiro, quinhentos rublos, e disse-lhe para ir comprar o que conseguisse. A loja perto da Catedral de São Nicolau ficava longe. Quando lá chegou, deu com

Page 279: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

279

uma dupla ironia: fora bombardeava e abandonada. Na montra estilhaçada, um cartaz datado de 18 de setembro anunciava: NÃO HÁ COMIDA.

Regressou lentamente a casa. Dezoito de setembro, quatro semanas atrás. O pai ainda estava vivo e Dasha fazia planos para se casar.

Com Alexander. Em casa, não acreditando nela, a mãe já ia bater-lhe de frustração quando se

deteve, o que Tatiana achou tão milagroso que até a abraçou, dizendo: - Não se preocupe, Mamochka. Eu trato de si. – Devolveu-lhe o dinheiro,

pousou a ração de pão na mesa, tirou o bocadinho e foi-o o devorando enquanto seguia devagar para o hospital, não pensando em mais nada senão na hora do almoço, quando poderia comer sopa e talvez também papas de aveia. Em pouco mais pensava do que em comida. A fome intensa que tinha de manhã à noite pouco lugar lhe deixava para sentir mais o que fosse. Caminhando para a Fontanka pensava no pão, enquanto trabalhava pensava no almoço, à tarde pensava no jantar e depois do jantar pensava na tosta que podia comer antes de se deitar.

E na cama pensava Alexander. Uma vez, Marina ofereceu-se para ir buscar as rações em seu lugar. Perplexa, Tatiana entregou-lhe as cadernetas de racionamento. - Queres que eu vá com você? – perguntou - Não – respondeu a prima. – Eu vou sozinha. Quando regressou, Marina pousou o pão em cima da mesa: só

aproximadamente meio quilo. - Onde está o resto, Marina? – indagou. - Peço muita desculpa. Comi-o. - Comeste um quilo de pão? – Nem acreditava. - Desculpa, estava cheia de fome. Lançou-lhe um olhar cheio de espanto. Havia seis semanas que ia buscar as

rações da família, e nunca lhe passara pela cabeça comer o pão pelo qual cinco pessoas esperavam.

E andava esfomeada. E sentia a falta de Alexander.

Page 280: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

280

2

Uma manhã de meados de outubro, encaminhando-se para o cais Fontanka e apalpando as cadernetas de racionamento que tinha no bolso, Tatiana ergueu os olhos ainda estremunhados viu um oficial mais à frente e desejou que fosse Alexander. Aproximou-se. Aquele homem muito mais velho, sujo e com o casaco e a espingarda enlameados não podia ser ele. Avançou com cuidado. Era mesmo Alexander.

Quando chegou junto dele tocou-lhe no peito com a mão enluvada. - Shura, que te aconteceu? - Oh, Tania? Não te interessa. Estás tão magra! A tua cara... - Sempre fui magra. Você está bem? - Mas a tua cara bonita e redonda... – começou ele com a voz embargada. - Isso foi numa outra vida, Alexander. Como foi?... - Brutal – respondeu, encolhendo os ombros. – Olha o que te trouxe. – Abriu a

mochila preta e tirou um naco de pão branco e queijo embrulhado num pedaço de papel! Queijo e um bocado de carne de porco! – Tatiana ficou a olhar para a comida com a respiração entrecortada. – Meu Deus! Quando elas virem vão ficar tão contentes.

- Pode ser que sim! – volveu-lhe ele, estendendo-lhe o pão branco e o queijo. - Mas antes que vejam, quero que comas. - Não posso. - Pode e vai comer. O que: Não chore. - Não estou chorando – protestou, tentando não se desfazer das lágrimas. –

Estou só muito...comovida. – Pegando no pão, no queijo e na carne, devorou-os enquanto ele a observava com os seus olhos quentes de cobre. – Shura, não saber a fome que tenho passado. Nem consigo explicar.

- Eu sei, Tania. - Dão-vos de comer melhor no Exército? - Dão. As tropas da linha de frente estão sendo bem alimentados. E os oficiais

um bocadinho melhor. E aquilo que não me dão, compro. Os géneros alimentícios chegam-nos primeiro do que a vocês.

- E é assim que deve ser – retorquiu ela coma boca cheia, feliz da vida. - Calma. – Sorrindo: Devagar. Vai ficar com dor de barriga. Ela abrandou... um bocadinho. E sorriu... um bocadinho. - Trouxe para a tua família manteiga e um saco de farinha – anunciou

Alexander. – E vinte ovos. Quando foi a última vez que comestes ovos? Ela lembrava-se:

Page 281: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

281

- A 15 de setembro. Dá-me um pedacinho de manteiga. Pode ficar comigo ou tem que ir embora?

- Vim para te ver. Ficaram a olhar um para o outro sem se tocar. Ficaram a olhar um para o outro sem falar. - Tenho muito para dizer – sussurrou ele por fim. Mas agora não – volveu Tatiana, observando a longa fila de pessoas na loja.

Parara de comer. – Tenho pensando em ti – afirmou, mantendo a voz calma. - Pois não pense mais – declarou ele com resignada resolução. Tatiana recuou: - Não se preocupe. Mostrou muito claramente que é isso que quer. - De que está falando? – Olhando-a, confuso: - Não fazes ideia do que é

aquilo- Só sei o que é isto – retorquiu ela. - Estamos todos a morrer. Até os oficiais. – Depois de uma pausa: - O Grinkoz

morreu. - Oh, não! - Oh, sim! – Suspirando? – Vamos para a fila. Alexander era o único homem a levantar rações. Esperaram quarenta e cinco

minutos. Na loja, mais ninguém falava, mas eles não se calavam. Conversaram sobre assuntos públicos: o tempo frio, os alemães, a alimentação. Mas nãos e calaram.

- Alexander, temos de arranjar mais mantimentos. Não eu, Leninegrado. Mas de onde hão de vir? Não podem manda-los de avião?

- Já estão a fazê-lo. Cinquenta toneladas por dia de alimentos, combustível e munições.

- Quinhentas toneladas... – Calou-se a pensar. – Parece muito. Como ele não respondeu, perguntou: - É? Percebeu que ele não queria falar. - Não é suficiente – disse Alexander por fim. - Muito pouco suficiente? - Oh, não sei – replicou ele. - Diz lá. Não sei, Tania. - Bem, mas acho que já é bom – comentou com uma alegria fingida. –

Cinquenta toneladas. Parece imenso. Ainda bem que me disseste, porque a Nina não tem nada para dar a família...

- Espera! – exclamou Alexander. – Que andas a fazer? - Nada – replicou ela em voz doce. – A Nina não tem... - Cinquenta toneladas parece-te muito, é? Paslov, responsável pelo

aprovisionamento da cidade, está alimentando milhões de pessoas com mil toneladas de farinha por dia. Então?

- O que nos dá agora perfaz mil toneladas? – espantou-se.

Page 282: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

282

- É – afirmou ele, abanando a cabeça e olhando-a pouco à vontade. - E só vão trazer cinquenta toneladas de avião? - Só. Cinquenta toneladas que não são só de farinha. - Como é que as outras novecentas e cinquenta vão chegara aqui? - Pelo lago de Ladoga, em barcos. Trinta quilómetros a norte da linha que

marca o bloqueio. - Mas se não tivéssemos mantimentos, as mil toneladas não chegavam, Shura.

Nunca poderíamos viver só com o que nos dão. Alexander não disse nada. Tatiana fitou-o e desviou o olhar. Só lhe apetecia ir imediatamente para casa

contar as latas de fiambre que ainda tinham. - E por que não podem mandar mais aviões? – inquiriu. - Porque todos os aviões do Exército estão a ser requisitados para a batalha de

Moscovo. - E a batalha de Leninegrado? Perguntou em voz fraca, sem esperar resposta e

de fato a não obtendo. Acha que o bloqueio vai ser levantado antes do inverno? – continuou baixinho. – Os comunicados de rádio insistem que tentamos estabelecer um apoio aqui, abrir uma brecha ali, montar uma ponte de barcas... Que pensas?

Alexander não respondeu e Tatiana não voltou a olhar pra ele até saírem da loja.

- Vem a minha casa? - Vou, Tania. Vou com você. Ela assentiu: - Então anda. Com a manteiga que me deste vou fazer papas de aveia quente

para o pequeno- almoço. E alguns ovos. - Ainda tem papa de aveia? - Hum. Admito que é cada vez mais difícil afastá-las da comido entre as

refeições. A Babushka e a Mariana são as piores. Desconfio que comem os flocos de aveia crus mesmo do saco.

- E, tu, Tania? Come os flocos de aveia do saco? - Ainda não. – Não mencionou que lhe apetecia nem como enfiava o nariz

dentro do saco e aspirava o seu cheiro enjoativo e ligeiramente bafiento, sonhando com manteiga, açúcar, leite e ovos.

- Mas devia. Caminharam devagar ao longo do enevoado canal Fontanka, que lembrou a

Tatiana o canal Obvodnoy durante os seus dias de verão de Kirov. O coração apertou-lhe. A três quarteirões de casa, abrandaram o passo, pararam e encostaram-se a um edifício frio.

- Quem me dera um banco! – exclamou ela baixinho. Alexander começou, também baixinho: - O Mazarov contou-me de seu pai. – Como a rapariga não respondeu,

continuou: - Lamento muito. – Depois de uma pausa: - Me perdoa?

Page 283: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

283

- Não há nada para perdoar – replicou ela. - É aminha impotência. – A frustração assomou aos olhos dele: - Não posso

fazer nada para te proteger. E tentei. Desde o princípio que tento. Lembra-se de Kirov?

Claro que sim. -Tudo o que queria na altura era que saísses de Leninegrado. Não consegui. E

também não consegui proteger-te do teu pai. – Abanou a cabeça. – Como vai a tua sobrancelha? – Estendeu a mão, tocou na cicatriz com as pontas dos dedos.

- Bem – respondeu ela, afastando-se. Alexander baixou os braços, lançando lhe um olhar de censura.

- E o Dimitri? – indagou ela. – Tem notícia dele? - Abanou cabeça: - O que posso dizer-te do Dimitri? Quando fui para Shlisselburg em meados de

setembro, disse-lhe para vir comigo. Não quis, alegando que não era seguro. Respondi-lhe que estava bem. Depois me ofereci para ir à Carélia com um batalhão tentar fazer recuar os Finlandeses... - fez uma pausa -... de modo a abrir caminho aos caminhões que traziam alimentos do Ladoga para Leninegrado. Os Finlandeses estavam muito perto. As escaramuças entre eles e as tropas fronteiriças da NKVD resultavam constantemente na morte do desgraçado de algum caminhoneiro que tentava apenas introduzir gêneros alimentícios na cidade. Disse ao Dimitri para vir comigo. Sabia que era perigoso, que era atacar território inimigo, mas se conseguíssemos...

- Seriam heróis – rematou Tatiana. – Conseguiram? - Conseguimos – respondeu baixinho. Abandando a cabeça. Maravilhada, levantou os olhos. Esperava que o que

sentia naquele momento não fosse perfeitamente evidente. - E você se ofereceu para fazer? - Oferece. - Ao menos te promoveram? Ele esboçou uma continência: - Agora sou o capitão Belov. Está vendo minha condecoração? - Oh, cala-se! – pediu ela, com a boca derretendo-se num sorriso. - O que foi? – Os olhos dele examinaram-lhe o rosto. – O que foi? Está

orgulhosa de mim? - Hum – respondeu Tatiana, tentando parar de sorrir. - Era por isso que eu queria que o Dima fosse – continuou Alexander. – Se as

coisas corressem bem, podia ser promovido a cabo. Quando mais se sobe, mais longe se fica da linha de frente.

Ela assentiu e disse: - É tão tapado! - E o pior é que o mandaram com o Kashnikov para Tokhvin. O Marazov foi

comigo e o promoveram a primeiro tenente. Mas o Dima teve de atravessar o

Page 284: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

284

Ladoga de barco e faz agora parte das dezenas de milhares de homens que são carne para os canhões do Schmidt.

Tatiana já ouvida falar da cidade de Tikhvin. Os soviéticos tinham- na reconquistado aos alemães em setembro e defendiam-na agora com unhas e dentes, de modo a permitir a passagem contínua de comboios até aos barcos de víveres do Ladoga. Sem o lago, a cidade de Leninnegrado ficaria completamente isolada.

A rapariga já deixava de sorrir. Com cuidado, disse: - Gostaria que tivesse conseguido convencer Dimitri. Uma promoção ia fazer-

lhe muito bem. - Concordo. Se fosse um herói – continuou inexpressivamente -, talvez não tivesse de

casar com a minha irmã. Alexander fez uma expressão de tristeza: - Oh, Tatia... - Mas assim – rematou ela, interrompendo-o -, agora você é capitão e ele está

em Tikhvin. Vai ser obrigado a casar com Dasha, não é? – Fitou-o sem pestanejar. Alexander esfregou os olhos com as mãos enegrecidas. Tatiana nunca o vira

tão sujo. De tão ocupada a pensar em si, até se esquecera dele. - Oh, Shura! Mas o que eu estou fazendo? Desculpa. Anda para casa? Olha só!

Anda a tomar banho. – Suavemente: - Pode tomar banho quente. Eu fervo a água. E te faço papas de aveia. Anda. Gostaria de acrescentar a palavra querido, mas não se atreveu. Quase teve vontade de lhe dizer? Casa com a Dasha. Se isso te ajuda a viver, casa com ela.

Ele não mexeu. - Por favor, anda, Shura. - Espera. – Mordeu o lábio: - Está zangada comigo por causa de seu pai? Não discutiu, não se defendeu, não disse que a culpa era dele. Aceitava a

responsabilidade apenas como se agora tivesse mais um fardo para carregar às costas. Bem, tinha costas suficientemente largas para transportar vários fardos, incluindo alguns deles. Estranhamente, vê-lo preparado para enfrentar tudo fez ela se sentir mais leve. Era um alívio à custa de Alexander, mas não deixava de ser alívio, Precisava de consolo? Pois ali estava.

- Não, Shura. Ninguém está zangado. Toda a gente vai ficar muito contente por te ter vivo.

Alexander ergueu os olhos pra ela: - Não te perguntei por toda a gente.Você está zangada comigo? Observou-o afetuosamente. Por baixo da couraça, o homem que comandava

um batalhão blindado precisava dela. Se estivesse ferido, trataria dele. Se tivesse fome, ia saciá-lo. Se quisesse conversar, iria ouvi-lo. Mas agora Alexander mostrava-se triste. Gostaria de lhe dizer que não era por causa de seu pai que estava zangada.

Page 285: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

285

Mas não podia, porque tudo o que desejava era consolá-lo. Não queria vê-lo triste nem mais um segundo.

Estendendo o braço, pegou-lhe a mão cheia de arranhões e com as unhas sujas, mas quente e forte. Ele apertou-a com gratidão.

- Não, Shura – disse com ternura. – Claro que não estou zangada com você. - Só quero te ver em segurança – retorquiu ele de costas para a parede. – Só

quero saber te proteger de tudo. Apertou-se contra Alexander- Eu sei – disse com a voz abafada pelo casaco

dele, sentindo-se tão feliz por estar nos seus braços que teve medo de desfalecer. Afastando-lhe o cabelo, Alexander posou-lhe os lábios na testa e sussurrou: - Não volte a se afastar de mim quando te toco. - Esta bem – murmurou, com os olhos fechados e os braços apertados em

volta dele.

Page 286: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

286

3

- Olhe quem encontrei! – exclamou Tatiana, entrando com Alexander atrás dela. Dasha soltou um gritinho e correi para ele.

Tatiana foi colocar a água para ferver, preparou sabão, toalhas limpas e uma lâmina de barbear e ele tomou um banho quente.

- Está bem quente? - gritou-lhe da cozinha, fervendo mais água apara o caso de ser preciso.

A sua voz alegre chegou-lhe da casa de banho. - Não, nem por isso. Traz-me mais. Entra, Tania. Corando e sorrindo, foi pedir a Dasha que lhe levasse mais um jarro de água a

ferver. Alexander saiu do banho esfregado, corado e barbeado. Estava tão quente,

com o cabelo preto molhado e brilhante, os dentes brancos e a boca úmida que Tatiana nem soube como não se atirou para os seus braços. Sentou com a ceroulas compridas e a camisola interior térmica. Dasha foi lavar-lhe o uniforme. Marina, a Babushka e Tatiana pareciam borboletas á sua volta. Só a mãe estava amuada.

Tatiana não disse à mãe que tinha ovos. Ia fazê-lo, mas quando viu que ela não tencionava perdoar Alexander por ter gritado a ela e ao pai, decidiu que também não queria partilhar os ovos com ela. Primeiro, o perdão.

Alexander dera-lhes um quilo de manteiga. Tatiana escondeu no peitoral da janela, debaixo do saco de farinha. A mãe bebeu uma chávena de chá fresco, comeu um bocado de pão com manteiga, agradeceu com mais modos e foi trabalhar.

A Babushka meteu alguns talheres, uns candelabros de prata, dinheiro e uns cobertores velhos que tirou da cama e preparou-se para sair.

Tatiana tinha de ir preparar o pequeno-almoço, mas permaneceu silenciosamente sentada numa cadeira da sala, contemplando Alexander.

- Aonde ela vai? – perguntou. - Oh, para Malaya Ochta, do outro lado da Ponte Alexander Nevsky –

informou Dasha, entrando na sala. Tatiana baixou rapidamente o olhar. – Tem amigos e troca as nossas coisas por batatas e cenouras – continuou. Foi para eles quando estava tudo bem e agora eles são bons para ela. A sua roupa ainda vai demorar a secar. – Sorriu-lhe.

- Não faz mal. – Devolvendo-lhe o sorriso: - Só tenho de me apresentar daqui a quatro dias. Já estará seca nessa altura?

O coração de Tatiana deu pulos de alegria. Quatro dias de Alexander! - Vai fazer o pequeno almoço, Tania? – perguntou Dasha, saindo outra vez.

Marina encontrava-se no outro quarto, preparando-se para universidade.

Page 287: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

287

Alexander virou-se para ela: - Tatiasha, pode me arranjar um chá? Levantou-se imediatamente. Que ideia dela! Ficar sentada enquanto ele devia

estar tão cansado e com tanta fome! - Claro. – Sentado a fumar, Alexander tinhas as pernas compridas esticadas

até ao sofá. Não havia espaço pra passar e parecia que ele não tencionava mexer-se. Tatiana observou-o. Estava sorrindo.

- Com licença – disse baixinho esforçando-se por se manter séria. - Passa por cima o replicou ele, baixando a voz – Mas vê lá não tropece. É que

então teria de te agarrar. Corando, a rapariga ergueu o olhar e viu Marina fitando-a, parada à porta. - Com licença – repetiu no mesmo tom de voz. Alexander afastou as pernas com relutância. - Vem cá, Marina. – Suspirou: - Deixa-me olhar você. Como tens passado? Tatiana levou-lhe uma chávena de chá forte e doce como ele gostava. - Obrigado – agradeceu, levantando o olhar para ela. - De nada. – Fitou-o. - As minhas pernas ainda te incomodam? - É muito grande para esta sala. – murmurou ela. Antes de ele ter tempo para responder, Dasha regressou com uns lençóis

lavados. - E como se sai a vossa Babushka do outro lado Do Neva? – perguntou ele,

pegando no chá e desviando o olhar de Tatiana. Enquanto dobrava os lençóis, Dasha disse: - Ontem trouxe cinco nabos e dez batatas. Mas a louça do casamento de

mãezinha já se foi toda. Depois destes castiçais, não sei que mais terá para vender. - Que tal esses dentes de ouro que trouxeste do dentista, Dasha? – sugeriu a

irmã. – Os agricultores gostariam? – Sentou-se á mesa junto da parece, de costas para Dasha e com os olhos postos em Alexander.

- Para que queriam ouro? - Para que querem castiçais? - Ah, para ter luz – interrompeu Alexander. Calor. Para os usarem como

armas contra os alemães. - Virando-se para Tatiana: - Tania... – Sorrindo: - Onde estão as papas de aveia que me prometeu? E os ovos?

Bateram à porta. Era Nina Iglenko, perguntando se tinham alguma coisa que pudesse dar a Anton, Tatiana sabia que estava difícil apara ela sustentá-lo com aração de dependente que lhe cabia depois de ter sido ferido no telhado. Alexander apareceu à entrada, enorme e imponente ao lado do seu corpo pequeno. Com o braço encostado ao dela, disse:

- Camarada Iglenko, todos os dependentes têm a mesma ração. Lamento muito, mas não temos nada. – fechou a porta. – Não me disse que Anton foi ferido

Page 288: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

288

no telhado. - Continuava muito perto dela. Tatiana não só podia cheirá-lo, respirá-lo e inalá-lo como tinha o peito dele quase encostado à cara;

- Ele está bem – respondeu, tentando não respirar aos sacões. – É só um arranhão na perna. – Não queria que ficasse preocupado.

- Sabia que todos os dependentes têm direito à mesma ração, Tania? – perguntou Alexander, avançando para ela e fazendo-a recuar até ao bengaleiro.

- Sabia. - Vocês não têm mais do que a Nina. - Eu sei. Com licença, vou fazer o pequeno-almoço. – Não era capaz de

continuar na entrada estreita com ele de ceroulas. Saiu para o corredor, chamou Nina e entregou-lhe um bocado de manteiga.

- Que Deus te abençoe, Tanechka. Que Deus te abençoe pela vida fora. Vai ver. Ele há de proteger-te por teres um coração bondoso.

Regressou para dentro. Estava fazendo os ovos e as papas de aveia quando Alexander entrou e se encostou ao fogão, de frente para ela.

- Cuidado, ainda queima as costas – avisou. Ao princípio, não disse nada. Depois lhe falou num sussurro intenso: - Tania, sei como você é melhor do que ninguém. Sei o que está fazendo... - O que? – perguntou. – Estou fazendo papas de aveia e ovos. Alexander colocou o dedo debaixo do queixo e levantou-lhe o rosto. - Não pode dar tua comida, entende? Vocês não têm que suficiente! Tatiana abriu a boca, fingiu morder-lhe o dedo e assentiu. Ele não o retirou

imediatamente. Fez depois as papas de aveia com umas colheres de leite um pouco de

manteiga algum açúcar e água e distribuiu-as desigualmente por quatro taças: o quinhão maior para Alexander, a seguir Dasha, depois Marina e ela com o ais pequeno. Dos vinte ovos que ele trouxera, mexeu cinco com manteiga e sal. Parecia um banquete.

Alexander olhou para a taça e disse que não comia. Quando acabou de falar, Dasha já devorava a papa toda. Marina também, tal como os ovos que lhe cabiam.

Só Tatiana e Alexander olhavam para as respectivas taças. - Mas o que se passa? – indagou Dasha. Alexander, você precisa de muito

mais comida do que ela. É homem. Ela é menor e a que precisa menos de todos nós. Come, vá.

- Sim, concordou Tatiana, ainda de olhos baixos. - É homem. Eu sou a mais pequena e a que menos preciso. Come, por favor.

Ele trocou a sua taça pela dela. - Quem vai comer é você! Eu como no quartel. Vai! Tatiana devorou tudo em segundo, cheia de gratidão. Depois, comeu os ovos. - Oh, Alexander, está tudo tão diferente desde a última vez que estiveste aqui!

– exclamou Dasha. – A vida é mais difícil. As pessoas são insensíveis. Agora é cada é cada um por si. – Suspirou e desviou o olhar.

Page 289: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

289

Alexander e Tatiana fitaram Dasha em silêncio. - Só temos direito a trezentos gramas de pão por dia – continuou ela. – As

coisas irão piorar mais? - Pode crer que sim – retorquiu Tatiana, poupando a Alexander o trabalho de

responder. – daqui a pouco não temos nada. - Quantas latas de fiambre ainda têm?- perguntou ele. - Doze. - Sim, mas há quatro dias tínhamos dezoito – comentou Tatiana. – Comemos

seis latas em quatro dias. Temos passado fome à noite. – Gostaria de acrescentar que passavam fome a todas as horas do dia e da noite, mas não o fez.

Tinham de ir trabalhar. Tatiana observou Dasha aproximando-se de Alexander, que lhe pôs as mãos na cintura.

- Oh, Alexander, emagreci tanto! Não vai gostar de mim assim magra. Daqui a pouco pareço a Tania. – Beijando-o: - Não precisa de nada: Que vai fazer?

Ele sorriu: - Vou cair na sua cama e só tenciono acordar quando você chegar. Às cinco horas, com ou sem bombardeamentos, Tatiana correi para casa. O

apartamento estava quente e acolhedor. Alexander saiu da sala sorrindo-lhe e ela saudo-o alegremente:

- Olá, Alexander! Cheguei! Ele riu. Gostaria de beijá-lo. Alexander fora buscar lenha à cave e trouxera-a para cima. Dasha surgiu da

cozinha. - Não está quentinho, Tania? – Abraçou-o. - Meninas, têm de continuar a aquecer a casa. Está ficando muito frio. - Mas temos o aquecimento central, Alexander – protestou Dasha. - O máximo de aquecimento permitido pelas autoridades de Leninegrado é

dez graus centígrados. Achas que chega? - Não se tem estado mal – comentou Tatiana despindo o casaco. Alexander deu umas palmadinhas no braço de Dasha: - Vou trazer mais lenha da cave. Aqueçamos quartos com o fogão grande e

não com a bourzhuika, que nem um pinguim aquece. Está bem, Tania? Arrepiando-se de repente, só falou ao fim de algum tempo: - Esses fogões consomem muita lenha – respondeu por mim, saindo para ir

fazer o jantar. A Babushka trouxe sete batatas de Malaya Ochta. Comeram mais uma lata de

fiambre e as batatas todas. Depois do janta, Alexander sugeriu que passassem a comer só meia lata de fiambre por dia. Dasha zangou-se e respondeu-lhe que mal se aguentavam com uma inteira e ele calou-se.

Page 290: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

290

Quando a sirene começou a tocar, fez-lhe sinal para descerem para o abrigo...toda gente, incluindo Tatiana. Dasha ficou à espera, mas ele olhou-a pensativamente:

- Dasha, desce e não se preocupe comigo. – Quando ela insistiu acrescentou com firmeza: - Mas que soldado seria eu se corresse para o abrigo de cada vez que há um bombardeamento? Vai. Você também, Tania. Não tem ido para o telhado, pois não?

Ninguém lhe respondeu enquanto saíam em fila, e muito menos Tatiana. - Marinka – perguntou Dasha mais tarde -, se importa de dormir com a

Babushka? Por favor? O quarto dela está mais quente do que o nosso. Quero que o Alexander durma ao meu lado. Mãezinha, não se importa? Afinal de contas, vamos casar.

- Contigo e com a Tania? – Marina lançou-lhe um olhar que Tatiana não foi capaz de devolver.

- Sim. – Dasha sorriu e tirou lençóis lavados da cômoda. – Alexander se importa de dormir na mesma cama que a Tania?

Ele soltou queixume. - Tenechka, diz-me uma coisa - continuou Dasha em ar de brincadeira,

fazendo a cama-, achas que o ponha no meio, entre nós duas? – Rindo: - Vai ser bom para Tania, que nunca dormiu com nenhum homem. – Divertida consigo própria, beliscou o braço ao namorado. – Enfim, se calhar é melhor não começar contigo, querido.

Sem olhar para Tatiana, Alexander tartamudeou que não se sentiria bem no meio e ela, também sem levantar o olhar, murmurou que ele tinha razão.

- Descansa – sossegou Dasha. – Achas que ia mesmo pôr-te a dormir ao lado da minha irmã?

Á hora de dormir, Tatiana encostou-se à parede, Dasha deitou-se ao seu lado e Alexander encaixou-se do outro. Não podia mexer-se, mas pelo menos estava quente, e a sua presença, tão próxima e ao mesmo tempo tão afastada, era um bálsamo para ela. Ficaram deitados calados, ouvindo a mãe chorar no sofá.

Tatiana ouviu Dasha sussurrando a Alexander: - Disse que íamos casar... quando, quando meu amor, quando? - Vamos esperar, Dasha – murmurou-lhe ele. - Não. Esperar o que? Você disse que nos casaríamos quando tivesse uns dias

de licença. Vamos casar amanhã. No registo casam-se em dez minutos. A Tania e a Mariana podem ser as nossas testemunhas. Vá lá, Alexander, não há nada para esperar.

Tatiana virou-se contra a parede. - Ouve, Dasha. Os combates são muitos intensos. E não sabes que o camarada

Estaline decretou que é crime ser feito prisioneiro? Agora é ilegal cair nas mãos dos alemães. Para nos impedir de nos entregarmos voluntariamentea eles, o nosso grande dirigente decidiu tirar as rações às famílias dos prisioneiros de guerra

Page 291: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

291

soviéticos. Se eu for apanhado pelos alemães e estivermos casados, vocês perderão o direito ás rações. Tu, a Tania e atua avó. Todas. Terei de ser morto para que continues a receber o vosso pão.

- Oh, Alexander! Oh não! - Esperaremos - Por quê? — Por dias melhores. — Haverá dias melhores? — Claro que sim Calaram-se. Tatiana voltou-se para Dasha e contemplou a nuca de Alexander, recordando

o tempo em que dormira nos seus braços em Luga, nua, ferida e sentindo a res¬piração dele no cabelo.

A meio da noite, Dasha levantou-se para ir à casa de banho. Tatiana pensou que Alexander estava a dormir, mas ele virou-se e fitou-a. No quarto às escuras distinguiu-lhe os olhos líquidos. A perna dele deslizou por baixo do cobertor e tocou na dela. Tatiana estava de meias e com duas camadas de pijamas de flanela. Quando ouviu a irmã à entrada, fechou os olhos. Alexander retirou a perna.

Na noite seguinte, Tatiana cozinhou apenas meia lata de fiambre para todos. Deu só uma colher de sopa a cada um, mas pelo menos era fiambre. Dasha res¬mungou que não chegava.

— O Anton está a morrer — anunciou Tatiana. - Comam o fiambre. A Nina Iglenko não tem desde agosto.

Depois do jantar, a mãe encaminhou-se para a máquina de costura. Desde o início de setembro que levava trabalho para casa. O Exército precisava de fardas de inverno e a fábrica oferecia-lhe um bónus se ela fizesse vinte em vez de dez por dia. Uma gratificação de alguns rublos e uma ração suplementar. Ou seja, a mãe trabalhava até à uma da manhã por trezentos gramas de pão e um punhado de rublos. Naquela noite, sentou-se, tirou o material e indagou:

— Onde está a minha máquina de costura? Ninguém falou. — Onde está a minha máquina de costura? Tania, onde está a minha máquina

de costura? — Não sei, mãezinha. A Babushka avançou a coxear e afirmou: — Vendi-a, Irina. — O quê? — Troquei-a pelos rebentos de soja e o óleo que comeste hoje ánoite.

Estavam tão bons! — Mãezinha! — gritou Irina. Ficou histérica. Passou imenso tempo a chorar

com as mãos no rosto. De pé, Tatianaobservou a expressão entristecida de Ale¬xander, que saiu para o vestíbulo. — Como foi capazde fazer uma coisadessas?

Page 292: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

292

Sabe muito bem que tenho trabalho à noite,que me mato atrabalhar por mim e pelaa minha família.Por nós! Não sabe que me disseram que também me dariampapas de aveia se conseguisse costurar vinte e cinco fardas? Oh, mãezinha, o que foi fazer?

Tatiana saiu da sala. Alexander estava a fumar, sentado no sofá do vestíbulo. Pegando numa caneta, foi atrás do sofá, ajoelhou-se no chão e começou a marcar o nível do saco de aveia. A aveia, a farinha e o açúcar desapareciam a olhos vistos.

- Vá, levanta-te – disse Alexander nas suas costas. - Isso é muito pesado para ti. Deixa-me ajudar. - Ela desviou-se e ele ergueu o saco enquanto ela o examinava e traçava um risco preto no exterior. - Que achas, Tatia? - perguntou, chamando-lhe Tatia em voz baixa. - Uma empresa privada da tua mãe? Quem diria?

- E no entanto há em toda a parte. O <<socialismo num só país>> parece não funcionar lá muito bem quando o país está em guerra. - Indicou o saco de farinha.

Pegando nele, Alexander assentiu: - Como durante e logo a seguir à guerra civil russa. Já reparaste que durante a

guerra a besta baixa a cabeça de modo a preservar a própria vida? … - Só o tempo suficiente para se fortalecer e a levantar de novo. Espera, baixa

um bocadinho a farinha. - A mão que segurava a caneta tocou na dele. Tatiana não levantou o olhar.

- O que vai fazer a tua mãe? - Não sei. O que vai fazer a Babushka? Já não tem nada para vender. -

Retirando a mão, dirigiu-se a cozinha para lavar a louça do jantar. Ao voltar a sala, Alexander entrou na cozinha. Estavam sozinhos. Ela avançou

para passar por ele, e ele pôs-se à sua frente; tentou o outro lado, e ele impediu-a novamente. Tatiana levantou a cabeça e viu-lhe os olhos a brilhar.

Com os olhos também a cintilar, ficou quieta por um momento, desviou-se para a direita, para a esquerda e ultrapassou-o. Lançando um olhar para trás, sorriu e disse muito depressa:

- Tens de ser mais rápido, Shura! - Ele riu com gosto. Passados quatro dias, Alexander regressou ao quartel. Toda a gente ficou com

pena de o ver partir. A parte boa que ia ficar em Leninegrado mais uma semana, fazendo patrulhas,

trabalhando na manutenção, erguendo barricadas e treinando novos recrutas. Não podia ficar mais tempo, mas passava muitos serões com elas e de manhã, às seis e meia, acompanhava Tatiana, que ia buscar as rações à Fontanka.

Uma manhã, ao chegar, anunciou: - Disseram-me que o Dimitri levou um tiro! - Não! - É verdade. - Calou-se. - Que aconteceu? Tombou como um herói? - Deu um tiro no pé com a sua Nagant. - Pois, estava a esquecer-me. Ele não é como tu.

Page 293: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

293

Alexander pousou-lhe a mão no casaco e contou-lhe que o Dimitri estava fora de ação num hospital de Volkhov.

- Além da ferida no pé, tem uma distrofia. - O que é isso? Sentiu que Alexander quase não queria dizer-lhe. - A distrofia – explicou lentamente – é uma doença degenerativa da massa

muscular provocada pela má nutrição. Dando-lhe umas palmadinhas, Tatiana sossegou-lhe em voz fraca: - Não te preocupes, Shura. É doença que nunca me afetará. Não tenho

músculos. Esperaram pacientemente pelas rações. Alexander não deixava de a observar, tantando atrai-la com o olhar. Tatiana

sentia que ele queria alguma coisa dela: o quê, não sabia nem conseguia imaginar. Não conseguia ou não queria? A ração de Alexander ajudava-as a esticar as provisões um pouco mais. Era

uma ração de rei: oitocentos gramas de pão por dia! Mais de metade do que recebiam pelas cinco! Tinha também direito a cento e cinquenta gramas de carne, cento e quarenta de cereais e meio quilo de hortaliças.

Tatiana ficava encantada quando ele aparecia para jantar, levando com ele a ração do dia. Seria porque gostava de o ver ou porque comia melhor? Alexander entrgava-lhe a comida e dizia-lhe para a dividir em seis porções.

- Seis porções iguais, Tania – recomendava-lhe sempre. A carne a que tinha direito não era de vaca e sim de porco ou, às vezes, uma

perna de galinha velha com a pele dura. Tatiana tinha de se esforçar muito para não lhe servir a parte maior. Fazia o que podia e dava-lhe a melhor.

Já não havia castiçais para trocar e de resto nem louça, exceto os seis pratos que as Metanov e Alexander usavam. A Babushka queria vender os cobertores e os casacos velhos, mas a mãe bateu o pé.

- Não. O inverno é frio aqui na cidade. Vamos precisar deles. - A temperatura descera abaixo de zero na terceira semana de outrubro. Já só tinham seis lençóis para três camas e seis toalhas. A Babushka queria vender uma das toalhas, mas foi a vez de Tatiana bater o pé ao lembrar-se de que Alexander também precisava de uma.

A Babushka Maya deixou de atravessar o Neva.

Page 294: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

294

4

Tatiana estava no vestíbulo quando ouviu Dasha, Alexander, Marina, a mãe e Babushka discutindo acaloradamente na sala. Já ia abrir a porta para entrar com o chá quando Alexander disse:

- Não, não, não podem contar-lhe. Agora não. A voz de Dasha passou pela fenda da porta: - Mas, Alexander, ela vai ter de saber... - Agora não! - Porquê? Que interessa? Contem-lhe. - Concordo com Alexander – acrescentou a Babushka. - Para quê enfraquecê-

la agora que precisa de todas as suas forças? Tatiana abriu a porta. - Contar-me o quê? Emudeceram todos. - Nada, Tanechka – respondeu Dasha muito depressa, lançando um olhar

encolerizado a Alexander, que baixou a cabeça e se sentou. Tatiana tinha nas mãos o tabuleiro com as chávenas, pires, colheres e um

pequeno bule. - Contar-me o quê? O rosto da irmã estava marcado pelas lágrimas: - Oh, Tania! - exclamou ela. - Oh, Tania, o quê? Ninguém disse nada. Ninguém sequer olhou para ela. Tatiana mirou a avó, a mãe, a prima e a irmã e parou em Alexander, que

fumava e contemplava o cigarro. <<E se alguém olhasse para mim?>>, pensou. - O que não queres que elas me contem, Alexander? Ele ergueu o o olhar: - O teu avô morreu em setembro, Tania. Com uma pneumonia. O tabuleiro caiu-lhe das mãos. As chávenas partiram-se no chão de madeira e

o chá quente salpicou-lhe as meias. Ajoelhando-se no chão, apanhou os cacos sem dizer uma palavra; de resto, também ninguém abriu a boca. Pôs os cacos no tabuleiro, pegou nele e voltou para a cozinha. Quando ia a fechar a porta, ouviu-o dizer:

- Estão contentes? Dasha e Alexander entraram na cozinha, onde Tatiana, de pé à janela, crispava

os dedos no peitoril. Aproximando-se dela, a irmã disse-lhe:

Page 295: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

295

- Querida, lamento muito. Anda cá. - Abraçando-a, sussurou: - Toda a gente adorava-o. Estamos muito tristes.

Tatiana devolveu-lhe o abraço: - Dasha, é um mau presságio. - Não é nada, Tanechka. - Um mau presságio – repetiu ela. É como se o Deda tivesse morrido por não

conseguir suportar ver o que vai acontecer à família. Olharam as duas para ele, que as observava sem as dizer nada. Na manhã seguinte, Alexander e Tatiana dirigiram-se em silência ao ponto de

distribuição das rações e esperaram calados pelo seu pão. Já cá fora, no canal Fontanka, ele meteu a mão no bolso:

- Tenho de me ir embora amanhã, Tania. Mas olha! Olha o que te trouxe! - Mostrou-lhe um pequeno tablete de chocolate. Pegou nela e esboçou um sorriso. Os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas.

Ele deu-lhe a mão e disse ternamente, dando umas pancadinhas no peito: - Anda cá. Chorou durante muito tempo com o rosto encostado ao peito de Alexander,

que a abraçou. A perna de Anton não melhorava. Anton não melhorava. Tatiana levou-lhe um pedacinho de chocolate de Alexander. Ele comeu-o, mas

com indiferença. Sentou-se ao lado da cama dele. Ficaram calados durante algum tempo. - Tania, lembras-te do verão de há dois anos? - Não. - Só se lembrava do verão anterior. - Não te recordas de termos ido jogar futebol ao Parque Tauride... eu, tu, o

Volodya, o Petka e o Pasha... quando chegámos de Luga em agosto? Querias tanto a bola que me deste uma canelada. Acho que foi na mesma perna. - Um sorriso perpassou-lhe o rosto.

- Parece-me que tens razão – confirmou ela serenamente. - Não estejas assim, Anton. - Pegando-lhe a mão: - A tua perna vai ficar boa. Pode ser que no próximo verão vamos ao Parque Tauride jogar futebol outra vez.

- Pode ser. - Apertou-lhe a mão e fechou os olhos. - Mas não com o teu irmão. Nem com os meus.

- Só eu e tu, Anton – murmurou ela. - Nem sequer eu, Tania. <<Eles estão à tua espera>>, apeteceu-lhe responder. << Estão à tua espera

para jogar futebol contigo. E comigo.>>

Page 296: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

296

5

A pontualidade não era só apanágio dos Alemães: também Tatiana saia sempre às seis e meia para ir buscar as rações; ou seja, apesar da espera na fila e ficando a loja em Fontanka, já estava em casa às oito, altura em que as formações dos aviões sobrevoavam a cidade e as sirenes começavam a tocar. Mas ou os bombardeamentos estavam a inciar-semais cedo ou ela andava a atrasar-se, porque havia três manhãs seguidas que era apanhada pelos bombardeamentos ainda na Nekrasova, de regresso a casa.

Só porque prometera, jurara a Alexander que o faria, foi esperar pelo fim do alerto no primeiro prédio que lhe apareceu, segurando o precioso pão. Sentou-se durante trinta minutos, com trinta pares de olhos postos em si. Por fim, ouviu a voz de uma mulher idosa:

- Vá lá, menina, divide conosco. Não fiques aí sentada com o pão na mão. Dá-nos um bocadinho.

- É para a minha família – respondeu Tatiana. - Somos cinco, todas mulheres. Estão a minha espera. Se vos der, não terão comida hoje.

- Não quero muito, menina – insistiu a mulher. Só um bocadinho. O bombardeamento parou e Tatiana foi a primeira a sair. Depois deste

episódio, tentou não se atrasar mais. Mas apesar dos seus esforços, não conseguia ir ao ponto de distribuição das

rações e voltar antes dos bombardeamentos. Ir às dez era impossível. Tinha de ir trabalhar; esperavam-na no serviço.

Marina, ou até Dasha, sair-se-iam melhor? Talvez conseguissem andar mais depressa do que ela. A mãe cosia uniformes à mão de manhã e à noite. Claro que não podia mandar a mãe, que praticamente nunca tirava os olhos da costura, tentando acabar alguns uniformes para ter direito a uma ração suplementar de papas de aveia.

Dasha afirmou que não podia ir porque de manhã tinha que lavar roupa. Marina também se recusou a fazê-lo. De resto, deixara praticamente de ir à universidade. Pegava na sua caderneta de racionamento, levantava o pão a que tinha direito e comia-o de imediato. À noite, quando regressava à Quinto Soviete, exigia mais comida a Tatiana.

- Marinka, não é justo – dizia ela a prima. - Todas temos fome. Sei que é difícil, mas tens de te controlar...

- Oh, como tú? - Sim – replicou ela, com a sensação de que Marina não estava a falar do pão. - Estás a sair-te bem – aplaudiu a prima. - Muito bem, Tania. Continua.

Page 297: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

297

Mas achava que não estava a sair-se nada bem. Pelo contrário, sentia que nunca se saíria pior; no entanto, a família louvava

os seus esforços. Alguma coisa não estava bem num mundo onde as pessoas pensavam que uma tarefa atamancada era um grande sucesso. O que a preocupa não era acharsse vagarosa mas sim sentir que estava a fazer as coias mais devagar. Uma resistência desconhecida opunha-se a todos os seus esforços para se despachar, para fazer as coisas depressa.

Era uma resistência que lhe vinha do próprio corpo, que não se mexia como antes. E a prova irrefutável eram os bombardeiros alemães, que sobrevoavam o centro da cidade precisamente às oito e que durante duas horas faziam soar os arautos, os cornetins das explosões, pertubando a manhã.

O dia também nascia às oito. Tatiana ia e vinha da loja ao lusco-fusco da madrugada.

Uma manhã, quando percorria Nekrasova, ultrapassou despreocupadamente um homem que caminhava na mesma direção. Era alto, idoso, magro e usava chapéu.

Mais à frente, lembrou-se de que havia muito tempo que não ultrapassava ninguém. As pessoas caminhavam ao seu ritmo, que nunca era apressado. <<Ou estou a andar mais depressa ou ele ainda é mais vagaroso do que eu>>, pensou.

Abandonou o passo e parou. Virando-se, viu-se deslizar como um para-quedas e tombar de lado junto de um prédio. Voltou atrás para ajudar a sentar-se. O homem estava imóvel.

Apesar disso, tentou endireitá-lo. Levantou-lhe o chapéu. Os seus olhos fixos observaram-na. Permaneciam abertos, como uns minutos antes, quando caminhava pela rua. Agora estava morto.

Horrorizada, largou-o a ele e ao chapéu e seguiu caminho sem olhar para trás. De regresso com as rações, decidiu meter antes pela Ulitsa Zhukovskogo para não ter de ver o cadáver. O ataque aeréo começara, mas ignorou-o e seguiu em frente. << Se me tirasse o pão no abrigo, não poderia fazer nada>>, pensou, ajustando o capacete de Alexander na cabeça.

Em casa, contou à família que vira um homem morto na rua, mas praticamente ninguém lhe deu muita importância.

- Oh, pois eu vi um cavalo morto e esventrado no meio da rua, com uma multidão tirando-lhe a carne – contou Marina. - E isso não foi o pior. Aproximei-me e perguntei se não havia nada para mim.

À noite, com os olhos já fechados, ainda tinha na cabeça o rosto, o andar e o patético chapéu do homem. Não era a morte que a atormentava: infelizmente, já a vira antes em Luga, na abjeta ausência de Pasha e quando assistira ao incêndio que lhe levara o pai. O que não a largava quando fechava os olhos era o andamento do homem porque, na altura em que morrera, estava a caminhar, e embora o fizesse mais devagar do que ela, não podia dizer que a diferença fosse grande.

Page 298: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

298

6

- Quantas latas de fiambre nos restam? - perguntou a mãe. - Uma – respondeu Tatiana. - Não pode ser. - Mãezinha, temos comido fiambre todas as noites. - Mas não pode ser. Tínhamos dez aqui há uns dias. - Há cerca de nove dias. No dia seguinte, a mãe indagou: - Ainda temos farinha? - Mais ou menos um quilo. Temos feito panquecas todas as noites. - Então são panquecas? - inquiriu Dasha. - A mim sabem-me a farinha e água. - São feitas com farinha e água. – Depois de uma pausa: - O Alexander chama-

lhes biscoitos de marinheiro. - Não podes fazer pão em vez de panquecas? – tornou a mãe. - Pão? Com o quê? Não temos leite, nem fermento, nem farinha e muito

menos ovos. - Mistura a farinha com um bocadinho de água. Devemos ter leite de soja. - Três colheres de sopa. - Usa-as.E põe-lhe açúcar. - Está bem, mãezinha. – Tatiana fez para o jantar pão ázimo com açúcar e o

resto do leite. Comeram a última lata de fiambre. Era dia 31 de outubro. - O que tem este pão? – perguntou Tatiana, arrancando um pedaço da crosta

preta e examinando-a. – O que é isto? – Estava-se no início de novembro. A Babushka encontrava-se no sofá. A mãe e Marina já tinham saído. Tatiana demorava-se, tentando fazer durar seu quinhão. Não queria ir para o hospital.

Dasha encolheu-se na cadeira e encolheu os ombros: - Sei lá! Que interessa? Não sabe bem? - Na realidade, é repugnante. - Come-o. Querias pão branco? Tatiana encontrou um bocadinho de qualquer coisa no pão, apalpou-o e

levou-o à língua. - Dasha! Oh, meu Deus! Sabes o que é? - Não sei nem me interessa. - Serradura. A irmã parou de mastigar, mas só por um segundo: - Serradura?

Page 299: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

299

- Sim. E isto aqui? – Apontou para uma migalha castanha que tinha nos dedos: - Cartão. Estamos a comer papel. Trezentos gramas de papel por dia.

Devorando até à última migalha do seu quinhão e olhando com fome para o pedaço que Tatiana amassava entre os dedos, Dasha disse:

- E já vamos com muita sorte! Posso abrir a lata de tomate? - Não. Só temos duas. Além disso, a mãezinha e a Marina não estão aqui. E já

sabes que se a abrirmos vamos comê-la toda. - A ideia é essa. - Não podemos. Abrimo-la logo ao jantar. - Que jantar vai ser esse? Tomate? - Se não comesses o teu cartão todo de manhã, terias algum ao jantar. - É mais forte do que eu. - Eu sei – replicou Tatiana, levando o resto do pão à boca e mastigando-o de

olhos fechados. Depois de o engolir, continuou: - Olha, ainda tenho umas tostas. Queres? Só três para cada uma de nós?

- Quero. – Olharam para a Babushka, que estava a dormir. Comeram sete cada uma. Das tostas de pão, restavam apenas uns pedacinhos

partidos e umas migalhas no fundo. - Tania, ainda tens o período? - O quê? - Tens? – insistiu Dasha com tanta ansiedade como a de Tatiana ao responder: - Não. Porque perguntas? - Eu também não. - Oh. Dasha calou-se. As irmãs respiravam com dificuldade. - Estás preocupada, Dasha? – indagou Tatiana por fim, com grande relutância. A irmã abanou a cabeça: - Não estou preocupada com isso. Eu e o Alexander... – Lançando-lhe um

olhar: - Não interessa. O que me preocupa e não o ter. Receio que tenha acabado de vez.

- Não te preocupes – retorquiu, aliviada e ao mesmo tempo triste por ela. – há de voltar quando começarmos outra vez a comer.

Dasha levantou o rosto para a irmã. Tatiana desviou o olhar. - Não te parece que tens o corpo todo a fechar-se? – murmurou, começando a

chorar. – A fechar-se, Tania! Abraçou a irmã: - Minha querida, o meu coração ainda bate. Não estou a fechar-me. E tu

também não. Ficaram em silêncio na sala fria. Devolvendo-lhe o abraço, Dasha disse: - Só queria sentir aquela fome devoradora do mês passado. Lembras-te? - Lembro.

Page 300: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

300

- Já não a sentes, pois não? - Não – admitiu em voz fraca. - Quero tê-la outra vez. - Hás de ter. Quando começarmos a comer. Nessa noite, Tatiana voltou para a casa com uma caneca do líquido fino que

serviam na cantina do hospital. Tinha uma batata a boiar. - É canja de galinha – anunciou à família. – Com osso de presunto. - Onde está a galinha? E o osso? – perguntou a mãe examinando a pequena

caneca. - Já tive muita sorte em arranjar isto. - Tens razão, Tanechka. Anda, serve-nos – disse ela. Sabia a água quente com uma batata. Não tinha sal nem óleo. Visto que

Alexander não estava presente, Tatiana dividiu-a em cinco porções. - Espero que o Alexander volte depressa para podemos comer uma parte da

ração dele. Tem uma ração tão boa! Que sorte! – comentou Dasha. <<Eu também espero que ele volte depressa>>, pensou Tatiana. <<Preciso de

descansar os olhos nele.>> - Olhem só para nós! – exclamou a mãe. – Estamos a espera do jantar desde

que almoçámos à uma hora. Mas alguém tem de ajudar. Parece que não temos bombas, incêndios e feridos. Não estamos a ajudar nada. Só pensamos em comer.

- É exatamente isso que os alemães querem – replicou Tatiana. – Pretendem que abandonemos a nossa cidade e, na realidade, estamos dispostos a fazê-lo por uma batata.

- Eu não posso sair – continuou ela. – Tenho cinco fardas para coser à mão. – Lançou-lhe um olhar de poucos amigos à Babushka, calmamente sentada a mastigar o pão sem dizer nada.

- Podemos não ir para as ruas e ficar aqui sentadas a trabalhar e a coser – observou Tatiana. – Mas não abandonamos a nossa Leninegrado. Ninguém arreda o pé.

Mais ninguém falou. Quando o ataque aéreo começou, todas desceram para o abrigo, incluindo

Tatiana, que tropeçou no corpo de uma mulher que morrera sentada contra a parede e que ninguém tirara dali. A rapariga deixou-se cair no chão e esperou a chegada da escuridão.

Page 301: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

301

7

Dasha escrevia todos os dias a Alexander; todos os dias lhe mandava uma carta breve. <<Tem sorte>>, pensava Tatiana. Poder escrever-lhe e transmitir-lhe os seus pensamentos... que sorte!

Escreviam também à Babushka, agora viúva, que continuava em Molotov. As suas cartas eram raras.

O correio funcionava muito mal. Depois, deixou de funcionar. Quando a correspodência parou de chegar ao prédio, Tatiana começou a ir ao

correio da Velha Nevsky, onde um velhote grisalho e desdentado só lhe entregava depois de lhe perguntar se tinha alguma coisa de comer. Ela levava-lhe uns vestígios de uma pequena tosta. Por fim, Dasha recebeu uma carda de Alexander.

<<Minha querida Dasha e todas as outras: A grande benção desta guerra é que pelo menos as mulheres não têm de a

ver; só as enfermeiras que nos tratam, e essas são imunes à nossa dor. Em frente de Shlisselburg, tentamos fazer entrar munições na ilha-fortaleza de

Oreshek. Um pequeno grupo de soldados defende a ilha desde setembro, apesar da intensidade dos bombardeamentos alemães, que disparam das margens do lago Ladoga, apenas a duzentos metros de distância. Lembram-se de Oreshek? O irmão de Lenine, Alexander, foi aqui enforcado em 1887 por ter tomado parte na tentativa de assassinato de Alexander III.

Agora que a guerra começou, os marinhos e soldados que guardam a entrada do Neva são saudados como heróis da Nova Rússia, da Rússia pós-Hitler. Dizem-nos que depois de ganharmos, tudo será completamente diferente na União Soviética. Prometem-nos uma vida muito melhor, mas temos de estar prontos a morrer por ela. 'Oferaçam a vossa vida', dizem-nos, 'para que os vossos filhos possam viver'.

'Está bem', respondemos. Os combates não param, mesmo durante a noite. Nem a chuva. Há sete dias e sete noites que andamos encharcados da cabeça aos pés. Não conseguimos secar. Três dos meus homens morreram com uma pneumonia. Parece como uma ironia morrer com uma pneumonia quando Hitler está com tanta vontade de ser ele a matar-nos. Dous graças por não estar em Moscovo neste momento. Sabem o que se passa por lá? Penso que é isso que está a salvar-nos. A salvar-vos. Hitler desviou de Leninegrado uma grande parte do seu Grupo Exército Norte, incluindo a maioria dos aviões e dos tanques, de modo a poder atacar

Page 302: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

302

Moscovo. Se a cidade cair, estamos perdidos, mas neste momento é a nossa única tábua de salvação.

Eu estou bem. Só não gosto muito é de andar molhado. Os oficiais continuam a ter que comer. Penso em vós a cada vez que me dão carne.

Fiquem bem. A Tatiane que ande junto das paredes dos edifícios, exceto quando as bombas caírem; nessa altura, que pare e espere nalguma entrada. E que use o capacete que lhe dei.

Meninas, não deem o pão que têm em circunstância alguma. E não se aproximem do telhado.

Usem o sabão que vos dei. O meu pai ensinou-me que uma pessoa se sente sempre um bocadinho melhor quando está limpa. Claro que é impossível andarmos limpos na frente de inverno. Por outro lado, está tanto frio que os piolhos que transmitem o tifo não sobrevivem.

Acreditem quando digo que penso em vós todos os dias e a todos os instantes. Até voltarmos a ver-nos, continuo a ser O vosso Alexander>>

Tatiana usou o capacete. Gastou o sabão. Esperou nos umbrais das portas. Com as botas de feltro, o carapuço de feltro e o casaco acolchoado que a mãe lhe fizera nos tempos em que havia máquina de costura, não conseguia deixar de pensar dolorosamente em Alexander, todo o dia com o uniforme molhado junto às margens geladas do Ladoga.

Page 303: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

303

A ESCURIDÃO DESCE SOBRE A CIDADE DE PEDRO

1

Já não era possível negar o que estava a acontecer em Leninegrado era muito pior do que alguma vez tinham imaginado.

A mãe de Marina morreu. Mariska morreu. Anton morreu. Os bombardeamentos continuavam. Caíam menos bombas incendiárias.

Tatiana sabia-o porque havia menos incêndios e porque, quando ia a Fontanka, já não tinha tantos sítios para parar e aquecer as mãos.

Numa manhã de novembro, a caminho da loja, viu duas pessoas mortas jazendo no meio da rua. Quando regressou duas horas mais tarde, já eram sete. Não estavam feridas. Apenas mortas. Ao passar por elas, fez o sinal da cruz, estacou e pensou: << O que fiz eu? O sinal da cruz por pessoas mortas? Mas vivo na Rússia comunista. Por que o faria?>> Continuou o seu caminho devagar, fazendo o sinal da foice e do martelo.

Não havia lugar para Deus na Rússia comunista. De facto, Deus ia claramente contra os princípios segundo os quais tinham vivido toda a vida: fé no trabalho, na vida comunitária, na proteção do Estado contra indivíduos inconformistas, no camarada Estaline. Na escola, nos jornais, na rádio, Tatiana ouvia dizer que Deus era o grande opressor, o odioso tirano que durante séculos impedira os trabalhadores russos de alcançarem o seu verdadeiro potencial. Agora, na Rússia pós-bolchevique, Deus era apenas mais um obstáculo no caminho do novo Homem soviético. Um comunista não podia jurar sua fidelidade a Deus porque isso significava que sua primeira lealdade não ia para o Estado. E nada podia vir antes do Estado, que não só cuidava do povo soviético como lhe dava comida e emprego e o protegia do inimigo. Tatiana ouvira-o no jardim infantil, durante os nove anos que andara na escola e nas aulas dos Jovens Pioneiros que frequentara aos noveanos. Fizera-se pioneira porque não tivera outro remédio, mas quando chegará a altura de ingressar nos Jovens Komsomol, no último ano escolar, recusara-se a fazê-lo. Não necessariamente por

Page 304: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

304

causa de Deus, mas porque sim. Algures bem no seu íntimo, sempre pensara que não daria uma boa comunista. Gostava de mais histórias de Mikhail Zoshchenko.

Em criança, em Luga, conhecera umas mulheres devotas que não a largavam, na tentativa de a batizarem, ensinarem e fazerem acreditar. Ela fugia a correr, escondia-se atrás do lilaseiro do jardim do vizinho e observava-as arrastando os pés enquanto desciam a rua da aldeia, mas não antes de a benzerem com os seus sorrisos benévolos, chamando-a ternamente de vez em quando: Tatia, Tatia.

Fez outro sinal da cruz, desta vez em si própria. Porque seria um consolo tão grande?

É como se não estivesse sozinha. Foi sentar-se na igreja que ficava em frente do seu prédio. << As igrejas

também serão bombardeadas?>>, pensou. Em Londres, a Catedral de São Paulo teria sido bombardeada? Se os Alemães não tinham sido suficientemente espertos para destruir a magnífica catedral, que dava tanto nas vistas, como iam descobrir a igrejinha onde estava? Sentiu-se mais segura.

Para entrar no correio, teve de passar por cima de um homem morto. Morrera no degrau da entrada.

- Há quanto tempo está ali? – perguntou ao chefe da estação. - Digo-te se me deres outra tosta – respondeu ele com o seu sorriso

desdentado. - Não estou assim tão desesperada para saber, mas vou dar-lhe mais uma

tosta – replicou. Às escuras, ninguém via o seu próprio corpo. De resto, ninguém suportava vê-

lo. Dasha tirou todos os espelhos dos quartos e da cozinha. Ninguém queria ver nem que fosse um reflexo acidental. Deixaram de olhar umas para as outras. Ninguém queria ver nem que fosse um reflexo acidental de alguém que amavam.

Para esconder o corpo de si e dos outros, Tatiana usava uma camisa interior de flanela, uma camisa de flanela, a sua camisola de lã, a camisola de lã de Pasha, um par de meias grossas, calças compridas, uma saia e o casaco comprido acolchoado. À noite, despia o casado para dormir.

Dasha comentou que perdera os seios. - Seios? – replicou Marina. – A minha mãe morreu e tu falas-me em seios?

Não trocavas os seios pela tua mãe? Eu trocava. Dasha pediu desculpas mas, na cozinha, debulhou-se em lágrimas: - Quero os meus seios, Tanechka. Tatiana esfregou ternamente as costas da irmã: - Vá, coragem. Não estamos a sair-nos mal. Olha, ainda temos aveia. Vai para

dentro que eu faço-te umas papas. Depois da morte da Tia Rita, Marina continuou a ir todas as manhãs à

universidade embora, como disse a Tatiana, os professores não ensinasse nada e não houvesse livros e nem aulas. Mas havia algum calor, e ficava sentada na biblioteca durante umas horas até poder ir à cantina comer a sua sopa rala.

Page 305: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

305

- Agora detesto sopa – declarou ela. – Não faz sentido. - Não é uma questão de não fazer sentido. É água quente – retorquiu Tatiana,

agachada ao lado do saco de açúcar, cada vez mais reduzido. Ainda tinham aveia. – Não toques nela. Vai ser o nosso jantar durante o mês que vem.

- Se mal dá uma chávena! – exclamou a prima incrédula. - Ainda bem que não se pode comer crua. – Mas enganava-se. No dia

seguinte, havia menos aveia no saco.

Page 306: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

306

2

Choviam panfletos, como em Luga. Primeiro panfletos, depois bombas. A diferença era que em Luga havia comida e o tempo estava quente. A diferença era que, na altura, Tatiana acreditava em muitas coisas. Acreditava que encontraria Pasha. Acreditava que em breve a guerra chegaria ao fim. Acreditava no camarada Estaline.

Agora acreditava apenas numa coisa débil mas imutável. Num homem imutável. Agora, os panfletos que os aviões da Luftwaffe largavam proclamavam em

russo: << Mulheres! Usai os vossos vestidos brancos. Usai os vossos vestidos brancos para que vos vejamos a duzentos metros do céu e não disparemos e nem larguemos bombas na vossa direção quando caminhardes ao longo da Surovovsky para ir buscar os vossos duzentos e cinquenta gramas de pão.>>

<< Usa o vestido branco e vive, Tatiana!>>, gritavam-lhe os panfletos. Poucos dias antes do vigésimo quarto aniversário da Revolução Russa, a 7 de

novembro, guardou um, que levou para casa e atirou descuidadamente para cima da mesa, onde ficou até o dia seguinte, altura em que Alexander regressou, mais magro do que duas semanas atrás e com o rosto envelhecido. Desaparecera o olhar cintilante, o sorriso perpétuo, o encanto e a vivacidade. Desaparecera.

Ficara um homem que abraçou Dasha e até a mãe, que lhe devolveu o abraço dizendo:

- Que bom vê-lo meu querido! Que bom! Não suportamos pensar em si todo molhado e cheio de frio.

- Aqui está mais seco mas não muito mais quente – replicou o homem, abraçando a Babushka, encostada à parede da entrada porque já não conseguia aguentar-se de pé, dando uma beijoca a Marina e virando-se para Tatiana, desajeitadamente parada ao pé da porta com a mão no puxador de metal, mas não conseguindo aproximar-se dela e tocar-lhe. No entanto, os seus olhos escuros observaram-na. Acenou-lhe. Já era alguma coisa. Acenou, virou-se e entrou na sala, onde pousou a carabina, despiu o casaco e pediu sabão. As raparigas esvoaçaram em volta dele. Dasha levou-lhe um bocado de pão, que engoliu inteiro. Marina fitou o pão antes de ele o comer.

- Amanhã é o Dia da Revolução, Alexander. Achas que vai haver alguma coisa a mais com que festejarmos? – perguntou Dasha.

- Eu arranjo alguma comida quando regressar ao quartel. Trago amanhã, está bem?

- E agora? Tens alguma coisa agora?

Page 307: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

307

- Vim diretamente da frente, Dasha. Hoje não tenho nada. Tatiana deu um passo em frente: - Queres que te faça uma chávena de chá, Alexander? - Quero, por favor. - Quem faz sou eu! – atirou Dasha, desaparecendo. Pegando num cigarro, Alexander acendeu-o e ofereceu-o a Tatiana. - Dá uma passa – disse baixinho. – Vá. Ela abanou a cabeça e fitou-o, confusa: - Sabes muito bem que não fumo. - Pois sei, mas pelo menos diminui o apetite. – Depois de uma pausa: - O que

foi? Porque estás a olhar assim para mim? – Esboçou um sorriso. – Continua – murmurou.

Fitando-o com os olhos claros e afetuosos, Tatiana não se conteve: pousou-lhe a mão enluvada nas costas e deu-lhe umas palmadinhas ternas.

- Shura – sussurrou -, estás atrasado uns meses. Não tenho apetite. – Retirou a mão. Ele levou o cigarro a boca.

A Babushka e Marina observavam-nos, de pé atrás de Alexander. Tatiana não quis saber. Aproximando-se, a prima pediu:

- Ofereces-me um cigarro a mim, Alexander? Para reduzir o meu apetite? Ele retirou o cigarro da boca e estendeu a Marina, que pegou nele e se dirigiu

a Tatiana: - Tens a certeza de que não queres? Esteve na boca dele. Olhando ligeiramente espantado de uma prima para outra, Alexander

observou: - Marinka, fuma o cigarro e deixa Tania em paz. – Pegou no panfleto nazi e

continuou: - Para celebrar a gloriosa revolução, o camarada Zhdanov, dirigente do partido em Leninegrado, está a tentar arranjar umas colheres de natas para as crianças. Talvez... – Calou-se. Lendo o panfleto com mais atenção, indagou: - O que é isto?

- Oh, nada – respondeu Tatiana, aproximando-se da mesa. Marina sentara-se. A Babushka continuava de pé encostada à parede. A rapariga abriu o casaco e mostrou-lhe o vestido branco com as rosas vermelhas que envergava por baixo.

Ele empalideceu. - É o teu vestido? – indagou com a voz embargada. Como só ela estava à sua frente, só ela podia ver o que lhe ia nos olhos.

Afastando-se, abanou-lhe a cabeça imperceptivelmente: << Não, para, esta sala é pequena demais para nós. Para. >>

- É – retorquiu ela, mirando o vestido agora tão largo. Apertou o casaco. Dasha entrou e fechou a porta com o pé. - Toma, Alexander, bebe um chá. Está fraco, mas pelo menos ainda temos.

Não muito, não... – Interrompeu-se. – Que se passa? - Nada. – Voltou a examinar o panfleto. – O que é isto?

Page 308: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

308

Dasha lançou um olhar de interrogação a Marina, que encolheu os ombros como a dizer: << Não faço ideia.>>

Tatiana continuava de pé: - É por isso que ando com um vestido branco. Para não ser atingida. Alexander deu um salto tão brusco que entornou o chá quente. Segurando o

panfleto, bateu com o punho na mesa: - Estás maluca? – berrou-lhe. – Perdeste o juízo? Dasha agarrou-o pela manga: - Tu é que endoideceste. Porque estás a berrar com ela? - Tania! – gritou outra vez, dando um passo ameaçador em sua direção. Ela

pestanejou mas não recuou. Dasha meteu-se entre eles e empurrou Alexander: - Senta-te. Mas que se passa? Porque estás a gritar? Sentou-se sem tirar os olhos de Tatiana, que foi atrás do sofá buscar um trapo

velho com que começou a limpar o chá entornado em cima da mesa. - Não te aproximes muito, Tania – avisou Dasha. – Ou ele ainda... - Eu ainda o quê? - Deixa lá, Dasha – disse Tatiana calmamente, pegando na chávena vazia e

encaminhando-se para a porta. Alexander agarrou-lhe no braço: - Pousa a chávena e vai mudar o vestido.- Sem a largar, acrescentou: - Por

favor. Ela pousou a chávena. - Tania – começou ele, penetrando-a com o olhar. Como desejou que ele a

largasse e olhasse para outro lado! -, sabes o que os Alemães fizeram em Luga? Estiveste lá, não é verdade? Lançaram panfletos destes sobre as mulheres e as raparigas voluntárias que cavavam trincheiras e apanhavam batatas. Diziam-lhes para andarem com os vestidos e xailes brancos de modo a saberem que se tratava de civis e não dispararem contra elas. Elas acreditaram, vestiram roupas brancas e tornaram-se um alvo muito mais fácil para os Alemães, que viam os vestidos a trezentos metros de altitude e as chacinavam mesmo nas trincheiras.

Tatiana puxou o braço. - Agora vai mudar-te. Veste uma roupa castanha. E quente. – Levantou-se: -

Eu faço o chá. – Lançando um olhar a namorada, acrescentou friamente: - E faz-me um favor, Dasha... nunca me julgues capaz de bater à tua irmã.

- Podes ficar? – perguntou Dasha. Ele abanou a cabeça: - Tenho de me apresentar no quartel às nove. Comeram sopa com um bocadinho de couve, pão escuro duro como tijolos e

uma colheres de grão de trigo-mourisco e beberam chá sem açúcar. Deram a Alexander um copo da sua preciosa vodca. Depois, acenderam a lareira com lenha que ele foi buscar a cave. A sala ficou quente. << Que espanto!>>, pensou Tatiana.

Page 309: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

309

Alexander estava à mesa com Dasha de um lado, a mãe do outro e Marina atrás de pé. A Babushka continuava no sofá. No canto mais afastado, Tatiana examinava o seu chá descolorido. Todas o rodeavam exceto ela, que nem podia aproximar-se.

- Deve ser tão difícil estar-se na frente sempre a pensar em comer, como nós! – disse a mãe.

- Vou contar-lhe um segredo, Irina Fedorovna – volveu-lhe Alexander, inclinando a cabeça para ela. – Quando estou na frente nem me lembro de comer.

Ela esfregou-lhe o braço e perguntou: - Acha que consegue arranjas maneira de tirar as minhas filhas de

Leninegrado? Quase não temos comida. Abanando a cabeça e tentando desembaraçar-se delas, Alexander replicou: - É impossível. Seja como for, não estou no comando do Ladoga mas a jusante

do Neva, a bombardear as posições alemãs do outro lado do rio, em Shliselburg. – Estremeceu. – Não nos dão descanso. O lado ainda não está gelado e os barcos... Há cerca de dois milhões de civis em Leninegrado e só foram evacuados de barco uns milhares de mães e os seus filhos.

- Nós também somos mães e filhas – comentou Dasha. - Mães e filhos pequenos – corrigiu-se Alexander. – Aqui toda a gente

trabalha. Quem vai deixar-vos ir? A Irina Fedorovna e a Dasha fazem uniformes para o Exército – disse à mãe, dando-lhe uma palmadinha. – A Tania trabalha no hospital. Que tal te dás lá? – Fitou-a.

Tatiana, que se aproximara da janela e se afastara da mesa, encolheu os ombros:

- Hoje cosi quarenta e dois sacos. Mesmo assim, não chegaram... morreram setenta e oito pessoas. Gostaria muito de poder trazer uma máquina de costura para casa.

A mãe virou-se e lançou um olhar zangado na direção do sofá, de onde a Babushka se defendeu numa voz de derrota:

- Gostavas das batatas que eu trazia, filha. Agora não tenho nada para te dar. - Amanhã trago batatas do armazém do Exército – prometeu Alexander. – E

farinha branca. Tudo o que puder. Mas não consigo fazer-vos sair daqui. Já sabem o que aconteceu ao torpedeiro Konstructor? Foi atingido quando ia atravessar o Ladoga na direção de Novaya Ladoga, cheio de mulheres e crianças a bordo. O comandante evitou uma bomba. A segunda afundou-lhe o barco, afogando as duzentas e cinquenta pessoas que nele seguiam.

- Eu prefiro tentar a minha sorte aqui em Leninegrado a morrer assim na água gelada – declarou Dasha.

- E vocês? Que tal se aguentam? Marina, como vais? - Mal. Olha para nós. - Realmente, já tiveram melhor aspecto – concordou ele, olhando de relance

para Tatiana.

Page 310: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

310

- O Anton morreu a semana passada – contou ela com uma expressão vazia, sem levantar a cabeça.

- Talvez agora a Nina deixe de andar atrás de ti para lhe dares comida – observou Dasha.

- Lamento muito, Tania – entristeceu-se Alexander. – Não andas a esbanjar comida, pois não?

Ela não respondeu. - Sabes alguma coisa do Dimitri? – perguntou, mudando de assunto. – Não

temos notícias dele. Acendendo um cigarro e abanando a cabeça, Alexander replicou: - Está no Hospital de Volkhov a lutar pela vida. De certa que não tem energia

para escrever. – Ele e Tatiana entreolharam-se. A sirene começou a tocar. Alexander olhou em volta. Ninguém se mexeu. - Ainda vão para o abrigo ou a Tania já vos corrompeu a todas? – perguntou

elevando a voz acima do som estridente e lamentoso. - Eu e Marina ainda vamos de vez... - Tania, quando foi a última vez que foste para o abrigo? – interrompeu ele. Ela encolheu os ombros: - Ainda lá estive semana passada, sentada ao lado de uma mulher que não

falava. Tentei meter conversa três vezes, até que percebi que estava morta. E já há algum tempo. – Ergueu as sobrancelhas.

- Diz a verdade, Tania – interpôs Dasha. – Estiveste lá cinco segundos e os bombardeamentos duraram três horas nessa noite. E antes disso?

- Em setembro – retorquiu a mãe em voz indiferente, levantando-se para ir buscar a costura.

- Olha quem fala, mãezinha! – exclamou Dasha. – Também não vai para lá desde setembro!

- Tenho muito trabalho. Estou a tentar ganhar um dinheirinho a mais. Devias fazer o mesmo.

- E faço! Só que levos a costura para o abrigo. - Pois, e foi um lindo serviço! Coseste a manga de um uniforme ao contrário.

Não é possível coser quase às escuras, Dasha. Enquanto rezingavam uma com a outra, Tatiana e Alexander entreolharam-se. - Tens passado toda a noite com as luvas calçadas, Tania. Porquê? – indagou

ele. – A sala está quentinha. Sai daí da janela e anda sentar-te conosco. Rodeando-o com o braço, Marina exclamou: - Oh, Alexander! Nem vais acreditar no que a tua Tanechka fez a semana

passada. - O que foi? - A tua Tanechka? – abespinhou-se Dasha. – Mas é verdade, Alexander, nem

acreditas. - Quero ser eu a contar – protestou Marina com petulância.

Page 311: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

311

- Pois, mas que alguém conte – insistiu Alexander. - Tenho de ficar aqui a ouvir isto? – Aproximando-se da mesa, começou a

recolher as chávenas. – Alexander, não queres pôr mais lenha no lume? Ele levantou-se imediatamente, encaminhou-se para o fogão e disse: - Posso pôr lenha no lume e ouvir ao mesmo tempo. - No sábado, eu e a Marinka fomos à cantina pública da Suvorovsky e

deixávamos a Tatiana a dormir, pensávamos nós que muito sossegadinha. No caminho de regresso, o Kostia do segundo andar foi ter conosco a correr, gritando: <<Depressa, a tua irmã está a arder! A tua irmã está a arder!>>

Alexander voltou para a mesa e sentou-se. Ainda tinha os olhos postos nela, mas Tatiana reparou que estavam consideravelmente menos calorosos.

- Tania, querida, continua tu – incitou Dasha. – É mais divertido se fores tu a contar o que aconteceu.

Com a louça da família nos braços, o cabelo curto, os olhos encovados e o corpo magro, Tatiana respondeu:

- Não aconteceu nada. - Conta lá, Tania – teimou ele, lançando-lhe um olhar de poucos amigos. Ela deu um estalido com a língua e fitou Marina com ar de censura: - Como o Kostia é muito pequeno para ficar sozinho no telhado, fui lá ajuda-

lo. Então caiu uma bombinha incendiária, que explodiu. Ele não conseguia apagar o incêndio e eu dei uma mãozinha. É só.

- Foste para o telhado? – inquiriu Alexander pausadamente. - Só durante uma hora. – Tentou mostrar-se jovial, encolheu os ombros e

conseguiu sorrir. – Não foi nada. Houve um incendiozito e eu apaguei-o em cinco minutos com areia. O Kostia é um histérico. – Lançando um olhar zangado a Marina: - E não é o único.

- A sério, Tania? – exclamou Dasha. – Não te ponhas o olhar para a Marina como se a quisesse matar. É histérica? Então porque não tiras as luvas e mostras as mãos?

Alexander ficou calado. Tatiana encaminhou-se para a porta. - Como se alguém estivesse muito interessado em ver as minhas mãos! - Sabem que mais? – disse ele, levantando-se. – Não quero ver nada. Vou-me

embora. Estou atrasado. Pegou na espingarda, no casaco e na mochila e saiu porta fora sem sequer

tocar nela ao de leve. Dasha fitou Tatiana, Marina, a mãe e Babushka. - Que lhe deu? - perguntou com um ar cansado. Durante um momento, ninguém falou. - Muito, muito medo – observou Babushka do sofá.

Page 312: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

312

- Porquê, Marinka? – censurou Tatiana. – Já sabes que ele se preocupa imenso conosco. Para quê inquieta-lo com este disparate? Não há problema nenhum de eu estar no telhado. Além disso, as minhas mãos vão ficar boas num instante.

- A Tania tem razão. Mas olha lá: que história foi essa da <<tua>> Tanechka? – inquiriu Dasha, voltando-se para a prima.

- Sim, explica-te lá – zangou-se Tatiana, recebendo de Marina a resposta de que fora só uma maneira de falar.

- Uma maneira de falar muito parva – rematou Dasha.

Page 313: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

313

3

Nessa noite, Tatiana sonhou que não estava a dormir, que a noite durava todo o ano e que os dedos dele a encontravam na escuridão.

De manhãzinha, ao levantar-se, bateram à porta. Era Alexander, com dois quilos de pão escuro e uma chávena de grãos de trigo-mourisco. Toda a gente estava ainda na cama, exceto ela. De braços cruzados e um olhar frio, Alexander esperou que ela lavasse os dentes na pia da cozinha, comentando que a retrete cheirava pior do que nunca, coisa que Tatiana sequer reparava.

Já estava vestida. Dormia vestida. - Não saias agora, Shura. Está muito frio. Acho que ainda posso com um quilo

de pão. Dá-me a tua caderneta de racionamento que eu trago-te a tua parte. - Ainda está para vir o dia em que vais carregar com a minha ração. - A sério? – atirou-lhe ela, avançando com tanta rapidez que ele recuou um

passo. – Se tu podes ir para frente... - Como se tivesse outro remédio... - E como se eu tivesse outro remédio. Eu trago a tua ração. Dá-me a

caderneta. - Não- Vou buscar-te o casaco. Como estão as tuas mãos? - Bem. – Mostrou-lhas, esperando que ele as segurasse, que as tocasse. Mas

não. Limitou-se a fitá-la como mesmo olhar frio. Saíram juntos. Faziam dez graus negativos. Eram sete da manhã e o céu ainda

estava escuro. O vento ululante penetrou no casaco de Tatiana e assobiou-lhe aos ouvidos o seu lamento ártico durante os dez quarteirões que percorreu até à loja. Lá dentro estava melhor e só tinha trinta pessoas à frente. << Talvez só demore uns quarenta minutos>>, pensou a jovem.

- É engraçado, não é? – comentou ele, com uma cólera mal contida na voz. – Estamos em novembro e continuas a vir aqui sozinha.

Ela não disse nada. Estava com sono demais para responder. Encolheu os ombros e apertou mais o cachecol.

- Porquê? A Dasha é perfeitamente capaz de fazer. No mínimo, podia vir contigo. E a Marina também. Porque continuas a vir sozinha?

Não sabia o que responder. Primeiro, estava muito frio e tinha os dentes a bater. Depois aqueceu mas continuou a tremer. << Porque venho sozinha, durante os ataques aéreos, ao frio e na escuridão? Porque não vimos à vez?>>, pensou.

- Porque se vier a Marina, come tudo no caminho. Porque a mãezinha cose todas as manhãs. Porque a Dasha lava roupa. Quem queres que mande no meu lugar? A Babusshka?

Page 314: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

314

Alexander não respondeu, mas a cólera não lhe abandonou a expressão. Tatiana tocou-lhe no casaco e ele desviou-se. - Porque estás zangado comigo? Porque fui ao telhado? - Porque não... – Interrompeu-se. – Porque não me dás ouvidos. – Suspirando:

- Não estou zangado contigo, Tania. Estou zangado com elas. - Não estejas. Calhou ser assim. Prefiro sair de casa a ter de lavar roupas. - Oh, porque a Dasha lava assim tanta roupa? Podias dormir seis dias por

semana até mais tarde, como ela. - Olha, isto não é nada fácil para ninguém. Comecei a vir... - Começaste a vir porque te mandaram. E depois sugeriram-te que cozinhasse

e tu concordaste, mesmo com a perna partida e tudo... - Porque estás tão zangado? Por eu fazer o que me mandam? Também faço o

que tu me dizes. Ele fez ranger os dentes. - Fazes o que te digo? Deixaste de ir ao telhado? Vais para o abrigo? Não dás

comida a Nina? Fazes muito bem o que te digo! - Achas que lhes dou mais atenção a elas? – indagou Tatiana, incrédula. Ainda

não chegara a vez deles. Tinham cerca de uma dúzia de pessoas que os ouvia. – Não disseste que não estás zangado comigo?

- Não é por isso que estou zangado. Queres saber porque é? - Quero – retorquiu em voz fadigada. Na realidade, não queria. - Fazer tudo o que te pedem. - E depois?.. - Tudo. Dizem-te para tu ires e tu vais. Dizem para tu dares e tu perguntas

quanto. Dizem-te para tu ires embora e tu responde que está bem. Batem-te e tu defendes quem te bateu. Pedem-te o teu pão, ou teu leite, ou teu chá, ou teu...

- Não, não. – Abanou a cabeça. – Não, cala-te. Por entre os dentes cerrados e tentando dominar a voz, Alexander continuou: - Dizem-te << Ele é meu>> e tu respondes << Claro, claro, é teu, fica com ele.

Que interessa? Eu, a minha comida, o meu pão, a minha vida ou até ele... nada é importante.>> - Aproximando o rosto do dela, sussurrou colericamente: - Eu, Tatiana, luto por nada.

- Oh, Alexander! – exclamou, lançando-lhe um olhar cheio de censura. Calaram-se até receberem as rações. Alexander teve direito a batatas,

cenouras, pão, leite de soja e manteiga. E natas. Saíram para a rua, ele como saco na mão e ela seguindo em silêncio ao seu

lado. Alexander andava muito depressa; não conseguia acompanhá-lo. Primeiro abrandou, mas quando viu que ele não encurtava o passo, parou.

Virando-se, ele perguntou-lhe em voz de poucos amigos: - O que foi? - Vai tu andando à frente. Não consigo andar tão depressa. Eu vou lá ter. Voltou para trás e deu-lhe o braço:

Page 315: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

315

- Anda. Para comemorar nossa Revolução Russa, os Alemães vão começar a bombardear-nos daqui a uns minutos, e podes ter certeza de que só pararão à noite.

Tatiana deu-lhe o braço. Apetecia-lhe chorar. Queria poder acompanhá-lo e não ter frio. A neve penetrava-lhe nas botas esburacadas, atadas com uma guita. A dor penetrava-lhe no coração magoado, atado com uma guita.

Caminhavam pesadamente pela neve, olhando para os pés. - Eu não te cedi a ninguém, Shura – disse ela por fim. - Não? – Havia tanta amargura na sua voz! - Como podes reagir assim? Como podes transformar aquilo que fiz pela

minha irmã numa falha trágica da minha parte? Devias ter vergonha. - E tenho. Ela apertou-lhe o braço: - A pessoa forte aqui devias ser tu. Não te vejo a lutar por mim. - Luto por ti todos os dias – rematou ele, estugando novamente o passo. Puxando-o para que andasse mais devagar, Tatiana riu em silêncio. A fraqueza

do corpo roubara-lhe o sentido de humor. - Oh, pedir Dasha em casamento é lutar por mim? No céu, ouviu-se um estrondo seguido de uma espécie de trinado agudo cada

vez mais insistente, mas que nem por sombras se comparava com as sirenes do seu coração.

- Agora que o Dimitri está distrófico e já não conta, regressou-te a coragem! – exclamou ela. – Agora que pensas que já não tens de te preocupar com ele, permites-te todo o tipo de liberdades à frente da minha família. E ainda por cima zangas-te comigo por uma coisa que já se passou há muito tempo. Pois olha, não estou para isso. Sentes-te mal? Por quem és! Casa com a Dasha. Talvez assim te sintas melhor.

Alexander estacou e empurrou-a contra uma porta. As bombas começaram a chover. Bombas, bombas, bombas. - Não a pedi em casamento! – berrou-lhe. – Concordei em casar com ela para

o Dimitri te largar! Ou já te esqueceste? - Ah, então era esse o teu magnífico plano! – gritou Tatiana. – Ias casar com

Dasha por mim! Que amável, Alexander, que humano! As palavras saíam-lhe em catadupa. Atirava-lhas juntamente com o bafo

gelado, agarrando-lhe o casaco, apertando-se contra ele e encostando-lhe o rosto ao peito.

- Como pudeste? – berrou. – Como pudeste... – sussurrou. – Pediste-a em casamento Alexander... – Teria berrado ou sussurrado? Abandonou-o debilmente, pateticamente... e esmurrou-lhe o peito com os punhos pequenos e enluvados... só que não eram murros mas sim pancadinhas. Ele agarrou-a e abraçou-a com tanta força que Tatiana ficou sem ar.

- Oh, meu Deus! – murmurou ele. – Que estamos a fazer? – Não a largou. Ela fechou os olhos e continuou com os punhos no peito dele.

Page 316: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

316

Esperando à porta, ergueu o olhar: - Que se passar, Shura? Tens medo por mim? Achas que vou morrer? - Não – respondeu sem baixar os olhos para ela. - Tens alguma imagem de mim a morrer? – Afastou-se e encostou-se do outro

lado da porta. A sua voz embargada mostrava como estava comovido: - Quando morreres, trarás o vestido branco com as rosas vermelhas e terás o

cabelo comprido, caindo-te até os ombros. Quando te matarem no maldito do teu telhado ou a caminhar sozinha na rua, o teu sangue parecerá mais uma rosa vermelha no vestido e ninguém reparará, nem sequer tu, que estás a morrer pela Mãe Rússia.

Tatiana tentou engolir o nó que sentia na garganta: - Despi o vestido, não despi? Alexander observou a rua: - Não interessa. Já viste como agora há poucas coisas que interessem? Olha o

que está a acontecer. Porque parámos aqui? Vamos para a casa com os teus trezentos gramas de pão. Anda.

Ela não se mexeu. Ele também não. - Porque continuamos a fingir, Tania? Porquê? Por quem? Só temos uns

minutos. E nem sequer são bons. As camadas das nossas vidas estão a ser-nos arrancadas, assim como as nossas hipocrisias, até as minhas, e no entanto continuamos a mentir. Porquê?

- Eu digo porquê! Por quem! – exclamou Tatiana. – Por ela. Porque te ama. Porque vais reconfortá-la nos minutos que lhe restam. Aí tens porquê.

- E tu, Tania? – perguntou ele, emocionado. Calou-se por um momento, fitando-a como se quisesse que ela dissesse alguma coisa. Como Tatiana não abriu a boca, continuou: - Não queres que te acarinhe nos minutos que te restam?

- Não – replicou em voz fraca. – Já não se trata de mim e nem de nós dois. – Baixou a cabeça: - Eu aguento, ela não.

- Eu também não – volveu-lhe Alexander. Ela levantou o olhar e fitou-o intensamente. - Claro que aguentas, Alexander Barrington. Aguentas isto e muito mais. Agora

cala-te. - Está bem. Eu calo-me. - Quero que me prometas uma coisa. Os olhos cansados dele pestanejaram. - Promete-me que não... - Que não o quê? – perguntou ele da outra ponta da porta. – Que não caso ou

que não a magoo? Uma pequena lágrima deslizou pelo rosto de Tatiana, que engoliu em seco,

aconchegando-se no casaco e sussurrando:

Page 317: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

317

- Que não a magoas. Ele estudou-a, incrédulo. Ela própria não acreditara no que dissera. - Tania, não me tortures. - Promete-me, Shura. - Queres uma promessa das minhas ou das tuas? - O quê? - Nada. - Ainda não prometeste. - Está bem. Prometo se me prometeres... - O quê? - Que nunca mais vai andar com o vestido branco, que nunca mais vai dar pão

e que nunca mais vai ao telhado. Se o fizeres, conto-lhe tudo imediatamente. Imediatamente, ouves?

- Ouço – balbuciou, pensando que não era justo. - Promete-me que farás sempre os possíveis e os impossíveis por sobreviver –

pediu Alexander, pegando-lhe a mão e puxando-a para si. - Está bem. – Levantou os olhos, mostrando o que lhe ia na alma. – Prometo. - Isso é uma promessa tua ou minha? - O quê? Ele tomou-lhe o rosto nas mãos. - Se continuares viva, juro-te que não magoarei a tua irmã – sussurrou,

cingindo-a a ele.

Page 318: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

318

4

Na manhã seguinte, foi à loja sem ele. Já com o pão da família na mão, que lhe parecia leve até nos seus braços fracos, ia a sair quando de repente sentiu uma pancada na nuca e outra na orelha direita, que a projetaram para a frente. Um rapazinho com cerca de quinze anos tirou-lhe o pão. Antes que conseguisse dizer fosse o que fosse, meteu-o na boca de hiena com um olhar tresloucado e desesperado. Os outros fregueses bateram-lhe com os sacos, mas a chuva de pancadas não o impediu de continuar a engolir o pão, que o devorou até à última migalha. Um dos gerentes da loja apareceu e deu-lhe com um pau.

- Não! – gritou Tatiana, mas ele caiu, olhando-a do chão com um ar selvagem, de animal acossado. Apesar de estar a sangrar na orelha, a rapariga inclinou-se para o ajudar. Ele empurrou-a, levantou-se e fugiu a correr.

- Por favor - suplicou – Como posso voltar para a casa sem nada? Com a compreensão estampada no olhar, a empregada replicou: - Não posso fazer nada. A NKVD mata-me se eu me puser a dar pão. Não saber

como é. - Por favor – implorou ela. – Para a minha família. - Eu dava-te o pão, Tanechka, mas não posso. No outro dia mataram três

mulheres que falsificaram cadernetas de racionamento. No meio da rua. E deixaram-nas lá. Vá, querida. Volte amanhã.

- Volta amanhã... volta amanhã – resmungou, saindo da loja. Não podia ir para casa e, de fato, não foi. Sentou-se no abrigo antiaéreo e

depois apresentou-se ao trabalho no hospital. Vera não estava; o cartão onde picava o ponto desaparecerá. Ninguém ligava a nada. Foi dormir para um dos quartos frios. No refeitório, deram-lhe um líquido transparente e umas colheres de molho, mas nada que pudesse levar para a casa. Procurou Vera, mas em vão. Sentou-se na sala das enfermeiras. Depois, entrou num quarto, sentou-se ao lado de um soldado que estava a morrer e deu-lhe a mão. Ele perguntou-lhe se era freira.

- Não, mas pode contar-me o que quiser. - Não tenho nada para lhe contar. Porque tem sangue na orelha? Ela ia explicar, quando percebeu quando percebeu que realmente não havia

nada a dizer, exceto: - Pela mesma razão por que está aqui no hospital. Pensou em Alexander e no que ele fazia para a proteger... em Leninegrado,

em Dimitri, no telhado, no hospital... um lugar tão violento, infecioso e contagioso!... nos tijolos de Luga. Nas bombas alemãs. Na fome. Não queria que estivesse de serviço no telhado. Não queria que fosse sozinha a Fontanka nem que

Page 319: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

319

andasse sem o absurdo capacete que lhe dera. Não queria que dormisse sem a roupa toda. Queria que se lavasse mesmo com água fria e que escovasse os dentes apesar de não comer. Queria apenas uma coisa.

Que continuasse viva. Já era alguma coisa. Um pouco de consolo. Teria de lhe bastar. Quando chegou a casa por volta das sete horas, encontrou a família morta de

preocupação. Depois de contar o que acontecera, toda a gente se zangou com ela por não ter voltado para casa.

- Teríamos compreendido – disse a mãe. – Queremos lá saber do pão? Dasha contou-lhe que mandara Alexander à sua procura. - Não faças mais isso, Dasha – censurou com um ar cansado. – Ainda o matam. Admirou-a ainda que a família não se mostrasse muito zangada com ela, mas

depois percebeu porquê. Alexander levara-lhes óleo, rebentos de soja e meia cebola. Dasha fizera um estufado delicioso, ao qual acrescentara uma colher de sopa de farinha e uma pitada de sal.

- Onde está? – perguntou Tatiana? - Bem, não havia muito, Tanechka – replicou Dasha. - Pensávamos que comerias lá onde estavas – acrescentou a mãe. - Mas comestes, não foi? – indagou a Babushka. - Tínhamos tanta fome! – exclamou Marina. - Ah! Não se preocupem comigo – retorquiu Tatiana, profundamente

desanimada. Alexander regressou por volta das oito. Andara três horas na rua. A primeira

coisa que disse foi? - O que aconteceu? Ela contou-lhe. - Onde estiveste todo o dia? – inquiriu, falando-lhe como se não se

encontrasse mais ninguém na sala. - Fui no hospital ver se havia comida. - E não havia, suponho. - Não muita. Comi umas papas de aveia. – Água transparente. - Não faz mal – replicou Alexander, despindo o casaco. – Há estufado. Tosses. Olhos no chão. Sem compreender, virou-se para Dasha: - Trouxe-te rebentos de soja. Disseste que iam fazer estufado. - E fizemos – respondeu ela, acobardando-se. – Mas era tão pouco! Comemo-

lo. - Comeram-no e não deixaram nada para ela? – Ficou vermelho. - Não faz mal, Alexander – interrompeu Tatiana ansiosamente. – Também não

deixaram nada para ti.

Page 320: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

320

Dasha soltou uma gargalhada nervosa: - Tu podes comer no quartel e ela disse que já comeu, querido. - Está a mentir! – gritou. - Comi, sim – afirmou Tatiana. - És uma mentirosa! – gritou-lhe ele. – Proíbo-te... – continuou aos berros - ...

proíbo-te de ires buscar comida para elas. Devolve-lhes as cadernetas de racionamento e elas que se arranjem. Que eu não te veja a ires buscar-lhes o pão quando não são capazes de te guardar um bocadinho da comida que trago!

Tatiana ouviu sem dizer nada. O coração transbordava-lhe tanto que, de momento, nem precisava de pão.

Virando-se para Dasha, Alexander atirou-lhe, esbaforido: - Se ela morrer, quem vai trazer-vos o pão? Quem vós trará sopa num balde?

Quem vos trará papas de cereais? - Eu trago da fábrica – observou a mãe em tom desagradável. - E come metade antes de entrar em casa! Pensam que não percebo? Pensam

que não sei que a Marina esgota aquilo a que tem direito antes do fim do mês e que depois exige pão à Tania, que se esfalfa enquanto vocês dormem?

- Eu não durmo. Coso – retorquiu a mãe. – Coso todas as manhãs. - Tania, não voltas a ir buscar-lhes a ração, percebes? – declarou ele,

fuzilando-a com o olhar. Estava outra vez a falar-lhe como se não se encontrasse mais ninguém presente.

Tatiana balbuciou que ia lavar-se. Quando regressou, Alexander achava-se sentado à mesa a fumar. Mais calmo.

- Anda cá – disse serenamente. Marina encontrava-se no outro quarto com a mãe e a Babushka ao fundo do

corredor com Nina Iglenko. - A Dasha? – perguntou ela, avançando devagar e olhando-o de frente. - Foi pedir um abre-latas à Nina. Aproxima-te. - Shura, por favor – disse Tatiana, parando à frente dele. – Onde está a tua

expressão indiferente? Tu prometeste. Ele observou-lhe a camisola. - Não te preocupes – continuou ela baixinho. – Vai ficar tudo bem. - Ainda me fazes sentir pior – comentou ele. – Para. – Estendendo o braço,

passou-lhe a mão na anca, deixando escapar um gemido de angústia. Tatiana debruçou-se e encostou a testa à dele.

Ficaram assim por um momento. Depois, ela afastou-se e ele tirou a mão. - Olha o que te trouxe, Tania. – Tirou uma latinha do casaco. Dasha entrou na sala: - Aqui tens o abre-latas. Para que o queres? Alexander abriu a latinha e, com a faca, cortou o conteúdo em pedaços

pequenos, passando-a depois a Tatiana:

Page 321: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

321

- Vá, come. - O que é? – perguntou, esboçando um sorriso. Tratava-se da coisa mais

deliciosa que já comera na vida. Não era bem fiambre, nem enchidos, nem carne de porco, mas as três coisas envolvidas numa camada de toucinho e aspic. A lata, pequena, devia ter uns cem gramas.- O que é? – repetiu, com os olhos mostrando o prazer que o corpo e os lábios não podiam manifestar.

- Spam. - Spam? O que é Spam? - Parecido com fiambre. Em russo chama-se tushonka. - Oh, é muito melhor do que fiambre. - Posso provas? – pediu Dasha. - Não. – Nem se virou para ela. – Quero que a tua irmã coma a lata toda. Tu já

comeste. Não é possível que tenhas fome depois de teres comido tanto guisado. - Só quero um bocadinho – insistiu Dasha. – Para provar. - Não. - Tania? Por favor? Desculpa ter comido o guisado todo. Sei que estás

zangada. - Não estou nada, Dasha. - Mas eu sim. – Alexander virou-se para ela: - És uma mulher feita. Esperava

outra coisa de ti. - Já pedi desculpa – resmungou Dasha. Tatiana comeu mais um bocado. Ainda havia meia lata. - Alexander? - Não, Tatiana. Voltou a comer. Restavam dois bocados pequenos. Tatiana lambeu o toucinho

e o aspic, tirou um pedaço da lata e estendeu-o a Alexander, que abanou a cabeça. - Vai lá – pediu ela. – Um para ti e outro para a minha irmã. Dasha arrebatou-o da mão de Alexander. Tatiana deu-lhe o último pedaço,

lançando-lhe mais um olhar. Ele comeu-o - Isto é uma delícia – declarou ela depois de lamber a lata.- Onde o arranjaste? - Através dos americanos, que mandaram para Leninegrado um caixote de

Spam e dois camiões do Exército. - Eu prefiro o caixote disto. - Olha que não sei. Os camiões são muito bons. – Sorriu. Tatiana teve vontade de lhe devolver o sorriso. Desviando o olhar, perguntou

à irmã: - Dasha, querida, como vai Nina? - Muito mal. Alexander saiu dali a pouco para regressar ao quartel. Na manhã seguinte,

quando Tatiana se levantou para ir buscar as rações, Dasha acompanhou-a. No dia seguinte, Dasha ficou na cama mas, ao chegar à rua, Tatiana deu com

um soldado à sua espera.

Page 322: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

322

- Sargento Petrenko! – exclamou, esboçando um sorriso. – Que faz aqui? - Ordens do comandante. – Perfilando-se, olhou-a calorosamente. – Pediu-me

para a levar à loja. Na outra manhã, Petrenko não estava na rua, mas Alexander, esperava-a na

Fontanka. Acompanhou-a a casa e regressou ao quartel. Um dia depois, foi buscá-la a casa.

No caminho de regresso, afastou-se dela para ir ajudar uma senhora que tentava descer a Ulitsa Nekrasova puxando ao mesmo tempo dois trenós, um com um cadáver enrolado num lençol branco e outro com uma bourzhuika. Alexander foi explicar-lhe que teria de deixar ali um ou outro e sugeriu-lhe que transportasse primeiro a bourzhuika.

Estava Tania pacientemente à espera dele encostada a um prédio, quando viu três rapazes aproximando-se num passo determinado. Com o olhar, procurou Alexander que, cerca de cem metros, puxava um dos trenos de costas voltadas para ela.

- Alexander! – berrou. Mas o vento uivava, a sua voz era fraca e ele não ouviu. Virou-se para os rapazes e reconheceu um deles: era o que lhe roubara o pão

três dias antes. A rua estava deserta e os montes de neve, encerrando os seus cadáveres, atingiam metros de altura. Não havia carros e nem autocarros. Só Tatiana, que suspirou. Ainda pensou em atravessar a rua e correr, mas o esforço... Não podia mexer-se. Ficou parada.

Quando os rapazes chegaram junto dela, estendeu-lhes o pão sem pronunciar uma palavra. Dois deles agarraram-na e empurraram-na contra uma porta. Debateu-se, mas não tinha forças. O terceiro, a hiena da outra vez, agarrou no pão e, erguendo os olhos de animal para ela, disse aos outros:

- Já está? Vamos. – Uma lâmina de metal faiscou à frente dela. Sem pestanejar nem respirar, Tatiana fitou o rapaz de frente: - Vão, fujam enquanto têm tempo. Fujam. Ele vai matar-vos! - O quê! – perguntou ele. - Fujam! – repetiu Tatiana. Nesse instante, a coronha de uma pistola bateu

com força na cabeça do rapaz, que caiu na neve. Os outros nem sequer tiveram tempo para a largar. O Alexander deu com a arma num e depois no outro. Numa questão de segundos, estavam todos imóveis no chão.

Puxou-a então da porta, pô-la atrás dele e ordenou: - Afasta-te. – Engatilhou a arma e apontou-a aos assaltantes. A mão dela avançou e foi pousar na pistola: - Não. Ele empurrou-lha: - Tatiana, está quieta. Eles vão levantar-se e aterrorizar outros. Afasta-se. - Por favor, Shura. Não. Eu vi os olhos deles. Não duram até amanhã. Não

sujes as mãos com as suas mortes.

Page 323: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

323

Ele guardou a arma com relutância, apanhou o saco de pão do chão, passou o braço em volta dos seus ombros e acompanhou-a a casa. Estava um frio de rachar.

– Sabes o que te teria acontecido se eu não estivesse lá? – Sei. - Queria levantar os olhos para o seu rosto, mas nem para isso tinha

forças. - O mesmo que acontece quando estás. Na manhã seguinte, Alexander levou-lhe uma pistola. Não a sua Tokarev, mas

uma P-38 de fabrico alemão que adquirira dois meses antes, perto de Pulkovo. – Não te esqueças de que os rapazes são uns cobardes; só te atacam porque

acham que podem. Não tens de usar a arma. Acena-lhes com ela e vais ver que não se aproximam outra vez...

– Nunca na vida usei uma... – Estamos em guerra, Tania! - exclamou ele. - Não costumavas jogar às

guerras com o Pasha? E não jogavas para ganhar? Pois agora faz o mesmo. Só não te esqueças de que há muito mais coisas em jogo

Depois deu-lhe um punhado de rublos. – O que é isto? – Mil rublos. Metade do que recebo por mês. Não há comida, mas ainda se

arranja alguma coisa no mercado negro. Vai, e nem sequer penses nos preços. Compra o que for preciso. Há sítios onde ainda se vende farinha. E talvez também outras coisas. Não queria deixar-te, mas tem de ser. O coronel Stepanov quer que eu leve os meus homens e os camiões para o lago Ladoga.

– Obrigada – sussurrou ela. O rosto de Alexander estava tenso. – A tua prima e a tua irmã têm de ir contigo à loja, Tatia. Não vás sozinha, por

favor. Só regressarei daqui a uma semana, dez dias. Ou talvez mais. - As palavras não proferidas pairaram no ar gélido. - Não te preocupes comigo. - Depois de uma pausa, prosseguiu com um ar taciturno: - O pior é que perdemos Tikhvin. O Dimitri deu um tiro em si próprio mesmo a tempo. Tikhvin era...- Interrompeu-se. - Não interessa.

– Imagino. Assentindo, continuou: – Não há via-férrea para o outro lado do lago. Os víveres só podem entrar em

Leninegrado pelo Ladoga, mas agora não há maneira de os fazer chegar ao Ladoga. O pão que recebemos... é feito com a farinha que havia de reserva. Temos de reconquistar Tikhvin e a via-férrea. Sem eles, nem vale a pena pensar em trazer mantimentos para a cidade.

– Oh, não! – Oh, sim! Entretanto, as autoridades ordenaram-nos que construíssemos

uma estrada através das aldeias quase despovoadas do Norte, perto de Zaborye, até ao outro lado do lago. Nunca lá houve nenhuma estrada, mas não temos outra hipótese. É construir a estrada ou morrer.

Page 324: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

324

– E como se trazem mantimentos por um lago que ainda não está bem gelado? - Estremeceu.

Os olhos castanhos de Alexander entristeceram. – Se não recuperarmos Tikhvin, não haverá nada para trazer, por mais gelado

que o lago esteja. Não há hipóteses. - Sem tocar nela: - Nenhumas. - E acrescentou com relutância: - Agarra-te bem às provisões que ainda tens. As rações vão ser novamente reduzidas.

– Já não temos muito, Shura – murmurou ela. Encaminharam-se para a esquina da Nevsky com a Liteyny, onde ele se

despediu, dizendo: – Ontem chamaste-me de Shura à frente da tua família. Precisas de ter mais

cuidado ou a tua irmã ainda repara. – Tens razão – concordou tristemente. - Tenho de ser mais cuidadosa. No mercado, comprou menos de meio quilo de farinha por quinhentos rublos.

Cada chávena custava duzentos e cinquenta. Adquiriu meio quilo de manteiga por trezentos rublos, algum leite de soja e um pequeno pacote de fermento.

Em casa ainda havia um restinho de açúcar. Fez pão. Mil rublos, metade do que Alexander recebia por mês para defender

Leninegrado, dera-lhes para comprar um pão e um pedaço de manteiga. O jantar de uma noite. Pelo menos, arranjara-lhes lenha para o fogão e até querosene.

Partiram o pão. Tatiana dividiu-o em cinco, distribuiu-o pelos pratos e comeu-o com faca e garfo. Não sabia das outras mas, por ela, agradeceu a Deus por Alexander.

Page 325: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

325

5

Era novembro e os dias amanheciam cinzentos. Tinham tapado as janelas com cobertores para o frio não entrar, só que ao fazê-lo a luz também não passava.

«Que luz?», pensou Tatiana uma manhã da terceira semana de novembro, levantando-se da cama e encaminhando-se para a cozinha com a escova de dentes e o peróxido na mão. Dantes tinha peróxido e bicarbonato de soda, mais uma vez deixara-o no peitoril da janela da cozinha e alguém o comera.

Tatiana rodou a torneira. Rodou e tornou a rodar. Não havia água. Suspirando, voltou para o quarto a arrastar os pés e meteu-se na cama. Dasha

e Marina resmungaram. – Não há água – anunciou. Às nove horas, quando já havia luz, Tatiana e Dasha foram à delegação

municipal. Uma mulher pálida com o rosto todo marcado explicou-lhes que, uns dias atrás a energia fora cortada na Quinta Central Elétrica da Cidade porque Leninegrado estava sem combustível.

– O que tem isso a ver com a nossa água? - perguntou Dasha. – O que é que bombeia a água? - indagou a mulher. Dasha pestanejou devagar: – Desisto. Isto é um teste? Tatiana puxou a irmã pelo braço: – Vamos, Dasha. - Virando-se para a mulher: - A energia pode ser a resposta,

mas os canos estão congelados de vez. - Falava num tom acusador: - Só voltaremos a ter água na primavera.

– Não se preocupe – retorquiu a mulher, concentrando-se de novo no que estava a fazer. - Nenhum de nós estará vivo na primavera.

Tatiana informou-se no prédio da Quinto Soviete e descobriu que o primeiro andar tinha água... não havia era pressão para a bombear até o terceiro. Portanto, na manhã seguinte foi à rua buscar um balde de neve, que levou para cima. Derreteu-a na bourzhuika e despejou a água na retrete. Desceu depois ao primeiro andar a buscar água limpa para se lavarem: ela, Dasha, a mãe, Marina e a Babushka.

– Podes levantar-te para vir comigo? - pediu Tatiana um dia à irmã. Dasha ainda estava na cama, debaixo dos cobertores. – Oh, Tania, está muito frio. Custa-me tanto levantar-me! Por causa da água e das rações, nunca conseguia chegar ao hospital antes das

dez, às vezes onze.

Page 326: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

326

Já não tinham papas de aveia. Só um bocadinho de farinha e de chá e alguma vodca.

Mais os novecentos gramas de pão por dia a que Tatiana, Dasha e a mãe tinham direito e os quatrocentos de Marina e da Babushka.

– Estou a engordar – comentou Dasha. – Eu também – acrescentou Marina. - Tenho os pés três vezes maiores. – É como os meus – concordou Dasha. - Não consigo calçar as botas. Tania,

não posso ir contigo hoje. – Não faz mal, Dasha. Não tenho os pés inchados. – Porque estou a inchar? - indagou Dasha em voz desesperada. - O que me

está a acontecer? – A ti? - retorquiu Marina. - É sempre só a ti. As coisas só te acontecem a ti. – O quê? – E eu? - exclamou Marina. - E a Tania? O teu problema é esse, Dasha... nunca

vês as pessoas que estão à tua volta. – Oh, e tu vês, comilona de pão? Comilona de papas de aveia! Espera que eu

conto à Tania as papas de aveia que nos roubaste, sua ladra! – Posso ter fome, mas pelo menos não sou cega! – Que queres dizer com isso? – Meninas, meninas! - exclamou Tatiana em voz fraca. - Para que estão a

discutir? Para saberem quem está a inchar mais? Quem está a sofrer mais? Ganharam as duas. Voltem para a cama e esperem por mim. E estejam caladas as duas, especialmente tu, Marina.

Page 327: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

327

6

– Que havemos de fazer? - perguntou a mãe uma noite, já a Babushka estava no outro quarto e as raparigas na cama.

– A propósito de quê? - indagou Dasha. – Da Babushka. Agora que já não vai ao outro lado do Neva, passa o dia em

casa. – E agora que passa o dia em casa, como o resto da farinha do Alexander às

colheradas – acrescentou Marina. – Cala-te, Marina – protestou Tatiana. - Já não temos farinha. O que ela come

é o que ficou agarrado ao fundo do saco. – Sim? - Mudando de assunto: - Tania, achas que é verdade que os ratos

abandonaram a cidade? – Não sei. – Tens visto cães ou gatos? – Isso sei que não há. - Procurara. A mãe aproximou-se da cama das raparigas, agachou-se e abanou a cabeça: – Ouçam – começou. A sua voz já não era desabrida, estridente e barulhenta.

Mal era uma voz e muito menos uma voz que Tatiana reconhecesse como sendo a da mãe, que continuava a andar com um lenço atado à cabeça. - Estou a falar do frio. Temos lenha que chegue para acender a bourzhuika todo dia?

– Não – respondeu Dasha, erguendo-se apoiada num cotovelo. - Sei que não. Precisamos da lenha para acender a bourzhuika à noite. E mal dá para isso. É só ver há quanto tempo não aquecemos os quartos com o fogão grande.

«Desde a última vez que o Alexander cá esteve», pensou Tatiana. «Ele vai sempre buscar a lenha, acende o lume e aquece a casa.»

A mãe torceu as mãos: – Vamos ter de lhe dizer para acender a bourzhuika durante todo o dia. – Está bem, mãezinha – anuiu Tatiana -, mas em breve não teremos lenha. – Ela gela nesta casa. Já reparaste como se mexe devagar? Dasha assentiu: – Ela costumava ir à cantina pública e passar lá o dia à espera de que lhe

dessem sopa ou papas. Hoje não a vi levantar-se do sofá nem para jantar conosco. Podemos levá-la para o teu hospital, Tania?

– Podemos tentar – retorquiu Tatiana da parede -, mas não me parece que haja camas livres. Estão todas ocupadas pelas crianças e pelos feridos.

– Vamos ver amanhã, está bem? - sugeriu a mãe. - Pelo menos no hospital estará mais quente. Ainda se aquecem os hospitais, não?

Page 328: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

328

– Fecharam três enfermarias – respondeu Tatiana, saindo da cama. - Neste momento só há uma a funcionar. E está cheia.

Foi ver a avó. Os cobertores tinham deslizado e a Babushka Maya estava detada só com o casaco a agasalhá-la. Pegou neles, tapou-a até ao pescoço, aconchegou-a ternamente e ajoelhou-se no chão.

– Babushka – sussurrou -, fale comigo. A Babushka emitiu um gemido fraco, Tatiana pousou a mão na cabeça da avó. – Está sem forças? - perguntou. – Pois é... Esboçou um sorriso: – Babushka, lembra-se de quando pintava e eu me sentava ao pé de si? O

cheiro da tinta era muito forte e a Babushka estava sempre toda suja. Eu sentava-me tão perto que também ficava pintalgada.

– Lembro, minha luz do sol. Eras uma criança amorosa. - Sorriu. Tatiana continuou com a mão na cabeça dela.

– Ensinou-me a desenhar uma banana aos quatro anos. Eu nunca tinha visto nenhuma, lembra-se?

– Mas mesmo assim desenhaste muito bem. Oh, Tanechka...- A voz embargou-se lhe.

– O que foi, Babushka? – Oh, ser nova outra vez... – Não sei se reparou, mas os mais novos também não andam a sair-se muito

bem – sussurrou ela. – Não estou a falar deles, mas sim de ti – replicou a Babushka, abrindo os

olhos por um instante. Na manhã seguinte, Tatiana acarretou os dois baldes de água para cima e foi

buscar as rações. Quando regressou, a Babushka estava morta. Jazia no sofá, tapada com os cobertores e um casaco, imóvel e fria. Marina chorava:

– Vim acordá-la e ela não se mexeu. Tatiana e a família rodearam a Babushka. Depois, fungando, encolhendo os ombros e encaminhando-se para a mesa,

Marina sugeriu: – Vamos comer. A mãe assentiu e dirigiu-se igualmente à mesa: – Isso, vamos comer o pão da manhã. Já fiz um bocadinho de chicória. A

Sarkova acendeu o fogão da cozinha com lenha dela e eu aproveitei o resto do calor. – Sentaram-se. Tatiana dividiu a ração em duas metades: pouco mais de meio

quilo para o pequeno-almoço e pouco mais de meio quilo para o jantar. Depois, partiu meio quilo em quatro bocados e cada uma comeu cento e vinte e cinco gramas.

– Marina – disse ela firmemente –, traz o pão para casa, estás a ouvir?

Page 329: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

329

– E a ração da Babushka? - indagou a prima. - Vamos dividi-la e comê-la agora. - Assim fizeram. Depois, Marina, Dasha e a mãe comeram as borras da chicória com que tinham feito um líquido que parecia e cheirava a café. Tatiana não quis e disse à mãe que ia ao Soviete local dar parte da morte da Babushka para que fossem recolher o corpo.

A mãe pousou a mão no seu ombro: – Espera. Se fores dar parte, saberão que morreu. – Sim? – E não poderemos continuar a levantar a ração a que tinha direito. Levantou-se da mesa: – Ainda temos senhas até ao fim do mês. São mais dez dias de pão. – E depois? – Sabe uma coisa, mãezinha? - observou ela, arrumando a louça. - Dez dias já

é tempo de mais para mim. – Não vale a pena estares a arrumar, Tania – disse Dasha. - Não há água para

lavar nada. Deixa aí os pratos. Afinal, só tinham pão. Tornamos a usá-los logo à noite. - Virando-se para a mãe: - Se não vierem cá buscar o corpo, quem o fará? Nós não podemos com ela e não a vamos deixar aqui, não é? - Depois de uma pausa: - Não podemos continuar a comer e a coser com a nossa avó no sofá.

A mãe fitou a Babushka: – É melhor aqui do que lá fora na rua – replicou em voz fraca. Tatiana deixou os pratos na mesa e foi tirar um lençol branco da cômoda. – Não, mãezinha, não pode ficar aqui. As pessoas devem ser sepultadas. Até

na União Soviética – volveu tristemente. - Dasha, ajude-me. Temos de a amortalhar antes de a levarem. Vamos enrolá-la aqui.

Dasha tirou os cobertores e o casaco à Babushka: – Vamos ficar com os cobertores. Precisamos deles. Tatiana olhou em volta. A sala estava desarrumada: livros fora das prateleiras,

roupas no chão, pratos em cima da mesa. Onde estaria o que procurava? Ah, ali! Encaminhou-se para a janela, pegou no pequeno desenho de uma torta de

maçãs que a Babushka fizera em setembro e posou-lhe no peito: – Pronto. Vamos lá. Depois de terem envolvido a Babushka no lençol, a mãe coseu-o em cima e

embaixo, fazendo um saco. Tatiana benzeu-se, limpou rapidamente as lágrimas e saiu.

À tarde, chegaram dois homens para recolher o corpo. A mãe pagou-lhes oferecendo dois copos de vodca a cada um.

– Nem acredito que ainda tenha vodca, camarada – observou um deles. – É a primeira pessoa este mês.

– Sabia que a vodca é o que tem mais procura no mercado? – perguntou o outro. – Se tiver mais, pode trocá-la por pão.

Page 330: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

330

As mulheres Metanov entreolharam-se. Tatiana sabia que ainda tinham duas garrafas. Sem o pai e sem Dimitri, apenas Alexander bebia a vodca e mesmo assim muito pouca.

– Para onde a levam? - indagou a mãe. - Nós também vamos. - Tinham ficado todas em casa.

– Temos um camião cheio lá fora – responderam os homens. - Não há lugar para mais ninguém. Vamos levá-la para o cemitério mais próximo, que é o da Starorusskaya. Vão lá visitá-la.

– E a campa? - inquiriu a mãe – Um caixão? – Um caixão? – o homem abriu a boca e riu silenciosamente. – Camarada, não

conseguirei arranjar-lhe um caixão nem que me dê o resto da sua vodca. Quem há de fazê-los? E com quê?

Tatiana assentiu, pensando que também ela mais depressa usaria a madeira do caixão para queimar do que para enterrar a avó. Arrepiou-se e abotoou o casaco.

– E a campa? – perguntou a mãe com o rosto cinzento e a voz embargada. – Camarada, já viu a neve e o solo gelado? – exclamou ele. – Venha lá fora

conosco e veja, e já agora deite uma olhadela ao camião. Tatiana avançou, pousou a mão no braço do homem e falou serenamente: – Camarada, leve-a lá para baixo. É o que custa mais. Leve-a para baixo e nós

depois tratamos dela. Foi ao sótão, onde em tempos penduravam a roupa a secar. Já não o faziam,

mas encontrou o que procurava: o seu trenó de criança, de um azul berrante e com patins vermelhos. Levou-o para a rua com cuidado para não escorregar. O corpo da Babushka já fora deixado no passeio coberto de neve.

– Vá, meninas, vou contar até três – disse a Marina e a Dasha. Mas a prima estava muito fraca para poder ajudar. Ela e a irmã ergueram a Babushka para o trenó, que puxaram ao longo dos três quarteirões que as separavam da Starorusskaya, seguidas pela mãe e por Marina. Tatiana olhou com relutância para a partede trás do camião municipal. Os corpos estavam empilhados uns por cima dos outros, perfazendo uma altura de três metros. – São as pessoas que morreram hoje? – perguntou ao condutor.

– Não. Isto foi só de manhã. – Inclinando-se para ela: – Ontem recolhemos mil e quinhentos cadáveres nas ruas. Vende a tua vodca, menina. Vende-a e compra pão.

Os cadáveres amontoavam-se à entrada do cemitério, alguns embrulhados em lençóis brancos e outros não.

Tatiana viu uma mãe e uma criança que tinham ido levar o pai ao cemitério e que haviam gelado à entrada, na neve. Fechando os olhos, tentou afastar a imagem da cabeça. Só queria ir para casa.

– Não se pode passar. É impossível. Vamos deixar aqui a nossa Babushka – sugeriu. – Que mais podemos fazer? – Ela e Dasha pegaram no corpo da avó e

Page 331: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

331

pousaram-no suavemente na neve, ao lado dos portões do cemitério. Ficaram paradas por uns minutos.

Depois foram para casa. Venderam as duas garrafas de vodca no mercado negro e receberam por elas

apenas dois pães. Com Tikhvin nas mãos dos Alemães, não havia pão nem no mercado negro.

Page 332: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

332

7

Passou uma semana. Tatiana não podia descarregar a retrete, nem escovar os dentes, nem lavar-se. «O Alexander não vai ficar satisfeito», pensou. Havia muito que não sabiam dele. Estaria bem?

– Quando achas que vão consertar os canos? – perguntou Dasha uma manhã. – Devias fazer votos para que não fosse tão cedo – replicou Tatiana. – Porque

vais começar a lavar roupa outra vez quando os consertarem. Dasha aproximou-se da irmã e abraçou-a: – Adoro-te. Não perdeste o bom humor. – Mais ou menos – respondeu, devolvendo-lhe o abraço. Se viver com pequenos baldes de água e sem canalização já era difícil, o pior

de tudo era a água que as pessoas entornavam ao subir do primeiro andar, pois congelava logo. Com uma temperatura entre cinco e vinte graus negativos todos os dias, as escadas estavam sempre cobertas de gelo. De manhã, quando ia buscar água, Tatiana levava o balde numa mão, agarrava-se ao corrimão com a outra e deslizava apoiada no traseiro.

Custava muito mais levar o balde cheio para cima. Caía pelo menos uma vez e tinha de voltar atrás para ir buscar mais água. E quanto mais entornava, mais depressa caía e mais espessa ficava a camada de gelo. As escadas das traseiras eram ainda mais traiçoeiras. Uma mulher do quarto andar caíra um lance inteiro, partira uma perna e não conseguira levantar-se. Gelara nas escadas. Ninguém a pudera tirar de lá, nem antes nem depois.

Tatiana, Marina, Dasha e a mãe sentavam-se no sofá a ouvir o metrónomo do rádio marcando as suas pulsações através das ondas aéreas, com as frequências abertas e de vez em quando interrompidas por uma torrente de palavras, algumas com sentido, como «Moscovo trava uma luta de vida ou morte com o inimigo», outras incompreensíveis, como «a ração do pão foi novamente reduzida para cento e vinte e cinco gramas por dia para os dependentes e duzentos gramas para os trabalhadores».

Às vezes seguiam-se outras palavras: «baixas», «destruição», «Churchill». Estaline falou da abertura de uma segunda frente e, Volkhov, mas não antes

de Churchill abrir também uma outra nos países do Norte, de modo a dividir os Alemães. Este respondeu que não dispunha de homens nem de recursos materiais para abrir uma segunda frente, mas que estava disposto a pagar os danos sofridos por Estaline, que lhe retorquiu com secura que apresentaria a conta diretamente ao Führer.

Page 333: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

333

Moscovo agonizava mas continuava a combater Hitler até ao último estertor. A cidade estava a ser bombardeada, tal como Leninegrado.

–Há um mês que não sabemos nada da Babushka Anna – disse Dasha numa noite de novembro. – Tania, tens notícia do Dimitri?

–Claro que não. Não me parece que volte a dar sinais de vida. – Depois de uma pausa: – Também já há algum tempo que não recebemos notícias do Alexandre.

–Eu recebi. Há três dias. Esqueci-me de te dizer. Queres ler a carta dele?

«Querida Dasha e todas as outras: Espero que esta carta vos encontre de saúde. Estão à minha espera? Por mim,

sinto-me ansioso por regressar. O meu comandante mandou-me para Kokkorevo, uma aldeia piscatória sem

pescadores. No sítio onde ficava a aldeia existe agora apenas um buraco. Não tínhamos praticamente camiões deste lado e muito menos combustível para os poucos que trouxemos. Éramos cerca de vinte, mais alguns cavalos. Fomos lá ver se o gelo conseguiria aguentar um camião de mantimentos e munições ou, pelo menos, um cavalo com um trenó cheio de alimentos.

Saímos para o gelo. Está tanto frio que seria de esperar que já estivesse sólido, mas não. Havia lugares onde a camada era surpreendentemente fina. Perdemos logo um camião e dois cavalos. Ficamos parados nas margens dolago Ladoga a olhar para aquela extensão de gelo, até que eu disse que o melhor era desistirmos e que me dessem um cavalo. Montei nele e andei quatro horas no gelo até Kobona! Estavam doze graus abaixo de zero. Pareceu-me que o gelo era suficiente.

Logo que regressei com um trenó carregado de alimentos, encarregaram-me de um regimento de transporte, ou seja, um outro nome para mil Voluntários do Povo. Ninguém ia dispensar soldados a sério para isto.

Como o gelo não estava ainda suficientemente sólido para os camiões, os voluntários tinham de ir a Kobona a cavalo carregar os trenós com alimentos e outras provisões. Digo-vos: a vossa Babushka ter-se-ia saído melhor do que alguns destes homens. Ou nunca tinham montado a cavalo, ou nunca haviam andado ao frio, ou ambas as coisas, porque nem calculam o número de acidentes que tivemos. Com homens a cair dos cavalos, afundando-se no gelo e afogando-se. Logo no primeiro dia, perdemos um camião e um carregamento de querosene. Estávamos a tentar transportar combustível, cuja falta é tão grave como a de alimentos. Não há petróleo para acender os fornos onde se coze o pão.

Resolvemos pôr os camiões de lado durante uns dias e servir-nos apenas dos cavalos, que iam percorrendo vagarosamente os trinta quilômetros de Kobona a Kokkorevo. Um dia conseguimos transportar vinte toneladas de alimentos. Nem por sombras chega, mas já é alguma coisa. Agora estou em Kobona a carregar os trenós com mantimentos. Custa-me muito olhar para a farinha e saber que aí em casa não

Page 334: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

334

há nenhuma. As rações das tropas da linha de frente foram reduzidas para meio quilo de pão por dia. Soube que os dependentes agora só têm direito a cento e vinte e cinco gramas. Mas não percamos a esperança.

Nem é preciso dizer que os Alemães não estão nada satisfeitos com a nossa estrada de gelo, que bombardeiam impiedosamente de dia e de noite, mas menos à noite. Na primeira semana, perdemos mais de três dúzias de camiões e muita comida. Por fim perceberam que eu não podia continuar a guiar camiões e que seria mais útil noutro lado. Agora estou do lado de Kokkorevo a tentar atingir aviões alemães atrás de uma antiaérea Zenith, que dispara tiros de metralhadora ou bombas. Enche-me de satisfação saber que acertei num avião que estava prestes a atingir um camião que vos levava comida.

O gelo agora está sólido, exceto nalguns sítios, e temos bons camiões que atravessam o lago a cerca de quarenta quilômetros por hora. Eu e os meus homens chamamos a esta via de gelo a Estrada da Vida. Soa bem, não acham?

Mesmo assim, sem Tikhvin não conseguiremos fazer entrar grande coisa em Leninegrado. Temos de reconquistar a cidade. Achas que devia oferecer-me para o fazer, Dasha? Já me imaginaste a carregar contra os Alemães no meu cavalo cinzento a morrer de fome, com a minha metralhadora Shpagin novinhas em folha nos braços? Estou só a brincar... suponho. Mas a Shpagin é uma arma excelente.

Não sei quando poderei voltar a Leninegrado, mas quando regressar levarei comida. Por isso, aguentem-se.

Coragem. O vosso Alexander»

«Caminha, caminha sem levantar os olhos», dizia Tatiana com os seus botões. «Tapa o rosto com o cachecol, tapa os olhos se for preciso, mas não vejas, não vejas Leninegrado, não vejas o teu pátio onde os cadáveres se amontoam, não vejas as ras onde os corpos jazem na neve, levanta o pé e passa por cima deles. Desvia-te do cadáver. Não olhes! É melhor não olhares.» Nessa manhã, viu um homem acabado de morrer, jazendo no chão sem uma parte do tronco. Não fora uma bomba. Tinham-no cortado com uma faca. Apalpando o bolso do casaco para se certificar de que tinha a pistola de Alexander, avançou silenciosamente por entre os montes de neve com os olhos postos no chão à sua frente.

Sozinha na escuridão da madrugada, teve de empunhar duas vezes a pistola. Deu graças a Deus por Alexander existir. No fim de novembro, o sopro provocado por uma explosão rebentou os vidros

da sala onde comiam. Como não tinham mais nada, foram obrigadas a tapar o buraco com os cobertores da Babushka. A temperatura da sala, que era de cerca de zero graus, desceu mais trinta.

Tatiana e Dasha levaram a bourzhuika para o quarto e puseram-na à frente do sofá, para que a mãe estivesse quente enquanto cosia os uniformes. Continuando a

Page 335: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

335

encorajar a iniciativa privada, a fábrica pagava-lhe vinte rublos por cada farda que fizesse acima da sua quota. Levou o mês de novembro inteiro para coser cinco uniformes. Nessa altura, entregou o dinheiro a Tatiana e mandou-a procurar comida às lojas.

A rapariga regressou com um copo de terra, onde se misturara e derretera o açúcar que existia nos armazéns Badayev quando os Alemães os haviam bombardeado em setembro.

– Logo que a terra assentar no fundo, ficaremos com chá doce – anunciou o mais alegremente que conseguiu.

«Passa por cima, não levantes os olhos, Tatiana, continua na fila e não percas o lugar; se o perderes, não terás pão e serás obrigada a vasculhar a cidade à procura de outra loja. Fica, não te mexas. Alguém há de vir limpar.» Caíra uma bomba narua, na fila onde Tatiana esperava, na Fontanka, estraçalhando uma dúzia de mulheres. Que fazer? Tratar dos vivos? Da sua família? Ou recolher os mortos? Não levantes os olhos, Tatiana.

«Não levantes os olhos, Tatiana, mantém-nos pregados na neve e observa apenas as tuas botas a desfazerem-se. Em tempos, a mãezinha poderia ter-se feito outro par, mas agora já nem consegue coser uma farda à mão, com ou sem a ajuda de Dasha, com ou sem a tua ajuda, e em outubro cosia dez por dia à máquina.

Alexander! Quero manter a minha promessa. Quero continuar viva... mas apesar das minhas parcas necessidades e do meu metabolismo atrofiado não vejo como conseguirei sobreviver com duzentos gramas por dia, vinte e cinco por cento dos quais são celulose comestível: serradura e casca de pinheiro. Pão amassado com semente de algodão para o gado, que dantes se pensava ser venenosa para o homem... mas já não. Pão que não é pão mas biscoitos de marinheiro: farinha e água. Chamava-lhes biscoito de marinheiro. Pão duro e pesado como um paralelepípedo da rua. Não consigo sobreviver com duzentos gramas por dia desse pão.

Não consigo sobreviver com sopa rala. Não consigo sobreviver com papas de água.

A Luba Petrova não conseguiu. Nem a Vera. Nem o Kirill. Nem a Nina Iglenki. A mãezinha e a Dasha conseguirão? E a Marina?

Tudo o que tenho feito até agora não chega. Viver vai exigir de mim qualquer coisa que não é deste mundo. Preciso de

uma força que sacie a carência com nada, o frio com nada, a fome com nada.» A fome dava lugar a uma depressão terminal, à falta de interesse por tudo e

todos. Tatiana ignorava completamente os bombardeamentos. Não tinha forças para fugir, para se proteger, ajudar a recolher os corpos ou amparar as vítimas. A apatia e um constante torpor rodeavam-na como uma fortaleza que só era penetrada por uns ligeiros sobressaltos parecidos com sentimentos.

A mãe beliscava lhe o coração; Dasha despertava-lhe o afeto. Até Marina, com a sua avidez miserável, tocava qualquer coisa dentro de Tatiana, que não a

Page 336: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

336

condenava mas que se sentia desiludida. Apiedara-se de Nina Iglenko, esperando que o seu último filho morresse antes de também perecer.

Tinha de deixar de sentir. Se já cerrava os dentes no dia a dia, teria de os cerrar com mais força, porque já não havia comida em lado nenhum.

«Não vou vacilar nem acobardar-me perante a minha curta vida. Não vou baixar os braços. Encontrarei maneira de levantar a cabeça. Viver fora de tudo. Exceto de ti, Alexander. A ti quero-te cá dentro.»

Page 337: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

337

PEDAÇOS DE FORTALEZA

1

O outro lado das noites brancas: dezembro em Leninegrado. Noites brancas: luz, verão, sol, um céu pastel. Dezembro: escuridão, tempestades de neve batidas pelo vento, nuvens pesadas, um céu encoberto. Um céu opressivo.

A luz tênue aparecia por volta das dez da manhã, ficava até às duas e desaparecia relutantemente, deixando a cidade novamente na escuridão.

Uma escuridão completa. No início de dezembro, a eletricidade foi desligada em Leninegrado, não por um dia mas aparentemente de vez. A cidade vivia mergulhada numa noite perpétua. Os elétricos deixaram de circular. Havia meses que não se viam autocarros por causa da falta de combustível.

A semana de trabalho foi reduzida para três dias, depois dois e finalmente a um. A eletricidade acabou por ser ligada nalguns sítios essenciais para o esforço de guerra: Kirov, a fábrica de pão, os serviços de água, a fábrica da mãe e uma enfermaria do hospital de Tatiana. Mas os elétricos tinham deixado de funcionar definitivamente. Em casa não havia eletricidade nem aquecimento. A água continuava a chegar apenas ao primeiro andar, ao fundo das escadas geladas.

As manhãs eram como uma mortalha que infectava o espírito de Tatiana, para quem se tornara impossível pensar noutra coisa que não no caráter mortal.

No início de dezembro, a América entrou finalmente na guerra... qualquer coisa que tinha a ver com a ilha do Havaí e os Japoneses.

– Pode ser que agora que a América está do nosso lado... – comentou a mãe, cosendo.

Poucos dias depois, a cidade de Tikhvin foi reconquistada. Estas eram palavras que Tatiana compreendia. Tikhvin! Caminhos de ferro, estrada de gelo, comida. Um aumento na ração?

Não, um aumento não. Cento e vinte e cinco gramas de pão. Quando a eletricidade foi desligada, o rádio deixou de funcionar. Acabou-se o

metrônomo e as notícias. Não havia luz, água, lenha nem comida. Tic tac. Tic tac. Sentavam-se a olhar umas para as outras e Tatiana sabia o que estavam a

pensar. Quem seria a seguir?

Page 338: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

338

– Conta-nos uma anedota, Tania. Suspiro. – O freguês pede ao talhante: «Queria cinco gramas de salsicha.» «Cinco

gramas?», repete o talhante. «Estás a brincar comigo?» Responde o freguês: «Claro que não. Se quisesse brincar consigo, pedia-lhe para a cortar em fatias.»

Suspiros. – Boa anedota, filha. Tatiana regressava ao apartamento arrastando o balde de água atrás de si. A

porta do Slavin maluco estava fechada. Lembrou-se de que havia já algum tempo que permanecia fechada. Mas a de Petr Petrov encontrava-se aberta. Viu-o sentado à mesa tentando em vão enrolar um cigarro.

– Quer ajuda? – perguntou, pousando o balde no chão e entrando. – Quero, Tanechka, obrigado – respondeu ele em voz derrotada. Tinha as

mãos a tremer. – Que se passa? Vá trabalhar. Assim almoça. Ainda dão comida em Kirov? Kirov fora praticamente destruída pela artilharia alemã, disparando de

Pulkovo, apenas a uns quilômetros de distância para o sul, mas os Soviéticos tinham construído uma fábrica menor dentro da fachada destroçada e, até uns dias atrás, Petr Pavlovich apanhava o elétrico número 1 para a linha da frente.

A jovem lembrava-se vagamente do elétrico número 1. – Que se passa? – repetiu. – Não quer ir? Ele abanou a cabeça: – Não te preocupas comigo, Tanechka. Já tens preocupações que cheguem. – Conte lá. – Depois de uma pausa:– São as bombas? Voltou a abanar a cabeça: – Não é a comida nem as bombas? – Observou-lhe a cabeça calva e

encarquilhada e foi fechar a porta. – O que é? – perguntou com voz serena. Petr Petrov explicou-lhe que fora destacado recentemente para Kirov com a

tarefa de consertar os motores avariados dos tanques. Não havia fornecimentos, peças novas e nem sequer motores.

– Inventei uma maneira de adaptar os motores dos aviões aos tanques. Consertava-os e montava-os nos tanques e também reparava os dos aviões.

– Isso é bom – exclamou ela. – Então recebe a ração de um trabalhador, não é? Trezentos e cinquenta gramas de pão – acrescentou.

Ele gesticulou com a mão e deu uma passa no cigarro: – Não é isso. É a prole do Diabo, a NKVD. – Cuspiu com maldade. – Não se

ensaiaram para matar os coitados que não conseguiram consertar os motores. Quando lá cheguei, puseram-me em cima de mim com as espingardas a ver se eu era capaz de reparar o equipamento.

Tatiana escutava-o com a mão pousada nas suas costas e os ossos e o coração gelados.

– Mas consertou-os, camarada – sussurrou.

Page 339: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

339

– Sim, mas e se não tivesse sido capaz? – O frio, a fome e os Alemães já não no chegam? Quantas maneiras mais há de nos matar?

Ela recuou. – Lamento muito pela sua mulher – murmurou, abrindo a porta. Nessa tarde, ao regressar a casa, reparou que a porta dele ainda estava

aberta. Espreitou para dentro. Petr Pavlovich Petrov continuava sentado, segurando na mão o cigarro meio fumado que ela lhe enrolara. Estava morto. Tatiana benzeu-se com os dedos trêmulos e fechou a porta.

Entreolharam-se no sofá, na cama, no quarto. Agora dormiam e comiam as quatro no mesmo sítio. Punham os pratos no colo e era assim que jantavam. Depois, dentavam-se à frente da bourzhuika a observar as chamas através da janelinha do fogão. Era a única luz do quarto. Tinham bastante pavio e fósforos, mas nada para queimar. Se ao menos tivessem...

Nada para queimar. Oh, não! Tatiana lembrou-se. O óleo para motores. O óleo que Alexander lhe dissera para comprar naquele

domingo de junho em que ainda havia gelados, sol e uma centelha de alegria. Ele dissera-lhe... e ela não lhe dera ouvidos.

E agora... Já não havia tic tac, tic tac. – Que estás a fazer, Marina? Uma tarde de dezembro, Marina pôs-se a arrancar o papel da parede.

Rasgando um bocado, foi molhar a mão no balde de água e humedeceu a parte de trás do papel.

– Que estás a fazer? – repetiu Tatiana. A prima pegou uma colher e começou a raspar a cola: – Uma mulher que estava hoje à minha frente na fila disse que a cola do papel

de parede às vezes é feita com farinha de batata. – Raspava freneticamente. Tatiana tirou-lhe com cuidado: – Farinha de batata e cola – censurou. Marina arrebatou-lhe o papel. – Tira as mãos. Arranja um bocado para ti. – Farinha de batata e cola – repetiu. – E depois? – E depois que a cola é venenosa. Marina riu silenciosamente, raspou a pasta úmida e levou-a à boca. – Que estás a fazer, Dasha? – A acender a bourzhuika. – De pé em frente da janela do fogão, Dasha atirava

livros para o lume. – Estás a queimar livros? – Por que não? Temos de nos aquecer. Tirou a mão da irmã:

Page 340: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

340

– Não, para. Não queimes livros, por favor. Ainda não estamos reduzidas a isso.

– Tania! Se eu tivesse mais forças matava-te, cortava-te e comia-te – replicou Dasha, atirando mais um livro para o lume. – Não me digas...

– Não – suplicou, segurando-lhe o pulso. – Livros não. – Não temos lenha – declarou Dasha. Foi espreitar debaixo da cama o mais depressa que pôde. Estava lá

Zoshchenko John Stuart Mill e o dicionário inglês. Lembrou-se então de que estivera a ler Pushkin no sábado à tarde e que deixara descuidadamente o precioso livro junto do sofá. Virou-se então para Dasha, que continuava a atirar livros para as chamas.

Horrorizada, viu O Cavaleiro de Bronze em suas mãos. – Não! – gritou, lançando-se sobre ela. Onde fora arranjar forças para gritar e

saltar em frente? Onde fora arranjar forças para reagir? Agarrou-o e arrebatou-o das suas mãos. – Não! – apertou o livro contra o peito. – Oh, meu Deus – balbuciou,

tremendo. – Este livro é meu. – Todos esses livros são nossos – replicou Dasha com apatia. – Que interessa?

O importante é estarmos quentes. Tatiana lambeu os lábios. Estava tão abalada que não foi capaz de falar

durante um tempo. – Por que livros, Dasha? Temos a mobília toda da sala de jantar. Uma mesa e

seis cadeiras. Se formos poupadas, dá-nos para o inverno. – Limpou a boca e ficou a olhar para a mão, raiada de sangue.

– Queres queimar a mobília? – perguntou Dasha, arremessando o Manifesto Comunista de Karl Marx para o fogão. – À vontade.

Estava a acontecer-lhe alguma coisa, mas não queria dizer nada para não assustar a mãe nem a irmã. Quanto a Marina, já não tinha medo de nada. Decidira esperar por Alexander e pergunta-lhe o que era aquilo, mas antes de ter tempo de o fazer reparou que também a prima estava a sangrar da boca.

– Vamos ao hospital, Marina. Arranjaram por fim um médico que a examinasse. – Escorbuto – declarou ele em voz monocórdica. – Toda a gente tem

escorbuto. Estão a sangrar por dentro. Os capilares ficam muito finos e rebentam. Precisam de vitamina C. vamos ver se vos arranjamos uma injeção.

Levaram as duas uma injeção de vitamina C. Tatiana melhorou. Marina não. – Tania, estás a ouvir? – sussurrou ela de noite à prima. – O que foi, Marinka?

Page 341: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

341

– Não quero morrer – murmurou. Se pudesse, teria chorado, mas mal conseguia soltar um gemido. – Não quero morrer, Tania! Se não tivesse ficado aqui com a mãezinha, estaria agora em Molotov com a Babushka e não morreria.

– Tu não vais morrer. – Tatiana pousou lhe a mão na cabeça. – Não quero morrer sem sentir ao menos uma vez o que tu sentes. –

Respirando com dificuldade: – Só uma vez na vida, Tania! A voz de Dasha chegou-lhes de muito longe: – Que sente a Tania? Marina não respondeu. – Tanechka... Como é? – Como é o quê? – insistiu Dasha. – A indiferença? O frio? O cansaço? Tatiana continuou a afagar lhe ternamente a testa: – É como se nunca estivesse sozinha. Ora, mas onde está a tua força?

Lembras-te quando eu me punha a remar e tu e o Pasha iam a nadar ao lado? Onde está essa força, Marinka?

Na manhã seguinte, Marina jazia morta ao lado de Tatiana. – Podemos comer a ração dela até ao fim do mês – comentou Dasha, mal

pestanejando ao ver a prima morta. Tatiana abanou a cabeça: – Como sabes, ela já a tinha comido. Estamos a meio do mês, mas já não lhe

restava nada até ao fim de dezembro. Depois, envolveu a prima num lençol branco, a mãe coseu-lhes as pontas e

fizeram o corpo deslizar pelas escadas até à rua. Tentaram pô-la no trenó, mas não conseguiram iça-la. Tatiana benzeu Marina e deixaram-na no passeio coberto de neve.

Page 342: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

342

2

Mais um dia, outra injeção de vitamina C. mais duzentos gramas de pão escuro. Tatiana fingia ir trabalhar para poder continuar a receber a ração de trabalhador, mas não tinha nada para fazer exceto ficar sentada ao lado dos moribundos.

Uma semana após a morte de Marina, Tatiana, Dasha e a mãe achavam-se sentadas no sofá na noite silenciosa, em frente de uma bourzhuika praticamente apagada. Os livros haviam ardidos todos, exceto os que Tatiana escondia debaixo da cama. As brasas não iluminavam o quarto. A mãe cosia às escuras.

– O que está a coser? – perguntou Tatiana. – Nada. Nada de importante. Onde estão as minhas meninas? – Aqui, mãezinha. – Dasha, lembras-te de Luga? Lembrava-se. – E quando a Tania ficou com uma espinha cravada na garganta? Não

conseguíamos tirá-la... – Tinha cinco anos – recordou Dasha. – Quem a tirou, mãezinha? – O Pasha, que tinha as mãos muito pequenas. Meteu a mão na tua boca e

puxou a espinha. – Lembra-se de quando a nossa Tania caiu do barco no lago Ilmen e saltamos

todos para a água porque pensávamos que ela não sabia nadar? – continuou Dasha. – Afinal ela já estava a afastar-se a chapinhar à cão.

– A Tania tinha dois anos – acrescentou a mãe. – E quando abri um buraco no jardim para apanhar o Pasha e me esqueci de o

tapar e a mãezinha caiu nele? – Nem me fales disso. Ainda estou zangada contigo. Tentaram rir. – Sabes, Tania – começou a mãe –, quando tu e o Pasha nasceram, estávamos

em Luga, e quando toda a família esvoaçava em volta do nosso rapaz, gabando a beleza e a saúde do Pasha, aqui a Dasha, com sete anos, pegou em ti e disse: «Pois então que fiquem todos com o preto. Eu prefiro o branco. Este bebê é meu.» Metemo-nos com ela: «Está bem. Queres ficar com ela? Podes batizá-la.» – A voz embargou-lhe uma, duas vezes: – E a nossa Dasha: «Vou chamar Tatiana ao meu bebê...»

Mais um dia, mais uma injeção de vitamina C. Os dedos de Tatiana sangravam, manchando duzentos gramas de pão que partia para a mãe e a irmã.

Page 343: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

343

Caiu uma bomba na esquina do telhado do prédio da Quinto Soviete. Não havia ninguém para a detetar: nem Anton, Mariska, Kirill, Kostia ou Tatiana. Pegou fogo e ardeu até o quarto andar, que dava para a igreja da Grechesky Prospekt. Não apareceu ninguém para apagar o incêndio, que deitou fumo durante um dia e acabou por se extinguir sozinho.

Era imaginação de Tatiana ou a cidade parecia mais tranquila? Ou estava a ficar surda ou os bombardeamentos tinham diminuído. Ainda havia todos os dias, mas não duravam menos e eram menos intensos, como se os Alemães estivessem fartos. E porque não? Quem havia ainda para bombardear?

Bem, Tatiana. E Dasha. E a mãe. Não, a mãe não. Ainda tinha nas mãos o camuflado branco que estava a coser. Usava um lenço

por baixo do barrete de lã. Sentada à frente do lume mortiço da bourzhuika, a mãe disse:

– Não aguento mais. Não posso. – As mãos e a cabeça imobilizaram-se. Os olhos permaneceram abertos. Saíram-lhe da boca pequenos espasmos de respiração curtos e breves, que depois pararam.

Tatiana e Dasha ajoelharam-se ao lado da mãe. – Gostava de saber uma oração, Dasha. – Eu sei um bocadinho de uma que se chama Pai Nosso. As costas de Tatiana, viradas para o lume, estavam quentes, mas tinha muito

frio na parte da frente do corpo: – Que bocadinho? – Só: «O pão nosso de cada dia nos dai hoje.» Tatiana pousou a mão no regaço da mãe: – Vamos enterrar a mãezinha com a costura. – Teremos de enterrá-la na costura – replicou Dasha em voz fraca. – Olha,

estava a coser um saco. – Meu Deus – começou Tatiana, segurando a perna fria da mãe. – «O pão

nosso de cada dia nos dai hoje...» – Calou-se. – Que mais, Dasha? – Só sei isso. Que tal «Amém»? – Amém – rematou. Ao jantar, dividiram o pão em três bocados. Tatiana comeu o seu e Dasha o

dela. Deixaram o da mãe no prato. Nessa noite, as irmãs abraçaram-se na cama. – Não me deixes, Tania. Não aguento sem ti. – Não vou deixar-te, Dasha. Não vamos deixar-nos uma à outra. Não podemos

ficar sós. Todos precisamos de outra pessoa que nos lembre que ainda somos seres humanos e não bichos.

– Só restamos nós as duas, Tania. Só tu e eu.

Page 344: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

344

Tania cingiu a irmã a si. «Tu. Eu. E o Alexander.»

Page 345: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

345

3

Alexander regressou uns dias mais tarde. As olheiras e a densa barba preta davam-lhe um ar de feroz barão medieval mas, de resto, parecia estar a aguentar-se, o que fez Tatiana sentir-se melhor. De fato, vê-lo... bem, que podia dizer? Abraçou Dasha no vestíbulo, enquanto ela os observava mais atrás. E ele a ela.

– Como estás? – perguntou-lhe em voz fraca. – Bem. E as minhas meninas? – Nem por isso, Alexander – respondeu Dasha. – Nem por isso. Olha par a

nossa mãe. Há cinco dias que morreu. Já ninguém recolhe os corpos e nós não podemos com ela.

Alexander passou por Tatiana atrás de Dasha e fez-lhe deslizar a mão enluvada no rosto.

Colocou o corpo da mãe na capa do camuflado branco, transportou-o pelas escadas abaixo com cuidado para não escorregar no gelo e pousou-o em cima do garrido trenó vermelho e azul, que puxou até o cemitério da Starorusskaya. As duas irmãs seguiram ao seu lado. À entrada, afastou os corpos gelados, abrindo caminho para o trenó, que puxou para dentro, e deitou a mãe docemente na neve. Quebrou dois ramos pequenos e estendeu-os a Tatiana, que os atou em forma de crus e pousou em cima da mãe.

– Sabes alguma oração, Alexander? – perguntou. – Pela nossa mãe? Ele olhou para ela e abanou a cabeça. Tatiana viu-o benzer-se e murmurar

umas palavras ao frio. Ao saírem, perguntou-lhe: – Não sabes nenhuma oração? – Em russo não – murmurou ele. De regresso ao apartamento, mostrou-se quase alegre: – Meninas, nem sabem o que tenho aqui. – Depois de uma pausa: – Só para

vocês. Levara-lhes um saco de batatas, sete laranjas que arranjara sabe-se lá onde,

meio quilo de açúcar, um quarto de quilo de cevada, óleo de linhaça, e três litros de óleo para motores, que mostrou a Tatiana sorrindo com todos os dentes.

Se pudesse, ter-lhe-ia devolvido o sorriso. A seguir, ensinou-a a acendê-lo: pôs algumas colheres de chá de óleo entre

dois pires, meteu lá dentro um pavio humedecido deixando a ponta de fora e chegou-lhe um fósforo. O óleo iluminou uma área suficientemente grande para se poder coser ou ler. Depois saiu e regressou passado meia hora com uma braçada de

Page 346: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

346

lenha, dizendo que encontrara umas traves partidas na cave. Também foi buscar água.

Tatiana só queria tocar-lhe, mas Dasha estava a encarregar-se do assunto. Não o largava. Nem sequer conseguia olhá-lo de frente. Foi buscar uma chaleira, fez chá e acrescentou-lhe açúcar: que revelação! Cozinhou três batatas e um pouco de cevada. Dividiu o pão. Comeram. Aqueceu depois a água na bourzhuika, pediu sabão a Alexander e lavou a cara, as mãos e o pescoço.

– Obrigada, Alexander – agradeceu. – Tens notícia do Dimitri? – De nada. Não, não sei dele. E tu? Ela abanou a cabeça. – Começou a cair-me o cabelo, Alexander – comentou Dasha. – Olha. –

Arrancou um punhado de cabelos pretos. – Não faças isso. – –irando-se de novo para Tatiana: - O teu também está a

cair? – Os seus olhos quase a aqueciam tanto como a bourzhuika. – Não – murmurou docemente. – Se me começa a cair o cabelo, fico careca

num instante. Mas ando a sangrar. – Olhou-o de relance e limpou a boca. – Pode ser que as laranjas ajudem.

– Come as sete, mas devagar. Meninas, não andem na rua à noite. É muito perigoso.

– Está bem. – E fechem sempre as portas à chave. – É o que fazemos. – Então como é que eu entrei? – Foi a Tania que a deixou aberta. – Deixa de culpar a tua irmã e fechem mas é as portas. Depois do jantar, foi buscar uma serra à cozinha e serrou a mesa e as cadeiras

da sala em achas pequenas que coubessem na bourzhuika. Tatiana via-o trabalhar de pé ao seu lado. Dasha encontrava-se sentada no sofá submersa em cobertores. A sala estava fria. Já nunca entravam nela. Dormiam, comiam e sentavam-se no quarto ao lado, que não tinha as janelas partidas.

– Com quantas toneladas de farinha estão a alimentar-nos agora, Alexander? – perguntou Tatiana, pegando nos troncos serrados e empilhando-os a um canto.

– Não sei. – Alexander! Um grande suspiro: – Quinhentas. – Quinhentas toneladas? – Sim. – Parece muito – comentou Dasha. – Alexander? – Oh, não! – Quantas eram em julho? – quis saber Tatiana.

Page 347: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

347

– Achas que sou o responsável pela alimentação de Leninegrado? O Pavlov? – Responde. Quantas? Grande suspiro: - Sete mil e duzentas. Tatiana não disse nada e olhou para a irmã, sentada no sofá. «A Dasha está a

recuar para dentro de si», pensou, com os olhos pregados em Alexander. – Vejamos as coisas pelo lado positivo: agora quinhentas toneladas dão para

muito mais – observou a tremer, esforçando-se por parecer animada. Sentaram-se os três no sofá na semiescuridão. A pequena porta metálica da

bourzhuika deixava passar um bocadinho de luz. Alexander estava entre Dasha e Tatiana, que envergava o casaco e as calças acolchoadas que a mãe lhe fizera e tinha o carapuço puxado sobre as orelhas e os olhos. Só o nariz e a boca continuavam expostos ao ar do quarto. Um cobertor tapava lhes as pernas. A dada altura, Tatiana quase adormeceu e inclinou a cabeça para a direita... para Alexander, que lhe pousou a mão no colo.

– Sabem o que se diz? «Gostava de ser um soldado alemão com um general russo, armas britânicas e rações americanas» – brincou ele.

– Por mim, ficava só com as rações americanas – retorquiu Tatiana. – Agora que os Americanos entraram na guerra, as coisas serão mais fáceis para nós?

– Claro. – Tens a certeza? – Absoluta! Agora há esperança. Ouviu-se a voz de Dasha: – Se sair viva disto, juro que saio de Leninegrado e vou viver para a Ucrânia,

para o mar Negro ou para algum sítio onde não esteja sempre frio. – Não há nenhum lugar assim na Rússia – replicou ele. Envergava o casaco

acolchoado por cima da farda e a shapka tapava lhe as orelhas. Dasha insistiu. – Não, estamos muito a norte – continuou ele. – O inverno é frio na Rússia. – E existe algum sítio na Terra onde as temperaturas não sejam negativa no

inverno? – O Arizona. – Arizona... em África? – Não. – suspirando: – Tania, sabes onde fica o Arizona? – Na América. – O pouco calor que lhe chegava vinha da janelinha do fogão. E

de Alexander. Apertou-lhe a cabeça contra o braço. – É verdade. É um estado americano. Perto da Califórnia. Um deserto.

Quarenta graus no verão. Vinte no inverno. Todos os anos. As temperaturas nunca são negativas. Nunca neva.

– Cala-te – protestou Dasha. – Estás a inventar. Vai contar essa a Tatiana. Eu já sou velha de mais para engolir.

– É verdade. Nunca.

Page 348: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

348

De olhos fechados, Tatiana deixava-se embalar pela voz de Alexander, que desejava que nunca se calasse. «Tens uma bela voz», pensou. «Imagino-me a morrer escutando apenas a tua voz calma, comedida, corajosa, profunda, acompanhando-me ao descanso eterno: Vai, Tatia, vai.»

– Isso é impossível – continuou Dasha. – Que fazem no inverno? – Andam com camisas de manga comprida. – Oh, cala-te! Agora sei que estás a inventar. Tatiana levantou o carapuço e fitou a luz bruxuleante cor de cobre do fogão. – Tatia? – chamou Alexander docemente. – Sabes que estou a dizer a verdade.

Gostavas de viver no Arizona? – Gostava. – Que lhe chamaste? – indagou Dasha em voz monocórdica e apática. – Tatiana – afirmou ele. Dasha abanou a cabeça: – Não. Se fosse Tatiana a acentuação estava errada. Tátia. Nunca te ouvi

chamares-lhe assim. – Olha que francamente, Alexander! – exclamou Tatiana, puxando o carapuço

para a cara. – Que te deu? Dasha levantou-se: – Quero lá saber! Chama-lhe o que quiseres. Saiu para ir à casa de banho. Tatiana continuou sentada ao lado dele, mas já sem a cabeça encostada ao

seu braço. – Tatia, Tatiasha, Tania – murmurou ele –, estás a ouvir? – Estou, Shura. – Encosta a cabeça ao meu braço. Vá lá. Ela obedeceu. – Estás a aguentar-te? – Não vês? – Vejo. – Pegou-lhe na mão enluvada e beijou-a: – Coragem, Tatiana.

Coragem. Amo-e, Alexander, pensou ela. Na noite seguinte, Alexander entrou e disse muito animado: – Meninas! Sabem que dia é hoje, não sabem? Olharam-no sem expressão. Tatiana estivera umas horas no hospital, mas não

se lembrava do que fizera lá. Dasha parecia ainda mais baralhada. Tentaram sorrir e não conseguiram.

– Que dia é? – indagou Dasha. – A véspera do Ano Novo! – exclamou. Ficaram a olhar para ele.

Page 349: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

349

– Olhem! Trouxe três latas de tushonka. – Fazendo um sorriso aberto: – Uma para cada um. E um pouco de vodca. Mas só um bocadinho. Não querem beber demais, pois não?

As irmãs continuavam a fitá-lo. – Como queres que saibamos quando começa o Ano Novo? – inquiriu Tatiana

por fim. – Só temos o despertador de corda, que não está certo há meses. E o rádio não funciona.

Alexander apontou para o relógio de pulso: – Mas eu sei sempre precisamente que horas são. Vá, um pouco mais de

alegria! Isso não é maneira de festejar nada. Como já não havia mesa, puseram a comida nos pratos e sentaram-se no sofá

à frente da bourzhuika a comer a ceia da véspera do Ano Novo, constituída por tushonka, um pouco de pão branco e uma colher de manteiga. Alexander deu cigarros a Dasha e, sorrindo, ofereceu a Tatiana um rebuçado, que ela comeu de boa vontade. Conversaram calmamente até Alexander olhar para o relógio e ir servir a vodca. Alguns minutos antes da meia-noite, levantaram-se na sala às escuras e ergueram os copos a 1942.

Fizeram a contagem decrescente dos últimos dez segundos, tocaram nos copos uns dos outros e beberam. Alexander beijou e abraçou Dasha e esta beijou e abraçou Tatiana e disse:

– Vá, Tania, não sejas tímida, dá-lhe um beijo. – E foi sentar-se no sofá enquanto a irmã erguia o rosto para ele. Alexander inclinou-se e beijou-a nos lábios com muita delicadeza e ternura. Desde Santo Isaac que os seu lábios não se tocavam.

– Feliz Ano Novo, Tania. – Feliz Ano Novo, Alexander. Dasha achava-se no sofá com os olhos fechados, o copo numa mão e um

cigarro na outra: – A 1942! – brindou. – A 1942! – repetiram em coro Alexander e Tatiana, que se entreolharam

antes dele ir sentar-se ao lado de Dasha. Deitaram-se depois juntos na cama, Tatiana ao lado da parede e virada para

Dasha, por sua vez virada para Alexander. «Que nos resta?», pensou. «Se já mal vivemos, como pode restar-nos seja o que for?»

Um dia depois do Ano Novo, Alexander e Tatiana encaminharam-se devagar para o correio. A rapariga ia lá todas as semanas ver se havia carta da Babushka e mandar-lhe umas linhas. Desde que o Deda morrera tinham recebido apenas uma carta dela, anunciando-lhes que se mudara de Molotov para uma aldeia piscatória no poderoso Kama.

As cartas de Tatiana eram curtas, pois nunca conseguia escrever mais do que breves parágrafos. Falava-lhe do hospital, de Vera, de Nina Iglenko e do Slavin maluco que, antes do seu inexplicável desaparecimento duas semanas antes,

Page 350: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

350

passava os dias e as noites deitado no chão do corredor, meio dentro e meio fora, como sempre, indiferente aos bombardeamentos e à fome, com um cobertor a tapar lhe o corpo magro. De Slavin conseguia falar; de si, não, e muito menos da família. Deixava isso a cargo de Dasha, que parecia conseguir sempre escrever uma frase animada para acrescentar aos parágrafos taciturnos da irmã. Tatiana não sabia como esconder-lhe a cidade de Leninegrado do outubro, novembro e dezembro de 1941. Mas Dasha escondia-a, escrevendo sempre alegremente só sobre Alexander e os planos de casamento. «Bem, é adulta, e os adultos sabem disfarçar muito bem.»

Mas a carta que Tatiana levava naquela manhã não continha quaisquer linhas de Dasha, que na véspera se sentira muito cansada para escrever.

Ela e Alexander caminhavam cuidadosamente na neve com a cabeça inclinada para se protegerem da ventania. A neve penetrava-lhe nas botas esburacadas e não se derretia. Agarrada ao braço de Alexander, pensava na próxima carta. Talvez nessa altura conseguisse falar da mãe. E de Marina. E da tia Rita. E da Babushka Maya.

A estação dos correios ficava no primeiro andar do velho edifício da Nevsky. Dantes era no rés do chão, mas as janelas tinham rebentado numa explosão e não fora possível substituir os vidros. A estação mudara-se portanto para o andar de cima, onde naturalmente era mais difícil chegar. As escadas estavam cheias de gelo e cadáveres.

Alexander parou ao fundo das escadas: – Está a fazer-se tarde. Vou andando. Tenho de me apresentar ao meio-dia. – Daqui até ao meio-dia ainda faltam muitas horas – protestou ela. – Não, já são onze. Demoramos uma hora e meia a chegar aqui. Sentiu ainda mais frio: – Vai, Shura. Protege-te do mau tempo – balbuciou. Ele ajeitou-lhe o cachecol: – Não vá às lojas. Volta direitinho para casa. Já te dei a minha ração. E

gastamos o meu dinheiro todo. – Eu sei. – Por favor. – Está bem. Voltas à noite? Abanou a cabeça: – Vou-me embora hoje à noite. Volto para o Norte. O atirador que estava a

substituir-me... – Não digas mais nada. – Regressarei logo que puder. – Prometes? – Tatia, vou tentar tirar-vos às duas de Leninegrado num dos camiões.

Aguenta-te até lá, está bem? Olharam um para o outro. Tatiana queria dizer-lhe que dava graças por poder

ver seu rosto, mas não tinha forças. Assentindo, virou-se para subir as escadas. Alexander permaneceu parado. No segundo degrau, escorregou e caiu para trás. Ele

Page 351: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

351

estendeu os braços, agarrou-a e amparou-a. ela segurou-se ao corrimão e virou-se. Um esboço de um sorriso iluminou lhe o rosto:

– Realmente passo muito bem sem ti! Eu arranjo-me. – E aqueles pretendentes todos que te perseguem até casa? A ternura perpassou os olhos de Tatiana, que o fitou com a verdade

estampada no rosto: – Na verdade, não passo bem nem me arranjo sem ti. – Eu sei. Agarra-te ao corrimão. Subiu devagar as escadas escorregadias. Chegada lá acima, virou-se para ver

se ela ainda continuava no mesmo sítio. Continuava, olhando para ela. Atirou-lhe um beijo com a mão enluvada.

Na manhã seguinte, Dasha não conseguia levantar-se. – Por favor, Dasha. – Não sou capaz. Vai tu. – Claro que vou, mas não quero ir sozinha e o Alexander não está aqui. – Pois não. Tatiana aconchegou-lhe os cobertores e os casacos. Embora continuando a

suplicar-lhe que se levantasse, sabia que a irmã não o faria. Tinha os olhos fechados e estava exatamente na mesma posição em que adormecera na noite anterior que, de resto, passara quase sem se mexer, tossindo apenas de vez em quando.

– Por favor, levanta-te. Tens de te levantar. – Eu depois levanto-me. Agora não consigo. – Tinha os olhos fechados. Tatiana foi lá abaixo buscar água. Levou uma hora. Acendeu a bourzhuika com

a perna de uma cadeira e fez chá. Depois de ter dado à irmã umas colheradas do líquido que nem estava

castanho nem doce, saiu sozinha para levantar as rações. Eram dez da manhã e ainda estava escuro. «Às onze já haverá luz. Quando regressar com o pão já será dia», pensou. «O pão nosso de cada dia nos dai hoje», murmurou. «Se tivesse sabido esta oração mais cedo, poderia rezá-la todos os dias desde setembro.»

«Agora está sempre escuro.» Seria tarde. Seria cedo? Seria de noite? Olhou o despertador mas não conseguiu distinguir os ponteiros. «Não vejo luz. De manhã está escuro, quando arrasto o balde de água pelas escadas está escuro, quando lavo a cara da Dasha, vou à loja e caem bombas está escuro. Depois há um prédio que explode e incendeia e eu ponho-me à frente dele a aquecer um bocadinho. As labaredas afogueiam-me o rosto e fico ali... quanto tempo? Hoje quase até ao meio-dia. Só cheguei ao hospital à uma. Talvez amanhã descubra outro incêndio algures. Mas em casa está escuro. O óleo e o pavio do Alexander ajudam, sempre posso sentar-me a olhar para um livro ou para Dasha.

A Dasha... porque estará a observar-me assim? Há cinco dias que não é a mesma. Há três que não sai da cama. Tem os olhos mais sombrios. Observa-me como se não soubesse quem sou.»

– Dasha? Que se passa?

Page 352: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

352

«Continua a olhar sem responder, sem se mexer.» – Dasha! – Por que estás a gritar? – perguntou Dasha baixinho. – Por que me olhas assim? – Anda cá. Tatiana aproximou-se e ajoelhou-se ao lado da irmã. – O que é, querida? O que queres? – Onde está o Alexander? – Não sei. No Ladoga? – Quando volta? – Não sei. Talvez amanhã, quem sabe? «Continua a olhar.» – O que foi? – insistiu Tatiana. – Queres que eu morra? – O quê? – Mesmo meio morta, ficou horrorizada. – Mas claro que não. És

minha irmã. Todos precisamos de alguém para continuarmos a ser gente, Dasha, sabes muito bem disso.

– Sei. – Então o que foi? – Tu és o meu alguém, Tania. – Sim. – Mas quem é o teu? – sussurrou Dasha. «Pronto.» Tania pestanejou. – Tu – respondeu. Inaudivelmente.

Page 353: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

353

PELO RIO TUMULTUOSO

1

– Eu vi-te, Tatiana – disse Dasha na escuridão. – Vi-te com ele. – De que estás a falar? – O coração parou-lhe. – Vi-te. Não sabias que eu estava a espreitar, mas vi-te a cinco dias no correio. – Que correio? – Foste ao correio. Ajoelhada ao lado de Dasha, Tatiana refletiu. Correio, correio. Que acontecera

no correio? Não se lembrava. – Sabias que íamos ao correio. Dissemos-te. – Não estou a falar disso. Ele vai contigo para todo o lado. – Para nos proteger. – Não é a nós. – É sim, Dasha. Anda muito preocupado conosco. Sabes muito bem porque vai

comigo. Esqueceste-te da comida que nos traz? – Não estou a falar de nada disso – repetiu. – Graças a ele, ninguém nos tira o nosso pão. Ninguém nos rouba as

cadernetas de racionamento. Como pensas que posso dar-te de comer? Ele não deixa os canibais aproximarem-se de mim.

– Não quero falar disso. Mas Tatiana queria: – Dasha, ele traz-me o pão dos soldados mortos para te dar a ti, e quando não

arranja dispensa-me a metade da ração dele. – Ele dá-te comida para gostares dele. – O quê? – espantou-se ela, recuperando depressa e continuando: – Estás

outra vez enganada. Dá a ti para que continues viva. – Oh, Tania! – Deixa-te disso! Por que me seguiste até ao correio? – Senti-me culpada por não escrever à Babushka, que gosta muito do que lhe

conto. Tu és deprimente demais. Não consegue esconder a verdade como eu. Pelo menos, era o que eu pensava. Por isso, escrevi-lhes umas linhas. Não te segui. Vi-te já no correio.

– Fomos primeiro à loja.

Page 354: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

354

Tatiana levantou-se e pôs a perna de outra cadeira no lume. Não ia durar toda a noite, mas tinham de economizar. Só quando Alexander serrara a mesa apercebera do muito que desejavam estar quentes. A mesa já ardera toda. Restavam quatro cadeiras.

E só quando ele trouxera a comida se apercebera do muito que desejavam saciar-se. Já não havia batatas nem laranjas. Só um bocadinho de cevada.

Quando regressou, tapou melhor a irmã com cobertores e os casacos, e meteu-se também na cama. Apetecia-lhe virar-se para a parede, mas não o fez.

Só falaram passados uns minutos. Dasha virou-se devagar para a irmã: – Quero que ele morra na frente – murmurou. – Não digas isso – censurou Tatiana, com vontade de benzer mas incapaz de

tirar o braço frio para fora do cobertor quente. Sentia-se fraca demais para se mexer. O lume apagar-se-ia em breve e ficariam mergulhadas na escuridão. Estavam ambas exaustas. «Fracas demais para ainda termos sentimentos», pensou.

– Vi-te com ele, vi-vos a olhar um para o outro. – Afinal não: ainda sentiam alguma coisa.

– Que estás a dizer, Dashenka? Que olhar? O carapuço tapava-me metade da cara. Não percebo nada do que dizes.

– Ele estava ao fundo das escadas e tu dois degraus acima. O Alexander aparou-te quando escorregaste. Disse-te qualquer coisa e tu baixaste a cabeça e assentiste. Depois olharam um para o outro. Tu subiste e ele ficou a observar-te vi tudo.

– Dasha, querida, estás a preocupar-se sem razão. – Estou? Diz-me há quanto tempo pareço completamente ceguinha. – Não – murmurou Tatiana, abanando a cabeça na noite. – Desde o princípio? Desde o dia em que entrei na sala e o vi de pé à tua

frente? Desde então? Oh, meu Deus, diz-me! – Estás doida. – Posso ter sido ceguinha, mas não sou estúpida. Pensas que não vejo? Nunca

vi aquela expressão nos olhos dele. O Alexander olhava-te a subir as escadas com tanto desejo, ternura, posse e amor que me virei e teria vomitado na neve se tivesse alguma coisa para vomitar.

– Estás enganada – teimou Tatiana em voz fraca. – Estou? E qual era a tua expressão ao contemplá-lo no correio? O que diziam

os teus olhos, minha irmã? – Não sei nada do correio. Ele acompanhou-me até lá. Despedimo-nos e eu

subi. Provavelmente o que meus olhos diziam era adeus. – Não era adeus, Tania. – Cala-te, Dasha. Sou tua irmã. – É verdade. Mas ele não me deve nada. – Só tenta proteger-me... – Não, Tania. Arde por ti.

Page 355: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

355

– Não. – Estiveste com ele? – O quê? – Responde. É uma pergunta simples. Estiveste com o Alexandre? Fizesse

amor com ele? – Claro que não. Olha, isto é... – Mentiste-me durante tanto tempo... Estás a mentir agora? – Não estou a mentir. – Quando? Nessa altura? Agora? – Nem nessa altura nem agora – retorquiu Tatiana, mal conseguindo articular

as palavras. – Não acredito. – Fechando os olhos: – Oh, meu Deus! Não aguento –

murmurou. – Não aguento. Todos os dias, noites e horas que passamos juntos, dormindo na mesma cama e comendo do mesmo prato... como pode ter sido tudo mentira? Como?

– Não foi mentira! Ele ama-te, Dasha! Olha como te beija! Como te toca! Ele não era terno a fazer amor contigo? – Foi-lhe difícil pronunciar estas palavras.

– Beijar-me, abraçar-me... Não estamos juntos desde agosto. Por quê? – Dasha, por favor... – Não ando muito em condições que me toquem. E tu também não... – Estes dias difíceis hão de passar. – E eu com eles. – Tossiu. – Não fales assim. – Que farás quando eu desaparecer? Será mais fácil para ti? – Mas que conversa é essa? Tu és minha irmã... – Teia chorado, se

conseguisse. – Eu não parti, nem fui embora! Fiquei aqui contigo. Estou aqui. Não te deixarei. E nós não estamos a morrer. Ele ama-te. – Levou as mãos ao peito para abafar um gemido.

– Sim – replicou Dasha em voz alquebrada –, mas o que eu quero é que ele me ame como te ama a ti.

Tatiana não respondeu. Com as mãos no coração, escutava a madeira ardendo no fogão de cerâmica, calculando o tempo que faltaria para a perna da cadeira ficar reduzida a cinzas.

- Ele não me ama – disse em voz vazia. Como pode amar-me a mim e fazer planos para casar contigo?

- Quanto tempo tencionava esconder-me isto? Até o fim. - Não tenho nada a esconder-te. - Oh, Tania! – Dasha acalmou-se. – Como é possível que numa altura destas,

ás escuras tão perto da morte, ainda tenhas energia para mentir e eu para me zangar? Já nem consigo levantar-me. Cólera, sim; mentiras, oh, sim!

Page 356: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

356

- Ótimo. Até aqueces. Se for preciso, odeia-me. Se isso te ajuda, odeia-me com todas as tuas forças.

- Devo odiar-te? – Mal mexia os lábios. – Tenho razões para te odiar? - Não – respondeu Tatiana, virando-se para a parede. Mentiras tá o fim.

Page 357: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

357

2

No dia seguinte, Dasha continuava sem conseguir levantar-se. Bem tentou, mas não era capaz. Tatiana afastou os cobertores e os casacos. Eram nove da manhã. Mais uma vez não tinham acordado com a sirene das oito.

Acabou por ir à loja sozinha. Chegou por volta do meio-dia. Já não havia pão. O fornecimento fora pequeno e esgotara-se às oito da manhã.

- Tem alguma coisa que possa dar-me? Não pode ajudar-me? – perguntou à mulher que estava atrás do balcão de vidro e que nem sequer conseguiu responder.

Partiu em busca da única pessoa que poderia valer-lhe. - Queria falar com o capitão Belov. Ele está aqui? – perguntou ao sentinela

que guardava a entrada do quartel.- Beloc? – O soldado, que Tatiana nunca vira antes, consultou a folha de serviços. – Está. Mas não tenho ninguém para ir chamá-lo.

- Por favor – pediu ela. – Por favor. Hoje não havia pão e a minha irmã está... -Pensas que o capitão tem pão para ti? Não tem pão nenhum. Põe-te a andar! Tatiana não se mexeu: - A minha irmã é noiva dele. - Que lindo! Não queres contar-me o resto da história da tua vida? - Cabo Kristoff. Cabo – repetiu. - Muito bem, cabo. Sei que não pode sair do seu posto. Deixa-me passar para

falar com o capitão? - Queres entrar no quartel? Está doida! - Pois estou – confirmou Tatiana, agarrando-se ao portão. Andara de mais e

sentia-se a desfalecer. Mas não regressaria a casa sem comida para sua irmã.. – Estou doida. Mas, olhe, não lhe peço para tirar pão da sua boca e me dá. Nem sequer lhe peço para se mexer. Só lhe peço que me deixe falar com o capitão Belov. Só isso. Só isso – repetiu. – Não é pedir muito, é?

- Ouve, miúda, estou farto de falar com você. – Kristoff tirou a espingarda do ombro: - É melhor pores-te a andar. Percebes?

Agarrada ao portão, tentou abanar a cabeça mas não conseguiu. Só os lábios mexeram:

- Cabo Kristoff, vou esperar aqui. O sargento Petrenko, o tenente Mazarov, o coronel Stepanoz...todos eles me conhecem. Vá lá dizer-lhe que está a escorraçar a irmã da noiva moribunda do capitão Belov.

- Está me ameaçando? – perguntou ele, incrédulo, erguendo a arma. - Cabo! – Um oficial atravessou o pátio. – Que se passa aqui? Há problema? - Só estou dizendo a essa miúda que se ponha a andar – informou Kristoff.

Page 358: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

358

O oficial examinou Tatiana: - Quem procura? - O capitão Belov – respondeu ela. - O capitão Beloc está lá em cima – disse o oficial virando-se para Kristoff. – Já

o chamou? - Não. - Abra o portão. – Puxando-a para dentro: Venha. Como se chama? - Tatiana. - Tatiana... Kristoff estava a levantar problemas? - Estava. - Não lhe ligue. Ele gosta de mostrar serviço. Volto já. O oficial entrou na camarata de Alexander que estava a dormir, uma vez que

fizera patrulha ao quartel durante toda a noite. - Capitão! – Chamou em voz alta. Acordou estremunhado. - Está uma jovem lá fora à sua espera. Sei que é contra as regras. Posso

mandá-la entrar? Chama-se Tatiana. Antes de ele acabar já Alexander estava de pé a vestir-se. - Onde ele está? - Lá embaixo. Trouxe-a para dentro. Achei que não se importaria. - Não me importo. - O filho da mãe do Kristoff estava pronto a disparar. Mal... - Obrigado, tenente. – Saiu porta fora. Tatiana encontrava-se sentada no último degrau com a cabeça encostada à

parede. - Tatia? – Parou à frente dela: Que aconteceu? - A Dasha não consegue levantar-se. Não havia pão na loja. – Nem conseguia

levantar a cabeça. - Anda. – Estendeu-lhe a mãe. Ela agarrou-a mão não teve forças para se

levantar e ele teve de a enlaçar com os dois braços para erguer. – Caminhaste muito – comentou docemente.

Ela assentiu. - Anda à messe. – Alexander arranjou-lhe um pedaço de pão escuro com uma

colher de chá de manteiga, meia batata cozida com óleo de linhaça e até café a sério com açúcar. Ela comeu e bebeu com gratidão.

- E a Dasha? – perguntou. - Come. Também tenho comida para ela. Deu-lhe outro bocado de pão escuro, meia batata e um punhado de feijões.

Que ela guardou no bolso do casaco. - Gostaria de ir com você, mas não posso. Hoje não posso sair do quartel.

Page 359: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

359

- Não faz mal - replicou Tatiana. Pensando? Não vou conseguir voltar. Não vou. Como já passava da hora do almoço, estava pouca gente na messe, onde só se viam uns militares sentados ás mesas.

A jovem queria perguntar-lhe como fora a sua semana, que era feito de Petrenko, que não via havia muito tempo, e se tinha notícias de Dimitri. Queria falar-lhe de Kristoff e contar-lhe que Zhanna Sarkova morrrera. Já era tempo de ir outra vez à estação dos correios, mas não conseguia voltar lá sozinha.

Queria falar-lhe de Dasha, mas o esforço que teria de fazer para dar seguimento à conversa era demasiado grande. Não se imaginava a pronunciar palavras e acrescentar-lhe mais palavras e pensamentos, num altura em que nem tinha forças para mastigar o pão de que precisava para viver. Não estava capaz de pensar noutra coisa que não no pão que tinha á frente. Contaria para ele depois.

Permaneceram os dois em silêncio. Alexander acompanhou-a à entrada. Ela tropeçou, apesar de o solo ser plano,

e quase caiu. - Oh, meu Deus, Tatia! Ela não respondeu, mas o fato de ele lhe chamar de Tatia pôs-lhe o coração a

bater mais depressa. Quis responder-lhe. Endireitando-se, apoiou-se no seu braço: - Estou bem. Não se preocupe. - Espera aqui. – Sentou-a num banco perto da entrada e afastou-se. Regressou

passados uns minutos com um trenó: - Anda. Eu levo-te a casa. O Stepanov deu-me duas horas. – Rodeando-a com o braço: - Anda. Não tens de fazer nada. Eu faço tudo. Senta-te.

Alexander assinou a folha de serviço em poder do sentinela. - Peço muita desculpa pelo que se passou – disse o cabo a Tatiana, lançando

um olhar medroso na direção de Alexander, que abriu a boca para dizer qualquer coisa, quando ela lhe puxou a manga do casaco. Não abanou a cabeça nem pronunciou uma palavra. Ele afastou-a, fechou a boca, cerrou o punho e deu um murro na cara de Kristoff. O cabo caiu ao chão.

- Estarei de volta daqui a duas horas, cabo. Depois falaremos. Disse a Tatiana para se sentar, mas ela deitou-se. Não quero ir deitada. Ainda

não sou um cadáver. Ainda não, pensou, mas sem conseguir evitá-lo. Não tinha forças para se sentar.

Virou-se de lado e Alexander empurrou o trenó pela neve, pelas ruas silenciosas e cheias de neve de Leninegrado a meio da tarde. É muito peso para ele, pensou Tatiana. É sempre ele. Quando nos conhecemos, foi ele que carregou com a minha comida por estas ruas. E agora me carrega a mim. Quis estender o braço para tocar no casaco dele. Em vez disso, adormeceu.

Quando abriu os olhos, viu Alexander agachado ao seu lado com a mão quente na sua face fria.

- Tatia – murmurava -, anda. Chegamos.

Page 360: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

360

Vou morrer com a mão dele na minha cara, pensou ela. Não é uma má maneira de morrer. Não consigo mexer-me. Não consigo levantar-me. Não sou capaz. Fechou os olhos e sentiu-se desfalecer.

Através da névoa que a rodeava, ouviu a sua voz: - Te amo, Tatiana. Está ouvindo. Te amo como nunca amei ninguém na minha

vida. Levanta-te. Por mim, Tatia. Levanta-te por mim e vai tratar da tua irmã. Vá. E eu tratarei de ti. – Os seus lábios beijaram-lhe a face.

Abriu os olhos. Muito perto dela, Alexander observava-a com a verdade estampada no olhar. Ouvira-o mesmo ou sonhara? De noite, virada para a parede, imaginara-o muitas vezes a dizer-lhe que a amava. Desde Kirov que ansiava por estas palavras. Não estaria apenas a desejar o regresso de sol das noites brancas?

Levantou-se. Ele não podia subir as escadas escorregadias com ela às costas, mas rodeou-a com o braço. Apoiando-se nele e no corrimão, conseguiu chegar lá acima. Percorreram o longo corredor. Á porta de casa, Tatiana parou:

- Entra você. Eu espero aqui. Entra e vê se ela está... – Não foi capaz de acabar a frase.

Alexander ajudou-a a entrar e foi ao quarto: - Ela está bem, Tania. Venha aqui. Entrou e ajoelhou-se ao lado da cama. - Dasha, olha, ele te trouxe comida. Com os olhos do tamanho de dois pratos castanhos, dois pratos castanhos e

vazios. Dasha mexeu os lábios inaudivelmente e passeou o olhar do rosto de Tatiana para o Alexander.

- Tenho de ir – disse ele, - Amanhã vai buscar o pão cedinho. Isto que está aqui chega até lá. Já comeram a cevada toda? – Beijando Dasha na cabeça: - Amanhã trago mais.

Ela levantou o braço: - Não vá – pediu. - Tenho de ir. Não vai haver problema. Tenham mas é atenção às rações. Eu

volto não tarde nada. Quer ajuda, Tania? Consegue levantar do chão? - Consigo. - Está bem. – Passando-lhe as mãos por baixo dos braços: - Vamos lá. Ela levantou-se. Queria olhar para ele, mas como sabia que Dasha estava a

observá-los, contemplou-a antes a ela. Foi mais fácil; assim não teve de levantar a cabeça.

- Obrigada, Sh... Alexander.

Page 361: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

361

3

Estavam deitadas debaixo dos cobertores, semiconscientes. Durante a noite, Tatiana ouviu baterem à porta. Levou muito tempo para se desembaraçar dos casacos e cobertores e sair da cama. Percorreu a entrada às escuras a cambalear.

À porta, Alexander envergava a farda branca de combate. Um carapuço acolchoado tapava-lhe a cabeça e as orelhas. Tinha um cobertor nas mãos.

- Que foi? – perguntou, levando a mão ao peito. Ao vê-lo, mesmo a meio da noite, o coração bateu-lhe com mais força. Os olhos abriram-se lhe mais; estava acordada. – Que aconteceu?

- Nada. Levantem-se. A Dasha? Tem de se despachar. - Aonde vamos? Saber muito bem que a Dasha não consegue levantar-se. Está

cheia de tosse. - Mas vai levantar-se. Vá! Hoje à noite sai do quartel um caminhão com

armamento. Levo-vos até ao Ladoga e daí seguem para Kobona. Tania! Vou tirar vocês de Leninegrado.

Atravessou o vestíbulo e entrou no quarto. Dasha estava deitava debaixo dos cobertores e dos casacos. Não mexia os lábios, nem abria os olhos.

- Dasha – sussurrou. – Dashenka, querida, acorda. Temos de partir. Agora. Depressa.

- Não consigo levantar – balbuciou ela sem abrir os olhos. - Consegue sim. Tenho um caminhão com armas à espera no quartel. Vou

levar vocês até ao lago Ladoga e arranjo maneira de colocar vocês do outro lado. Hoje à noite. Em Kobona há comida. Depois podem ir ter com a vossa Babushka a Molotov. Mas você tem que levantar já, Dasha. – Afastou-lhe os cobertores.

- Não chego ao quartel – sussurrou ela. - A Tania tem um trenó. E olha! – Abriu o casaco, tirou um pedaço de pão

branco com crosta, arrancou um bocado de miolo e colocou na boca dela. – Pão branco! Come. Vai te dá forças.

Dasha abriu a boca, mastigou desinteressadamente sem abrir os olhos e tossiu. Envergando o casaco e com um cobertor pelos ombros, Tatiana fitava o pão com a mesma expressão que antes costumava contemplar Alexander. Talvez a Dasha não o coma todo. Pode ser que fique um bocadinho para mim.

Mas era só um bocadinho, que Dasha comeu. - Há mais? – perguntou. - Só a crosta – retorquiu Alexander. - Me dá. - Não consegues mastigá-la.

Page 362: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

362

- Engulo inteira. - Dasha... Não pode ser para tua irmã? – sugeriu. - Ela está de pé, não está? Alexander levantou os olhos para Tatiana que, de pé ao seu lado, abanou a

cabeça e contemplou com a crosta com avidez: - Dá-lhe. Eu estou de pé. Respirando profundamente, deu a crosta a Dasha, levantando-se e disse a

Tatiana: - Vamos andando. O que precisas fazer? Queres que te ajude? Ela fitou-o com um olhar vazio: - Não tenho nada. Já estou pronta. Tenho as botas calçadas e o casaco

vestido. Vendemos tudo e queimámos o resto. - Tudo? – perguntou-lhe ele na escuridão... uma palavra, transbordando de

passado. - Tenho... os livros... – A voz embargou-lhe. - Trá-los. – Inclinando-se para ela, continuou: - Quando te sentires

especialmente em baixo, lê a contracapa do Pushkin. Onde estão? Alexander foi abaixo da cama buscar-lhe os livros enquanto ela pegava na

velha mochila de Pasha. Depois, levantou-a e obrigou-a a segurar-se em pé. As três silhuetas moviam-se em silêncio na escuridão. Só os gemidos e a tosse intermitente de Dasha estilhaçavam a noite. Por fim, pegou nela e levou-a para fora do apartamento. Desceram as escadas. Depois, pousou-a no trenó e tapou-a com o cobertor que levara. Alexander e Tatiana pegaram nas correias e puxaram lentamente o trenó azul e vermelho ao longo das ruas cobertas de neve.

- Que irá lhe acontecer? – indagou Tatiana baixinho. - Em Kobona há comida e um hospital, Quando estiver melhor, vão para

Molotov. - Ela parece mal. Alexander não disse nada. Por que tosse assim? – Também tossiu. Ele continuou sem dizer nada. - Há muito tempo que não sei nada de Babushka. - Ela está bem. Melhor do que eu. Custa-te puxar? Larga o trenó e limita-se a

caminhar ao meu lado. - Não. – Era um esforça tremendo. – Deixa eu te ajudar. - Poupa forças. – Obrigou-a a largar a correia. - Apoia-te no meu braço – sugeriu Alexander. Ela obedeceu. Fazia tanto frio que deixou de sentir os pés. A cidade estava calma, silenciosa

e quase completamente às escuras. A luz verde translúcida da aurora boreal riscava o negrume do céu. Tatiana virou-se para observar Dasha, imóvel no trenó.

- Parece tão fraca – comentou. - Está fraca.

Page 363: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

363

- Como consegues? – perguntou em voz baixa. – Como consegues transportar a arma, montar guarda, combater e ser forte para todos nós?

- Dou-vos aquilo de que precisam mais – respondeu ele, olhando-a de relance. Seguiram em silêncio. Alexander começou a andar mais devagar. Tatiana

tirou-lhe a segunda correia da mão. Ele não protestou. - Vou sentir-me melhor sabendo-vos fora de Leninegrado e em segurança.

Não achas melhor? Não respondeu. Melhor comer, sim. Melhor que Dasha comesse, sim. Mas não seria melhor para Alexander nem para ela. Não seria melhor deixar

de o ver. No entanto, não disse nada. - Eu sei – murmurou ele docemente. Gostaria de chorar, mas sabia que era

impossível. Os seus olhos expostos ao gelo, doloridos do vento e semicerrados de frio, estavam seco.

Quando uma hora depois chegaram por fim ao quartel, o caminhão estava a minutos de partir. Alexander levou Dasha para dentro da viatura coberta, onde já se encontravam seis soldados e uma jovem com um recém-nascido ao colo, sentada ao lado de um homem que parecia meio morto. Está pior que a Dasha, pensou Tatiana, embora visse que a irmã não conseguia sentar-se. De cada vez que Alexander a punha direita, deixava-se tombar para o lado. No entanto, também ela precisava de ajuda para entrar no caminhão. Não conseguia saltar nem içar-se se apoiando nos braços. Alexander tinha de erguê-la. As outras pessoas pareciam nem dar por ela, incluindo Alexander, que tentava ansiosamente que Dasha abrisse os olhos.

- Vamos! – gritou alguém do exterior. O caminhão começou a avançar devagar na neve.

- Shura! – chamou Tatiana. Alexander gatinhou até à entrada, agarrou-lhe nos braços e puxou-a. - Esqueceste-te de mim? – indagou, vendo os olhos abertos de Dasha

observando-os. A porta fechou-se e deixou de haver luz. Tatiana gatinhou às escuras para

junto da irmã. Seguiam em silêncio na direção do lago Ladoga, Alexander sentado no chão ao

lado da espingarda e Dasha deitada na serradura com a cabeça no seu colo. Tatiana levantou os pés da irmã e meteu-se por baixo, mais perto dele. Dasha estava agora praticamente em cima deles: um segurava-lhe a cabeça e a outra os pés. Alexander encostou-se à cabina e ela à parte lateral do caminhão. Tatiana pegou um bocado de serradura e meteu-a na boca. Sabia a pão. Comeu outro punhado.

- Não comas isso, Tania – censurou Alexander. Como conseguiria vê-la? – Está porquíssimo.

O tempo escoou-se. Mal passava por eles algum veículo projetando um raiozinho de luz, Tatiana via os olhos de Alexander pregado nela. Os seus olhos encontravam-se e não se largavam até ficar novamente escuro. Sentados no chão sem pronunciarem palavra e sem se tocarem, fitavam-se sempre que podiam.

Page 364: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

364

Passaram minutos que pareciam não ter fim. - Sabes que horas são? – perguntou ela baixinho. - Duas da manhã. Chegaremos em breve. Tatiana queria comer e deixar de ter frio. Queria que a irmã melhorasse e se

levantasse. Por outro lado, partir para Molotov parecia-lhe muito definitivo. Esperou que outra luz lhe permitisse olhar para Alexander por maus um

segundo. Habituando-se à escuridão, distinguia-lhe agora a silhueta, a cabeça, o boné e os braços, cingindo Dasha para lhe dar calor. Apertou as pernas da irmã, primeiro suavemente e depois com mais energia. Dasha mexeu-se e tossiu. Aliviada fechou os olhos mas abriu-os instantaneamente outra vez. Não queria fechá-los. Dali a pouco estaria atravessando o gelo do Ladoga, afastando-se dele. Se estender o braço, quase posso tocar-lhe, pensou.

- Tania? - Sim... Alexander? - Como se chama a aldeia onde vive tua avó? - Lazarevo. – Uma luz em movimento. Tocaram-se. Outra vez na escuridão. Alexander adormeceu. Dasha estava a dormir. Toda a gente no caminhão

tinha olhos fechados, exceto Tatiana, que não consegui deixar de contemplar a forma adormecida de Alexander, com as mão pousadas na cabeça da irmã. Se calhar estou morta, pensou. Os mortos não conseguem fechar os olhos. Deve ser por isso que não consigo dormir. Estou morta.

- Alexander, porque não comprastes um gelado para ti? - Porque não quis... - Então porque olhas assim para o meu? - Não estou olhando de maneira nenhuma. - Não? Queres um bocadinho? - Está bem. – Inclinou-se e lambeu o gelado cremoso. - Não é bom? - Muito bom Tania. O caminhão parou por mim. Alexander abriu os olhos. As outras pessoas

mexeram-se. A mulher com o bebê foi a primeira a levantar-se e murmurar ao marido:

-Leonid, vá querido, levanta-se. Alexander afastou-se de Dasha, levantou-se e estendeu a mão a Tatiana. - Levanta-te Tatia – disse docemente. – Chegamos. – Puxou-a. Ela cambaleou

de fraqueza. - Shura, que vou fazer com Dasha em Kobona? Ela não consegue andar e eu

não sou como tu, não consigo pegar ela. - Não se preocupe. Há de haver soldados e médicos para te ajudarem. Olha

para aquela mulher – sussurrou. Leva o bebê ao colo e o marido não se aguenta em pé, como Dasha. Mas há de conseguir. Vai ver. Anda, eu ajudo-te a descer.

Page 365: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

365

Pulando do caminhão, estendeu os braços a Tatiana, que não conseguiria saltar nem que quisesse. Alexander pegou nela e a pôs no chão à sua frente, mas não largou logo.

- Vai buscar a Dasha, Shura – murmurou Tatiana. - Vá! Vamos a despachar! – gritou um sargento atrás deles. Alexander largou-

a e virou-se com cara de poucos amigos. O sargento apressou-se a pedir desculpa ao capitão.

Os faróis de outros caminhos refletiam-se no campo de neve, que afinal não era um campo e sim o lago Ladoga. A Estrada da Vida.

- Vamos, vamos camaradas! Desçam para o lago. Está lá um caminhão à espera. Vá, quando mais depressa entrarem, mais depressa partirão. São trinta quilômetros, umas horas no gelo, mas do outro lado há manteiga e talvez até algum queijo. Depressa!

A mulher com o bebê já estava descendo o outeiro com o marido coxeando ao seu lado.

Alexander tinha Dasha nos braços. - Põe-na de pé, Shura. Vamos obrigá-la a andar. Ele pousou-a, mas as pernas vergaram-se. - Vá, Dasha – animou-a Tatiana. – caminha comigo. Há manteiga do outro

lado, ouviste? Dasha soltou um queixume; - Onde estou? – sussurrou. Na Estrada da Vida. Anda. Daqui a bocadinho vamos comer e serás vista por

um médico. - Vem conosco? – perguntou a Alexander. Ele amparava-a com o braço. - Não, Dasha, eu fico. A minha Zenith está ali. Mas escreve-me logo que

chegares a Molotov. Quando estiver de licença, vou visitar-te – disse sem olhar para Tatiana, que contudo conseguiu ouvi-lo, sem olhar para ele.

Dasha avançou uns metros sozinha e tombou na neve: - Não consigo. -Claro que consegue – retorquiu-lhe a irmã. – Anda. Mostra-lhe que a tua vida

tem algum significado. Mostra-lhe que consegues andar até ao camião para te salvares. Anda, Dasha. – Puseram-na de pé.

Ela caminhou mais uns metros e parou. - Não – balbuciou. Amparando-a entre os dois, desceram o outeiro até o lago, onde o caminhão

do exército estava á espera. Alexander içou-a e deitou-a no chão, saltando depois para ajudar Tatiana, que

mal se aguentava de pé e que se encostou ao oleado, ouvindo gritos. O motor do caminhão roncou.

Page 366: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

366

- Anda, Tania. Eu ajudo-te. Tens de ser forte pela tua irmã. – Aproximou-se dela.

- Vou ser – pareceu-lhe responder. - Não te preocupes com os bombardeios. Normalmente são mais calmos à

noite. - Não estou preocupada. – Avançou para os braços dele. Alexander cingiu-se a si. - Seja forte por mim, Tatiana – encorajou-a em voz rouca. – Salva-te por mim. - É o que faço, Shura. Me salvo por ti. Ele inclinou-se, mas ela nem conseguia levantar os olhos. Alexander beijou-lhe

o carapuço e ficaram abraçados durante mais uns segundos. - Vamos! – gritou alguém. Ajudou-a a subir para o caminhão e entrou também para as pôr confortáveis,

pousando a cabeça de Dasha no regaço da irmã. - Assim está bem? - Está – responderam as duas. Ajoelhou-se à frente de Dasha: - Não se esqueçam: quando vos derem comida em Kobona, comam aos

bocadinhos. Não engulam tudo de uma vez ou ainda rasgam as paredes do estômago. Comam pouco e devagar. Primeiro habituem-se e depois podem comer mais. Comam a sopa devagarinho. Está bem?

Dasha pegou-lhe na mão. Ele beijou-a na testa. - Até a vista Dasha. - Adeus... – murmurou ela. – O que te chamou a minha irmã? Shura? Alexander lançou um olhar a Tatiana: - Sim, Shura. - Adeus, Shura – disse Dasha. – Amo-te. Tatiana fechou os olhos para não o ver enquanto respondia. Se pudesse tapar

os ouvidos, tê-lo-ia feito. - Também te amo – replicou. – Não te esqueças de escrever. Quando ele se levantou, Dasha acrescentou: - Diz adeus a Tatiana. Ou já te despediste? - Adeus Tatiana. - Adeus – retorquiu ela, fitando-o. - Quero saber noticias vossas logo que chegarem a Molotov. Prometem? –

pulou do caminhão. - Alexander! – chamou Dasha. - Sim? – debruçou-se para dentro. - Há quanto tempo amas minha irmã? Olhou do rosto de uma para o da outra. Abriu a boca para falar e fechou-a,

abanando a cabeça;

Page 367: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

367

- Há quanto tempo? Diz-me. Olha para nós... que segredos podemos ainda ter? Diz-me, querido. Diz-me.

Ele fincou o queixo e afirmou com decisão: - Nunca amei a tua irmã Dasha. Nunca. Sabes muito bem que te amo a ti. - Disseste-me que talvez casemos no próximo verão – continuou em voz fraca.

– Estavas a falar sério? Ele assentiu; - Claro que sim.No próximo verão vou ter contigo para nos casarmos. Agora

vão. Atirou um beijo a Dasha e desapareceu, sem olhar para Tatiana. E ela queria

desesperadamente só um ultimo olhar de ternura, alguma verdade. Mais ele não a fitou. Não viu nenhuma verdade. A única coisa que viu foi Alexander renegando-a.

Fecharam o oleado e o caminhão pôs-se em andamento. Estavam de novo às escuras, com a diferença de que agora não havia nenhum luar, nenhum Alexander entre a escuridão e a luz. Só rajadas de tiros e rebentamentos ao longe que, de resto, Tatiana mal ouvia, tão forte eram as explosões dentro do seu peito. Por fim, fechou os olhos para que Dasha, deitada de olhos abertos, não vissi o que devia ser tão evidente em seu rosto.

- Tania? Não respondeu. Doía-lhe o nariz de respirar o ar gelado. Entreabriu os lábios e

respirou pela boca. - Tanechka? - Sim, querida? – murmurou por fim. – Estás bem? - Abre os olhos, irmã. Não podia. Não queria. - Abre os olhos. Obedeceu: - Dasha, estou muito cansada. Passaste horas de olhos fechado. Agora é a

minha vez. Puxei-te o trenó, segurei-te nas pernas e ajudei-te a descer o outeiro. Agora estas com a cabeça em meu colo e eu só quero fechar os olhos durante um bocadinho, está bem?

Dasha não disse nada, mais observou-a com lucidez estampada no rosto. Amparando a cabeça da irmã. Tatiana fechou os olhos, ouvindo-a tossir.

- Como te sentiste ao ouvi-lo dizer que nunca te amou. Tania? Fez um esforço sobre-humano para não gemer de dor. - Muito bem – respondeu ela- como deve ser. - Então porque se contraiu o teu corpo, como se ele te tivesse batido? - Não percebo o que queres dizer. – retorquiu debilmente. - Abre os olhos. - Não. - Ama-lo insuportavelmente, não é? Como conseguiste escondê-lo de mim

Tania? É impossível amar alguém como o amas a ele.

Page 368: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

368

- É impossível amar alguém como o amo a ele? - Dasha – rematou ela com graça – amo-te mais a ti. – falou sem abrir os

olhos. - De fato, não escondeste nada de mim. Puseste o teu amor numa prateleira e

não num armário fechando a chave. A marina tinha razão. Eu é que fui cega. – Fechou os olhos, mais a sua voz ecoou por todo o caminhão, chegando à mulher com o bebê e o marido, a Tatiana e ao condutor. – Deixaste-o a minha vista em mil lugares. Agora vejo-a em todo lado. – Começou a chorar e foi sacudida por um ataque de tosse. – Mas eras uma criança! Como podia uma criança amar alguém? – calou-se e soltou um queixume.

Cresci Dasha, pensou ela. A criança crescera algures entre o lago Ilmen e o inicio da guerra.

Chegou-lhe distante o sons de canhões, dos morteiros. O silêncio reinava no interior do caminhão.

Pensou no bebê no colo da mãe, uma jovem de pele descolorada e marcas nas faces, com o marido encostado ao ombro; aliás, mais do que encostar-se, o que ele estava na realidade estava a cair para cima dela, que por mais que o empurrasse não conseguia que ele se sentasse direito. Começou a chorar. O bebê não soltou um som.

- Quer ajuda? – perguntou-lhe. - Olhe, já tem problemas que cheguem - atirou-lhe a mulher com brusquidão.

– O meu marido está muito fraco. - Eu não sou nenhum problema – interveio Dasha. – Tania levanta-me e

encosta-me de lado. Dói-me muito o peito para continuar deitada. Vai ajudá-la. Tatiana avançou de garras até a mulher, que segurava o bebê no colo e não o

largava. Sacudiu o homem e polo direito, mas ele tornou a cair, desta vez para o chão.

Tinha um cachecol e um casaco abotoado até o queixo. Precisou de dez minutos para desabotoá-lo. A mulher falava sem parar.

- O meu marido não está nada bem. E a minha filha também não. Não tenho leite para lhe dar. Sabe, nasceu em outubro, que sorte! Há... que azar um bebê nascer em outubro! E quando engravidei em fevereiro ficamos tão contentes! Achávamos que era um sinal de Deus. Tínhamos casado só em setembro. Estávamos tão ansiosos! O nosso primeiro bebê! O Leonid trabalhava no Departamento de Transportes Públicos; não podia sair da cidade, mais a ração a que tinha direito era bastante boa. Então os elétricos pararam e ele ficou sem ter o que fazer... porque está a desabotoá-lo?

Sem esperar resposta continuou: - Chamou-me Nadezhda. A minha filha nasceu e eu não tinha leite. Que fazer?

Dei-lhe leite de soja, mais ela ficou cheia de diarreia e tive que parar. Além disso, o meu marido precisava mesmo de comer. Graças a Deus conseguimos vir neste caminhão. Há tanto tempo que queríamos sair da cidade! Agora vai ficar tudo bem.

Page 369: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

369

Alguém disse que em Kobona há pão e queijo. O que eu daria por uma galinha ou qualquer coisa quente! Até carne de cavalo! Seja o que for para o Leonid.

Tania afastou os dois dedos do pescoço do homem tornaram a abotoá-lo cuidadosamente e enrolou-lhe o cachecol. Deslocou-o ligeiramente para que não ficasse deitado nas pernas da mulher e foi novamente senta-se perto de Dasha. Reinava um silencio de morte no caminhão. Tudo o que ouvia era a respiração superficial da irmã entrecortada por ataques de tosse. Isso e Alexander dizendo que nunca a amara.

Ambas as irmãs fecharam os olhos para não ver a mulher com o bebê e o marido mortos. Tatiana pousou a mão na cabeça, que não a afastou.

Chegaram a Kobona ao romper do dia... uma névoa roxa no horizonte negro. As feições de Dasha tornavam-se mais indistintas do que vagas. Porque seria que Tatiana reparava de repente na respiração entrecortada da irmã?

- Consegues levantar-te, Dasha? Chegamos. - Não. Nadezhda gritava para que alguém a ajudasse a ela e ao marido, mas ninguém

apareceu. Ou antes, surgiu um soldado, que levantou o oleado e resmungou: - Saiam todos. Temos de carregar e partir outra vez. Tatiana puxou Dasha: - Vá lá, levanta-te. - Vai pedir ajuda, Tania. Não consigo mexer-me. Puxando e empurrando, logrou pô-la de gatas: - Gatinha até à ponta e eu ajudo-te a descer. - Pode ajudar o meu marido? - suplicou Nadezhda. - Ajude-o, por favor. É tão

forte! Sabe, ele está doente. Tatiana abanou a cabeça: - É muito pesado para mim. - Oh, vá lá! Consegue mexer-se. Ajude-nos. Não seja egoísta. - Espere — disse Tatiana. — Vou ajudar a minha irmã e depois ajudo-a a si. - Deixe-a em paz — ordenou Dasha a Nadezhda. — O seu marido está morto.

Deixe a pobre da minha irmã em paz. Nadezhda gritou. Dasha atravessou o chão do camião a rastejar como um soldado. Depois,

Tatiana fê-la rodar e baixou-a. As pernas de Dasha bateram no chão e seguiu-se-lhes o corpo, que caiu e permaneceu na neve como uma trouxa. - Vá, por favor. Não consigo puxar-te sozinha. O condutor do caminhão deu a volta e levantou Dasha num único movimento: - Levante-se, camarada. Levante-se e vá à tenda de campanha, onde lhe darão

comida e chá quente. Vá. Nadezhda gritou de dentro do caminhão: - Não se esqueçam de mim aqui!

Page 370: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

370

Tatiana não tinha vontade nenhuma de ficar a ver a reação de Nadezhda quando descobrisse a verdade sobre o bebé e o marido. Virou-se para Dasha:

- Apoia-te em mim como se eu fosse uma muleta. Passa o braço por cima de mim e caminha. - Apontando para um ligeiro declive: - Olha, estamos no rio Kobona.

- Não consigo. Nem contigo e com o Alexander conseguiria descer do outro lado, quanto mais subir agora só contigo!

- E só uma subidinha pequena. Usa a raiva que sentes contra mim. Usa-a e sobe a rampa, Dasha.

- E fácil para ti, não é? - Então é assim? - Tatiana abanou a cabeça. —Tão fácil! O que tu queres é viver. <<Quero viver. Mas não só>> Seguiram a tropeçar pela neve. - E tu? Não queres? Dasha não respondeu. - Anda - continuou Tatiana. - Estás a ir muito bem. Não temos ninguém para

nos ajudar: - Apertando a irmã, sussurrou-lhe: - Sou só eu e tu, Dasha! Os soldados têm que fazer e as outras pessoas ajudam mas é os seus entes queridos. Como eu. E claro que tu queres viver. O Alexander vai a Molotov no verão para casar contigo.

A irmã reuniu forças suficientes para rir baixinho: - Tu nunca paras, pois não, Tania? - Nunca. Dasha caiu na neve e não conseguiu levantar-se. Virando-se, desesperada, Tatiana descortinou Nadezhda subindo a ladeira

sozinha, sem bebê sem marido. Dirigiu-se a ela: - Nadezhda, ajude-me, por favor. A Dasha caiu na neve. A mulher sacudiu-lhe o braço: - Largue-me. Não vê que agora não tenho ninguém? Claro que via. - Ajude-me, por favor. -Também não me ajudaste a mim. E agora estão mortos. Deixa-me em paz,

sim? - Nadezhda afastou-se. De repente, ouviu uma voz conhecida: - Tatiana? Tatiana Metanova? Virando-se na direção da voz, viu Dimitri aproximando-se a coxear, apoiado na

espingarda. - Dimitri! — Ele abraçou-a. — Ajuda-me, Dima, por favor. A minha irmã... olha,

caiu. Dimitri acorreu junto de Dasha: - Anda. Ainda estou ferido. Não consigo pegar nela. Vou chamar outro

soldado. - Dando outro abraço apertado a Tatiana: - Nem acredito que nos encontramos assim. - Sorriu: — Deve ser o destino.

Page 371: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

371

Levantaram Dasha e levaram-na para o hospital de campanha. Tatiana arrastou-se atrás deles à luz cor de malva do céu.

Um médico examinou Dasha na tenda instalada perto do rio Kobona. Auscultou-lhe o coração e os pulmões, tomou-lhe o pulso, abriu-lhe a boa, abanou a cabeça e levantou-se:

- Tuberculose galopante. Desista. Tatiana avançou um passo na direção do médico: - Desisto? Que quer dizer? Dê-lhe alguma coisa, sulfa... O médico soltou uma gargalhada: - São todos iguais! Pensa que vou desperdiçar medicamentos preciosos num

caso terminal? É maluca? Olhe para ela. Nem uma hora tem de vida. Até umpedaço de pão seria mal empregado com ela. Viu a expetoração que ela tem? Jálhe ouviu a respiração? Tenho a certeza de que a bactéria da tuberculose se lhe alojou no fígado. Vá comer uma sopa e umas papas de cereais à tenda do lado. Se comer, talvez consiga sobreviver.

Tatiana estudou o médico por um momento: - Eu estou bem? Pode examinar-me os pulmões? Não me sinto bem. Ele abriu-lhe o casaco e encostou-lhe o estetoscópio ao peito. Depois virou-a

e auscultou-lhe as costas: - Precisa de sulfanilamida. Tem uma pneumonia. Vou chamar a enfermeira

para tratar de si. Olga! — Antes de sair, virou-se para ela: - Não se aproxime mais da sua irmã. A tuberculose é contagiosa.

Dasha estava na cama e Tatiana, no chão, começou a sentir frio. Deitou-se por isso de lado junto da irmã.

- Dasha — sussurrou —, quando tinha pesadelos, aninhava-me sempre ao pé de ti, na nossa cama.

Eu sei. Eras uma criança amorosa. Do exterior vinha uma luz azulada. Matizes azul-escuros no rosto trémulo de

Dasha. Ouviu a sua voz rouca: - Não consigo respirar... Ajoelhou-se no chão à frente da cama, abriu-lhe a boca e soprou, um sopro

frio, brusco, atrofiado e lamentável, sem solo, sem raízes e sem comida. Soprou o ar dos seus pulmões para os da irmã. Tentava soprar com força, mas não conseguia. Durante minutos intermináveis, soprou o débil sussurro da vida para a boca e os pulmões de Dasha.

Uma enfermeira aproximou-se e puxou-a. - Pare - disse em voz bondosa. - O médico não lhe disse para a deixar? É a

doente? - Sou — murmurou, segurando a mão fria da irmã. A enfermeira deu-lhe três comprimidos brancos, água e um pedaço de páo

escuro: - Foi mergulhado em água com açúcar — explicou.

Page 372: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

372

- Obrigada — arquejou, com a respiração entrecortada pela dor. A outra mulher pousou-lhe a mão nas costas: - Quer vir comigo? Vou tentar arranjar-lhe um lugar para se deitar antes do

pequeno-almoço. Ela abanou a cabeça. - Não lhe dê o seu pão. Coma-o. - Ela precisa mais do que eu. - Não, querida - replicou a enfermeira. - Não precisa não. Logo que a enfermeira saiu, Tatiana esmagou os comprimidos contra a

madeira da cama, desfe-los bem na mão e dissolveu o pó na água. Bebeu depois um trago, levantou a cabeça de Dasha da almofada e fê-la engolir o remédio.

A seguir, partiu um pedaço de pão e deu-o à irmã, que o engoliu com muito custo, engasgando-se e cuspindo sangue para o lençol branco. Tatiana limpou-lhe boca e o queixo e tornou a fazer-lhe respiração boca a boca.

-Tania? -Sim? _ Estou a morrer? A morte é assim? - Não, Dasha. — Foi tudo o que conseguiu dizer, fitando os seus olhos

semexpressão. -Tania, querida... és uma boa irmã. Continuou a soprar para dentro da boca de Dasha. Não ouvia a respiração sofrida dela, só a sua. Uma mão quente pousou-lhe nas costas e uma voz disse atrás dela: - Venha. Nem acredita no pequeno-almoço que tenho para si: kasha de trigo- -

mourisco, pão e uma colher de chá de manteiga. Vai beber chá com açúcar e até lhe arranjo leite a sério. Vamos. Como se chama?

- Não posso deixar a minha irmã. A enfermeira falou em voz bondosa: - Venha, minha querida. Chamo-me Olga. Venha, o pequeno-almoço não fica à

sua espera. Sentiu braços a levantá-la. Pôs-se em pé, mas mal olhou para Dasha deixou--

se cair de novo. A boca da irmã permanecia aberta como a deixara. Os olhos, também

abertos,fitavam o céu violeta para além do tecido da tenda, para além de Tatiana. Alquebrada, debruçou-se, fechou-lhe os olhos com um beijo e fez-lhe o sinal

da cruz na testa. Levantou-se com dificuldade, deu a mão a Olga e saiu. Na tenda ao lado, sentou-se a uma mesa fitando um prato vazio. Olga trouxe-

lhe trigo-mourisco e comeu metade da pequena taça. Quando a outra mulher lhe disse para comer mais, respondeu que o resto era para Dasha e desmaiou.

Acordou numa cama. Olga ofereceu-lhe um pedaço de pão e um chá. Recusou. - Se não come, vai morrer — censurou Olga.

Page 373: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

373

- Não morro nada — protestou em voz fraca. — Dê à Dasha, à minha irmã. - A sua irmã morreu. - Não. - Venha comigo. Eu levo-a até ela. Seguiu-a até um quarto das traseiras, onde viu Dasha jazendo no chão ao lado

de outros três corpos. Quando perguntou quem ia enterrá-los, Olga soltou uma risadinha: -Oh. Ninguém, Caro. Tomou o remédio que o médico lhe deu? Abanou a cabeça: - Pode dar-me um lençol? Para a minha irmã. Olga trouxe-lhe um lençol, mais medicamentos, um chá preto com açúcar e

pão com manteiga. Desta vez tomou o remédio e comeu, sentada numa cadeira baixa de metal, num quarto cheio de cadáveres. Quando acabou, estendeu o lençol no chão e enrolou Dasha nele.

Segurou a cabeça da irmã nas mãos durante muito tempo. Depois de a enrolar bem, rasgou as pontas do lençol, atou-as e saiu à procura

de Dimitri. Na escuridão de janeiro, encontrou muitos militares em Kobona, a pequena cidade à beira-mar, mas a ele não o via em lado nenhum. Precisava dele, da sua ajuda. Voltou ao rio Kobona, chamou um oficial e perguntou-lhe onde poderia estar Dimitri Chernenko. Não sabia. Informou-se junto de mais uns dez militares, mas a resposta foi a mesma. O décimo primeiro olhou para ela e disse:

- Tania? Que se passa? Eu sou o Dimitri. Não o reconheceu nem demonstrou qualquer emoção: - Oh, preciso da tua ajuda. - Não me reconheces, Tania? - Claro, claro - retorquiu sem expressão. - Anda comigo. Ele seguiu-a a coxear com o braço em volta dos seus ombros. - Não me perguntas como vai a minha perna? - Daqui a bocado, está bem? - replicou, acompanhando-o ao quarto e

mostrando-lhe o corpo de Dasha enrolado no lençol, rodeado por cadáveres destapados. - Ajudas-me a enterrar a Dasha? - perguntou, quase a desfazer-se

em mil pedacinhos. Dimitri soltou uma exclamação: - Oh, Tania! — Abanou a cabeça. - Não posso levá-la comigo - continuou. — Mas também não posso deixá-la

aqui. Ajuda-me, por favor. - Tania... - Abriu os braços. Ela recuou. - Onde vamos enterrá-la? O solo está

gelado. Nem uma escavadora conseguiria revolver esta terra. Tatiana ficou de pé à espera... do sol, de uma solução. -Os nazis estão a bombardear a Estrada da Vida, não é? - É. - O gelo do lago fica partido, não é?

Page 374: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

374

- É. - O seu rosto mostrava uma compreensão gradual. - Então vamos. -Tania, não posso. Podes sim. Se eu posso, tu também podes. - Não estás a perceber... - Diima, tu é que não estás a perceber. Não posso deixá-la ali naquele

quartinho. Não conseguirei deixá-la e não me salvarei a mim. - Plantou-se à sua frente: - Diz-me, Dimitri, quando eu morrer saberás coser um saco para mim? Quandoeu morrer pões -me naquele quarto em cima dos outros cadáveres? Que faráscomigo? .

Ele bateu com a espingarda no chão: - Oh, Tania! - Por favor, ajuda-me. Suspirando, abanou a cabeça: - Não posso. Olha para mim. Estive no hospital durante perto de três meses.

Saí há pouco, vim para o destacamento de Kobona e agora tenho de andar de um lado para o outro horas a fio. Dói-me o pé. Além disso, os Alemães estão semprea bombardear o lago. Não vou para lá. Se as bombas começarem a cair, não posso correr.

-Arranjas-me um trenó? Ao menos isso podes fazer? — perguntou friamente, indo sentar-se ao pé de Dasha.

—Tania... - Só um trenó, Dimitri. Não é pedir muito... Regressou passado algum tempo com um trenó. Tatiana levantou-se do chão: - Obrigada. Podes ir. - Para que fazes tudo isto? — exclamou Dimitri. - Ela morreu. Que interessa

agora? Não te preocupes mais com ela. Esta maldita guerra já não pode fazê-la sofrer mais.

Tatiana ergueu os olhos para ele: - Que interessa? Interessa muito. A minha irmã não morreu sozinha. Eu ainda

estou aqui. E não a abandonarei enquanto não a sepultar. - E que vais fazer depois? Também não pareces lá muito bem. Vais ter com os

teus avós? Onde estavam eles? Kazan? Molotov? Provavelmente não devias ir, sabes? Passo a vida a ouvir histórias terríveis dos refugiados.

- Não sei o que vou fazer. — Acrescentou: - Não te preocupes comigo. - Quando ele já ia a sair, chamou-o: — Dimitri?

Virou-se. - Quando vires o Alexander, conta-lhe da minha irmã. Ele assentiu: - Claro, Tanechka. Vou estar com ele na semana que vem. Lamento não ter

podido ajudar mais. Tatiana virou-lhe bruscamente as costas.

Page 375: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

375

Depois de ele ter partido, foi pedir a Olga que a ajudasse a içar o corpo de Dasha para o trenó, que empurrou pela ladeira abaixo. Chegada ao rio Kobona, pegou nas correias. Sob o céu cinzento e silencioso, puxou. Dasha, envolta num lençol branco de hospital. A tarde ainda mal começara e já estava tudo escuro. Não havia aviões alemães no céu. A cerca de duzentos e cinquenta metros, descobriu um buraco com água e empurrou o corpo de Dasha até este deslizar para o gelo.

Ajoelhou-se então ao seu lado e pousou a mão no lençol branco. Dasha lembra-se de quando me ensinaste a mergulhar no lago Ilmen, tinha eu

cinco anos e tu doze? Ensinaste-me a nadar embaixo de água e disseste-me que senti-la a tua volta de dava uma grande paz. E depois me ensinaste a ficar debaixo de água mais tempo do que Pasha, porque as raparigas tinham sempre de ser melhores do que os rapazes. Pois bem, nada agora debaixo de água. Dasha Metanova.

O vento ártico transformava-lhe o rosto molhado em gelo. - Gostava de saber uma oração – murmurou. – Preciso de uma oração, mais

não sei nenhuma. Meu Deus, por favor, deixa a minha única irmã Dasha nadar em paz e nunca mais ter frio e, por favor... podes dar-lhe ai no céu todo o pão nosso de cada dia que ela conseguir comer?...

De joelhos, empurrou o corpo para o buraco no gelo. À luz desvanecente, o saco branco parecia azul. Dasha mergulhou relutantemente, como se não quisesse apartar-se da vida, e desapareceu. Tatiana continuou ajoelhada. Por fim levantou-se e, tossindo para as luvas, empurrou lentamente o trenó vazio até a margem.

Page 376: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

376

LIVRO DOIS

A PORTA DOURADA

Page 377: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

377

TERCEIRA PARTE

LAZAREVO

Page 378: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

378

O CHEIRO DA PRIMAVERA

1

Alexander foi a Lazarevo um tanto às cegas. Hão tinha mais nada. Literalmente mais nada: nem uma carta nem um bilhete

de Dasha ou deTatiana, comunicando-lhe que haviam chegado a Molotov. Tinha muitas dúvidas quanto a Dasha, mas como vira Slavin sobreviver ao inverno, tudo era possível. O que o preocupava era a ausência de cartas de Dasha que, quando estava em Leninegrado, passava a vida a escrever-lhe. Agora, janeiro e fevereiro tinham passado e não sabia de nada.

Teve de conduzir um camião até Kobona uma semana depois de elas terem partido. Procurou-as nas margens entre os doentes e os refugiados, mas não encontrou nada.

Em março, ansioso e deprimido, escreveu uma carta para Molotov endereçada a Dasha. Telegrafou também para o Soviete de Molotov, pedindo informaçõessobre Daria ou Tatiana Metanova, mas só obteve resposta em maio, por correio normal. Uma carta de uma frase comunicou-lhe que não havia qualquer registo nem de uma nem de outra. Telegrafou novamente perguntando se o Soviete de Lazarevo podia receber telegramas. No dia seguinte recebeu a resposta: NÃO. STOP.

Ia à Quinto Soviete sempre que estava de licença. Entrava com a chave que Dasha lhe deixara e limpava os quartos, varria e esfregava o chão e lavou a roupa quando as autoridades municipais repararam a canalização em março. Colocou vidros novos no segundo quarto. Encontrou um álbum de fotografias dos Metanove começou a folheá-lo, mas de repente fechou-o e pô-lo de lado. Que estava a fazer? Era como ver fantasmas.

E, de facto, via os seus fantasmas por toda a parte. De cada vez que regressava a Leninegrado, ia ao correio da Velha Nevsky ver

se havia cartas para as Metanov. O chefe da estação já estava farto de o ver. No quartel, passava a vida a perguntar ao sargento encarregado da

correspondência se havia carta para ele das Metanov. Também o sargento já estava farto dele.

Mas nunca havia nada para Alexander: nem cartas, nem telegrama* notícias. Em abril, o chefe da estaçáo da Velha Nevsky morreu. Como ninguém foi notificado

Page 379: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

379

da sua morte, permaneceu na cadeira atrás da secretária, com correspondência no chão, no balcão, em caixas e em sacos do correio por abrir

Alexander fumou trinta cigarros enquanto vasculhava tudo. Não encontrou nada.

Regressava então ao lago Ladoga, onde continuava a proteger a Estrada da Vida, agora uma rota aquática, esperando nova licença e vendo o fantasma de Tatiana por todo o lado.

Leninegrado ia-se libertando do abraço da morte. As autoridades municipais começaram a recear que a proliferação de cadáveres, os esgotos entupidos e os despejos para a rua originassem uma epidemia logo que o tempo aquecesse. Assim, atacaram o problema de frente, decretando que todas as pessoas vivas e capazes limpassem os destroços dos bombardeamentos e retirassem os cadáveres das ruas. Os canos rebentados foram consertados e a eletricidade ligada. Primeiro elétricos e depois tróleis começaram a circular. Com túlipas a desabrochar e rebentos de couve crescendo à frente da Catedral de Santo Isaac, Leninegrado parecia renascer. << A Tania havia de gostar de ver as túlipas em Santo Isaac», pensava Alexander. A ração dos civis dependentes aumentou para trezentos gramas, não porque houvesse mais farinha mas porque havia menos pessoas.

No início da guerra, a 22 de junho de 1941, no dia em que Alexander conhecera Tatiana, viviam três milhões de civis em Leninegrado. Quando os Alemães cercaram a cidade a 8 de setembro de 1941, a população civil era de dois milhões e meio.

Na primavera de 1942, restava um milhão de pessoas. Pela estrada de gelo do Ladoga fora evacuado meio milhão de pessoas,

abandonadas à sua sorte em Kobona. E o cerco ainda não terminara. Quando a neve derreteu, Alexander foi encarregado de dinamitar e abrir uma

dúzia de valas comuns no Cemitério Piskarev, onde foram enterrados meio milhão de corpos, transportados por camiões até ao local. Piskarev foi apenas um dos sete cemitérios de Leninegrado onde os corpos foram descarregados como troncos de madeira.

E o cerco ainda não terminara. Alimentos americanos (cortesia da Lend-Lease1) chegavam lentamente a

Leninegrado. Os seus habitantes receberam leite, sopa e ovos desidratados algumas vezes durante a primavera. Alexander levantou alguns destes produtos e comprou um livro de frases inglês-russo a um camionista da Lend-Lease que passou por Kobona. «A Tania vai gostar de ter outro livro», pensou. <<Estava a sair-se tão bem no inglês ! >>

Sistema de fornecimentos de equipamentos è serviços aos países que lutavam contra a Alemanha, organizado pelos EUA em 1941 ( N.da.T.)

Page 380: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

380

A Ncvsky Prospekt foi reconstruída com fachadas falsas para disfarçar os buracos abertos pelas bombas alemãs. Leninegrado aproximava-se devagar, de cara lavada e sobretudo em silêncio do verão de 1942.

Os bombardeamentos alemães prosseguiam todos os dias ao mesmo ritmo. Janeiro, fevereiro, março, abril, maio. Quantos meses continuaria sem saber nada? Quantos meses sem notícias,

sem uma linha, sem uma palavra? Quantos meses de esperança até admitir que o inevitável e inimaginável podia ter acontecido, talvez tivesse acontecido e, finalmente, devia ter acontecido? Via a morte em todo o lado. Sobretudo na frente, mas também a morte desesperada nas ruas de Leninegrado. Via corpos mutilados, estropiados, gelados e famintos. Via tudo. Mas, apesar disso, continuava a acreditar.

Page 381: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

381

2

Em junho, Dimitri foi vê-lo ao quartel. Alexander ficou chocado e fez votos para que o seu rosto não o denunciasse. Parecia anos mais velho, e não apenas uns meses. Coxeava nitidamente e tinha o lado direito do corpo descaído. Exausto, magro, os dedos tremiam-lhe de uma maneira em que Alexander nunca reparara antes.

E quando o viu, pensou: «O Dimitri sobreviveu. Porque não a Dasha e a Tania? Se ele conseguiu, porque não elas? Se eu consegui, porque não elas?»

-Agora o meu pé bom é só o esquerdo - disse-lhe. - Que estupidez a minha, não achas? - Sorriu a Alexander, que o convidou relutantemente a sentar-se numa tarimba. Tinha esperanças de não voltar a vê-lo à frente. Mas pelos vistos enganara-se. Estavam sozinhos. Dimitri tinha no olhar um brilho pensativo a que não deu importância. — Pelo menos nunca mais terei de combater - continuou alegremente. — Prefiro muito mais assim.

-Ainda bem — volveu-lhe Alexander. —Já que o que querias era trabalhar na retaguarda...

- Bela retaguarda! — resmungou. — Sabes, primeiro puseram-me na evacuação,

em Kobona... - Kobona! - Sim — confirmou ele devagar. Porquê? Kobona tem algum significado

especial para além dos camiões Lend-Lease americanos que por lá passam? Alexander estudou-o: - Tem. Não sabia que estavas em Kobona. - Perdemos um bocadinho o contacto um com o outro - Estavas lá em janeiro? - Já nem me lembro. Janeiro foi há tanto tempo! Levantou-se e aproximou-se: - Dima! Consegui tirar a Dasha e a Tatiana... - Devem estar imensamente agradecidas. - Não sei. Não as viste? - Estás a perguntar-me se vi duas raparigas em Kobona, por onde passaram

milhares de refugiados? -. Soltou uma gargalhada. - Duas raparigas não - retorquiu Alexander friamente. - A Tania e a Dasha. Reconhecia-las se as visses, não? - Claro... - Viste-as? — Levantou a voz.

Page 382: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

382

- Não, não vi. Para de gritar. Mas devo dizer... - abanou a cabeça - ... meter duas rapariguinhas num camião rumo a... Para onde iam? - Algures para leste. - Não ia dizer-lhe em que direção seguiam. - Para o interior do país? Não sei, Alexander. Que ideia foi a tua? -

Casquinando: - Não me parece que quisesses que elas morressem. - Que ideia é essa, Dimitri? - atirou-lhe ele. - Não tinha outro remédio. Não

sabes o que aconteceu em Leninegrado no inverno? O que ainda continua a acontecer?

Dimitri sorriu: - Sei. Mas não poderias ter feito mais nada? O coronel Stepanov náo poderia

ter feito alguma coisa? - Não. — Estava farto. — Olha, tenho... - Só estou a dizer que os refugiados que passaram por mim estavam todos às

portas da morte. Sei que a Dasha é forte, mas a Tania... Até me admira que tenha sobrevivido o tempo suficiente para a tirares daqui. — Encolhendo os ombros: - Pensei que seria a primeira a... quer dizer, até eu tenho uma distrofia. E a maioria ria das pessoas que passava por Kobona estava doente e a morrer à fome. Depois eram obrigadas a percorrer sessenta quilómetros de camião até aos comboios mais próximos, todos para transporte de gado. — Baixou a voz: — Não sei se é verdade, mas corria o boato de que setenta por cento das pessoas que metemos nos comboios morreram de frio ou de doença. — Abanou a cabeça: — E fizeste a Dasha e a Tania passarem por isso? Que rico futuro marido! - Riu-se.

Alexander cerrou os dentes. - Olha, ainda bem que saí de lá - continuou Dimitri. - Não gostei muito de

Kobona. - Porquê? Era perigoso? - Não era por isso. Normalmente os caminhões

atrasavam-se no gelo do porque os refugiados eram muito lentos. Tínhamos de ir lá ajudá-los.Mas elesnão conseguiam andar. Estavam todos meio mortos. - Observando Alexander: - Ainda no mês passado os Alemães fizeram ir pelos ares três dos seis caminhões que estavam no gelo. - Suspirou: - Que rica retaguarda! Por fim consegui que me transferissem para o aprovisionamento. Virando-lhe as costas, Alexander começou a dobrar a roupa.

- O aprovisionamento também não é o mais seguro. - «Que estou a dizer? Ele que vá para a merda do aprovisionamento», pensou com os seus botões. - Por

outro lado, talvez seja bom para ti. Serás a pessoa que vende os cigarros. Toda a gente vai adorar-te. - O abismo que se abrira entre a amizade que os unira e o que existia agora era muito grande. Nem barcos nem pontes voltariam a ligá-los. Alexander esperava que Dimitri ou se despedisse ou perguntasse pela família de Tatiana, mas ele não fez nem uma coisa nem outra. Por fim, náo aguentou mais:

- Dima, não estás minimamente interessado em saber o que aconteceu aos Metanov? O outro encolheu os ombros:

Page 383: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

383

- Suponho que o mesmo que aconteceu à maioria dos habitantes de Leninegrado. Morreram todos, não? — Disse-o com o ar de quem pergunta: «Foram todos às compras, não?» Alexander baixou a cabeça. Dimitri continuou: - Estamos em guerra, Alexander. Só os mais fortes sobrevivem. Por isso é que desisti da Tania. Não queria, até gostava bastante dela e ainda gosto. Tenho boas lembranças, mas mal conseguia safar-me a mim. Não podia estar a preocupar-me com ela, sem comida nem roupas quentes.

«Como a Tatiana o percebeu bem! Realmente nunca gostou dela», pensou Alexander, arrumando a roupa no armário e evitando o olhar de Dimitri.

- Por falar em sobrevivência, olha uma coisa... - começou Dimitri. «Pronto, cá está.» Não levantou os olhos enquanto esperava pelo resto.

- Desde que os Americanos entraram na guerra... é melhor para nós, não é? - Claro - assentiu. — A Lend-Lease é uma grande ajuda. - Não, não. — Levantou-se da cama e falou em voz nervosa e ansiosa: - Não

estou a falar de nós e sim de mim e de ti. Dos nossos planos. Alexander pôs-se em pé e olhou-o de frente. - Não tenho visto muitos Americanos deste lado - disse devagar, fingindo não

compreender. —Talvez, mas a cidade de Kobona está a abarrotar deles! — exclamou Dimitri. - Transportam mantimentos, tanques, jipes e botas por Murmansk,

descendotoda a costa leste do lago Ladoga até Petrozavodsk e Lodeynoye Pole. Há dezenas

deles em Kobona. - A sério? Dezenas? - Dezenas talvez não. Mas são americanos! — Depois de uma pausa: - Pode ser que nos ajudem. Alexander aproximou-se. - Em que sentido? — perguntou bruscamente. Dimitri sorriu e continuou a fàlar baixo com a voz fina: - Em que sentido? No sentido americano. Talvez possas ir a Kobona... - Vou a Kobona e depois? Falo com quem? Com os camionistas? Achas que

basta um militar soviético começar a falar inglês com eles para dizerem logo:<< Oh, claro, venha connosco no nosso barco que nós levamo-lo para casa.» Fez uma pausa e deu uma passa no cigarro: - E mesmo que isso não fosse impossível, o que sugeres que façamos em relação a ti? Ainda que um estranho estivesse disposto a arriscar o pescoço por mim devido a uma espécie de solidariedade americana, como pensas que isso te ajudaria a ti?

Apanhado de surpresa, Dimitri respondeu apressadamente: - Náo digo que seja um bom plano, mas é um começo. -Tu estás ferido, Dima. Olha para ti. - Mirou-o de cima a baixo:-Não estás em

condições de combater nem de... fugir. Temos de desistir dos nossos planos - O quê? - replicou Dimitri em voz frenética. — Sei que ainda queres...

Page 384: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

384

- Dimitri! - O que foi? Temos de fazer alguma coisa, Alexander! Tínhamos planos. - Dimitri! Os nossos planos incluíam fugirmos das tropas fronteiriças da NKVD

e escondermo-nos nos atoleiros minados da Finlândia! Agora que deste um tiro no pé, como achas que é possível?

Alexander deu graças por Dimitri se calar e não ter a resposta na ponta da língua.

- Concordo que o caminho por Lisiy Nos é mais difícil - reconheceu ele-, mas parece-me que temos boas hipóteses de subornar os moços de recados da Lend-Lease.

- Não são moços de recados! — exclamou Alexander em voz zangada. A seguir, fez uma pausa. Não valia a pena. - São combatentes treinados que todos os dias se expõem aos torpedos dos submarinos, percorrendo dois mil quilómetros através do Ártico e do Norte da Rússia para te trazerem tushonka.

E são exatamente os homens que podem ajudar-nos. Alexander...-Dimitri aproximou-se -... preciso de ajuda. - Aproximou-se ainda mais. - E depressa. Não tenciono morrer na merda desta guerra. - Fez uma pausa, sem tirar dele os olhos semicerrados. - E tu?

- Se for preciso, morrerei - respondeu sem vacilar. Dimitri observou-o, coisa que Alexander detestava. Acendendo um cigarro,

fitou-o friamente, obrigando-o a recuar. - Ainda tens o teu dinheiro contigo? - inquiriu ele. - Não. - Consegues ir buscá-lo? - Não sei. — Tirou outro cigarro. A conversa chegara ao fim. - Tens um por fumar na boca — comentou Dimitri secamente. Alexander teve direito a uma generosa licença de trinta dias, mas pediu mais

tempo a Stepanov, que o deixou ausentar-se de 15 de junho a 24 de julho. - É tempo suficiente? - indagou Stepanov, esboçando um sorriso. - Ou é tempo de mais ou não chega, meu coronel. - Capitão — começou Stepanov, acendendo um cigarro e dando outro a

Ale¬xander —, quando regressar... — Suspirou: — Não podemos continuar no quartel, pepois do que aconteceu à nossa cidade, não vamos passar outro inverno como o último. Não pode ser. — Fez uma pausa. — Temos de romper o bloqueio. Todos nós. Neste outono.

- Concordo, meu coronel. - Concorda, Alexander? Viu o que aconteceu aos nossos homens emTikhvin e

Mga no último inverno e nesta primavera? - Vi, meu coronel. - Sabe o que está a acontecer aos nossos homens no Enclave do Nevsky do

outro lado do rio, em frente de Dubrovka?

Page 385: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

385

- Sei, meu coronel. — O Enclave do Nevsky era uma cunha do Exército Vermelho dentro das linhas inimigas... onde os Alemães faziam tiro ao alvo quotidianamente e onde os soldados russos morriam a um ritmo de duzentos por dia.

Stepanov abanou a cabeça: - Vamos atravessar o Neva em barcaças. Temos uma artilharia limitada e

espingardas só de um tiro... - Eu não, meu coronel. Eu tenho uma metralhadora Shpagin. E a minha

espingarda é automática. — Sorriu. Sorrindo também, Stepanov assentiu: - Faço as coisas parecerem brutais... - E são. - Capitão, não se deixe intimidar, por muito desiguais que sejam os combates. Alexander levantou os olhos e endireitou as costas: - Alguma vez o fiz? O coronel aproximou-se dele: - Se tivéssemos mais homens como o capitão, já teríamos ganhado esta

guerra há muito tempo. - Apertando-lhe a mão: - Vá. Boa viagem. Nada será igual quando regressar.

Page 386: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

386

3

Enquanto atravessava metade da União Soviética, Alexander ia pensando «A Dasha, a Tania... não me teriam escrito se estivessem vivas?»

A dúvida assaltava-o como fogo de morteiros. Seria loucura viajar mil e seiscentos quilômetros para leste, atravessando o

lago Ladoga, o rio Onega e o rio Dvina, o Sukhona e o Unzha, o Kama e os montes Urais sem saber nada havia seis meses, meio ano, sem ter ouvido um palavra da boca dela nem recebido uma linha sua?

Sim, era. Durante a viagem de quatro dias até Molotov, Alexander reviu cada

segundoque passara com ela. Mil e seiscentos quilómetros recordando o canal Obvodnoy o tempo em que ia esperá-la a Kirov, a tenda em Luga, ela às suas costas, o quarto do hospital, Santo Isaac, ela a comer gelado e deitada no trenó enquanto ele a puxava, quase sem vida. Mil e seiscentos quilômetros com ela a dar comida a toda a gente e a saltar no telhado enquanto os aviões alemães cruzavam os céus. Havia algumas lembranças do inverno anterior que recordava com um arrepio: ela a caminhar ao seu lado depois de sepultar a mãe, ou de pé, imóvel à frente das facas de três rapazes.

Duas imagens vinham-lhe continuamente à cabeça, num estribilho inquieto e frenético.

Tatiana de capacete e roupas estranhas, coberta de sangue, de pedras, traves de vidro, coberta de cadáveres mas ainda quente, ainda a respirar.

E: Tatiana na cama do hospital, nua nos seus braços, gemendo com as carícias da

sua boca. Se alguém conseguisse safar-se, não seria a rapariga que durante quatro

meses se levantara às seis e meia da manhá e se arrastara pela cidade moribunda de Leninegrado para ir buscar o pão da família?

Mas supondo que sobrevivera, como pudera não lhe escrever? A jovem que lhe beijava a mão, que lhe servia chá e que o contemplava sem

respirar, com um olhar que nunca vira antes... teria desaparecido? O seu coração já não existiria? Por favor, meu Deus,suplicava. Que ela já não me ame, mas que esteja viva. Era uma oração difícil de rezar, mas não conseguia imaginar-se a viver num

mundo sem Tatiana.

Page 387: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

387

Sujo e subalimentado, chegou a Molotov na quinta-feira, 19 de junho de 1942 depois de ter passado quatro dias em cinco comboios diferentes e quatro jipes militares. Ao meio-dia, sentou-se num banco de madeira perto da estação.

Não conseguia decidir-se a caminhar até Lazarevo. Não suportava pensar nela morrendo em Kobona, saindo da cidade destruída

morrendo tão perto da salvação. Não suportava. Pior... sabia que não seria capaz de se enfrentar a si próprio se viesse a

des¬cobrir que ela não sobrevivera. Não suportaria regressar... regressar onde e para quê?

Chegou a pensar em entrar no comboio seguinte e regressar de imediato, precisava de muito mais coragem para continuar do que para se pôr atrás de um lança-foguetes Katyusha ou de uma antiaérea Zenith no lago Ladoga, sabendo que qualquer um dos aviões da Luftwaffe que cruzavam os céus poderia matá-lo instantaneamente.

Não tinha medo da morte. O que receava era a morte dela. O espetro da sua morte tirava-lhe a coragem. Se Tatiana tivesse morrido, isso queria dizer que Deus estava morto, e

Alexander sabia que não sobreviveria nem um instante num Universo governado pelo caos, sem objetivos. Não viveria mais do que o infeliz Grinkov, que uma bala perdida cortara ao meio na altura em que regressava à retaguarda.

A guerra era o caos supremo, um martelar, um rosnar que destruía as almas e acabava com homens estropiados jazendo sem sepultura na terra fria. Não havia nada cosmicamente mais caótico do que a guerra.

Mas Tatiana era a ordem. Matéria finita num espaço infinito. Porta-estandartes da bandeira da graça e do valor, que transportava com majestade e perfeição e que Alexander seguira ao longo de mil e seiscentos quilómetros até ao rio Kama, aos montes Urais, a Lazarevo.

Ficou duas horas sentado no banco de Molotov, cidade de província rodeada de carvalhos, sem ruas asfaltadas.

Voltar para trás era impossível. Ir para a frente, impensável. No entanto, não tinha mais Jugar nenhum para onde ir. Levantou-se, benzeu-se e pegou nos seushaveres. Quando, por fim, começou a caminhar na direção de Lazarevo, sem saber se

Tatiana estava viva ou morta, sentiu-se como um homem avançando para ser executado.

Page 388: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

388

4

Lazarevo ficava a dez quilómetros, no meio de densos pinhais. A floresta não tinha só pinheiros; ulmeiros, carvalhos, bétula, urtiga e mirtílos

acariciavam-lhe os sentidos enquanto caminhava com a mochila, a espingarda, a pistola e as munições, a tenda e o cobertor, o capacete e um saco cheio de comida de Kobona. Distinguia através das árvores a corrente do rio Kama. Ainda pensou em ir-se lavar, mas chegara a um ponto em que precisava de continuar a avançar.

Enquanto caminhava, ia apanhando mirtilos dos arbustos baixo,tinhafome. Estava muito calor e havia muito sol. De repente, foi invadido pela esperança. Estugou o passo.

Quando chegou à orla dos bosques, viu à frente uma estrada de aldeia com pequenos casebres de madeira dos dois lados, ervas altas e velhas vedações em mauestado.

À esquerda, o rio cintilava para além dos pinheiros e dos ulmeiros. Mais ao longe, depois do rio e de outra floresta densa e voluptuosa, distinguiam-se os cabeços redondos e sempre verdes dos montes Urais.

Inspirou profundamente. Lazarevo cheirava a Tatiana? Cheirava a arder, água fresca e agulhas de pinheiro. E peixe. Viu as chaminés de uma fábriqueta de conservas de peixe à entrada da aldeia.

Continuou pela estrada e passou por uma mulher sentada num banco á porta de casa, que o examinou de cima a baixo; era compreensível: aquela gente não devia ver muitas vezes um oficial do Exército Vermelho. Mas ela levantou-se e exclamo:

- Oh, não! Não me diga que é o Alexander! Ficou sem saber o que responder. - Oh, sim! — acabou por dizer. — Sou o Alexander. Ando à procura da Tatiana

e da Dasha Metanova. Sabe onde vivem? A mulher começou a chorar. Ele observou-a. - Vou perguntar mais à frente — murmurou, prosseguindo caminho. Ela correu atrás dele em pequenos passos. - Espere, espere! — Apontou para o fundo da estrada: - A sexta-feira

costumam ir coser para o largo da aldeia. Siga sempre em frente. - Abanando a cabeça, voltou para trás.

- Então estão vivas? — perguntou em voz fraca, inundado pelo alívio. A mulher não conseguiu responder. Tapando o rosto, correu outra vez para

casa.

Page 389: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

389

Falara no plural? Ele perguntara pelas duas irmãs e ela respondera no plural?Alexander abrandou o passo, pegou num cigarro e bebeu do cantil. Continuoudepois em frente, mas parou antes de chegar ao largo, que ficava a trinta metros.

Não podia aparecer na estrada assim sem mais nem menos. Ainda não. Se elas estavam vivas, dali a um instante teria de enfrentar problemas

diferentes dos que imaginara... e achava que os imaginara a todos. Saberia resolvê-los como resolvia o resto, mas primeiro...

Atravessou o quintal de alguém desculpando-se apressadamente, abriu o por- de trás e meteu pelo caminho das traseiras. Queria chegar ao largo pelo outro

lado e poder contemplar Tatiana antes de ela o ver a ele. Desejava observá-la sem disfarces antes que surgisse Dasha.

Queria a prova da existência de Deus antes de Ele olhar o homem com os Seus olhos. Os ulmeiros formavam um dossel alto e verde em volta do pequeno largo. Viu

um grupo de pessoas sentadas debaixo das árvores, em volta de uma mesa de madeira comprida. A maioria eram mulheres; na realidade, só distinguiu um rapaz. Estavam mesmo a coser. Aproximou-se para ver melhor.

Uma sebe e um lilaseiro largo obstruíam-lhe a vista. As flores roçavam-lhe a cara e o nariz. Inspirando o seu perfume intenso, espreitou. Não viu Dasha em lado nenhum: apenas quatro mulheres idosas, um rapaz, uma rapariga mais velha e Tatiana, que se encontrava de pé.

Ao princípio, nem acreditava que se tratasse da sua Tania. Pestanejou e tentou perceber melhor o que via. Tatiana andava à volta da mesa, gesticulando, mostrando, indinando-se, debruçando-se. A dada altura, endireitou-se e limpou a testa. Enver¬gava um vestido de camponesa amarelo de manga curta. Estava descalça e viam- -se-lhe as pernas magras até acima do joelho. Tinha os braços nus ligeiramente bronzeados. O cabelo louro parecia quase branco por causa do sol e estava dividido em duas tranças que lhe chegavam aos ombros, presas atrás das orelhas. Mesmo de longe, notavam-se-lhe as sardas de verão no nariz. Estava de uma beleza que até doía.

E viva. Fechou os olhos e voltou a abri-los. Continuava ali, debruçada sobre o

tra¬balho do rapaz. Disse qualquer coisa, toda a gente riu em voz alta e o braço dele tocou nas costas dela. Tatiana sorriu. Os dentes brancos cintilaram-lhe em har¬monia com todo o corpo. Alexander não sabia o que fazer.

Estava viva, isso era óbvio. Então porque não lhe escrevera? E que seria de Dasha? Não podia continuar escondido atrás de um lilaseiro.

Page 390: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

390

Voltou à estrada principal, inspirou profundamente, apagou o cigarro e cami¬nhou em direção ao largo, sem despregar os olhos das suas tranças. 0 coração galopava-lhe dentro do peito como se fosse para uma batalha.

Tatiana levantou os olhos, viu-o e tapou o rosto com as mãos. Alexander viu toda a gente levantando-se e correndo para ela. As velhinhas, de resto, com umaagilidade e rapidez inesperadas. Ela empurrou-as, empurrou a mesa, empurrou o banco e correu para ele. A emoção paralisou AJexander, que queria sorrir mais que achava que ia cair de joelhos e chorar. Largou tudo, incluindo a espingarda. <<Meu Deus», pensou, vou senti-la outra vez>>. E foi então que sorriu.

Tatiana saltou-lhe para os braços abertos e ele levantou-a do chão com a f do seu abraço. Não se cansava de a apertar, de a cheirar. Ela lançou-lhe os braços ao pescoço e enterrou-lhe o rosto na barba da face. Os soluços sacudiam-lhe o corpo. Estava mais pesada do que quando a içara para o camião, no lago Ladoga. Apesar das botas, roupas, casacos e mantas, não pesava tanto como agora.

Tinha um cheiro incrível. Cheirava a sabão, sol e açúcar em caramelo. Tocar-lhe era incrível. Cingindo-a a si, esfregou-lhe o rosto nas tranças

murando palavras sem sentido: - Vá, vá... então, Tatia, vá. Por favor... — A voz embargou-se-lhe. - Oh, Alexander - sussurrou-lhe docemente, agarrando-se-lhe à nuca. - vivo!

Graças a Deus, estás vivo! - Oh, Tatiana! - volveu-lhe ele, apertando-a com mais força, como se isso fosse

possível, e envolvendo-lhe o corpo de verão. — Estás viva! Graças a Deus estás viva! — As mãos passearam-lhe do pescoço para o fundo das costas. Quase lhe sentia a pele através do vestido de algodão muito fino. Que macia!

Pousou-a por fim no chão. Tatiana levantou os olhos. As mãos dele perma¬neciam-lhe em volta da cinturinha fina. Alexander não a largava. Fora sempre assim tão pequenina como naquele momento, descalça em frente dele?

- Gosto da tua barba — disse ela sorrindo timidamente e tocando-lhe no rosto.

- Adoro o teu cabelo — respondeu, puxando-lhe uma trança e devolvendo- -Ihe o sorriso.

- O teu estado é lamentável... Ele olhou-a de cima a baixo: - E tu estás um espanto. — Não conseguia despregar os olhos dos seus lábios

gloriosos, ávidos e cheios de vida. Da cor dos tomates em julho... Inclinou-se para ela... Inspirando profundamente, lembrou-se de Dasha. Deixou de sorrir, largou-a e

afastou-se ligeiramente. Ela carregou o cenho e fitou-o. - Onde está a Dasha? — perguntou. Nos olhos dela passou... mágoa, tristeza, dor, culpa e cólera... contra ele?

Page 391: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

391

Passou e desapareceu num instante, deixando-lhe uma névoa gélida no olhar. Qualquer coisa dentro dela fechou-se contra ele. Fitou-o com frieza. Embora ainda tivesse as mãos a tremer, falou em voz baixa e firme:

- A Dasha morreu, Alexander. - Oh, Tania! — Estendeu a mão para lhe tocar, mas ela recuou. Não, não se

limitou a recuar: cambaleou para trás. - O que foi? - perguntou, perplexo. - O que foi? - Alexander, vieste até tão longe... — começou, incapaz de o olhar de frente. - Que queres dizer... Mas antes de ele poder continuar ou Tatiana responder, os outros

rodea¬ram-nos. - Tanechka! — exclamou uma mulher baixinha, gordinha e ruiva, de olhos

pequenos e redondos. - Quem é ele? O Alexander da Dasha? - É. É o Alexander da Dasha. Alexander... esta é a Naira Mikhailovna. Naira debulhou-se em lágrimas: - Coitado de si. — Além de apertar a mão de Alexander, também o abraçou.

Coitado? Olhou para Tatiana. - Naira, por favor - pediu ela, recuando mais. Naira fungou e sussurrou-lhe: - Ele sabia? - Não. Mas agora já sabe — retorquiu, provocando em Naira outro ataque de

choro. As apresentações prosseguiram: - Alexander, este é o Vova, neto da Naira, e esta a Zoe, irmã do Vova. Vova era precisamente o tipo de fedelho em que Alexander não gostava nem

de pensar. Estendeu-lhe a mão. O rosto, os olhos e a boca redonda faziam dele uma versão morena da sua avó baixinha e compacta.

Zoe, uma moçoila morena e grande, abraçou-o apertando os grandes seios contra a túnica do uniforme e pegou-lhe na mão:

- É um prazer conhecê-lo, Alexander. Ouvimos falar tanto de si! - Tudo — acrescentou uma mulher alegre, de cabelo encaracolado, que

Tatiana apresentou como sendo a irmã mais velha de Naira, Axinya. — Sabemos tudo sobre si — rematou energicamente, abraçando-o também.

Avançaram depois mais duas mulheres, ambas grisalhas e magras. Uma delas tinha qualquer doença, porque tremia toda: as mãos, a cabeça e a boca quando falava. Chamava-se Raisa. O nome da mãe era Dusia, mais alta e larga do que a filha e com um grande crucifixo de prata sobre o vestido escuro. Benzeu Alexander:

- Deus há de olhar por si, Alexander. Não se preocupe. Apeteceu-lhe responder-lhe que uma vez que encontrara Tatiana viva não

tinha nada com que se preocupar, mas antes de ter tempo para dizer fosse o que fosse, Axinya perguntou-lhe como se sentia, originando uma segunda rodada de abraços e lágrimas.

Page 392: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

392

- Sinto-me bem. A sério que não há razão para chorarem. Bem podia tê-lo dito em inglês, porque elas continuaram lavadas em lágrimas. Perplexo, fitou Tatiana, que se desviou para o lado acompanhada por Vova. — O Alexander é o... oh, não posso, não posso — chorou Naira. — Então, Naira. Mikhailovna? — disse Tatiana serenamente –Ele sta

bem.Olhe. Não vê que está bem? — A Tania tem razão. Estou bem, a sério. — Oh, coitado! — continuou Naira, puxando-lhe a manga – Que viagem a sua!

Deve estar exausto. Não estava até cinco minutos atrás. Olhou para Tatiana: — Tenho um bocadinho de fome. — Sorriu. — Claro — replicou ela, mas sem lhe devolver o sorriso. — Vamos comer. — Nada daquilo fazia sentido para Alexander. Cansado e com fome de

repente perdeu a paciência: — Com licença - disse, desviando-se de Axinya, que estava à sua frente

abrindo caminho por entre aquele marde gente. — Tatiana, podemos falar? Ela recuou e desviou o olhar: Anda. Vou fazer-te o jantar. — Podemos... — teve alguma dificuldade em pronunciar as palavras - ...falar

Tania? — Claro que sim, Alexander—respondeu-lhe Naira. — Vamos falar. Venha,

queri¬do, venha a nossa casa. — Pegando-lhe no braço: — Este deve ser o pior dia da sua vida. Já nem sabia o que pensar daquele dia.

- Nós olhamos por si - continuou ela. — A nossa Tania é uma cozinheira de se lhe tirar o chapéu.

A nossa Tania? — Eu sei. — Vai comer, vai beber edepois falamos. Falamos muito. Vamos contar-lhe

tudo. Quanto tempo fica? — Não sei - replicou, jásem sequer tentar atrair o olhar dela. Começaram a andar. Nomeio de tantaagitação, esqueceram-se dos seus

tra¬balhos de costura. — Oh, é verdade! - exclamou Tatiana sem expressão, regressando à mesa.

Ale-xander seguiu-a. Zoe correu ao seu lado, mas eledisse-lher — Preciso de falara sós com aTania. — Sem esperar pela resposta, correu a

apanhá-la. — Que se passa contigo? — Nada. — Tania! — O que foi? — Fala comigo!

Page 393: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

393

- Que tal correu a viagem? - Não era isso que eu queria dizer. Foi boa. Porque não me escreveste? - Alexander? Porque não me escreveste tu? Ficou espantado: - Não sabia que estavas viva! - E eu não sabia tu estavas vivo — volveu ela, quase com serenidade. Como se

ele não percebesse que aquele véu escondia uma tempestade da qual não o deixava aproximar-se!

- Ficaste de me escrever a dizer-me que tinhas chegado bem — continuou Alexander. - Lembras-te?

- Não. Quem ficou de te escrever foi a Dasha. Lembras-te? Mas ela morreu portanto não pôde fazê-lo. — Recolheu as agulhas, as linhas, as contas, os botões e os desenhos feitos em papel e meteu tudo num saco.

— Tenho tanta pena da Dasha... tanta! Por favor... — Tocou-lhe nas costas. Tatiana estremeceu e engoliu as lágrimas:

- Também eu. - O que aconteceu? Conseguiram sair de Kobona? — Eu consegui — respondeu baixinho. — Ela não. Morreu na manhã em que

lá chegámos. — Oh, meu Deus! Ficaram calados sem olhar um para o outro. Arrastando Dasha pela ladeira abaixo até ao Ladoga, suplicando-lhe que se

aguentasse, que caminhasse, enquanto Tania, que também não se tinha em pé, empurrava a. irmã para a frente, incitando-a a viver.

— Lamento muito, Tania - sussurrou. — Ver-te é viver tudo outra vez. As feridas ainda estão muito abertas. - Foi

então que levantou osolhos, deixando-o ver todo o seu pesar. Caminharam devagar parajunto dos outros. Vova deu uma palmadinha noombro de Alexander: — Que talvai a guerra? — Bem, obrigado. — Parece que os nossos não se estão a sair lá muito bem. Os Alemães estão

perto de Estalinegrado. — É verdade - confirmou. - Os Alemães são muito fortes. Outra palmada no ombro: — Estou a ver que tratam bem as pessoas. No mês que vem faço dezessete

anos e alisto-me. — De certeza que o Exército Vermelho vai fazer de ti um homem. - Tentava

parecer animado. Virou-se para Tatiana, que segurava o grande saco com a costura: — Queres que leve? - Não é preciso. Já tens tralha que chegue. - Trouxe-te uma coisa.

Page 394: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

394

- A mim? - Não olhou para ele enquanto falava. Que se passaria? - Tania... - começou, perplexo. - Alexander - interrompeu Naira -, amanhã é o dia de irmos ao banya. Pode esperar até lá? - Não. Lavo-me hoje à noite no rio. - Não pode esperar só um dia? — insistiu. Ele abanou a cabeça. - Fiz uma viagem de comboio de quatro dias. Já não vejo água há muito

tempo. - Quatro dias! - exclamou Raisa, tremendo. — Há quatro dias que ele anda de

comboio! - Sim - choramingou Naira, limpando o rosto —, e para quê? Para quê? Oh,

que desgraça é esta guerra, que desperdício, que tragédia! - As outras senhoras fungaram em concordância.

Alexander ouviu um queixume abafado escapando do peito deTatiana. Queria que ela o olhasse. Queria contemplar-lhe o rosto e que ela lhe dissesse o que se passava. Tocar-lhe nos braços nus. Desejava tanto tocar-lhe que... mas tinha as mãos ocupadas.

- Tatia... - sussurrou, inclinando-se tanto para ela que quase lhe tocou no cabelo com a boca.

Ouviu-a suspender a respiração. Depois, afastou-se. Ligeiramente frustrado, endireitou-se notando que Vova não se afastava de

Tatiana nem ela dele. Desceram a rua devagar. As pessoas saíam em fila das pequenas casas da

aldeia, algumas abanando a cabeça, outras apontando e outras limpando os olhos. Muitas cumprimentaram-no. Uma senhora de meia-idade aproximou-se e deu-lhe um abraço caloroso.

- Sentimo-nos orgulhosos — disse um velhote. Porque suspeitaria que aquilo não tinha nada a ver com a guerra? — Que coragem a sua ao vir aqui ao encontro da sua Dasha! — Apertando-lhe a mão: — Se precisar de alguma coisa, seja do que for, pode contar comigo. Sou o Igor.

- Tania, porque me parece que todos me conhecem por aqui? - perguntou baixinho.

- Oh, porque é verdade — respondeu ela sem expressão, continuando a olhar em frente. — Tu és o capitão do Exército Vermelho que veio para casar com a minha irmã. Todos sabem disso. Infelizmente, ela morreu. E também todos sabem disso. Por isso, têm pena. — A sua voz permanecia quase firme.

Soluços de Dusia atrás e de Naira à frente. - Em casa vamos dar-lhe vodca e contar-lhe tudo, Alexander – observou Naira. - Vamos? - Lançou um olhar a Tatiana. Esperava que o plural não se aplicasse

a mais de duas pessoas, mas desconfiava que talvez se enganasse.

Page 395: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

395

- Como tens passado, Tania? - perguntou. - Como... - Oh, muito bem — interrompeu Vova, passando o braço pelos ombros dela. - Agora está muito melhor. Alexander olhou em frente, com a visão a enevoar-se. O tiquetaque dentro

dele começava a multiplicar-se. Foi nesse momento, quando cerrou os dentes e virou a cabeça, que Tatiana se

afastou de Vova e se aproximou, pousando-lhe a mão no braço. - Deves estar exausto, não? - indagou docemente, examinando-lhe o rosto. - Quatro dias de comboio! Já comeste hoje? - De manhã. - Não olhou para ela. Ela assentiu: - Vais sentir-te melhor quando comeres e te lavares. - Sorrindo: - E te

barbeares. - Apertou-lhe o braço. Ele melhorou logo e devolveu-lhe o sorriso. Teria de falar com ela sobre Vova.

Via-lhe coisas por resolver no olhar. A última vez que haviam tido paz e energia para resolver fosse o que fosse fora em Santo Isaac. Um momento a sós com

ela e tudo melhoraria, mas primeiro teria de lhe falar de Vova. - Alexander — começou Axinya -, arrancámos a nossa Tania das garras da

morte. - Soltaram todas um queixume. Ele contemplou-a caminhando ao seu lado e sentiu o calor espalhando-se-lhe

pelo corpo: - Deixa-me levar isso, por favor. Já ia a dar-lhe o saco da costura quando Vova o intercetou: - Eu levo. - Por acaso encontraste o Dimitri em Kobona? - inquiriu Alexander. Naira virou-se bruscamente para trás com os olhos brilhantes e suplicantes: - Chiu! Não se fala do Dimitri. - Esse filho da mãe! - exclamou Axinya. - Axinya, por favor! — ralhou Naira, dirigindo-se a Alexander e assentindo: - Mas ela tem razão. Ele é mesmo um filho da mãe - murmurou. Ele fitou-as de olhos esbugalhados: - Devo compreender que realmente encontraste o Dimitri em Kobona? - Hum. — Não disse mais nada. Alexander abanou a cabeça. De facto era um filho da mãe. Zoe, que seguia à direita, inclinou-se e falou em tom de conspiração: - Uma outra razão para não falarmos do Dimitri é que o nosso Vovka tem um

fraquinho pela Tania. Ele afastou-se de Zoe e dirigiu-se a Tatiana: - A sério? A casa de Naira, ao fundo da aldeia, junto ao rio, era branca, de madeira,

quadrada e pequena. - Vivem todos aqui? - indagou Alexander, olhando de relance Tatiana, que

Page 396: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

396

seguia à frente. - Não, não. Só nós e a nossa Tania — explicou Naira. - O Vova e a Zoe moram

com a mãe no outro lado de Lazarevo. O pai deles morreu na Ucrânia no verão passado.

- Babushka, parece-me que na sua casa não vai haver lugar para o Alexander - disse Zoe.

Ele examinou a casa. Se calhar Zoe tinha razão. No quintal da frente havia uma capoeira de arame com duas cabras e três galinhas que, por elas, pareciam ter muito espaço.

Seguindo Tatiana, subiu uns degraus de madeira que davam para uma espa¬çosa varanda envidraçada, com dois sofás pequenos de um lado e uma mesa de madeira, comprida e retangular do outro. Atravessou-a e parou à entrada da sala de visitas às escuras, no meio da qual se encontrava um fogão de lenha. Ocupava quase toda a parte de trás da divisão, tinha uma chapa comprida de ferro fundido e três compartimentos: o do centro para queimar a lenha e dois fornos. A chaminé curvava para a esquerda. Acima do fogão encontrava-se uma superfície plana coberta de mantas e almofadas. Nos casebres de muitas aldeias da União Soviética, a parte de cima do fogão servia frequentemente de cama. Quando o lume se apa¬gava em baixo, a parte de cima era muito quentinha.

Em frente do fogão havia uma mesa alta para a preparação dos alimentos e atrás um baú preto e uma máquina de costura pousada numa secretária. À direita abriam-se duas portas, que Alexander supôs darem para os quartos de dormir.

Tatiana encontrava-se ao seu lado. - Deixa-me adivinhar - comentou ele. - Dormes ali em cima? - Durmo - replicou sem olhar para ele. - É confortável. Entra. - Dirigiu-se à

secretária ao lado do fogão. - Espera, espera - disse Naira. - A Zoechka tem razão. Não temos muito

espaço. - Não faz mal. Fico na tenda - retorquiu Alexander, seguindo Tatiana. - Não, na tenda não - protestou Naira. - Porque não fica com o Vova e a Zoe?

Eles têm espaço para si. Aliás, até um belo quarto de dormir, com uma cama e tudo. - Não. - Virou-se para Naira: - Mas obrigado. - Não achas que seria mais confortável para ele. Tanechka? Podia... - Ele já disse que não, Naira Mikhailovna. - Nós sabemos — interveio Axinya, atravessando a varanda. - Mas seria mais... - Não — repetiu Alexander. — Durmo lá fora na minha tenda. Fico muito bem. Tatiana fez-lhe sinal para se aproximar, mas ele não foi suficientemente

rápido e ela só teve tempo de lhe dizer: - Dorme aqui em cima do fogão. É muito quentinho. - E onde é que tu dormes? — perguntou sem alterar o tom de voz. Ela corou e ele não se conteve: soltou uma gargalhada e beijou-a na face, o

que a fez corar ainda mais.

Page 397: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

397

- És tão engraçada, Tania! Ela recuou quase até à varanda. Alexander sorriu-lhe: - Olha, vou... - Com a Zoe e o Vova? - rematou Naira, entrando na sala. - É uma grande

ideia. Eu sabia que a nossa Tanechka ia convencê-lo. Consegue sempre convencer qualquer um. Zoe!

- Não! - exclamou Tatiana. Alexander teve vontade de a beijar. - Naira Mikhailovna, ele não vai. Não veio até tão longe para agora ficar com o

Vova e a Zoe. Vai ficar aqui. Dorme lá em cima. - Oh! - exclamou Naira, um tanto sem ar. - E tu? Conseguiria evitar corar? Não, não conseguiu: - Durmo na varanda. - Bem, se é assim, o melhor é mudares a roupa da tua cama para ele dormir

em lençóis lavados. - Está bem - assentiu. - Não te atrevas a tocar-lhes - cochichou Alexander. Naira anunciou que ia buscar toalhas lavadas e desapareceu no quarto. Viraram-se instantaneamente um para o outro. Tatiana não conseguiu

levan¬tar os olhos, mas virou-se para ele e... estaria a sentir o seu cheiro? - Vou lavar-me e já venho. - Sorriu. Não sabia o que havia de fazer às mãos. Só

lhe apetecia pegar nas dela. - Não saias daqui. - Não saio. Precisas de sabão? Abanou a cabeça: - Tenho muito. - Não duvido. Mas olha o que tenho mais. - Tirou um frasquinho de champô

da gaveta da secretária. - Comprei-o em Molotov. Custou-me vinte rublos. - Estendendo-lho: - Champô a sério.

- Gastas te vinte rublos num frasco de champô? - Fingindo-se horrorizado pegou nele e agarrou-lhe os dedos.

- É bem melhor do que comprar uma chávena de farinha por duzentos e cinquenta - replicou, retirando rapidamente os dedos e tentando mudar de assunto.

- Vinte dos meus rublos? - Sim. O dinheiro que me puseste no livro deu-me muito jeito. Obrigada. - Sem

olhar para ele: — Obrigada por tudo. - De nada. Foi um prazer. É sempre um prazer. - Não conseguia despregar os

olhos dela. - Estás tão loura! Ela encolheu os ombros: - É do sol. - E com tantas sardas... - Do sol.

Page 398: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

398

- E tão... - Deixa-me mostrar-te onde é o rio. - Espera. Olha o que te trouxe. - Agachando-se junto da bagagem, exibiu

várias latas de tushonka, café, um grande saco de açúcar em cubos, sal grosso, cigarros e garrafas de vodca. - E comprei-te outro livro inglês-russo. Tens treinado o teu inglês?

- Nem por isso. Não tenho tempo. Nem acredito que andaste com isso tudo atrás de ti. Deve ser pesado. - Depois de uma pausa: - Mas obrigada. Anda cá fora.

Pegando numa toalha de Naira, atravessaram a varanda e desceram as escadas para o quintal das traseiras. Alexander seguia o mais perto possível dela, mas sem chegar a tocar-lhe. Sabia que estavam a ser observados por seis pares de olhos. Tatiana apontou, mas ele nem ligou, de tão intensamente que lhe contemplava as sobrancelhas louras, ansiando por as acariciar com os dedos.

Ansiava por a acariciar toda com os dedos. Prendendo a respiração, tocou-lhe na cicatriz acima da sobrancelha onde se

ferira durante a discussão com o pai. - Já quase desapareceu — disse serenamente. — Nem se vê. - Se nem se vê - respondeu com ligeireza -, porque lhe tocas? - Não levantou o

rosto para ele. — Importas-te de ver para onde estou a apontar? É exatamente por entre os pinheiros. Queres olhar? Depois de atravessares a estrada, vais ver um carreiro pelo meio das árvores. A clareira fica a cem metros. É lá que lavo a roupa. Não tem nada que enganar. O Kama é um rio grande.

- De certeza que me vou perder. — Falando-lhe ao ouvido e baixando a voz: — Anda mostrar-me.

- A Tania tem de fazer o jantar - interrompeu Zoe, aproximando-se. - Eu mostro onde é.

- Isso - concordou ela, recuando. - A Zoe indica-te o caminho. Se queremos jantar hoje à noite, o melhor é começar a cozinhar.

- Não, Zoe. Desculpa. — Puxou Tatiana de lado: - Anda comigo ao rio - repetiu para me contares o que se passa e eu...

- Agora não — sussurrou ela. — Agora não. Suspirando, largou-a e foi sozinho. Quando regressou, lavado e barbeado,

envergando as ceroulas, reparou que Zoe se atirava a ele descaradamente. Não era para admirar. Numa aldeia sem rapazes, Zoe estaria interessada nele mesmo que tivesse só um olho e fosse desdentado. Quanto a Tatiana, a história era outra. A jovem continuava a evitar-lhe obstinadamente o olhar.

- Fizeste a barba — comentou ela, debruçada no fogão sobre as suas panelas. - Como é que sabes? — Observava-lhe as costas cobertas pelo vestido

amarelo. A cintura delgada dava lugar às nádegas firmes e redondas como luas e a parte de trás das coxas nuas aparecia por baixo da bainha curta. Alexander vibrava por dentro. - Esta vida de aldeia diz bem contigo - comentou passado um momento.

Page 399: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

399

Ela endireitou-se e já ia a dirigir-se à varanda quando ele lhe agarrou a mão e a levou à face.

- Gostas mais assim lisinha? - Esfregou-lhe a mão na cara e beijou-lhe os dedos.

Ela retirou suavemente a mão: - Não te vi muitas vezes barbeado - murmurou. - Tanto faz. Cheiro imenso a

cebola, Alexander. Não quero sujar-te todo. Estás tão bonito e... limpo! - Pigarreou e desviou o olhar.

-Tatia, sou eu, estou aqui - disse ele, sem lhe largar a mão enfarinhada. - Que se passa?

Ela levantou a cabeça, pestanejou e ele viu-lhe os olhos cheios de mágoa, ter¬nura e tristeza, mas sobretudo mágoa.

- O que... — começou a dizer. - Alexander, querido, venha para aqui. Deixe a Tania acabar de fazer o jantar.

Venha beber um copo. Saiu para a varanda. Naira estendeu-lhe um copo de vodca. Abanou a cabeça: - Não bebo sem a Tatiana. Tania! Anda cá. - Ela depois bebe. - Não. Bebe agora. Anda cá, Tania. Ela apareceu ao seu lado com um cheirinho a batatas e cebolas. - A nossa Tanechka nem sequer bebe - tez notar Naira. - Mas vou beber à saúde do Alexander - declarou. Ele estendeu-lhe o copo de

vodca, tocando-lhe nos dedos. Naira serviu-lhe outro. Ergueram os copos. - Ao Alexander! — brindou Tatiana com a voz embargada. Tinha os olhos

mare¬jados de lágrimas. — Ao Alexander! — responderam todos em coro. — E à Dasha! — E à Dasha! — repetiu Alexander baixinho. Beberam e Tatiana voltou para dentro. Uma dúzia de pessoas da aldeia apareceu antes do jantar. Todos queriam

conhecer Alexander e todos traziam pequenos presentes. Uma mulher deu-lhe um ovo. Um velhote, um anzol. Um outro, uma cana de pesca. Uma rapariguinha, um punhado de rebuçados. Apertavam-lhe a mão, alguns faziam uma vénia e uma mulher ajoelhou-se, benzeu-se e beijou-lhe o copo que tinha na mão. Alexander estava comovido e exausto. Pegou num cigarro.

— E se fôssemos lá para fora? — sugeriu Vova. — A nossa Tania não gosta muito do cheiro a tabaco dentro de casa.

Alexander pousou o cigarro e praguejou intimamente. Ter Vova a olhar pelo bem-estar de Tania era de mais. Mas antes de chegar a dizer fosse o que fosse, sen¬tiu a mão dela no ombro e viu-a a colocar um cinzeiro na mesa:

— Fuma, Alexander, fuma. — Mas o fumo incomoda-te, Tania — protestou Vova com petulância. - É por

isso que vamos todos lá para fora.

Page 400: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

400

— Eu sei que disse isso, Vova. Mas ele não veio até tão longe para ir fumar lá fora. Pode fumar onde quiser.

Alexander abanou a cabeça: — Não preciso de fumar. - Do que precisava era da mão dela outra vez no seu

ombro. - Queres ajuda, Tania? — Quero. Levanta-te e anda comer. São horas de jantar. As quatro senhoras sentaram-se de um dos lados da mesa comprida,

flanqueada por dois bancos. — Normalmente, a Tatiana senta-se à cabeceira para lhe ser mais fácil

levan¬tar-se e ir buscar o que falta, sabe. - Zoe sorriu. — Oh, sei! Eu sento-me ao lado dela. — Geralmente sou eu que me sento ao lado dela - observou Vova. Pouco interessado em discutir com ele, encolheu os ombros, olhou para Tatiana e ergueu as sobrancelhas. Ela limpou as mãos a um pano de cozinha: — E se eu ficar no meio do Alexander e do Vova? — Ótimo — aprovou Zoe. — E eu fico do outro lado do Alexander. — Ótimo — concordou ele. Tatiana fizera uma salada de pepino e tomate, cozinhara batatas com cebolas

e tushonka e abrira um frasco de cogumelos marinados. Havia também pão branco, manteiga, leite, queijo e ovos cozidos.

— Que queres, Shu... - perguntou Tatiana, deslizando para junto dele. - Queres salada?

- Quero, se faz favor. Ela levantou-se: - E cogumelos? -Também. De pé ao seu lado, pôs-lhe a comida no prato. Só a deixou fazê-lo e não se

serviu a si próprio porque a perna nua dela estava a roçar-lhe nas calças e a sua anca a tocar-lhe no cotovelo. Ia ter de repetir uma e outra vez só para a ter assim tão pertinho. Tinha uma vontade irresistível de lhe passar o braço pela cintura mas, em vez disso, pegou no garfo.

- E algumas batatas, se faz favor. Chega, assim chega. Um bocadinho de pão... sim, e manteiga... obrigado.

Pensou que ela ia sentar-se, mas não. Deu a volta à mesa, servindo as senhoras.

E depois Vova. O coração apertou-se-lhe quando a viu servir Vova com uma familiaridade descontraída. Ele agradeceu-lhe e ela olhou-o a direito, esboçando um sorriso.

«Para o Vova, olha. Ao Vova, sorri. Por amor de Deus! », pensou. A única coisa que o impedia de se sentir pior era que não via nos olhos dela qualquer sentimento por ele.

Page 401: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

401

Por fim, sentou-se. - Que bom ver comida à tua frente outra vez, Tania! -Também acho. Os quartos estavam tão escuros que não conseguia distingui-la bem, mas via-

lhe o sangue a escorrer-lhe da boca enquanto cortava o pão escuro para ele, depois para Dasha e finalmente para si. Mas agora comia pão branco, manteiga e ovos.

- É muito melhor assim, Tatia - murmurou. - Graças a Deus! - Pois é - respondeu, acrescentando em surdina: - Graças a ti! O cotovelo incomodo de Zoe tocava contínua e propositadamente no de

Alexander. «É um jogo que sabe fazer muito bem. A Tania reparará? » Afastou-se dela e aproximou-se de Tatiana. - É para ficares mais à vontade, Zoe - disse com um sorriso de indiferença. - Pois, mas agora é a coitada da Tanechka que não se pode mexer - observou

Naira, sentada à sua frente. - Estou bem assim. — As suas pernas tocaram-se debaixo da mesa. Ele

encos¬tou a sua à dela. - Bem, já bebi o suficiente para me contares o que te aconteceu? - perguntou

Alexander, comendo com vontade. Lágrimas. Não de Tatiana, mas das quatro senhoras: - Oh, Alexander! Não nos parece que o que bebeu chegue para aguentar o

que vai ouvir! - Mesmo assim gostaria de ouvir. - A Tania não gosta que falemos nisso — começou Naira. - Mas a ele

pode¬mos contar-lhe, Tanechka? - A ele sim. Podem. — Suspirou. - Quero que seja a Tania a contar-me. Queres mais vodca? - Não — respondeu, enchendo-lhe o copo. - Na verdade, não há muito para

contar. Como te disse, quando chegámos a Kobona, a Dasha morreu. Vim para cá e estive doente algum tempo...

- As portas da morte! — exclamou Naira. - Naira Mikhailovna, não exagere! Estive um bocadinho doente. - Doente? - gritou Axinya. - Alexander, esta criança chegou aqui em janeiro e

esteve às portas da morte até março. Não sei o que lhe faltava ter. Tinha escorbuto...

- E hemorragias internas! - acrescentou Dusia. - Como o nosso antigo czaréviche Alexis. Mesmo como ele. O sangue não parava de correr.

- Não era escorbuto - corrigiu Alexander delicadamente. - O czaréviche não tinha escorbuto - explicou Tatiana. - Era hemofílico. - Esqueceram-se da pneumonia dupla? - choramingou Axinya. - Tinha os dois

pulmões num estado deplorável! - Axinya, não exagere! Era só um pulmão.

Page 402: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

402

- Foi a pneumonia que quase a matou. Não conseguia respirar - afirmou Naira, estendendo a mão pela mesa para Tatiana lhe dar umas palmadinhas.

- Não foi nada a pneumonia que quase a matou! - protestou Axinya. - Foi a tuberculose. Andas tão esquecida, Naira! Não te lembras de ela andar a cuspir

sangue durante semanas? - Oh, meu Deus, Tania - murmurou Alexander. - Mas agora estou bem. A sério. Tive uma tuberculose muito leve. Fiquei

curada ainda antes de sair do hospital. O médico disse que daqui a pouco estarei como nova e que para o ano não terei qualquer vestígio de tuberculose.

- E ias deixar-me fumar cá dentro. - E depois? Fumas sempre dentro de casa. Estou habituada. - E depois? - gritou Axinya. - Tania, estiveste sozinha numa tenda durante um

mês. Nós ficávamos sentadas ao lado dela, Alexander, enquanto tossia e cuspia sangue...

- Porque não lhe contas como ficaste doente? - sugeriu Naira em voz alta. Alexander sentiu Tatiana arrepiando-se ao seu lado: - Conto depois. - Depois quando? — murmurou ele pelo canto da boca. Não lhe respondeu. - Tania! Conta ao Alexander o que passaste para chegar aqui! Conta-lhe! -

exclamou Axinya. - Conta, Tania. — Olhou para ela com sentimento. A sua comida era tão boa!

De contrário, teria perdido o apetite. - Olha - começou ela, como se fizesse um grande esforço eu e centenas de

outros fomos metidos em camiões e levados ao comboio, perto de Volkhov... - Fala-lhe do comboio! - Não era o melhor dos comboios. E éramos muitos... - Diz-lhe quantos! - Não sei quantos. Estávamos... - O que acontecia quando as pessoas morriam? - indagou Dusia, benzendo-se. - Oh, atiravam-nas para fora. Assim havia mais espaço. - Houve mais espaço quando chegaram ao rio Volga - fungou Naira. - A ponte do comboio sobre o Volga tinha sido bombardeada e não se podia

passar - explicou Axinya. - Todos os refugiados, incluindo a nossa Tanechka, tive¬ram de atravessar o gelo a pé, apesar do seu estado lamentável. Que me diz a isto?

Alexander pestanejou sem tirar os olhos do rosto assombrado e ligeiramente cansado de Tatiana.

- Quantas pessoas atravessaram e quantas morreram no gelo, Tania? Diz-lhe. - Não sei, Axinya. Não estava a contar... - Ninguém. Aposto que ninguém sobreviveu - retorquiu Dusia. - Bem, ela sobreviveu — observou Alexander, com o cotovelo encostado ao

braço dela e a perna à sua.

Page 403: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

403

- E outras pessoas também. - Baixando a voz: - Não muitas. - Tania, diz-lhe quantos quilômetros tiveste de percorrer ao frio e à chuva até

à estação seguinte, apesar da tuberculose e da pneumonia, porque não havia camiões suficientes para transportar os doentes e os subalimentados. Diz-lhe quan¬tos! - Esbugalhando os olhos: - Mais ou menos quinze!

- Não, querida - corrigiu ela. - Foram talvez três. E não chovia. Só estava frio. - Deram-te alguma coisa para comer? - inquiriu Axinya. - Não! - Deram, sim senhora. Um bocadinho. - E depois não havia lugar para te deitares no comboio e tiveste de passar três

dias de pé de Volkhov ao Volga! Conta-lhe! - insistiu Axinya. - Passei três dias de pé - disse Tatiana, espetando a comida com um garfo. - De Volkhov ao Volga. Dusia limpou os olhos: - Morreram tantas pessoas a atravessar o Volga que depois a Tatiana ficou

com sítio para se deitar. Não é verdade, Tania? Deitou-se... - E não se levantou mais! - declarou Axinya. - Querida, acabei por me levantar. - Abanou a cabeça. - Não — teimou a outra. — Aí não estou a exagerar. Não te levantaste. O

con¬dutor queria perguntar-te para onde ias e não conseguia acordar-te... - Mas acabou por me acordar. - Sim, só que pensou que tinhas morrido! - choramingou Axinya. - Saiu do comboio em Molotov e perguntou a que distância ficava Lazarevo -

acrescentou Raisa. — Quando lhe disseram que eram dez quilômetros... As quatro senhoras debulharam-se novamente em lágrimas. - Desculpa teres de ouvir isto tudo - disse Tatiana a Alexander. Ele parou de comer e deu-lhe umas palmadinhas delicadas nas costas. Ao ver

que ela não se mexia, nem corava, nem se afastava, deixou a mão pousada nela durante mais um momento, antes de tornar a pegar no garfo.

- Sabe o que ela fez quando lhe disseram que Lazarevo fica a dez quilômetros de Molotov?

- Deixe-me adivinhar. — Sorrindo: — Desmaiou. - Pois foi! Como sabia? — Axinya estudou-o. - Estou sempre a desmaiar — replicou Tatiana. - Sou uma fracota. - Quando saiu do isolamento — continuou Naira —, sentávamo-nos na cama

do hospital a segurar-lhe na máscara de oxigênio para ela poder respirar. - Lim¬pando o rosto: — Quando a avó morreu...

Alexander deixou cair o garfo da mão. Involuntariamente. Ficou calado a olhar para o prato, incapaz de virar a cabeça na direção de Tatiana. Foi ela que o observou com uma expressão de doçura e mágoa.

- Onde está a vodca, Tania? Parece que afinal não bebi o suficiente.

Page 404: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

404

Ela serviu-o e encheu também um copo pequeno para si. Levantaram-nos, brindaram e fitaram-se com os olhos cheios de Leninegrado, da Quinto Soviete, das respetivas famílias, do lago Ladoga e da noite.

- Coragem, Shura — murmurou Tatiana. Ele não conseguiu responder. Em vez disso, engoliu a vodca. Os outros mantiveram-se calados até ele perguntar: - Como morreu? Naira limpou o nariz: - De desinteria. Em dezembro. — Inclinando-se para a frente: - Pessoalmente,

acho que depois de ter perdido o marido não quis continuar a viver. - Lançou-lhe um olhar: — Sei que a Tania concorda comigo.

A jovem assentiu: - Ela queria. Mas não podia. Naira encheu novamente o copo de Alexander: - Quando estava a morrer, a Anna disse-me: «Gostava que conhecesses as

minhas netas, mas provavelmente nunca verás a nossa Tania, a mais novinha, que nunca conseguirá cá chegar. É muito fraquinha. »

- A Anna não conhecia lá muito bem as netas - comentou ele, engolindo a vodca.

- E recomendou-nos que olhássemos por elas, caso aparecessem, e que lhes déssemos a casa...

- Casa? — perguntou ele, endireitando-se instantaneamente. - Que casa? - Oh, tinham uma izba... - Onde fica? - Quase mesmo no bosque, ao pé do rio. A Tania depois mostra-lhe. Quando

melhorou e veio para Lazarevo connosco, queria ir viver para lá sozinha - rematou Naira, esbugalhando os olhos.

- Que ideia a dela! Todas contentes, as outras mulheres concordaram em voz alta, gracejando e

fungando em uníssono. - As netas da nossa Anna não vivem sozinhas - declarou Naira. - Que

dis¬parate! Sozinhas? Por isso disse-lhe: «És da nossa família. O teu querido Deda era primo por afinidade do meu primeiro marido. Vens viver connosco. Ficas muito melhor aqui. » E é verdade, não é, Tanechka?

- É, Naira Mikhailovna. - Pôs mais batatas no prato de Alexander. - Ainda tens fome?

- Para te dizer a verdade, não sei bem. Mas vou continuar a comer. - A nossa Tania está melhor, mas precisa de ter cuidado - continuou Naira. -

Continua a ir a Molotov todos os meses para ser examinada. A tuberculose pode voltar a qualquer altura. É por isso que fumamos todos lá fora...

- E com muito prazer - interpôs Vova, pousando o braço no ombro de Tatiana. Ia mesmo ter de falar de Vova com ela, e depressa.

Page 405: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

405

- Não faz ideia como ela estava magra quando chegou cá... - disse Axinya. - Faço ideia, faço. Não é, Tania? - É, Shura — sussurrou ela. - Estava pele e osso - acrescentou Dusia. - Quase nem o próprio Cristo

con¬seguiria salvá-la. - Ainda bem que não vivemos numa aldeia onde a agricultura é coletiva, como

a nossa prima Yulia, que vive em Kulay, perto de Archangelsk - comentou Axinya. — Embora tenha cinquenta e sete anos, trabalha nos campos todo o dia e depois o kolkhoz fica-lhe com tudo. Aqui só nos tiram o peixe, mas podemos trocar os nossos ovos e o leite de cabra por manteiga, queijo ou até farinha branca.

- Coitada da Yulia — fungou Naira. - Mas olhem para a nossa Tanechka. Axinya sorriu e contemplou-a afetuosamente: - Engordámos-te, não foi, querida? Ovos todos os dias. Leite. Manteiga. Engordámo-la bem, não acha, AJexander? - Hum — concordou ele, estendendo o braço por baixo da mesa e apertando-

lhe a coxa. - Agora parece um pãozinho quente. - Um pãozinho quente? - repetiu, virando o rosto sorridente para Tatiana,

corada até às orelhas. O vestido curto não lhe tapava as coxas. A mão dele acariciou-lhe a perna nua debaixo da mesa, ali, durante o jantar, à frente de seis estranhos. Tinha de retirar a mão. Tinha de ser. Ficou sem ar, perdeu a reserva e o autodomínio.

- Queres mais? - Levantou-se e pegou na frigideira. As mãos tremiam-lhe. - Há muito. - Sorriu-lhe, respirando pela boca entreaberta. - Muito. - Estava

afogueada. - Vou mas é beber um copo. — Para variar, agora era ele que não conseguia

erguer o olhar para ela. - Alexander, queremos que saiba que não concordámos com a Tanechka.

Estávamos do seu lado — anunciou Axinya. - Tania, o que fizeste para preocupar estas simpáticas senhoras? Porque teria ela deixado de sorrir, fuzilando Axinya com o olhar? Com a boca

cheia de batatas fritas, Naira explicou: - Dissemos-lhe para lhe escrever a contar o que aconteceu à Dasha e evitar

que viesse à espera de casar com o seu amor. Fartámo-nos de lhe dizer: «Poupa-lhe uma viagem ao centro do país. Escreve-lhe a contar a verdade. »

- E ela não quis! - exclamou Axinya. Com o coração ainda em fogo, Alexander fitou Tatiana: - Não quis porquê, Axinya? - Não disse. Mas deixe-me que lhe diga como nos custava pensar que vinha

por aí à procura da sua Dasha. Não falávamos em mais nada. - Mais nada, Alexander — repetiu Tatiana. — Queres beber mais? - Se me tivesses escrito, talvez parassem de falar — replicou ele, mais sério.

Page 406: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

406

— Sim, quero mais. Encheu-lhe o copo tão depressa que quase o entornou. Alexander tinha a cabeça a andar à roda. - Lemos todas as cartas da Dasha para a Anna — informou Naira. - A maneira

como ela falava de si! — Abanando a cabeça: — O Alexander era o seu cavaleiro andante.

Acabou o copo de vodca em dois tragos. - Nós dissemos-te para lhe escreveres, Tania! — exclamou Dusia. - Mas às

vezes és muito teimosa! - Às vezes? — Alexander pegou no copo de Tatiana e também acabou com a

vodca dela. Dusia benzeu-se: - Eu bem lhe disse que sim, que era capaz de escrever. Mas ela respondia-me

que não, que nem com a ajuda de Deus. - Lançou-lhe um olhar de censura: - Esperávamos que Deus lhe poupasse esta dor e o deixasse morrer na frente.

Ergueu as sobrancelhas: - Esperavam que eu morresse na frente? - Eu e a Tania rezávamos todos os dias pela sua alma. Não queríamos que

sofresse - explicou. - Obrigado... acho. Rezavas pela minha morte todos os dias, Tania? - Claro que não - retorquiu baixinho, incapaz de se mostrar fria ou pouco

sincera, mas também incapaz de o olhar, de lhe tocar. Incapaz. O que quer que fosse que sentia no seu íntimo, tornava-a incapaz de o encarar.

Ele olhou em volta da mesa. - Oh, Alexander! - exclamou Axinya. - A carta que escreveu à Dasha! É um

poeta. Tanto amor! Quando lemos que nada ia impedi-lo de vir aqui casar com ela no verão, ficámos inconsoláveis!

- Pois, lembras-te dessa carta tão poética? - inquiriu Tatiana. De repente, olhando para ela... Examinou-a. O cérebro estava a começar a funcionar-lhe em câmara lenta: - Lembro. - Escrevera a carta para sossegar Dasha. Não queria que Tatiana

enfrentasse a irmã sozinha. - Devias ter-me escrito a contar da Dasha - censurou. Ela levantou-se de um salto e começou a levantar a mesa. - Deixa lá. - Encolheu os ombros. - Se calhar andavas muito ocupada. Quem

tem tempo para escrever nos dias que correm? Especialmente quando se vive na aldeia. Com a costura, a cozinha...

Ela arrebatou-lhe o prato: - O jantar estava bom? Gostaste? Muitas coisas para dizer. Sem lugar para as dizer. Tal e qual como dantes. - Gostei, obrigado. Bebes mais?

Page 407: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

407

- Não - atirou-lhe ela. — Não, obrigada. - Que vais fazer agora, Alexander? - perguntou Vova. - Vais voltar? Tatiana prendeu novamente a respiração. Alexander também o fez por um

momento. - Não sei. - Fique o tempo que quiser - ofereceu Naira. - O Alexander é como se fosse da

família. Como se fosse o marido da Dasha. - Mas não é - obstinou-se Zoe com ar namoradeiro, pousando a mão no seu

braço e sorrindo. — Não te preocupes. Vamos animar-te. Quanto tempo tens de licença?

- Um mês. - Zoe, como vai o teu bom amigo Stepan? - indagou Tatiana. - Vais estar com

ele hoje à noite? Ela retirou a mão o braço de Alexander que, sorrindo com um ar divertido,

lançou um olhar a Tatiana. «Afinal parece que reparou na Zoe», pensou. A rapariga começou a levantar a mesa. Alexander olhou em volta.

Permane¬ceram todos sentados, incluindo Zoe e Vova. Fez menção de se pôr em pé. - Onde vais? — perguntou ela. — Fuma à mesa. - Eu ajudo-te. - Não, não, não! - gritou um coro de vozes. - Que ideia! Não. A Tatiana trata

disso. - Eu sei que sim, mas não quero que o faça sozinha. - Porquê? - A admiração de Naira era genuína. - A sério, Alexander — teimou Tatiana. — Não vieste até tão longe para

levan¬tar a mesa. Voltando a sentar-se, virou-se para Zoe: - Reconheço que estou cansado. Importas-te de ir ajudá-la? - Não sorriu, mas

Zoe pareceu gostar ainda mais assim, porque esboçou um sorriso do tamanho dos grandes seios, levantando-se depois relutantemente para ir ajudar. Tatiana fez chá e serviu-o primeiro a ele, depois às quatro senhoras, Vova, Zoe

e a si no fim. Foi buscar o doce de mirtilo e estava a preparar-se para se sentar ao lado de Alexander quando Vova pediu: -Tanechka, antes de te sentar es dá-me mais chá, sim? Com as pernas a cavalo no banco, a jovem pegou na chávena de Vova, mas Alexander agarrou-lhe o pulso. A xícara tiniu no pires. - Sabes uma coisa, Vova? - Baixando-lhe a mão e pousando-a na mesa: - A chaleira está no fogão e o bule mesmo à tua frente. Senta-te, Tania. Já

fizeste muito. O Vova sabe servir-se. Tatiana sentou-se. Toda a gente fitou Alexander. Vova foi buscar o chá.

Page 408: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

408

Chegou, por fim, a altura de Zoe e Vova se irem embora. Para Alexander, já não era sem tempo.

- Vens comigo lá fora, Tania? — perguntou Vova. Ela seguiu-o sem olhar para Alexander, que fingiu escutar Zoe e Naira, mas

que ficou a observá-la pelo canto do olho. Gostaria de não ter bebido tanta vodca. Precisava mesmo de falar com ela

que, apesar dos seus esforços, não olhou para ele quando voltou a entrar. - Queres ir fumar um cigarro e dar um passeio? - sugeriu Zoe - Não. - Amanhã vamos tomar banho ao rio. Queres vir? - Logo se vê - respondeu sem se comprometer. Nem seguer levantou os olhos.

Ela foi-se embora dali a bocado. - Anda cá sentar-te ao pé de mim, Tania. - Está bem. Queres mais alguma coisa? - Quero. Que te sentes. - E outra coisa qualquer para beber? Temos algum conhaque. - Não, obrigado. - E que tal... - Senta-te. Sentou-se cuidadosamente no banco, ao seu lado. Ele aproximou-se: - Deves estar muito cansada. Vens comigo lá fora? Vou fumar um cigarro. Antes de ter tempo para responder, Naira começou a falar: - Digo-lhe uma coisa, Alexander, ao princípio as coisas foram muito difíceis

para a nossa Tania. Tatiana levantou-se com um suspiro e desapareceu num dos quartos. - Não gosta nada que falemos nisso - cochichou Axinya. - Claro que não. — Ele também não. Mas elas não lhe ligaram: - Estava muito mal. Parecia um fantasma. - As mulheres avançaram todas a

cabeça para ele, cacarejando com lágrimas nos olhos. Quase se sentiria divertido, não fosse o facto de estarem a impedi-lo de ficar a sós com Tatiana.

- Não, mas imagina perder toda...? - começou Naira. - Imagino - interrompeu Alexander. Não queria discutir o assunto com elas.

Levantou-se com a intenção de pedir licença e ir atrás de Tatiana. - E ainda não ouviu nem sequer metade - segredou Naira. - A Tania não gosta

mesmo que falemos do que aconteceu em Kobona. Não quisemos dizer-lhe antes, mas...

- Oh, mas esse Dimitri é um filho da mãe! - exclamou novamente Axinya. - Contem-me depressa - pediu Alexander, voltando a sentar-se. Tatiana regressou e bateu com a porta. - Desculpa, Tanechka - observou Axinya -, mas só me apetece dar-lhe uma sova.

Page 409: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

409

- Parem de falar de Kobona. - Maldito seja o Dimitri - praguejou Dusia. - Ainda há de cair sozinho e não

terá ninguém para o ajudar a levantar-se. Revirando os olhos, Tatiana voltou a sair batendo outra vez com a porta. - Acho que esse filho da mãe a desiludiu muito. Parece-me que o amava - explicou Axinya. Começava a custar-lhe manter-se direito. Dusia abanou veementemente a cabeça: -Tenho a certeza de que não. Ele não a teria enganado nem por um segundo.

A nossa Tania percebe logo como são as pessoas. - Isso é verdade - assentiu ele. Axinya baixou a voz: - Continuamos a achar que a história não acaba aqui. Deve andar por aí

alguma paixoneta... - Não é paixoneta - negou ele, esbugalhando os olhos. Naira abanou a cabeça: - Tu pensas que sim, mas eu não. Discordo. A rapariga perdeu todos os entes

queridos. Estava desfeita. Não tem nada a ver com paixonetas. - Pois eu digo que sim — afirmou Axinya com veemência. - Estás enganada — tornou Naira. - Ai sim? Então porque passa a vida na estação dos correios a ver se há

correspondência para ela? - perguntou Axinya com ar de triunfo. - Se não tem nin¬guém, quem queres que lhe escreva?

- Aí tem razão — concordou Alexander. Ia fazer alguma coisa? Não se lem¬brava. O dia fora muito longo. Naquele momento não se lembrava sequer da última frase que ouvira.

- E já repararam que quando estamos a coser no largo ela vai sempre sentar-se num sítio de onde possa ver a estrada? - indagou Axinya.

- Pois é! — assentiram as outras três senhoras. - É verdade. Espreita a estrada obsessivamente, como se estivesse à espera de alguém.

Alexander levantou a cabeça. Tatiana encontrava-se de pé atrás delas, com os olhos expressivos e eternos fixos nele.

- Estás, Tatiana? - Com emoção: - Estás à espera de alguém? - Agora já não - respondeu com a mesma emoção. - Veem? — O tom de Naira era de satisfação: - Eu bem vos disse que não tinha

nada a ver com paixonetas! Tatiana sentou-se ao lado de Alexander. -Tanechka, não te importas que falemos de ti, pois não? - perguntou Naira. -

Sabes, és a coisa mais importante que acontece em Lazarevo há anos. Então para o Vova... — Riu-se e virou-se para Alexander: — O meu neto tem um fraquinho pela irmã mais nova da Dasha.

Page 410: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

410

Ele pestanejou e não disse palavra. Mas teria dito se houvesse encontrado alguma na cabeça.

Tudo o que queria eram dois segundos... um segundo consciente com Tatiana. Seria pedir muito? Se calhar, o consciente estava fora de questão.

Mas não poderia pôr-lhe as mãos algures no corpo saudável, alimentado e quente? Foi lá fora fumar e lavar-se. Quando regressou, só lhe apetecia despir-se e

descalçar as botas, mas a ladainha parecia não ter fim: - Tanechka, querida, trazes-me o meu remédio? - Tanechka, querida, vens aqui arranjar-me os cobertores? -Tanechka, minha linda, dás-me um copo de água? Por fim, não pôde esperar mais e tirou as botas. -Tania, meu amor — balbuciou, pousando a cabeça na mesa e adormecendo

instantaneamente. Acordou sentindo que o abanavam e afagavam ao de leve. Estava escuro.

-Vá, Shura — sussurrou ela. Tentava que ele se levantasse. - Vá. Consegues? Por favor, acorda e vai-te deitar. Por favor.

Saltou para a cama em cima do fogão quente e adormeceu com o uniforme vestido. Meio inconsciente, sentiu-a tirando-lhe as meias, desabotoando-lhe a túnica, desafivelando-lhe o cinto e puxando-o das presilhas. Sentiu-lhe os lábios macios nos olhos, na face, na testa. Plumas roçaram-lhe a cara. Devia ser o cabelo. Queria acordar, mas era impossível.

Page 411: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

411

5

Na manhã seguinte, abriu os olhos e consultou o relógio. Era tarde: oito horas. Olhou em volta à procura de Tatiana, que não se encontrava por perto. Mas achava-se tapado com o seu cobertor e deitado na sua almofada. Sorrindo, virou-se de barriga para baixo. A almofada cheirava a sabão, a ar puro e a ela.

Saiu. Estava uma manhã soalheira. Os pássaros chilreavam, o ar tranquilo lembrava a paz e as flores de cerejeira e os lilases enchiam o quintal com o seu perfume maduro. Sobretudo os lilases alegraram-no muito: o cheiro dos que enchiam o Campo de Marte no fim da primavera chegava-lhe ao quartel. Era um dos seus aromas favoritos: lilases no Campo de Marte. Mas o preferido era o hálito quente de Tatiana beijando-lhe o rosto inconsciente na noite anterior. Os lilases não podiam competir com este cheiro.

A casa estava silenciosa. Depois de se lavar rapidamente, partiu à sua procura e encontrou-a na estrada, regressando a casa com dois baldes cheios de leite de vaca ainda quente. Soube que estava quente porque meteu os dedos lá dentro. Tatiana soltara o cabelo brilhante quase branco e envergava uma saia azul e uma blusa branca que lhe dava por cima do umbigo, expondo-lhe a barriga. Os con¬tornos redondos da parte de cima dos seios viam-se claramente. Tinha o rosto de um encantador cor-de-rosa afogueado. Quando a viu, o coração parou-lhe dentro do peito. Pegou-lhe nos baldes de leite. Caminharam em silêncio. Sentiu-se a ficar sem fôlego.

-Suponho que depois vais buscar água ao poço. - Vou? E com que te barbeaste esta manhã? - Não me barbeei. - Lavaste os dentes? - Sorriu. Ele soltou uma gargalhada: - Lavei. Com a tua água do poço. — Baixando a voz já rouca: - Depois do

pequeno-almoço, quero que me mostres a casa dos teus avós. É longe? - Não muito. - O seu rosto era inescrutável. Não estava habituado a que Tatiana fosse inescrutável. A sua missão era

torná-la transparente. Sorriu: - Hum. - Para que queres vê-la? Está toda fechada. - Traz a chave. Onde dormiste? - No sofá da varanda. Dormiste bem? Não me pareceu, assim todo vestido. Mas não consegui acordar-te... - Tentaste? - perguntou em voz comedida.

Page 412: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

412

- Quase tive de disparar a tua arma para o ar de modo a conseguir que te deitasses por cima do fogão.

- Pois não dispares para o ar porque a bala tem de vir outra vez para baixo. - Recordando os lábios dela no rosto, acrescentou: — Tiraste-me as meias e o

cinto. - De sorriso aberto: — Devias ter continuado. - Não consegui levantar-te — respondeu, enrubescendo. — Como te sentes

esta manhã? Depois de tanta vodca... - Ótimo. E tu? - Hum. - Olhando-o sub-repticiamente de cima abaixo: - Não tens mais roupa

senão as fardas? - Não. - Hoje vou lavar-te as ceroulas. Mas se tencionas ficar algum tempo, tenho

roupas normais para ti. - Queres que fique algum tempo? - Claro que sim — replicou calmamente. — Já que vieste de tão longe, é um

disparate ires-te já embora. Caminhando ao seu lado, Alexander foi suavemente de encontro a ela: -Agora

que estou outra vez lúcido, conta-me o que aconteceu com o Dimitri. - Não. Não posso. Hei de contar-te, mas... - Sabes, estive com ele há duas semanas e não me disse que te tinha

encon¬trado em Kobona. - Que te disse? - Nada. Perguntei-lhe se te tinha visto a ti ou à Dasha e ele respondeu-me que

não. Abanando a cabeça, Tatiana olhou em frente e disse debilmente: - Oh, mas viu-nos às duas. Algum leite salpicou para o chão. Enquanto prosseguiam, Alexander falou-lhe de Leninegrado, de Hitler e das

suas baixas e das hortaliças que cresciam por toda a cidade. - Semearam couves e batatas mesmo à frente de Santo Isaac. - Sorriu: - E

tulipas amarelas. Que me dizes disto? - Acho ótimo - retorquiu num tom que não tinha nada a ver com Santo Issac.

Inescrutável. Não queria que ela se sentisse triste naquela manhã. Ainda teriam de

ultra¬passar muito até conseguir arrancar-lhe um sorriso matinal? - Como está agora o racionamento? - perguntou ela com os olhos postos no chão. - Os dependentes têm direito a trezentos gramas e os trabalhadores a

seiscentos. Mas talvez haja pão branco dentro em breve. As autoridades prometeram que haveria este verão.

- Bem, é com certeza mais fácil alimentar um milhão de pessoas do que três.

Page 413: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

413

- Neste momento, menos de um milhão. As pessoas estão a ser evacuadas em barcaças que atravessam o lago. — Mudando de assunto: - Vejo que há bastante pão aqui em Lazarevo. - Mirou-a: - Bastante de tudo...

- As pessoas foram todas sepultadas? Suspirou impercetivelmente: - Eu próprio supervisionei a abertura das campas no Cemitério Piskarev. - Abertura? Não lhe escapava nada. - Usámos minas militares para dinamitar... - Valas comuns? — rematou ela. -Tania... vá lá. -Tens razão. Não vamos falar disso. Oh, olha, chegámos! - Adiantou-se.

Alexander apanhou-a, desiludido por já estarem em casa: - Podes mostrar-me a tal roupa? Gostaria de vestir outra coisa. Já lá dentro, puxou a arca de junto do fogão e ia a abri-la quando ouviu a voz

de Dusia de um dos quartos: - Tanechka? És tu? Naira apareceu: - Bom dia, querida. Não me cheirou a café. Acordei porque não me cheirou a

café. - Vou fazê-lo agora, Naira Mikhailovna. Raisa saiu do quarto: - Quando tiveres um minuto, querida, ajudas-me lá fora? - Claro. - Fechou a arca. — Eu depois mostro-te - cochichou para Alexander. - Não — retorquiu ele com impaciência. — Vais mostrar-me agora. - Agora não posso. — Tornou a empurrar a arca contra a parede. - A Raisa tem

muita dificuldade em ir sozinha à casa de banho. Não vês como treme? Podes esperar cinco minutos, não?

Quer dizer que não fora suficientemente paciente? - Até posso esperar mais. Ontem passei a noite sentado contigo e com os teus

novos amigos. Ela mordeu o lábio. Alexander suspirou: - Pronto, está bem. Tens um almofariz? — Era mais forte do que ele; estava

demasiadamente animado e empolgado com ela para continuar exasperado durante muito tempo. Tentando não dar à frase um segundo sentido, perguntou: - Queres que te moa os grãos do café?

- Quero, obrigada. - Não brincou. — Seria uma grande ajuda. Espera que já te dou o coador - Depois de uma pausa: — Podes acender o fogão para eu fazer o pequeno-almoço?

- Claro. Tatiana levou Raisa lá fora e depois deu-lhe o remédio.

Page 414: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

414

Vestiu Dusia. Fez as camas todas e cozinhou ovos com batatas. Alexander observava-a.

Quando se sentou no banco do quintal a fumar, ela aproximou-se com uma chávena de café na mão:

- Como o queres? Os olhos cintilaram-lhe ao vê-la de pé à sua frente, fresca, cheirando a

alfazema, jovem e viva. - Como quero o quê? - O café. - Gosto do meu café cheio de natas espessas e quentes, com muito açúcar. -

Fez uma pausa. - Tira a nata do balde, Tatiasha. Mesmo de cima. Mas quente. E montes dela.

A chávena começou a tremer-lhe nas mãos. Transparente. Precisou de se dominar para não desatar a rir, abraçá-la e apertá-la com força. Depois do pequeno-almoço, ajudou-a a levantar a mesa e lavar a louça. Tinha

ela as mãos mergulhadas numa bacia de água com sabão quando ele meteu tam¬bém as suas lá dentro e apalpou as dela, depois de a observar por um momento.

- Que estás a fazer? — inquiriu em voz rouca. - Que queres que esteja a fazer? - volveu inocentemente. - A ajudar-te a lavar

a louça. - Não és lá muito bom ajudante. — Mas não retirou as mãos. Fitando-a,

Ale¬xander percebeu que finalmente alguma coisa se dissolvia na sua parede de dor.

Esfregou-a entre os dedos, inflamado pela fina penugem dos seus braços e pelas sombrancelhas louras.

- Parece-me que a louça vai ficar muito bem lavada - comentou, olhando de relance para as quatro senhoras, sentadas ao sol da manhã, cavaqueando a uns metros deles. Na água quente com sabão, acariciou os dedos de Tatiana um por um, desde o primeiro nó até às pontas, descrevendo círculos com os polegares nas palmas escorregadias das mãos. De olhos vidrados, a jovem mal respirava através dos lábios entreabertos.

O fogo espalhava-se no ventre de Alexander: -Tatia, tens as sardas tão vivas... E tão... - disse baixinho. Axinya aproximou-se dela e beliscou-lhe uma nádega: - A nossa Tanechka tem tantas sardas que parece que foi beijada pelo sol. -

Maldição! Nem sussurrar podia... elas ouviam logo. Mas quando Axinya virou costas, inclinou-se e beijou-lhe docemente as sardas, sem fazer nada quando ela retirou os dedos e se afastou de mãos molhadas e tudo. Seguiu-a sem se enxugar:

- Podes mostrar-me as roupas agora?

Page 415: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

415

Ela entrou, abriu a arca e tirou uma camisa de algodão de manga curta com botões até abaixo, uma outra de malha de algodão e uma creme de linho e três pares de calças de linho branco de apertar com cordão. Tinha também duas cami¬solas sem mangas e alguns calções de algodão também de apertar com cordão.

- Para poderes ir nadar - informou. - Que achas? - São excelentes. - Sorriu. - Onde arranjaste isto tudo? - Fiz. - Fizeste? Ela encolheu os ombros: - A mãezinha ensinou-me a coser. Não foi difícil. O difícil foi lembrar-me do

teu tamanho. - Aí acho que te lembravas bem. Tania... fizeste roupas para mim? - Não sabia se vinhas, mas queria que tivesses roupa confortável para vestir

no caso de vires. - O linho é caro — volveu ele, muito satisfeito. - Havia muito dinheiro no teu livro de Pushkin. - Depois de uma pausa: - Comprei umas lembrancinhas para todos. - Ah! - Já menos satisfeito: — Incluindo o Vova? Tatiana desviou o olhar com uma expressão de culpa. - Estou a ver. - Deixando cair as roupas no baú: - Compraste coisas ao Vova

com o meu dinheiro? - Só um pouco de vodca e cig... - Tatiana! — Inspirando profundamente: - Aqui não. Deixa-me mudar de

roupa. - Virando-lhe as costas: — Vou já. Ela saiu enquanto ele vestia as calças e a camisa branca de algodão, apenas

ligeiramente apertada no peito. Quando apareceu à porta de casa, as senhoras cacarejaram de aprovação

dizendo-lhe como estava elegante. Tatiana dobrava roupa para dentro de um cesto. — Devia tê-la feito um bocadinho maior. Mas fica-te bem. — Engoliu em seco

e baixou os olhos: — Não te vi muitas vezes vestido à civil. Alexander olhou em volta. Já ia no segundo dia com ela e continuavam a

abanar as asas em redor de quatro velhinhas, que o impediam de perceber o que a preocupava, de lhe contar o que o preocupava e sobretudo de lhe chegar. Estava farto.

— Viste-me vestido à civil uma vez. Em Peterhof. Se calhar esqueceste-te de Peterhof. — Estendeu-lhe a mão: — Anda. Vamos dar um passeio.

Tatiana avançou na sua direção, mas não lhe deu a mão. Alexander teve de se baixar para lha agarrar. Estar assim tão perto dela punha-o um tanto tonto.

— Quero que me mostres onde é o rio. -Tu sabes onde é o rio. Estiveste lá ontem. — Retirando a mão: - Não posso ir,

Shura. Tenho de estender a roupa de ontem e de lavar a de hoje.

Page 416: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

416

Ele puxou-a: — Não. Vamos. — Não. — Sim. — Shura, não! Por favor! Estacou. Que tom era aquele na voz dela? Que parecia? Não era cólera.

Seria... medo? Estudou-lhe o rosto: — Que se passa contigo? — Estava corada e com as mãos a tremer. Não

con¬seguia olhar para ele. Largando-lhe a mão, levantou-lhe o rosto. - O que... — Shura, por favor — suplicou ela, tentando desviar o olhar. Foi então que

Alexander viu e percebeu. Soltando-a, recuou e sorriu: — Tania — começou em voz tranquilizadora —, quero que me mostres a casa

dos teus avós, o rio, um campo, uma merda de um penedo... tanto me faz. Quero que me leves a dois metros quadrados de espaço onde estejamos sozinhos para podermos conversar. Percebes? É tudo. Precisamos de falar e não vou fazê-lo... nem falar nem mais nada... à frente dos teus novos amigos. — Fez uma pausa, tentando não sorrir: — Está bem?

Muito corada, não levantou os olhos. — Ótimo. — Puxou-a pela mão. — Onde vais, Tanechka? — perguntou Naira. — Apanhar mirtilos para a torta de hoje à noite — gritou-lhe ela. — E a roupa? Raisa chamou-a: - Voltas ao meio-dia para me dares o remédio? - Quando voltaremos, Alexander? - Quando estiveres apaziguada. Diz-lhe isso. Quando o Alexander me

apaziguar, voltarei. - Acho que nem tu consegues apaziguar-me, Alexander - replicou. Tinha a voz

fria. Alexander afastava-se da casa a passos largos. - Espera, tenho de... - Não. - Só mais... — Tentou retirar a mão, mas ele não a largou. Tentou de novo.

Não a soltava. - Tania, nisto não ganhas. - Fitou-a e apertou-lhe mais a mão: - Podes ganhar

em muitas coisas, mas não num confronto físico comigo. Graças a Deus. De contrário, estaria metido num belo sarilho!

Naira gritou-lhes: - Mas o Vova deve estar aí a chegar! Digo-lhe que voltas quando? Ela olhou para Alexander, que a fitou friamente, encolhendo os ombros com

indiferença:

Page 417: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

417

- Sou eu ou a roupa. Tens de decidir. Sei que a escolha é difícil. Ou então eu ou o Vova. - Deixando-lhe cair a mão: - Também é uma escolha difícil? - Estava farto. Tinham parado e olhavam-se de frente, a um metro um do outro. Alexander cruzou os braços: — Então, Tania? A escolha é tua.

Ela gritou a Naira: - Volto daqui a bocado! Diga-lhe que depois estou com ele! - Suspirando, fez-

lhe sinal para continuarem a andar. Mas ele caminhava depressa de mais e ela não conseguia acompanhá-lo: - Porquê tão depressa? O mau génio aumentava dentro de Alexander como o assobio de uma

granada antipessoal antes de explodir. Respirou profundamente, tentando acalmar-se:

- Aviso-te já de uma coisa: se não queres sarilhos, o melhor é dizeres ao Vova para te deixar em paz.

Como ela não respondeu, parou e puxou-a para si: - Estás a ouvir? - Levantou a voz: - Mas talvez prefiras dizer-me a mim para te

deixar em paz. Podes fazê-lo agora. Sem levantar os olhos e sem se afastar, Tatiana falou calmamente: - Desculpa. Não estejas zangado. Sabes perfeitamente que só não quero ferir

os sentimentos dele. - Pois, não queres ferir os sentimentos de ninguém. Só os meus. — Não, Alexander. - Desta vez, ergueu para ele um olhar de censura: - Acima

de tudo, não quero ferir os teus. Ele não a largou: — Que queres dizer? — Apertou-lhe o braço. - Se queremos resolver o que

está mal entre nós, ele terá de te deixar em paz... para sempre... Tentando soltar-se, Tatiana disse: — Não sei porque te preocupas com ele... — Tania, prova-me que não tenho nada com que me preocupar. Só não quero

é continuar a brincar às escondidas. Não aqui. Não em Lazarevo. E sobretudo por causa de estranhos. Não vou fazer pelo Vova o que fiz pela Dasha. Ou tu lhe dizes, o que seria melhor, ou lhe digo eu, o que seria pior.

Ela mordeu o lábio e não disse nada. — Não quero pegar-me com ele — continuou. - E também não quero fingir

enquanto a Zoe esfrega as mamas em mim. Não o farei só para que continue a haver paz nesta casa.

Tatiana levantou os olhos de repente: — A Zoe faz o quê? — Abanou a cabeça, resmungando: - O Vova não anda por

aí a esfregar nada em mim. Alexander aproximou-se muito dela: — Ai não? — Fez uma pausa e a respiração acelerou-se-lhe. A dela também.

Page 418: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

418

Roçou Tatiana muito ao de leve: - Vais dizer-lhe para te deixar em paz. Ouviste?

— Ouvi — respondeu em voz fraca. - Ele largou-a e recomeçaram a caminhar. — Mas, francamente — continuou ainda mais baixinho acho que o Vova é o

menor dos nossos problemas. Alexander estugou ainda mais o passo: — Onde vamos? — Pensava que querias ver a casa dos meus avós. Ele soltou o ar e riu sem grande alegria. — Qual é a graça? — Também não parecia grandemente divertida. — Achava que não era possível. - Abanou a cabeça: - Depois do que vi na

Quinto Soviete, achava que não mas, não sei como, conseguiste. — O quê? — indagou ela, já sem ser baixinho. — Explica-me como - atirou. - Como conseguiste rodear-te de pessoas ainda

mais carentes do que a tua família? — Não fales assim da minha família! — Porque está toda a gente sempre pendurada em ti? Porquê? Explicas-me? — A ti não. — Porque te deixas abafar assim? — Não vou discutir isso contigo. Estás a ser mauzinho. - Tens algum momento para ti naquela casa? Só um momento? - Nem um. Graças a Deus. Percorreram o resto do caminho num silêncio amuado, atravessando a aldeia

e passando pelos banya, o Soviete local, o minúsculo casebre que dizia «Biblioteca» e urn pequeno edifício com uma cruz de ouro no cimo de uma kupola branca.

Penetraram no bosque e desceram o carreiro que levava ao Kama, chegando por fim a uma clareira larga e ligeiramente inclinada, rodeada por pinheiros altos e bétulas brancas. Salgueiros e choupos orlavam o rio, cintilante.

Do lado esquerdo da clareira, por baixo dos pinheiros, erguia-se uma izba, uma cabana de madeira, com um pequeno telheiro para guardar lenha, que no entanto estava vazio.

- É isto? — Dando a volta à casa em trinta passos compridos: - Não é muito grande.

- Eles eram só dois - retorquiu, seguindo-o e contando cinquenta passos pequenos.

- Mas estavam à espera de três netas. Como teriam cabido todos? - Cabendo. Olha como cabemos em casa da Naira. - Muito apertadinhos - declarou Alexander, abrindo a mochila, tirando a pá e

começando a partir as tábuas que tapavam as janelas. - Que estás a fazer? - Quero ver por dentro.

Page 419: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

419

Ela dirigiu-se à margem arenosa do rio, sentou-se e descalçou as sandálias. Alexander acendeu um cigarro e continuou a partir as tábuas:

- Tens a chave do cadeado? — perguntou-lhe. Não ouviu a sua resposta. Encaminhou-se para ela com ar de poucos amigos: - Tatiana, estou a falar contigo. Tens a chave do cadeado? - repetiu em voz

alta. - Já te respondi que não - atirou-lhe, sem levantar os olhos. - Está bem. - Tirou a semiautomática do cinto e puxou a culatra: - Se não a

trouxeste, abro o maldito cadeado a tiro. - Espera, espera. — Num gesto de impaciência, tirou do pescoço uma corda

com a chave pendurada. - Toma. Não precisas de ser tão bruto. - Desviou a cara: - Não estás na guerra, sabes? Não tens de andar com a arma para todo o lado.

- Ai tenho, tenho. — Começou a afastar-se e olhou para trás... para o cabelo louro, as costas à mostra na cintura, os ombros. Depois, meteu a chave do cadeado no bolso das calças e, com a pistola numa mão e a pá na outra, entrou dentro de água com as botas calçadas, parou à frente dela com as pernas abertas e disse em voz determinada: — Está bem. Diz lá.

- Diz lá o quê? — Ainda sentada, fez recuar um pouco as ancas. - O quê? — exclamou. — Porque estás zangada? O que foi que eu fiz ou não

fiz? O que foi que fiz de mais ou de menos? Diz-me. Diz lá. - Porque falas assim? — Pôs-se em pé de um salto. — Não tens o mínimo

direito de estar furioso comigo! - Tu é que não tens o mínimo direito de estar furiosa comigo! - retorquiu em

voz alta. — Tania, estamos a perder o nosso tempo. E estás enganada: tenho, muitas razões para estar furioso. Mas, ao contrário de ti, sinto-me muito grato por estares viva e muito feliz por te ver.

- Tenho mais do que tu. - Depois de uma pausa: - Também dou graças por estares vivo. - Não conseguiu olhar para ele enquanto falava: - E também me sinto feliz por te ver.

- Pois não se nota. A parede que ergueste contra mim é muito grossa. - Ela não respondeu. - Reparaste bem que vim a Lazarevo sem saber notícias tuas há seis meses? - Levantando a voz: - Seis meses! É natural que pensasse que tinham morrido as duas, não?

- Não sei o que pensaste - replicou, contemplando o rio. - Pois então eu digo-te, para o caso de teres dúvidas. Passei seis meses sem

saber se estavas viva ou morta, só porque te dava muito trabalho pegares numa merda de uma caneta!

- Não sabia que querias que eu te escrevesse. — Apanhou um punhado de seixos e começou a atirá-los para a água.

- Não sabias? - repetiu. Estaria a brincar com ele? - O quê? Parece que nunca nos conhecemos. Não sabias que eu teria gostado de saber que estavas bem ou talvez que a Dasha tinha morrido?

Page 420: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

420

Viu-a contrair-se. - Não quero falar da Dasha contigo. — Afastou-se. Ele seguiu-a: - Se não for comigo, então com quem? Com o Vova? - Melhor com ele do que contigo. - Oh, essa é boa! — Tentava ser racional, mas sabia que perderia a cabeça se

ela continuasse a falar naqueles termos. - Olha, não te escrevi porque pensei que o Dimitri te ia contar tudo. De resto,

garantiu-me que sim. Por isso, pensei que sabias. — Havia qualquer coisa que ficara por dizer, mas a cólera de Alexander não lhe permitiu lá chegar.

- Pensaste que o Dimitri me ia contar? — repetiu, incrédulo. - Pensei! — O seu tom era de desafio. - Porque não me escreveste tu? — gritou, aproximando-se ameaçadoramente. - Quatro mil rublos, Tatiana! Era capaz de merecer uma carta tua, não? Seria

de esperar que quatro mil rublos chegassem para comprares uma caneta e não apenas vodca e cigarros ao teu namorado!

- Pousa as armas! — berrou-lhe ela. — Não te atrevas a aproximar-te de mim com essas coisas na mão!

Ele atirou com a pistola e a pá e avançou, fazendo-a recuar. Deu mais um passo sem lhe tocar, e ela retrocedeu outro.

- Que se passa, Tania? Incomodo-te? Estou muito perto de ti? - Debruçando-se para o seu rosto: - Assusto-te? - acrescentou em voz cortante.

- Sim e sim. E sim. Ele apanhou alguns seixos e arremessou-os com força para a água. Sem fôlego, nenhum deles falou durante um ou dois minutos. Alexander

esperou que ela dissesse alguma coisa. Como não o fez, voltou a tentar fazé-la regressar ao que sentiam quando eram apenas os dois... em Kirov, em Luga, em Santo Isaac:

- Quando cheguei aqui... - a voz arrastou-se-lhe -... ficaste tão feliz! - E como percebeste a minha felicidade? Por eu chorar? - Sim. Pensei que choravas de felicidade. - Isso costuma acontecer muito contigo, Alexander? - Por um momento, só

um segundo, pareceu-lhe que as suas palavras tinham um duplo sentido, mas estava baralhado de mais para conseguir pensar com calma:

- Que foi que eu disse? - indagou. - Não sei. Que disseste? - Temos mesmo de andar a brincar às adivinhas? - Exasperado: - Não me

po¬des dizer? - Vendo que ela continuava calada, suspirou: - Só perguntei pela Dasha.

Ela quase se meteu na sua concha. - Tania, se te faço infeliz lembrando-te coisas que queres esquecer, vamos

enfrentar...

Page 421: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

421

- Se ao menos... - Espera! - interrompeu em voz alta, levantando a mão. - Eu disse se é isso.

Mas se for outra coisa... — Calou-se. A expressão dela era de tanta aflição que ele tornou a baixar a voz, abrindo as mãos e contemplando-a com todo o amor que sentia: - Olha, vê o que achas: perdoo-te por não me teres escrito se tu me perdoares uma das coisas que te preocupa. - Sorriu: - É só uma?

- Tenho tantas coisas que me preocupam que nem sei por onde começar. Era verdade, bem via. E a mágoa permanecia-lhe no olhar. Foi de resto nos seus olhos que Alexander se concentrou: eram os mesmos

que vira na Quinto Soviete, quando ela lhe gritara que podia perdoar-lhe a expres¬são indiferente mas não o coração indiferente. Não tinham já ultrapassado isso? Usava o seu amor por ela como uma medalha ao peito. Não estavam para além de todas as mentiras?

Quanto mais haveria para lá da Quinto Soviete? Percebeu que só a morte. Era um combate que nunca tinham enfrentado.

Nem o que o precedia ou o ultrapassava. E tudo atravessado por Dasha, que Tatiana tentara salvar e não conseguira.

Que Alexander tentara salvar e não conseguira. - É tudo por eu e a Dasha tencionarmos casar-nos? Ela não respondeu. «Ah! » - É tudo por causa da carta que escrevi à Dasha? Ela não respondeu. «Ah! » - Há mais? - Alexander - começou Tatiana, abanando a cabeça -, como consegues fazer-

me parecer mesquinha! Trivial! Reduzes os meus sentimentos ao teu depreciativo «é tudo».

- Não é depreciativo - admirou-se. — Não é trivial. Nem mesquinho. Mas já é passado...

- Não! — gritou ela. - Está aqui e agora, à minha volta e dentro de mim! Vivo aqui e agora. - Levantando ainda mais a voz: — E aqui, têm estado à espera que chegues para casares com a minha irmã! E não me refiro só às velhotas, mas à aldeia em peso. É só o que ouço desde que vim para aqui, todos os dias, ao jantar, ao almoço, de cada vez que nos sentamos a coser. Dasha e Alexander. Dasha e Alexander. Pobre Dasha, pobre Alexander. — Estremeceu: — Isto parece-te passado?

Alexander tentou chamá-la à razão: - E que culpa tenho eu? - Oh, foram eles que pediram a Dasha em casamento? - Já te disse que não a pedi em casamento... - Não brinques comigo, Alexander! Disseste-lhe que te casarias este verão.

Page 422: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

422

- E fi-lo porquê? — indagou em voz cortante. - Oh, cala-te! Em Santo Isaac concordámos em manter-nos afastados um do

outro. Mas como não conseguiste, fizeste planos para casar com a minha irmã. - E ele deixou-te em paz depois disso, não foi? — retorquiu, em tom sombrio. - Ter-me-ia deixado de qualquer modo em paz se não voltasses a pôr os pés

em minha casa! — gritou. - Que preferias? Ela imobilizou-se por um momento. - Estás mesmo a perguntar-me o que preferia? — Ofegando e com os olhos

assombrados: — Estás a perguntar-me se preferia que casasses com a minha irmã ou nunca mais te ver?

- Estou! Em Santo Isaac, mostraste-te disposta a suplicar-me que não me afastasse. Por isso, não me venhas com tretas. É fácil dizer agora, que já passou.

- Oh! Então é isso... fácil. - Descrevia círculos tão furiosos à volta da clareira que quase girava. Alexander acompanhava-a com os seus passos largos, mas

estava a ficar tonto. - Para de andar à volta! - gritou. Ela imobilizou-se. - Estou a ver. Estabeleces as

regras e depois não queres que eu jogue de acordo com elas. Amanha-te! - É o que faço desde o dia em que te conheci. - Ah, é esta discussão que queres ter? - gritou ele. - É? Pois olha que esta não

ganhas, porque remonta... - Não quero ouvir! - É natural! Tatiana respirava com dificuldade: - Disseste à Dasha que te casarias, ela contou à minha avó e a minha avó

espalhou a novidade pela aldeia. Escreveste-lhe uma carta a comunicar-lhe que virias para te casares. As palavras contam, sabes? - Calou-se por um momento.

- Até as palavras que não contam para ti. Porque lhe pareceu que ela não estava a falar de Dasha? - Mas se isso era tão importante, porque não me escreveste? Só a dizer-me:

«Sabes, Alexander, a Dasha não sobreviveu, mas eu estou aqui. » Eu viria mais cedo e não teria passado seis meses sem saber se estavas viva!

- Pensas que eu ia pedir-te para vires depois da carta que lhe escreveste? - perguntou, incrédula. — Pensas que eu ia pedir-te seja o que for depois daquela carta? Seria muito idiota da minha parte. Idiota ou... - Calou-se.

- Ou o quê? — inquiriu. - Ou infantil - replicou sem olhar para ele. Alexander inspirou profundamente: - Oh, Tania... - Estes jogos dos adultos... - Recuou. - Estas mentiras... jogas bem de mais. - Baixou a cabeça. — Bem de mais para mim.

Page 423: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

423

Alexander só teve vontade de lhe tocar. Os lábios, a cólera, o rosto... apetecia-lhe tocar tudo.

- Tania... - sussurrou, estendendo-lhe as mãos. - Que estás a dizer? Que jogos, que mentiras?

- Porque vieste? Porquê? - perguntou friamente. Engasgou-se com as próprias palavras: - Como podes perguntar-me isso? - Como? É que a última coisa que escreveste foi que vinhas casar com a Dasha.

Que a amavas muito. Que ela era a mulher da tua vida. A única mulher da tua vida. Li a carta. Foi o que escreveste. E uma das últimas coisas que te ouvi dizer no lago Ladoga foi que nunca...

- Tatiana! — gritou ele, perdendo a cabeça. - Mas que raio de conversa é essa? Esqueces-te que me obrigaste a prometer que mentiria até ao fim? Tu é que me obrigaste a prometer! Em novembro eu ainda insistia para que disséssemos a verdade.

E tu? Mente, mente, mente, Shura, mas promete-me que não magoarás a minha irmã. Lembras-te?

— Lembro, e saíste-te muito bem - retorquiu ela com acidez. - Precisavas de ser assim tão convincente?

Alexander passou a mão pelo cabelo e abanou a cabeça: — Sabes muito bem que não era o que sentia. — Que parte? — Elevando a voz, aproximou-se e ergueu o olhar, zangada e

sem medo: — A do casamento com a Dasha? A do teu amor por ela? Que parte de tantas mentiras sei que não sentias?

— Oh, por amor de Deus! — exclamou ele. — Que querias que lhe respondesse com ela a agonizar nos teus braços?

— A única coisa que podias responder-lhe. A única coisa que fazia sentido na tua vida de mentiras. — Vivemos os dois uma vida de mentiras... por tua causa! - berrou ele, com

vontade de lhe arrancar o cabelo. — Mas sabes muito bem que não sentia o disse. — Pensava que não. Esperava que não. Mas sabes o que é ouvir sempre a

mesma coisa no comboio para Molotov, na travessia do gelo do Volga e durante dois meses no hospital, enquanto lutava para respirar? Percebes?

Também naquele momento respirava com dificuldade. Alexander observava-a,

sentindo um remorso insuportável. — Até nem me teria importado. Já te disse que me contento com pouco. -

Tornou a cerrar os punhos. Tinha a mágoa no olhar. — Mas preciso desse pouco — continuou, com a voz a tremer. — Depois, poderias ter dito à Dasha o que era preciso, absolutamente preciso! — Inspirando: — Queria só que me olhasses por um segundo para ter a certeza de que existo, para poder acreditar. Mas não... trataste-me como sempre... como se eu não existisse.

Page 424: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

424

— Eu não te trato como se não existisses. — Pálido e confuso: - Que estás a dizer? Escondo-te de toda a gente, o que não é a mesma coisa. — Bela diferença! Mas se consegues esconder tão bem os teus sentimentos

até de mim, talvez também consigas esconder o teu amor pela Dasha... da mesma maneira. E pela Marina, a Zoe ou todas as outras com quem estiveste. Se calhar é isso que um homem adulto faz... olha para nós em privado de uma maneira, e depois renega-nos em público, como se não significássemos nada. - Baixou a cabeça para o chão.

— Estás maluca? Esqueces-te que a única pessoa que não viu a verdade foi a tua irmã? Privado ou público, a Marina percebeu tudo passados cinco minutos.

— Depois de uma pausa: - Pensando bem, as únicas pessoas que parece que não viram a verdade foram a tua irmã e tu, Tatiana.

Que verdade? – Parada a um passo dele, tinha os punhos a tremer. –Por mim, não teria conseguido mentir tão bem. Mas tu és homem e fizeste-o. Renegaste-me nas tuas ultimas palavras e no teu ultimo olhar. Por um momento, quase me pareceu bem. Como podias amar-me? Quem poderia sentir fosse o que fosse depois de Leninegrado... – Fez uma pausa, respirando pesadamente. – Mas eu queria tanto acreditar em ti! Por isso, quando chegou a tua carta para a Dasha, abri-a logo esperando ter-me enganado, rezando para que contivesse alguma palavra para mim... – Erguendo a voz: - Precisava desesperadamente de uma palavrinha, uma silaba que pudesse guardar só para mim, que me mostrasse que a minha vida não tinha sida uma mentira! – Calou-se. – Uma palavrinha! – berrou, batendo-lhe com os punhos no peito. – Só uma palavra Alexander!

Ele tentou lembra-se do que escrevera. Não conseguiu. Mas eram os seus olhos magoados que mais do que tudo queria apaziguar. Tomou-a nos braços. Ela debateu-se, agarrou-o e desfez em lagrimas.

- Tania, por favor, sabias que eu estava aflitíssimo... Mas ela estava tão perturbada e suscetível que se libertou dele e gritou: -Sabia? Como? - Sabendo – replicou Alexander, aproximando-se. – Porque és assim. - E tu? Como és tu? – berrou, recuando. - Eu – gritou-lhe -, eu abracei-te com todo o meu amor na parte de traz do

maldito caminhão da Ladoga e implorei-te que te salvasses por mim! - E como sei que não dizes a mesma coisa a todas as que levas para a Estrada

da Vida? - Oh, meu Deus, Tatiana! - Só te conheço a ti – continuou com a voz embargada. – Não sei representar,

jogar, mentir ou seja lá o que for. Baixou a cabeça: - Mostras-me uma coisa em privado... e de repente resolves casar com a minha Irmã. No Lagoda, dizes-lhe que nunca me amaste e não me mandas nem uma linha. Como queres que alguém como eu saiba a verdade sem uma ajudinha da tua parte? Tudo o que conheço na vida são as tuas malditas mentiras!

Page 425: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

425

- Tatiana! Esqueceste-te de Santo Isaac? – gritou ele. - Quantas mais foram lá visitar-te, Alexander? - Esqueceste-te de Luga? - Aí eu era uma donzela em perigo – atirou-lhe amargamente. – E o Dimitri

contou-me como gostavas de salvar meninas nessas condições. Alexander estava prestes a perder completamente a cabeça: - E para que achas que eu ia à Quinto Soviete levar-te a minha comida sempre

que podia? – bradou. – Por quem pensas que o fazia? - Eu nunca disse que não tinhas pena de mim, Alexander? - Pena? – exclamou ele – Por amor de Deus! Pena? Tatiana cruzou os braços: - Sim. - Sabes de uma coisa? – encostando-se quase a ela: - Até seria bom demais

para ti! É o preço que se paga por viver uma mentira. Não gostas, pois não? - Não, detesto. – Não recuou nem um centímetro: - E sabendo que detesto,

para que vieste? Para me torturares mais? - Vim porque não sabia que a Dasha tinha morrido! – gritou. – Porque não te

deste o trabalho de me escrever! - Portanto, vieste mesmo para casar com a Dasha – concluiu em voz calma. –

Porque não disseste logo? Rugindo de raiva, Alexander cerrou os punhos e afastou-se dela. - Não consegues coordenar as mentiras todas, pois não? - Estás completamente maluca. Disse-te desde o primeiro dia para

esclarecermos tudo e não vivermos esta vida. Disse-te desde o principio para contarmos tudo e não vivermos com a conseqüência disso. Foste tu que não quiseste. E eu acedi, embora não me agradasse.

- Não! Não acedeste, Alexander! Se tivesse acedido, não terias continuado a ir a Kirov todos os dias contra a minha vontade.

- Contra a tua vontade? – repetiu, dando um passo atrás. Tatiana abanou a cabeça: - É incrível! Achas que não pões a cabeça a andar à roda de qualquer uma com

a tua espingarda, a tua altura e a tua vida, Alexander Barrington? Penas que tinhas o direito de pedir a minha irmã em casamento só porque eu, uma criança de dezessete anos, fiquei de boca aberta e olhos esbugalhados, como se nunca tivesse visto nada igual? Pensas que isso não me magoaria porque sou muito nova? Penas que não preciso de nada de ti, enquanto tu te serves de mim à vontade...

- Não penso que não precisas de nada nem me servi de ti - vociferou ele por entre os dentes cerrados.

- Só não me tiraste uma coisa! – gritou-lhe. – E essa não me mereces! Ela aproximou-se e gritou: -Também poderia te-la tirado. - Isso! – Empurrando-o, enfurecida: - Não te chega o que já me fizeste sofrer?

Page 426: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

426

- Não me empurres! - Não me ameaces! – Não te aproximes! Ele recuou: - Nada disso estaria a acontecer se me tivesse dado ouvidos. Nada! Eu disse-te

para lhes contarmos. - E eu disse-te que a minha irmã era mais importante para mim do que uma

necessidade sua, que eu nem compreendia – respondeu com veemência. – Era mais importante até do que uma necessidade minha, que também não entendia. Tudo o que eu queria era que respeitasses a minha vontade. Mas não! Continuaste a assediar-me e, ao pouco e pouco, obrigaste-me a ceder. Não contente com isso, apareceste-me no hospital. E por fim levaste-me ao telhado de Santo Isaac para acabar comigo...

- Ainda não acabei contigo. - Para acabar de vez com os meus sentimentos – continuou, tensa da cabeça

ao pés. – E sabias. E quando já tinhas tudo e me tinhas a mim, mostrate-me o que eu significava para ti resolvendo casar com a minha irmã!

- Que tens na cabeça! – bradou ele. – Que pensas que acontece quando não te dás o trabalho de lutar pelo que queres? Que achas que acontece quando se desiste de quem se ama? As pessoas tocam as suas vidas para a frente, casam-se, têm filhos. E tu querias viver esta mentira!

- Não me digas que queria viver uma mentira! Estava a viver a única verdade que conhecia. Tinha uma família que não queria sacrificar por tua causa! Era por ela que lutava.

Alexander sentiu-se tonto. Nem acreditava nas palavras que lhe saíam da boca.

- Era a tua verdade, Tatiana? Ela pestanejou e baixou os olhos: - Não. Tu aproximaste-te de mim e eu não te empurrei suficientemente para

longe. Como poderia fazê-lo? Estava... – A voz embargou-se-lhe: - Estava de olhos abertos, mas só para te ver. Esperei que fosses mais perspicaz, mas percebi que não eras muito mais, e continuei contigo sabendo que ficaria do teu lado e que acreditaria em ti. Dar-te-ia tudo aquilo de que precisasses sem pedir muito para mim. – Já não conseguia fitá-lo com valentia. – Bastar-me-ia um olhar teu no fim da tua declaração de amor a outra pessoa... uma palavra na tua carta de amor a outra pessoa. Mas eu era tão pouco importante para ti que nem isso percebeste...

- Tatiana! – gritou-lhe na cara. – Podes acusar-me do que quiseres, mas não te atrevas a dizer que eras pouco importante para mim! Não tentes sequer proferir essa mentira como se fosse verdade. Tudo o que fiz na vida desde que te conheci foi porque eras importante para mim. Se continuas com essas tretas, juro...

- Não continuo – interrompeu ela baixinho. Mas já era tarde.

Page 427: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

427

Alexander agarrou-a e abanou-a. Tatiana sentiu-se vulnerável nos seus braços. Derrotado pela cólera, o remorso e o desejo, empurrou-a com força, praguejou, apanhou as suas coisas do chão, correu ladeira acima e meteu pelo carreiro.

Page 428: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

428

6

Correu atrás dele. - Shura, por favor, para! Por favor! – gritava. Não conseguiu apanhá-lo e ele desapareceu no bosque. Tatiana correu todo o

caminho para casa. As suas coisas ainda estavam lá, mas ele não. - Que se passa, Taneshka? – perguntou Naira, que apareceu com um cesto de

tomates. - Nada. – replicou ofegante, tirando-lhe o cesto. - Onde está o Alexander? - Na casa velha, a tirar as tábuas das janelas. Dusia levantou os olhos da Bíblia: - Espero que depois volte a pregá-las. Mas qual é a idéia dele? - Não sei. – Virou-se para não lhe verem o rosto. – Quer o seu remédio, Raisa? - Quero, se fazer o favor. Deu-lhe o remédio para as tremuras, que de resto não adiantava nada, e

dobrou os lençóis que levara no dia anterior. Com medo de que ele chegasse, pegasse nas suas coisas e se fosse embora, foi escolhe-lhe a tenda e a espingarda no telheiro atrás da casa. Depois, desceu ao rio e lavou-lhe os uniformes.

Alexander ainda não regressara. Foi apanhar peixe e cozinhou ukha, sopa de peixe, para o jantar. Ele uma vez

dissera que gostava muito de ukha. Alexander ainda não regressara. Descascou batatas, esmagou-as e fez panquecas. Vova apareceu e perguntar-lhe se queria ir nadar. Respondeu que não, pegou

num tecido de algodão com nervuras e costurou-lhe outra camisa sem mangas mais larga.

E ele continuava sem regressar. Não podia ter ficado a discutir ate o fim? Se fosse ela, não teria saído, não

teria arredado o pé. Sentia um vazio no fundo do estômago. Mas não ia deixá-lo partir antes de terem acabado. E pouco lhe importava que ele perdesse a cabeça.

Era seis da tarde, horas de irem aos banya. Deixou-lhe um bilhete: “Querido Shura: se tiveres fome, come a sopa e as panquecas. Fomos aos banhos. Se preferires, espera por nós e jantamos juntos. Tens uma camisa nova em cima da cama. Espero que sirva melhor. Tania”.

Nos banhos públicos, esfregou-se até ficar cor-de-rosa e a reluzir. Zoe perguntou-lhe se Alexander iria à fogueira com eles à noite. - Não sei – respondeu-lhe. – Tens de lhe perguntar a ele.

Page 429: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

429

A outra abanou os grandes seios: - Ele é delicioso. Achas que se sente muito mal por causa da Dasha? - Acho. - Talvez precise de ser consolado. – Sorriu. Tatiana observou-a de frente. Se ela soubesse o consolo de que ele

precisavas! - Não percebo o que queres dizer – retorquiu com frieza. - Pois não. É natura. Deixa lá. – rindo, foi-se vestir. Enxugou-se, escovou o cabelo molhado, deixando-o solto abaixo dos ombros,

e enfiou um vestido de algodão azul que fizera, fino, sem mangas, curto e com as costas decotadas. Quando saíram do edifício, Alexander estava à tua espera. Fitou-o aliviada. Depois, incapaz de agüentar o seu olhar, virou a cabeça.

-Ei-lo! – exclamou Naira. – Onde esteve todo o dia? - Como estão as janelas da casa? – quis saber Dusia. - Janelas? Que casa? – resmungou. - A do Vasili Metanov. A Tania disse que estava a tirar as tabuas das janelas. - Ah! – Não tirava os olhos de Tatiana que, de pé ao lado de Raisa, esperava

esconder-se atrás dos seus tremeliques. - Tens fome? Já comeste? – indagou ela em voz fraca, sem forças para mais. Ele abanou a cabeça em silencio. Começaram todos a caminhar para casa. Axinya deu o braço a Alexander. Zoe

aproximou-se do outro lado, apoderou-se do outro braço e perguntou-lhe se queria ir á fogueira.

- Não – respondeu, afastando-se dela, inclinando-se para Tatiana e sussurrando: - Que fizestes às minhas coisas?

- Escondi-as – cochichou, com o coração aos saltos. Apetecia-lhe tocar-lhe, mas tinha medo de que ele se descontrolasse e desatasse a discutir à frente de toda a gente.

- A Tania faz uma sopa de peixe excelente – comentou Naira. – Gosta de sopa de peixe?

- E a torta de mirtilos é uma delicia – acrescentou Dusia. – Estou cheia de fome.

- Por quê? – segredou Alexander. - Porque o que? – indagou Dusia. -Não interessa. – Afastou-se delas. Quando chegaram a casa, Tatiana foi pôr a mesa, espreitando a cama para ver

se ele lera o bilhete e pegara na camisa. O bilhete desaparecera, mas a camisa permanecia no mesmo sítio.

Alexander entrou. As quatro senhoras encontravam-se na varanda. - Onde estão as minhas coisas? - Shura... - Cala-te – atirou-lhe. – Dá-me as minhas coisas para me ir embora.

Page 430: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

430

- Importa-se de vir aqui, Alexander? – Naira espreitou para dentro. – Precisamos de sua ajuda para abrir esta garrafa de vodca. Parece-me que a tampa está presa.

Saiu para a varanda. As mãos de Tatiana tremiam tanto com as de Raisa. Deixou cair um prato de metal, que fez uma grande barulheira ao bater no

chão de madeira. Vova chegou. A varanda encheu-sede risos. Alexander entrou e abriu a boca para falar, mas Tatiana apontou para traz

dele. Vova encontrava-se a porta: - Precisas de ajuda, Tanyusha? Queres que leve alguma coisa para a mesa? - Sim, Tanyusha, queres que Vova leve alguma coisa? – repetiu, Alexander,

mordaz. - Não, obrigada. Dás-me um minuto, por favor? - Vamos – disse Vova a Alexander, que não se mexera. – Não a ouviste? Quer

um minuto. Não se virou: -Pois quer. Um minuto comigo. O outro saiu co relutância. - Onde estão as minhas coisas? -Shura, porque te vais embora? - Porque? Não há lugar para mim aqui. Foste perfeitamente clara. Alias, a

julgar pelo que pensar, nem sei porque não me fizeste as malas. Não preciso que me digam as coisas duas vezes, Tania.

Os lábios tremeram-lhe: - Fica e janta conosco, - Não. - Por favor, Shura – suplicou com a voz embargada. – Fiz-te panquecas de

batata. – Deu um passo em frente. - Não. – Pestanejou. - Não te podes ir embora. Ainda não acabamos. - Oh, acabamos sim. - Que posso dizer? - Já foste muito clara. Só te falta dizeres-me adeus. Tinham entre eles a mesa da cozinha. Tatiana deu-lhe a volta. - Shura – pediu baixinho. – Deixa-me tocar-te. - Não. – Recuou mais. Naira enfiou a cabeça pela porta aberta: - O jantar está pronto? - Quase, Naira Mikhailovna. - Virando-se para ele: - Não disseste que não te ía embora enquanto eu não estivesse bem? - perguntou em voz fraca. –

Trata de mim Shurra. - Tu própria me disseste que eu não chegava para endireitar nada dentro de

Page 431: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

431

de ti, acredito. Onde estão as minhas coisas? - Shura... Alexander avançou para ela e perguntou-lhe por entre os dentes cerrados: - Que queres, Tania? Uma cena? Não. - Tentava não chorar. O seu rosto estava muito perto do dela: - Uma cena horrível e aos gritos como aquelas a que estás habituada? - Não - sussurrou, sem olhar para ele. Dá-me as minhas coisas, eu saio de mansinho e não terás de explicar nada à

tuas amigas nem ao teu namorado. Como ela não se mexeu, ergueu a voz: -Vá! Embaraçada e zangada, acompanhou-o ao telheiro atrás da casa, longe da vista dos outros. Onde vais, Tanechka? Vamos comer... Venho já! - gritou com os ombros a tremer. Quando chegaram atrás da casa.

tentou agarrar na mão de Alexander, que a sacudiu com brusquidão. Tatiana vacilou mas não recuou. Pondo-se rapidamente à sua frente, passou-lhe os braços pela cintura. Ele tentou empurra- la. - Por favor, não vás. - Erguendo para ele um olhar suplicante: - Por favor. Peço-te. Não quero que vás. Tenho esperado por ti todos os minutos de todos os dias desde que sai do hospital. Por favor, — Encostou-lhe a testa ao peito.

Alexander não disse nada. Continuava com as mãos pousadas nos seus braços nus. Tatiana não levantou a cabeça.

Meu Deus, Alexander! - exclamou, apertando-o com força, - Como podes ser assim? Não percebes porque não te escrevi?

Não. Por quê? Com o rosto ainda no seu peito, aspirou o cheiro dele: Tinha muito medo de que não viesses a Lazarevo se te contasse da Dasha. -

Gostaria de ser mais valente para erguer o olhar, mas não queria voltar a vê-lo zangado. Pegou-lhe na mão e pousou-a no rosto. Quando o calor dele lhe deu forças. Levantou os olhos. — Leninegrado quase acabou conosco, Se não soubesses dela e viesses e se eu estivesse outra vez de saúde de saúde como no verão passado, talvez o meu amor voltasse...

- Voltasse? - repetiu ele em voz rouca. — Que idéia! - A sua mão permanecia na face dela. A outra envolveu-lhe as costas nuas. Os dedos abriram-se, acariciaram-na, passearam-lhe na carne e apertaram-na. — Não vês... - A voz embargou-se-lhe. Sentiu que ele não conseguia dizer mais. Nem precisava.

Mas por fim falou: - Tania, merecerei o teu perdão. Endireitarei tudo. Sararei as tuas feridas, mas

tens de me deixar fazê-lo. Não podes afastar-me assim... não podes. - Desculpa. Tenta compreender, por favor, — Abraçou-o com mais força.

Page 432: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

432

- São mentiras de mais... dúvidas de mais. -Olha para mim. Ela levantou a cabeça. - Que dúvidas, Tania? Estou aqui por tua causa - disse, abraçando-a. - Então fica, por favor. Fica por mim. Respirando pesadamente, Alexander inclinou-se e beijou-lhe o cabelo

molha¬do por um momento: - O que é isto? O lago Ladoga? - Shura, a casa está cheia de gente. As pontas dos seus dedos comprimiam-lhe as costas de um modo tão

signi¬ficativo que começou a sentir-se fraca. - Levanta já a cara para mim. Ela obedeceu. - Tania, podemos comer?—A voz alta de Naira parecia esfomeada e irritada. - Está tudo a queimar-se! Alexander beijou-a com tanta intensidade que, por um momento, apenas os

seus braços a ampararam. As pernas trôpegas não conseguiam segurá-la de pé. - Mas que está ela a fazer? Morremos todos de fome, Tatiana! Afastaram-se um do outro, Tatiana não soube como, tiraram as coisas dele do telheiro e entraram em casa. Serviu-o primeiro, colocando-lhe o prato à frente e estendendo-lhe a colher. A seguir, distribuiu a sopa pelos outros. Alexander esperou que ela se

sentasse para começar a comer. - Então diz lá, Alexander — interpelou-o Vova. — Que faz um capitão do

Exército Vermelho? - Bem, não sei o que faz um capitão. Sei o que eu faço. - Queres mais peixe? — perguntou Tatiana. - Quero, obrigado. - E o que fazes? — insistiu Vova. - Sim, diga-nos, Alexander — incitou Axinya. — A aldeia está mortinha por

saber. Estou no armamento pesado. Sabem o que é? Toda a gente abanou a cabeça, exceto Tatiana. - Comando uma companhia de blindados. Damos apoio à artilharia. —

Engolindo a sopa: — Pelo menos, devíamos. - Que tipo de apoio? - perguntou Vova. - Tanques? -Tanques e carros blindados. Há mais panquecas, Tania? Operamos também

metralhadoras antiaéreas Zenith, morteiros e outra artilharia. Canhões de médio e longo alcance e metralhadoras pesadas. Sou atirador de um Katyusha, um lança- -foguetes.

- Impressionante - comentou Vova. - Mas então é o trabalho melhor. Não é menos perigoso do que os frontovik de espingarda?

Page 433: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

433

- Pelo contrário. Muito mais perigoso. Quem pensas que os Alemães tentam abater primeiro: um soldado com uma Nagant lenta e demorada ou eu com um morteiro que lhes atira quinze bombas por minuto?

- Queres mais, Alexander? — indagou Tatiana. - Não, Tatiasha... — Calou-se. Ela também. - Estou cheio, Tania, obrigado. - Parece que Estalinegrado vai cair - observou Zoe. Tatiana permaneceu sentada e ele não retirou a mão. Ao princípio, o vestido

de algodão estava entre a mão dele e a coxa dela, mas parece que Alexander não gostou, porque puxou-lho para cima de modo a agarrar-lhe a coxa com mão nua. A tensão que sentia no ventre intensificou-se.

- Não levantas a mesa, Tanechka? - sugeriu Dusia. — Estamos mortinhos por comer a tua torta. E por beber um chá.

A mão de Alexander apertou-a com mais força e subiu um pouco. Tatiana cerrou os dentes. Dali a exatamente um segundo desataria a mesmo

ali à mesa, à frente das quatro senhoras. - Ela cozinhou maravilhosamente para nós — comentou Alexander. - deu-se.

Agora está cansada. E se lhe poupássemos trabalho? Zoe, Vova... podem levantar a mesa?

- Não está a perceber, Alexander... — observou Dusia. - Percebo muito bem. — Não diminuiu a pressão na perna dela. Tatiana crispou os dedos na borda da mesa: - Shura, por favor — disse em voz rouca. A mão dele apertou-lhe mais a coxa. As mãos dela apertaram mais a mesa. - Não, Tania. E o mínimo que podem fazer. Não acha, Naira Mikhailovna? - Pensava que a Tania gostava de fazer estas coisinhas. - Sim, achávamos que lhe dava prazer — concordou Dusia. Alexander assentiu: - Claro que sim, Dusia. Só lhe falta baixar-se para vos lavar os pés. Mas não

vos parece que os discípulos também devem servir Jesus de vez em quando? - Que tem Jesus a ver com isto? — gaguejou Dusia. O seu abraço de ferro apertou-se. Tatiana abriu a boca e... - Está bem - atirou Zoe. — Nós levantamos a mesa. Alexander largou-lhe a coxa com uma palmadinha afetuosa. Ela soltou o ar. Passado um momento, conseguiu tirar os dedos da mesa. Não

estava capaz de olhar para ele nem para ninguém. - Zoe, Vova, obrigado — agradeceu Alexander, rindo para Tatiana, que

per¬manecia imóvel. - Vou fumar um cigarro — anunciou. Ela continuou sem se mexer. Quando saiu, as velhotas inclinaram-se para ela e baixaram a voz: - Tania, ele é muito agressivo - segredou Naira.

Page 434: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

434

- O problema é que Deus não existe para o Exército Vermelho - acrescentou Dusia. — A guerra endureceu-o.

E Axinya: Sim, mas vejam como protege a nossa Tanechka. É adorável. - Se cair, perdemos a guerra - replicou Alexander. - Há mais vodca? Tatiana encheu-lhe um copo. - Quantos homens perderemos em Estalinegrado para travar Hitler? -

per¬guntou Dusia. - Os que forem precisos. Ela benzeu-se. Muito afogueado, Vova falou com agitação: - Moscovo foi um verdadeiro banho de sangue. Tatiana ouviu Alexander suster a respiração. «Oh, não!», pensou. «Cenas não,

por favor!» - Vova - começou ele, debruçando-se à frente de Tatiana (que se encostou a

ele) e lançando ao rapaz um olhar de poucos amigos -, sabes o que é um banho de sangue? Moscovo tinha oitocentos mil soldados antes do início da batalha, em outubro. Sabes quantos ficaram? Noventa mil. Sabes quantos homens morreram só nos primeiros seis meses de guerra? Quantos jovens foram mortos ainda antes de a Tania sair de Leninegrado? Quatro milhões - anunciou em voz alta. - E um desses jovens podias ser tu, Vova. Portanto, não andes por aí a chamar-lhe um banho de sangue como se fosse um jogo.

Calaram-se todos. Tatiana continuava encostada a Alexander: - Queres beber mais? - Não. Já chega. - Então vou levantar... Alexander pôs a mão debaixo da mesa e pousou-a na perna dela, abanando a

cabeça muito ao de leve e impedindo-a de se levantar. Tatiana permaneceu sentada e ele não retirou a mão. Ao princípio, o

vestidode algodão estava entre a mão dele e a coxa dela, mas parece que Alexander não gostou, porque puxou-lho para cima de modo a agarrar-lhe a coxa com a mão nua. A tensão que sentia no ventre intensificou-se.

— Não levantas a mesa, Tanechka? — sugeriu Dusia. - Estamos mortinhos por comer a tua torta. E por beber um chá.

A mão de Alexander apertou-a com mais força e subiu um pouco. Tatiana cerrou os dentes. Dali a exatamente um segundo desataria a gemer mesmo ali à mesa, à frente das quatro senhoras.

— Ela cozinhou maravilhosamente para nós - comentou Alexander. - Exce¬deu-se. Agora está cansada. E se lhe poupássemos trabalho? Zoe, Vova... podem levantar a mesa?

— Não está a perceber, Alexander..observou Dusia. — Percebo muito bem. — Não diminuiu a pressão na perna dela.

Page 435: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

435

Tatiana crispou os dedos na borda da mesa: — Shura, por favor — disse em voz rouca. A mão dele apertou-lhe mais a coxa. As mãos dela apertaram mais a mesa. — Não, Tania. E o mínimo que podem fazer. Não acha, Naira Mikhailovna? — Pensava que a Tania gostava de fazer estas coisinhas. — Sim, achávamos que lhe dava prazer — concordou Dusia. Alexander assentiu: — Claro que sim, Dusia. Só lhe falta baixar-se para vos lavar os pés. Mas não

vos parece que os discípulos também devem servir Jesus de vez em quando? — Que tem Jesus a ver com isto? - gaguejou Dusia. O seu abraço de ferro apertou-se. Tatiana abriu a boca e... — Está bem - atirou Zoe. - Nós levantamos a mesa. Alexander largou-lhe a coxa com uma palmadinha afetuosa. Ela soltou o ar. Passado um momento, conseguiu tirar os dedos da mesa. Não

estava capaz de olhar para ele nem para ninguém. — Zoe, Vova, obrigado — agradeceu Alexander, rindo para Tatiana, que

per¬manecia imóvel. — Vou fumar um cigarro — anunciou. Ela continuou sem se mexer. Quando

saiu, as velhotas inclinaram-se para ela e baixaram a voz: — Tania, ele é muito agressivo — segredou Naira. — O problema é que Deus não existe para o Exército Vermelho - acrescentou

Dusia. — A guerra endureceu-o. E Axinya: — Sim, mas vejam como protege a nossa Tanechka. É adorável. Tatiana olhava-as sem compreender. De quefalavam?O que diziam?O

queacontecera? - Estás a ouvir, Tania? Levantou-se. O seu único defensor no mundo, o seu atirador e brigada de

batalha, teria o seu apoio incondicional: - O Alexander não é duro, Dusia. Tem toda a razão. Não devia ser eu a fazer

tudo. Beberam chá e comeram a torta de mirtilos, que estava tão boa que em breve

não sobrou nada. Quando as senhoras saíram para fumar, Zoe apertou o braço de Alexander, sorriu com recato e voltou a perguntar-lhe se queria ir à fogueira. Ele afastou-lhe a mão e respondeu outra vez que não.

Tatiana só queria que Zoe desaparecesse. - Oh, vá lá — insistiu Zoe. — A Tania também vai. Com o Vova - acrescentou. -Já não vai - sussurrou ele, olhando para Tatiana, que punha açúcar no chá, - Conta ao Alexander aquela anedota horrível da semana passada, Tania -

pediu Vova. - Era tão horrível que quase morremos.

Page 436: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

436

- Pensava que já tinha ouvido todas as anedotas horríveis da Tania - replicou ele. Havia qualquer coisa de tão dolorosamente familiar e reconfortante no fato de estar sentada ao seu lado, que Tatiana sentiu uma grande vontade de lhe encos¬tar a cabeça ao ombro. Mas não o fez.

- Conta-lhe a anedota. - Não me parece. Vova fez-lhe cócegas: - Vá lá! Ele vai morrer a rir. - Para, Vova! — ordenou ela, lançando um olhar a Alexander, que bebia o chá

com ar de poucos amigos, sem dizer nada. - Não conto - afirmou, subitamente embaraçada. Sabia que ele não ia gostar da anedota e não queria provocar o seu desagrado por uma parvoíce.

- Não, não. — Virando-se para ela e pousando a chávena: - Adoro as tuas anedotas. — Sorriu. — Quero ouvir.

Tatiana suspirou e fitou a mesa: - O Chapayev e o Petka estão a combater em Espanha. Diz o Chapayev:

«Porque estão as pessoas a gritar? Quem chegou?» «Oh, uma tal Dolores Eba- nulli1», responde o Petka. «E que está ela a gritar?», pergunta Chapayev. Responde o Petka: «Que antes de pé do que de joelhos.»

Vova e Zoe rebentaram a rir. A autora refere-se certamente a Dolores Ibárruri, La Pasiomria (1895-1989),

figura de proa do Partido Comunista Espanhol e da resistência ao regime franquista. «Antes morrer de pé do que viver dejoelhos» conta-se entre uma das suas mais famosas citações. (N. da T.)

Alexander permaneceu de pedra, tamborilando na xícara: - São as anedotas que contam nas fogueiras de sábado à noite? Tatiana não respondeu nem olhou para ele. Já sabia que Alexander não ia

gostar. Vova deu-lhe uma cotovelada ao de leve: - Vamos lá hoje à noite, não é? - Não, Vova, hoje não. - Porquê? Vamos sempre. Antes de ela ter tempo para responder, Alexander, ainda com as mãos em

volta da chávena, ergueu a cabeça: - Ela já disse que não. Quantas vezes terá de to repetir antes de a ouvires?

Zoe, quantas vezes terei de to repetir até me ouvires? Vova e Zoe ficaram a olhar para os outros dois. - Que se passa? — perguntou Vova, confuso. - Vá, vão lá para a vossa fogueira. E despachem-se. Vova abriu a boca para falar, mas Alexander levantou-se, fitou-o de olhos nos

olhos e repetiu com calma e devagar:

Page 437: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

437

- Vão. — O seu tom de voz não admitia protestos. De resto, também não teve nenhum. Vova e Zoe saíram.

Tatiana abanou a cabeça, admirada. Alexander debruçou-se e perguntou em voz rouca:

- Gostaste? — Deu-lhe um beijo na cabeça e foi fumar um cigarro. Depois de levar a roupa da cama para a varanda, Tatiana ajudou as senhoras a

deitarem-se. Quando acabou, Alexander continuava sentado no banco do quin¬tal. Os grilos não se calavam. Ouviu um uivo distante e o piar de uma coruja. Foi lavar os pratos de sobremesa.

—Tania, queres parar de andar às voltas? Vem para aqui. Ela aproximou-se nervosamente, com as mãos ainda molhadas. O

formi¬gueiro constante que sentia no baixo-ventre não diminuíra com o jantar, os pratos, as velhinhas nem a roupa suja. Com nada.

- Mais perto - disse ele, observando-a por uns segundos. Depois, atirou o cigarro ao chão, pousou-lhe as mãos nas ancas e puxou-a para o meio das pernas abertas.

Tatiana mal se tinha em pé. Ele fitou-a por um momento e encostou-lhe a cabeça ao peito, mesmo abaixo

dos seios. Sem saber o que havia de fazer às mãos, pousou-lhas com cuidado na cabeça.

O seu cabelo era curto, espesso, liso e seco. Gostou de o sentir. Fechou os olhos, tentando respirar normalmente.

- Estás bem? — murmurou ela. - Estou, sim. Tatia, em vez de pensares em ti, não podias ter-te lembrado uma

vez de mim? Só cinco segundos? Para imaginares o que eu passei durante seis meses?

- Podia. Desculpa. - Fazendo-o, pensando em mim durante cinco segundos e escrevendo-me,

terias recebido cartas que afastariam todos os teus receios. E tu afastarias os meus. - Eu sei. Desculpa. - Pensei que só podia haver duas explicações para o teu silêncio. Ou tinhas

morrido, ou... — fez uma pausa — .. .tinhas encontrado alguém. Nunca imaginei que as mentiras que disse fossem calar tão fundo dentro de ti. Achava que eras capaz de ver a verdade.

- Eu? Capaz? - perguntou docemente, afagando-lhe a cabeça. - E tu? - «Eu encontrei alguém?», pensou. — Francamente!

Ele esfregou a testa contra ela: - O que te chamou a Axinya? Pãozinho quente? Não conseguia respirar: - Sim - gaguejou. — Pãozinho quente. As mãos de Alexander comprimiram-lhe as ancas: - Um pãozinho quente e pequenino - sussurrou.

Page 438: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

438

Com os dedos a tremer, Tatiana acariciou-lhe o cabelo muito, muito ao de leve. Respirava tão superficialmente que o ar não lhe chegava aos pulmões.

- Isto é muito apertado, mesmo em termos da Quinto Soviete - disse Ale¬xander por fim.

- O quê? — segredou ela, tentando não perturbar a noite. - Nós? Ou esta casa? - Nós? - repetiu com surpresa, olhando-a. - Não. Esta casa. Tatiana arrepiou-se. - Tens frio? Assentiu, esperando que ele não lhe tocasse na pele em fogo. - Queres ir para dentro? Tornou a assentir com relutância. Tudo o que queria era as mãos dele

per¬manecendo nela, apertando-lhe as ancas, enlaçando-lhe a cintura, em volta das costas, em redor das pernas, em todo o lado, em qualquer lado, mas apertando-a sem nunca a largarem.

Ele levantou a cabeça. Entreabrindo os lábios, ela ia a inclinar-se... De repente, ouviu Naira Mikhailovna arrastando os pés na varanda.

Alexan¬der baixou as mãos e a cabeça. Ela recuou contra a sua vontade, mesmo na altura em que Naira descia as escadas, murmurando:

- Esqueci-me de ir à casa de banho. Claro. - Alexander nem sequer se deu ao trabalho de sorrir. Naira parou a observar Tatiana: - Que estás a fazer a pé? Vai-te deitar, querida. Já é muito tarde e sabes bem

que acordamos cedo. - Está bem, Naira Mikhailovna. Quando Naira desapareceu na esquina, Tatiana pousou o olhar em Alexander

que a fitava tristemente. Encolheu os ombros, também tristemente, e entrou em casa. Foi buscar uma camisa comprida à arca e pensou: «Onde me dispo?» Ele parecia não ter tantas reservas, porque tirou a camisa mesmo à frente dela. Depois, deixando as calças de linho vestidas, saltou para a cama. Tatiana nunca o vira sem uniforme, sem camisa, sem ceroulas; nunca o vira nu. Era muito musculoso. Alguma vez iria recuperar o fôlego? Não lhe parecia.

Não podia despir o vestido e enfiar a camisa de noite. Decidiu ficar como estava.

- Boa noite. - Baixou a luz da lanterna de querosene. Alexander não res¬pondeu.

Naira atravessou a casa até ao quarto: - Boa noite. Tatiana respondeu-lhe, mas Alexander não emitiu um único som. Ainda com o vestido, estava debaixo do cobertor no sofá da varanda quando

ouviu a voz profunda de Alexander chamando-a lá de dentro: - Tatia.

Page 439: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

439

Levantou-se e parou timidamente à entrada. - Anda cá. — A voz abafada falhou-lhe. O que mais desejava era ir ter com ele, mas estava com muito medo. Deu a

volta à mesa. - Sobe para o fogão. Ela obedeceu e aproximou o rosto. Antes de ele ter tempo para falar ou abrir

a boca, Tatiana tomou-lhe a cabeça nas mãos e beijou-o. - Anda cá — sussurrou, tentando puxá-la. - Oh, Shura, não posso... Vai ser um falatório... — Não conseguia parar de o

beijar. - Até podia vir nos jornais de amanhã... Anda cá. — Iaçou-a pelos braços e

entrelaçou-se nela. O seu corpo enorme engolia-a enquanto se beijavam com paixão. - Meu Deus, Tatia! Oh, meu Deus, tive tantas saudades!

- Eu também. — De lábios entreabertos, afagava-lhe as costas. - Tantas! - Ele parou de a beijar e de se encostar a ela e chegou-a a si, aninhando-a dentro dele. Tatiana nem acreditava na sensação que era tocar-lhe as costas nuas e os ombros e os braços musculosos.

Ele esmagava-a, beijava-a com mais insistência, acariciava-a toda. Só tinha |duas mãos? Então como estavam em todo o lado ao mesmo tempo? Rodeada por ele, sentia-se incapaz de manter os olhos abertos, e no entanto o que mais desejava vê-lo, não o perder de vista nem por um segundo. Alexander puxou-lhe o vestido até à cintura e tocou-lhe na perna nua. Involuntariamente, entreabriu as pernas e gemeu para os seus lábios.

- Oh, Tania — sussurrou ele, sorrindo. — Geme, mas não muito alto. Espera, não muito alto.

Abriu mais as pernas. A mão dele acariciou-lhe o interior da coxa. - Não - gemeu. Para, por favor. Ele lambeu-lhe os lábios. -Tania, as tuas coxas... - sussurrou. A mão subiu-lhe. Ela tentou afastar-se, mas não tinha para onde ir. - Shura - murmurou. - Por favor. Para. - Não posso. Elas dormem bem? -Não, nada. Acordam até com um grilo dentro de casa. Levantam-se cinco

vezes para irem à casa de banho. Por favor. Não consigo estar calada. Tens de me sufocar para eu me calar.

Continuaram a segredar para a boca úmida um do outro. - Para - murmurou ela. - Para. - Mas não conseguiam. Alexander afastou-lhe relutantemente a mão da perna e pousou-lha no ventre

nu, debaixo do vestido. - Gosto deste vestido. - Não estás a tocar no vestido. - Não. É bom. Macio. Tira-o.

Page 440: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

440

- Não. - Empurrou-o ao de leve. Ficaram relativamente quietos durante uns minutos, enquanto recuperavam o

fôlego. Depois, os dedos de Alexander voltaram a esfregar-lhe a perna. -Para com isso. - Vibrava das coxas ao umbigo. - Não me toques. - Não consigo. Esperei de mais por ti. - Debruçando-se sobre ela, pousou- -lhe

os lábios no pescoço. - Não me desejas, Tania? Diz-me que não me desejas. - Tentou puxar-lhe o vestido dos ombros. - Tira-o.

- Por favor - ofegou. — Vá lá, Shura. Não consigo estar calada. Tens de parar. Não lhe deu ouvidos. O vestido saiu primeiro de um braço e depois do outro. Alexander pegou-lhe na mão e pousou-a no peito. - Sentes o meu coração? Não queres deitar-te contra o meu peito? - implorou.

- Os teus seios nus no meu peito, o teu coração encostado ao meu. Vá, só um bocadinho. Depois podes voltar a vestir-te.

Ela fitou silenciosamente na escuridão os seus olhos ardentes de bronze, a sua boca úmida. Como poderia dizer-lhe que não? Levantou os braços. Alexander fez- Ihe deslizar o vestido pela cabeça. Ela fez menção de tapar os seios e ele impediu-a:

-Tira as mãos. Deitando-se de costas: - Anda, deita-te em cima de mim. - Não queres tu deitar-te em cima de mim? — perguntou ela docemente. Ele puxou-a: - Se queres que eu pare, não. Gemendo, Tatiana deitou-se cuidadosamente no seu peito. - Oh, Tania! — Abraçou-a. — Sentes? - Sinto. — O coração rebentava-lhe dentro do peito. As mãos dele passearam-lhe das costas para as coxas, acariciando-a por cima

da calcinha, puxando-as um pouco para baixo e afagando-lhe as nádegas nuas. Soerguendo-a, pôs-lhe as mãos nos seios:

- Há um ano que sonho com os teus seios tão bonitos! - Sorriu, respirando pela boca entreaberta. Tatiana quis dizer-lhe que há um ano que sonhava com suas mãos belas e imparáveis acariciando-a, mas não conseguiu falar. Quis dizer -lhe que há um ano que sonhava com a sua boca bonita e imparável beijando-lhe os seios, mas não conseguiu falar. O que lhe apetecia era curvar-se sobre ele e pôr -lhe o mamilo na boca. Como era tímida de mais para o fazer, limitava-se a con¬templar-lhe o rosto e a ofegar.

Alexander fechou os olhos: - Tatia, por favor, cala-te. Não posso mais. - Puxou-lhe os mamilos. Ela

ge¬meu tão alto que ele parou, mas não por muito tempo. Empurrando-a, deitou-a de costas. — Olha para ti - sussurrou. Chupou-lhe os mamilos. Tatiana crispou as mãos no lençol. Alexander levou-lhe uma mão à boca e a outra à coxa. - Achas que tenho fome?

Page 441: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

441

- Hum... — ofegou para a palma da sua mão. - Não tenho fome. Estou faminto. Tem cuidado comigo. Não faças barulho. —

Pôs-se em cima dela. - Tania, meu Deus... vou tapar-te a boca assim e tu agar¬ras-te aos meus braços... assim... e eu... assim...

Tatiana gritou tão alto que ele parou, deitou-se de lado, passou o braço pelo rosto e soltou um queixume.

Ficaram deitados junto um do outro. Apenas as suas pernas se tocavam, as dela nuas e as dele ainda com as calças. Alexander continuava com o braço escon¬dendo-lhe o rosto.

Tatiana tornou a vestir-se relutantemente. - Vou morrer — segredou-lhe ele. — Morrer, Tatiana. « Tu é que vais morrer?», pensou ela, começando a gatinhar para descer. Alexander impediu-a: - Onde vais? Dorme comigo. - Não, Shura. - Porquê? — Sorriu, ainda ofegante. — Não confias em mim? - Nem por um segundo. - Devolveu-lhe o sorriso. - Prometo portar-me bem. - Não. Elas saem do quarto e vêem. - Vêem o quê? E depois? - Não lhe largava os braços. - Aqui, Tatia. - Deu umas

palmadinhas no peito. - Como fizeste em Luga, lembras-te? Chamaste-me para junto de ti. Agora sou eu.

Tatiana gatinhou para só pés dele e pousou-lhe a cabeça na axila. Alexander puxou os cobertores e abraçou-a. Ela levou-lhe a mão ao peito nu e macio, e sen¬tiu-lhe o coração acelerado:

-Shura, querido... - Eu fico bem — afirmou, com voz de quem não ficaria. - Tal e qual como em Luga. — Afagou-lhe o peito docemente. - E se fosse um bocadinho mais abaixo? Estava a brincar, estava a brincar -

apressou-se a dizer quando ela parou. - Adoro sentir o teu cabelo - sussurrou- lhe, acariciando - lhe a cabeça e beijando-a na testa. - Adoro sentir-te toda.

- Não, Shura, por favor. — Beijou-lhe o peito e fechou os olhos. Sentia um consolo infinito nos seus braços. Os dedos dele afagando-lhe a cabeça forçavam- na a fechar os olhos. — Que bom! — murmurou.

Passaram minutos. Minutos ou... Talvez segundos. Momentos. Um abrir e fechar de olhos. - Tania, estás a dormir? - Não. — Olharam um para o outro e sorriram. Entreabriu a boca para o beijar, mas ele abanou a cabeça; - Não. Se me queres longe de ti, não aproximes os lábios.

Page 442: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

442

Tatiana beijou-lhe o ombro. Acariciaram-se. - Shura, estou tão feliz por teres vindo! - Eu sei. Eu também. Esfregou os lábios na pele dele. - Queres falar, Tania? -Quero. - Então conta-me tudo. Começa do principio. Não pares ate acabares. Ela assim fez, mas só conseguiu chegar ao trenó junto ao buraco aberto no

gelo do lago. Ele também. Depois, adormeceu e só acordou quando o galo cantou.

Page 443: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

443

7

- Valha-me Deus! - exclamou, tentando desembaraçar-se dele -Larga-me.Tenho de ir, depressa.

Profundamente adormecido, Alexander não se mexeu. Tinha o sono pesado. Conseguiu libertar-se do seu braço e saltou do fogão.

Enfiou um vestido lavado e foi a correr buscar água ao poço, ordenhar a cabrae trocar o leite por leite de vaca. Quando regressou a casa, Alexander, já levantadoestava a barbear-se.

-Bom dia — saudou ele, sorrindo. -Bom dia. - Muito embaraçada para levantar o olhar: - Deixa-me ajudar-te. -

Sentou-se numa cadeira à frente dele e segurou num pequeno espelho par¬tido contra o peito. Ele cortava-se uma e outra vez, como se a navalha não estivesse afiada. — Ainda te matas com essa coisa. Mas o que vos dão no Exército? Se calhar devias voltar a deixar crescer a barba.

- Não é a navalha, que até está muito afiada. - Então o que é? - Nada, nada. Viu-o fitando-lhe os seios. - Alexander... — começou, pousando o espelho. - Oh, agora que está de dia, voltei a ser Alexander? Tatiana não conseguiu olhar para ele, mas também não pôde deixar de sorrir.

Sentia-se tanto nas nuvens que quase passara por casa sem dar por isso ao regressar com os dois baldes de leite.

Alexander fez café, serviu-a e foram sentar-se em silêncio lá para fora. Beberam o líquido quente embalados pela brisa da manhã, tocando-se ao de leve.

- Está um lindo dia - disse ela baixinho. -Está um dia radioso — retorquiu ele, virando-se com um grande sorriso

estampado no rosto. Naira chamou-a e ela entrou. Alexander foi juntar as suas coisas. - Que estás a fazer? — perguntou-lhe com uma ponta de ansiedade quando

ele regressou. - Vamos sair daqui. Já. - Vamos? — Um sorriso iluminou-lhe o rosto. - Vamos. - Não posso. Tenho de lavar roupa e de fazer o pequeno-almoço. - Precisamente por isso, Tania. Quero estar antes da roupa. Quero estar antes

do pequeno-almoço. - Observou-a.

Page 444: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

444

Ela recuou: Olha, anda ajudar-me. Assim vai mais depressa. - E depois vens comigo? - Vou. - respondeu, num tom quase inaudível. Mas Alexander sorriu-lhe e ela

percebeu que ele ouvira. Fez ovos e batatas para toda a gente. Alexander engoliu a comida: - Vamos lavar a roupa. Pegou no cesto e encaminhou-se depressa para o rio. Tatiana, com a tábua de

esfregar e o sabão, mal conseguia acompanhá-lo. - Então diz lá: desde quando contas anedotas grosseiras na presença de um

grupo de jovens? Tatiana abanou a cabeça: - Shura, foi só uma anedota parva. Não sabia que ias ficar zangado. - Sabias, sim senhor. Por isso é que não a querias contar à minha frente. Ela corria ao seu lado: - Não queria que ficasses zangado. - Porque havia de ficar zangado? Alguma vez me zanguei com as tuas

anedotas? Antes de responder, Tatiana tentou perceber o que continuava a roê-lo. O fato de a anedota ser pouco própria? De ser indecente? De a ter contado a

Vova? A pessoas que Alexander não conhecia? De não ter a ver com ela? De não se coadunar com o que conhecia dela? «Sim», decidiu. «E a última hipótese.» E mencionava o assunto naquele momento porque estava preocupado com alguma coisa. Não disse nada até chegarem ao rio:

- Nem sei bem o que quer dizer. Ele lançou-lhe um olhar: - Mas percebes mais ou menos? «Ah!», pensou. «Está preocupado comigo.» Não respondeu. Entrou na água e

molhou a tábua de esfregar e o sabão. Alexander contemplava-a, fumando um cigarro: - Como consegues que esse vestido branco não fique molhado? - A parte de baixo fica um bocadinho. O que foi? - Corando: - Para onde estás

a olhar? - O vestido não se molha todo? — Sorria de orelha a orelha. - Claro que não. Não me ponho a lavar roupa com água até ao pescoço. Alexander apagou o cigarro e tirou a camisa e as botas: - Deixa-me fazer isso. Passa-me a roupa. Era ao mesmo tempo adorável e incompreensível ver um capitão do Exército

Vermelho com água até aos joelhos, sem camisa e com os braços cheios de sabão concentrado numa tarefa feminina, enquanto Tatiana, bem enxuta, lhe passava a roupa suja. De fato, achou a situação tão divertida que quando o viu deixar cair uma

Page 445: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

445

fronha ao rio e curvar-se para apanhar, aproximou-se dele sem fazer barulho empurrou-o, fazendo-o tombar na água.

Quando surgiu de novo à superfície, Tatiana ria tanto que precisou de segundos para subir a margem a correr, fugindo dele. Alexander apanhou.-a em três passadas.

- Não tens lá muito equilíbrio, grandalhão. — Soltando uma gargalhada: - E se eu fosse um nazi?

Sem dizer palavra, levou-a para o rio. - Pousa-me imediatamente no chão. Olha que tenho um vestido muito bonito. - Pois tens. — Atirou-a para a água. Levantou-se, encharcada: - Vê o que fizeste. — Atirando-lhe com água: - Agora tenho de ficar assim. Alexander tomou-a nos braços, beijou-a e ergueu-a no ar. Tatiana sentiu deslizavam para trás... e caíram. Quando voltaram à tona para respirai, já sem

qualquer tipo de decoro, saltou para o obrigar a mergulhar, mas não pesava o suficiente. Ele virou-se e meteu-lhe a cabeça debaixo de água por uns segundos enquanto ela lhe agarrava a perna.

- Rendes-te? — perguntou ele, deixando-a vir ao de cima. - Nunca! - gritou. Ele empurrou-lhe de novo a cabeça para debaixo de água. - Rendes-te? - Nunca! Obrigou-a outra vez a mergulhar. A quarta vez, já sem fôlego, Tatiana gritou: - Espera! A roupa, a roupa! Roupa interior, fronhas... tudo flutuava alegremente. Alexander foi apanhá-las. Escorrendo água e rindo à gargalhada, Tatiana

vol¬tou para a margem. Ele saiu da água, pousou a roupa no chão e aproximou-se: - O que foi? — Sem perceber a sua expressão: — O que foi? - Olha para ti. — Com intensidade: — Os teus mamilos... o teu corpo com esse

vestido. Levantou-a: - Põe as pernas à volta da minha cintura. - O quê? — Lançou-lhe os braços ao pescoço e beijou-o. - Abre as pernas e põe-nas à volta da minha cintura. - Segurando-a com uma

mão nas nádegas, passou-lhe uma perna à volta do corpo. - Assim. - Shura... pousa-me. - Não. Os seus lábios úmidos não tinham descanso. Quando abriram os olhos, Alexander teve mesmo de a pousar: na clareira, seis

mulheres da aldeia, de cestos nas mãos, observavam-nos com uma expressão de perplexidade e censura.

Page 446: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

446

Já nos íamos embora - gaguejou Tatiana, enquanto Alexander lhe punha aos ombros uma peça de roupa molhada para lhe tapar o vestido transparente, usava soutien, que de resto nem tinha, e estava pela primeira vez na vida consciente dos mamilos salientes, visíveis através da roupa. Era como se de repente se visse com os olhos dele. — Amanhã toda a aldeia vai saber. Que humilhação!

- Eu diria que podia ser pior — retorquiu ele, inclinando-se. - Imagina se tivesse chegado três minutos mais tarde!

Corando, não respondeu. Ele riu-se e rodeou-a com o braço. Quando chegaram a casa, Tatiana com o vestido molhado e Alexander de

calças encharcadas e sem mais nada, as senhoras olharam-nos, pasmadas. - As roupas fugiram-nos — começou Tatiana, sentindo que a explicação não

era satisfatória. — Tivemos de entrar na água para as apanhar. - Nunca ouvi nada assim na minha vida - replicou Dusia, benzendo-se. Alexander desapareceu dentro de casa e regressou cinco minutos depois evergando as calças caqui do Exército, as botas pretas da tropa e a camisa

branca com mangas que Tatiana lhe fizera - A jovem espreitou-o por entre os lençóis que pendurava ao acaso e viu-o agachado, vasculhando a mochila. De perfil, com os braços musculosos nus, o corpo de soldado, o cabelo preto molhado e despenteado, um cigarro ao canto dos lábios... até ficou sem ar. Era tão bonito! Ele virou a cabeça e sorriu-lhe.

-Tenho aqui um vestido para ti. — Tirou da mochila o vestido branco com as rosas vermelhas, contando-lhe que o trouxera da Quinto Soviete.

-Já não me deve servir - observou, muito comovida. - Mas eu depois expe¬rimento.

- Está bem. — Meteu-o outra vez na mochila. - Veste-lo para mim um dia destes. - Pegando na espingarda e nos seus outros haveres: - Não precisas de nada daqui. Vamos.

- Para onde? - Para longe daqui. — Baixando a voz: — Para onde não sejamos

interrompidos. Fitaram-se. -Traz dinheiro. - Pareceu-me ouvir-te dizer que não era preciso nada. - E o passaporte. Talvez vamos a Molotov. A agitação que sentia venceu a culpa que a assaltou ao comunicar as quatro

velhinhas que se ia embora. - Voltas para o jantar? — indagou Naira. Alexander pendurou a espingarda a tiracolo e deu a mão a Tatiana: - Provavelmente não. - Mas, Tania, temos a costura hoje à tarde. -Pois... - disse Alexander. - A Tania hoje não vai. Mas divirtam-se muito. Correram para o rio. A jovem nem sequer olhou para trás.

Page 447: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

447

- Onde vamos? - Para casa dos teus avós. - Porquê? Está tão desarrumada... - Logo veremos. - E tivemos lá uma discussão tão grande ontem... - Não. — Mirando-a: — Sabes o que se passou ontem? Sabia. Não respondeu e apertou-lhe mais a mão. Quando chegaram à clareira, entrou dentro da izba, que estava vazia mas

imaculada. Era uma casa só com uma divisão, quatro janelas compridas e um grande fogão ao centro, que ocupava metade do compartimento. Não tinha uma única peça de mobiliário, mas o chão de madeira fora esfregado, as janelas estavam limpas e as cortinas, lavadas e secas, já não cheiravam a mofo. Espreitou para fora. Ajoelhado de costas para ela, Alexander espetava uma estaca da tenda no solo. Levou a mão ao coração. «Vá, acalma-te», pensou com os seus botões,

Foi apanhar um molho de galhos para o caso de ele querer fazer uma fogueira.

Naquela tarde soalheira de junho, percorreu as margens arenosas do rio Kama, juncadas de agulhas de pinheiro, com o coração apertado de medo e amor.

Descalçou as sandálias e mergulhou os pés na água fresca. Não podia aproximar-se de Alexander naquele momento, mas talvez fossem nadar juntos mais tarde.

- Cuidado! — ouviu gritar atrás de si. Só com as cuecas vestidas, Alexander correu para a água e mergulhou. — Queres vir tomar banho, Tania?

Abanou a cabeça. O coração batia-lhe desenfreado dentro do peito. - Estou a ver que sabes nadar muito bem — comentou ao vê-lo nadar de

costas. Ele levantou a cabeça da água: - Sei nadar. Anda, vamos fazer uma corrida. — Sorrindo: - Debaixo de água.

Até ao outro lado. Se não estivesse tão nervosa, teria aceitado com prazer. Ele saiu da água, alisando o cabelo molhado. O peito, as pernas e os braços

nus reluziam. Ria; parecia que brilhava por dentro. Não conseguia tirar os olhar do seu corpo rijo e magnífico. As cuecas molhadas colavam-se-lhe...

Não, não ia conseguir. - É bom. - Aproximando-se dela: — Anda, vamos ao banho. Tatiana voltou a abanar a cabeça e recuou com as pernas pouco seguras para

a clareira, onde se pôs a apanhar mirtilos dos arbustos baixos. «Por favor, acalma -te», repetia a si própria. «Por favor.»

Tatia — chamou ele baixinho atrás de si. Virou-se. Estava a secar-se. Estendeu-lhe um punhado de mirtilos; ele aceitou-os, mas não lhe largou a mão e puxou-a docemente para o chão. — Senta-te um bocadinho.

Page 448: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

448

Instalou-se na erva e Alexander ajoelhou-se à sua frente, inclinou-se beijou-lhe oslábios muito ternamente. Tatiana acariciou-lhe os braços. Mal conseguia respirar.

_ Tatia.. Tatiasha - murmurou em voz rouca, pegando-lhe nas mãos e beijou-lhe ospulsos e a parte de dentro dos braços.

_ Sim? - perguntou em voz igualmente rouca. _ Estamos sozinhos. _ Eu sei - replicou, abafando um gemido. _ Temos privacidade. - Hum. - privacidade, Tania! - Olhou-a intensamente: - Temos privacidade pela

pri¬meira vez na vida. Tivemos ontem e temos hoje. Não suportava a emoção dos seus olhos cor de leite-creme. Baixou a cabeça. - Olha para mim. - Não consigo — balbuciou. Alexander tomou-lhe o rosto pequeno nas mãos enormes: - Estás com... medo? - Aterrorizada. - Não, não tenhas medo de mim, por favor. - Beijou-a nos lábios com tanta

intensidade e amor que ela sentiu o formigueiro do ventre espalhar-se-lhe por todo o corpo. Cambaleou, fisicamente incapaz de continuar sentada direita.

-Tatiasha... Porque és tão bonita? Por quê? - Sou mas é um trapo. Olha para ti. Ele abraçou-a: - Meu Deus, que bênção! - Afastou-se e tomou-lhe as mãos: - És o meu

milagre. Sabes disso, não sabes? Deus mandou-te para me dar fé. - Depois de uma pausa: — Para me redimir, reconfortar e consolar... e isto é só o começo - acrescentou com um sorriso. — Mal consigo controlar-me neste momento. Quero muito fazer amor contigo... — Calou-se. — Sei que tens medo, mas nunca farei nada que te magoe. Vens comigo para dentro da tenda?

- Vou — respondeu Tatiana baixinho, mas de modo audível. Alexander levou-a ao colo, pousou-a no cobertor e fechou a tenda. Lá dentro imperava o lusco-fusco. Apenas uns raios de sol se filtravam pelas frestas. - Ter-te-ia levado para dentro da casa acolhedora e limpa, mas não temos

mantas nem almofadas, o chão é de madeira e a tampa do fogão dura. - Hum - murmurou ela. - A tenda está bem. - Por ela, até podia estar no chão

de mármore de Peterhof. Alexander abraçava-a, mas tudo o que ela queria era estar deitada a sua

frente. Como fazia ele aquilo? Shura — sussurrou. - Sim? — segredou ele, beijando-lhe o pescoço.

Page 449: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

449

Mas não fazia... não fazia mais nada, como se estivesse à espera, ou a pensar ou...

Ele afastou-se e Tatiana viu nos seus olhos reservados que alguma coisa o inquietava.

- O que foi? Não conseguiu olhar para ela: - Disseste-me tantas coisas ontem... não que eu não as merecesse todas - Não as mereces todas. - Sorriu: - O que foi? Ele inspirou profundamente. - Vá lá. - Sabia o que queria dela. Ele permanecia de olhos baixos. Tatiana abanou a cabeça: - Levanta a cara. Olha para mim. - Ele obedeceu. Ajoelhando-se à sua frente

tomou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-lhe os lábios: - Alexander, a resposta é sim... sim... claro que me guardei para ti. Pertenço-te. O que pensavas?

Os seus olhos felizes, aliviados e ansiosos viraram-se na direção dela: - Oh, Tania! - Não falou por um momento. - Não fazes idéia... do que isso

significa para mim... - Chiu!— segredou ela. Sabia. Ele fechou os olhos: - Tinhas razão - continuou com emoção. - Não mereço o que tens para me dar. - Então quem merece? - Abraçando-o: - As tuas mãos? Quero-as em mim. - As minhas mãos? — Beijou-a com paixão: — Levanta os braços. - Tirou-lhe o

vestido, deitou-a no cobertor e ajoelhou-se por cima dela, passeando-lhe os lábios pelo rosto e pescoço, explorando-lhe o corpo com os dedos sedentos. - Quero-te completamente nua, sim? - sussurrou.

- Está bem. Tirou-lhe a calcinha branca de algodão. Sentindo-se fraca, Tatiana observou-o

contemplando-a na sua fraqueza. - Não, não posso... — disse ele. Pousou-lhe a face nos seios: - O teu coração disparou... — Lambeu-lhe os mamilos: — Não tenhas medo. - Está bem - balbuciou com as mãos no seu cabelo úmido. Alexander debruçou-se sobre ela e murmurou: - Diz-me o que queres que eu faça e eu avançarei o mais devagarinho que

precisares. O que queres? Não conseguiu responder. O que queria era pedir-lhe que a aliviasse

imediatamente daquele fogo, mas não podia. Tinha de confiar nele. Com a palma da mão comprimindo-lhe o ventre, Alexander sussurrou: - Olha para os teus mamilos molhados e eretos suplicando-me que os chupe. - Chupa-os — segredou ela, gemendo. Ele assim fez:

Page 450: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

450

- Geme, geme o mais alto que quiseres. Ninguém te ouve a não ser eu, e eu percorri mil e seiscentos quilômetros para te ouvir. Por isso, geme, Tania. - A boca, a língua e os dentes devoraram-lhe os seios enquanto as suas costas, peito e nádegas se arqueavam para ele.

Deitando-se de lado, Alexander meteu-lhe a mão entre as coxas. - Espera, espera. — Tentava manter as pernas fechadas. - Não, abre-as. — Afastou-lhas com a mão. Os seus dedos subiram-lhe pela

coxa. - Calma — sussurrou, passando-lhe a mão livre pelo pescoço. - Estás a tre¬mer, Tania. - Os seus dedos tocaram-lhe. Retesou o corpo. Alexander prendeu a respiração. Tatiana também.

- Sentes como te acaricio docemente? - murmurou com os lábios encostados à sua face. — Tu... és tão loura por todo o lado!

Tinha as mãos crispadas no ventre por baixo do braço dele e os olhos fechados.

- Sentes, Tatia? Gemeu. Alexander afagou-a para cima e para baixo e depois descrevendo pequenos

círculos. -Tens uma sensação incrível?... — segredou-lhe. As mãos crisparam-se-Ihe mais. Acariciou-a com mais firmeza: - Queres que pare? — Gemeu baixinho. -Não! -Tania, sentes-me contra a tua coxa? - Hum. Pensava que era a tua espingarda. O seu hálito quente afagava-lhe o pescoço: - Chama-lhe o que quiseres. - Debruçando-se, chupou-lhe os seios,

esfre¬gando-a, esfregando-se contra ela... Em círculos, em círculos... E ela gemia, gemia... E... Ele afastou os dedos, a boca e o corpo todo. - Não, não, não. Não pares — murmurou ela em pânico, abrindo os olhos. Começara a sentir a combustão na tensão palpitante da carne. Quando ele parou, tremeu tão incontrolavelmente que Alexander se deitou em cima dela

para a acalmar, encostando a testa a sua: Sossega. Vá. — Calou-se por um segundo e saiu de cima dela: — Diz-me o que

queres que eu faça. - Não sei — respondeu ela, hesitante. — Que mais há? Ele assentiu: - Está bem. — Despiu os calções e ajoelhou-se à sua frente. Quando o viu, Tatiana sentou-se:

Page 451: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

451

- Oh, meu Deus, Alexander! — gaguejou com incredulidade, recuando. - Não te preocupes. — Sorrindo de orelha a orelha: — Onde vais? - Prendeu-

lhe as pernas. - Não. — Abanou a cabeça, olhando-o, atônita. — Não, não. Por favor. - Na sua infinita sabedoria, Deus fez com que as coisas funcionassem como

devem funcionar. - Não é possível, Shura. Nunca... -Confia em mim. — Olhando-a cheio de desejo: — É possível. Deitando-a de novo: - Não agüento esperar nem mais um segundo. Nem um segundo. Quero

entrar em ti agora. - Oh, meu Deus! Não, Shura. - Sim, Tania, sim. Diz-me que sim. Sim, Shura. - Oh, meu Deus! Sim, Shura. Alexander pôs-se em cima dela, apoiando-se nos braços. - Tania - segredou com paixão —, estás nua e por baixo de mim! - Parecia que

não acreditava. - Alexander — volveu-lhe, ainda a tremer —, estás nu e em cima de mim.

Sentiu-o esfregando-se nela. Beijaram-se. - Nem acredito — continuou ele, respirando ao de leve. - Achei que este dia

nunca chegaria. — Depois de uma pausa, sussurrou: — E no entanto não podia imaginar a minha vida sem ele. Tu, debaixo de mim. Tania, toca-me. Põe as tuas mãos em mim.

Ela estendeu-se imediatamente e pegou-lhe. - Sentes como estou duro... para ti? - Meu Deus, sim! — respondeu, incrédula. Vê-lo fora um choque profundo.

Sen¬ti-lo era de mais. — É impossível — segredou, afagando-o docemente. - Vais matar-me.

- Pois vou. Deixa-me. Abre as pernas. Ela assim fez. - Não, mais. — Beijou-a: — Abre-te para mim, Tania. Vá... abre-te para mim| Tatiana obedeceu, continuando a afagá-lo. - Estás pronta? - Não. - Estás, estás pronta. Larga-me. — Sorriu. - Agarra-te ao meu pescoço. Com,

força. Alexander penetrou-a devagar, a pouco e pouco. Tatiana agarrou-se-lhe

aosbraços, às costas, ao cobertor, à erva. - Espera, espera, por favor... — Esperou o melhor que pôde. A jovem sentia-se

tal e qual como imaginara: a ser rachada. Mas também mais alguma coisa. Um desejo incontrolável.

Page 452: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

452

- Está bem - disse ele por fim. - Estou dentro de ti. - Beijando-a e soltando intensamente o ar: — Estou dentro de ti, Tatiasha.

Ela gemeu baixinho, com as mãos em volta do pescoço dele: - Estás realmente dentro de mim? - Estou. — Soergueu-se um pouco: — Não sentes? Sentia: _ Nem acredito que... caibas. Alexander sorriu: - Mesmo à justa, mas... sim. — Beijou-lhe os lábios e inspirou: - Parece que foi

Deus que juntou os nossos corpos... — inspirou de novo - ...o meu e o teu, dizendo: E serão um.

Tatiana estava muito quieta. Ele também, com os lábios pousados na sua testa. Haveria mais? Continuava com o corpo a arder. Não sentia nenhum alívio. Abraçou-o com mais força e ergueu o olhar para o seu rosto afogueado.

- Já está? E tudo? Alexander não respondeu logo. - Não. — Inspirou-lhe o hálito: — Estou só... Tania, desejamos isto tão deses-

peradamente. .. — murmurou-lhe para a boca - .. .e este momento nunca mais se repetirá. - Fitou-lhe o rosto: - Quero saboreá-lo.

- Está bem. - Palpitava. Arqueou as ancas. Outro momento. - Pronta? — Soergueu-se devagar e voltou a penetrá-la. Tatiana cerrou os

den¬tes, por entre os quais lhe escapou um gemido. - Espera, espera. Levantou-se de novo e de novo a penetrou. - Espera... Por fim, soergueu-se todo e penetrou-a profundamente. Atônita, Tatiana

quase gritou, mas teve medo de que ele parasse se pensasse que estava a magoá-la. Ouviu-o gemer, entrando e saindo menos lentamente. Agarrou-se-lhe aos braços, gemendo.

- Oh, Shura! — Estava sem ar. - Eu sei. Agarra-te a mim. Menos lentamente. Menos docemente. A dor e a chama eram febris. - Estou a magoar-te? Tonta e perdida, Tatiana fez uma pausa: - Não. - Estou a fazer o mais devagar que posso. - Oh, Shura! - «Ar, ar, falta-me o ar...» Uma pausa curta e ofegante: - Tania... Meu Deus, não posso mais. — Com intensidade: - Nãoagüento mais. Menos docemente.

Page 453: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

453

Emudecida, Tatiana agarrava-se a ele com a boca aberta num grito silencioso. - Queres que pare? - Não. Alexander parou: - Espera — disse, abanando-lhe a cabeça contra a face. - Agarra-te bem-

sussurrou. Ficou quieto mais um momento. — Oh, Tania... — murmurou então atra¬vés dos lábios entreabertos. De repente, começou a entrar e a sair com tanta força e tão depressa que Tatiana pensou que ia desmaiar e gritou de confusão e dor, apertando-lhe a cabeça contra o pescoço.

Um momento ofegante. E outro. E mais outro. O coração batia-lhe descontroladamente. Tinha a garganta seca e os

lábiosmolhados. O ar, o som, a sensação, o cheiro, tudo lhe voltava devagar. Abriu os olhos. Um momento. Alexander imobilizou-se gradualmente, soltou um suspiro profundo de alívio e

deixou-se ficar em cima dela por mais alguns minutos ofegantes. As mãos dela continuavam a abraçá-lo. No lugar que ele ocupara ficara um formigueiro agridoce. Sentiu pena; queria

ter outra vez aquela sensação excessiva e absoluta. Alexander soergueu-se e soprou-lhe a testa e o peito molhados: - Estás bem? Magoei-te? — segredou, beijando-lhe ternamente as sardas. —

Tania, querida, diz-me que estás bem. Não conseguiu responder-lhe. Os lábios dele no seu rosto eram quentes de

mais. - Estou bem — replicou por fim, sorrindo com timidez e abraçando-o. -E tu? Alexander deitou-se ao seu lado: Estou fantástico. — Passeou-lhe os dedos pelo corpo, descendo do rosto aos

tornozelos e voltando a subir. — Nunca estive melhor. — O seu sorriso de felicidade era tão radioso que Tatiana teve vontade de chorar. Apertou o rosto contra o ele. Não falaram.

A mão dele parou e pousou na anca dela: - fizeste muito menos barulho do que eu pensava. - Hum, estava a tentar não desmaiar. - Ele riu-se. - Também me pareceu. Ela virou-se de lado: - Shura, foi...? Ele beijou-lhe os olhos: _ Tania... estar dentro de ti, ter prazer dentro de ti foi... mágico. Sabes bem

que sim. - Como pensaste que seria? — perguntou, tocando-lhe.

Page 454: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

454

_ Foi melhor do que qualquer coisa que me tivesse passado pela cabeça. _ Já tinhas imaginado este momento? - Digamos que sim. — Abraçou-a: - Mas não falemos de mim. Diz-me... que

esperavas tu? - Sorriu, beijou-a e riu com gosto: - Não, vou rebentar. Diz- -me tudo. - Em voz rouca: — E tu? Tinha-lo imaginado?

- Não. - Acotovelou-o. De certeza que aquilo não. Os dedos viajaram do pescoço para o ventre de Alexander. Só queria permissão para lhe tocar outra vez.

- Porque olhas para mim assim? Que queres saber? - O que esperavas? Tatiana refletiu: - Não sei mesmo. - Vá lá, devias esperar alguma coisa. - Hum. Não isto. - Então o quê? Sentiu-se embaraçada e desejou que Alexander não a olhasse com uma

ado¬ração tão babada: - Tive um irmão, Shura. Sabia como vocês são. Uma coisa calma... para baixo...

e muito... hum... - Procurando a palavra apropriada: - Pouco alar¬mante. Ele rebentou a rir. - Mas nunca tinha visto... - Foi alarmante? - Hum. - Porque ria assim? - Que mais? Pensou por um momento: - Achava que esta coisa pouco alarmante iria... não sei... calmamente... -

Tossiu. - Digamos que o movimento também foi uma surpresa para mim. Alexander abraçou-a e beijou-a: És engraçadíssima. Que faço contigo? Deitada muito quieta de frente para ele, sentia que o desejo não a

abandonara. O corpo dele fascinava-a. Com os dedos, acariciou-lhe o ventre ao de leve:

- E agora?-Depois de uma pausa: - Já...acabamos? - Queres acabar? - Não- retorquiu imediatamente - Tatiana, amo-te- disse Alexander com emoção. Ela fechou os olhos: - Obrigada. Sussurrou. - Obrigada não.-Levantou-lhe o rosto:-Nunca ouvi dizeres-me. “Não pode ser verdade”, pensou ela. “Amo-o desde que nos conhecemos.

Todos os minutos de todos os dias...” - Amo-te, Alexander. - Obrigado-sussurou ele, fitando-a. – Diz outra vez.

Page 455: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

455

- Amo-te. – Abraçou-o: - Amo-te desesperadamente. – Sorriu-lhe com afeto: - Mas sabes, também nunca me disseste. - Disse,sim senhor,Tatiana. Passou um momento. Ela não falou, respirou ou pestanejou. - Sabes como sei? – murmurou ele. - Como? – articulou inaudivelmente. - Porque te levantaste daquele trenó... Passou outro momento em silêncio. Da segunda vez que fizeram amor, doeu menos. Da terceira vez, o prazer doloroso, flutuante e incandescente que sentiu

apanhou-a desprevenida. Gritou. Gritando e gemendo: - Meu Deus, não pares. Por favor... - Não?- Alexander parou. - Que estás a fazer? – Abriu os olhos e os lábios e observou-o: - Disse-te para

não parares. - Quero ouvir-te gemer de novo- sussurrou ele. – Quero que me peças para

não parar. - Por favor... – segredou, mexendo-se contra ele e apertando-o com força. - Não, Shura, não? Ou sim, Shura, sim? - Sim, Shuras, sim.- Fechou os olhos. – Peço-te...não pares. Alexander entrava e saía de dentro dela em movimentos profundos e

vagarosos. Gritou. - Assim? Não conseguiu falar. - Ou...? Cada vez mais depressa. Gritou. - Assim? Não conseguiu falar. - Tania... é assim tão bom? - É muito bom. - Como queres? - Tanto faz. – As suas mãos tensas crispavam-se em volta dele. - Geme para mim, Tania. – Mudando de ritmo e de velocidade: - Vá... geme

para mim. Não teve de lhe pedir duas vezes. - Não pares, Shura... – pediu. - Não paro, Tania. Não parou e ... finalmente Tatiana sentiu o corpo retesando-se e explodindo

em convulsões, deixando um rasto de lava. Passou algum tempo até deixar de gemer e tremer encostada a Alexander.

Page 456: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

456

- Que foi isto? – perguntou por fim, ainda ofegante. - Foi a minha Tania descobrindo como é fantástico fazer amor. Foi... alívio –

murmurou, apertando a face contra a sua. Tatiana abraçou-o, virou a cabeça e murmurou por entre lágrimas de

felicidade: - Oh, meu Deus, Alexander... - Quanto tempo passou? - Não sei. Uns minutos? - Onde está o teu relógio tão exato? - Não trouxe. Quis que o tempo deixasse de avançar. – Pestanejou e fechou os

olhos. - Tania! Não estás a dormir? - Não. Tenho os olhos fechado e sinto-me muito descontraída. - Se eu te perguntar uma coisa, dizes-me a verdade? - Claro que sim. – Sorriu. Continuava de olhos fechados. - Já tinha tocado algum homem? Abriu os olhos e riu baixinho: - O quê, Shurra? Para além do meu irmão, quando éramos pequenos, nem

sequer tinha visto um homem. Aninhada nos seus braços, tocava-lhe com os dedos no queixo, no pescoço, na

maça-de-Adão. Apertou-lhe com o indicador contra a artéria que lhe palpitava energicamente no pescoço. Chegou-se para cima, beijou-a e deixou a boca pousada nela, sentindo-a pulsar de encontro aos lábios. “ Porque é ele tão encantador?” pensou. “ E porque cheira tão bem?”

- E as hordas de marmanjos que te perseguiam em Luga? Nenhum deles? - Nenhum deles o quê? - Tocaste em algum deles? Ela abanou a cabeça. - Shura, és tão engraçado! Não. - Nem por cima da roupa? - O quê? – Não retirou a boca do pescoço dele.- Claro que não. – Depois de

uma pausa: - Que queres saber? - As coisas que fizestes antes de mim. - Mas havia vida antes de Alexander? – brincou ela. - Tu lá saberás. - Está bem. Que mais queres saber? - Quem te viu nua? Claro... fora a sua família ou quando fazias rodas nua com

sete anos. Era então o que le queria? A verdade nua e crua? Tivera tanto medo de lha

contar! Gostaria de a ouvir? - Shura, o primeiro homem que me viu parcialmente nua foste tu, em Luga. - Isso é verdade? – Afastou-lhe um pouca para lhe ver os olhos.

Page 457: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

457

Ela assentiu e começou a esfregar-lhe a boca no pescoço: - É. - Alguma vez alguém te tocou? - O quê? - Nos seios, no... – Os seus dedos procuraram-na. - Por favor, Shura. Claro que não. O coração acelerou-lhe, fazendo a artéria palpitar-lhe mais depressa na boca.

Sorriu. Se era assim que ele queria, ia dizer-lhe toda verdade: - Lembras-te da floresta em Luga? - Como posso esquecer? – indagou em voz rouca. – Foi o beijo mais doce da

minha vida. Com os lábios no pescoço dele, Tatiana segredou-lhe: - Alexander... foi o primeiro da minha. Ele abanou a cabeça e virou-se de lado, examinando-lhe o rosto com

incredulidade, como se ela não estivesse a dizer-lhe a verdade toda. Tatiana voltou-se para ele.

- O quê foi? Perguntou, sorrindo. – Estás a embaraçar-me. Que se passa agora?

- Não me digas que... - Está bem, não digo. - Diz lá. - Já disse. Os seus olhos estupefados não pestanejavam: - Quando te beijei em Luga... - Sim? - Diz lá. - Shura...- Apertou o corpo contra o dele: - Que queres? Queres a verdade ou

outra coisa qualquer? - Não acredito. – Abanou a cabeça: - Não acredito em ti. - Está bem. – Deitou-se de costa e pôs as mãos debaixo da cabeça. Alexander debruçou-se sobre ela: - Acho que estás a contar-me isso porque pensas que é o que eu quero ouvir. - Passeou-lhe os dedos pelos seios e pelo ventre. As suas mãos não se

cansavam, nunca paravam. - É isso que queres ouvir? Não respondeu logo. - Não sei. Não. Valha-me Deus, sim- reconheceu com dificuldade.- Mas prefiro

a verdade. Tatiana deu-lhe umas palmadinhas alegres nas costas: - É a verdade. – Sorrindo: - Nunca na vida ninguém me tocou a não ser tu. Mas Alexander não sorria. Com os olhos de bronze derretendo-se á sua

frente, perguntou com hesitação:

Page 458: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

458

- Como é possível? - Não sei. Mas é. - Então? Saíste do ventre de tua mãe direitinha para meus braços? Ela soltou uma gragalhada: - Quase. – Olhando-o com intensidade: - Alexander, amo-te. Percebes? Nunca tive vontade de beijar ninguém antes de ti. Queria tanto que me

beijasses em Luga que não sabia o que havia de fazer.Não sabia como dizer-lhe. Fiquei acordada metade da noite tentando arranjar uma maneira de tu me beijares.. Por fim, na floresta decidi não resistir. “Se não consigo que o meu Alexander me beije, pensei, nunca mais ninguém me beijarás”. – Pôs as mãos nele.

- Que estás a fazer-me? – sussurrou ele intensamente, inclinando sobre o seu rosto. – Tens de parar imediatamente. Que estás a fazer-me?

- E tu? Que estás tu a fazer-me amim? – Cravou-lhe as pontas dos dedos nas costas.

Quando Alexander fez amor com ela, não lhe largou os lábios. NO seu orgasmo apaixonado, que Tatiana, estilhaçada pelo seu próprio, mal ouvia, pareceu-lhe que ele gemia para se impedir de chorar.

- Não sei como te sobreviverei, Tatiana. – segredou-lhe para o boca. - Querida — murmurou-lhe, deitado em cima dela. — Abre os olhos. Estás

bem? Tatiana não respondeu. Escutava a cadência encantadora da sua voz. - Tania... — Os dedos reluzentes descreviam-lhe círculos no rosto, no coço, no

colo. - Tens uma pele tão macia — disse baixinho. - Sabias? - Não. - Tens pele de bebê, o hálito muito doce e o cabelo de seda. — Ajoelhando, -

se, chupou-lhe ternamente o mamilo. — És divina. Escutando, reconfortada, tomou-lhe a cabeça nas mãos. Ele calou-se e

ergueuo rosto para ela. Tinha lágrimas nos olhos. - Desculpa-me por magoar o teu coração perfeito com a minha expressão fria

e indiferente. O meu coração estava sempre a transbordar de amor por ti e nunca foi indiferente. Não merecias nada do que passaste, nada do que tiveste de aguentar Nada. Nem da tua irmã, nem de Leninegrado e muito menos de mim. Não sabes o que me custou não olhar para ti uma última vez antes de baixar o oleado do camião. Sabia que se o fizesse não seria capaz de esconder a minha emoção de tinem da Dasha. Não poderia manter mais a promessa que te fizera por causa da tua irmã. O problema não é não ter olhado para ti. Não podiaolhar. Dei-te tanto quando estávamos a sós que esperei que isso bastasse para seguires em frente.

- E bastou. - Também ela tinha lágrimas nos olhos. — Estou aqui. E bastará no futuro. - Apertou-lhe a cabeça contra o peito: — Desculpa ter duvidado de ti. Agora sinto o coração leve.

Ele beijou-a entre os seios: - Tu saraste-me. - E Tatiana sorriu.

Page 459: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

459

Amada mais uma vez e aliviada, aliviada... Tatiana murmurava e sussurrava deitada debaixo de Alexander:

- Oh, e pensava eu que te amava antes! Os lábios dele comprimiram-lhe a têmpora: - É toda uma dimensão nova, não é? - As suas mãos não lhe largavam o corpo.

Nada dele lhe largava o corpo. Cingia-a por baixo e continuava a mexer- -se dentro dela.

Tatiana virou o rosto para ele com um sorriso a nascer-lhe nos lábios. Um sorriso de juventude e êxtase:

- É o meu primeiro amor. Sabias? Ele apertou-lhe as nádegas, aconchegou-se dentro dela, lambeu-lhe o sal do

rosto e assentiu: - Isso sei. - Sim? - Tatia, soube-o ainda antes de ti. — Esboçando um sorriso aberto: — Ainda

antes de teres finalmente encontrado a palavra para descreveres o que sentias. De contrário, como poderias ser tão tímida e sincera?

- Sincera? - Sim. - Fui assim tão óbvia? - Foste. — Sorrindo: — A incapacidade de me olhares em público e a tua total

devoção quando estávamos juntos... como agora. O teu embaraço com as coisas mais pequenas... eu nem podia chegar-me a ti no elétrico sem tu corares... os teus dedos tocando-me quando te falei da América... o teu sorriso, o teu sorriso, Tania, saindo de Kirov a correr. — A lembrança fê-lo abanar a cabeça: — Que arma¬dilha me estendeste com o teu primeiro amor!

Ela apertou-o mais e brincou: - Quer então dizer que acreditas na parte do amor, mas não na do beijo?

Quem pensa que sou? - A minha querida — segredou ele. - Está preparado para mais? - Tania... - Abanou a cabeça, incrédulo: -Que te deu? Ela sorriu, acariciando-lhe o ventre: - Estou a pedir de mais, Shura? - Não. Só vais matar-me. Desejava uma coisa, mas era tímida de mais para a expressar. Afagava-lhe o

ventre devagar, pensativamente. Depois, pigarreou: - Querido? Posso deitar-me em cima de ti? - Claro. - Sorriu, abrindo os braços. - Anda cá. Ela pôs-se em cima dele e beijou-lhe suavemente os lábios com a boca

húmida: - Shura... - murmurou. - Gostas?

Page 460: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

460

- Hum. Os lábios dela passearam-lhe no rosto, no pescoço, no peito. - A tua pele sabe-me àquele gelado que adoro. Cremosa, macia... O teu corpo

é da cor do caramelo, como o meu leite-creme, só que ao contrário do gelado não és frio mas sim quente. - Esfregou-lhe os lábios no peito, para trás e para diante.

- Então... é melhor do que um gelado? - É. - Sorriu, chegando os lábios aos dele: - Gosto mais de ti do que de gelado.

- Depois de o beijar com intensidade, chupou-lhe a língua muito delica¬damente. — Gostas? — segredou.

Ele gemeu em sinal de assentimento. - Shura, querido... - começou, muito envergonhada - ...achas que... há algum

sítio onde gostarias que também o fizesse? Ele afastou-se e ohou-a boquiaberto. Calada e atormentada, Tatiana fito -lhe a

expressão incrédula. - Acho que há um sítio onde gostaria que mo fizesses, sim —

retorquiulentamente. Ela sorriu-lhe, tentando esconder o nervosismo: - Tens... tens de me ensinar, está bem? - Está bem. Tatiana beijou-lhe o peito, escutou-lhe o coração, chegou-se para baixo e

pousou-lhe a cabeça no ventre. Baixando-se ainda mais, tocou-lhe com o cabelo louro e esfregou-lhe os seios, sentindo-o avolumar-se por baixo de si. Beijou-lhe a linha de pelos pretos que lhe descia do umbigo e roçou os lábios nele.

Ajoelhando-se entre as suas pernas, pegou nele com ambas as mãos. Eraextraordinário.

— E agora... — Agora põe-mena tua boca — disse, observando-a. Sentiu o arfugir-lhe do corpo: — Todo?—Meteu o que pôde na boca. — Faz para cima e para baixo. — Assim? Houve um silêncio cheio de intensidade: - Sim. - Ou...? — Assim também é bom. Sentia-o como uma coluna contra os lábios ardentes e os dedos que o

esfre¬gavam. Quando Alexander lhe agarrou o cabelo, parou por um momento e fitou- -Ihe o rosto:

— Oh, sim - segredou, enterrando-o mais profundamente na boca e gemendo.

— Que bom, Tania. Continua. Não pares. Parou. Ele abriu os olhos. Tatiana sorriu:

Page 461: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

461

— Quero ouvir-te gemer e suplicar-me que não pare. Alexander sentou-se e beijou-lhe a boca humida: — Por favor, não pares. - Baixou-lhe docemente o rosto e deixou-se cair para

trás no cobertor. Mesmo antes do fim, puxou-lhe a cabeça: — Tania, não aguento mais. — Então vem-te - murmurou ela. — Vem-te na minha boca. Depois, com Tatiana aninhada no seu peito, disse assombrado: — Decidi que gosto. — Eu também - respondeu ela ternamente. Ficou deitada ao seu lado durante muito tempo, sentindo-lhe os dedos

mei¬gos a tocarem-lhe ao de leve. - Porque passámos dois dias a discutir e a perder tempo? Alexander despenteou-lhe o cabelo: - Não foi a discutir, Tatiasha. Foi um jogo de sedução. Beijaram-se. - Desculpa-me outra vez - cochichou ela. - E tu a mim. Tatiana ficou calada. - Que se passa? - perguntou ele. - Em que estás a pensar? «Como me conhece ele tão bem?», pensou. «Basta-me pestanejar e sabe logo

se estou pensativa, nervosa ou ansiosa.» Inspirou: - Shura... amaste muitas mulheres na tua vida? - indagou timidamente. - Não, meu anjo - respondeu apaixonadamente, acariciando-a. - Não amei

muitas mulheres na vida. Com as lágrimas formando-se-lhe no fundo da garganta, perguntou: - Amaste a Dasha? Ficou calado por um momento. — Não continues, Tania. Ela não falou. - Não sei o que queres que te diga. - A verdade. - Não, não amei a Dasha. Gostava dela. Passámos alguns bons momentos

juntos. - Muito bons? - Assim-assim. - A verdade. - Assim-assim — repetiu. Beliscou-lhe o mamilo. - Ainda não percebeste que a

Dasha não era o meu tipo de mulher? - Que dirás de mim à tua próxima namorada? Fez um sorriso radioso: - Que tinhas uns seios perfeitos.

Page 462: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

462

- Cala-te. - Que tinhas uns seios jovens, atrevidos e incríveis, com uns mamilos

gran¬des, sensíveis, cor de cereja... - disse, subindo para cima dela e levantando-lhe as pernas. - E lábios próprios para os deuses... e olhos de rainha. Direi - sussurrou apaixonadamente, penetrando-a e gemendo - que nada nesta terra se comparava à sensação de estar dentro de ti.

- Que horas achas que são? - Não sei — respondeu, ensonado. — Tarde. - Não quero voltar.Depois de uma pausa: - Nunca - E quem vai voltar? Não saímos daqui. - Não? - Tenta ir-te embora. Antes do cair da noite, gatinharam para Fora da tenda. Tatiana sentou-se num

cobertor com a túnica da farda de Alexander pelos ombros, enquanto ele acendia uma fogueira com os galhos e ramos secos que ela juntara umas horas antes. Dali a cinco minutos, o lume ardia num braseiro.

— Tens jeito para fazer fogueiras, Shura — observou baixinho. — Obrigado. - Exibiu duas latas de tushonka, pão seco e água. - Olha o que

tenho mais. - Mostrou-lhe uns pedaços de chocolate embrulhados em papel de alumínio.

- Uau! — Fitou-o maravilhada, sem olhar sequer para o chocolate. Comeram. — Vamos dormir na tenda? — perguntou ela. — Se quiseres, posso fazer uma fogueira dentro de casa. - Sorrindo:-Já viste

como a limpei para ti? — Vi. Quando o fizeste? — Ontem, depois da discussão. Que pensas que fiz toda a tarde? — Depois da discussão? — admirou-se. — Antes de me teres ido dizer que te

desse as tuas coisas para te ires embora? — Sim. Tatiana fez-lhe cócegas na cintura: — Só querias ouvir-me... — Não digas mais nada — sussurrou Alexander. — Se continuas, terei de fazer

outra vez amor contigo aqui e agora, e não sobreviverás. E quase foi verdade. À frente da fogueira, nos seus braços, Tatiana chorava encostada ao peito de

Alexander. — Porque estás a chorar, Tania? — Oh, Shura! — Não chores, por favor. —Tenho saudades da minha irmã. — Eu sei. — Achas que a tratámos bem? Que agimos bem?

Page 463: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

463

— O melhor que pudemos. Tu agiste o melhor possível. Achas que fizemos de propósito para nos apaixonarmos assim e magoarmos os outros? Lutei contra os meus sentimentos. Quis amar a tua irmã, que Deus a abençoe. Mas não consegui, não fui capaz.

Tatiana dirigiu o olhar para a fogueira, com o Kama por trás, banhado pela lua cheia:

_ Tentei não te amar por ela. — Mas foi impossível. — Foi. — Hesitantemente: — Shura... estás... apaixonado por mim? — Olha para mim. — Ela obedeceu. — Adoro-te, Tatia. Sou doido por ti.

Quero que cases comigo. — O quê? — Tatiana: queres casar comigo? Ser minha mulher? - Silêncio. - Não

chores.Silêncio. - Não me respondeste. — Sim, Alexander. Quero casar contigo... quero ser tua mulher. — Então porque estás a chorar?

Page 464: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

464

8

Na madrugada do dia seguinte, Tatiana cambaleou até ao rio. Mal conseguia andar. Sentia-se toda dorida.

Alexander seguiu-a. O Kama estava frio. Nenhum deles tinha uma única peça de roupa no corpo.

— Trouxe sabão — anunciou ele. — Que bom! Lavou-lhe o corpo todo: — Com este sabão te lavo - murmurou ele sonolentamente. - Lavo-te dos

horrores que viveste e lavo-te dos pesadelos... Lavo-te os braços e as pernas, o coração cheio de amor, o ventre fértil...

— Dá cá o sabão — interrompeu ela. - Vou lavar-te. — Espera! Como é? Que disse Deus a Moisés?... — Não faço ideia. — «Não terás medo do terror á noite nem da flecha que voa de dia...» -

Ca¬lou-se. - Não me lembro do resto, muito menos em russo. Qualquer coisa sobre dez mil caindo à direita. Tenho de reler a Bíblia paia ta contar. Hás de gostar. Mas percebes o que quero dizer, não?

— Percebo. Não terei medo. — Contemplando-o: — Como posso ter medo agora? Olha o presente que tive! Dá-me o sabão - repetiu.

— Não me aguento em pé - murmurou Alexander. - Estou arrumada As mãos dela baixaram com o sabão: — Não completamente. Ele caiu de costas na água. — Encurralado, sim. - Atirando-se para cima dele: - Mas não arrumado. Agarrando-se a Alexander no Kama frio, sem tocar com os pés no

fundo,Tatiana passou-lhe as mãos pelo pescoço: — Olha o sol a nascer atrás das montanhas. É bonito, não é? - murmurou Ele

estava de pé na água, esquecido do raiar do dia, segurando-a com uma mão e acariciando-lhe o rosto com a outra.

— Encontrei o meu verdadeiro amor nas margens do rio Kama - sussurrou fitando-a.

— Pois eu encontrei-o num banco da Ulitsa Saltykov-Schedrin, sentada, comer um gelado.

— Não me encontraste nada. Nem sequer andavas à minha procura. Fui eu que te encontrei.

Um longo silêncio.

Page 465: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

465

— Alexander, andavas... à minha procura? — Toda a minha vida andei. — Shura, como é possível termos tanta intimidade? Uma ligação tão forte

desde o início? — Nós não temos intimidade. -Não? — Não. Nem nenhuma ligação forte. — Não? — Não. Estamos em comunhão. Com a manhã enevoada e fresca, Alexander fez uma fogueira na margem do

rio, que seguia tranquilamente o seu curso. Comeram pão e beberam água. Ele fumou.

—Viemos sem nada — observou Tatiana. - Gostaria de ter aqui uma chávena, uma colher, pratos, café... — Sorriu.

— Tu, não sei, mas eu trouxe tudo aquilo de que precisava. Ela corou. — Não, não. - Tocando-lhe: — Nunca sairemos daqui. — Vamos sair? — Veste-te. Vamos a Molotov. — Vamos? — A noite anterior, o que ele lhe dissera sob as estrelas e a lua,

teria sido só um sonho? — Para quê? — Susteve a respiração. — Temos de comprar umas coisas. — O quê? — Cobertores, almofadas. Panelas, frigideiras. Louça. Um cesto para a roupa

suja. Comida. Alianças. — Alianças? — Sim. Para pormos no dedo.

Page 466: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

466

9

Caminhavam devagar para Molotov, de braço dado. O sol espreitava por entre os pinheiros.

- Tenho continuado a estudar inglês, Shura. - Sim? Disseste-me que não tinhas tempo. Vendo a vida que levas, acreditei.

Tatiana pigarreou e disse em inglês: - «Alexander Barrington, quero para sempre amar em ti.» Alexander cingiu-a a si, soltou uma gargalhada e respondeu, também em

inglês: — Eu também. — Calou-se e baixou o olhar para ela. — Que foi? — Estás a andar muito devagar. Sentes-te bem? - Sinto. — Corou. Náo sentia nada. - O que foi? Alexander sorriu: — Queres que pegue um bocadinho em ti? - perguntou em voz rouca. — Quero — replicou, derretendo-se. — Mas desta vez ao cola — Um dia destes — começou ele, levantando-a nos braços - hás de explicar-

me porque apanhaste o autocarro número 136 e atravessaste Leninegrado até ao terminal.

Tatiana deu-lhe um beliscão: — Um dia destes hás de explicar-me porque me seguiste. — Uma quê?— inquiriu ela, incrédula, deixando-se pousar no chão e

cami¬nhando ao seu lado. - Uma igreja. Temos de procurar uma. — Para quê? Alexander lançou-lhe um olhar de soslaio: - Onde tencionas casar? Tatiana refletiu: - Como toda a gente na União Soviética... no registro. Ele riu-se. – Então para quê tanto trabalho? Porque não voltamos para trás e

continuamos como estávamos? – É uma ideia – balbuciou Tatiana. – Falar numa igreja inquietou-a. Alexander deu-lhe a mão e não disse nada. – Porquê numa igreja, Shura? Ele olhou em frente:

Page 467: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

467

– Quem queres por testemunha do nosso casamento? A união soviética ou Deus?

Ficou sem resposta. – Em quem acreditas, Tatiana? – Em ti. – Pois eu acredito em Deus e em ti. Vamos casar-nos na igreja. Encontraram a Igreja de São Serafim perto do centro da cidade. O padre

estudou-os quando Alexander lhe disse ao que iam: – Mais um casamento de guerra. Hum. – Olhou para Tatiana: – Tem idade

para casar? – Faço dezoito anos amanhã – anunciou, com uma voz de dez. – Têm padrinhos e alianças? Já comunicaram o vosso casamento no registro? – Nada – replicou Tatiana, puxando o braço de Alexander, que se libertou dela

e perguntou ao padre onde podiam comprar as alianças. – Comprar? – admirou-se ele. Chamava-se padre Mikhail. Era alto, calvo, de

olhos azuis e penetrantes e barba comprida e grisalha. – Comprar alianças? Mas... em lado nenhum, claro. Temos um ourives na cidade, mas não há ouro.

– Onde fica? – Meu filho, para que quer casar-lhe na igreja? Vá ao registro civil, como toda

gente. Dão-lhe a certidão em trinta segundos. Penso que o escrivão pode ser testemunha.

Imóvel ao lado de Alexander, Tatiana ouviu-o inspirar profundamente e responder:

– Na minha terra, o casamento é uma cerimônia pública e sagrada. Como só vamos casar-nos uma vez, gostaríamos que fosse em condições.

Gostaríamos?, pensou ela. Não entendia a sua apreensão. O padre Mikhail sorriu. – Está bem, meu filho – anuiu com sinceridade. – Terei muito prazer em casar

dois jovens no início da vida. Voltem amanhã às três com as alianças e os padrinhos. Voltem às três e eu caso-vos.

Descendo os degraus da igreja, Tatiana comentou: – Bem, como não temos alianças... – E soltou um pequeno suspiro de... – Vamos ter. – Tirou da mochila quatro dentes de ouro. – Devem chegar para

duas alianças. Ela fitou os dentes, estarrecida. – Foi a Dasha que nos deu. Não faças esse ar horrorizado. Mas fez. Estava horrorizada: – Vamos ter as nossas alianças dos dentes que a Dasha roubou aos seus

dentes? – Tens uma ideia melhor? – Podemos esperar. – Esperar o quê?

Page 468: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

468

Não tinha resposta. Na verdade, esperar o quê? Seguiu-o rua abaixo, com o coração apertado.

O ourives vivia num pequeno apartamento na cidade, mas trabalhava fora de casa. Examinou os dentes, observou Alexander e Tatiana e anunciou-lhes que faria as alianças... pelo preço de mais dois dentes de ouro.

O jovem respondeu-lhe que não tinha mais, mas que possuía uma garrafa de vodca. O ourives recusou e devolveu-lhos. Suspirando profundamente, Alexander tirou mais dois dentes da mochila.

Depois, perguntou-lhe onde podiam comprar coisas para casa em Malotov. Provavelmente vão querer dentes de ouro por um cobertor – cochichou

Tatiana. O ourives apresentou-os a Sofia, a sua esposa gordíssima, que lhes vendeu

dois edredons de penas, almofadas e lençóis por duzentos rublos. – Duzentos rublos! – exclamou a jovem. – Fiz dez tanques e cinco mil lança-

chamas e não ganhei tanto. – Pois, mas eu dei cabo de dez tanques e gastei cinco mil lança-chamas e

ganhei dois mil rublos. Nunca penses no dinheiro. Gasta-o no que precisares. Compraram também uma panela, uma frigideira, uma chaleira, pratos, copos

e talheres e uma bola de futebol. Alexander também conseguiu extorquir a Sofia dois baldes de metal.

– Para que é isso? – perguntou Tatiana, olhando para os baldes, que cabiam um dentro do outro.

– Depois verás. – Sorrindo: – Uma surpresa para os teus anos. – Como vamos levar isso tudo para casa? Alexander beijou-lhe o nariz e retorquiu afetuosamente: – Quando estiveres comigo, não te preocupes que eu trato de tudo. Sofia vendeu-lhes dois quilos de tabaco. Como não tinha gêneros alimentícios,

mandou-os a uma loja onde compraram maças, tomates, pepinos, pão e manteiga. Com uma das latas de tushonka, fizeram um banquete num cobertor, num recanto isolado dos arredores da cidade, junto do Kama.

– O que me admira – começou Tatiana, partindo o pão – é que me deste o livro de Pushkin o ano passado.

– Sim? – Como puseste lá os rublos? – Serviu-o de um copo de kvas, uma bebida feita

com cereais e pão. – Dei-te o livro já com o dinheiro. Olhou para ele pensativamente: – A sério? – Claro. – Mas mal me conhecias. Porque havias de me oferecer um livro cheio de

dinheiro? – Gostaria que lhe falasse do dinheiro todo que encontrava no livro, mas

Page 469: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

469

ele não disse nada. E ela já aprendera uma coisa: Alexander só falava fosse do que fosse quando queria. Observou-o. E desejou-o.

– O que foi? – Nada, nada. – Desviou o olhar. Gatinhando até ela por cima do cobertor, Alexander tirou-lhe o copo e o pão

da mão e sorriu: – Olha, quando quiseres alguma coisa de mim mas tiveres vergonha de a

pedir, abre e fecha os olhos três vezes.

Page 470: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

470

10

Passaram a noite na tenda, ao pé do rio. Depois de tomarem banho, caíram num sono inconsciente horas antes do sol se pôr, às onze, e dormiram quinze horas seguidas.

Já a manhã ia avançada, deixaram as compras no bosque com as rosas vermelhas:

– Eu bem te disse que não devia servir-me. – Sorriu para Alexander, deitado no cobertor, contemplando-a. Ajoelhou-se e voltou-lhe as costas: – Apertas-me as alças, por favor? Mas não puxes muito. Não faças como no autocarro. – Ele não se mexeu atrás de si. Lançou-lhe um olhar de relance: – O que foi?

– Meu Deus, esse vestido... – Tocou-lhe nas costas nuas por baixo das alças de cruzar atrás. Depois de lhas apertar, beijou-lhe as omoplatas dizendo-lhe que estava tão bonita que o padre ia querer casar com ela. Desfez as tranças e deixou o cabelo caído, preso atrás das orelhas. Alexander fardou-se, pôs o boné na cabeça, fez a continência e perguntou:

– Que tal estou? Ela levou timidamente a mão à testa: – És o homem mais bonito que vi na vida. Ele beijou-a. – E daqui a duas horas vou ser o marido mais bonito que já viste na vida –

retorquiu, a transbordar de amor. – Parabéns, minha noiva de dezoito anos. – Tinha a alegria estampada no rosto.

Tatiana abraçou-o – Nem acredito que vamos casar nos dias dos meus anos. – Assim nunca me esquecerás. – Oh, sim, porque de contrário... – Agarrando-se a ele: – Quem poderia

alguma vez esquecer-te, Alexander? Atrás da pequena secretária de uma das salas do registro civil, o conservador

perguntou-lhes com ar indiferente se estavam os dois na posse de suas faculdades mentais e se era de livre vontade que casavam, encolheu os ombros e carimbou-lhes os passaportes.

– E querias tu casar-te à frente dele! – cochichou Alexander quando saíram. Tatiana ficou calada. Não estava muito convencida daquela parte sobre

faculdades mentais. – Mas agora os nossos passaportes domésticos têm um carimbo que casamos

a 23 de junho de 1942. Cada um deles têm o nome do outro. – Sim?

Page 471: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

471

– Alexander, e o Dimi... – Chiu! – interrompeu ele, pousando-lhe dois dedos nos lábios. – Queres

deixar que esse filho da mãe se intrometa nas nossas vidas? – Não – concordou ela. – Quero lá saber dele! Não toques no seu nome, ouviste? Tatiana fez que sim. – Não temos padrinhos – lembrou. – Arranjamos. – Podíamos ir pedir à Naira Mikhailovna e às outras para serem as nossas

madrinhas. – A tua intenção é estragar completamente este dia ou casar comigo? Não respondeu. Ele passou-lhe o braço pelos ombros: – Não te preocupes. Vou arranjar uns padrinhos excelentes. Alexander ofereceu uma garrafa de vodca ao ourives e à mulher, Sofia, se

fossem com eles à igreja durante meia hora. O casal concordou logo e Sofia até se lembrou de levar a máquina fotográfica.

Descendo a rua na direção São Serafim, Sofia comentou: – Vocês os dois devem querer mesmo casar-se para se darem a tanto

trabalho. – Carregou o cenho para Tatiana e lançou-lhe um olhar desconfiado: – Não está grávida, pois não?

– Está – respondeu Alexander descaradamente, afastando a noiva. – É assim tão óbvio? – Deu-lhe uma palmadinha na barriga. – Na verdade vai ser o nosso terceiro filho. – Sorrindo de orelha a orelha: – Mas o primeiro que não é ilegítimo.

Estugaram o passo. Muito corada, Tatiana puxou-lhe um pelo do braço: – Por que fazes isso? – O quê? – Soltando uma gargalhada: – Estar sempre a envergonhar-te? – Sim. – Tentou não sorrir. – É que não quero que saibam nada de nós, Tatia. Não quero revelar nada de

mim ou de ti a ninguém. Nem à desconhecidos nem à velhinhas com quem vivias. A ninguém. Isto não tem nada a ver seja com quem for. Só contigo e comigo. E com Deus – acrescentou.

Tatiana parou ao lado dele. O padre ainda não estava na igreja. – Não vem – segredou, olhando em volta. O ourives e Sofia encontravam-se

ao fundo da pequena igreja, perto da porta, embalando a sua garrafa de vodca. – Há de vir. – Pelo menos um de nós não tem de ser batizado? – quis saber. – Eu sou católico, graças à minha prudente mãe italiana. E não te batizei

ontem no Kama? Ela ruborizou-se. – Linda menina! – cochichou ele. –Aguenta-te. Está quase. – Contemplava o

altar com um olhar inabalável, a cabeça firme a boca fechada. De pé, esperava.

Page 472: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

472

Tatiana pensava que era tudo um sonho. Um pesadelo do qual não conseguia acordar. Mas não um pesadelo dela e sim

de Dasha. Como podia casar com o Alexander de Dasha? Apenas uma semana atrás,

nem lhe passava pela cabeça que isso fosse possível. Não tinha culpa: sentia-se como se estivesse a viver uma vida que não lhe estava destinada.

– Shura, devo ter alguma integridade – começou baixinho. – Cobicei o namorado da minha irmã o tempo suficiente para ela morrer e eu o reclamar para mim.

– Que estás a dizer, Tania? Onde estás? – Confuso, virou-se ligeiramente para ela: – Eu nunca fui da Dasha. Sempre te pertenci. – Deu-lhe a mão.

– Mesmo durante o bloqueio? – Especialmente nessa altura. O pouco que tinha era pra ti. Tu é que

pertencias a toda a gente. Eu era só teu. Tatiana e Alexander tinham vivido um amor impossível. E de repente, o

casamento. Uma proclamação ao mundo, uma bandeira. Haviam-se conhecido e apaixonado, e agora iam casar. Como se esse sempre tivera sido o seu destino. Como se o seu namoro tivesse sido a traição, a mentira, a guerra, a fome e a morte... não uma morte qualquer, mas a de todos os seus entes queridos.

A frágil resolução de Tatiana enfraquecia a cada segundo que passava. Houvera outras vidas e outros corações, profundos e cheios. Pasha perdendo

a vida quando ainda mal começara. A mãe, tentando seguir em frente depois da morte do filho preferido. O pai, envolto numa nuvem de culpa alcoólica que nenhuma guerra poderia dissipar. Marina, sentindo a falta da mãe, com saudades de casa, sem conseguir encontrar um lugar para si no apartamento cheio.

A Babushka Maya, pintando e esperando o regresso do seu primeiro amor. O seu Deda, morrendo longe da família, e a Babushka, morrendo porque não valia a pena sobreviver à guerra sem ele.

E Dasha. Se as coisas eram como deviam ser, porque parecia a morte de Dasha tão

pouco natural, porque parecia ir contra a ordem do universo? Alexander teria razão e Tatiana estaria enganada? A sua integridade

deslocada e a sua inexplicável lealdade para com a irmã seriam censuráveis? Deveria tê-lo deixado dizer a Dasha: Gosto mais da Tania?

Deveria ter dito a Dasha logo desde o primerio dia: Quero-o para mim.? Teria sido mais correto revelar a verdade em lugar de se esconder atrás de

seus receios? Não, pensou, esperando o padre. Não, ele era demais para mim. Fiquei de

boca aberta como se tivesse doze anos. Era perfeitamente natural que a Dasha ficasse com ele. À superfície, parecia ela a mulher indicada, não eu.

Page 473: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

473

Eu estava indicada para o jardim de infância, para a chamada Perlodiskaya, que me dava um beijo e sentava todos os dias ao colo. Estava indicada para o Deda, que me dizia para eu ser de uma determinada maneira e eu obedecia.

– Egoísta! – exclamou na igreja. Alexander olhou-a. Assentindo, repetiu: – Egoísta até ao fim. A Dasha morreu e eu entro em cena. Com cuidado, para não frustar a paixão do Vova nem as ilusões da Naira e da Dusia com a sua devoção. Entro em cena, mas quero que o meu amor por ti não interfira com as sessões de costura, às três horas.

– Tatiana, garanto-te que o teu amor por mim vai interferir em tudo. – Os seus olhos cintilaram por um momento.

Levantou a cabeça para ele. Ainda tinha a boca aberta. Alexander continuava a ser de mais para ela. Agora mais do que nunca.

– Shura – sussurrou. – Sim? – Tens a certeza? Tens? Não és obrigada a fazer isso por mim. – Claro que sim. – Sorrindo e debruçando-se para ela: – Na qualidade de

marido, terei determinados... direitos inalienáveis, que ninguém poderá atacar. – Estou a falar a sério. Ele beijou-lhe a mão: – Nunca tive tanta certeza na vida. Sabia que Alexander teria que se afastar se contasse a verdade a Dasha. E

nunca teria feito parte da verdade Tatiana naquele apartamento monótono, cheio de traições e mágoas.

Perdê-lo-ia, e Dasha também. Não poderia continuar a viver com a irmã, sabendo que Dasha, com os seus seios, cabelos, lábios e transbordante coração não chegava para o homem que amava. Nenhuma ponte, nem sequer a do amor fraternal, poderia unir o abismo que se cavaria na família de Tatiana.

Não, sabia que não podia tê-lo reclamado para si. Mas o problema era que não o reclamara nessa altura e não o fazia agora.

Não estava numa loja do amor onde pudesse dizer: Acho que é meu. Fico com ele. Serve. Não apostava a posse do seu coração.

Fora Alexander quem se aproximara dela, absorta da sua vidinha insignificante e solitária, mostrando-lhe como a vida podia ser infinita. Fora Alexander e quem atravessara a rua e dissera: Sou teu.

Fora Alexander. Olhou-o de relance. Continuava pacientemente à espera, confiante, íntegro e

perfeito. O sol escoava-se pelos vitrais. Aspirou o perfume fraco do incenso há muito queimado. Em Lazarevo, pela mão de Dúsia, entrara pela primeira vez na igreja, que passara a frequentar voluntariamente todas as noites depois do jantas, pronta a rezar como ela lhe ensinara, pronta a separar-se da sua própria tristeza e dúvida.

Page 474: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

474

Em criança, num verão passado em Luga, o seu querido Deda dissera-lhe ao vê-la deprimida e desnorteada:

– Responde a três perguntas, Tatiana Metanova, e saberás quem és. São elas: Em que acreditas? Em que confias? Mas mais importante: Que amas?

Levantou o rosto para Alexander: – Como era, Shura? Na primeira noite, disseste que eu e tu tínhamos alguma

coisa, a que chamaste... – A força do amor. Sei quem sou, pensou, dando-lhe a mão e virando-se para o altar. Sou a

Tatiana. E acredito, confio e amo o Alexander para toda a vida. – Estão prontos, meus filhos? – O padre Mikhail avançou pela igreja. – Fiz-vos

esperar? Ocupou o seu lugar no altar, à frente deles. O ourives e Sofia aproximaram-se.

Pareceu a Tatiana que talvez eles já tivessem acabado a garrafa de vodca. – Hoje faz anos – sorriu o padre, dirigindo-se-lhe. – É um lindo presente de

aniversário, não? Apertou-se contra Alexander. – Por vezes sinto que o meu poder é limitado pela ausência de Deus na vida

dos homens, neste período difícil – começou padre Mikhail. – Mas continua presente na minha igreja e vejo que também em vós. É uma alegria terdes vindo, meus filhos. Deus quer que sejais felizes e que vos ampareis e reconforteis mutuamente na prosperidade e na adversidade e que a vossa união seja fértil. Espero poder mostrar-vos o caminho certo. Estais pronto para vos entregardes um ao outro?

– Estamos – afirmaram em coro. – Laço e a aliança do casamento foram estabelecidos por Deus na criação.

Jesus Cristo confirmou-o fazendo o seu primeiro milagre nas bodas de Caná da Galileia. O matrimonio é o símbolo do mistério da união entre Cristo e sua igreja. Sabeis que aqueles que Deus uniu, nenhum homem pode separar?

– Sabemos. – Tendes as alianças? – Temos. O padre Mikhail continuou, erguendo o crucifixo acima das suas cabeças: – Deus, Todo Poderoso, olhai para este homem e esta mulher, que vivem num

mundo pelo qual o vosso filho deu a vida. Possa a sua vida em comum ser um sinal do amor de Cristo por este mundo pecador. Defendei este homem e esta mulher dos seus inimigos. Dai-lhes a paz. Que o amor que sentem um pelo outro seja um sinal em seus corações, um manto nos seus ombros e uma coroa nas suas cabeças. Abençoai-os no trabalho e na amizade, de dia e de noite, na alegria e na tristeza, na vida e na morte.

Deslizaram lágrimas pelas faces de Tatiana. Esperava que Alexander não reparasse. O padre Mikhail de certeza que notara.

Page 475: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

475

Virando-se para ela, Alexander tomou-lhe as mãos e sorriu ao ver a sua felicidade perfeita.

Ao saírem, nos degraus da igreja, ergueu-a do chão e fê-la rodopiar, beijando-a em êxtase. O ourives e Sofia, já ao fundo as escadas, bateram palmas.

– Não a aperte tanto. Ainda esmaga a criança – recomendou Sofia a Alexander, virando-se e apontando a máquina desconjuntada. – Oh, esperem! Deixem-me tirar um retrato aos recém-casados.

Disparou uma vez. Duas. – Talvez para a semana tenha papel para poder revelá-las. – Acenou-lhes. – Então? Ainda achas que devias ter sido o conservador do registro civil a

casar-nos? – Sorrindo de orelha a orelha: – Ele mais a sua filosofia das faculdades mentais?

Tatiana abanou a cabeça: – Tinhas toda razão. Foi perfeito. Como sabias? – Porque foi Deus que nos uniu. Esta foi a maneira de Lhe agradecermos. – Já viste que demoramos menos tempo a casar-nos do que a fazer amor pela

primeira vez? – casquinou Tatiana. – Muito menos. – Rodopiando com ela: – Além disso, casar é a parte mais

fácil. Tal e qual como fazer amor. O difícil foi levar-te a fazer amor comigo. O difícil foi levar-te a casares comigo...

– Desculpa. Estava tão nervosa! – Eu sei. – Ainda não a pousara no chão. – Pelos meus cálculos, as

probabilidades eram de oitenta pra vinte. – Vinte contra? – Vinte a favor. – Devias ter mais fé, meu marido. – Beijou-lhe os lábios.

Page 476: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

476

11

Regressaram pela estrada da floresta, transportando as compras às costas. Alexander levava quase tudo e Tatiana só as duas almofadas.

– E se fôssemos a casa da Naira Mikhailovna? – sugeriu ela. – Devem estar preocupadíssimas.

– Lá está tu a pensar nas outras pessoas e não em mim – replicou ele, ligeiramente irritado. – Queres voltar àquela casa no dia do nosso casamento? Na noite de núpcias?

Alexander tinha razão. Porque fazia aquilo? Não gostava que as pessoas se sentissem mal, pronto. Disse-lho.

– Eu sei. Mas não podes contentar toda a gente. Olha, começa por mim. Alimenta-me. Acarinha-me. Ama-me. Depois iremos à Naira Mikhailovna. – Ela caminhava devagar ao seu lado. – Tatiasha, se quiseres vamos lá amanhã. Está bem? – suspirou.

Chegaram à cabana da clareira por volta das seis da tarde. Na porta, encontrava-se um bilhete de Naira: Onde te meteste, Tania? Estamos aflitíssimas. N.M.

Alexander arrancou-o. – Não vamos entrar? – perguntou ela. – Vamos, mas... – Sorrindo: – Espera. Primeiro tenho de fazer uma coisa. – O quê? – É só um minuto. Pegando os utensílios domésticos, nas almofadas e nos edredons pesados,

desapareceu lá dentro. Enquanto esperava por ele, Tatiana fez sanduíches com pão, manteiga, tushonka e queijo. Ele continuava no interior da casa.

A jovem começou a deslizar em círculos pela clareira, dançando ao ritmo de uma melodia que lhe soava na cabeça:

– Havemos de encontrarmos em Lvov, eu e o meu amor. – Viu o vestido rodopiando e, sorrindo, girou mais depressa num delírio extravagante, observando as rosas a flutuarem no ar. Quando levantou a cabeça, deu com Alexander parado à porta, devorando-a com um olhar extasiado.

Sorriu. – Olha – apontou. – Fiz-te um sanduíche. Tens fome? Ele abanou a cabeça e caminhou em sua direção. Tatiana correu para ele e

lançou-lhe os braços ao pescoço: – Nem acredito que estamos casados, Shura. Erguendo-a nos braços, dirigiu-se à porta:

Page 477: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

477

– Na América, temos um costume: o marido atravessa a porta de sua nova casa com a esposa nos braços.

Ela beijou-lhe a face. Era mais bonito do que o sol da manhã. Uma vez dentro de casa, fechou a porta com o pé. Estava escuro, como num

sonho. Precisavam de uma candeia de querosene. Haviam-se esquecido. No dia seguinte, teriam de comprar uma em Lazarevo.

– E agora? – perguntou ela, esfregando a face na dele. – Vejo que fizeste a cama. Que gentil! – A barba já lhe crescera desde a manhã.

– Faço o que posso. – Levou-a para o leito que arranjara por cima do fogão, pousou-a e abriu-lhe as pernas, colocando-se no meio delas e roçando-lhe a cabeça no peito. Levantou-lhe o vestido.

Tatiana só queria observá-lo, mas o desejo obrigava-a a fechar os olhos. – Não vens cá para cima? – Ainda não. Deita-te para trás. Assim. – Tirou-lhe a calcinha e aproximou o

rosto das suas coxas. Tudo o que a jovem ouviu durante algum tempo foi a sua respiração

acelerada. Estendeu a mão e tocou-lhe na cabeça. – Shura? – Os olhos que não largavam, as mãos, o bafo, ameaçava tirar-lhe as

forças. Os dedos dele afundaram-na. – Tudo debaixo do teu vestido branco com rosas vermelhas... – sussurrou. –

Olha pra ti... – Beijando-a docemente: – Tania, és um encanto. – Sentiu, os seus lábios quentes e úmidos. O cabelo e a barba dele acariciavam-lhe o interior das coxas. Era de mais. O fogo ateou-se quase instantaneamente.

Ainda tinha convulsões quando Alexander subiu para a cama e lhe pousou a mão no ventre trêmulo.

– Meu Deus, Alexander! – exclamou sem ar. – Que me estás a fazer? – És incrível. – Eu? – murmurou, empurrando-o para baixo. – Outra vez?... Por favor? –

Espreitou e fechou os olhos ao ver o seu ar malicioso. – O que foi? – Sorriu: – Ao contrário de ti, não preciso de nenhum período de descanso.

As mãos dela crisparam-se lhe na cabeça. – Tatia... és tão loura... já te disse como gosto? Ela gemeu baixinho; a boca, a língua dele, excitavam-na muito: – Oh, Shura... – Sim? Incapaz de controlar o seu delírio, só falou ao fim de algum tempo: – Que pensaste da primeira vez que me viste com este vestido? – Que pensei? Gemeu. – Pensei... Estás a ouvir? – Oh, sim...

Page 478: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

478

– Pensei... – Oh, Shura... – Pedi a Deus... que um dia me deixasse fazer amor contigo com ele vestido. – Oh... – Tatiasha... não é bom saber que Deus existe? – Oh, sim, Shura, sim... – Alexander – ofegou, deitada de lado, com os olhos semi cerrados e a boca

seca, incapaz de respirar decentemente –, diz-me que já me mostrastes tudo o que há para saber. Acho que acabaste comigo.

Ele sorriu: – Posso surpreender-te? – Não. Diz-me que não há mais nada. – Mas viu-lhe o brilho dos olhos. Deitando-a de costas, desceu sobre ela: – Mais nada? – Beijou-a avidamente e afastou-lhe as pernas. – Ainda nem

comecei – segredou. – Tenho-te deixado à vontade. – À vontade? – repetiu, incrédula. Quando a penetrou, agarrou-se a ele,

gemendo sob o seu peso, sentindo as entranhas novamente em fogo. – É de mais? Estás a agarrar-me como se... – É, é de mais... – Tania... – A boca dele passeava-lhe pelos ombros, pescoço e lábios. – É a

nossa noite de núpcias. Tem cuidado comigo... no fim, de ti só vai ficar o vestido. – Prometes, Shura? – murmurou. Alexander afagou-lhe a mão e tocou-lhe na aliança: – Na América, quando duas pessoas se casam, pronunciam os seus votos.

Sabes o que são? Tatiana não lhe prestou atenção. Estava a pensar na América. Queria

perguntar-lhe se na América também existiam aldeias com cabanas nas margens dos rios. Na América, onde não havia guerra, nem fome, nem Dimitri.

– Estás a ouvir? O padre diz: Alexander, aceitas essa mulher como tua esposa? Depois juramos lealdade um ao outro. Queres saber como?

– Como o quê? – Levou-lhe os dedos aos lábios. – Tens de repetir comigo. Repete: Eu, Tatiana Metanova, aceito este homem

como meu marido. – Eu, Tatiana Metanova, aceito este homem como meu marido. – Beijou-lhe o

polegar, o indicador e o médio. Tinha uns dedos admiráveis. – Para viver com ele no sagrado matrimonio. – Para viver com ele no sagrado matrimonio. – Beijou-lhe o anelar. – Amando-o, respeitando-o e honrando-o... – Amando-o, respeitando-o e honrando-o... – Beijou-lhe a aliança e o

mindinho. – E obedecendo-lhe. Tatiana sorriu e pôs os olhos em alvo:

Page 479: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

479

– E obedecendo-lhe. – E sendo-lhe fiel até que a morte nos separe... Beijou-lhe a palma da mão e limpou com ela as lágrimas do rosto: – E sendo-lhe fiel até que a morte nos separe. – Eu, Alexandre Barrington, aceito essa mulher como minha esposa. – Não, Shura. – Sentou-se em cima dele e esfregou-lhe os seios no peito. – Para viver com ela no sagrado matrimonio... Beijou-lhe o tronco. – Amando-a... – a voz embargou-se-lhe – ...amando-a, respeitando-a e

honrando-a. Encostou-lhe a face ao peito e escutou-lhe o verso jâmbico do coração. – E sendo fiel até que... – Não, Shura. – As suas lágrimas molharam-lhe o peito. – Por favor. Levou as mãos acima da cabeça. – Há coisas piores do que a morte. Sentia o coração a transbordar. Lembrou-se da mãe curvada sobre a costura.

Recordou a última palavra de Marina: Não quero morrer... sem sentir o que tu sentes. E Dasha rindo, fazendo-lhe tranças havia já uma eternidade.

– Sim? O quê? Ele não respondeu. Mas ela compreendeu: – Prefiro ter uma vida má na União Soviética do que uma boa morte. Não

achas? – Se for uma vida contigo, sim. Tatiana assentiu: – Além disso, nunca vi nenhuma morte boa. – Viste sim. Que te disse a Dasha antes de morrer? Apertou-se contra ele. Desejou estar dentro dele, tocar-lhe o coração

magnânimo. – Que eu era uma boa irmã. As mãos de Alexander abraçam-na delicadamente: – Foste muito boa irmã. A Dasha partiu em paz. – Depois de uma pausa: –

Teve uma boa morte. Beijou-lhe a pele por cima do coração: – Que me dirás quando me deixares sozinha no mundo, Alexander

Barrington? – sussurrou. – Que me dirás para eu saber, para eu ouvir? Ele curvou-se por cima dela: – Tania, aqui em Lazarevo não há morte – segredou. – Nem morte, nem

guerra, nem comunismo. – Só eu, tu e a vida. – Sorrindo: – Vida conjugal. Vamos vivê-la. – Saltou da cama. – Anda lá fora comigo.

– Está bem. – Põe o vestido. – Enfiou as calças da tropa. – Só o vestido.

Page 480: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

480

Ela sorriu e desceu da cama: – Onde vamos? – Vamos dançar. – Dançar? – Sim. Dança-se sempre nos casamentos. Levou-a para o frio da clareira. Ouvia-se o rio e o estalido dos pinheiros.

Cheirava a pinhas. – Olha para a lua, Tatia... – Apontou para o vale distante, entre os montes

Urais. – Estou a ver. – No entanto, tinha os olhos postos nele. – Mas não temos

música. – Sorria à sua frente, com as mãos nas dele. Alexander cingiu-a a si: – Ao luar casamenteiro, dançando com a minha mulher envergando o seu

vestido de noiva... Valsaram na clareira à luz da lua que se erguia no céu, redonda e carmesim. Ele cantou: Oh, como dançamos. Na noite em que casamos... Encontramos o

amor. Mas nenhuma palavra pronunciamos... Cantou em inglês e Tatiana percebeu quase tudo. – Tens uma voz muito bonita, querido Shura. Conheço essa música. Em russo,

chamamos-lhe A valsa do Danúbio. – Prefiro em inglês. – Eu também – concordou, apertada contra o seu peito, olhando-o. – Tens de

me ensinar a cantá-la. Ele pegou-lhe na mão: – Anda, Tatiasha – sussurrou. Não dormiram nessa noite. As sanduíches ficaram no chão ao pé das árvores,

no sítio onde Tatiana se sentara a fazê-las. Alexander. Alexander. Alexander. Os anos passados na Dasha, o barco, o lago Ilmen onde outrora fora rainha,

tudo desapareceu para sempre no abismo da infância. Tremendo, Tatiana rendeu-se a Alexander que, alternadamente ávido e terno, realizou na sua carne sedenta milagres com que nunca sonhara... como se do seu gérmen eterno impregnada... Toda a matéria desta terra – emoções, angústia, paixão –, tivesse sido em matéria celestial transformada.

Page 481: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

481

12

De manha cedinho, sentada no corredor de frente para o rio azul e cristalino, Tatiana embalava a cabeça de Alexander entre as mãos.

– Querido, queres ir tomar banho? – Iria se conseguisse mexer-me – respondeu ele, com a cabeça pousada no

seu colo. Depois de terem dormido umas duas horas e tomado banho outras tantas, vestiram-se e foram a casa de Naira. As senhoras encontravam-se na varanda, bebendo chá e tagarelando.

– Estão a falar de nós – observou ela, dando um passo para o lado. – Vamos dar-lhes assunto para coscuvilharem a sério – replicou Alexander,

empurrando-a para frente e beliscando-lhe uma nádega. Ficaram transtornadas. Dusia chorou e rezou. Raisa tremeu mais do que o

habitual. Naira olhou para Alexander com um ar de censura. Axinya não parou quieta, como se mal pudesse esperar para contar às amigas, mais tarde.

– Onde te meteste? Não sabíamos de ti. Chegamos a pensar que tinhas sido morta – afligiu-se Naira.

– Diz-lhes, Tania. Foste morta? – Alexander tentou não sorrir. Todas elas, incluindo Tatiana, lhe lançaram um olhar de poucos amigos.

Alexander fez a continência e saiu para se barbear. Com aquela barba preta, deve parecer um pirata, pensou ela. Que fazer? Fingir? Reconhecer? Mas conseguiria explicar? Conseguiria explicar as voltas da sua vida àquelas mulheres bem intencionadas, que acreditavam numa coisa e a quem agora ia dizer ao contrário? Que apenas alguns dias atrás andavam numa aflição por Alexander ir percorrer mil e seiscentos quilômetros para casar com a noiva? E de repente, isso? Não iam ficar muito bem vistos, nem ela, nem ele.

– Tatiana, queres dizer-nos onde estiveste? – Em lado nenhum, Naira Mikhailovna. Fomos a Molotov. Compramos umas

coisas, comida e... Nós... Que ia dizer? – Onde dormiste? Desaparecesse durante três dias! Não sabíamos o que era

feito de ti. Alexander subiu as escadas, entrou na varanda e disse sem rodeios. – Já lhes contaste que casamos? O oxigênio da varanda foi quase todo encher os pulmões das velhotas, que

exclamaram em coro: – Aahhhhhh!

Page 482: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

482

Tatiana esfregou os olhos e abanou a cabeça. Ele que tratasse do resto. Sentou-se numa cadeira junto do sofá e suspirou.

– Estou a morrer de fome – anunciou Alexander, entrando na sala. – Há alguma coisa para comer, Tatia? – Voltou a aparecer mastigando um pedaço de pão, sentou-se no sofá ao lado de Dusia e passou-lhe o braço pelos ombros: – Minhas senhoras, não adoram recém-casados nas aldeias? Podíamos fazer uma festinha. – Sorriu de orelha a orelha.

Perdendo a compostura, Naira falou secamente: – Alexander, não sei se reparou, mas estávamos zangadas. Tristes e zangadas. – Casados! – exclamou Axinyia. – Casados? – gritou Dusia, benzendo-se. – A minha Tanechka não. A minha

Tanechka é pura... Tossindo muito alto, Alexander levantou-se: – Tania? Por favor, vamos comer. – Espera, Shura. Tornou a sentar-se. – Tatiana Giorgievna – comelou Dusia –, diz-me que não é verdade. Diz-me

que ele está só a brincar. A pregar uma partida e quatro velhas que ainda ficam mais velhas antes do tempo.

– Não me parece que ele esteja a brincar, Dusia – observou, Naira Mikhailovna.

Tatiana abanou a cabeça a Alexander: – Dusia, não fique assim, por favor... – Espera! – Interrompeu ele, virando-se para a velhinha, sentada ao seu lado. – Porque há de ficar preocupada? Estamos casados, Dusia! Não é bom? – Bom! – Gritou. – Tania... e Deus? – E a tua irmã? – perguntou Naira com severidade. – E o decoro, a decência? – acrescentou Axinya encantada, como se o decoro

e a decência fossem as duas últimas coisas que queria ver em Lazarevo. Raisa tremia: – A memória da tua irmã ainda nem arrefeceu, Tania. – Alexander, pensávamos que tinha vindo para casar com Dasha, que Deus

tenha a sua alma em descanso – atirou Naira em voz cortante. Olhando de relance para Alexander, Tatiana percebeu que ele estava a perder

a paciência. – Esperem, deixem-me explicar... – apressou-se a dizer. Tarde de mais. Alexander levantou-se: – Não, eu explico. Vim a Lazarevo pela Tatiana. Para casar com ela. Pronto,

Tania, vamos embora. Eu levo-te a arca e depois vimos buscar a máquina de costura. – A arca? Não, ela não sai daqui! – gritou Naira. – Ai sai, sai – teimou ele. – Mas não precisa de ir!

Page 483: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

483

– Minhas senhoras – começou Alexander, passando o braço em volta do pescoço da jovem –, somos recém-casados. – Erguendo as sobrancelhas: – Querem-nos mesmo na vossa casa?

Naira engasgou-se. Dusia benzeu-se. Raisa tremeu e Axinya juntou as mãos, num gesto de satisfação.

Tatiana apertou o braço de Alexander: – Cala-te – cochichou. – Vai lá pra fora. Dá-me um segundo para falar com

elas, está bem? – Quero ir embora. – Já vamos. Agora sai. – Não percebo porque tens de sair daqui. Podes ficar com o meu quarto. Eu

durmo no fogão. Antes que Tatiana pudesse impedi-lo, Alexander curvou-se para frente: – Naira Mikhailovna, acredite, é melhor não ficarmos na sua casa... Auu! – Por favor, Alexander! Sai – pediu ela, esfregando-lhe o braço no sítio onde

lhe beliscara. Virando-se de novo para Naira, sentou-se: – Olhe, ficamos melhor na cabana. – Quis dizer com mais privacidade, mas

sabia que não seria entendida. – Se precisarem de alguma coisa, digam-nos. – O Alexander tenciona vir aqui consertar a vedação. E se nos quiserem aqui a jantar, digam-nos também.

– Taneshka, estamos tão preocupadas contigo! – comentou Naira. – Ainda por cima tu, casa com um militar.

Dusia murmurou o nome de Cristo. Naira continuou: – Não sei por ele... mas achávamos que tu ia escolher alguém mais parecido

contigo, com quem te desses melhor. Axinya sorriu: – Começo a desconfiar que foi precisamente isso que ela fez. – Não se preocupem comigo – tranquilizou-as Tatiana. – Estou bem com ele. – E claro que queremos que venhas jantar – acrescentou Naira. – Nós

amamos-te. – Que Deus te livre dos horrores da cama conjugal – rematou Dusia. Mantendo o rosto sério e olhando de relance para o marido, que continuava

lá fora: – Obrigada. No quintal, Alexander dobrava-se de riso. Como lhe levava a arca grande e pesada, não podia fazer grande coisa. A

situação agradava-lhe, já que ia a berrar com ele: – Porque não me deixas a tratar das coisas à minha maneira. Porquê? – Porque a tua maneira implica passar horas a ordenhar uma vaca, lavar-lhes

a roupa, costurar-lhes outras novas e sabe Deus que mais!

Page 484: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

484

– Não percebo. Pensei que depois do casamento acalmarias um pouco, que serias menos protetor, menos... tu sabes... esse teu jeito americano, que te destaca dos outros como um gancho preto entre pregos brancos.

Alexander arrebentou a rir: – Não entendes nada. – Ofegava um bocadinho. – Porque pensaste isso? – Porque estamos casados. – Para te tirar as ilusões, aviso-te de que tudo que viste até ao momento será

multiplicado por cem agora que és minha mulher. Tudo. – Tudo? – Sim. A proteção. A posse. O ciúme. Tudo. Cem vezes mais. É assim a

natureza das feras. Não quis dizer-te antes porque talvez ficasses assustada. – Talvez? – Não te disse? Agora não podes anular o casamento. – Fitou-a com os olhos

em fogo: – Não depois de o... consumarmos com tanta minúcia. Nem sequer esperaram para chegar a casa. Ele levou o baú para o meio das

árvores e sentou-se nele. Tatiana saltou-lhe para cima. – Não faças muito barulho – avisou-a, erguendo-a. Depois, comentou: – É como pedir-te que tires as sardas por um dia, não é? As quatro mulheres foram visitá-los um pouco mais tarde. Alexander e Tatiana

estavam a jogar futebol. Na verdade, acabara de lhe tirar a bola e, guinchando, tentava não a perder de novo, enquanto ele a atava por trás.

O marido levantara-a do chão e apertava-a a si, enquanto ela berrava e esperneava.

Alexander só tinha as cuecas vestidas e ela a calcinha e a camisola sem manga dele.

Muito afogueada, Tatiana pôs-se à frente dele, para lhe proteger o corpo quase nu de quatro pares de olhos esbugalhados. Atrás dela, com as mãos nos seus ombros, Alexander começou:

– Diz-lhes... Não, esquece. Eu digo. – Antes de ela ter tempo para fazer fosse o que fosse, avançou e encaminhou-se para elas. Quase nu e implacavelmente ele próprio. Tinha duas vezes o seu tamanho. – Minhas senhoras, de futuro talvez seja melhor esperarem pela nossa visita.

– Shura, vai vestir-se – murmurou Tatiana. – Futebol é provavelmente aquilo que de mais inocente verão – rematou para

os rostos pasmados, entrando em casa. Quando regressou vestido decentemente, anunciou que ia à aldeia buscar uma coisa de que precisavam: gelo e um machado.

– Que combinação mais estranha! – comentou Tatiana. – Onde vais arranjar o gelo?

– Na fábrica têm de congelar o peixe, não? – E o machado?

Page 485: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

485

– Peça-o ao Igor, que é tão simpático – gritou, subindo já a clareira e atirando-lhe um beijo.

Ela ficou a observá-lo: – Despacha-te a voltar. Naira Mikhailovna desculpou-se atrapalhada. Dusia murmurava uma oração.

Raisa tremia. Axinya sorria alegremente. Tatiana convidou-as para beberem kvas: – Entrem. Venham ver como o Alexandre limpou a casa. E consertou a porta.

Lembram-se que a dobradiça de cima estava partida? As quatro mulheres olharam em volta, procurando um sítio para se sentarem. – Não tens mobília – constatou Naira, nervosa. Axinya soltou uma exclamação de alegria. Dusia benzeu-se. – Eu sei. Não precisamos de muita coisa. – Olhou para o chão. – Temos

algumas coisas, a minha arca... O Alexander vai fazer o banco. Trago a mesa com a máquina de costura... Não se preocupe.

– Mas como... – Oh, Naira! – protestou Axinya. – Deixe a rapariga em paz. Dusia lançou um olhar de poucos amigos aos lençóis revoltos em cima do

fogão. Tatiana sorriu, afogueada. Alexander tinha razão. Era melhor irem eles visitá-las. Por isso, perguntou quando poderiam ir lá jantar.

– Hoje, claro – retorquiu Naira. – Hoje vamos festejar. Mas venham todos os dias. Não vão poder comer aqui. Nem sequer tens sitio para te sentar nem cozinhar. Ainda morres à fome. Venham todas as noites. Não é pedir muito, pois não?

– É, é pedir muito – disse Alexander quando regressou, sem gelo (Amanhã) mas com um machado, um martelo, pregos, uma serra, uma plaina e um fogareiro de querosene. – Não casei contigo para irmos lá todas as noites. – Riu: – Convidaste-as para entrar? Que valente, minha mulher! Ao menos fizeste a cama antes? – Soltou uma gargalhada.

Tatiana abanava a cabeça, sentada no frio do fogão de ferro: – És impossível. – Eu? Nem penses que vou lá jantar. Porque não as convidadas depois para o

vaudeville do serão... – Vaudeville? – Deixa. – Pousando o que trouxera no chão, a um canto: – Convida-as para o

espetáculo, vá. Enquanto eu faço amor contigo, elas andam a tagarelar à volta do fogão. A Naira dirá: Tss, tss, eu bem a aconselhei a ficar com o meu Vova. Sei que faria melhor. E Raisa quererá exclamar: Oh, meu Deus, oh, meu Deus!, mas estará a tremer de mais. A Dusia: Oh, Jesus adorado, pedi-Te que a poupasses aos horrores do leito conjugal! E a Axinya...

– Esperem até a aldeia inteira saber dos vossos horrores – completou ela. Alexander riu-se e saiu para tomar banho no rio.

Page 486: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

486

Tatiana ficou, arrumando as suas coisas, limpando e fazendo a cama. Arranjou-se para ir a casa de Naira e estava sentada à espera que a água fervesse no fogareiro para poder fazer chá, quando ele voltou a entrar, despindo os calções molhados e aproximando-se. Ela levantou a cabeça e o coração derreteu-se-lhe ao vê-lo. Alexander tocou-lhe com a perna:

– O que é? – Nada. – Apressou-se a voltar o olhar para a chaleira. Ele tocou-lhe outra vez.

Queria tanto contemplá-lo. Queria tanto saboreá-lo! Dominando a timidez, ajoelhou-se no soalho de madeira em frente dele e

tomou-o nas mãos ternas. – Os homens são todos assim tão bonitos, ou és só tu? – segredou com amor. – Oh, sou só eu. – Fez um sorriso aberto. – Os outros homens são todos

repelentes. Erguendo-a do chão: – A madeira é muito dura para os teus joelhos. – Há tapetes na América? – De parede a parede. – Passe-me uma almofada – sussurrou ela. Foram para casa de Naira. Tatiana fez o jantar enquanto Alexander consertava

a vedação partida. Vova e Zoe também apareceram, visivelmente confundidos com a partida do destino, que levara a sua pequena, despretensiosa e inocente amiga a casa com um soldado do Exército Vermelho.

Tatiana observava que toda a gente observava cada gesto seu. Por isso, depois de servir Alexander, ficou de pé encostada a ele mas não conseguiu olhá-lo, pois sentia-se a arder por dentro, e tinha medo de que todos na mesa o percebessem imediatamente.

Após o jantar, Alexander não pediu a ninguém que o ajudasse. Foi ajudá-la ele. Lá fora, curvados sobre o alguidar, pegou-lhe no queixo:

– Tania, não tornes a virar-me a cara. Agora és minha, e preciso de o ver estampado no teu rosto sempre que olho pra ti.

Ela contemplou-o, adorando-o. – Isso – sussurrou ele, beijando-a. Entrelaçaram os dedos na água quente com

sabão.

Page 487: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

487

13

Na tarde do dia seguinte, de tronco nu e descalço, Alexander agachou-se à frente de duas taças de metal enquanto Tatiana dava passinhos de dança atrás dele, saltitando e perguntando-lhe o que estava a fazer. Não lhe agradavam as surpresas. Gostava de saber logo tudo. Por fim, foi obrigado a levantar-se: agarrou-lhe nosombros, empurrou-a e pedi-lhe para ir cozinhar, ler, praticar inglês... qualquer coisa menos incomodá-lo durante vinte minutos.

Mas era impossível. Tatiana parou de saltar e aproximou-se em bicos de pés, espreitando-lhe por cima das costas.

Alexander misturou leite, natas espessas, açúcar e ovos na taça mais pequena e mexeu energicamente todos os ingredientes.

Ela levantou a camisa esfregou-lhe os seios nas costas nuas. – Hum – murmurou ele. – Mas do que preciso agora é de uma chávena de

mirtilos. Foi apanhá-los, contente por poder ajudar. Depois de encher a taça maior

com gelo e sal grosso, Alexander meteu a forma mais pequena dentro da grande e mexeu a mistura de leite e açúcar com uma colher de pau.

– Que estás a fazer? Quando vais dizer-me? – Daqui a bocadinho. – Quando? Diz-me agora. – És impossível. Daqui a trinta minutos. Consegues esperar trinta minutos? – Trinta minutos? E que fazemos entretanto? – Saltitava. – És de mais! – Riu-se: – Olha, tenho de mexer isto. Volta daqui a trinta

minutos. Tatiana percorreu a clareira em círculos, observando-o. Sentia-se delirante. Aquela felicidade infinita deixava-a sem fala, sem

palavras. – Estás a ver, Shura? Olha! – Fez uma série de rodas e balançou-se para cima e

para baixo, apoiando-se numa mão. – Estou, minha doçura. Estou a ver. Chamou-a passados trinta minutos. Tatiana aproximou-se a correr e espreitou a espessa mistura azul: – O que é? Ele estendeu-lhe uma colher. – Prova. Obedeceu. – Gelado? – perguntou com incredulidade.

Page 488: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

488

Ele assentiu, sorrindo: – Gelado. – Fizeste-me gelado? – Fiz. Parabéns! – Calou-se. – Ora, porque estás a chorar? Come. Ainda

derrete todo. Sentou-se no chão com a taça entre as pernas, a comer o gelado e a chorar. Ele abriu as mãos numa incompreensão perplexa e foi-se lavar. – Guardei um bocadinho pra ti. Toma – disse-lhe, chorosa, quando ele

regressou. – Não, come tudo. – É muito para mim. Já comi metade. Se não comes, que vamos fazer com o

resto? Alexander ajoelhou-se ao seu lado: – Estava a pensar que gostaria de te despir, espalhar-te o gelado pelo corpo e

depois lambê-lo. – Parece-me um desperdício de um gelado excelente – replicou em voz rouca,

largando a colher. Não continuou, porém, a pensar da mesma maneira durante muito mais

tempo. Tomaram banho e depois ele sentou-se a fumar: – Faz rodas nuas. – Aqui? Não é um bom lugar. – Se não aqui, então onde? Vá, direita ao rio. Levantou-se, sorridente. Com água a cintilar no corpo nu, levantou os braços: – Estás pronto? – Catapultou-se para o chão, descrevendo alegres arco-íris...

uma, duas , três, quatro, cinco, seis, sete vezes até ao Kama. – Que tal? – gritou da água,

– Espetacular – retorquiu ele, sentado no chão a fumar, observando-a.

Page 489: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

489

14

Mesmo sem relógio, Alexander acordou primeiro na manhazinha azul e foi lavar-se e fumar enquanto Tatiana esperava por ele, sonolenta e aninhada numa bola como um pãozinho quente acabado de sair do forno. Quando voltou a saltar para a cama, encostou-lhe imediatamente o corpo gelado. Gritou e tentou afastar-se:

– Não! Por favor! Que crueldade! Espero que te castiguem no Exército. Aposto que nunca fizeste isso duas vezes ao Marazov.

– E eu aposto que tens razão. Só que não tenho direitos inalienáveis sobre o Marazov e tu és minha mulher. Vira-te pra mim.

– Larga-me e eu viro-me. – Tania... – sussurrou ele. – Não é preciso virares-te para mim. – Continuou a

apertar-se dentro dela. – Mas não te largo até me aqueceres por dentro e por fora. Depois de fazerem amor, Tatiana preparou o pequeno-almoço: doze

panquecas de batata. A seguir, sentou-se no cobertor ao seu lado. Cada manhã, cada dia glorioso era mais quente do que o anterior. Contemplou-o devorando a comida.

– Que foi? – Nada. – Sorrindo: – Tens sempre tanta fome! Como sobreviveste o inverno

passado? – Como sobrevivi? Eu? Ofereceu-lhe o resto de suas panquecas. Ele protestou, mas ela chegou-se

muito e deu-lhe de comer, incapaz de tirar os olhos dele, sentindo-se a derreter. – Que se passa, Tatia? – perguntou docemente, comendo as últimas garfadas

das mãos dela. Sorriu: – Fiz alguma coisa que te agradasse? Corando e abanando a cabeça, soltou um murmúrio agitado e beijou-lhe o

rosto por barbear: – Vá, marido, anda fazer a barba. – Já te contei que a Axinya se ofereceu para acender os banya amanhã de

manha? Diz que, se quisermos tomar um banho quente, se põe à porta para não deixar entrar ninguém.

– Hum. Já me tinhas dito. Gosto da Axinya, mas sabes muito bem que se porá a escutar à porta.

– Olha, terás de fazer menos barulho. – Limpou-lhe o sabão na face macia. – Eu terei de fazer menos barulho? Ela ruborizou-se e sorriu:

Page 490: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

490

– Que vamos fazer hoje? – indagou, acabando de barbear a outra face e enxugando-lhe o rosto. – Devíamos ir apanhar mirtilos para eu fazer uma torta.

– Pois devíamos. Mas primeiro vou puxar aquele tronco para a água de modo a termos um sítio para nos sentarmos e lavar os dentes e depois quero fazer uma mesa para arranjarmos o peixe. E tu vais à reunião de costura. Ter com as tuas mulheres. Não fico contente.

– São só umas horas. – Aí fico contente. – Não fazes mais do que a tua obrigação. – Só tenho uma obrigação aqui em Lazarevo. – Agarrou-a pela cintura: – Fazer

amor com a minha núbil esposa. Tatiana quase soltou um gemido: – Falas muito mas não... – Como está o meu inglês? ¬– perguntou-lhe em inglês. – Bom – respondeu ele, também em inglês. A manhã já ia avançada. Caminhavam por entre os densos bosques de folha

caduca da margem do rio, a alguns quilômetros de casa, transportando dois baldes de mirtilos. Era suposto falarem só em inglês, mas Tatiana disse em Russo:

– Parece-me que leio muito melhor do que falo. Mais do que incompreensível, John Stuart Mill é simplesmente ilegível.

Alexander sorriu: – Que bela distinção! – Arrancou uns cogumelos: – São comestíveis, Tania? A jovem tirou-lhos das mãos e atirou-os no chão. – São. Mas podemos comê-los uma vez. Ele soltou uma gargalhada. – Tenho de te ensinar a apanhar cogumelos, Shura. Não basta arrancá-los sem

mais nem menos. – E eu tenho de te ensinar a falar inglês. – Este é o meu novo marido, Alexander Barrington – disse ela em inglês. Um sorriso de prazer estampou-se-lhe no rosto: – E esta é minha nova esposa, Tatiana Metanova. – Beijando-lhe o alto das

tranças, continuou em russo: – Agora diz as outras palavras que eu te ensinei: Ficou vermelha como um tomate: – Não – declarou firmemente. – Não vou dizê-las. – Peço-te. – Não. Procura mirtilos. Reparou que Alexander não estava minimamente interessado em mirtilos. – E se for depois? Dizes depois? – Nem agora, nem depois – replicou com valentia. Mas sem olhar para ele.

Alexander cingiu-a a si: – Depois – continuou em inglês –, vou insistir para que me agrades usando

essa tua língua inglesa na cama comigo.

Page 491: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

491

A jovem debateu-se. – Ainda bem por eu não perceber-te. – Eu explico-te. – Pousou o balde. – Depois, depois – cedeu ela. – Pega no boulde. Apanha Mirtilos. – Está bem.– Sem a largar: – E é balde. Vá lá, Tania. Diz as outras palavras. –

Abraçou-a. – A tua timidez é afrodisíaca. Diz. Sem ar por dentro e por fora, Tatiana assentiu: – Está bem. Pega no balde. Vamos a casa. Vou fazer amor com tu. Alexander desatou a rir. – Contigo, Tania, contigo. Estava uma tarde de verão deslumbrante e tranquila. Com Tatiana ao seu

lado, Alexander serrava uma árvore em toros pequenos. – Que foi? Ela fazia-lhe cócegas. – Que foi? Pareces a minha sombra em tamanho reduzido. Deixa-me acabar.

Tenho de fazer um banco para poder sentar-nos a comer. – Queres jogar a qualquer coisa? – Não. Tenho de fazer isto. – Podíamos jogar as palavras. – Sorriu, sedutora. – Depois. – E às escondidas? – Depois. – O quê? Tens medo de perder outra vez, capitão? – Oh, tu... – Queres... ir dar cambalhotas? Alexander fitou-a e ela corou: – Não, cambalhotas a sério. Na água. Quero que me pegues na palma da mão

e me levantes acima da cabeça... – Só se puder atirar-te para água depois. – Nunca ouvi chamarem-lhe isto, mas está bem. Ele riu com a serra na mão. – Faremos isso tudo e muito mais, mas primeiro deixa-me acabar de serrar

esta madeira. Tatiana calou-se por um segundo: – Mostras-me como fazes as tuas elevações na tropa? – Depois de uma pausa:

– Cinquenta de uma vez? – Só se me incentivares. – Ótimo. Agora? – És de mais! Depois. Ficou novamente em silêncio. – Queres fazer braço de ferro? – Braço de ferro? – Sorriu incredulamente: – Estás a brincar?

Page 492: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

492

– Anda lá, grandalhão. Tens medo? – Fez-lhe cócegas. – Para. Fez-lhe novamente cócegas, cacarejando como uma galinha: – Có-córo-có, có-córo-có,có-córo-có. – Chega. – Pousou a serra, mas ela já ia a meio da clareira, correndo e

guinchando. Foi atrás dela e gritou-lhe: – Que eu não te apanhe! Tatiana deixou-se apanhar alegremente nos bosques. Ofegante, Alexander fê-

la girar: – Não podes fazer-me cócegas quando tenho uma serra na mão! A jovem riu-se. – Mas, Shura, tens sempre alguma coisa na mão: uma serra, um cigarro, um

machado ou... Apalpou-lhe as nádegas. – Sim, ou... Apalpou-lhe os seios. – Vês o que quero dizer? – arquejou. – Vá, atira-me ao chão. Depois de uma

pausa: – Como tu gostas. – Ele abraçou-a e ela ficou sem ar. Ou Alexander não sabia a força que tinha ou receava não conseguir prendê-la. Esperava que fosse a primeira hipótese. – Estou aqui, Shura, estou aqui – ofegou, dando-lhe umas palmadinhas ternas.

Ele largou-a. Ficou à frente dele por um momento. – Muito bem. – Sorriu de orelha a orelha: – Já me arrancaste do meu trabalho.

E agora? Elevações, Cambalhotas... o quê? Não se mexiam. Os olhos dela cintilavam. E os de Alexander também. Tatiana

desviou-se para a esquerda, para a direita... Mas desta vez ele foi mais rápido: – Tens de ser mais ágil do que isso – observou, agarrando-a e pondo-a na

mesma posição. – Queres tentar outra vez? Desviou-se para a direita, novamente direita, esquerda... Ainda pouco rápida. – Outra vez? Tatiana permaneceu imóvel, de repente inclinou-se para a esquerda e estava

atrás dele pela direita ainda antes de Alexander ter tempo para se endireitar. Guinchando, saltou para os seus braços, abraçou-o e beijou-lhe o rosto: – Vamos jogar à cabra-cega. Eu vendo-te os olhos, faço-te dar umas voltas e

tu depois tens de andar nos tropeções na clareira à minha procura. – Contorceu-se de riso: – Para de me fazer cócegas.

– Estou farto que me vendes os olhos. – Continuou a fazer-lhe cócegas: – E sou eu a pôr-te a venda? Depois tens de adivinhar o que te meti na boca.

Tatiana já ria à gargalhada antes de ele acabar. Alexander fitou-a com um ar inocente:

– O que foi?

Page 493: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

493

– Shura! E se eu adivinhar o que me vais pôr na boca mesmo antes de me vendares?

Alexander riu-se e transportou-a para dentro de casa: – Está bem, mas só se me disseres o nome em inglês do que vou pôr-te na

boca. – Levou-lhe as mãos de baixo do vestido e acariciou-a. – Shura? – Sim? – Larga-me. Tenho de ir esconder-me e tu tens de me procurar. – Para quê? Já estás aqui. – Acariciou-lhe as nádegas. – Estás a me apertar-me muito. Não consigo mexer-me. – Eu sei. Não quero que vás a lado nenhum. – Que jogo é este? – O mesmo que jogamos durante todo o dia. – E que é...? – Acordar, fazer amor. Lavar, fazer amor. Cozinhar, comer, fazer amor. Nadar,

fazer amor. Jogar futebol, jogar dominó, jogar à cabra-cega, fazer amor. – Sim, mas agora estamos a passar diretamente à parte de fazer amor. Que

piada tem isso?

Page 494: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

494

15

Depois de acordarem cedo, apanharem trutas e nadarem, Tatiana agachou-se junto do fogão ensinando Alexander a fazer massa de panquecas. Não sabia o que se passava, mas a verdade era que ele não estava a prestar atenção.

– Shura, assim não vale a pena continuar. Recusas-te a aprender? – Sou homem e, portanto, fisicamente incapaz de cozinhar para mim. –

Encontrava-se deitado no soalho muito perto de Tatiana, que mexia o leite quente, a farinha e o açúcar.

– Mas fizeste-me gelado. – Isso foi para ti. O que eu disse é que sou incapaz de cozinhar para mim. – Shura! – O que foi? – Porque olhas pra mim e não para minha massa? – Estirado no chão,

contemplava-a amorosamente. – Não consigo tirar os olhos de ti – retorquiu com serenidade –, porque acho

profundamente excitante ver-te a cozinhar para mim com essa entrega. Por muito que queira, não consigo – continuou, menos sereno. – Já não tenho fome de panquecas.

– Para de olhar para mim. – Tentando permanecer calma: – Que farás quando andares sozinho pelos bosques e tiveres de comer?

– E para isso é preciso aprender a fazer a massa? Comerei cascas, bagas e cogumelos.

– Faz-me um favor... não comas cogumelos. Queres prestar atenção? Ele desviou o olhar dela para a panela: – Pronto: leite, açúcar e farinha. É só? Já posso olhar para ti? Dando uma pancadinha no ar com a colher de pau, Tatiana salpicou-lhe o

rosto de massa: – Olha lá! – exclamou ela. – Já te disse para prestares atenção. Abanando a cabeça com incredulidade, Alexander pegou num punhado de

massa e atirou-a à cara dela: – Mas com quem pensas que estás a meter-te? – Não sei – respondeu ela devagar, limpando os olhos e continuando a mexer.

– Mas parece-me que tu é que não sabes com quem te estás a meter. – Antes de ele ter tempo para se mexer, pegou na panela, despejou-a por cima dele, pôs-se em pé de um salto e desatou a correr.

Quando a apanhou na clareira, todo ele pingava massa. Levantando-a, esfregando-se nela. Mantendo-lhe a boca fechada para impedir de rir, mas ela não

Page 495: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

495

parava, sentindo uma alegria e um desejo desesperados. Percebeu que o seu corpo a tremer de riso devia ter lembrado ao marido as convulsões do prazer, apesar de ela continuar às gargalhadas. Tremendo e acelerando, lamberam e colaram um ao outro os corpos escorregadios e pegajosos de natas e açúcar quente.

– Achas que é na mesma pequeno-almoço se não cozinharmos as panquecas e comermos a massa crua? – perguntou depois alegremente, Alexander, ofegante e satisfeito.

– Tenho quase certeza – arquejou Tatiana. Era meio-dia. Alexander amanhava as trutas na mesinha que construíra. Com

a faca de mato, escamava e cortava a cabeça dos peixes. Ao seu lado, Tatiana deitava o que não prestava para um saco e punha o peixe limpo numa panela de água. Ia fazer sopa de peixe com batatas. Só tinham uma faca, que Alexander manejava na perfeição.

– Desde que não tenhas de cozinhar a comida que apanhas, nunca morrerás à fome – comentou Tatiana, observando-o com admiração.

– Se tivesse de ser, também acenderia uma fogueira para cozinhar o peixe. – Olhando-a de relance: – Que foi?

– Tu pescas, acendes fogueiras, fazes mobílias, combates, rachas lenha... Há alguma coisas que não faças? – Corou ao dizê-lo.

– Tu é que sabes. – Inclinando-se, beijou-a tão intensamente que ela gemeu. – Ninguém te manda ser tão deliciosa – sussurrou.

Ela pigarreou: – Tenho de deixar de corar – murmurou. – Não, por favor. Mas, olha, há uma coisa que não sei fazer: panquecas. –

Sorriu-lhe. – Quando vamos a Molotov buscar as fotografias de casamento que o ourives

tirou? – Aposto que vai querer as nossas alianças em troca das fotografias. Tatiana fitou-o, beijando-lhe o braço e encostando-se a ele: – Temos querosene que chegue para o fogão? – Temos. Porquê? – Depois de por a ukra a fazer, podemos sair um bocadinho? – Inspirando

profundamente: – Shura... a Dusia pediu-me ajuda na igreja. – Olhando-o: – Por favor? Sinto-me mal por não ir lá muito...

– Vais lá vezes de mais. – Deixou de sorrir. – Então não sou a tua sombra? – Exceto quando vais lá. – Suspirou: – Que quer ela desta vez? – Uma das janelas caiu – respondeu, avaliada.– Perguntou-me se podias

consertá-la. É o único vitral que tem. – Ah, então desta vez é de mim que precisa. – Eu vou contigo. Ela diz que depois te dará vodca. – Ela que te deixe em paz e está combinado.

Page 496: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

496

Tatiana afastou-se por um momento e regressou com um cigarro e um isqueiro:

– Toma, abre a boca. – Assim é que se fala.– Abriu a boca e puxou umas fumaças. Depois, sem

saber o que fazer com o cigarro, a jovem cheirou-o, levou-o à boca, deu uma passa e foi imediatamente acometida por um ataque de tosse. Alexander pegou nele e puxou mais três ou quatro fumaças: – Já acabei. E não o ponhas na boca. Ouço-te a respirar à noite e percebo que tens alguma dificuldade.

– Mas não por causa da tuberculose. – Apagando o cigarro: – Tu é que me apertas muito. – Desviou o olhar.

Ele não disse nada. Na igreja, de pé em cima de um escadote, ajudou-o a segurar no pequeno

vitral enquanto ele fixava o canto da janela com uma mistura fina de água, calcário em pó e barro.

– Shura? – Hum? – Posso fazer-te uma pergunta hipotética? – Não. – Que faríamos se a Dasha ainda estivesse viva? Já pensaste nisso? – Não. Depois de uma pausa: – Pois eu às vezes penso. – Quando? – Agora, por exemplo. Como ele não a respondeu, a jovem insistiu: – Mas que achas que faríamos? – Não quero falar nisso. – Mas fala. Alexander suspirou: – Gostas de te torturar? Parece-te que a vida tem sido boa de mais para ti? – Mas a vida tem sido boa de mais para mim – disse devagar, fitando-o. – Segura bem na janela. É o único vitral da Dusia. Se o partires, nem a ti

perdoará. É muito pesado? – Não, eu consigo. Deixa-me só aproximar-me mais do caixilho. – É só um minuto. Está quase. Tatiana mexeu-se, perdeu o equilíbrio e caiu, largando o vidro, que se soltou.

Alexander apanhou-o, pousou-o e foi ajudar a mulher, estatelada no chão, abalada mas não ferida. Tinha só um arranhão no tornozelo. Estava, no entanto, com ar de poucos amigos.

– O que foi? Gostaste dos meus reflexos? A partir de agora, será por mim que a Dusia rezará todos os dias. – Tentou limpar Tatiana, mas ainda a sujou mais. – Olha

Page 497: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

497

para as minhas mãos! Se não tiver cuidado, fico cimentado a ti. – Sorriu, beijando-lhe a clavícula.

A expressão dela, porém, continuava carrancuda. – Que se passa? – Excelentes reflexos! És rápido como um relâmpago. Boa! Só um reparo: a

tua rapidez foi realmente admirável mas, tendo de escolher entre o vidro e a tua esposa, preferiste o vidro.

Rindo, pôs-se atrás dela, no chá e ajudou-a a subir de novo para o escadote. Não lhe tocou com as mãos sujas, mas mordeu-lhe ternamente a nádega por cima do vestido:

– Não preferi o vidro. Tu já estavas no chão. – Não te vi pôr os teus reflexos tão lendários em ação enquanto eu me

estatelava. – Não? E que te teria acontecido se o vidro caísse em cima de ti? Não me

parece que ficasses muito contente comigo. – Não estou contente contigo. – Mas sorria. Ele mordeu-lhe novamente a

nádega e foi acabar de fixar o vidro, que ficou bem preso no sítio. Dusia, que estava dentro da igreja, não se cansou de lhe agradecer, chegando mesmo a beijá-lo e a dizer-lhe que não era mau homem.

Alexander inclinou ligeiramente a cabeça e comentou para Tatiana: – Eu não te disse? Ela puxou-o pela camisa: – Anda, meu fanfarrão. Vamos embora. Eu lavo-te. – Voltaram para casa

através dos bosques cheirando a seiva. À chegada, Tatiana foi buscar sabonete e toalhas.

– Dás-me de comer primeiro? – Assim todo emporcalhado como estás, Shura? – Pois, já sei como é esta história de me lavares. Vou ficar duas horas sem

comer, e estou a morrer de fome. Pega num prato de sopa e numa colher e dá-me de comer.

– Ora, se não demorares duas horas... – murmurou ela entre dentes, sentindo a chama atear-se-lhe no fundo do ventre.

- Dá-me de comer e cala-te. Resmungas depois. Ergueu as sobrancelhas. Os seus olhos aqueceram-na como um fogo.

Decoração inchado, obedeceu e pôs-se a dar-lhe de comer: - Mas não respondeste à minha pergunta hipotética. - Felizmente, esqueci-me qual era. - Sobre a Dasha. - Ah, isso! – Mastigando e engolindo uma colherada de batatas e peixe,

continuou em tom sério: - Acho que sabes a resposta. - Sei?

Page 498: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

498

- Claro que sim. Se estivesse viva, teria de casar com ela como prometi e tu irias dar uma voltinha com o bom do Vova.

- Shura! - Que foi? Empurrou-lhe a perna: - Se não é para falar a sério, então não diga mais nada. - Ainda bem! Dás-me mais sopa? Depois do almoço, quando já estavam na água e ele esfregava as mãos

enquanto ela lhe ensaboava as costas, Alexander observou: - Sabes muito bem que nunca poderia casar com a Dasha se tu estivesses viva.

A minha verdade teria de ser revelada aqui em Lazarevo. E a tua? Não respondeu. Estavam sentados no rio, junto da margem. Alexander pegou no frasco de

champô, virou Tatiana de costas e começou a esfregar-lhe o cabelo. Passando-lhe os dedos pelas madeixas ensaboadas:

- Sentes a falta dela? - Como seria a vida aqui em Lazarevo se ela não estivesse morrido? –

Encostando-se a ele: - Sinto falta da minha família. – A voz embargou-se-lhe: - Como tu deves ter sentido falta do teu pai e da tua mãe.

- Nem tive tempo. Estava muito ocupado a tentar salvar a pele. – Inclinou-lhe a cabeça para lhe o cabelo por água.

Mas Tatiana sabia a verdade. - Sabes, às vezes tenho uma sensação esquisita em relação ao Pasha. - Que sensação esquisita? Levantou-se e tirou-lhe o sabonete: - Não sei. O comboio foi pelos ares, mas não se retirou nenhum cadáver. É

como se a sua morte fosse menos real pelo fato de eu não saber o que aconteceu na verdade.

Ele também se pôs em pé, empurrando-a para mais longe da margem: - Quer dizer que só acreditas se vires morrer as pessoas que amas? - Qualquer coisa assim. Faz algum sentido? - Nenhum. Não vi morrer a minha mãe nem o meu pai, mas isso não impede

que tenham morrido. - Eu sei. – Ensaboou-o enternecidamente. – Só que o Pasha é meu gémeo. A

minha metade, por assim dizer. Se ele morreu, o que será de mim? – Ensaboou os seus e esfregou-lhe os mamilos duros no peito.

- A isso sei responder: estás bem viva. Sabes que mais? Queres continuar esse jogo de suposições? Está bem. Tenho uma pergunta para ti. – Tirou-lhe o sabonete das mãos e atirou-o para a margem. – Digamos que a Dasha estava viva e que tu e eu não éramos ainda casados, mas... – parou de falar e levantou-a - ...que eu tinha feito amor contigo de pé... – a respiração acelerou-se-lhe -... assim ... – Gemeram os

Page 499: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

499

dois. – Aqui, no nosso rio Kama... diga-me, oh minha mulher bem viva... que terias feito? Rejeitar-me-ias sabendo...

Ela gritou. - ...isto? – segredou ele. Como se conseguisse responder. - Já não quero jogar mais – gemeu, rodeando-lhe a cintura com as pernas e

abraçando-lhe muito o percoço. - Ótimo. Extenuada, sentou-se depois na água baixa, encostada a uma pedra com a

ponta fora de água. Alexander deitou-se à frente, com a nuca apoiada no seu peito. Murmuravam e contemplavam o Kama e as montanhas quando Tatiana reparou que o marido se calara. Adormecera com as pernas estendidas suavemente batidas pelo rio e o tronco nu encostado a ela. Sorrindo e abraçando-o com amor, Tatiana beijo-lhe a cabeça adormecida, deixando os lábios pousados no seu cabelo molhado.

Pestanejando, ficou imóvel durante muito tempo, até sentir a brisa da tarde, um sopro carregado de seiva, água fresca e flores de cerejeira. Erva molhada, folhas velhas, areia, terra, Alexander...

- Era uma vez um homem, um príncipe magnífico entre camponeses, que era adorado por uma gentil donzela – sussurrou. – A jovem fugiu para a terra dos lilases e do leite e esperou impacientemente o seu príncipe, que chegou estendendo-lhe o sol. Não tinham nada: nem refúgio, nem salvação. Nada exceto o seu pequeno reino, onde só viviam o amo, a ama e dois escravos. – Parou para respirar e apertou-o. – Todos os dias gloriosos eram um milagre de Deus. E eles sabiam. Depois, o príncipe teve de partir, mas não fez mal porque a donzela...- Interrompeu-se. Pareceu-lhe ouvi-lo prender a respiração. – Shura?

- Não pares – murmurou ele. – Estou muito interessado no que acontece a seguir. Porque não fazia mal? O que ia fazer a donzela?

- Que tal me saí? - Nada mal. Gostei muito daquela parte sobre um amo... Ela beijou-o a face. - Mas reservo o veredicto final para quando acabares. – Esfregou-lhe a nuca

no peito. – Diz-me porque não fazia mal. - Não fazia mal porque...- continuou, tentando pensar rapidamente - ...a

donzela esperou pacientemente por ele. - Bem, é uma história de encantar. E depois? - Depois ele regressou. - E depois? - É preciso haver um depois? Depois... viveram felizes para sempre. Passou um longo momento de silêncio. - Onde? – perguntou Alexander. Tatiana contemplou os montes Urais e não respondeu. Alexander soltou um queixume e levantou-se:

Page 500: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

500

- Não foi uma história nada má, Tania. - Nada má? Porque não tentas tu? - Não tenho grande jeito para inventar histórias. - Pois, preferes fazer tudo ir pelos ares. Vá, tenta. - Está bem. – Sentando-se de pernas cruzadas, chapinhou água para o rosto,

atirou-lhe água a ela e começou: - Vejamos... Era uma vez uma gentil donzela... – Olhou para ela. – Uma donzela sem igual. E um cavaleiro mercenário renegado teve a sorte de ser amado por ela. – Sorrindo: - Uma e outra vez.

Tatiana deu-lhe com o pé, mas o seu sorriso de prazer era ainda mais aberto do que o dele.

- O cavaleiro partiu para proteger o reino dos saqueadores... – Depois de uma pausa: - E não regressou. – Dirigiu o olhar para a margem do rio: - A donzela esperou pelo seu cavaleiro durante um período conveniente...

- Que foi quanto tempo? - Não sei. Quarenta anos? - Deixas-te de asneiras. – Beliscou-lhe a perna. - Au! Mas finalmente não pôde esperar mais e entregou-se ao senhor do

castelo da região. - Quem a queria passados quarenta anos? Olhando de novo para ela: - Mas olhai! Surpresa! O cavaleiro regressou, encontrando a sua donzela no

castelo, divertindo-se com... - Tal e qual como em << Evgeny Onegin>> de Pushkin. - Oh, só que o contrário do Onegin, este cavaleiro, sentindo-se um idiota,

desafiou o senhor para um duelo, lutou pela honra da donzela e perdeu. Depois foi arrastado e esquartejado à frente dela. A donzela enxugou as lágrimas com o lenço de seda, recordando vagamente a terra dos lilases onde tinham vivido, encolheu os ombros com descontração e entrou para beber chá. – Soltando uma gargalhada: - Isto é que é uma história!

- É – concordou Tatiana, pondo-se de pé e encaminhando-se para a cabana. – Uma história parva.

Alexander estava a fumar enquanto ela se arranjava para sair: - Tens mesmo de ir sempre às reuniões de costura? - Sempre não. É só uma hora. – Sorriu e abraçou-o: - Podes esperar uma hora,

não capitão? – segredou em voz rouca. - Hum. – Cingiu-se com uma mão. Tinha o cigarro na outra. – Será que não

conseguem fazer as coisas sem ti? Ela beijou-lhe a testa húmida: - Já reparaste que os dias estão mais quentes, Shura? - Já. Não podes costurar aqui? Trouxe-te a máquina e a mesa e fiz-te um

banco. Vejo-te a cose; no outro dia andavas à volta daqueles tecidos escuros. O que era aquilo?

Page 501: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

501

- Nada, uma parvoíce. - Pois continua a coser parvoíces aqui. - Ando a ensinar-lhes a pescar, Alexander. - O quê? - Se dermos um peixe a um homem, terá comida para um dia. Se lhe

ensinarmos a pescar, comerá durante toda a vida. Ele abanou a cabeça e suspirou: - Está bem. Eu vou contigo. - Nem penses. Igreja é uma coisa, mas o meu marido militar não vai agora a

uma reunião de costura. Queres ficar mal visto? Além disso, já sabes pescar. Fica em casa a brincar com a espingarda ou qualquer coisa assim. Volto daqui a uma hora. Queres comer alguma coisa antes de eu ir?

- Quero, e sei exatamente o quê. – Deitou-a no cobertor estendido na erva. O sol queimava por cima das suas calças.

- Vou chegar atrasada, Shura. - Diz-lhes que o teu marido estava cheio de fome e que tiveste de lhe dar de

comer.

Page 502: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

502

16

- Que tens no saco, grandalhão? – perguntou Tatiana uma tarde abrasadora, sentada no cobertor da clareira com a mochila e o estojo dos mapas dele entre as pernas, examinando minunciosamente as suas coisas, uma a uma. Estava muito quente em Lazarevo. Fazia calor de manhã, abafava-se à tarde e a temperatura continuava elevada a noite. Dormiam nus sob os lençóis finos, com as janelas aberta.

Tomavam banho a toda hora, mas estavam sempre cheios de calor. Alexander serrava dois troncos compridos: - Nada de muito interessante – respondeu, de costas para ela. Tatiana tirou a semiautomática, a caneta e o papel, um baralho de cartas, dois

livros, duas caixas de munições, a faca militar, os mapas e duas granadas de mão. Interessou-se imediatamente pelos mapas mas, antes de ter tempo para os

abrir, ele atravessou a clareira de serra na mão e cigarro na boca e tirou-lhes as granadas:

- Sabes? E se não brincássemos com explosivos? - Está bem. – Pôs-se em pé de um salto: - Já me ensinaste a atirar com a P-38;

ensinas-me agora com a espingarda? – Fitou os mapas pousados no cobertor: - Quantos tiros seguidos dispara?

- Trinta e cinco – replicou ele, fumando o cigarro até o fim. - Podias ensinar-me a disparar um morteiro, mas não tem nenhum na

mochila. – Sorriu. Ele soltou uma gargalhada: - Pois não. Não ando com um morteiro comigo. - Mas andas com os mapas todos. – Olhou novamente para eles. - E depois? - Quem me dera que não tivesses de manejar armamento pesado! –

Abraçando-o: - O coronel Stepanov não pode nomear-te mensageiro ou coisa assim? Não podes dizer-lhes que casastes com uma boa rapariga que não consegue viver sem o seu soldado?

- Está bem, eu digo-lhe. Tatiana conduziu-o pela mão para dentro de casa, tirou-lhe a serra e atirou-a

ao chão. - Ainda não acabei – protestou ele, apontando para os troncos. - E depois? Não és meu marido? - Sou. E então? - Eu também não tenho direitos inalienáveis?

Page 503: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

503

Nua em cima de Alexander, Tatiana apoio-lhe as palmas das mãos no peito. - Como funciona o quê? - Um morteiro. Não disseste ao Vova que operavas um morteiro? Como

funciona? - O morteiro é uma das coisas que disparo. Que queres saber? - Tem um cano curto como o canhão ou comprido? - Comprido. - Estou a ver. E o que fazes com o cano comprido? - Aponto-o a um ângulo de quarenta e cinco graus... - E depois? - Depois insere-se a granada no cano. Bate no fundo, a carga propulsora

explode e... - Sei o que acontece a seguir. A granada voa a setecentos metros por

segundo. - Uma coisa assim. - Deixe-me recapitular. Cano comprido. Apontar. Inserir. Disparar. Explodir. - Sabia que ias compreender. - Outra vez. Comprido. Apontar. Inserir. Disparar. Explodir. Aprendo depressa. - É verdade. - Shura? - Hum? - Porque tem o morteiro de ser comprido? - Para aumentar a velocidade inicial de tiro. Sabes o que é? - Tenho uma ideia. De regresso a clareira, Tatiana bebeu água e foi direitinha estudar os mapas

de Alexander, enquanto ele voltava aos seus troncos. Tinha ainda mais calor; precisava de molhar o corpo no Kama. Mas estudou os mapas, fascinada.

- Os teus mapas são todos da Escandinávia, Shura. Porquê? Tens aqui um da Finlândia, um da Suécia e um do Norte, entre a Noruega e a Inglaterra.

- São só mapas de campanha. - Mas porquê da Escandinávia? – Olhando para ele: - Não estamos em guerra

com a Escandinávia, pois não? - Estamos com a Finlândia. - Oh, e está aqui um mapa do istmo da Carélia. - E depois? - Não combateste no istmo da Carélia, perto de Vyborg, na guerra do inverno

de 1940? Alexander aproximou-se dela, deitou-se de barriga para baixo e beijou-lhe o

ombro: - Combati. A jovem calou-se por um momento.

Page 504: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

504

- O ano passado, no início da guerra, não mandaste o Dimitri em várias missões de reconhecimento para Lisiy Nos, no istmo da Carélia?

Tirando-lhe os mapas, Alexander comentou: - Nunca esqueces nada do que te digo? - Nem uma palavra. - Pois devias ter-mo dito mais cedo. - Porquê esses mapas? – perguntou ela de novo. - É só a Finlândia Tania. – Levantou-se e puxou-a: - Tens calor? - E a Suécia, Shura. Tenho calor, tenho. - Um bocadinho da Suécia. – Soprou-lhe na testa e no pescoço. - E a Noruega e a Inglaterra, Shura. – Fechou os olhos e encostou-se a ele. –

Tens o hálito quente. - Qual é o teu problema? - A Suécia é neutral nessa guerra, não é? – indagou. Alexander levou-a para dentro da casa: - Pelo menos está a tentar. Mais alguma coisa? - Não sei. – Sorriu, sentindo a garganta seca. – Que mais tens? - Já viste tudo e já te respondi a tudo – respondeu ternamente, erguendo-a

para a cama. Que queres? – Sorriu: - Que posso fazer por ti? - Hum – ronronou, acariciando-o e sentindo gotinhas de transpiração por todo

o corpo. – Podes fazer aquela coisa em que temos prazer juntos? - Está bem, Tatiana. – Debruçou-se sobre ela: - Vou fazer aquela coisa em que

temos prazer juntos. A arderem, empapados, afastaram-se e deitaram-se de costas. Ofegaram,

arquejaram, viraram o rosto um para o outro e sorriram, radiantes de felicidade. Alexander foi buscar água para beberem. Passado algum tempo, quando

voltou a conseguir respirar com regularidade, Tatiana pediu-lhe docemente que lhe contasse como recebera a sua primeira condecoração.

Ficou calado durante uns minutos. Ela esperou. A brisa que agitava as cortinas era quente. O corpo dele estava molhado. E o dela também. Tinham de se ir refrescar ao Kama. Mas Tatiana não arredaria pé sem ele lhe contar o que se passara na Carélia.

Por fim, Alexander encolheu os ombros: - Não há muito a dizer. – Falava em tom monocórdico. – Tínhamos combatido

nos atoleiros perto do golfo, de Lisiy Nos praticamente até Vyborg. Obrigámos os Finlandeses a recuar para a cidade, mas depois ficamos atolados nos lodaçais da floresta. Os Finlandeses, muito bem entrincheirados, dispunham de munições e provisões e nós estávamos na lama e não tínhamos nada. Naquela batalha terrível perto de Vyborg, perdemos mais de dois terços dos nossos homens. Fomos forçados a parar e bater em retirada.

Fez uma pausa.

Page 505: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

505

- Foi uma estupidez. Isto passou-se em março, uns dias antes do armistício de 13 de março, e nós ali, a perder centenas de homens sem qualquer razão.

Na altura, era fuzileiro. Só tínhamos espingardas de um tiro. – Sorrindo: - E um ou dois morteiros.

Com a mão pousada no seu peito, Tatiana devolveu-lhe o sorriso. - O meu pelotão era inicialmente composto por trinta homens. Ao fim de dois

dias, tinha quatro. Quatro e eu. Quando regressávamos dos atoleiros para Lisiy Nos, soubemos que um dos homens que ficara nos lodaçais perto da linha defensiva de Vyborg era o filho do coronel Stepanov, Yuri. Tinha dezoito anos e acabara de se alistar.

Interrompeu-se. Interrompeu-se ou acabou de falar? Tatiana sentiu o coração acelerar. Então, Alexander afastou-lhe a mão. E ela não voltou a pousar-lha no peito. - Por isso... voltei atrás, passei umas horas à sua procura e encontrei-o ainda

vivo, mas ferido. Levei-o para o acampamento. – Cerrou os lábios. – Não se safou. – Não olhou para ela.

Mas ela olhou para ele: - Oh, não! - E assim recebi a minha condecoração, graças ao Yuri Stepanov. Alexander tinha o queixo fincado e os olhos inexpressivos, mas Tatiana sabia

que era propositado. Tornou a pousar-lhe a mão no peito e observou-o: - O coronel ficou-te agradecido por lhe levares o filho? - Ficou – respondeu com tom monocórdico. – O coronel Stepanov tem sido

muito meu amigo. Transferiu-me da divisão de infantaria para motorizada. E quando foi promovido a comandante do quartel-geral de Leninegrado, levou-me com ele.

Tatiana ficou muito quieta. Quase nem respirava. Não queria saber, não queria perguntar. Mas não podia deixar de o fazer.

- Não foste para os atoleiros sozinho – disse por fim, suspirando profundamente. – Quem levaste contigo?

- O Dimitri – respondeu ele devagar. A jovem voltou a falar passado muito rápido: - Não sabia que ele estava no teu pelotão. - Não estava. Perguntei-lhe se queria vir comigo e ele disse que sim. - Porquê? - Porquê o quê? - Porque aceitou? Custa-me imaginar o Dimitri a partir numa missão perigosa

perto das linhas inimigas para ir procurar um soldado ferido. Ele só respondeu passado um bocado: - Mas é verdade.

Page 506: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

506

- Deixa-me cá recapitular: tu e o Dimitri foram sozinhos aos atoleiros buscar o Yuri Stepanov? – Tentou falar em tom firme, mas não o fazia tão bem como ele. A voz tremia-lhe.

- Fomos. - Esperavam encontrá-lo? – Parecia pesarosa. - Não sei. Estás à espera de alguma resposta específica, Tatia? De alguma

coisa que eu não esteja a contar-te? Esforçou-se por não engolir em seco: - E há alguma coisa que não estejas a contar-me? Ele olhava não para ela mas para o teto: - Já te disse. Fomos, procurámo-lo umas horas, encontrámo-lo e trouxemo-lo.

Pronto. - Foi quando o Dimitri recebeu um louvor? - Foi. Com a cabeça pousada no peito, Tatiana traçou-lhe círculos grandes,

pequenos e médios com os dedos. - Shura? - Oh, não! - Depois do armistício de 1940, a fronteira soviética com a Finlândia não

passou a ser em Vyborg? - Passou. - A que distância fica Vyborg de Helsínquia? Ele ficou calado. - Não sei – retorquiu finalmente. Ela mordeu o lábio. - Não parece longe no mapa. - Porque nos mapas nada parece longe – retorquiu com impaciência. – Talvez

trezentos quilómetros. - Estou a ver. A que distância... - Tania. - Que foi? E quantos quilómetros são de Helsínquia a Estocolmo? - Oh! Por amor de Deus! Estocolmo? – Continuava sem olhar para ela: - Para

aí mais uns quinhentos. Mas por mar, atravessando o Báltico e o golfo de Bótnia. - Sim, o golfo e o mar... Tenho mais uma pergunta. - O que é? – Não parecia divertido. - Onde é agora a fronteira? Ele não respondeu. - Os Finlandeses não desceram de Vyborg para Lisiy Nos? Não foi lá que

mandaste o Dimitri o ano passado em missão de reconhecimento? - Tatiana, que queres saber? – perguntou-lhe abruptamente. – Já chega de

perguntas. Ela sentou-se num ápice, afastou-se e começou a descer da cama.

Page 507: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

507

Alexander prendeu-lhe o braço. - Onde vais? - A lado nenhum. Já acabámos, não foi? Vou refrescar-me e depois tenho de

começar a fazer o jantar. - Anda cá. - Não. Tenho... - Anda cá. Fechou os olhos. Aquela voz... Aquela voz, aqueles olhos, as mãos, a boca...

Tudo. Cedeu. - Que estás a pensar? – Deitou-a ao seu lado, acariciando-a. – Que queres

saber? - Nada. Estou só a pensar. - Quiseste saber da minha medalha e eu disse-te. Fizeste-me perguntas sobre

as fronteiras e eu respondi. Interrogaste-me sobre Lisiy Nos e eu expliquei-te. Agora para de pensar tanto. – Apertou-lhe docemente o mamilo entre o polegar e o indicador.

A seguir, beijou-a. Ainda estavam empapados, cheios de calor e com sede. - Tens mais perguntas ou já acabastes? - Não sei. Beijou-a outra vez, longamente, com mais calor e intensidade. Beijou-a

ternamente, infinitamente. - Talvez já tenha acabado – segredou. Era o que lhe fazia: beijava-a até a

chama líquida se lhe dissolver na carne. E sabia-o. Tudo o que lhe fazia, fazia-o incessantemente, até a dissolver. Ficava impotente. E ele sabia. Com a boca ainda colada à sua, Alexander abriu-lhe as pernas e fez deslizar dois dedos dentro dela... tirou-os... e tornou a empurrá-los para dentro... – Acho que agora acabei – sussurrou.

Page 508: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

508

17

Passados uns dias quentes de verão, Tatiana pôs-se a saltitar outra vez: - Que estás a fazer agora? – perguntou. – Já fizeste um banco. Para com isso.

Vamos tomar banho. Nadar! Anda. Até o Kama está quente. Vamos mergulhar e eu tento ficar debaixo de água mais tempo do que tu.

Alexander acabara de entrar em casa com dois troncos que serrara, cada um com cerca de um metro. Davam-lhe mais ou menos pelas ancas.

- Depois. Agora tenho de fazer isto. - Mas que estás a fazer? - repetiu ela. - Espera e já vês. - Porque não me dizes? - Uma bancada. - Para quê? Do que precisamos é de uma mesa. - Saltitou novamente. -

Jantamos sempre com a comida no colo. Porque não fazes uma mesa? Melhor ainda: anda nadar comigo. - Puxou-o.

- Talvez mais tarde. Há alguma coisa para beber? Meu Deus, que calor! Tatiana afastou-se e voltou quase instantaneamente com água e um pepino

partido. - Queres um cigarro? - Quero. Deu-lhe um cigarro. - Shura, não precisamos de uma bancada, mas sim de uma mesa. - Farei uma mesa alta. Ou então usamos isto como um banco alto. - Porque não o fazes mais baixo? - Espera e verás. Tatia, já te disseram que a paciência é uma virtude? - Já – respondeu com impaciência. - Diz-me o que estás a fazer. Alexander levou-a para fora de casa: - Podes ir buscar pão? Tenho fome. Por favor? - Está bem. Tenho de ir a casa da Naira. Aqui não há. - Ótimo. Vai a casa da Naira e volta depressa. Regressou dali a pouco com pão, manteiga, ovos e couve: - Hoje à noite vou fazer torta de couve. - Não posso esperar. Estou a morrer de fome. - Estás sempre. Não consigo manter-te alimentado. - Sorrindo: - Tens calor?

Tiraste a camisa. - Um calor insuportável. Fez um sorriso radioso:

Page 509: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

509

- Já acabaste? - Quase. Só falta aplainar. Aproximando-se da bancada, Tatiana observou-a e fitou Alexander: - Aplainar? - Alisar. Não queremos farpas, não é? Ficou perplexa: - Não? Shura, sabes o que a Dusia me disse? - Não, minha querida. O que foi? - Que há setenta e cinco anos, desde 1867, tinha ela quatro anos, que não há

um verão tão quente em Lazarevo! - A sério? - Tatiana estendeu-lhe uma garrafa de água. Ele bebeu-a toda e

pediu mais. Depois, pousou-a na bancada, que continuou a aplainar. - Não percebo – comentou ela, observando-o. - Chega-me acima da cintura.

Porque a fizeste tão alta? Alexander abanou a cabeça, pousou a plaina e foi lavar as mãos e o rosto no

balde de água: - Anda cá. Eu ajudo-te a subir. Içou-a para a bancada e pôs-se à frente dela: - Então? Que tal? - Sinto-me alta. - Fitou-lhe os olhos serenos e os lábios felizes. - Mas não

tenho medo das alturas. - Depois de uma pausa: - E a minha cara ficou quase em frente da tua. Gosto. Aproxima-te, soldado.

Alexander abriu-lhe as pernas e encaixou-se entre elas. Com os olhos praticamente ao mesmo nível, contemplaram-se e beijaram-se. Ele passou-lhe as mãos debaixo do vestido, subindo até às coxas. Tatiana estava sem roupa interior.

- Hum. - Acariciou-a e desapertou o cordão dos calções. - Diz-me, Tatiasha... - murmurou, penetrando-a e puxando-a para frente. - Assim está bem?

- Acho que sim – replicou em voz rouca, agarrando-se à bancada. Segurando-lhe as nádegas, entrou e saiu de dentro dela, baixou-lhe o vestido

até a cintura, curvou-se e chupou-lhe os mamilos: - Quero sentir os teus mamilos molhados no peito. - Agarra-te ao meu

pescoço. Não conseguiu. - Agarra-te ao meu pescoço, Tania. - insistiu, acelerando. - Ainda achas que a

bancada é muito alta? Não respondeu. - Foi o que pensei – murmurou, apertando-a contra si, envolvendo-lhe o corpo

nu com as mãos àvidas. - De repente... parece da altura exata... não é, minha impaciente esposa, não é?...

Depois, com Alexander ofegante e empapado à sua frente, Tatiana, também encharcada e sem ar, beijou-lhe o pescoço molhado:

- Contruíste a bancada só para isto?

Page 510: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

510

- Bem... não. - Bbeu longamente da garrafa e despejou-lhe o resto da água no rosto e seios. - Podemos acrescentar-lhe batatas.

Ela soltou uma gargalhada: - Mas não temos batatas. - Que pena! - Shura, tinhas razão: a altura da bancada é perfeita! Finalmente tenho um

sítio para fazer a massa das tortas. - Sorriu-lhe enquanto enfarinhava as mãos. A massa com fermento já crescera e ia fazer torta de couve.

Sentado na bancada, Alexander baloiçava as pernas de trás para adiante: - Não mudes de assunto! Achas mesmo que Pedro, o Grande não devia ter

fundado Leninegrado e modernizado a Rússia? - Eu não acho nada. Cuidado... tens a perna na minha farinha. É Pushkin quem

o diz. O nosso Pushkin tinha duas opiniões contraditórias sobre o assunto quando escreveu O Cavalheiro de Bronze.

- Quanto tempo vai demorar essa torta? - perguntou, sem se afastar um centímetro, atirando uma pitada de farinha para o rosto dela. - Pushkin não tinha nada duas opiniões. O Cavaleiro de Bronze defende precisamente que a Rússia devia entrar no Novo Mundo... mesmo esbracejando e debatendo-se.

- Pushkin achava que o preço de Leninegrado foi muito elevado. E não comecescom isso – avisou, atirando-lhe um punhado de farinha. - Sabes muito bem que perdes. - Sorrindo: - A torta vair demorar quarenta e cinco minutos.

- Sim, depois de meteres no forno. - Sacudiu a farinha do rosto e baloiçou as pernas com mais força, sem tirar os olhos dela. - Vê o que ele escreveu: << Ó, alto césar do destino!/ Não foste tu que sobre o abismo,/ Nas alturas, com rédeas de ferro,/ Fizeste a Rússia empinar-se?>> Destino, Tania. Não se pode lutar contra o destino.

- Shura, chega-te para lá. - Pegando no rola da massa: - Pois, mas também escreveu: << Falou o czar – logo se metem / Os generais ao ruim caminho / Por toda a banda, perto e longe, / Por entre águas em torvelinho, / Salvar o povo que se afogava / Morto de medo em suas casas. >> Medo, Alexander! Que se afogava! É desta ambivalência que falo. Segundo Pushkin, o povo não queria ser salvo nem modernizado.

Continuou deliberadamente sem se afastar, deixando que o rolo lhe batesse na coxa:

- Mas agora existe uma cidade onde não havia nada. Existe uma civilização onde antes havia atoleiros!

- Chega-te pra lá! Vai dizer isso ao Evguéni de Pushkin, que enlouqueceu. Ou à Parasha, que se afogou.

- O Evguéni era um fraco e a Parasha também. Não me parece que haja nenhuma estátua erigida em memória deles. - Não parou de bater.

Page 511: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

511

- Talvez não. Mas, Shura, é evidente que Pushkin foi ambivalente ao perguntar se o preço da construção de Leninegrado em vidas humanos não seria demasiadamente elevado.

- Não é nada evidente – teimou Alexander. - Não acho que tenha sido ambivalente. Essa torta vai ter recheio ou cozemos só a massa no forno?

Tatiana imobilizou-se o olhar para ele: - Como podes dizer isso, Shura? - Como posso dizer o quê? Não há recheio. Ela bateu-lhe ao de leve na perna com o rolo da massa: - Vai buscar-me a frigideira. Como podes dizer que não foi ambivalente? -

repetiu, observando-o. - Lê o que ele escreve. É a essência de todo o poema! - Inspirou:

<< E, pela frouxa lua alumiado, De mão estendida para o alto, Segue-o o Cavaleiro de Bronze Em seu cavalo a tilintar. >>

Inspirando outra vez: - Pushkin não acaba o poema como o começou, com a beleza dos gradis de

granito, das agulhas douradas, das noites brancas e dos Jardins de Verão de Leninegrado. - Com o coração avolumando-se-lhe dentro do peito à menção dos Jardins de Verão, sorriu a Alexander, que lhe devolveu o sorriso. E continuou: - Pushkin acaba o poema dizendo-nos que sim, a cidade de Leninegrado foi erigida, mas a estátua de Pedro, o Grande, adquiriu vida como num pesadeloe persegue Evguéni, o nosso pobre louco, por toda a eternidade, através de suas belas ruas:

<< E toda a noite o pobre louco, Era seguido em todo o lado Pelo Cavaleiro de Bronze Com o seu estropear pesado. >>

Arrepiou-se ao de leve. Porquê? Estava tanto calor! Alexander ergueu a frigideira de ferro fundido à sua frente: - Tania, consegues discutir comigo e pôr o recheio na torta ao mesmo tempo?

Ou tenho de concordar contigo para me fazeres o jantar? - É o preço de Leninegrado, Shura! Parasha a morrer afogada. Evguéni

perseguido pelo Caveleiro de Bronze por toda a eternidade – acrescentou ela, enchendo o invólucro de massa com o recheio e começando a dobrar as pontas da

Page 512: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

512

massa. - Parasha gostaria de ter vivido. E Evguéni de não ter pago com a sua sanidade mental. Preferiria habitar um charco.

Alexander voltou a saltar para a bancada e afastou as pernas: - <<... À soleira da porta / O meu pobre louco acharam / E mesmo ali seu

corpo frio / Por amor de Deus sepultaram. >> - Encolheu os ombros: - Continuo a dizer que o Evguéni é um preço razoável a pagar pelo mundo livre.

Tatiana parou, refletiu e ergueu os olhos para ele: - E também é um preço razoável a pagar pelo << socialismo num só país? >> -

perguntou baixinho. - Oh, olha que tu! - exclamou ele. - Queres comparar Pedro, o Grande com

Estaline? - Responde. Ele saltou da bancada: - Esbracejando e debatendo-se, mas por um mundo livre! Não esbracejando e

debatendo-se pela escravatura! É uma diferença vital, essencial e crucial! É a diferença entre morrer por Hitler e morrer para o impedir de avançar.

- Não é na mesma morrer, Shura? - Aproximando-se dele: - É na mesma morrer.

- Quem vai morrer sou eu, se não como depressa – resmundou ele. - Vai agora para o forno. - Depois, agachou-se para lavar as mãos e o rosto no

balde. A cabana estava quentíssima com o forno acesso. Nem as portas e nem as janelas abertas ajudavam. Tatiana endireitou-se e olhou para ele: - Temos quarenta e cinco minutos. Que queres fazer? Não, espere, esquece. Meu Deus, está bem, mas podemos limpar primeiro a bancada? Olha, estou a ficar toda enfarinhada. Gostas, não é? Oh, Shura, és insaciável. Não podemos passar a vida a fazer...

<< Oh, Shura, não podemos... >> << Oh, Shura... >> << Oh... >> - E sei que só queres contrariar, Shura. - Estavam sentados ao ar livre à última

luz do dia, sob o quarto crescente da lua que já se erguia no céu, comendo a torta de couve e cebola com uma salada de tomate e pão escuro com manteiga. - Sei que pensas que morrer por Hitler e morrer por Estaline é a mesma coisa.

Alexander engoliu um pedaço de torta: - Pois penso, mas morrer para travar Hitler não é. Sou aliado da América.

Estou a combater do lado da América. - Assentiu com firmeza: - E aceito esse combate.

Ela fitou a torta de couve: - Parece-me que não cozeu o tempo suficiente – comentou baixinho. - São nove da noite. Com a fome que tenho até a comia crua. Não querendo deixar morrer a discussão, ainda por cima porque achava que

tinha razão, Tatiana recomeçou:

Page 513: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

513

- Mas voltemos a Pushkin. A Rússia, representada por Evguéni, não queria ser modernizada. Pedro, o Grande devia tê-la deixado em paz.

- Em paz? - exclamou Alexander. - A Rússia não existia! Enquanto o resto da Europa avançava para o Iluminismo, a Rússia continuava na Idade Média. Depois de Pedro, o Grande ter erigido Leninegrado, surgiu de repente a língua francesa, a cultura, a educação, as viagens, a economia de mercado, a classe média em ascensão e uma aristocracia sofisticada. Música e livros. Os livros que tanto amas, Tania! Famílias felizes sobre as quais Tolstói escreveu. E nunca poderia ter escrito os seus livros se não fosse o que Pedro, o Grande construiu cem anos antes dele. O sacrifício de Evguéni e Parasha significa o triunfo de um mundo melhor. - Depois de uma pausa: - O triunfo da luz sobre as trevas.

- Pois é fácil para ti falar do sacrifício deles. Não és tu que estás a ser perseguido por um bloco de bronze.

- Vê as coisas de outra perspectiva. - Comendo o pão: - Que estamos a comer neste jantar que é mais uma ceia? Torta de couve e pão. Porquê? Sabes porquê?

- Não estou a ver... - gaguejou - Tem paciência e já vais ver. Comemos comida de coelho porque não quiseste

levantar-te hoje às cinco da manhã. Eu disse-te que era preciso se quiséssemos apanhar trutas, porque depois o peixe afastar-se-ia. Deste-me ouvidos?

- Às vezes dou... - resmundou ela. - É verdade. - Assentindo: - E nos dias em que dás, temos peixe. Eu tinha

razão? Claro que sim. Evidentemente que não apetece nada levantar cedo. Mas depois temos comida a sério. - Comia a torta alegremente. - É o que eu quero dizer: todas as grandes coisas que vale a pena ter exigem grandes sacrifícios que vale a pena fazer. Penso assim sobre Leninegrado. Valeu a pena.

- Estaline? - perguntou ela depois de uma pausa. - Não! Não, não e não! - Pousando o prato na manta: - Eu disse grandes

coisas. O sacrifício pelo mundo de Estaline não só é execrável como não faz sentido. E se eu te obrigasse a levantar... obrigasse, sem te dar outra opção, e te mandasse estremunhada e exausta lá para fora, ao frio, não peixes mas cogumelos? E não uns quaisquer, mas sim os cogumelos venenosos que passo a vida a arrancar do chão, daqueles que fritam o fígado ao simples contato e que matam passados três a cinco minutos? - Rindo: - Diz-me: gostarias de te levantar para isso?

- Não gosto de me levantar para nada – resmundou ela, apontando. - Come. Não é peixe...

Ele negou no prato: - É uma torta deliciosa, Tania – rematou com a boca cheia, piscando-lhe

alegremente o olho. - Mesmo que não apeteça nada, há combates que é preciso travar. Pelos quais vale a pena dar a vida.

- Se calhar... - Virou a cara. Alexander engoliu a comida e pousou o prato: - Anda cá.

Page 514: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

514

Tatiana engatinhou até ele sobre a manta: - Não falemos mais disto. - Abraçou-o com força. - Não, por favor... Vamos antes mergulhar no Kama. Na manhã seguinte, Tatiana desatou a gritar dentro da cabana. Os seus

guinchos chegaram aos ouvidos de Alexander, que rachava lenha entre os pinheiros e que largou imediatamente o machado, correndo para casa. Encontrou-a agachada em cima da bancada com os joelhos colados no pescoço.

- Que foi? - ofegou. - Passou-me um rato pelo pés enquanto estava a cozinhar. Ele fitou os ovos, o pequeno tacho de café que borbulhava no fogão, o tomate

já arranjado nos pratos e Tatiana, empoleirada um metro acima do chão. A boca abriu-se-lhe involuntariamente num grande sorriso:

- Que estás... - Tentava não rir a bandeiras despregadas: - Que estás a fazer aí em cima?

- Já te disse! - berrou ela. - Um rato passou a correr e tocou-me com... - arrepiou-se - ...com a cauda na perna. Podes apanhá-lo?

- Posso. Mas que fazes aí em cima? - Fugi do rato, claro. - Carregou o cenho e lançou-lhe um olhar de clemência: -

Vais ficar aí especado? Ele dirigiu-se à bancada e pegou nela. Tatiana agarrou-se-lhe ao pescoço mas

não pôs os pés no chão. Alexander abraçou-a e beijou-a uma e outra vez: - Tatiasha, sua medricas, os ratos conseguem trepar às coisas, sabes? - Não conseguem nada. - Vi ratos subirem o mastro da tenda do comandante na Finlândiam tentando

chegar a um pedaço de comida mesmo lá em cima. - Porque estava comida no alto do mastro da tenda? - Porque a pusemos lá. - Para quê? - Para vermos se os ratos conseguiam subir. Quase riu: - Escusas de pensar no pequeno-almoço, no café ou em mim enquanto não

tirares o rato desta casa. Levou-a lá para fora e voltou a entrar para ir buscar os pratos do pequeno-

almoço. Comeram no banco, lado a lado. Alexander, virou-se e fitou-a, incrédulo: - Tania, tens... medo de ratos? - Tenho. Mataste-os? - E como querias que o fizesse? Nunca me tinhas dito que tens medo de ratos. - Porque nunca me perguntate. Como queria que o matasses? Meu Deus, não

és capitão do Exército Vermelho? Que te ensinaram lá? - A matar seres humanos. Não ratos. Ela mal tocava na comida:

Page 515: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

515

- Olha, atira-lhe uma granada. Dispara com a espingarda. Não sei. Mas faz alguma coisa.

Alexander abanou a cabela: - Andaste nas ruas de Leninegrado com os Alemães a largarem bombas de

quinhentos quilos que arrancavam os braços e as pernas das mulheres que estavam à tua frente na fial, enfrentaste destemidamente os canibais, saltaste de um comboio em movimento para salvar o teu irmão e agora tens medo de ratos?

- Isso mesmo – desafio Tatiana. - Não faz sentido. Se uma pessoa não tem medo nas coisas grandes... - Estás outra vez enganado. Já acabaste com as perguntas? Tens mais alguma

coisa a perguntar? Ou a acrescentar? - Só uma. - Mantendo-se sério, falou devagar e em voz calma: - Parece que

afinal a bancada muito alta que construí ontem tem três utilidades. - E desatou a rir. - Vá, rir-te. Por quem és. Estou aqui para te divertir. - Tinha os olhos a cintilar. Alexander pousou o prato, tirou-lhe o dela das mãos e puxou-a para o meio

das pernas. Ela relutante, obedeceu. - Fazes ideia de como és engraçada?- Beijou-lhe o peitoe ergueu o olhar para

ela: - Adoro-te. - Se realmente me adorasses – replicou, tentando em vão libertar-se dos seus

braços -, não estarias aqui a namorar ociosamente quando podias tomar a cabana de assalto.

Alexander levantou-se - Só uma coisa: quando já se fez amor, não se diz namorar. Quando ele se afastou, Tatiana, sorridente, sentou-se no banco a acabar de

comer. Dali a minutos, Alexander surgiu à porta com a espingarda numa mão, a pistola na outra e, entre os dentes, uma baioneta com o rato morto baloiçando na ponta.

Falou pelo canto da boca: - Que tal me sai? Não conseguiu manter-se séria: - Bem, bem – riu alto. - Não era preciso trazeres os despojos de guerra. - Ah, mas eu sei que não acreditarias que o rato estava morto a menos que o

visse com os teus próprios olhos. - Queres deixar de repetir o que eu digo? Se me disseres, eu acredito, Shura.

Agora desaparece-me daqui com essa coisa. - Uma última pergunta. - Oh, não! - Tapou o rosto, esforçando-se por não se rir. - Achas que este rato morto vale um... rato assassinado? - Queres desaparecer? Tatiana ouviu-lhes as gargalhadas enquanto ia aos bosques e voltava.

Page 516: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

516

18

Estavam sentados numa pedra a pescar. Ou melhor, a tentar pescar. Tatiana tinha a linha na água, mas ele pousara a cana e deitara-se, acariciando-lhe as costas nuas. Desde que ela fizera um vestido novo de algodão azul, aberto do pescoço ao fundo das costas, Alexander parecia incapaz de se concentrar em pequenas tarefas como caçar e pescar. Não queria que ela vestisse mais nada, mas também não conseguia fazer mais nada.

- Shura, por favor. Ainda não apanhámos nada. Não quero que a Naira Mikhailovna fique com fomesó porque não lhe pescaste um único peixe.

- Hum. É mesmo nela que estou a pensar... na Naira Mikhailovna. Eu disse-te que nos devíamos ter levantado às cinco.

Tatiana suspirou, sorriu e contemplou o rio cintilante: - Prometeste-me que me lias em voz alta. Até trouxeste o livro de Pushkin. Lê-

me um bocadinho de O Cavaleiro de Bronze. - E começou: - << Eram terríveis esses tempos, / Inda é fresca a sua memória... >>

- Prefiro... - Lê. Eu caçoe pesco. Ele beijou-lhe as costas: - Pousa a cana. Não aguento. - São quase seis da tarde e não temos jantar! - Vá lá. - Tirando-lhe a cana de pesca das mãos: - Vais rejeitar-me? - Deitou-se

de costas: - Deitou-se de costas: - Levanta o vestido e senta-te em cima de mim. – Gemendo, imobilizou-se: - Não, assim não. Vira-te de frente para o rio e de costas para mim.

- De costas para ti? - Sim. – Fechando os olhos: - Quero ver-te as costas. Depois, ainda sentada de costas, Tatiana, descontraída e perplexa, observou

inaudivelmente: - Se calhar podia continuar a pescar. Afinal de contas, estou virada para o lado

certo. Afagando-lhe suavemente o fundo das costas, Alexander não disse nada. - Queres beijar-me? – perguntou ela, levantando-se. Deitado de olhos fechados: - Quero. – Mas não se mexeu. – Quantos dias mais temos, Tatiana? – Falou

com a voz estrangulada. Ela virou-se rapidamente para o Kama e pegou a cana de pesca. - Não sei – murmurou, fitando a água. – Não tenho contado.

Page 517: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

517

Ouviu então a voz dele: - E se eu te lesse agora? Oh, está aqui uma passagem de que deves gostar:

<< Noivar e, porque não, casar? Duro será, pois certamente; Mas, jovem, sadio e pronto A labutar arduamente, Farei para mim um abrigo simples E amanharei um lar modesto Para a... >>

Interrompeu-se. Tatiana sabia que o nome da figura feminina do poema de Pushkin era Parasha. Ficou à espera, com os olhos refletindo o peso que sentia no coração. Alexander retomou a leitura em voz baixa e embargada:

<< Para a Tatiana acomodar. Passará um ano, outro ano- No serviço avançarei, Tatiana tratará da casa E nossos filhos criará... Caminharemos de mãos dadas Até à morte, e os nossos netos Levar-nos-ão a enterrar...>>

Calou-se. Tatiana ouviu-o fechar o livro. - Então? Continua, soldado. – Segurava a cana de pesca com as mãos a

tremer. – Continua com coragem. - Não – disse atrás dela. A jovem não se virou. Contemplando o lânguido rio,

continuou de cor:

<< Assim sonhava. E entristecia Nessa noite, não queria o vento A uivar tanto desalento, Que a chuva zurzisse a janela Com tanta raiva... >>

Não voltaram a falar até regressarem à cabana.

Page 518: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

518

Nessa noite, quando voltaram de casa de Naira, Alexander acendeu uma fogueira, Tatiana fez chá e sentaram-se os dois, ela de pernas cruzadas e ele ao seu lado. << Está muito calado >> , pensou ela. << Mais do que normalmente.>>

- Shura – disse com suavidade -, anda cá. Encosta a cabeça em mim, como de costume.

Ele deitou-se com a cabeça no seu colo. Tatiana acariciou-lhe o rosto suavemente, com ternura e mágoa.

- Que se passa, soldado? – sussurrou, curvando-se para o cheirar. Chá e cigarros. Embalou-lhe a cabeça entre as coxas e os seios e beijou-lhe os olhos: - Estás preocupado?

- Não. – E não disse mais nada. Tatiana suspirou: - Queres ouvir uma anedota? - Desde que não tenhas contado ao Vova. - Os para-quedistas vão ao fabricante de para-quedas: << Ei, os seus para-

quedas são bons? >>, perguntam. Responde ele: << Até agora ninguém reclamou. >>

Alexander quase riu. - Tem graça, Tania. – Pôs-se em pé em um salto e pegou uma chávena dela: -

Vou fumar um cigarro. - Fuma aqui. Deixa as chávenas. Eu depois arrumo. - Não quero que arrumes depois. Porque fazes sempre isso? Ela mordeu o lábio. Antes de se afastar, Alexander acrescentou: - E porque tens sempre de servir o Vova? Não me digas: tens as mãos

partidas? Não podes servir-se a si próprio? - Shura, eu sirvo toda a gente. – Depois de uma pausa, continuou baixinho: - E

a ti primeiro. – Erguendo os olhos para ele: - Achas que era bonito eu servir toda a gente exceto ele?

- Quero lá saber, Tania! Só queria que não o fizesses. Não respondeu. Estaria zangado com ela? Ficou sentada de pernas cruzadas à frente das chamas bruxulentas. Estava

escuro com exceção do círculo à volta da fogueira e da meia-lua no céu. O ar cheirava a noite, água fresca e madeira a arder. Sabia que Alexander a observava do banco ao lado da cabana, ligeiramente atrás dela. Cada vez a contemplava mais enquanto fumava.

Virou-se para ele. Lá estava, fitando-a e fumando. Levantou-se, aproximou-se e parou junto das suas pernas. Pisando-lhe o pé,

perguntou timidamente: - Shura... queres entrar? Abanou a cabeça: - Vai indo. Eu fico aqui à espera que a fogueira se apague.

Page 519: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

519

Tatiana obsevou-o, estudou-o e examinou-lhe os olhos, os lábios e as mãos ligeiramente trêmulas.

Mordeu outra vez o lábio e não se mexeu. - Vai andando – repetiu ele. Ela avançou, afastou-lhe as pernas e ajoelhou-se no chão à sua frente. A

respiração dele acelerou-se. Erguendo o olhar para o seu rosto e esfregando-lhe as pernas, Tatiana perguntou:

- Que adoro eu? Não respondeu. Abanou-o ao de leve: - Que adoras tu? - Sentir a tua boca – replicou com intensidade. - Hum. – Despertando-lhe os cordões das calças: - Está muito escuro?

Consegues ver? - Consigo. – Pousou-lhe as mãos na cabeça. - Shura? - Hum? - Amo-te.

Page 520: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

520

19

Alexander andava pelo bosque a apanhar lenha. Tatiana chamou-o, mas ele não respondeu. Queria vê-lo antes de dar um saltinho a casa de Naira. Pousou no banco um prato com batatas fritas, dois tomates e um pepino. Quando regressava do bosque, vinha sempre com fome. Ao lado do prato, deixou um chá preto com açúcar, um cigarro e o isqueiro.

O seu divertido marido perdera o interesse pelas coisas divertidas. De momento, só fumava e rachava lenha. Fumava para si e rachava lenha para ela. Continuavam a acordar de vez em quando antes do nascer do dia e iam pescar para o Kama, àquela hora ainda de vidro, ao ar orvalho e azul. Em silêncio e estremunhados, sentavam-se na pedra do recanto retirado do rio, mesmo junto da clareira. Ele tinha razão, claro. Era a melhor hora para pescar. Apanhavam meia dúzia de trutas em quatro ou cinco minutos. Alexander deixava-as vivas no cesto de rede que pendia no ramo de um choupo e mergulhava no rio. A seguir ele fumava e Tatiana lavava os dentes e ia outra vez deitar-se.

Depois de ter fumado e tomado banho, regressava à cama, onde Tatiana, à sua espera, escutando-o e rezando por ele, o recebia como sempre, tremendo de desejo. Ele possuía-a. Aceitava a sua coroa sempre e como ele quisesse oferecer-lha, mesmo que fosse ao gelo da manhã.

Mas enquanto dantes Alexander ficava divertidíssimo ao chegar-se a ela com o corpo gelado, agora tocava-lhe como se ela escaldasse, como se fosse queimar-se nela. Era atraído pelo fogo, não podia senão tocar-lhe e, no entanto, comportava-se como se soubesse que as queimaduras que infligia a si próprio o marcariam para toda a vida, se não o matassem primeiro.

Que acontecera ao Shura que corria atrás dela e a apanhava, atirando-a ao chão, lambendo-a e fazendo-lhe cócegas? Que acontecera ao Shura que queria fazer amor em plena luz do dia para poder observá-la? Onde estava ele, alegre, divertido, impertinente, descuidado? Parecia ter-se afogado, dando lugar a um Alexander que pouco mais fazia do que fumar, rachar lenha e observá-la.

Às vezes, dormindo a sono solto toda enroscada nele, consolada e em paz, Alexander acordava-a de repente do pino da noite. Não se mexia e nem falava com ela. Sentia-o vigilante, sem ar, sufocando-a, abraçando-a com todas as suas forças. Sentia-lhe a respiração entrecortada e os lábios roçando-lhe o cabelo e desejava deixar de respirar para sempre.

Tatiana cortava os tomates às rodelas. As lágrimas deslizavam-lhe silenciosamente pelas faces.

Ouviu-o falar atrás dela:

Page 521: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

521

- Vais a algum lugar? Sabia ser furtivo quando queria. Limpou rapidamente os olhos e pigarreou: - Espera, está quase. – A luz diminuía. Talvez ele não lhe visse o rosto

molhado. Virando-se e sorrindo, viu que ele estava a transpirar e coberto de pauzinhos: - Andaste a apanhar mais lenha? – O coração bateu-lhe com mais força: -

Preciso assim de tanta? – Aproximando-se dele: - Hum... que cheiro delicioso! – murmurou com a respiração entrecortada ao cheirá-lo, ao vê-lo.

- Porque tens a cara vermelha? - Estavas a cortar cebolas para as batatas. Sabes como é... - Só vejo um prato. Vais a algum lado? – repetiu sem sorrir. - Claro que não. – Pigarreou. - Deixe-me ir lavar-me. - Não é preciso. – Aproximou-se descalça, vulnerável e excitada. – Sinto-me

sempre tão pequenina quando estás de botas – segredou, erguendo o olhar para ele.

O corpo de Alexander imobilizava-a. Segurava-lhe a cabeça com a mão direita e as nádegas com a esquerda e tinha o corpo em cima dela, dentro dela e à volta dela. Só conseguia mexer-se quando ele a deixava. Submetendo-se por completo,sentia que cada impulso dele era um testemunho do seu amor, da sua necessidade.

Agora já compreendia: Alexander sabia muito bem a força que tinha. Tatiana colou-lhe os lábios à clavícula: - Oh, Shura... Preciso tanto de ti!- Esforçou-se para não chorar. A voz dele embargou-se: - Estou aqui. Sentes? - Sinto, soldado – murmurou. – Sinto. A onda de fogo começou a inundá-la e mordeu o lábio para não gemer. Mas

sabia que Alexander, tão dentro dela, também a sentiu, pois deixou de se mexer e retirou-se. << Lá começamos outra vez >>, pensou, abrindo as mãos numa súplica. << Lá começamos outra vez e passamos assim a noite. Doce e brusco, rítmico e desregrado, libertará finalmente a sua sede e o seu desejo dentro de mim, esgotando-nos aos dois e fazendo-nos esquecer a sua enorme mágoa.>>

Era de noite. Tatiana observava fixamente Alexander, deitado de barriga para baixo, com o rosto virado para ela e os olhos fechados. Imóvel ao seu lado, escutava-lhe a respiração e tentava perceber se ele estava a dormir. Não lhe parecia. De vez em quando, estremecia como se estivesse a pensar. Não queria que ele pensasse. Com os dedos, descreveu-lhe lentamente pequenos círculos nas costas. Alexander murmurou qualquer coisa e virou a cara.

<< De que precisa ele?>>, pensou. << Que posso dar-lhe? >> - Queres que te faça uma massagem? – perguntou, beijando-lhe o antebraço e

passando-lhe a palma da mão pelos ombros rijos. Apertou-o: - Estás a ouvir?

Page 522: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

522

Ele virou-se para ela e abriu um olho: - Sabes fazer massagens? - Sei. – Sorriu. Ele só tinha as cuecas vestidas. Saltou para cima dele. - Tatia, que percebes de massagens? - Perdão? – brincou, beliscando-lhe uma nádega. – Já fiz imensas massagens. - Ai sim? Sabia que isso lhe chamaria a atenção. - Sim. Estás pronto? Carris, carris – começou, traçando-lhe duas linhas

paralelas nas costas com as pontas dos dedos, desde o pescoço ao elástico dos calções – Travessas, travessas. – Traçou linhas curtas e perpendiculares. – Agora chega o último comboio... – Uma linha em ziguezague de cima a baixo. – E espalha o grão todo. – Fez-lhe cócegas.

Alexander riu, com a cabeça pousada nas mãos. Tatiana teve vontade de o beijar, mas isso não fazia parte do jogo. - Vêm as galinhas e debicam-no. – Espetou-lhe os dedos nas costas. – Vêm os

gansos e picam-no. – Beliscou-o todo. - Que massagem é esta? - Vêm os meninos e pisam-no. – Bateu-lhe com as palmas das mãos. - Olha lá! Porque estás a bater-me? - Vêm os ladrões, põem-lhe sal, põem-lhe pimenta e comem-no – guinchou,

fazendo-lhe cócegas. Ele contorceu-se todos. << Adoro vê-lo cheio de cócegas>>, pensou ela com prazer. Sem conseguir resistir, mordeu-llhe as costas. Ele era irresistível assim a contorcer-se de cócegas. Quando o mordeu, Alexander ronronou. – Vem o Dedushka e apanha algum grão – continuou, passando-lhe com os dedos pelo corpo. – Vem o guarda do jardim zoológico...

- O guarda do jardim zoológico? - Senta-se e começa a escrever. – Desenhou uma mesa e uma cadeira e

traçou-lhe linhas em ziguezagues nas costas. - << Por favor, admitam a minha filha no jardim zoológico. Por favor, apanhem o grão. >> Acrescenta um ponto... cola um selo... – Deu-lhe uma palmada. – Trrr. – Espetou-lhe os dedos nas costelas. Ele deu um salto e ela riu-se. – E agora... para o correio! – Esticou-lhe o elástico dos calções e largou-o, fazendo-o bater-lhe no fundo das costas. Baixou-lhe depois as cuecas e afagou-lhe as nádegas.

Alexander não se mexeu. - Já acabou? – perguntou em voz abafada. Rindo, Tatiana deitou-se em cima dele: - Já. – Beijou-o entre os ombros. – Gostaste? – As costas nuas dele pareciam

uma cama lisa sob o seu corpo. << Andou comigo as cavalitas >>, pensou. << Carregou comigo e com a espingarda ao longo de nove quilômetros. >> Esfregou-lhe a face na omoplata, muito bronzeada. Passara todo mês ao calor do sol. Pestanejou.

- Hum. Interessante. É uma massagem russa?

Page 523: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

523

Tatiana contou-lhe que ela e os miúdos de Luga a faziam uns aos outros vinte vezes ao dia, cada uma com mais força e mais cócegas. O que não disse foi que era uma brincadeira que também tinha frequentemente com Dasha.

Alexander saiu debaixo dela: - Agora é minha vez; - Oh, não! – guinchou. – Não sejas bruto. - Vira-te. Ela obedeceu, ainda com o vestido. - Espera. Levanta-te. Despe o vestido. – Ajudou-a. Deitou-se de barriga para baixo à frente de Alexander, com o cabelo dividido

ao meio e atado de lado com fitas brancas e as costas expostas, macias, cremosas, acetinadas. Tinha sardas nos ombros devido ao sol, mas o resto do corpo era de marfim. Curvando-se, Alexander fez-lhe deslizar a língua da omoplata ao pescoço. Depois, desatou-lhe as fatias do cabelo. Com a respiração entrecortada:

- Espera, vamos tirar isto também. – Puxou-lhe a calcinha de seda azul. Tatiana levantou as nádegas: - Se me tiras a roupa interior, como vamos fazer a parte do elástico no fim? Perdido como sempre na contemplação das suas nádegas erguendo-se,

Alexander mordiscou-lhe a pele perto do ombro: - Já que não temos nenhum comboio com grão ou ursos a saltarem-te nas

costas, talvez possamos também imaginar o elástico das tua calcinha. – Viu que ela sorria, já de olhos fechados. Tirou os calções com uma mão.

Continuou a beijá-la ternamente entre as omoplatas. Tatiana gemeu baixinho: - As regras do jogo não são essas. Ele encavalitou-se em cima dela, apoiando-se nos joelhos. - Está bem – começou. – Como é? - Carris, carris – ajudou ela. Alexander traçou-lhe duas linhas do pescoço às nádegas. - Só não precisas é de ir tanto para baixo. - Não? – As mãos e os dedos dele permaneceram nas suas nádegas. - Não – repetiu. Mas a voz acelerou-se-lhe. - E depois? Que fazem as galinhas? - Debicam. – Alexander debicou-a com os dedos, pousou-lhe as palmas das

mãos nas costas e massajou-a da coluna vertebral para as costelas. Depois, fez deslizar as mãos até aos seus seios.

- E os gansos? – perguntou, acariciando-a. - Picam. – Beliscou-lhe docemente os mamilos. – Shura, vais ter de te esforçar

mais. – Soergueu-se um pouco e ele apertou-lhos com menos suavidade. – Hum – murmurou.

- Vêm os ladrões... – continuou, saindo de cima dela, afastando-lhe as pernas e ajoelhando-se entre elas. – Puseram sal... – levantou-lhe as ancas e puxou-a para

Page 524: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

524

si - ... puseram pimenta... – deslizou todo dentro dela. Tatiana gritou, agarrando o lençol com as duas mãos. – E comeram... uma vez... e outra... e outra...

Sem parar, pousou-lhe as palmas das mãos nas costas e curvou-se, tocando-lhe no cabelo dourado radioso. Fechou os olhos e endireitou-se, com as mãos a apertarem-lhe as anca em torno.

Depois, Tatiana murmurou: - Foi uma massagem americana? É que as regras não são nada essas. Riu-se, mas ainda de olhos fechados. - Sabes que nunca mais vou encarar esse jogo da mesma maneira, não sabes? - Ótimo! – exclamou ele. – Não é o que acontece com o jogo das escondidas? - É, também estragaste esse – murmurou ela. Alexander inclinou-se e abraçou-a por trás, ainda dentro dela, incapaz de a

cingir a si tanto quanto gostaria.

Page 525: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

525

20

Já a noite ia avançada, Tania e Shura jogavam strip póquer. Tania, Tania, Tania. Tania, que desafiava a morte, que amava a vida, que construía estrelas, indomável e ridiculamente bela, odiava perder fosse o que fosse. E estava a perder o póquer. Alexander esforçava-se por se concentrar nas cartas e não nela.

Tendo acabado de perder a camisa, Tatiana gemia apoiada nos cotovelos enquanto Alexander, ajoelhado e curvado para a frente, lhe chupava vagarosamente os mamilos. Encontravam-se na clareira à frente da fogueira, iluminados pelo quarto crescente da lua.

- Leva-me para dentro – sussurrou ela. - Não enquanto não perderes outra vez. – Mas não conseguia afastar-se –

Olha para mim, Tania. Derreto-me todo quando estou contigo... - Nem todo – replicou, agarrando-lhe o sexo e deixando-se cair para trás na

manta. – Além disso, não vou nada perder outra vez. O jogo de póquer estava a correr muito bem a Alexander e muito mal a

Tatiana, que já estava só de calcinha. - A calcinha e a aliança – observou ela. – Acho que ainda consigo ganhar. - Se tiras a aliança, bem podes nunca mais a pôr – avisou-a ele, distribuindo as

cartas. Observou-a enquanto ela as examinava, mal conseguindo prestar atenção às

suas. À luz da fogueira, o seu rosto poético estudava as cartas, que mantinha à frente do peito para as esconder dos olhos dele. Alexander desejou que ela as pousasse. Inspirou profundamente. Já a teria dali a bocadinho.

- << Como se diz... bate-me>> - disse em inglês, sorrindo: - << Duas vezes. >> Concentrou-se no jogo. De repente, o rosto iluminou-se-lhe. De olhos

cintilantes, virou-se para ele: - Muito bem, aposto mais dois copeques. Alexander tentou continuar sério: - Acompanho-te. Vá, mostra lá o que tens, Tatia. - Ah! Sequência! – Sorriu de orelha a orelha. - Ah! Nada. – Pousou as cartas. Tinha quatro reis. - O que foi? – Carregou o cenho. - Ganhei. Póquer de reis. – Apontando-lhe para a calcinha: - Vá... tire-as. - O quê? - O póquer é mais do que sequência.

Page 526: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

526

- Oh, és tão mentiroso! – vociferou, atirando-lhe as cartas e tapando os seios com as mãos.

Ele afastou-lhas: - Não estamos em Luga. Já os vi mil vezes. – Riu. – Já... Ela tapou-se outra vez: - Já sei como ganhas sempre. Fazes batota. Alexander não parava de rir. Nem conseguia baralhar. - Quantas vezes tenho de explicar, camarada lembro-me-de-tudo-o-que-me-

dizes? Hã? – Estendeu a mão e puxou-lhe a calcinha: - Regras são regras. Tira-as. Tatiana recuou na manta: - Pois, batota! – declarou em ar de desafio. – Vamos jogar outra vez. - Está bem, mas tu jogas nua, porque perdeste. - Shura! Ainda no outro dia disseste à Naira Mikhailovna que a tua sequência

valia mais do que o póquer dela. És um batoteiro. Assim não jogo contigo. - Tania, no outro dia a Naira Mikhailovna tinha uma trinca, não um póquer, e

eu uma sequência, que de fato vale mais. – Fitou-a, sorrindo com todos os dentes: - Não preciso de fazer batota para te ganhar no póquer. Ao dominó, sim. Mas não ao póquer.

- Se não precisas, porque fazes? – inquiriu ela. - Chega! – Pousou as cartas: - De uma maneira ou outra, vais tirar a calcinha,

Tania. Fui eu que ganhei. - Ganhaste com batota. Alexander envergava as calças da tropa e estava de tronco nu. Tatiana

continuava com as mãos nos seios, mas tinha os lábios molhados e entreabertos e passeava-lhe os olhos pelo corpo exposto.

- Tania – começou ele, fitando-a com intensidade -, queres que te obrigue a cumprir as regras?

- Quero. – Pôs-se em pé de um salto. – Quero ver-te tentar. Gostava do seu espírito combativo. Estava apenas a uns segundos dela

quando se levantou, mas sabia que nada ia impedi-la de fugir. Ainda ele correria e já chegara ao Kama.

Alexander parou à beira da água: - Estás maluca? – berrou-lhe. - Estou. E tu fazes batota só para eu me despir! – gritou do rio. Ele cruzou os braços sobre o peito: - Achas que preciso fazer batota ao póquer para te tirar a roupa? Se nem

consigo que estejas vestida por muito tempo! - Oh, tu... Soltou uma gargalhada: - Sai daí. – Mas não conseguia vê-la. Ela era apenas uma sombra escura no rio.

Vá, sai. - Anda cá tu apanhar-me, já que és tão esperto.

Page 527: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

527

- Esperto mas não maluco. Não vou tomar banho à noite. Sai. Ouviu-a cacarejar como uma galinha. - Está bem. – Girou nos calcanhares e afastou-se da água. Voltou à fogueira,

juntou as cartas e apanhou os cigarros e as chávenas. Levou tudo para dentro de casa, incluindo a manta, e tornou a sair. A clareira estava silenciosa e o rio também. Já fazia mais fresco à noite. – Tania! – chamou.

Nada. - Tania! – chamou em voz mais alta. Nada. Dirigiu-se ao rio em passadas rápidas. Não via nada, nem sequer uma sombra

escura. O luar era fraco e as estrelas não se refletiam na água. - Tatiana! – gritou em plenos pulmões. Silêncio. De repente, lembrou-se da corrente rápida do Kama, das rochas onde às vezes

tropeçavam e dos pedaços de madeira que passavam a flutuar. Foi tomado de pânico.

- Tania! – berrou. – Isto não tem piada nenhuma. – Tentou escutar algum chapinhar, respiração, um movimento.

Nada. Correu para a água de calças vestidas: - Se isto for uma das tuas gracinhas, o melhor é não me apareceres à frente! Nada. Nadou contra a corrente berrando: - Tania! Voltou então a olhar para a terra. E lá estava ela... De pé, já seca, envergando uma camisa comprida, enxugando o cabelo e

observando-o. Não lhe distinguia a expressão porque estava à frente da fogueira, mas apostava que quando falou tinha um grande sorriso de escárnio estampado no rosto:

- Pensava que não querias entrar no Kama com as calças vestidas, grande batoteiro!

Ficou sem fala. Aliviado mas sem fala. Correndo para fora da água, alcançou-a tão rapidamente que ela recuou,

tropeçou e caiu ao chão, erguendo o olhar, já sem sorrir: - Tatiana, és impossível. – Estendeu-lhe a mão para a ajudar a levantar-se,

mas largou-a logo e não olhou mais para ela enquanto se encaminhava a pingar para a cabana.

- Foi só uma partida... – Ouviu-a dizer atrás de si. - Não teve graça nenhuma. - Há pessoas que não sabem aceitar uma partidinha – resmungou.

Page 528: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

528

- Parece-te que eu ia achar muita piada se te afogasses? – berrou-lhe, virando-se para ela. – A que pensas que eu acharia mais graça? – Agarrou-a, soltou-a e entrou. Ouviu-a atrás de si. De repente, ela apareceu à sua frente, olhando-o com ansiedade.

- Shura... – murmurou. Pegou-lhe a mão e pousou-lhe debaixo da camisa. Tirara as cuecas. Alexander prendeu a respiração. Ela era impossível. Permaneceu com a mão entre as suas coxas.

- Queria que entrasses na água para me salvar – desculpou-se ela, tocando-lhe, desapertando-lhe as calças. – Esqueceste-te da parte em que o cavaleiro salva a delicada donzela.

Os dedos dele acariciaram-na: - Delicada? – Cingiu-a a si. – Deves estar a referir-te a outra pessoa qualquer.

Aliás, deves ter-te esquecido de que a tua missão enquanto donzela é namorar o cavaleiro e não aterrorizá-lo.

- Não era minha intenção aterrorizar-te – murmurou, enquanto Alexander pegava nela e a pousava na cama. Abriu-lhe os braços.

À luz bruxelante da candeia de querosene, contemplou a sua Tatiana deitada nua de costas, tremendo e gemendo, aberta para ele. Só conseguia pensar nela. Tania. Pôs-lhe a mão nos dedos dos pés e fê-la subir até às pernas, entre as coxas abertas, devagarinho para ela não dar saltos, do ventre para o peito, acariciando-a de um lado para o outro, apertando-lhe os seios e rodeando-lhe lentamente o pescoço.

- Que foi, Alexander? Que foi, querido? Ele não respondeu. Permaneceu com a mão no pescoço dela. - Estou aqui, soldado. – Pousou a mão por cima da dele. – Sentes-me? - Sinto, Tania – sussurrou, dobrando-se sobre ela. – Sinto. - Por favor, anda – gemeu. – Por favor... anda, toma-me como quiseres...

como eu gosto... vá... mas como eu gosto, Shura... Quando depois já estavam quentinhos debaixo dos cobertores, esgotados,

abraçados um ao outro e prontos a adormecer, Alexander abriu a boca para falar, mas ela interrompeu-o:

- Eu sei, Shura. Percebo... sinto... Não digas nada. Os seus corpos nus não estavam apenas entrelaçados: pareciam em transe,

tentando fundir-se numa explosão de calor que talvez os acalmasse quando arrefecessse.

Mas Alexander não sossegava. Todos os dias se sentia como uma bolha de vidro ainda quente.

Page 529: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

529

21

E assim viviam seus dias lilás de manhã à noite, do primeiro movimento do rio à última canção da cotovia, do cheiro das urtigas ao perfumes das pinhas, do tranquilo sol da manhã ao luar pálido da clareira.

Alexander rachava lenha, que atava em pequenos feixes. Tatiana confeccionava tortas, compotas e panquecas de mirtilo. Havia muitos mirtilos nesse verão.

Ele construía coisas e ela cozia pão. Nos dias em que chovia, jogavam dominó na varanda de Naira. Por mais que

Alexander tentasse, Tatiana ganhava sempre. Quando estavam sozinhos, jogavam strip póquer. E ela perdia sempre.

Jogavam às escondidas, o jogo preferido dele. Tatiana costurou-lhe mais cinco camisolas sem mangas e depois pares de

cuecas. - Para me sentires debaixo da farda – dizia-lhe. Iam apanhar os cogumelos juntos. Ele ensinava-lhe poemas em inglês de que ainda se lembrava... alguns de

Robert Frost: <<Encantadores, escuros e profundos os bosques são, mas minhas promessas por cumprir estão...>>

E de Emma Lazarus: <<Aqui às nossas portas batidas pelo mar surgirá uma poderosa mulher...>>

Depois de acender o lume na cabana, Alexander lia-lhe Pushkin enquanto ela fazia o jantar, mas acabou por parar de ler O Cavaleiro de Bronze , por ser forte demais para ambos.

Encontrou no livro uma fotografia que dera a Dasha no ano anterior, que o mostrava a receber a sua condecoração por causa de Yuri Stepanov.

- A minha mulher tem orgulho do seu marido? – perguntou, passando-lha. - Que remédio! – respondeu, sorrindo. – Pensa só, Shura: ainda eu era uma

miúda a andar de barco no lago Ilmen e já tu tinhas perdido os teus pais, estavas no Exército e eras um herói.

- Uma miúda não. – Abraçando-a: - Uma rainha. À minha espera. - Por falar nisso, ainda não fomos buscar as fotografias do casamento. - E quem tem tempo para ir a Molotov? – comentou Alexander.

Page 530: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

530

Não falavam da partida dele, mas os dias passavam na mesma. Perto do fim, não se limitavam a passar: voavam como se a mola dos ponteiros do implacável relógio se tivesse partido.

E não falavam do futuro. Não era que não quisessem. Não podiam. Nem do que aconteceria depois da guerra, nem durante a guerra, nem a 20 de

julho. Alexander quase nem conseguia falar do dia seguinte. Não tinham passado nem futuro. Eram apenas jovens em Lazarevo.

Comiam e brincavam, conversavam e contavam anedotas, pescavam e lutavam, caminhavam pelos bosques a falar inglês e atravessam o rio nus. Alexander ajudava-a a transportar a sua roupa suja e a de mais quatro velhinhas, ia-lhe buscar água ao poço e carregava baldes de leite; penteava-lhe o cabelo todas as manhãs e fazia amor com ela muitas vezes por dia, nunca se cansando, nunca deixando de a desejar e sabendo que estava a viver os tempos mais felizes da sua vida.

Não tinha ilusões: Lazarevo nunca mais voltaria para nenhum dos dois. Mas Tatiana tinha-as. E ele pensava: << É melhor tê-las. >> Era só olhar para ele. E olhar para ela. Apesar do seu ciclo lunar de vinte e nove dias estar a girar mais depressa em

direção à dor, Tatiana mostrava-se feliz, sorrindo-lhe, tocando-lhe e rindo tão frequentemente, que Alexander chegava a pensar se ela nunca se interrogaria quanto ao futuro. Sabia que, às vezes, se lembrava do passado e de Leninegrado. Acompanhava-a sempre um certa tristeza empedernida que era nova nela. Mas, quanto ao futuro, parecia acalentar sonhos cor-de-rosa ou, pelo menos, uma alegre despreocupação.

- Que estás a fazer? – perguntava-lhe quando o via sentado no banco a fumar. - Nada – respondia Alexander. Nada a não ser embalar a dor. Fumava e desejava-a. Era como desejar a América quando tinha menos uns anos. Desejava uma vida com ela, uma vida preenchida só por ela, uma vida longa e

simples de casado, cheirando-a e tocando-lhe, ouvindo a melodia de sua voz e vendo-lhe o cabelo de mel. Sentindo o seu enorme consolo. Tudo, todos os dias.

Conseguiria virar-lhe as costas e libertar-se do seu rosto confiante? Ela perdoar-lhe-ia por morrer, por a matar?

Sentia um murro no estômago ao vê-la surgir nua de manhã à porta da cabana e atirar-se ao guinchos para o rio, saindo depois, atravessando a clareira e sentando-se sobre o seu coração desfeito. Contemplando-lhe os mamilos duros por causa do frio e o corpo imaculado tremendo de desejo, rangia os dentes, sorria e agradecia a Deus por ela não lhe ver o rosto contorcido quando a abraçava.

Fumava e observava-a do banco feito de um tronco de árvore.

Page 531: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

531

- Que estás a fazer? – perguntava-lhe ela. - Nada – respondia. – Nada a não ser transformar a minha dor em loucura. Perdia constantemente a paciência. Irritava-o vê-la à disposição dos outros. Percebendo o seu desagrado, Tatiana

rodeava-o ainda de mais atenções: - Posso ajudar? Precisas de alguma coisa? Queres mais alguma coisa? – Eram

palavras que lhe saíam regularmente da boca. - Não, não preciso de nada – respondia ele. E ela levava-lhe um cigarro,

punha-lo na boca, acendia-lho e beijava-lhe o canto do lábio com os olhos cheios de amor a uns centímetros de distância do seu olhar torturado. << Não, para, afasta-te. >>, gostaria de dizer-te Alexander. << Que será de ti quando eu partir e ficares sem mim? Que será de ti quando eu partir, depois de me teres dado tudo? >>

Sabia que ela não conseguiria dar de outra maneira. Tinha o seu jeito... e era assim que se dava. A sua devoção era inabalável; de resto, a incapacidade para esconder a sua verdadeira natureza fora o que o levara a apaixonar-se por ela. << Mas terá de aprender a fazê-lo >>, pensava, levantando e baixando o machado centenas de vezes por dia. << Terá de aprender a esconder-me até de sim mesma. >>

Irritava-se com ela pelas coisas mais insignificantes. A sua alegria atormentava-o. Tatiana passava a vida a cantar e a andar de um lado para o outro em passo saltitante. E ele não percebia como podia mostrar-se tão descuidada quando sabia que ele partiria dali a quinze dias, dez, cinco, três.

Cada vez ficava mais amargo e ciumento; até ele se admirava, mas não suportava ver ninguém a olhar para ela. Ficava fora de si ao dar com ela sorrindo a alguém, falando com Vova ou, pior ainda, servindo-o. Irritava-se com uma regularidade assombrosa, mas não conseguia ficar zangado com ela por mais de cinco minutos. O arsenal de que Tatiana dispunha para o arrancar em seu abismo sem fundo tinha muitas armas.

Estivessem a passear, comer, dormir ou fazer amor, nunca conseguia estar suficientemente perto dela. Com os sentimentos balançando entre uma ternura imensa e um desejo incontrolável, precisava dela muitas vezes por dia. O corpo começava a doer-lhe fisicamente quando ela partia para as reuniões da costura ou ia ajudar as velhinhas. A sua disponibilidade acanhada, doçura ilimitada e vulnerabilidade despedaçavam o coração de Alexander, que só desejava sentir-se rodeado pela sua carne de veludo e ouvi-la gritar: << Oh, Shura. >>

Começou a não conseguir estar em cima dela e observa-lhe o rosto enquanto ela contemplava o dele. No fim, virava-a ao contrário, porque estando por trás ela não o veria.

Tudo para se sentir melhor por ir partir. Era impensável deixá-la. Começara a esquecer a resposta à pergunta que se fizera vezes sem conta. << A que preço, Tatiana? >>

Page 532: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

532

No princípio, a resposta era clara. Tatiana era a resposta. Mas aquilo já não era o princípio e sim o fim. Tenho ouvido dizer que talvez houvesse arenques, Tatiana fora ao mercado

enquanto Alexander andava às voltas na clareira, esperando o seu regresso. Às tantas, entrou em casa. Estava a procurar na arca dela algum objeto a que se agarrar, quando encontrou no fundo qualquer coisa que parecia escondida. Como o baú pertencera ao seu avô, não ligou muito ao princípio mas, quando tirou os lençóis, roupas, alguns papéis e três livros que estavam por cima, descobriu uma mochila de lona preta. Imediatamente curioso, abriu-a. Tinha dentro a sua velha pistola P-38, garrafas de vodca, botas de inverno, latas de tushonka, bolachas seca, um frasco e também roupas quentes, todas escuras.

Fumou tristemente dez cigarros antes de ela regressar. Ouviu-a antes de a ver. Trauteava a valsa que lhe cantara. - Shura! – chamou alegremente. – Não vais acreditar. Arenque! Arenque a

sério! Vamos fazer uma banquete hoje à noite. Deu um salto e lançou-lhe os braços ao pescoço. Alexander curvou-se, beijou-

a pensando que o rosto dela parecia molhado e mostrou-lhe a mochila. - Que é isto? Ela ficou a olhar: - O quê? - Isto! O que é isto? - Andas a mexer nas minhas coisas? Vem ajudar-me a preparar o arenque. - Não toco no arenque enquanto não me disseres o que é isto. - Quer te diga quer não, temos de comer. Ainda preciso de trinta... - Tatiana! Suspirou profundamente: - É a minha mochila. - Para quê? Tencionas ir acampar? - Não... – Pousou o arenque e sentou-se no banco. Alexander exibiu a roupa e um carapuço castanhos: - Porquê tão atraentes? – Viu-a contraindo-se. - Para dar menos nas vistas. - Menos nas vistas? Então é melhor esconderes esses teus lábios oferecidos.

Ondes vais? - Que te deu? – perguntou ela. Ele levantou a voz: - Onde vais, Tania? - Só quero estar pronta para qualquer eventualidade. - Porquê? - Não sei. – Baixando o olhar: - Para ir contigo. - Comigo? Para onde? – exclamou ele.

Page 533: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

533

- Sei lá. – Levantou a cabeça: - Irei contigo para onde quer que vás. Alexander tentou falar, mas não conseguiu; viu-se sem palavras. - Mas, Tania... eu vou regressar à frente. - Vais, Alexander? – perguntou baixinho, sem levantar o rosto. - Claro que sim. Para onde queres que vá? Fitou-o com uma emoção profunda: - Tu é que sabes. Pestanejando e recuando como se o fato de estar muito perto dela o deixasse

desprotegido, continuou, ainda com a mochila dela na mão: - Vou para a frente, Tania. O coronel Stepanov concedeu-me uns dias a mais.

Dei-lhe a minha palavra que regressaria. - E os Americanos mantêm sempre a sua palavra. - É verdade – replicou amargamente. – Cumprimos sempre a nossa palavra.

Nem vale a pena falar no assunto. Sabes muito bem que tenho que regressar. Com um arrepio, Tatiana ergueu para ele os olhos de alga e disse baixinho: - Então vou contigo. Regresso a Leninegrado. – Tomando provavelmente o seu

silêncio por alívio, continuou: - Pensei que se regressasses ao quartel... - Tatiana! – gritou ele, aterrado. – Estás a brincar? Ficou tão perturbado que teve que caminhar nos bosques durantes uns

minutos para se acalmar. Quando regressou, Tatiana estava a amanhar o arenque. Típico. Ele horrorizado e ela a arranjar o arenque. Avançou uns passos e fez-lhe saltar o peixe das mãos com uma sapatada.

- Au! – berrou ela. – Está quieto! Que te deu? Regressou ao bosque para se acalmar e viu-a apanhar o arenque, lavar-lhe a

areia e a terra e continuar a amanhá-lo. Voltando junto dela, pegou no malfadado peixe, pousou-o no papel que

estava no chão, endireitou Tatiana e agarrou-a pelos ombros: - Olha para mim, Tania. Estou a tentar não perder a cabeça. Vês o esforço que

faço? – Depois de uma pausa: - Que ideias são essas? É claro que não vens comigo! Ela abanou a cabeça e respondeu docemente: - Vou. - Não! Nem penses nisso. Só por cima do meu cadáver! Eu venho ver-te

quando estiver outra vez licença. - Não. Sei que nunca mais voltarás. Sinto que, sem mim, vais morrer. Não fico

aqui. - Quem vai deixar-te regressar, Tania? Eu não. Esqueces-te do cerco a

Leninegrado? Não podes entrar na cidade. Ainda estamos a tirar pessoas de lá! Esqueceste-te do que passaste? Não me parece, porque foi só há seis meses e ainda acordas a meio da noite. A cidade está cercada e continua a ser bombardeada todos os dias. Não há vida em Leninegrado. O perigo é muito e não vais voltar para lá. – Ofegava.

- Bem, se tiveres outra ideia, diz-me. Tenho de arranjar esse arenque.

Page 534: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

534

Alexander pegou no peixe e ia atirá-lo para o Kama quando ela lhe travou o braço:

- Não! É o nosso jantar e as velhinhas estão cheias de vontade de o comer. - Tu não vens comigo. E não quero mais conversas. – Virando a mochila de

pernas para o ar, despejou-a no chão. Tatiana observou-o calmamente: - E quem vai apanhar isso? Sem pronunciar uma palavra, Alexander apanhou as peças de roupa e cortou-

as em pedaços com a faca do Exército. Ela fitou-o do banco, com os olhos firmes mais assustados: - Oh, chamas a isso calma? Shura, posso fazer outras roupas. Ele cerrou os punhos, praguejou e curvou-se para ela: - Estás a tentar provocar-me? Pegando na mochila, preparava-se para a rasgar quando ela lhe travou o

braço, pondo a mão direita na lâmina: - Não, não, por favor. – Agarrou-se a ele, tentando arrancar-lhe a faca e

puxando a mochila, mas claro que não tinha força. A única coisa que o impediu de a empurrar foi o fato de ela continuar a debater-se, sabendo que estava vencida. Para a obrigar a parar, teria de a magoar. Por isso, largou a faca e a mochila.

Sem fôlego, Tatiana foi limpar o arenque. Com a faca dele. Ao jantar, em casa de Naira, Alexander estava zangado de mais para falar.

Quando Tatiana lhe perguntou se queria mais torta de mirtilos, atirou-lhe: - Já disse que não! – Ao ver-lhe os olhos cheios de censura, quis pedir

desculpas, mas não conseguiu. Não trocaram uma palavra enquanto regressavam através dos bosques, mas

em casa, despindo-se e metendo-se na cama, Tatiana perguntou: - Ainda estás zangado? - Não! – Deitou-se com os calções vestidos e beijou-lhe a cabeça. – Shura. - Estou cansado. Vou dormir. Não queria que ela parasse de lhe tocar e claro que Tatiana não o fez. Que se passava com ela? - Vai lá – sussurrou Tatiana. – Não sentes? Estou nua. Evidentemente que sentia. Deitou-se de costas: - Tatiana – começou, sem olhar para ela -, quero que me prometas que ficarás

aqui em segurança. - Sabes muito bem que não posso – respondeu baixinho. – Não posso estar

sem ti. - Claro que podes. Já estiveste antes. - Não existe << antes >>. - Cala-te. Não percebes nada. - Então explica-me. Alexander não respondeu.

Page 535: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

535

- Explica-me – pediu ela, passeando-lhe a mão pequena e quente pelos braços e ventre, descendo mais...

Ele retirou-a: - Só temos mais três dias e não quero estraga-los assim. - Mas estás a estraga-los com os teus amuos e mau humor. – A sua mão

voltou a acaricia-lo. Retirando-a de novo, Alexander compreendeu de repente: - Oh! Então é por isso que parece que não andas minimamente preocupada

por eu ir embora? Porque pensas que vais comigo? Ela encostou-se suavemente a ele e beijou-lhe o braço: - Shura, como pensas que tenho sido capaz de viver estes dias contigo? Não

conseguiria se pensasse que ias deixar-me. – Com a voz como um buraco negro: - Marido, dei-te tudo que tenho. Se partes, tens de me levar contigo.

Alexander foi forçado a sair da cama antes que perdesse a cabeça. Saltou para o chão:

- Pois olha, Tania: arranja forças noutro lado, porque eu vou partir, mas sem ti.

Ela abanou a cabeça em silêncio. - Não me abanes a cabeça! – berrou ele. – Estamos em guerra! Guerra! Já

morreram milhões de pessoas. Queres ser mais um cadáver anónimo numa vala comum?

Tatiana começou a tremer convulsivamente: - Tenho de ir contigo – disse num sussurro. – Por favor. - Sou um soldado e este país está em guerra. Tenho de voltar. Mas tu estás

em segurança aqui. Vim para me afastar dos combates e passar algum tempo em paz contigo... – Seria possível sufocar com palavras? – Mas agora acabou, percebes? Acabou – repetiu em voz alta. – Tenho de voltar e tu não podes vir. – Calou-se, ofegante. – Não quero que venhas. Nem sequer vou estar no quartel. Fui transferido.

- Para onde? - Não tenho autorização para dizer, mas Leninegrado não pode passar mais

um inverno como o do ano passado. - Vão romper o bloqueio? Onde? - Não posso dizer. - Tu dizes-me tudo. – Depois de uma pausa: - Não dizes, Alexander? –

perguntou com determinação. – Não dizes? Que seria aquilo na voz dela? Nem queria saber. - Isto não. - Não? – Sentada na cama, olhando para ele: - No terceiro dia em que nos

conhecemos contaste-me que és americano. Despejaste tudo logo no terceiro dia. E agora não podes dizer-me onde foste colocado?

Page 536: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

536

Saltou para o chão. Alexander recuou, mas nunca conseguiria afastar-se o suficiente dos seus olhos, do seu corpo, das suas mãos abertas.

- Conta-me, Shura – implorou. – Não te casaste comigo para haver segredos entre nós.

- Tania, não quero mais discussões, percebes? - Não! – gritou. – Se querias continuar a mentir, para que casaste? - Para poder deitar-me contigo sempre que me apetecesse! – berrou ele. –

Ainda não percebeste? Sempre, Tania! Que pensas que um militar de licença poderia querer mais? E se não tivéssemos casado, a esta hora toda a Lazarevo estaria a chamar-te a minha prostituta!

Alexander viu pela sua expressão estarrecida que ela nem acreditava nas palavras que ouvira. Recuou a cambalear contra a parede, sem saber se havia de tapar o rosto ou o corpo:

- Casaste comigo para quê? - Tatia... - Não me chames de Tatia! – gritou. – Primeiro insultas-me e depois chamas-

me Tatia? A tua prostituta, Alexander? – Gemeu com desespero e levou as mãos ao rosto.

- Tania, por favor... - Pensas que não percebo o que estás a fazer? Que não sei que tentas levar-

me a odiar-te? Pois olha – disse entre dentes -, acho que finalmente conseguiste ao fim de tantos dias!

- Tania, por favor... - Há vários dias que tentas afastar-me para te ser mais fácil partires! - Eu vou voltar – replicou ele em voz rouca. - Para quê? E será que voltas mesmo? Tens a certeza de que não vieste por

causa disto? – Correu para a arca, vasculhou-a, encontrou o livro O Cavaleiro de Bronze e arrancou dele um punhado de notas de cem e mil dólares. – O que é isto? – berrou, atirando-lhe o dinheiro. – Vieste buscar o teu dinheiro americano? Os dez mil dólares que encontrei em teu livro? Vieste buscá-los para fugires a América sem mim? Ou ia deixar-me alguns em agradecimento por ter aberto as pernas?

- Tania... Pegando na espingarda pelo cano, aproximou-se de Alexander e espetou-lhe

furiosamente a coronha na barriga, apontando a arma para si própria: - Quero que me devolvas o que me tiraste. – Quase não conseguia falar: -

Estou arrependida de ter me guardado para ti, mas agora mata-me, mentiroso, ladrão... de qualquer maneira é o que queres. Tira-me a mão do pescoço e dispara. – Espetou-o de novo no peito e encostou o cano entre os seios. – Vá, Alexander. Trinta e cinco tiros aqui no meu coração.

Ele tirou-lhe a arma sem pronunciar uma palavra. Tatiana levantou a mão e esbofeteou-lhe o rosto com força:

Page 537: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

537

- Vai-te embora. – Uma lágrima deslizou-lhe pela face: - Passámos uns dias muito agradáveis, mas não vamos passar mais. Foste para a cama comigo sempre que te apeteceu. Agora compreendo. Era a única coisa que querias desde o primeiro dia. Agora já conseguiste, podes ir. – Arrancou a aliança do dedo e atirou-lha: - Toma... dá-a à tua próxima prostituta!

Com os ombros descaídos e a tremer, subiu para a cama e enrolou-se no lençol branco, como um corpo morto de fome.

Alexander saiu e foi nadar para as águas frias do Kama, desejando que a dor, o remorso, o amor e toda a sua vida fossem absorvidos pela tundra. Dali a três noites, a lua estaria cheia. << Se me deixar ficar na água, talvez flutue rio abaixo até o Volga e ao mar Cáspio, para onde ninguém me encontre. Flutuarei com a minha dor e o meu amor até não sentir mais nada. É tudo o que quero. Não sentir mais nada. >>

Por fim, voltou para dentro. Subiu para a cama e deitou-se silenciosamente ao lado dela, escutando a sua

respiração, que de vez em quando se transformava em soluço de alguém que esteve a chorar durante muito tempo. Tatiana estava toda enroscada, virada para a parede.

Afastou o lençol e esfregou-se nela. Abrindo-lhe ligeiramente as pernas, penetrou-a, pousando-lhe a boca na nuca e depois no alto da cabeça. Passou-lhe o braço esquerdo por baixo do corpo para a abraçar e envolveu-lhe a anca com a mão direita. Encaixou-a nele, como sempre, tal como ela o encaixou nele, como sempre.

Tatiana mal se mexia. Não se afastou, mas também não deixava escapar um único som. << Está a castigar-me >>, pensou Alexander, fechando os olhos. << Mereço muito pior. >> No entanto, era insuportável ouvir o silêncio. Beijou-lhe a cabeça, o cabelo, os ombros. Não encontrava a paz por muito que penetrasse no seu calor feiticeiro. Por fim ela gemeu, estremeceu e apertou-lhe a mão e, desta vez, ele não se conteve. Depois, permaneceu dentro dela e ouviu-a chorar.

- Desculpe, Tatiasha – segredou-lhe. – Não queria dizer nada daquilo. – Cingiu-lhe o ventre.

- Querias, sim – retorquiu em voz vazia. – És soldado. Querias. - Não, Tania – replicou, odiando-se. – Sentes-me? O meu corpo, as minhas

mãos, os meus lábios, o coração... Não queria. - Shura, gostaria que parasses de dizer coisas que não queres dizer. Ele cheirou-a, esfregando-lhe o rosto no cabelo: - Eu sei. Desculpa. Ela não respondeu, mas continuou com a mão pousada na dele. - Viras-te para mim? – perguntou, afastando-se. - Não. - Por favor. Vira-te para mim e diz-me que me perdoas. Tatiana virou-se e ergueu os olhos inchados para ele. - Oh, querida... – Calou-se e fechou os olhos. Não suportava ver a sua

expressão. – Respira para cima de mim – sussurrou. – Quero sentir no rosto o teu hálito de mirtilos.

Page 538: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

538

Ela obedeceu e ele aspirou o calor dos seus pulmões. Abraçou-a: - Diz-me que me perdoas, Tania. - Perdoo-te. – Falou em voz monocórdica. - Beija-me. Quero sentir os teus lábios perdoarem-me. Beijou-o e ele viu-a fechar os olhos. - Ainda não me perdoaste. Outra vez. Tatiana voltou a beijá-lo suavemente, entreabriu os lábios e soltou um

pequeno gemido de perdão. As suas mãos desceram e acariciaram-no. - Obrigado. – Contemplando-a: - Diz-me assim: Shura, sei que não querias

dizer aquilo. Estavas só zangado. Ela suspirou: - Sei que não querias dizer aquilo. - Diz-me: Sei que me amas até à loucura. - Sei que me amas. - Não, Tania. – Com a voz embargada pela comoção: - Amo-te até a loucura. –

Quase com medo de respirar, de soltar o ar dela de dentro dele, esfregou-lhe os lábios nas sombrancelhas de seda.

- Desculpa ter-te batido – murmurou ela. - Até me admira como não me mataste. - Foi por isso que vieste, Alexander? – Não conseguiu manter a voz firme: Por

causa do... dinheiro? Esmagando-a nos seus braços, olhou para a parede: - Para, Tania. Não, não vim por causa do dinheiro. - Onde arranjaste os dólares americanos? - Eu contei-te que minha família tinha dinheiro na América. O meu pai decidiu

que vinha para a União Soviética sem nada, e a minha mãe concordou, mas trouxe este dinheiro para qualquer eventualidade e escondeu-o dele. Foi a última coisa que me deu, umas semanas antes de ser presa. Abrimos a parte de dentro da capa e da contracapa do livro de Pushkin e escondemos lá dentro o dinheiro. Dez mil dólares de um lado e quatro mil rublos do outro. Achava ela que talvez me ajudassem a fugir.

- Onde o puseste quando foste preso em 1936? - Escondi-o na Biblioteca Pública de Leninegrado, onde ficou até eu te dar. - Meu presciente Alexander! Deste-me mesmo a tempo, não foi? Em julho do

ano passado, a biblioteca fez sair de Leninegrado ao seus livros mais preciosos, incluindo a coleção Pushkin, e arrumou os outros na cave. O teu dinheiro teria ficado perdido.

Ele não disse nada. - Porque me deste? Querias pô-lo em segurança? Alexander olhou para ela: - Porque queria confiar-te a minha vida. Tatiana calou-se.

Page 539: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

539

- Mas o livro não ficou o tempo todo na biblioteca, pois não? Não respondeu. - Em 1940, quando foste combater os Finlandeses, não levaste o dinheiro

contigo? Continuou calado. - Oh, Alexander! - Enterrou-lhe o rosto no peito. Queria falar, mas não conseguia. Foi Tatiana quem continuou: - Mais uma coisa para Dimitri não te perdoar... como se já não houvesse que

chegue. Quando foste procurar o filho do Stepanov, levaste o Dimitri porque iam os dois fugir pela Finlândia, não era?

Não mexeu nem um músculo. - Iam fugir rumo a Vyborg, depois Helsínquia e depois América! Tinhas o

dinheiro contigo e estavas pronto. Era o momento com que há anos sonhavas. – Beijou-lhe o peito: - Não era, meu marido, meu Alexander, minha vida? Diz-me: não era? – Chorava.

Perdera o domínio da palavra e estava prestes a perder o domínio sobre fosse o que fosse. Era um assunto que nunca quisera discutir com ela.

A voz de Tatiana tremia: - Era um ótimo plano. Desapareceriam, ninguém iria à vossa procura e toda a

gente partiria do princípio de que tinham morrido. Estavas convencido de que não ias encontrar Yuri Stepanov com vida, mas assim tinhas uma desculpa para voltar a sair. E de repente, das com ele vivo! – Soltou uma risadinha: - Oh, como o Dimitri deve ter ficado pasmado quando lhe disseste que ias voltar com o Yuri! Estou mesmo a vê-lo: << Endoideceste? Há anos que queres regressar à América. Esta é a tua oportunidade, a minha oportunidade... >> - Depois de uma pausa: - Acertei?

Esfregando-lhe o nariz no cabelo louro, Alexander replicou num murmúrio admirado:

- Parece que assistes a tudo. Como é que sabes? Ela tomou-lhe o rosto nas mãos: - Porque sei quem és, melhor do que ninguém. - Ainda com as mãos na sua

face: - Voltastes portanto à União Soviética com o filho do Stepanov, pensando que terias outras oportunidades para fugir. Que foste obrigado a fazer, Shura? A prometer a Dimitri que o farias chegar à América se não morresses?

Ele afasto-lhe as mãos, virou-se de costas para baixo e fechou os olhos: - Cala-te, Tania. Não posso continuar a falar disto. Não posso. Ela calou-se apenas o tempo suficiente para readquirir o domínio da voz

trêmula: - E agora? - Agora nada – respondeu sombriamente, fitando as traves do teto. – Agora

ficas aqui e eu regresso à frente. Agora o Dimitri está aleijado. Agora vou lutar por Leninegrado. Agora vou morrer por Leninegrado.

Page 540: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

540

- Meu Deus! Não digas isso! – Agarrando-lhe nos braços, virou-o para ela e apertou-se contra o seu peito, chorando. Alexander abraçou-a o mais forte que pôde, mas nada os satisfazia. – Não digas isso, Shura! – soluçava em desespero. – Por favor – sussurrou. – Por favor, não me deixes sozinha na União Soviética.

Alexander nunca a vira tão agitada. Não sabia o que havia de fazer. - Vá, sossega – segredou, com a voz embargada e o coração desfeito. Vá,

Tatiana, ama-me menos, deixa-me ir, liberta-me. Passaram-se horas. A meio da noite, Alexander voltou a fazer amor com ela. - Vá, Tatiasha – segredou -, abre as pernas para mim como eu gosto. O sabor dela na sua garganta era o de lágrimas de néctar. - Promete-me – continuou, beijando-lhe a penugem loura, lambendo-lhe o

interior macio das coxas -, promete-me que ficarás em Lazarevo. Não houve a resposta, apenas gemidos abafados. - És a minha menina bonita? – sussurrou, com os dedos mais ternos, mais

insistentes. – És a minha menina adorada? – A boca mais meiga, a respiração quente implorando: - Jura-me que ficarás aqui à minha espera. Promete-me que serás uma boa esposa e que esperarás pelo teu marido.

- Prometo, Shura. Esperarei por ti. Mais tarde: - Esperarei muito tempo aqui sozinha em Lazarevo – disse Tatiana com a voz

embargada, deitada satisfeita e insatisfeita nos seus braços. Tremendamente insatisfeito, abraçou-a tanto que ela mal conseguia respirar: - Sozinha, mas em segurança. Alexander não soube como passaram os três dias seguintes. Inundados por

uma maré de hostilidade e desespero, discutiram e despedaçaram os corpos um contra o outro, incapazes de encontrar uma réstia, um raio de consolação.

Page 541: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

541

22

Na manhã em que Alexander ia partir, não conseguiram tocar-se. Tatiana foi sentar-se no banco lá fora enquanto ele se preparava, vestindo a

farda que ela lavara e engomara com um ferro aquecido nas brasas, escovando o cabelo e pondo o boné. A seguir, certificou-se de que tinha o capacete e a tenda, a pistola, as munições, o passaporte, as granadas e a espingarda.

Deixou-lhe o dinheiro todo exceto alguns rublos para a viagem de volta. Quando saiu de casa, Tatiana levantou-se, desapareceu dentro de casa e

voltou passado uns minutos com uma chávena de café cheia de leite açucarado e um prato de comida. Pão escuro, três ovos e um tomate às rodelas.

Alexander pegou nele. Sufocava: - Obrigado. Ela sentou-se pesadamente, com a mão na barriga: - De nada. Come. Ainda tens muito que andar. Alexander comeu com inquietação. Estavam sentados muito perto, mas cada

um virado para o se lado. - Queres que vá até à estação contigo? - Não. Não posso. Ela assentiu: - Eu também não. Quando acabou de comer, pousou o prato no chão: - Deixo-te lenha que chegue, não achas? – Virou-se para ela e apontou na

direção do telheiro, ao lado da cabana. - Acho. Tenho ali para muito tempo. Alexander puxou-lhe ternamente as fitas de cetim branco das tranças, pegou

no pente e escovou-lhe o cabelo louro e macio, esfregando as madeixas de seda entre os dedos.

- Como faço para te mandar dinheiro? – perguntou. – Ganho dois mil rublos por mês. É muito dinheiro para ti. Posso mandar-te mil e quinhentos e fico com o resto para os cigarros.

Ela abanou a cabeça: - Não. Ainda arranjas mais complicações. Leninegrado não é Lazarevo, Shura.

Protege-te. Não digas a ninguém que casámos. Tira a aliança do dedo. É melhor o Dimitri não descobrir. Já tem sarilhos que cheguem. Não preciso do teu dinheiro.

- Claro que precisas.

Page 542: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

542

- Então manda-me quando me escreveres. - Não é possível. Os censores roubam-no imediatamente. - Censores? Então devo evitar escrever-te em inglês? - Se quiseres que eu viva, sim. Tatiana não se virou: - É a única coisa que quero. - Vou enviar o dinheiro para o Soviete de Molotov. Por isso, vai lá uma vez por

mês, está bem? Direi que é para a família da Dasha. – Fechando os olhos, encostou-lhe os lábios ao cabelo brilhante. – É melhor ir andando Só há um comboio por dia.

- Vou contigo até a estrada – disse Tatiana em voz estrangulada. – Tens tudo? - Tenho. Falaram sem olhar um para o outro. Partiram juntos, subindo o carreiro do bosque. Antes de perder a clareira de

vista, Alexander virou-se uma última vez e contemplou o rio azul e as árvores verdes-escuras, a cabana de madeira, o banco, o tronco na água, o sítio onde a tenda estava montada ainda no dia anterior e a fogueira.

- Escreve-me a dizer como estás. – Depois de uma pausa: - Para eu não me preocupar.

- Está bem – anuiu ela, com os braços em volta da cintura. – Tu também. Chegaram à estrada. A caruma dos pinheiros largava um cheiro intenso, os

bosques encontravam-se em silêncio e o sol estava quente. Pararam à frente um do outro, Tatiana de vestido amarelo, olhando para os pés descalços, e Alexander de uniforme e com a espingarda no ombro, espreitando a estrada.

Ela levantou-lhe a mão e deu-lhe uma palmadinha no peito, direta no coração: - Não te atrevas a morrer, soldado, ouviste? – As lágrimas deslizavam-lhe

pelas faces. Alexander pegou-lhe na mão e levou-a ao lábios. Tatiana tinha a aliança dele.

Não conseguiu falar nem dizer o seu nome em voz alta. Ela pousou-lhe a mão trêmula em seu rosto: - Vai correr tudo bem, meu amor – murmurou. – Vai correr tudo bem. Largou-lhe a cara e ele soltou-lhe a mão. - Dá meia volta e vai para a casa. Não fiques a olhar para mim. Não consigo

afastar-me contigo aqui. Tatiana desviou o rosto: - Vai. Eu não olho. Alexander não era capaz de se aproximar dela: - Por favor – pediu. – Não consigo deixar-te assim Por favor, vai para casa. - Shura... não quero que vás. - Eu sei. Também não quero ir, mas por favor, deixa-me. Saber-te em

segurança é a única hipótese de permanecer vivo. Voltarei para ti, mas tens de estar em segurança. – Calou-se. – Agora tenho de ir. Vá, levanta a cabeça para mim. Levanta a cabeça e sorri.

Page 543: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

543

Virando-se, Tatiana ergueu o rosto molhado de lágrimas e sorriu. Olharam-se por um tempo. Pestanejaram. - O que é isso nos teus olhos? - Estou a ver todos os meus caixotes de madeira a descer a rampa do Palácio

de Inverno – murmurou ela. - Aprende a ter um pouco mais de fé, minha esposa. – A tremer, Alexander

levou a mão direita à testa, aos lábios e ao coração.

Page 544: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

544

ONDAS DE DESOLAÇÃO

1

Tatiana regressou a casa, deitou-se na cama e não se levantou. No seu sono semiconsciente, ouviu as quatro velhinhas na sala. Falavam

baixinho enquanto lhe ajeitavam os cobertores, lhe endireitavam as almofadas debaixo da cabeça e lhe acariciavam o cabelo.

- Tem de confiar no Senhor, que há de salvá-la – disse Dusia. - Eu avisei-a de que não era boa ideia apaixonar-se por um soldado. Agora

olha o estado dela – acrescentou Naira. - Parece-me que o problema não é ele ser soldado – replicou Raisa a tremer. –

O problema é que ela o ama muito. Dando uma palmadinha nas costas de Tatiana, Axinya segredou-lhe: - Sua sortuda! - Sortuda? – repetiu Naira, indignada. – Se ela nos tivesse dado ouvidos, nada

disto teria acontecido. - E se viesse mais vezes à igreja comigo! Exclamou Dusia. – O bordão do

Senhor havia de a reconfortar. - Que achas Tanechka? – perguntou Axinya, aproximando-se. – Parece-te que

o bordão do Senhor te reconfortaria neste momento? - Assim não. Não estamos a ajuda-la – disse Naira. - Nunca gostei dele – afirmou Dusia. - Eu também não. Nunca percebi o que Tania viu nele – observou Naira. - Ela é boa demais para ele – acrescentou Raisa. - Ela é boa demais seja para quem for – concordou Naira. - E será ainda melhor aproximando-se do Senhor – declarou Dusia. - O meu Vova é um rapaz tão amável e delicado! E gostava dela – comentou

Naira. - Aposto que Alexander não volta – disse Raisa. – Abandonou-a aqui de vez. - De certeza que tens razão – assentiu Naira. – Casou com ela... - Manchou-a... – interrompeu Dusia. - E agora não quer saber dela – rematou Raisa. - Sempre desconfiei de que não acreditava em Deus – afirmou Dusia. - A única coisa que o afastará de ti é a morte – segredou Axinya a Tatiana.

Page 545: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

545

<< Obrigada, Axinya >>, pensou ela, abrindo as pálpebras pesadas e levantando-se da cama. << Mas é exatamente disso que tenho medo. >>

As velhinhas não precisaram de insistir muito para convencerem Tatiana a voltar a viver com elas. Vova ajudou-a a transportar a arca e a máquina de costura outra vez para a casa de Naira.

Ao princípio, tinha de fazer um esforço para conseguir aguentar-se. Não encontrava consolação dentro de si, e sabia-o. Nada dentro dela a ajudava a sair da escuridão. Nenhuma lembrança, nenhuma anedota, nenhum refrão musical. Não conseguia tocar em nenhuma parte do corpo sem estremecer. Não podia olhar para lado nenhum sem ver Alexander.

Desta vez, não tinha a fome para lhe embotar a dor. Nem os pulmões infetados. Como tinha o corpo sadio, só lhe restava cerrar os dentes e erguer os baldes que transportava aos ombros todas as manhãs, ordenhar a cabra e servir o leite quente a Raisa, que não conseguia servir-se a si própria, pendurar a roupa na corda e ouvir as velhinhas dizer à noite como cheiravam bem os lençóis que Tania pusera a secar ao sol.

Costurava para elas e para si, lia-lhes em voz alta, dava-lhes banho, tratava do quintal e das galinhas, apanhava as maçãs das árvores e a pouco e pouco, balde a balde, livro a livro, camisa a camisa, a necessidade delas voltou a envolvê-la e sentiu-se reconfortada.

Como antes.

Page 546: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

546

2

A primeira carta de Alexander chegou duas semanas depois.

<< Tatiana: Poderá haver alguma coisa mais difícil do que isto? A falta que sinto de ti é

uma dor física que toma conta de mim logo de manhãzinha e não me larga nem quando solto o último suspiro antes de adormecer.

A minha consolação nestes dias vazios de verão é saber que estás em segurança, viva e de boa saúde e que o pior que tens de suportar consiste em servir quatro velhinhas bem intencionadas.

Da lenha que empilhei, a mais leve é a que está à frente. Os troncos mais pesados são para o inverno. Usa-os no fim Se precisares de ajuda para os transportar, pede ao Vova (Deus me ajude!), mas não te magoes. E não enchas os baldes de água até em cima. São muito pesados.

O regresso foi difícil e, logo que cheguei, mandaram-me para o Neva. Planeámos o nosso ataque durante seis dias, avançamos atravessando o rio de barco e fomos completamente desbaratados em duas horas. Não tivemos qualquer hipótese. Os Alemães bombardearam-nos com as Vanyushas, a sua versão do meu lança-foguetes, e afundaram os barcos todos. Ficamos com mil homens a menos e não atravessamos o rio. Agora andamos a procurar outros sítios onde possamos atravessar. Eu estou bem. O problema é que há dez dias que chove sem parar e ando aterrado na lama até à cintura. Não há lugar para dormir; só na lama. Estendemos os casacos no chão e esperamos que pare de chover. Todo sujo e encharcado, quase senti pena de mim até pensar em ti durante o bloqueio.

Decidi fazer sempre o mesmo a partir de agora: de cada vez que pensar que está a ser difícil, lembrar-me-ei de ti enterrando a tua irmã no lago Ladoga.

Gostaria que tivesses uma cruz menos pesada que Leninegrado para carregar durante toda a vida.

As coisas vão estar relativamente calmas por aqui durante as próximas semanas, até nos reagruparmos. Ontem caiu uma bomba no bunker do comandante, que por acaso não estava lá. Mas a ansiedade não diminuiu. Quando será a próxima vez?

Jogo cartas e futebol. E fumo. E penso em ti. Mandei-te dinheiro. Vai a Molotov no fim de agosto.

Page 547: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

547

Não te esqueças de comer bem, meu pãozinho quente, meu sol da meia noite. Beija a palma da mão por mim e aperta-a ao coração.

Alexander >>

Tatiana leu a carta cem vezes, decorando todas as palavras. Dormiu com o rosto pousado nela, o que lhe deu novas forças.

<< Meu amor, meu querido, querido Shura: Não fales da minha cruz... primeiro tira a tua dos ombros. Como vivi o inverno passado? Não sei, mas agora tenho saudades. É que

mexia-me. Havia movimento dentro de mim. Tinha energia para mentir, fazer de conta com a Dasha e mantê-la viva. Caminhava, estava com a mãezinha e andava ocupada demais para morrer. Esconder o m eu amor por ti tomava-me muito tempo.

Mas agora acordo e penso: ‘Como vou passar o resto do dia até dormir?’ Para me obrigar a viver, rodeei-me de gente da aldeia. Pensavas que já era

mau antes? Agora passo o dia inteiro a ajudar a Irina Persikova, a quem amputaram a perna em Molotov por causa de uma infecção ou coisa assim. Acho que gosto dela porque tem o nome da minha mãe.

Penso na Dasha. Sofro pela minha irmã. Mas não é o rosto dela o último que vejo antes de dormir, e sim o teu. Tu és a minha granada de mão, o meu fogo de artilharia. Substituíste o meu

coração por ti. Pensas em mim quando tens a espingarda nas mãos? Que havemos de fazer? Como te impediremos de morrer? Estes pensamentos

não me largam enquanto estou acordada. Que posso fazer aqui para que não morras?

Morto ou ferido, os Soviéticos deixar-te-ão no campo de batalha. Quem tratará de ti se tu tombares? Se morreres, quem te enterrará como mereces... ao lado de reis e heróis? Tua Tatiana >>

<< Tatia: Perguntas-me como evito morrer. Vou-me safando... pelo menos melhor do

que Ivan Petrenko. O meu comandante manda-me escolher os melhores homens que tenho e eu

faço a continência e obedeço. Depois eles morrem. O que faz isto de mim? Hoje o fogo foi intenso. Nem acredito que estou vivo e a escrever-te estas

palavras. Costumamos tentar transportar mantimentos, armas, munições e homens para o enclave de Nevsky, do outro lado do rio. Mas os Alemães não nos dão

Page 548: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

548

descanso do alto de Sinyavino; é impossível passar por eles, empoleirados nas colinas como abutres, arremessando os seus projéteis contra nós. Normalmente não vou: não há muitos homens como eu para desperdiçar nestas missões suicidas, e o comandante sabe-o. Hoje, no entanto, não havia soldados que chegassem para manobrar os barcos.

O Petrenko morreu. Já vínhamos a regressar quando foi atingido por um estilhaço que lhe arrancou o braço. Pu-lo às costas e... sabes, na minha loucura, curvei-me para lhe apanhar o braço, mas entretanto ele caiu. Olhando-o jazendo no barco, pensei: << Que estou a fazer? Quem vai coser-lho de novo? >>

Percebi então que o que queria não era vê-lo com o braço, mas sim apenas que fossem enterrados juntos. Não é digno o corpo ser esquartejado. Temde estar junto para a alma o encontrar. Enterrei-o a ele e ao braço na floresta, perto de uma bétula pequena. Ele disse-me uma vez que gostava de bétulas. Tive de lhe tirar a espingarda (temos muito poucas armas), mas deixei-lhe o capacete.

Gostava dele. Não é injusto que um homem bom como o Petrenko tenha morrido e o Dimitri continue vivo, apesar de doente e aleijado?

Queres saber no que pensei no barco? ‘Tenho de permanecer vivo, senão a Tatiasha nunca me perdoará.’ Mas esta guerra é injusta, como vês. Um homem bom tem tantas

probabilidades de morrer como um mau. Até talvez mais. Se me acontecer alguma coisa, não te preocupes com o meu corpo. A minha

alma não regressará nem a ele e nem a Deus. Voará direitinha para onde sabe que poderá encontrar-te, em Lazarevo. Não quero repousar ao lado de reis nem de heróis, mas sim junto à rainha do lago Ilmen.

Alexander >>

Page 549: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

549

3

Não chegaram mais cartas dele. Agosto passou, veio setembro e Tatiana sem notícias. Fazia o melhor que

podia, ocupando o tempo com as velhinhas, a aldeia, os livros, o inglês e John Stuart Mill, que lia em voz alta nos bosques, percebendo quase tudo.

Sem saber nada dele, deixou de se sentir reconfortada e em paz. Numa sexta-feira, com a cabeça enterrada na camisola que andava a tricotar

para ele, ouviu Irina Persikova perguntando-lhe se recebera carta de Alexander. - Há um mês que não tem notícias – respondeu Naira baixinho. – Chiu! Não se

fala nisso. Vai todas as semanas ao Soviete de Molotov, mas nada. Chiu! - Seja como for, Deus está com ele – comentou Dusia. Axinya acrescentou jovialmente: - Não te preocupes, Tanechka. Sabes muito bem que o correio é um horror. As

cartas demoram muito tempo a chegar. - Eu sei, Axinya. – Olhando para as agulhas de tricotar: - Não estou

preocupada. - Vou contar-te uma história que te fará sentir melhor. Uns meses antes de

chegares, vivia aqui na aldeia uma mulher chamada Olga, cujo marido também estava na frente. Fartou-se de esperar carta dele e nada. Andava assim aflita como tu... e de repente recebeu dez cartas de uma vez!

Tatiana sorriu: - Não seria uma maravilha receber dez cartas do Alexander ao mesmo tempo? - Claro que sim, querida — riu Axinya. — Por isso, não te preocupes. - Pois, é verdade! - lembrou Dusia. — A Olga pôs as cartas por ordem

cronológica e começou a lê-las. Leu nove. A última era do comandante comunicando-lhe que o marido morrera na frente.

A jovem empalideceu: - Oh! — Foi tudo o que conseguiu dizer. - Dusia! - exclamou Axinya. - Por amor de Deus, vê o que dizes! Só te falta

contares-lhe que a Olga se afogou no Kama! Tatiana baixou as agulhas: - Fiquem aqui, está bem? Eu vou tratar do nosso jantar. Quero fazer torta de

couve. Cambaleou até casa e tirou imediatamente da arca o livro de Pushkin.

Alexander dissera-lhe que voltara a pôr o dinheiro no sítio. Fitando a capa, respirou

Page 550: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

550

fundo e cortou-a cuidadosamente com uma lâmina de barbear. O dinheiro estava lá. Soltando um pequeno suspiro, pegou nele.

Depois contou-o. Cinco mil dólares. Sem alarmes, contou outra vez as notas novas, tendo o cuidado de as separar

uma a uma. Dez de cem dólares. Quatro de mil dólares. Cinco mil dólares. Contou de novo. Cinco mil dólares. Começou a duvidar de si própria; por um momento, pensou que se calhar

sempre tinham sido cinco mil dólares e que fora ela que fizera confusão. Mas a voz de Alexander voava-lhe do cérebro para o coração na noite

iluminada pela candeia de querosene: Foi a última coisa que a minha mãe me deu, umas semanas antes de ser presa... Escondemos lá o dinheiro. Dez mil dólares... quatro mil rublos.

Tatiana subiu para a cama e deitou-se de frente para as traves do teto. Ele dissera-lhe que lhe deixava o dinheiro todo. Não, não fora assim. Dissera: Deixo-te o dinheiro. Vira-o colar outra vez a

capa. Porque teria levado apenas cinco mil dólares? Para a aplacar? Para ela não se

preocupar nem fazer outro escândalo? Para que não regressasse a Leninegrado com ele?

Encostando o dinheiro ao peito, tentou pôr-se no seu lugar. Alexander era o homem que, a uns metros da liberdade, da América,

escolhera virar costas ao sonho de toda a vida. Sentia de uma maneira e comportava-se de acordo com ela. Podia querer fugir, mas acreditava mais em si próprio. E, acima de tudo, amava Tatiana. Alexander sabia quem era.

Um homem fiel à sua palavra. E dera a sua palavra a Dimitri.

Page 551: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

551

QUARTA PARTE

O CREPÚSCULO LUMINOSO

Page 552: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

552

TERROR E MAUS PRESSAGIOS

9

Não ia ficar sozinha em Lazarevo nem mais um segundo. Escreveu a Alexander dez cartas descontraídas, joviais e bem-dispostas, com

notícias datadas e sazonais e pediu a Naira Mikhailovna que as enviasse, uma por semana.

Sabia que se partisse sem dizer nada as velhotas escreveriam imediatamente a Alexander ou, pior, arranjariam maneira de lhe fazer chegar algum telegrama aflito, comunicando-lhe o seu desaparecimento. Se ainda estivesse vivo, a sua reação descontrolada podia custar-lhe a vida. Por isso, explicou às velhotas que ia trabalhar para o Hospital de Molotov, evitando assim empregar-se na fábrica de Lazarevo, onde laborava a maior parte das pessoas da aldeia. Fê-lo num tom tão determinado que, exceto alguns resmungos de Dusia, não houve mais discussões.

Naira Mikhailovna quis saber porque não enviava ela as cartas de Molotov, mas Tatiana respondeu-lhe que Alexander não queria que ela deixasse Lazarevo e que ficaria preocupado se soubesse que estava a trabalhar na cidade. E não queria inquietá-lo estando ele em combate:

- Sabe como ele me protege, Naira Mikhailovna. - Além de te proteger, é pouco razoável - assentiu ela vigorosamente. Estava

mais do que disposta a participar naquilo que via como uma conspiração para contornar a impossível maneira de ser de Alexander. Assim, concordou em man¬dar-lhe as cartas.

Depois de costurar roupas novas e de juntar as garrafas de vodca e as latas de tushonka que conseguiria transportar, Tatiana partiu numa manhã, bem cedinho, não sem antes se despedir das quatro senhoras. Dusia rezou uma oração. Naira chorou. Raisa chorou e tremeu. Axinya curvou-se para ela e cochichou:

-És maluca. «Maluca por ele», pensou. Partiu envergando calças castanho-escuras, meias

castanhas, botas castanhas e um casaco castanho de inverno. Levava o cabelo claro escondido por um lenço castanho aos quadrados. Queria chamar o mínimo pos¬sível as atenções. Cosera os dólares na parte de dentro das calças. Antes de partir, tirou a aliança e passou-a por uma corda que entrançara. Beijando-a antes de a meter dentro da camisa, sussurrou:

Page 553: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

553

- Assim ainda ficas mais perto do meu coração, Shura. Percorrendo o bosque à saída de Lazarevo, passou pelo carreiro que levava à

sua clareira. Parou brevemente e ainda pensou em descer ao rio para a ver... uma última vez. Mas bastou a ideia para a perturbar. Abanando a cabeça, seguiu em frente.

Havia coisas que não conseguia fazer. Vira Alexander espreitando antes de partir, mas ela não o suportaria. Desde

que Vova lhe levara o baú havia mais de dois meses, não voltara ao local onde vivera com Alexander. Vova entaipara as janelas, pusera o cadeado e levara a lenha que ele rachara para casa de Naira.

Em Molotov, dirigiu-se primeiro ao Soviete local, para ver se Alexander lhe mandara algum dinheiro em setembro.

Surpreendentemente, mandara! Perguntou se viera alguma carta ou telegrama com o dinheiro, mas não. Se ainda continuava a receber, era porque não morrera nem desertara.

Pegando nos mil e quinhentos rublos, pensou o que o levaria a mandar o dinheiro mas não a escrever, mas depois lembrou-se dos meses que as cartas da avó tinham levado a chegar a Leninegrado. Bem, não se importaria de receber trinta cartas ao mesmo tempo, uma por cada dia de setembro.

Na estação de comboios de Molotov, explicou ao inspetor do Partido que lhe verificou o passaporte doméstico que, com a guerra e a fome, havia uma falta dramática de enfermeiras em Leninegrado, e que ia regressar para ajudar. Mos¬trou-lhe o carimbo do Hospital Grechesky no passaporte. Claro que ele não pre¬cisava de saber que o seu trabalho era lavar o chão, os lavabos e os pratos e costurar sacos de cadáveres. Tatiana ofereceu-lhe uma garrafa de vodca pela sua ajuda.

Ele pediu-lhe a carta do hospital convidando-a a regressar a Leninegrado e ela respondeu-lhe que a carta ardera, mas que tinha ali as credenciais da fábrica de Kirov e do Hospital Grechesky, uma menção honrosa do Quarto Exército de Voluntários do Povo e outra garrafa de vodca pelo seu trabalho.

Ele carimbou-lhe o passaporte e ela comprou o bilhete. Antes de entrar no comboio, foi procurar Sofia, tão aflitivamente vagarosa

que se sentiu a envelhecer enquanto esperava. Pensou que ainda ia perder o comboio, mas Sofia levou-lhe finalmente as duas fotografias que lhes tirara nos degraus da Igreja de São Serafim no dia do casamento. Tatiana meteu-as na mochila e correu para a estação.

O comboio em que partia era muito melhor do que aquele em que chegara. Assemelhava-se a um comboio de passageiros e dirigia-se para sudoeste, rumo a Kazan. Não era a direção de Tatiana, que tinha de ir para norte. Mas Kazan era uma cidade grande, onde certamente conseguiria apanhar outro. O seu plano era voltar a Kobona e tomar um barco que atravessasse o lago Ladoga até Kokkorevo.

Page 554: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

554

Com o comboio já a afastar-se, contemplou o Kama à distância, envolto na sombra dos pinheiros e das bétulas, e pensou: «Voltarei a ver Lazarevo? »

Desconfiava que não. Em Kazan, tomou um comboio que se dirigia para Nizhny Novgorod; não o

Novgorod da sua infância e de Pasha, mas outro. Encontrava-se agora a menos de trezentos quilômetros a leste de Moscovo. Apanhou outro comboio, desta vez de mercadorias, que seguia para Yaroslavl, a noroeste, e depois uma camioneta para Vologda, a norte.

Chegada a Vologda, soube que havia comboio para Tikhvin, que no entanto estava constantemente sob fogo alemão. E aparentemente não era possível ir de Tikhvin a Kobona. Os comboios eram bombardeados três a quatro vezes por dia, com grandes perdas humanas e materiais. Felizmente, o cobrador vendeu-lhe um bilhete para Tikhvin e mostrou-se mais do que disposto a conversar com ela.

Tatiana perguntou-lhe por isso como chegavam os mantimentos a Leninegrado, uma vez que a estrada de Kobona estava interrompida.

Quando ele lhe disse, decidiu seguir o caminho dos alimentos. Apanhou um comboio que ia de Volodga a Petrozavodsk, a norte, na margem ocidental do lago Onega, apeou-se antes de lá chegar, em Podporozhye, e caminhou cinquenta quilômetros até Lodeynoye Pole, a dez quilômetros do Ladoga.

Quando sentiu a terra tremer debaixo dos pés em Lodeynoye Pole, soube que estava a chegar.

Enquanto comia sopa e pão numa cantina, ouviu quatro condutores falando na mesa ao lado. Parecia que os Alemães tinham praticamente deixado de bombardear Leninegrado, concentrando toda a sua artilharia e poder aéreo na frente de Volkhov... para onde Tatiana se dirigia. O 2. ° Exército do general soviético Meretskov encontrava-se apenas a quatro quilômetros do Neva, e o marechal de campo alemão Manstein estava determinado a não permitir que Meretskov o desalojasse das suas posições ao longo do rio.

- Sabem o que aconteceu à nossa Octingentésima Sexagésima Primeira Divisão? - ouviu um dos homens perguntar. - Não conseguiu fazer recuar os Alemães, passou todo o dia sob fogo e perdeu sessenta e cinco por cento dos homens e cem por cento dos oficiais!

- Isso não é nada! - exclamou outro. — E os homens que o Meretskov perdeu em agosto-setembro em Volkhov? Entre mortos, feridos e desaparecidos foram cento e trinta mil!

- E isso é muito? — comentou outro. — Em Moscovo... - Ao princípio eram cento e cinquenta mil! Já estava farta de ouvir as discussões das outras pessoas, mas precisava de

mais umas informações. Meteu conversa com os camionistas e descobriu que saíam barcaças com alimentos para o lago Ladoga mesmo a sul de uma cidadezinha cha¬mada Syastroy, cerca de dez quilômetros a norte da frente de Volkhov e a mais ou menos cem quilômetros do local onde se encontrava.

Page 555: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

555

Sentiu-se tentada a pedir-lhes boleia, mas o aspeto deles não lhe agradou. Iam passar a noite em Lodeynoye Pole, e a maneira como um deles a olhava, mesmo com o lenço de quadrados castanhos...

Limpou a boca, agradeceu-lhes e saiu. Sentia-se melhor por saber que tinha consigo a P-38 carregada de Alexander.

Precisou de três dias para percorrer os cem quilômetros que a separavam de Syastroy. Já estava frio naquele princípio de outubro, mas a primeira neve ainda não caíra e a estrada era alcatroada. Muitas outras pessoas palmilhavam-na com ela: aldeãos, refugiados, agricultores itinerantes e soldados que regressavam à frente. Caminhou durante meio dia ao lado de um que estivera a gozar a sua licença. Parecia tão desanimado como Alexander devia ter-se sentido. Depois, apa¬nhou boleia de um camião do Exército e Tatiana continuou a pé.

O estrondo das bombas explodindo ali perto fazia-lhe tremer a terra debaixo dos pés enquanto avançava com a mochila às costas, de olhos postos no chão. Por muito mau que tudo aquilo parecesse, sempre era melhor do que correr pelos campos de batata de Luga ou estar sentada na estação dos comboios percebendo que os Alemães só sairiam dali quando estivesse morta. Era melhor, mas não muito. Continuou a andar, sempre de olhos baixos.

Caminhava até de noite, quando de resto estava tudo mais calmo; aliás, a partir das onze não havia bombardeamentos. Andava uma horas e depois pro¬curava um celeiro onde dormir. Uma noite, ficou com uma família que lhe deu de jantar e lhe ofereceu o filho mais velho. Comeu, dispensou o filho e ofereceu dinheiro, que a família aceitou.

Dez quilômetros a oeste de Syastroy, no rio Volkhov, descobriu uma pequena barcaça que se preparava para atravessar o lago contornando Novaya Ladoga. Um estivador desamarrava a embarcação. Esperou que a prancha fosse levantada e cor¬reu para o homem no último momento, dizendo-lhe que levava alimentos para ajudar a resistir ao bloqueio e mostrou-lhe cinco latas de fiambre e uma garrafa de vodca, à qual ele lançou um olhar cobiçoso. Tatiana disse-lhe que ficasse com a vodca e pediu-lhe que a deixasse ir ver a mãe moribunda a Leninegrado. Sabia que os tempos eram de horror para os habitantes da região, cujos parentes que viviam em Leninegrado ou já tinham morrido ou estavam a morrer. Agradecido, o estivador aceitou a vodca e fez-lhe sinal para seguir:

- Mas aviso-a de que a travessia é má. Passa-se muito tempo na água, e os Alemães bombardeiam as barcaças durante todo o dia.

- Eu sei. Estou pronta. - Mas não houve incidentes durante a viagem. A barcaça atracou em Osinovets, a norte de Kokkorevo, onde ofereceu o resto

da tushonka (quatro latas) e mais uma garrafa de vodca ao camionista que ia levar mantimentos para Leninegrado e que a deixou sentar-se à frente ao seu lado, che¬gando a partilhar com ela um pedaço de pão.

Foi olhando pela janela. Seria mesmo capaz de voltar ao apartamento da Quinto Soviete? Na verdade, não tinha escolha.

Page 556: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

556

Mas voltar a Leninegrado? Estremeceu. Não queria pensar nisso. O camionista deixou-a na Estação da

Finlândia, na zona norte da cidade. Apanhou um elétrico para a Nevsky Prospekt, saiu na Praça da Insurreição e continuou a pé.

A cidade estava triste e vazia. Era de noite. As ruas achavam-se mal ilumina¬das, mas pelo menos havia eletricidade. Provavelmente chegara em boa altura, porque não se ouviam bombardeamentos. Mas à medida que avançava viu o fumo de três incêndios e muitos buracos onde dantes havia janelas e portas.

Fez votos para que o prédio da Quinto Soviete ainda estivesse de pé. Estava. Continuava verde, monótono e sujo. Parou uns minutos à frente das portas duplas da entrada, reunindo aquilo a

que Alexander chamava coragem. Coragem para subir as escadas que levavam aos dois quartos vazios onde

outrora tinham batido mais seis corações. Quartos cheios de brincadeiras, vodca, jantares, sonhos, desejos, vida.

Observou a rua de uma ponta à outra. Do outro lado da Grechesky, a igreja permanecia intacta. Virando a cabeça na direção da Suvorovsky, viu algumas pessoas a entrarem nos seus prédios, vindas do trabalho. Poucas, talvez umas três. O alcatrão estava limpo e seco. O ar frio agredia-lhe o nariz.

Por ele. O seu coração ainda batia e chamava-a. Ele ia ser a coragem dela. Assentindo para si própria, girou o puxador. O vestíbulo verde-escuro cheirava

a urina. Segurando-se ao corrimão, subiu os três lances de escadas até ao apartamento comunitário.

A chave rodou na fechadura da porta castanha reluzente. Estava tudo em silêncio. Não havia ninguém na cozinha da frente e as portas

dos outros quartos encontravam-se todas fechadas. Todas, exceto a de Slavin, ligeiramente entreaberta. Tatiana bateu e espreitou para dentro.

Deitado no chão, Slavin ouvia rádio: - Quem és tu? - perguntou em voz esganiçada. - A Tania Metanova, lembra-se? Como tem passado? - Sorriu. Havia coisa que

nunca mudavam. - Estavas aqui durante a guerra de 1905? Oh, a sova que demos aos

Japone¬ses! - Apontando para o rádio: - Ouve, ouve com atenção. Apenas o som do metrônomo. Preparou-se para sair de mansinho. Os Russos tinham perdido essa guerra.

Slavin olhou-a do chão: - Devias ter vindo o mês passado, Tanechka... só caíram sete bombas em

Leninegrado o mês passado. Teria sido mais seguro para ti. - Não se preocupe. Se precisar de alguma coisa, estou ao fundo do corredor.

Page 557: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

557

Também não havia ninguém na cozinha. Para seu espanto, a porta que dava para o vestíbulo e os dois quartos não estava fechada à chave. No sofá da entrada, dois desconhecidos, um homem e uma mulher, bebiam chá.

Tatiana estacou a olhar para eles: - Quem são os senhores? - perguntou por fim. Apresentaram-se como Inga e Stanislav Krakov. Deviam andar os dois na casa

dos quarenta; ele tinha barriga e estava a ficar careca aqui e ali e ela era baixinha e mirrada.

- Sim, mas quem são? - repetiu. - E você? - perguntou Stanislav sem sequer olhar para ela. Tatiana pousou a mochila: - Estes quartos são meus. Estão sentados no meu sofá. Inga apressou-se a explicar que viviam na esquina da Sétimo Soviete com a

Suvorovsky: - Tínhamos um apartamento muito bonito, com uma casa de banho, uma

cozinha e um quarto. - Ao que parecia, o prédio fora bombardeado em agosto. Com a falta de casas em Leninegrado devido à destruição provocada pelos Ale¬mães, as autoridades tinham alojado Inga e Stanislav nos quartos dos Metanov, que se encontravam desocupados. - Não se preocupe - continuou ela. - hão de arranjar-nos um apartamento, até talvez com dois quartos. Pelo menos foi o que nos disseram, não foi, Stanislav?

- Pois, mas agora voltei. Os quartos já não estão desocupados. - Olhou em volta. «O Alexander limpou tudo tão bem! », pensou com tristeza.

- Sim? E para onde quer que vamos? - indagou Stanislav. - Mandaram-nos para aqui.

- E os outros quartos deste prédio? - Os outros quartos... onde outras pes¬soas tinham morrido.

- Estão todos ocupados — respondeu Stanislav. - Olhe, para que continuamos a falar no assunto? Há aqui muito espaço. Pode ficar com um quarto só para si. Não há razão para lamentações.

- Mas os quartos são meus. - Na verdade, não — replicou ele, continuando a beber o chá. - Os quartos

pertencem ao Estado. E o Estado encontra-se em guerra. - Riu sem alegria: - Não está a ser uma boa proletária, camarada.

- Eu e o Stanislav somos membros do Partido, do corpo de engenheiros de Leninegrado.

- Ótimo - replicou Tatiana, sentindo-se de repente muito cansada. - Que quarto posso ocupar?

Inga e Stan haviam-se instalado no seu antigo quarto, onde dormia com Dasha, a mãe, o pai e Pasha, e que era o único com aquecimento. O quarto do Deda e da Babushka tinha um fogão avariado.

Mas mesmo que não estivesse avariado, não tinha lenha para o aquecer.

Page 558: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

558

- Pelo menos podem devolver-me a bourzhuika? - pediu. - E depois que usamos? - retorquiu Stanislav. - Como se chama? — perguntou Inga. - Tania. - Tania, porque não arrasta a cama para a parede onde está o fogão do nosso

lado? - sugeriu Inga timidamente. - Aí está quente. Quer que o Stanislav a ajude? - Inga, cala-te. Sabes muito bem que sofro das costas - atirou ele. - Ela pode

arrastá-la sozinha. - Pois posso. - Tatiana empurrou o sofá do Deda o suficiente para que a

pequena cama de Pasha ficasse encaixada entre as costas do sofá e a parede. Que, de facto, estava quente. Dormiu dezassete horas seguidas, enrolada no casaco e três cobertores.

Quando acordou, foi ao comitê de alojamento registar-se de novo como resi¬dente em Leninegrado.

- Para que voltou? - perguntou-lhe com maus modos a mulher sentada atrás da secretária, preenchendo os documentos necessários para uma nova caderneta de racionamento. — O bloqueio ainda não foi levantado, sabe?

- Sei. Mas há falta de enfermeiras. A guerra continua. - Fez uma pausa: - Alguém tem de tratar dos soldados, não?

A mulher encolheu os ombros sem erguer os olhos. «Mas alguém nesta cidade vai levantar a cabeça e olhar para mim? », pensou Tatiana. Só uma pessoa.

- O verão foi melhor - continuou a mulher. - Com mais comida. Agora não encontrará batatas.

- Não faz mal — redarguiu Tatiana, sentindo uma picada de dor ao lembrar-se da bancada para as batatas que Alexander fizera em Lazarevo.

Com a caderneta de racionamento na mão, dirigiu-se à loja Elisey, na Nevsky. Não suportaria voltar à da esquina da Fontanka com a Nekrasova, onde ia buscar as rações da família um ano atrás. Já era tarde para o pão, mas arranjou leite a sério, feijão, uma cebola e quatro colheres de sopa de óleo. Comprou uma lata de tushonka por cem rublos. Como ainda não estava a trabalhar, só tinha direito a trezentos e cinquenta gramas de pão, mas a ração era de setecentos para os traba¬lhadores, e ela tencionava empregar-se.

Procurou uma bourzhuika, mas não teve sorte. Chegou mesmo a ir ao coração comercial da cidade, Gostiny Dvor, que ficava em frente da Elisey, do outro lado da Nevsky, mas não encontrou nada. Ainda tinha três mil rublos do dinheiro de Alexander, e de boa vontade gastaria metade numa bourzhuika que lhe desse calor, mas não havia nenhuma à venda. Levando o saco da comida, atravessou a Nevsky, passou o Grande Hotel Europa, desceu a Mikhailovskaya Ulitsa, dirigiu-se aos Jar¬dins Italianos e sentou-se no banco onde Alexander lhe falara da América.

Não se mexeu, nem sequer quando os bombardeamentos começaram e viu explosões na Mikhailovskaya e do outro lado da Nevsky. Observou uma bomba a cair na rua e explodindo numa labareda preta. «O Alexander vai ficar furioso quando

Page 559: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

559

souber que estou aqui», pensou, levantando-se finalmente e encami¬nhando-se para casa. Mas queria-o vivo e pouco lhe importava que ele a matasse. Já conhecia o mau génio dele, que perdera a cabeça nos últimos dias de Lazarevo. Mas não sabia como e se ele voltara a cair em si depois de partir.

Foi trabalhar de novo para o Hospital Grechesky. Não se enganara. A falta de pessoal era crítica. O administrador viu o carimbo do seu antigo emprego no hospital e perguntou-lhe se fora enfermeira. Tatiana respondeu-lhe que fora aju¬dante de enfermagem e que num abrir e fechar de olhos poria os seus conheci¬mentos em dia. Depois pediu para ser colocada na unidade de cuidados intensivos. Deram-lhe um uniforme branco. Andou atrás de uma enfermeira chamada Elisa¬veta durante um turno de nove horas e a seguir de outra de nome Maria por mais nove horas. Nenhuma delas levantou os olhos para Tatiana.

Mas os doentes levantaram. Após duas semanas a trabalhar dezoito horas por dia, obteve finalmente um

turno próprio e uma tarde de domingo livre. Encheu-se de coragem para ir ao Quartel Pavlov.

Page 560: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

560

2

Só precisava de saber se Alexander estava bem e onde se encontrava. Não conhecia o sentinela que guardava a entrada e que se chamava Viktor

Burenich. O jovem soldado mostrou-se amável e pronto a ajudar, o que lhe agradou. Depois de verificar a folha de serviços de todos os militares estacionados no quartel, disse-lhe que Alexander Belov não estava lá. Ela perguntou-lhe se sabia do paradeiro do capitão e o guarda respondeu-lhe que não com um sorriso.

-Mas ele está bem? - indagou. Ele encolheu os ombros: - Acho que sim, mas não me contam grande coisa. Prendendo a respiração, perguntou-lhe se Dimitri Chernenko ainda era vivo. Era. Tatiana soltou o ar. Burenich informou-a de que Chernenko não se

encontrava de momento no quartel, mas que estava sempre a entrar e a sair com provisões.

Tentou pensar em quem mais conhecia. - O Anatoly Marazov está aqui? Estava. Que sorte! Dali a minutos, Marazov apareceu à entrada: - Tatiana! - Parecia contente por a ver. - Que surpresa vê-la aqui! O

Alexan¬der disse-me que foi evacuada com a sua irmã. - Depois de uma pausa: - Os meus sentimentos pela sua irmã.

- Obrigada, tenente - agradeceu, com os olhos enchendo-se-lhe involuntariamente de lágrimas. Mas sentiu-se muito aliviada. Se Marazov mencionava Alexander com tanta descontração, era porque estava tudo bem.

- Não queria entristecê-la, Tania. - Não, não me entristeceu. - Encontravam-se à entrada. - Quer dar uma volta? - propôs Marazov. - Tenho alguns minutos. Passearam de casacos abotoados até à Praça do Palácio. - Veio ver o Dimitri? Já não está na minha unidade. - Oh, eu sei - replicou ela, engasgando-se logo a seguir. Conseguiria ter todas

as mentiras presentes na cabeça? Como poderia saber do paradeiro de Dimitri? - Sei que teve um problema. Encontrei-o em Kobona há uns meses. - E se não fora ali para ver Dimitri, então quem?

- Pois, agora está aqui. A andar de um lado para o outro e a resmungar, como de costume. Não percebo o que quer ele que a guerra lhe dê.

Page 561: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

561

- Ainda está na... companhia do Alexander? - Não, o Alexander já não tem nenhuma companhia. Foi ferido... - Calou-se ao

ver Tatiana cambalear. - Sente-se bem? - Desculpe. Estou, claro. Tropecei - explicou, cruzando os braços em volta da

cintura. Pensou que ia desmaiar a qualquer momento. Tinha de se recompor a qualquer preço. Tinha. - Que lhe aconteceu?

- Ficou com as mãos queimadas num ataque, em setembro. - As mãos? - As mãos. - Sim. Queimaduras de segundo grau. Durante semanas, não conseguia

segu¬rar nem num copo de água. Agora já anda melhor. - Onde está? - Outra vez na frente. Não conseguia continuar a passear: - Tenente, é melhor voltarmos para trás. Tenho de me ir embora. - Está bem — anuiu Marazov, um tanto espantado. Deram meia-volta. - Mas

porque voltou para Leninegrado? - Há falta de enfermeiras. Vim para ser enfermeira. — Estugou o passo: - Não

vai para Shlisselburg? - Devo acabar por ir. Temos uma nova base de operações para a frente de

Leninegrado em Morozovo... - Morozovo? Ouça... fico contente por estar bem. E a seguir? Ele abanou a cabeça: - Perdemos tantos homens a tentar romper o bloqueio que estamos

cons¬tantemente a reagrupar-nos. Mas penso que da próxima vez que sair, vou com o Alexander.

- Ai, sim? - Sentia as pernas a fraquejar. — Bem, espero que sim. Olhe, gostei de o ver.

- Tania, sente-se bem? - Marazov fitou-a com aquele olhar de triste familia¬ridade. Lembrava-se da sua expressão quando o vira pela primeira vez, em setem¬bro do ano anterior. Contemplara-a como se já a conhecesse.

Conseguiu esboçar um sorriso: - Claro. Muito bem. — Aproximando-se dele rigidamente, pousou-lhe a mão

na manga: - Obrigada, tenente. - Digo ao Dimitri que passou por aqui? - Não! Por favor, não. Ele assentiu. Tatiana já ia quase ao fundo da rua quando ele gritou: - E ao Alexander? Ela virou-se: - Por favor, não - respondeu em voz fraca. Na noite seguinte, ao regressar do hospital, encontrou Dimitri esperando por

ela no vestíbulo na companhia de Stanislav e Inga.

Page 562: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

562

- Dimitri! - exclamou Tatiana, chocada. - O quê... como... que estás a fazer aqui? - Lançou um olhar encolerizado aos outros dois.

- Deixámo-lo entrar, Tanechka - explicou Inga. - Disse-nos que andaram juntos o ano passado.

Dimitri aproximou-se e cingiu-a a si, mas ela continuou com os braços caídos de lado.

- Sei que foste à minha procura. Fiquei muito sensibilizado. Queres ir para o teu quarto?

- Quem te disse? - O Burenich, o sentinela. Contou-me que fora lá uma jovem à minha procura.

Não deixaste o teu nome, mas ele descreveu-te. Estou muito comovido, Tania. Estes meses têm sido muito difíceis para mim.

Andava inclinado e tinha os olhos cavos. - Dimitri, não é uma boa altura para mim - disse, lançando um olhar de poucos

amigos a Inga e Stanislav. Desviou o rosto: - Estou muito cansada. - Deves ter fome. Queres jantar? - Comi no hospital - mentiu. - E não tenho quase nada aqui. - Como con¬seguir

que ele se fosse embora? - Amanhã levanto-me às cinco. Tenho dois turnos de nove horas. Passo o dia de pé. Fica para a próxima, sim?

- Não, Tania. Nem sei se haverá uma próxima. Vá lá. Não podes fazer-me um chá e qualquer coisa para comer? Em memória dos velhos tempos.

Tatiana nem imaginava a reação de Alexander quando soubesse que Dimitri estivera no quarto com ela. Não estava nos seus planos encontrá-lo. Não sabia o que fazer. Mas depois pensou: «O Alexander ainda tem de se haver com ele. Por isso, eu também. O problema não é do Alexander. É nosso. »

Fritou rebentos de soja num fogareiro que Slavin lhe emprestara em troca de ela cozinhar para ele de vez em quando. Acrescentou algumas cenouras pequenas e um pedaço de cebola. Deu-lhe pão escuro com uma colher de manteiga. Quando ele lhe pediu vodca, disse-lhe que não tinha, pois não queria que se embebedasse estando os dois sozinhos. O quarto estava mal iluminado por uma candeia de querosene; havia eletricidade, mas não se encontravam lâmpadas nas lojas.

Comeu com o prato pousado no colo. Tatiana sentou-se na outra ponta do sofá, percebendo que ainda nem despira o casaco. Tirou-o. Enquanto ele comia, foi fazer chá.

- Porque está tanto frio aqui? - perguntou ele. - Não há aquecimento. - Ainda envergava a farda de enfermeira e tinha o

cabelo preso na touca. - Então, Tatia? Como tens passado? Estás com bom aspeto. Perdeste o ar de

rapariguinha. - Sorrindo: - Pareces mais mulher. Mais velha. - Acontecem tantas coisas que quase não é possível evitar! - Mas estás com muito bom aspeto. Esta guerra faz-te medrar. - Sorrindo: -

Engordaste desde a última vez que te vi...

Page 563: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

563

Tatiana lançou-lhe um olhar que o fez calar-se: - Dimitri - começou serenamente -, da última vez que me viste eu estava em

Kobona a pedir-te ajuda para enterrar a minha irmã. Talvez te tenhas esque¬cido, mas eu não.

— Oh, eu sei, Tania — replicou com um vago aceno de mão. — Perdemos completamente o contacto. Mas nunca deixei de pensar em ti. Ainda bem que conseguiste sair de Kobona. Houve muita gente que não teve a mesma sorte.

— A minha irmã, por exemplo. — Gostaria de lhe perguntar como tivera o des¬caramento de mentir a Alexander sobre Dasha, mas não suportaria dizer o nome do marido à sua frente.

— Lamento muito. Os meus pais também morreram. Sei como te sentes. - Calou-se. Tatiana esperava que ele acabasse de comer e se fosse embora. - Como regressaste a Leninegrado?

Tatiana contou-lhe. Mas não queria falar de si. Não queria falar de nada. Onde estavam Dasha,

Alexander, a mãe e o pai, para ela não ter de ficar sozinha com Dimitri? Respirando fundo, perguntou-lhe o que ia fazer, agora que parecia

incapaci¬tado para sempre. - Sou estafeta. Sabes o que isso é? Sabia, mas abanou a cabeça. Enquanto falasse de si, deixá-la-ia em paz com as

suas perguntas. - Vou buscar provisões aos camiões, aviões e barcos e distribuo-as nas linhas

da frente e nas unidades da retaguarda... - Onde? Aqui em Leninegrado? — indagou. - Sim. Em vários pontos de distribuição deste lado do Neva e na Carélia, perto

da Finlândia. - Olhando-a de esguelha: - Percebes porque ando tão infeliz? - Claro que sim. A guerra é perigosa. E tu não a queres. - O que eu não quero é este país - resmungou quase sem se ouvir. Mas ouviu-se. - Disseste que fazes entregas na linha da frente finlandesa? - A voz sumia-se-

lhe juntamente com as forças. - É. Vou entregar provisões às tropas da fronteira no istmo da Carélia. E

também ao novo quartel-general para as operações do Neva, em Morozovo. Estabelecemos lá o novo posto de comando, enquanto planeamos os próximos movimentos...

- No istmo da Carélia onde? - Já ouviste falar de um lugar chamado Lisiy Nos?... - Já. - Agarrou-se ao braço do sofá. - É aí. - Sorriu: - Também ando a pé de quartel em quartel a distribuir

pro¬visões. Sabes, Tania, até forneço os generais! - acrescentou, erguendo as sobrancelhas.

- Ai sim? - retorquiu ela, quase sem ouvir. - Alguém interessante?

Page 564: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

564

Dimitri baixou a voz: - Tenho uma relação bastante amigável com o general Mekhlis. - Riu de

satisfação: - Levo-lhe papel, canetas e mais alguma coisa que consiga arranjar... percebes? Nunca lhe peço para me pagar. Cigarros, vodca, vai tudo para ele. Gosta muito das minhas visitas.

- Sim? - Não fazia ideia de quem era Mekhlis. - Mekhlis... que exército comanda?

- Estás a brincar, Tania? - Não. Porque havia de estar? - Sentia-se exausta. Num sussurro de satisfação, Dimitri explicou: - O general Mekhlis comanda o exército da NKVD! - Baixando ainda mais a

voz: - É o braço direito de Beria! — Lavrenti Beria era o comissário do Povo de Estaline da NKVD.

Tatiana já tivera medo das bombas, da fome e da morte. Já tivera medo de se perder nos bosques. E já tivera medo de que um ser humano quisesse fazer-lhe mal só por fazer mal.

O mal era o único objetivo. Naquela noite, não tinha medo por si. Estudando no entanto o rosto depravado, agoirento e insinuante de Dimitri,

teve medo por Alexander. Antes dessa noite, sentira remorsos por ter deixado Lazarevo, renegando

assim a promessa que fizera ao marido. Mas agora estava convencida de que Ale¬xander precisava dela muito mais do que alguma vez imaginara.

Alguém tinha de o proteger... e não só da morte em combate, não... mas da destruição deliberada.

Estudou Dimitri sem se mexer, sem pestanejar, sem estremecer. Viu-o pousar a chávena e sentar-se mais perto dela. Pestanejou e acordou: - Que estás a fazer? - Vejo que já não és uma criança, Tania. Aproximou-se ainda mais, mas ela não mexeu sequer um músculo. - A Inga e o Stanislav disseram-me que trabalhas tanto que estão convencidos

de que andas com algum médico do hospital. É verdade? - Se a Inga e o Stanislav te disseram, é porque deve ser. Os comunistas nunca

mentem, Dimitri. Ele assentiu e chegou-se mais. - Que estás a fazer? — Levantou-se do sofá: - Olha, já é tarde. - Vá lá, Tania. Estás só e eu também. Odeio a minha vida, cada minuto de cada

dia. Não te sentes assim às vezes? «Só agora», pensou ela. - Não, Dima. Sinto-me bem. Tudo somado, até tenho uma vida boa. Trabalho,

precisam de mim no hospital, os meus doentes gostam de mim. Estou viva e tenho comida.

Page 565: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

565

- Mas deves sentir-te tão sozinha! - Como? Estou sempre rodeada de pessoas. E achaste que eu andava com um

medico? Olha, vamos acabar com isto. Já é tarde. Ele levantou-se e avançou para ela. Tatiana pôs-lhe as mãos à frente: - Dimitri, isso acabou. Não sou a mulher indicada para ti. - Fitou-o com

intensidade: - E tu sempre o soubeste. No entanto, nunca deixaste de insistir. Porquê?

Ele soltou uma gargalhada descontraída: - Minha querida Tania, se calhar tinha esperança de que o amor de uma

mulher boa como tu redimisse um patife como eu. Tatiana pousou nele um olhar frio: - Ainda bem que não pensas que não tens salvação - disse por fim. Ele riu-se outra vez: - Oh, mas não tenho, Tania. E não tenho porque não fui amado por uma

mulher boa como tu. — Parou de rir e levantou os olhos para ela: - Mas quem foi? -perguntou calmamente.

De pé no sítio onde dantes estava a mesa de jantar que Alexander serrara a fim de que ela e Dasha tivessem lenha para se aquecer, Tatiana não respondeu. Tantos fantasmas num quarto pequeno e escuro! Era quase como se ainda se sen¬tissem as emoções, a carência, a fome...

Os olhos de Dimitri faiscaram: - Não percebo — começou. — Porque foste ao quartel à minha procura?

Pensei que era isto que querias. Estás a brincar comigo? A provocar-me? - Levantou a voz muito além do que as paredes conseguiriam abafar e aproximou-se: - É que na tropa temos uma palavra para as miúdas que nos provocam. - Soltando uma gargalhada: - Chamamos-lhes mães.

- É o que pensas, Dima? Que quero provocar-te? Pensas que sou pessoa para querer uma coisa e fingir outra? Achas que sim?

Ele resmungou, mas não respondeu. - Bem me parecia. Fui muito clara contigo desde o princípio. Fui ao quartel

saber de ti e do Marazov porque queria ver uma cara conhecida. - Não ia baixar os braços, embora se sentisse fria e distante dele.

- E também perguntaste pelo Alexander? Sabes, é que não ias encontrá-lo no quartel. O Alexander ou tinha ido para Morozovo se estivesse de serviço, ou andava pelos bordéis de Leninegrado em caso contrário.

Tatiana sentiu-se empalidecer por dentro e por fora, e esperou que Dimitri não reparasse na sua emoção:

- Perguntei por toda a gente que conhecia. - Toda a gente exceto o Petrenko — observou Dimitri, como se soubesse. - E

como aparecias tantas vezes o ano passado, até tinhas boas relações com ele. Porque não perguntaste pelo teu amigo Ivan Petrenko? Antes de o matarem,

Page 566: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

566

contou-me que às vezes te acompanhava ao centro de distribuição das rações. Por ordem do capitão Belov, claro. Foi-te bastante útil a ti e à tua família. Porque não perguntaste por ele?

Emudeceu. Sentia uma necessidade tão ridícula de Alexander. uma necessidade tão ridícula de proteção contra aquele espetro que tinha no quarto, que não sabia o que havia de dizer.

Não perguntara por Petrenko porque sabia que ele morrera. Mas só o sabia pelas cartas de Alexander, que supostamente não lhe escrevia.

Que fazer para pôr um ponto final na revoltante mentira em que se enredava a sua vida?

Sentia-se tão farta, frustrada, cansada e desesperada que quase abriu a boca para lhe contar a verdade. Era melhor dizer a verdade e viver com as conseqüências.

Foram as conseqüências que a impediram de o fazer. Endireitou as costas, fitou Dimitri com frieza e disse firmemente: - Que estás a tentar que eu te diga? Para de me manipular com as tuas

per¬guntas! Ou mas fazes diretamente, ou então cala-te. Estou muito cansada para os teus joguinhos. Que queres saber? Porque não perguntei pelo Petrenko? Porque perguntei primeiro pelo Marazov, e quando soube que ele estava no quartel, deixei de perguntar mais. Agora chega!

Dimitri mirou-a ao mesmo tempo com espanto e mal-estar. Bateram à porta. Era Inga. - Que se passa? - perguntou, estremunhada, envergando o roupão cinzento

estarrapado. - Ouvi tanto barulho! Está tudo bem? - Está, obrigada, Inga — retorquiu Tatiana, batendo com a porta. Depois

falaria com ela. Dimitri aproximou-se: - Desculpa, Tania. Não queria aborrecer-te. Percebi mal. - Está bem. Já é tarde. Vamos despedir-nos. Ele tentou avançar, mas ela recuou. Afastando-se, encolheu os ombros: - Sempre quis que as coisas entre nós tivessem dado certo. Tania. - A sério? - Claro que sim. - Então como... — exclamou ela, interrompendo-se. Dimitri encontrava-se num quarto onde passara muitos serões a comer e a

beber. Sentara-se a conversar com a família, que o aceitara em sua casa e o acolhera na sua vida. Agora, já estava ali havia uma hora. Falara livremente de si e acusara Tatiana nem ela sabia de quê. Dissera-lhe coisas que lhe pareciam mentiras. Não sabia. O que não lhe perguntara fora o destino das seis pessoas que em tempos haviam estado naquele quarto com ele. Não lhe perguntara pela mãe, pelo pai, os avós, Marina, a avó materna. Não lho perguntara em Kobona, em janeiro, nem agora. E se sabia o que lhes acontecera, não pronunciara uma única palavra de

Page 567: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

567

comiseração nem tivera qualquer gesto de afeto. Como achava ele que as coi¬sas pudessem dar certo com alguém, e muito especialmente com ela, se nem por um segundo conseguia tirar os olhos do seu umbigo e olhar para a vida ou o coração dos outros? Pouco lhe importava que não tivesse mostrado qualquer interesse na sua família. O que queria era que ele deixasse de fingir, de pretender enganá-la.

Apeteceu-lhe dizer isto tudo. Mas não valia a pena. Desconfiava, no entanto, que a verdade se lhe lia claramente no olhar, porque

Dimitri baixou a cabeça e pareceu ainda mais corcunda ao gaguejar: - Parece que não acerto uma. - Vamos despedir-nos — replicou ela friamente. «O que será acertado. » Ele encaminhou-se para a porta e ela seguiu-o: - Tania, adeus. Acho que não voltaremos a ver-nos. - Ver-nos-emos, se assim estiver escrito. — Engoliu em seco, entorpecida por

dentro e com as pernas fracas. Dimitri baixou a voz e segredou: - Para onde vou, Tania, nunca mais me verás. - Não? - tartamudeou, sem forças. Partiu por fim, deixando atrás de si uma tempestade negra. Tatiana deitou-se

vestida na cama entre a parede e as costas do sofá, apertando a aliança contra o peito. Não se mexeu nem dormiu até de manhã.

Page 568: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

568

3

Em Morozovo, Alexander estava sentado a uma mesa colocada na sua tenda, quando Dimitri entrou levando cigarros e vodca. O jovem oficial envergava o casaco e tinha as mãos feridas entorpecidas por causa do frio. Apetecia-lhe ir aque¬cer-se e comer à tenda onde estava instalada a messe, mas não podia sair. Era sexta-feira e dali a uma hora tinha uma reunião com o general Govorov para discutirem os planos de assalto aos Alemães, do outro lado do rio.

Estava-se em novembro. Após quatro tentativas falhadas de atravessar o Neva, o 67º. Exército esperava agora impacientemente que o rio gelasse. O comando de Leninegrado chegara por fim à conclusão de que seria melhor atacar com os soldados caminhando sobre o gelo do que acotovelando-se em barcos muito fáceis de destruir.

Dimitri pousou na mesa as garrafas de vodca, o tabaco e as mortalhas e Ale¬xander pagou-lhe. Só queria que ele saísse outra vez. Acabava de ler uma carta de Tatiana que o intrigava. Não lhe escrevera durante as semanas em que estivera ferido. Podia ter pedido a uma enfermeira que lha escrevesse, mas sabia que, ao ver a letra de outra pessoa, a mulher enlouqueceria tentando adivinhar nas entrelinhas o seu verdadeiro estado. Como não queria preocupá-la, enviara-lhe o dinheiro de setembro e esperara até conseguir segurar uma caneta, o que acontecera no fim do mês.

Escrevera-lhe dizendo-lhe que as queimaduras tinham sido a maneira de Deus o proteger. Impossibilitado de manobrar as armas, não participara em dois assaltos desastrosos ao Neva, em setembro, que haviam dizimado de tal maneira as tropas das duas primeiras linhas que fora necessário chamar todas as reservas do quartel de Leninegrado. A frente de Volkhov de bom grado teria fornecido homens à frente de Leninegrado... se os tivesse. Depois da ordem de Hitler a Manstein para que aguentasse o Neva e o bloqueio a Leninegrado a qualquer preço, quase não havia homens no 2º. Exército de Meretskov, em Volkhov.

A cidade de Estalinegrado estava a ser arrasada. A Ucrânia caíra nas mãos de Hitler. Leninegrado mal se aguentava. O Exército Vermelho encontrava-se seria¬mente debilitado. Govorov planeava mais um ataque aos Alemães do outro lado do Neva. E Alexander, sentado à secretária, tentava perceber o que se passaria com a mulher.

Estava-se em novembro e nenhuma das suas cartas, que chegavam regularmente mas talvez sem o seu habitual e cândido fervor, mencionava os

Page 569: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

569

ferimentos que sofrera. Encontrava-se absorto a tentar ler nas entrelinhas das canas dela quando Dimitri entrara com as provisões. E agora não se ia embora.

- Alexander, ofereces-me um copo em memória dos velhos tempos? Assentiu com relutância e também encheu um mais pequeno para si.

Sen¬tou-se atrás da secretária e Dimitri numa cadeira à sua frente. Falaram da invasão iminente e dos terríveis combates com os Alemães do outro lado do Neva, em Volkhov.

- Como consegues estar aí sentado tão calmamente, sabendo o que te espera, Alexander? Quatro tentativas para atravessar o Neva, inúmeros mortos... Ouvi dizer que logo que o rio gelar o quinto ataque será o último e que nem um homem terá autorização para regressar até se romper o bloqueio. Sabias?

- Já ouvi falar nisso. - Não posso continuar aqui. Não posso. Ainda ontem, quando estava no Neva

a entregar provisões para as tropas do enclave do Nevsky, dispararam uma bomba de Sinyavino que atravessou o rio e fez ir pelos ares mais um esquadrão que se preparava para embarcar. Eu devia estar aí a uns cem metros da explosão. Mas olha... — Mostrou-lhe vários golpes na cara. - Isto não tem fim.

- Pois não, não tem. Dimitri baixou a voz: - Nem acreditas como a zona de Lisiy Nos está desprotegida! Faço entregas às

nossas tropas da fronteira e vejo os Finlandeses na floresta. Ao todo deve haver uma dúzia de homens. É providencial. Vens comigo na camioneta e antes de che¬garmos à fronteira largamo-la e...

- Dima! - segredou Alexander. — Largar a camioneta? Olha para ti! Mal consegues andar em solo plano. Falámos disto em junho...

- Não foi só em junho. Falámos disto vezes sem conta. Estou farto de con¬versas e farto de esperar. Não posso esperar mais. Vamos agora. Havemos de conseguir. Se não conseguirmos, levamos um tiro. Que diferença faz? Pelo menos temos uma hipótese.

- Ouve... — começou Alexander, levantando-se. - Não, ouve tu. Esta guerra mudou-me... - A sério? - Sim! Mostrou-me que tenho de lutar para sobreviver, seja por que meios for.

Tudo o que fiz até agora não deu resultado. Nem andar de pelotão em pelotão, nem a ferida no pé, nem os meses no hospital, nem o interlúdio de Kobona... nada! Tenho andado a tentar salvar a vida até nos pormos outra vez a caminho. Mas os Alemães estão decididos a matar-me. E eu a não os deixar. - Fez uma pausa e baixou a voz: - O que torna a tua habilidade com o falecido e esquecido Yuri Stepanov ainda mais irritante. — Quase num murmúrio, continuou: - Ele está morto e nós continuamos aqui. Tudo porque tinhas de o socorrer. Se não fos¬ses tu, a esta hora estaríamos na América.

Page 570: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

570

Esforçando-se para se dominar, Alexander deu a volta à secretária, inclinou--se para ele e respondeu entre dentes:

- E eu disse-te na altura o mesmo que te digo agora. Vai! Parte! Eu dou-te metade do meu dinheiro. Conheces o caminho para Helsínquia e Estocolmo como a palma da tua mão. Porque não vais?

Sentado na cadeira, Dimitri afastou-se de Alexander: - Sabes muito bem que não posso ir sozinho. Não falo uma palavra de inglês. - Não precisas de falar inglês! Vai para Estocolmo e pede o estatuto de

refu¬giado. Eles aceitam-te mesmo sem falares inglês - retorquiu Alexander friamente, recuando um pouco.

- E agora com a perna... - Esquece a perna! Arrasta-a atrás de ti, se for preciso. Dou-te metade do

dinheiro... - Dás-me metade do dinheiro? Que raio de conversa é essa? Vamos juntos!

Era esse o nosso plano. Juntos! - Depois de uma pausa: — Não vou sozinho! - Se é assim, então esperas até eu dizer — bufou Alexander, abrindo os

punhos. - Na primavera será. - Não vou esperar até à primavera! - Tens outro remédio? Queres conseguir ou preferes fracassar? Sabes, AS

tropas fronteiriças da NKVD matam imediatamente os desertores. Na primavera já eu estarei morto. Levantou-se da cadeira e tentou fazer

frente a Alexander. E tu também. Que se passa contigo? Que te deu? Já não queres fugir? Preferes... morrer?

Afastando o tormento do olhar, Alexander não respondeu. Dimitri lançou-lhe um olhar colérico: Há cinco anos, quando não eras ninguém nem tinhas ninguém, quando

precisaste de mim, fiz-te um favor, capitão do Exército Vermelho. Alexander deu um passo e parou tão perto dele que Dimitri não só recuou

como caiu na cadeira, olhando-o com ansiedade. - Pois fizeste. E eu nunca o esqueci. - Pronto, pronto. Não fiques tão... - Então compreendeste bem? Vamos esperar. - Mas a fronteira de Lisiy Nos está desprotegida agora! - exclamou Dimitri. - De que raio estamos à espera? Agora é a altura ideal, antes de os Soviéticos

e os Finlandeses mandarem mais tropas para lá e de a guerra continuar. Agora está tudo parado. Sugiro que vamos... antes que a Batalha de Leninegrado te mate.

- Mas quem te impede de ires? Vai! - Pela última vez, não vou sem ti. - Pela última vez, não vou agora. - Então quando? - Eu digo-te quando. Primeiro vamos romper o bloqueio. Precisaremos de

todas as nossas forças, mas fá-lo-emos. Depois, na primavera...

Page 571: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

571

Dimitri soltou uma risadinha: - Se calhar devíamos mandar a Tania. Por um momento, pensou que não ouvira bem. Dimitri acabara de mencionar Tatiana? - Que disseste? - perguntou calmamente, devagar. - Que se calhar devíamos mandar a Tania. Parece que é ótima a furar

bloqueios. - De que estás a falar? - Estou convencido de que aquela miúda era capaz de chegar à Austrália, se

quisesse - retorquiu ele com admiração. Atirando a cabeça para trás e rindo com gosto: - Antes de darmos por isso, estará a fazer transportes regulares de alimentos entre Molotov e Leninegrado.

- Mas de que raio estás a falar? - Estou a dizer-te — continuou. - Em vez de desperdiçarmos duzentos mil

homens, incluindo tu e eu, devíamos mandar a Tatiana Metanova romper o bloqueio.

Alexander apagou o cigarro: - Não faço ideia do que estás a falar. — Esperando que Dimitri não reparasse,

crispou as mãos nas costas da cadeira. - Eu disse-lhe assim: «Tania, devias alistar-te. Serias promovida a general num

abrir e fechar de olhos. » E ela respondeu-me que na verdade estava a pensar... - Espera... - interrompeu Alexander, com dificuldade em continuar. - Disseste-

lhe? - Há uma semana. Deu-me de jantar na Quinto Soviete. Finalmente os canos

estão consertados. O apartamento, bem... estão lá a viver uns desconhecidos, mas... - Sorrindo: - Está uma cozinheira e peras!

Alexander precisou de todas as suas forças para permanecer impassível. - Estás bem? - perguntou Dimitri com uma expressão divertida. - Estou. Mas de que estás a falar, Dima? Mais uma mentirinha? A Tatiana não

está em Leninegrado. - Acredita que sim. Conheço a Tania. - Sorriu: - Está com bom aspeto.

Con¬tou-me que anda com um médico. - Rindo: - Imagina! A nossa Tanechka! Quem diria que só ficaria ela!

Teve vontade de o mandar calar, mas não confiava na firmeza da sua voz. Continuando com as mãos na cadeira, não disse nada.

Se ainda no dia anterior recebera carta dela! - A Tania foi procurar-me ao quartel. Fez-me o jantar. Disse-me que está em

Leninegrado desde meados de outubro. E contou-me como chegou lá! - Soltou uma gargalhada: - Literalmente caminhando através da frente de Volkhov, como se Manstein e as suas bombas de mil quilos não existissem. - Abanou a cabeça: - Quando tiver de lutar, quero-a ao pé de mim.

Era-lhe cada vez mais difícil dominar-se:

Page 572: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

572

- E quando pensas que terás de lutar, Dimitri? - Espertinho... - Olha, quero lá saber. Não interessa. Estou atrasado. Tenho uma reunião com

o general Govorov dentro de uns minutos. Vais ter de me desculpar. Quando Dimitri saiu, deu largas à sua ira. Sentia-se tão furioso que partiu a

cadeira de madeira onde ele estivera sentado. Agora percebia o que se passava com as cartas dela. Fraco de fúria, não teve

tem¬po para se acalmar antes da reunião com Govorov. De resto, a cólera continuou a toldar-lhe o cérebro depois dela. Acabada a reunião, foi ter com o coronel Stepanov.

- Oh, não! - exclamou este, dando a volta à secretária. — Está com cara de poucos amigos, capitão Belov. - Sorriu.

De boné na mão, Alexander assentiu: - Tem sido muito compreensivo comigo, meu coronel. Ainda não tive

nenhuma licença desde que regressei em julho. - Mas, Belov, gozou mais de cinco semanas em julho! - Só lhe peço uns dias, meu coronel. Se quiser, posso conduzir um camião de

mantimentos até Leninegrado. Assim estarei de certa forma de serviço. - Que se passa, Alexander? - perguntou Stepanov, aproximando-se e baixando

a voz. Ele abanou a cabeça: - Está tudo bem. Stepanov estudou-o: - Tem alguma coisa a ver com o dinheiro que manda daqui para Molotov

todos os meses? - Tem razão, meu coronel. Se calhar é melhor acabarmos com as

transferên¬cias de dinheiro para Molotov. Stepanov baixou ainda mais a voz: - Tem alguma coisa a ver com um carimbo de uma conservatória de Molotov

que vi no seu passaporte quando registei a sua entrada ao serviço? Alexander permaneceu em silêncio. - Meu coronel, precisam de mim em Leninegrado com urgência. - Fez uma

pausa, tentando recompor-se. - Só por uns dias. O coronel suspirou: - Se não se apresentar à chamada das dez horas de domingo... - Estarei aqui. O tempo que me dá é mais do que suficiente. Obrigado. Nunca

o deixei ficar mal. Não vou esquecer-me disto. Quando ia a sair, Stepanov acrescentou: -Trate dos seus assuntos privados, meu filho. Deixe lá os mantimentos. Não

terá outra oportunidade para tratar de assuntos pessoais até rompermos o bloqueio.

Page 573: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

573

4

Tatiana arrastava os pés. Ainda andava à volta dos últimos doentes, apesar de a sua hora de saída já ter passado. Tinha alguma fome, mas era tão desagradável cozinhar só para si que gostaria de poder alimentar-se a soro, como alguns dos feridos. Preferia continuar a trabalhar com homens e mulheres em estado grave a ir sozinha para o seu quarto.

Por fim, saiu. De cabeça baixa, desceu devagar a Grechesky, envolta na es¬curidão.

Percorreu o apartamento comunitário. Sentada no sofá do vestíbulo, Inga bebia chá. Porque estava ela na casa de Tatiana? Não fazia sentido que continuasse ali com Stanislav.

- Olá, Inga — saudou com um ar cansado, despindo o casaco. — Hum. Estiveram aqui à sua procura. Endireitou-se: — Fez O que lhe pedi e não deixou ninguém entrar? — Fiz — replicou Inga. — Mas ele não ficou muito contente. Outro soldado — Que soldado? — Não sei. Aproximando-se de Inga, Tatiana murmurou: — Quem era? O mesmo soldado... — Não. Diferente. Alto. O coração deu-lhe um salto. — Onde... — gaguejou. — Para onde foi? — Não sei. Disse-lhe que não podia entrar e ele não quis ouvir mais nada. Tem

um batalhão de soldados atrás de si, não é? Sem seguer pegar no casaco, girou nos calcanhares, abriu a porta do pequeno

vestíbulo e deu de caras com Alexander. — Oh! — ofegou, com os joelhos vergando-se-lhe. — Oh, meu Deus! - Ao ver--

lhe a expressão nos olhos sombrios, percebeu o que ele estava a sentir. Não se importou. Com os olhos marejados de lágrimas, encostou-lhe a cabeça ao casaco.

Ele nem sequer a abraçou: — Anda — ordenou ele friamente, pegando-lhe no braço. - Vamos lá para

dentro. — A Tania disse-me para não deixar entrar ninguém, capitão... - Inga virou¬-se

para ela: - Não nos apresenta, Tania? - Pousara a chávena.

Page 574: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

574

— Não - atirou-lhe Alexander, empurrando a mulher para dentro do quarto e fechando a porta com um pontapé. Tatiana aproximou-se imediatamente, com os braços trêmulos abertos e o rosto a transbordar de felicidade.

Mal conseguia pronunciar o seu nome: — Shura... Ele pôs-lhe as mãos abertas à frente: — Afasta-te de mim. Não lhe deu ouvidos: — Shura, que alegria! Como estão as tuas mãos? Ele empurrou-a com força e falou em voz alta: — Não, Tatiana! Afasta-te de mim! Atravessou o quarto em direção à janela. Estava frio. Tatiana seguiu-o. A

necessidade de lhe tocar e de sentir as mãos dele no seu corpo era tão desespe¬rada que esqueceu a mágoa deixada pela visita de Dimitri, pelos cinco mil dólares que faltavam, pelos seus próprios sentimentos contraditórios.

— Shura - disse com a voz embargada. — Porque me empurras? — Que fizeste? - Tinha uma expressão amargurada e zangada. - Porque estás

aqui? - Sabes muito bem. Precisavas de mim e eu vim. - Não preciso de ti aqui! — berrou ele. Tatiana estremeceu mas não se

afastou. - Não preciso de ti aqui — repetiu. - Preciso de ti em segurança! - Eu sei. Deixa-me tocar-te, por favor. - Não te aproximes. - Shura, eu disse-te que não posso estar longe de ti. E tu precisas de mim

junto de ti, não em Lazarevo. - Junto de mim? De mim, não - retorquiu maldosamente, encostado ao

pei¬toril da janela. A única luz que iluminava o quarto era a que vinha da rua. Tanto o rosto como os olhos dele estavam sombrios.

- Que estás a dizer? - A sua voz tremia numa súplica. - Claro que junto de ti. De quem querias mais?

- Que te deu para ires ao quartel perguntar pelo Dimitri? - berrou. - Não fui perguntar por ele! — exclamou em voz fraca. - Fui perguntar por ti.

Não sabia o que te tinha acontecido. Deixaste de me escrever. - Se não me escreveste durante seis meses - gritou -, bem podias esperar duas

semanas, não? - Foi mais de um mês e não, não podia. Shura, estou aqui por ti. - Avançou um

passo. - Por ti. Disseste-me para nunca desviar o olhar de ti. Pois estou aqui. Olha para mim e diz-me o que sinto. - Abriu as mãos numa súplica: - Que sinto, Shura? - sussurrou.

Alexander pestanejou e rangeu os dentes: - Olha tu para mim e diz-me o que sinto, Tatiana. Ela juntou as mãos.

Page 575: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

575

- Tu prometeste! Prometeste. Deste-me a tua palavra. Sabia que sim. Observou-lhe o rosto. Sentia-se tão fraca e desejava-o tanto! E

bem via que ele ainda precisava mais dela, só que, como sempre, não conseguia ultrapassar a fúria que sentia.

- Alexander, meu marido, sou eu. A tua Tania. - Quase chorou ao abrir as mãos para ele: - Shura, por favor...

Como ele não respondeu, descalçou os sapatos e pôs-se à sua frente, junto da janela. Sentia-se mais vulnerável do que nunca, envergando a farda branca diante dele com o seu cabelo preto, botas pretas e casaco preto, tão transtornado, tão zangado!

- Não vamos discutir, por favor. Estou tão feliz! Só quero... - Não ia desviar os olhos dele, não ia. — Shura, não... me afastes - pediu com o corpo a tremer.

Ele virou-lhe a cara. Tatiana desabotoou a parte da frente do uniforme e pegou-lhe na mão:

- «Beija a palma da mão por mim e aperta-a ao coração», escreveste tu - segredou, beijando-lha e encostando depois ao peito nu aquela mão grande, quente e escura, que a amparara e a acariciara. Fechou os olhos e gemeu.

- Oh, meu Deus, Tatiana... - Puxou-a para si, atacando-lhe o corpo com as mãos. Empurrou-a para o sofá. Os lábios ávidos não lhe deixavam a boca. Revol¬veu-lhe o cabelo com as mãos: — Que queres de mim? — Arrancou-lhe a farda, camisa e roupa interior, deixando-lhe apenas as ligas no corpo nu. Apertando-lhe as coxas acima das meias, sussurrou: - Tania, meu Deus, que queres de mim?...

Não conseguia responder. O corpo dele no dela emudecia-a. - Estou furioso contigo. — Beijava-a como se estivesse a morrer. - Não te

importas que esteja furioso contigo? - Não... descarrega a fúria em mim — gemeu. - Vá, descarrega em mim,

Shura... agora. Estava dentro dela numa questão de segundos. Apertando-lhe a cabeça com as mãos, Tatiana sussurrou: - Tapa-me a boca. - Ia começar a gritar. Alexander não despira o casaco nem descalçara as botas. Bateram à porta. - Estás bem, Tania? - perguntou a voz de Inga. Com a mão na boca dela, Alexander berrou: - Ponha-se a andar! - Tapa-me a boca, Shura - repetiu ela, chorando de felicidade. - Oh, meu Deus,

tapa-a. - Não, não saias de mim, não saias de mim, por favor - murmurou,

agar¬rando-lhe o casaco, a cabeça, o corpo inteiro. — Como estão as tuas mãos? - No escuro, não as via. Pareciam cheias de crostas.

- Bem.

Page 576: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

576

Abraçando-lhe a cabeça, Tatiana beijava-lhe os lábios, o queixo, a barba, os olhos... não conseguia afastar-lhe os lábios dos olhos:

- Shura, meu querido, não saias de dentro de mim, por favor. Tive tantas saudades! Fica onde estás. Fica... - Por uns momentos, apertou-se contra ele. - Não saias de mim. Sentes como estou quente? Não saias para o frio... - Deitada debaixo dele, tentava não chorar. Mas não conseguiu. - Foi por isso que não me escreveste? Por causa das mãos?

- Foi. Não queria que ficasses preocupada. - Achaste que a ausência das tuas cartas não ia pôr-me maluca? - Sabes, acreditava que esperasses. - Saiu dela. Querido, adorado marido, tens fome? - murmurou. - Nem acredito que estou

a tocar-te outra vez. Não é possível ter tanta sorte! Que posso cozinhar-te? Tenho carne de porco e batatas. Queres comer?

- Não. Ajudou-a a sentar-se: — Porque está tanto frio aqui? - O fogão está avariado e a bourzhuika no outro quarto, lembras-te? O Slavin

deixa-me usar o fogareiro dele na cozinha. - Sorriu, passeando-lhe as mãos no casaco. - Querido, queres que te faça chá?

- Vais morrer de frio, Tania. Tens roupa quente? - Estou a arder — replicou ela, sem lhe tirar as mãos do casaco. - Não tenho

frio. - Abraçou-o. - Porque está o sofá no meio do quarto? - Porque tenho a cama por trás. Alexander espreitou, puxou um cobertor e tapou-a: - Porque dormes entre o sofá e a parede? Como ela não respondeu, tocou na parede com a mão. Entreolharam-se na

escuridão. - Porque lhes deste o quarto mais quente, Tania? - Eu não dei, eles é que o ocuparam. São dois e eu só uma. É triste, ele sofre

das costas. Shura, queres que te prepare um banho quente? - Não. Veste-te. Já. - Alexander afivelou o cinto e saiu do quarto, ainda de

casaco vestido. Despenteada e com a roupa em desalinho, Tatiana seguiu-o. Ele passou por Inga no vestíbulo, entrou no outro compartimento, onde Stanislav estava sentado a ler o jornal, e pediu-lhe que trocasse de quarto com a mulher. Este respondeu-lhe que não e Alexander insistiu que sim, começando a mudar todas as suas coisas para o quarto frio e as dela para o quente.

Tatiana ouviu Stanislav a resmungar no vestíbulo durante quinze minutos. A dada altura, ao passar por ele, segredou-lhe:

- Stanislav Stepanich, chiu. Por favor, não o provoque. O outro não lhe deu ouvidos. Quando Alexander passou com a sua mala,

fumegou: - Quem pensa que é? Não sabe quem eu sou. Não tem o direito de me tratar

assim.

Page 577: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

577

Largando a mala, Alexander pegou na espingarda e encostou-o à parede com o cano no pescoço:

- Quem pensa que é pergunto eu! - atirou-lhe em voz alta. - O senhor é que não sabe quem eu sou! Pensa que também vou ficar com medo de si, seu filho da mãe? Pois engana-se. Vá para o outro quarto e deixe-me em paz. - Fez ranger os dentes: - E não volte a incomodá-la, ouviu? - Dando-lhe mais um empurrão debaixo do queixo, afastou-se e deu um pontapé na pesada mala, fazendo-a tom¬bar. - Tome, leve-a o senhor.

Assistindo à cena, Tatiana não foi socorrer Stanislav, embora achasse que Ale¬xander parecia suficientemente zangado para o magoar a sério. Inga resmungou:

-Tem aqui a visitá-la pessoas que precisam de ser tratadas, Tania. Anda, Sta¬nislav, vamos.

Ele esfregou o pescoço e começou a dizer qualquer coisa, mas Inga gritou-lhe: - Anda, Stanislav. Fecha a boca e vamos! No quarto quente, Tatiana tirou rapidamente os lençóis de Inga e Stanislav,

atirou-os para o vestíbulo e fez a sua velha cama de lavado. - Assim está melhor, não achas? - Sentado no sofá, fez-lhe sinal para se

apro¬ximar. Tatiana abanou a cabeça: - És impossível, Alexander! Queres comer? - Depois. Anda cá. - Desta vez despes o casaco? - Anda cá que eu digo-te. Ela caiu-lhe nos braços: - Deixa o casaco vestido. Deixa tudo vestido. Tatiana preparou-lhe um banho quente, pegou-lhe na mão e levou-o para a

pequena casa de banho, despiu-o, ensaboou-o, esfregou-o, lavou-o, chorou e beijou-o.

- As tuas pobres mãos! - repetia sem parar. Os dedos vermelhos pareciam-lhe com muito mau aspeto, mas ele garantiu-lhe que sarariam praticamente sem deixar cicatrizes. Tinha a aliança não no dedo mas pendurada numa corda em volta do pescoço... como a dela. - A água está suficientemente quente?

- Está. - Posso ir ferver outra panela. - Sorrindo: - E depois despejo a água a ferver

em cima de ti. Lembras-te? - Lembro. - Não sorriu. - Oh, Shura... - sussurrou, beijando-lhe a testa molhada. Virou-lhe o rosto para

ela e ajoelhou-se ao lado da banheira. — Já sei! — Animando-se: — Vamos fazer um jogo.

- Agora não quero.

Page 578: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

578

- Vais gostar deste - murmurou. - Vamos fazer de conta que estamos em Lazarevo e que eu sou tu, afagando-me os dedos na bacia de lavar a louça. Lem¬bras-te? - Mergulhou os braços até aos cotovelos na água quente.

- Lembro. - Fechou os olhos e sorriu relutantemente. Enquanto ele se enxugava e se vestia, Tatiana foi à cozinha fazer-lhe o jantar.

Cozinhou praticamente toda a comida que tinha: batatas, cenouras e um pedaço de carne de porco. Depois, levou-a para o quarto e sentou-se sem fôlego ao seu lado no sofá, vendo-o comer:

- Não tenho fome. Comi no hospital. Come, querido, come. Durante a noite louca que passaram sem dormir, Tatiana contou-lhe tudo o

que Dimitri lhe dissera do general da NKVD, de Lisiy Nos e as outras alusões que fizera. Alexander fitava o teto:

- Queres que te responda antes de perguntares? - Não. Não vou perguntar nada. - Deitada nos seus braços, brincava-lhe com a

aliança. - Não falo do Dimitri aqui. - Está bem. - Porque as paredes têm ouvidos. - Bateu na parede com o punho. - Bem, então já ouviram tudo. Ele beijou-lhe a testa: - As outras coisas que te disse de mim... não são verdade. - Eu sei. — Soltou uma risadinha: - Mas, Shura, quantos bordéis há em

Leninegrado, e porque tens de ir a todos? - Olha para mim, Tania. - Ela contemplou-o. - Não é verdade. Eu... - Shura, querido... eu sei. - Beijou-lhe o peito e tapou-se a si e a ele com dois

cobertores de lã. — Só há uma coisa verdadeira nesta altura, Alexander. - Só uma — segredou ele, fitando-a intensamente na escuridão. - Oh, Tatia! - Chiu. - Tens alguma fotografia tua aqui? Uma fotografia que possa levar comigo? - Amanhã arranjo-te uma. Até tenho medo de perguntar: quando partes? - No domingo. O coração apertou-se-lhe: - Tão cedo? - O meu comandante põe a cabeça a prêmio de cada vez que me concede

uma licença. - É um homem bom. Agradece-lhe por mim. - Um dia destes tenho de te explicar o conceito de cumprir uma promessa.

Sabes, quando damos a nossa palavra, temos de a cumprir. - Afagava-lhe o cabelo. - Sei o que quer dizer cumprir uma promessa. - Não, só sabes o que quer dizer fazer uma promessa. De resto, és muito boa a

fazer promessas. Tens problemas é em cumpri-las. Prometeste-me que ficarias em Lazarevo.

Page 579: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

579

Tatiana retorquiu, pensativa: - Prometi porque era o que tu querias. - Aconchegou-se melhor no seu braço:

- Não me deste grandes hipóteses. - Nunca estaria suficientemente perto dele. - Na altura em que me pediste a promessa, ter-te-ia prometido qualquer coisa. - Não lhe bastava o seu braço. Subiu para cima dele. - E fi-lo. - Deu-lhe um beijo terno. - Querias que eu prometesse e eu prometi. Faço sempre o que me pedes.

Alexander passeou-lhe suavemente os dedos pelas costas: - Não, fazes sempre o que te apetece. Olha, o que sabes fazer é barulho. - Hum. – Esfregou-se nele. - Sim, isso sabes fazer – continuou, com as mãos mais insistentes. – E também

sabes falar muito bem: sim, Shura; claro, Shura; prometo, Shura; até talvez: amo-te Shura... mas depois fazes o que te apetece.

- Amo-te, Shura. – As lágrimas caíram no rosto de Alexander. Tatiana guardou para si toda a aflição que sentia e admirou-se por ele

também estar a dominar a sua, que adivinhava ser grande. Mas sabia que a infindável noite de novembro em Leninegrado era muito curta para tristeza, muito curta para o que sentiam, muito curta para eles. Alexander queria ouvi-la gemer e ela gemeu, indiferente a Inga e Stanislav, separados deles apenas por uns centímetros de argamassa. À luz bruxuleante da bourzhuika aberta, fez amor com seu Alexander, abandonando-se a ele, agarrando-o, colando-se-lhe, incapaz de conter as lágrimas de cada vez que tinha prazer, que ele tinha prazer, que tinham prazer juntos. Fez amor com o abandono do ultimo vôo da cotovia para o sul, quando a ave sabe que ou chega aos países quentes ou morre.

- As tuas pobres mãos – sussurrou, beijando-lhe os dedos e os pulsos. – As tuas mãos, Shura. Vão sarar sem deixar cicatrizes, não é?

- As tuas sararam. Sem deixar cicatrizes. - Hum. – Recordou o incêndio que apagara no telhado no ano anterior. – Não

sei como. - Sei eu. Tu curaste-as. Agora cure as minhas, Tania. - Oh, soldado! – Deitada em cima dele, apertou-lhe desesperadamente a

cabeça contra os seios nus. - Não consigo respirar. Abraçava-o da maneira que ele costumava abraça-la em Lazarevo. E pela

mesma razão. -Abre a boca – murmurou, inclinando-se para o seu rosto. – Eu respiro por ti.

Page 580: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

580

5

Na manhã seguinte, antes de saírem do quarto, Tatiana abraçou-o: - Tenta ser simpático. – E abriu a porta. - Sou sempre simpático. Stanislav e Inga estavam sentados no vestíbulo. Stanislav levantou-se,

estendeu a mão a Alexander, apresentou-se, desculpou-se pelo que passara no dia anterior e convidou-o a sentar-se e fumar um cigarro. Não se sentou, mas aceitou o cigarro.

- Esta vida é difícil para todos, mas não há de durar eternamente. Sabe o que diz o Partido, capitão... – Sorriu, insinuante.

- Não. O que diz o Partido, camarada? – perguntou, olhando de relance para Tatiana, de pé ao seu lado, de mão dada com ele.

- O ser determina a consciência, não é? Se vivermos assim muito tempo, habituamo-nos. Em breve seremos todos seres humanos diferentes.

- Mas, Stanislav, não quero viver assim! – lamentou-se Inga. – Tinhamos um apartamento tão bonito! Quero-o de volta.

- Havemos de ter. Prometeram-nos um com dois quartos. - Quanto tempo pensa que termos que viver assim até sermos diferentes? –

perguntou Alexander. – E diferentes como? Dirigiu um olhar inexpressivo a Tatiana, que lhe perscrutou o rosto: - Shura, tenho um bocado de kasha. Queres, querido? – Fumando como se o

cigarro fosse o seu pequeno-almoço, Alexander assentiu. O brilho dos seus olhos não pressagiava nada de bom.

Quando voltou a entrar com duas taças de kasha e uma xícara de café para ele, ouviu Stanislav contando-lhe que ele e Inga, casados havia vinte anos, eram ambos engenheiros e membros do Partido Comunista da União Soviética.

Alexander desculpou-se e foi comer a kasha para o quarto, sem sequer dizer à mulher para o seguir.

Tatiana comeu a kasha com Inga e Stanislav, recusando-se a responder às perguntas curiosas dela sobre Alexander. Depois, lavou a louça da noite anterior, limpou a cozinha e foi finalmente para o quarto com relutância. Sabia que estava a atrasar-se de propósito. Não queria enfrentá-los a sós.

Alexander, que estava a encher-lhe a mochila preta, fuzilou-a com o olhar. - Quiseste voltar para isto? Tinha saudades? Desconhecidos, desconhecidos

do Partido Comunista, escutando todas as tuas palavras e gemidos? Tinha saudades, Tania?

- Não. Tinha saudades tuas.

Page 581: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

581

- Aqui não há lugar nem para mim nem para ti. Ela observou-o durante algum tempo: - Que estás a fazer? - As malas. - As malas? – repetiu calmamente, fechando a porta atrás de si. <<Pronto>>,

pensou. <<Eu não queria discutir. Gostaria de não discutir, mas cá esta.>> - Onde vamos?

- Atravessar o lago. Consigo fazer-te passar facilmente até Syastroy e depois levo-te de camião a Vologda, de onde podes seguir o comboio. Temos de ir. Ainda vou demorar um bocadinho a regressar e preciso de estar em Morozovo amanhã à noite.

Ela abanou a cabeça vigorosamente. - O que foi? – Atirou-lhe Alexander. – Porque abanas a cabeça? Voltou a abaná-la. -Tatiana, estou a avisar-te. Não me provoques. - Está bem. Mas não vou a lado nenhum. - Vais, sim. - Não vou nada – respondeu baixinho. Alexander levantou a voz: - Vais! Continuou a falar baixinho: - Não me levantes a voz. Largando a mochila, que caiu no chão de madeira com o baque, Alexander

aproximou-se dela, inclinou-se e disse-lhe na cara: - Daqui a pouco, não vou levantar só a voz. Sentiu-se tristíssima. Mas endireitou os ombros e não desviou o olhar: - Bate, Alexander. Não tenho medo de ti. - Não? – Fez range os dentes. – Pois tu apavoras-me. – Afastando-se, apanhou

a mochila. Tatiana recordou Pasha dizendo ao pai que queria ficar no primeiro dia de guerra, sendo mandado embora na mesma e morrendo.

- Alexander, já te disse que pares com isso. Não saio daqui. - Ai sais, sais – retorquiu, virando-se para ela com o rosto contorcido pela

cólera. – Sais e vais para Vologda, nem que eu tenha de te arrastar a gritar e a espernear.

Tatiana recuou um bocadinho, só meio passo: - Está bem. E não vou a espernear nem a gritar. Mas volto logo que tu virares

costas. Ele atirou com a mochila à parede, muito perto da cabeça dela. A seguir

aproximou-se de punhos cerrados e esmurrou a parede com tanta forca que a argamassa partiu e a mão dele entrou pelo buraco.

Com as pernas a tremer e olhos fechados, Tatiana recuou outro meio passo e imobilizou-se.

Page 582: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

582

- Raios te partam! – gritou furioso, esmurrando a parede perto do seu rosto. - Que é preciso para me ouvires só uma vez? Para fazeres o que digo só uma

vez? – Agarrou-lhe os braços e encostou-a rudemente à parede. -Shura, isto não é a tropa – murmurou ela em voz trémula, com medo de

olhar para ele. - Não vais ficar aqui! - Vou – teimou em voz fraca. Bateram à porta. Alexander abriu-a num ápice e gritou: - Que foi? De rosto vermelho, Inga gaguejou: - Queria só ver se a Tania esta bem. Tania? Ouvi gritos... pancadas... - Estou bem. – Afastou-se da parede com as pernas pouco firmes. - Ainda vai ouvir muito mais. É só encostar um copo à parede – declarou

Alexander, fechando a porta com estrondo, girando nos calcanhares e aproximando-se de Tatiana.

Ela recuou e levantou as mãos, murmurando: - Shura, por favor... – Imparável e de cabeça perdida, ele empurrou-a para o

sofá. Ela caiu para trás e tapou o rosto. Debruçando-se sobre ela, afastou-lhe as mãos com brusquidão: - Não tapes a cara! – gritou, apertando-lhe as faces entre os dedos e

abanando-a. – Não me faças perder mais a cabeça! Tatiana gritou e tentou empurrá-lo, mas em vão: - Para! – ofegou. – Para... - Em segurança ou morta, Tania? – gritou. – Em segurança ou morta? Que

preferes? Agarrando-lhe desesperadamente os braços, tentou responder-lhe, mas não

foi capaz. Morta. Morta, Shura. - Vês como eu fico por estares aqui? – Apertou-lhe as bochechas com mais

força, enquanto ela se debatia. – Claro que vês. Mas não estás nada interessada. Ela deixou de lhe resistir e pousou as mãos nas dele: - Por favor... – murmurou, tentando prender-lhe o olhar. – Por favor... para.

Estás a magoar-me. Alexander fez menos força, mas não lhe largou as faces. Apesar de mal

conseguir respirar, Tatiana não se afastou. Ofegava, deitada no sofá por debaixo dele. Cobrindo-a com o corpo, também ele arquejava. Apesar do barulho terrível que lhe ia a cabeça, a jovem ouviu ao longe as sirenes e o som de explosões do lado de fora da janela. Desviou a boca das mãos dele. Sufocava. Passou-lhe os braços pelas costas:

- Oh, Shura! – segredou. Alexander saiu de cima dela, olhou-a com uma expressão de profunda

infelicidade e deixou-se cair de joelhos:

Page 583: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

583

- Tatiana – começou, com a voz embargada -, este pobre diabo suplica-te que partas. Se me amas nem que seja um bocadinho, por favor regressa a Lazarevo e à segurança. Não sabes o perigo que corres.

Ainda com falta de ar, o corpo a tremer e o rosto a doer-lhe, Tatiana sentou-se na borda do sofá e puxou-o para si. Não suportava vê-lo assim tão alterado.

- Não fiques zangado. – Segurando-lhe o rosto: - Por favor, não fiques zangado comigo.

Alexander afastou-lhes as mãos: - Ouves as bombas? Ouves ou és surda? Não vês que não há comida? - Claro que há – retorquiu serenamente, voltando a tocar-lhe. – Recebo

setecentos gramas por dia, mais para o almoço e o jantar no hospital. Estou muito bem. – Sorriu: - É melhor que no ano passado. E não me interessam as bombas.

- Tatiana... - Shura, não me mintas mais. O que te assusta não são os Alemães nem as

bombas. De que tens medo? Lá fora, as bombas assobiavam. Uma caiu perto. Tatiana puxou Alexander

para si: - Ouve. – Apertou-lhe a cabeça contra os seios. – Ouves o meu coração? Ele abraçou-a e ela deixou-se ficar, fechando os olhos. <<Meu Deus>>, rezou,

<<dai-me forças. Ele precisa muito de mim. Não me deixeis fraquejar>>. Afastando-o suavemente, encaminhou-se para a cómoda:

- Deixaste uma coisa em Lazarevo, Shura. Além de mim. Alexander levantou-se e sentou-se pesadamente no sofá. Tatiana rasgou a costura das calças e mostrou-lhe os cinco mil dólares: - Olha. Vim para te dar isto. – Fitou-o: - Vejo que só tiraste metade. Porquê? –

Calou-se. Os olhos de bronze pareciam dois charcos de dor: - Não vou falar com Inga do outro lado da porta... Desviaram o olhar um do outro. Tatiana bem via que estavam os dois

desfeitos. E quem ia juntar os cacos? Ela. Ela juntaria os cacos. Pousando o dinheiro na cómoda, encaminhou-se para ele, aninhou-se no seu colo e apertou-lhe a cabeça contra si.

- Não estamos em Lazarevo, não é, Shura? – sussurrou-lhe para o cabelo. Abraçando-a, Alexander respondeu-lhe com a voz embargada: - E alguma coisa se compara a Lazarevo, Tatia? Tatiana fez amor ajoelhando-se no seu colo, apertando conta ele o corpo

frágil, baixando-se sobre ele, desejando que ele a engolisse, a empalasse, a salvasse e a matasse, querendo tudo dele mas nada para si própria, querendo apenas devolver-lhe a vida. No fim, sem forças, ofegando, esvaindo-se e ardendo, estava novamente a chorar.

- Tatiasha – sussurrou ele, sem parar -, não chores. Que há de um homem pensar quando a mulher chora de cada vez que fazem amor?

Page 584: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

584

- Que é a única família da mulher. – Embalando-lhe a cabeça: - Que é a sua vida.

- Tal como ela é a dele. Mas não o vês chorar. – Desviara o rosto e ela não conseguia ver-lho.

Quando o ataque aéreo acabou, vestiam-se e saíram. - Está muito frio para andar na rua – disse Tatiana, encostando-se a ele. - Porque não puseste um carapuço? - Para poderes ver-me o cabelo. Sei que gostas. – Sorriu. Ele descalçou a luva e passou-lhe a mão pela cabeça: - Põe o cachecol. – Enrolou-lho à volta do pescoço. – Vais ser frio. - Estou bem. – Deu-lhe o braço: - Gosto do teu casaco novo. É grande, aprece

uma tenda. – Entristecendo, baixou o olhar. Não devia ter dito a palavra tenda, que fazia lembrar de Lazarevo. Havia palavras assim, ligadas a uma vida inteira. Fantasmas, vidas, êxtase e mágoa. Palavras tão simples... e que, no entanto, se cravavam na garganta. – Parece quentinho – acrescentou com sinceridade.

Alexander sorriu: - Na próxima semana, terei mais do que uma tenda. Vão dar-me um quarto no

quartel-general, apenas a cinco portas de distancia do Stepanov. O edifício tem aquecimento. Vou estar quente.

- Ainda bem. Tens cobertor? - O meu casaco é o meu cobertor, mais sim, tenho outro. Não te preocupes,

Tania. Estamos em guerra. Onde querer ir? - Para Lazarevo... contigo. – Sentiu-se incapaz de olhar. – Como não pode ser,

vamos aos Jardins de Verão. Ele suspirou pesadamente: - Então vamos lá. Caminharam em silêncio durante muito tempo. De braço dado com ele,

Tatiana encostou-lhe a cabeça à manga. Por fim, inspirou profundamente: - Fala comigo, Alexander – começou. – Diz-me o que se passa. Agora estamos

sozinhos. Temos alguma privacidade. Diz-me porque tiraste metade do dinheiro. El e ficou em silêncio. Ela pôs-se à escuta. Ainda nada. Pousou-lhe o rosto no

casaco de lã. Nada. Olhou a nesse lamacenta que tinha aos pés, o trólei que passou, o polícia que seguia montado a cavalo, o vidro partido por cima do qual saltaram, a luz vermelha do semáforo. Nada. Nada. Nada.

Suspirou. Porque seria tão difícil para ele? Mais difícil do que de costume. - Shura, porque não tiraste o dinheiro todo? - Porque deixei-te o que era meu – replicou lentamente. É todo teu. O dinheiro é todo teu. Que estás a dizer? Nada. - Alexander! Para que tirastes cinco mil dólares? Se vais fugir, precisas de

todo. Se não vais, não precisas de nenhum. Porque tirastes metade?

Page 585: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

585

Não houve resposta. Era como em Lazarevo. Tatiana perguntava, ele respondia-lhe de lábios cerrados e pensativo, e ela passava uma hora a tentar decifrar as entrelinhas. Lisiy Nos, Vyborg, Helsínquia, Estocolmo, Yuri Stepanov... palavras no meio das quais Alexander se escondia, sem dizer nada.

- Sabes que mais? – Exasperada, afastou-se dele. – Estou farta deste jogo. Na verdade, acabou-se. Ou tu me dizes tudo sem esconder nada, sem enigmas estúpidos que eu tento perceber e não consigo, ou então dá meia volta, pega nas tuas coisas e desaparece-me da vista. Vá. A escolha é tua. – Estacou perto do canal Fontanka, cruzou os braços e ficou à espera.

Alexander também pensou, mas não respondeu. - Estás a pensar? – exclamou ela, puxando-lhe o braço, tentando olhar-lhe

para além do rosto fechado. Lagou-o. Incapaz de esconder a angustia que sentia: - a voz embargou-se - ... não sou mais forte. Também fico indefesa contra ti. Por isso, com medo de que eu veja a verdade e a tua agonia, com medo de que eu veja que estás a despedir-te de mim, afasta-me pensando que se eu não vir, também não sinto. – Começou a chorar. <<Não vou lá muito bem>>, pensou. <<Onde está a minha força?>>

- Por favor, cala-te – murmurou Alexander sem olhar pra ela. - Mas sinto, Shura. – Limpou o rosto e agarrou-lhe a mão. Ele retirou-a. –

Chegaste aqui zangado, transtornado, porque pensavas que já me tinhas dito adeus para sempre em Lazarevo...

- Não estás zangado nem transtornado por isso. - Assim – continuou ela -, terás de te despedir de mim em Leninegrado, mas

na minha cara, sim? Viu-lhe os olhos atormentados. Deu um passo em frente. Ele recuou. Que valsa dançavam na manhã da

cidade! Mas o seu coração era forte. Havia de aguentar: - Eu sei, Alexander... pensas que não? Não tenho nada a fazer senão pensar

nas coisas que me dizes. Toda a tua vida soviética quiseste fugir para a América. A única coisa que te manteve vivo durante os anos todos que passaste no Exército, antes de mim, foi imaginares-te a regressar a casa. – Estendeu-lhe a mão. Ele tomou-a. – Acertei?

- Acertaste. Mas então conheci-te. Então conheci-te. <<Para, para.>>Oh, o verão passado, as noites brancas junto

ao Neva, os Jardins de Verão, o sol do Norte, o seu rosto sorridente. Tatiana examinou-lhe a cara destroçada. Queria falar. Onde estavam as palavras que dantes sabia? Onde estava, agora que precisava tanto delas?

Alexander abanou a cabeça: - Já é muito tarde pra mim. Quando meu pai decidiu abandonar a vida que

levávamos na América, condenou-nos a todos. Fui o primeiro a sabê-lo... já nessa altura A seguir minha mãe. O meu pai foi o terceiro, o último, mas o mais sentido. A

Page 586: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

586

minha mãe aliviava a sua dor culpando-o. Eu pensei que aliviaria a minha alistando-me e sendo jovem, mas a quem podia o pai apontar o dedo?

Tatiana aproximou-se e agarrou-lhe o casaco. Ele rodeou-a com os braços: - Quando te encontrei, durante aquelas duas horas e que estivemos juntos...

antes do Dimitri, antes da Dasha... pensei que ia endireitar a minha vida. – Sorriu com amargura: - Senti uma esperança que não consigo explicar nem compreender. – Deixou de sorrir. – Depois, a nossa vida soviética meteu-se de permeio. Viste que tentei afastar-me. Pensei: <<Não posso aproximar-me. Tenho de guardar distância.>> Tanto como depois de Luga. Vê como tentei depois de ido ver-te ao hospital. Tentei pôr distância entre nós depois de Santo Isaac e quando os Alemães fecharam o cerco a Leninegrado. – Interrompeu-se e abanou a cabeça: - Devia ter conseguido...

- Mas eu não queria – protestou ela em voz fraca. - Oh, Tania! Se ao menos não tivesse ido a Lazarevo... - Que estás a dizer? – ofegou. – O quê? Como podes lamentar... – Não acabou.

Como podia lamentar? Fitou-o, perplexa e da cor cinza. Alexander não reagiu. - Que grande esperança! Desde o dia em que te conheci que não faço senão

magoar-te e, o que é pior, arrastar-te na minha destruição. – Abanou tanto a cabeça que o boné caiu.

Ela apanhou-o, sacudiu a lama e devolveu-lho. - De que estás a falar? Magoar-me? Esquece. Alexander... ninguém me

obrigou a aceitar-te. – Interrompeu-se e franziu o sobrolho: - Que destruição? Não estou condenada – disse devagar, sem compreender. – Tenho sorte.

- És cega. - Então abre-me os olhos. – Como já fizeste antes. Aconchegou mais o

cachecol ao pescoço, desejando agasalhar-te, ter uma fogueira perto dela, estar em Lazarevo. Viu Alexander engolindo o seu medo, virando a cabeça e começando a caminhar ao longo do canal.

- Tirei os cinco mil dólares para dar ao Dimitri – explicou, sem olhar para ela. – Tenho andado a tentar convecê-lo a fugir sozinho...

Ela riu sem vontade: - Cala-te. – Abaou a cabeça: - Era o que eu desconfiava. Pensas que o homem

que se recusou a percorrer meio quilometro no gelo comigo vai sozinho a América? Francamente! – Pararam num semáforo mesmo à frente do Castelo doEngenheiro, transformado em hospital no inverno anterior e agora praticamente irreconhecível devido aos repetidos bombardeamentos. – O Dimitri nunca iria sozinho. Já te disse: é um covarde e um parasita. Tu és a coragem e o hospedeiro dele. Não tenhas duvidas: logo que perceber que não vais, também não irá. Se permanecer na União Soviética e, de repente, vir que não tem hipótese de fugir, irá direitinho ao meu novo amigo Mekhil da NKVD e tu serás imediatamente...

Page 587: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

587

Calou-se fitando Alexander, cuja expressão era de verdadeiro desânimo. Fez-se luz no seu espirito:

- Tu já sabes isto tudo. Sabes que ele nunca irá sem ti. Ele não respondeu. Recomeçaram a caminhar pela Ponte Fontanka, muito danificada pelos

bombardeamentos, passando por cima dos bocados de granito. - Mas então de que estás a falar? – Tocou-lhe ao de leve e ergueu o olhar para

o seu rosto, onde se estampava um medo incompreensível. Não era possível Alexander recear por si . Então por quem temia? – Não estás a pensar em mim... – Queriacontinuar, mas as palavras ficaram-lhe presas na garganta.

Os olhos abriram-se-lhe; o coração abriu-se-lhe. A verdade penetrou-a, mas não a verdade que conhecera com ele. A verdade

iluminando o terror. A verdade fazendo luz sobre os recantos hediondos de um quarto horrível, com a sua madeira apodrecida, argamassa partida e mobília ratada. Quando percebeu, quando viu...

Deu a volta e parou à frente dele, impedindo-o de avançar. Havia muitas coisas tornando-se claras naquele desolado sábado em Leninegrado. Alexander estava mesmo a pensar nela. Só nela.

- Diz-me... – pediu em voz fraca - ...que fazem às mulheres dos oficiais do Exército Vermelho presos por suspeita de alta traição? Por serem agentes estrangeiros? Que fazem às mulheres dos americanos que saltaram do comboio a caminho da prisão?

Ele não disse nada e fechou os olhos. De repente... a chicotada. Ele tinha os olhos fechados. Ela, abertos. - Oh, não, Shura... Que fazem às mulheres dos desertores? Continuou calado. Tentou seguir em frente, mas ele impediu-o pousando-lhe

as mãos no peito: - Não me vires a cara. Responda-me: que faz o Comissariado dos Assuntos

Internos às mulheres dos soldados que desertam, dos soldados que fogem para os atoleiros das florestas da Finlândia? Que faz às mulheres dos soldados que desertam, dos soldados que fogem para os atoleiros da Finlândia? Que faz às mulheres soviéticas que ficam para trás?

Não respondeu. - Shura! – gritou. – Que vai a NKVD fazer comigo? O mesmo que às mulheres

dos MIA1 ou dos POW? Como lhe chamou Estaline? Proteção? Que quer dizer o quê?

Ainda nada. - Shura! – Não o deixava sair da ponte bombardeada. – Quer dizer

fuzilamento? É? – Ofegava. Fitou-o, incrédula, inspirando o ar frio e húmido, com o nariz a doer, e pensou

no rio Kama, na água gelada em que todas as manhãs mergulhavam os corpos onde esperava que ela não espreitasse. Em Lazarevo, os olhos dela só viam o sol nascendo

Page 588: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

588

sobre o Kama. Foi só ali, na lúgubre Leninegrado, que tudo se revelou, as trevas e a luz, o dia e a noite.

- Estás a dizer-me que não tenho saída, quer tu fiques que vás? Virando o rosto destroçado, Alexander permaneceu em silêncio. O cachecol caiu-lhe da cabeça. Apanhou-o com as mãos trôpegas: - Não admira que não pudesses dizer-me nada. Como é possível eu não ter

precebido? – sussurrou. - Como? Porque nunca pensas em ti. – De espingarda na mão, mudou o peso

de um pé para o outro sem olhar para ela. – É por isso que queria que ficasse em Lazarevo. Queria-te o mais longe possível daqui... de mim.

Ela estremeceu e meteu as mãos nos bolsos do casaco. - Porque pensaste que em Lazarevo eu ficaria segura? – Abanando a cabeça

demoraria a receber a ordem para eu me apresentas através da linha do telégrafo da Lend-Lease?

- Por isso é que eu gostava tanto de Lazarevo. – Sem olhar para ela: - O soviete da aldeia não tem telégrafo.

- É por isso que gostava de Lazarevo? Soltando um bafo de vapor, Alexander baixou a cabeça para o peito, com os

olhos quentes arrefecendo. Encontrava-se de costas para o muro de pedra: - Percebes agora? Compreendes agora? Já tens os olhos abertos? - Percebo. – Tudo. – Compreendo. – Tudo. – Tenho os olhos abertos. - Entendes que só temos uma saída? Semicerrando os olhos, Tatiana calou-se, recuo, tropeçou no cachecol e caiu

na ponte bombardeada e deserta, sob o céu liquido. Alexander ajudou-a a levantar-se e depois largou-a. A jovem bem via que ele não podia continuar a tocar-lhe. E, por um momento, também não conseguiu fazê-lo. Mas foi só um momento.

1Missing in Action (Desaparecido em Combate). (N. da T.) Negro ao princípio, mas depois iluminando-se de tal forma que ficou sem ar.

De repente, fez-se luz na escuridão! Viu-a, soube o que era e voou para ela. Antes de abrir a boca para falar, sentiu um enorme alívio, como se tanto ela como ele não tivessem mais peso.

Fitou Alexander com um olhar cristalino. Ele observou-a, perplexo. Tatiana estendeu-lhe os braços: - Shura, olha, olha. Ele obedeceu. - Tudo à tua volta é escuridão. Mas eis-me aqui à tua frente. Contemplou-a. - Estás a ver-me? — perguntou em voz fraca. - Estou. — A sua voz era igualmente fraca. Passou por cima do granito partido e aproximou-se dele. Alexander deixou- -

se cair ao chão.

Page 589: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

589

Tatiana examinou-o por um momento e ajoelhou-se. Ele escondeu o rosto nas mãos a tremer.

- Querido, soldado, marido. Oh, meu Deus, Shura, não tenhas medo. Que¬res ouvir-me? Olha para mim.

Ele não o fez. - Shura - começou ela, cerrando os punhos para manter a compostura. «Para.

Respira. Não percas a força.» — Pensas que a tua morte é a nossa única saída? Lem¬bras-te do que te disse em Lazarevo? Lembras-te de mim em Lazarevo? Não suporto pensar na tua morte. E farei tudo na minha vida patética e impotente para impedir que isso aconteça. Não tens qualquer hipótese aqui na União Sovié¬tica. Nenhuma. Ou os Alemães ou os comunistas matar-te-ão. E o seu único obje¬tivo. E se morreres na guerra, passarei o resto da vida a comer cogumelos envenenados na União Soviética, sozinha e sem ti! E sabes isso. O teu maior sacri¬fício será dar-me uma vida nas trevas. — «Vá, Tania, sê forte.» - Querias que eu te libertasse? Que o meu rosto fiel te largasse? — A voz embargou-se-lhe: - Aqui estou! Eis o meu rosto! — Gostaria que ele a olhasse. — Vai, Alexander. Vai! Foge e não olhes para trás. - «Para. Respira. Respira de novo.» Nem sequer conseguia limpar os olhos. «Está bem, chorei, mas acho que fiz bem», pensou. «Além disso, ele não estava a olhar para mim.»

Baixando as mãos do rosto, Alexander observou-a encolerizado antes de res¬ponder:

- Perdeste o juízo, Tatiana? — Falando devagar: — Queres deixar de ser ridí¬cula? Fazes-me esse favor?

- Shura, nunca pensei que podia amar alguém tanto como te amo a ti - segredou ela. - Fá-lo por mim. Vai! Volta para casa e não penses mais em mim.

Cala-te. Não estás a falar a sério. - O quê? — exclamou, ainda de joelhos. — Que parte pensas que não é a

sério? Ter-te vivo na America ou morto na União Soviética? Achas que não é a sério? É a única saída, Shura, e tu sabes. — Fez uma pausa. Ele continuou calado. - Sei o

Que faria no teu lugar. Alexander abanou a cabeça: - Que farias? Deixar-me-ias entregue à minha sorte? Abandonar-me-ias no

apartamento da Quinto Soviete, a viver com a Inga e o Stanislav, órfão e sozinho? Tatiana mordeu o lábio. Era ou o amor ou a verdade. O amor venceu. Reuniu forças: - Sim. Entre ti e a América, escolheria a América - respondeu num fiozinho de

voz. Alexander enterneceu-se: - Anda cá, sua mentirosa. - Puxou-a para si. O gelo estava a formar-se no canal Fontanka, precisamente onde se

encon¬travam abraçados, encostados aos parapeitos de granito.

Page 590: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

590

- Shura, ouve. — O peito dele abafava-lhe a voz. - Se temos de enfrentar esta escolha impossível, se de qualquer maneira não tenho salvação, então imploro-te, imploro-te...

- Tania! Meu Deus, não quero ouvir mais nada! - gritou, empurrando-a e pondo-se em pé de um salto, com a espingarda na mão.

Ainda no gelo, olhou-o com uma expressão de súplica: - Tu podes salvar-te, Alexander Barrington. Tu. O meu marido. O único filho do

teu pai. O único filho da tua mãe. - Estendeu-lhe as mãos numa prece: - Sou a Parasha — murmurou. - E sou o preço do resto da tua vida. Por favor!

Houve um tempo em que me guardei para ti. Olha, estou de joelhos. - Chorava. - Por favor, Shura. Salva a vida por mim. - Tatiana! — Alexander puxou-a com tanta força que a levantou do chão. Ela

agarrou-se a ele. — Não vais ser o preço do resto da minha vida! - Pousou-a. - Para com isso.

Ela abanou a cabeça no peito dele: - Não paro. - Ai paras, paras. — Apertou-a contra si. - Preferes que pereçamos os dois? — gritou. — É isso que queres? Preferes o

sofrimento e o sacrifício para nada? - Abanando-o: - Enlouqueceste? Tens de ir! Irás e construirás uma vida nova.

Ele empurrou-a e afastou-se uns passos: Se não te calas, juro que te deixo aqui e que nunca mais volto! - Apontou para

o fundo da rua. Tatiana assentiu e apontou também: - É exatamente o que eu quero. Vai. Mas para longe, Shura - sussurrou. - Para longe. - Oh, por amor de Deus! - berrou ele, batendo com a espingarda no gelo. - Em que mundo vives? Pensas que podes chegar aqui a voar com as tuas

asinhas e dizer: «Pronto, Shura. Podes ir»? Achas que eu vou? Que consigo deixar-te? Como posso fazê-lo? Se não fui capaz de abandonar um desconhecido morrendo na floresta, como posso abandonar-te a ti?

- Não sei como. — Cruzou os braços: - Mas é melhor arranjares maneira, grandalhão.

Calaram-se. Que fazer? Observou-o à distância. - Não vês como é impossível o que estás a dizer? Vês ou perdeste

completa¬mente o juízo? Bem via que era impossível: - Perdi completamente o juízo. Mas tens de ir. - Tania, não vou a lado nenhum sem ti... só para enfrentar o pelotão de

fuzilamento. - Cala-te. Tens de ir. - Se não paras com isso... — berrou ele.

Page 591: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

591

- Alexander! — gritou Tatiana. — Se não paras tu, vou já para a Quinto Soviete e enforco-me por cima da banheira para poderes fugir livre de mim! Enforco-me no domingo, cinco segundos depois de tu partires, percebes?

Ficaram especados a olhar um para o outro durante um momento silencioso, emudecido.

Tatiana fitava Alexander. Alexander fitava Tatiana. Então ele abriu os braços e ela correu na sua direção; levantou-a do chão,

abra¬çou-a e não a largou. Na Ponte Fontanka, em silêncio, enroscaram-se um no outro.

Por fim, Alexander falou-lhe junto ao pescoço: - Vamos fazer um acordo, Tatiasha: prometo-te que farei os possíveis para

continuar vivo, se me prometeres que não te aproximas da banheira. - Combinado. — Perscrutou-lhe o rosto: — Soldado, detesto chamar-te a

aten¬ção para o que é óbvio numa altura destas — acrescentou, agarrada a ele. - No entanto... tenho de te dizer que estou completamente dentro da razão. É tudo.

- Não, estás completamente enganada. É tudo. Disse-te que há coisas que valem um grande sacrifício. Mas esta não é uma delas.

- Não, Alexander. O que me disseste, as tuas palavras exatas foram que todas as grandes coisas que vale a pena ter exigem grandes sacrifícios que vale a pena fazer.

Tania, que pretendes? Por um segundo, só por uma fração de segundo, tenta sair do mundo em que vives e entra no meu, sim? E depois diz-me que vida poderia eu construir para mim na América sabendo que te tinha deixado na União Soviética à morte ou ao abandono. — Abanando a cabeça: — O Cavaleiro de Bronze havia de me perseguir toda a noite até à loucura.

- Pois, e esse seria o preço da luz em lugar das trevas. - Não pago esse preço. - Seja como for, o meu destino está traçado - replicou Tatiana sem acrimônia

nem amargura —, mas tu tens outra saída, agora, enquanto és jovem. Beija-me a mão e parte com Deus, porque estás destinado a grandes coisas. - Inspirou: - És o melhor dos homens. —Tinha os braços em volta do seu pescoço e os pés levan¬tados do chão.

- Oh, claro! — Cingiu-a a si. — Fujo para a América e abandono a minha mulher. Eu não tenho preço.

- És impossível. - Eu? — sussurrou, pousando-a. - Anda, vamos caminhar um bocadinho para

não gelarmos. - Ela agarrou-se a ele e calcorrearam lentamente a neve pisada de Fontanka, até ao Campo de Marte. Atravessaram em silêncio o canal Moika e entraram nos Jardins de Verão.

Tatiana abriu a boca para falar, mas Alexander abanou a cabeça:

Page 592: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

592

- Não digas nem uma palavra. Que nos deu para virmos aqui? Vamos. Depressa.

De cabeça baixa e abraçados, percorreram rapidamente o caminho entre as árvores altas e despidas, passando pelos bancos vazios e pela estátua de

Saturno devorando o próprio filho. Tatiana recordou que a última vez que tinham estado ali, no calor, desejara muito que ele lhe tocasse. Agora, ao frio, tocando-lhe, sentia que não merecia a bênção de uma vida na qual era amada por um homem como Alexander.

- Que te disse na altura? Que eram os melhores tempos - comentou ele. - E tinha razão. - Não, não tinhas — replicou, incapaz de o olhar. - Os Jardins de Verão não

foram os melhores tempos. Às cavalitas nos seus ombros nus, esperava que a atirasse para o Kama, mas

ele não se mexia. - Shura, de que estás à espera? — Ficou na mesma. - Shura! - Não penses que sais daqui. Que homem ia atirar para a água uma mulher

sentada nua em volta do seu pescoço? - Um homem com cócegas!—gritou ela. Saíram pelos portões de ferro dourado no cais do Neva e caminharam em

silêncio para nascente do rio. Sentindo-se fraca, Tatiana deu-lhe o braço e fe-lo abrandar o passo:

Já não consigo andar nas nossas ruas contigo - observou em voz rouca. No cais, viraram para o Parque Tauride. Passaram pelo seu banco da Ulitsa

Saltykov-Schedrin, avançaram ao longo da vedação de ferro forjado, pararam, entreolharam-se e deram meia-volta. Sentaram-se. Ao fim de algum tempo, Tatiana levantou-se, instalou-se no seu colo e encostou a cabeça à dele:

- Assim está melhor. - Está. Está melhor. Ficaram sentados em silêncio no seu banco, ao frio. O corpo inteiro de Tatiana

debatia-se com o desespero. - Porquê? - sussurrou-lhe para a boca. - Porque não podemos ter ao menos o

que têm a Inga e o Stanislav? Na União Soviética, sim, mas juntos há vinte anos... ainda juntos.

- Porque a Inga e o Stanislav são espiões do Partido. Porque a Inga e o Sta¬nislav venderam as almas por um apartamento de dois quartos, que agora não têm. — Depois de uma pausa: — Eu e tu queremos mais desta vida soviética.

- Eu não quero nada. Só a ti. - A mim e água quente, eletricidade, uma casinha no deserto e um Estado que

não te peça a vida em troca destas coisas. - Não. — Abanou a cabeça. — Só a ti. Afastando-lhe o cabelo debaixo do cachecol, Alexander examinou-lhe o rosto: - E um Estado que não te peça a vida em troca de mim.

Page 593: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

593

- O Estado tem de pedir alguma coisa — suspirou. — Afinal de contas, pro¬tege-nos de Hider.

- Está bem, mas quem vai proteger-nos a ti e a mim do Estado? Tatiana abraçou-o. De uma maneira ou de outra, tinha de ajudar Alexander. Mas como? Como ajudá-lo? Como salvá-lo? - Não percebes? Vivemos em estado de guerra. O comunismo é uma guerra

contra ti e contra mim. E por isso que queria que ficasses em Lazarevo. Tentava esconder a minha obra de arte até a guerra acabar.

- Pois escondeste-a no lugar errado. Tu próprio me disseste que não há luga¬res seguros na União Soviética. - Calou-se. — Além disso, esta guerra vai ser longa. Ainda demoraremos tempo a reconstruir as nossas almas.

Apertando-a contra si, Alexander murmurou: - Tenho de deixar de falar contigo. Nunca te esqueces do que te digo? - Nem de uma palavra. Todos os dias tenho medo de que essa seja a única

coisa que me reste de ti. Ficaram sentados em silêncio. - Alexander — animou-se ela —, queres ouvir uma anedota? - Estou mortinho por isso. Quando nos casarmos, estarei ao teu lado para partilhar os teus problemas e

tristezas. - Que problemas? Não tenho problemas — comentou Alexander. - Eu disse quando nos casarmos - replicou ela, com os olhos lacrimosos a

cintilar - Tens de admitir que tu a morreres na frente para eu poder viver na União Soviética e eu a enforcar-me por cima de uma banheira para tu poderes viver na América é uma história irônica muito bem contada, não achas?

- Hum. Mas como não deixamos família, não haverá ninguém para a contar. - Isso é verdade. Mas mesmo assim... parece uma tragédia grega, não é? -

Sorriu e apertou-lhe o rosto. Ele abanou a cabeça: - Como fazes para encontrar sempre consolação? Como? - É que fui consolada pelo mestre. - Beijou-lhe a testa. Alexander fez estalar a língua: - Que grande mestre! Nem sequer consegui que a rãzinha da minha mulher

ficasse em Lazarevo! Tatiana observou-o olhando para ela: - O que foi, marido? Em que estás a pensar? -Tania... tu e eu só tivemos um momento... Um único momento... um

instante, em que uma outra vida ainda teria sido possível. - Beijou-lhe os lábios. - Sabes do que estou a falar? Quando ergueu o olhar, viu um soldado observando-a do outro lado da rua. - Sei — segredou. - Lamentas que eu tenha atravessado?

Page 594: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

594

- Não, Shura. Antes de te conhecer, não me imaginava a viver sem os meus pais, avós, a Dasha e o Pasha. Nem me passava pela cabeça. - Sorriu: - Não sonhava com ninguém como tu nem quando era criança em Luga. Num instante, num frêmito, mostraste-me uma vida belíssima... - Perscrutou-lhe o olhar. - E eu? Que te mostrei eu?

- Que Deus existe - murmurou ele. - Pois existe! - exclamou Tatiana. - E eu senti a tua necessidade de mim

atra¬vés das estepes. Estou aqui. Havemos de resolver isto. - Apertou-o. -Vais ver. Tu e eu havemos de resolver isto.

- Como? E agora? — perguntou Alexander. Inspirando o ar gelado, falou tentando parecer o mais animada possível: - Como, não sei. E agora? Agora vamos às cegas para a floresta densa, do

outro lado da qual nos espera o resto da nossa vida nesta terra, talvez curto mas oh!, muito feliz. Vai para a tua guerra, capitão, continua vivo como me prometeste e vê se afastas o Dimitri...

-Podia matá-lo, Tania. Já pensei nisso. - A sangue frio? Sei que não serias capaz. E se o fizesses, quanto tempo mais

pensas que Deus olharia por ti na guerra e por mim na União Soviética? - Calou-se, tentando dominar os sentimentos. Claro que também já pensara nisso... mas des¬confiava que não era o Senhor que mantinha Dimitri vivo.

- E tu? Que vais fazer agora? Suponho que não consideras a hipótese de voltar para Lazarevo.

Ela sorriu e abanou a cabeça: - Não te preocupes comigo. Já devias saber que, tendo sobrevivido ao inverno

passado em Leninegrado, estou pronta para o pior. - Passou a ponta da luva pelas suas faces, pensando: «E também para o melhor.» — E embora às vezes me pergunte o que aconteceria se precisasse que Leninegrado me facilitasse o caminho... não interessa. Estou aqui para o que der e vier. Vim para ficar. E estou pronta para tudo. - Abraçou-o, com o coração a palpitar: — Lamentas ter atravessado a rua, soldado?

Ele tomou-lhe a mão nas suas: -Tania, fiquei enfeitiçado desde a primeira vez que te vi. A guerra começara, e

eu levava a minha vida de devassidão. Estava tudo um caos, com as pessoas cor¬rendo, fechando contas, levantando dinheiro, açambarcando comida, comprando a Gostiny Dvor em peso, oferecendo-se para o Exército, mandando os filhos para os acampamentos... - Interrompeu-se. — E no meio da confusão, tu! - segredou apaixonadamente. - Sentada sozinha neste banco, impossivelmente jovem, tão loura e bonita que até fiquei sem ar, comias o gelado com tanto abandono, prazer e alegria, que nem acreditei nos meus olhos. Como se não houvesse mais nada no mundo naquele domingo de verão. Como se dissesses: «Pensa neste momento e não terás de procurar muito, se algum dia precisares de força e eu não estiver aqui.» Tu, com as tuas sandálias vermelhas de salto alto e o

Page 595: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

595

teu vestido sublime, comendo gelado antes da guerra, antes de ires sabe Deus onde procurar sabe Deus o quê, mas nunca tendo dúvidas de que o encontrarias... Foi por isso que atravessei a rua. Porque acreditei que o encontrarias. Acreditei em ti.

Alexander enxugou-lhe as lágrimas dos olhos, descalçou-lhe a luva e pousou- lhe os lábios quentes na mão.

- Mas nesse dia teria voltado de mãos vazias para casa, se não fosses tu. Ele abanou a cabeça: - Não. Não começaste comigo. Eu fui ter contigo porque tu já te tinhas a ti.

Sabes o que te trago? - O quê? - Oferendas — disse, com a voz estrangulada pela comoção. Alexander e Tatiana ficaram sentados durante muito tempo, com os rostos

molhados e frios encostados um ao outro, ele abraçando-a, ela embalando-lhe a cabeça, enquanto o vento arrancava das árvores as últimas folhas mortas, sob o céu chuvoso e cinzento de novembro.

Passou um elétrico. Três pessoas desceram a rua ao fundo da qual se erguia o Monteiro de Smolny, escondido debaixo de andaimes e camuflados. Junto à carapaça de granito, rio estava gelado e imóvel. Para lá dos Jardins de Verão, o Campo de Marte estendia-se sob uma camada lisa de neve escurecida.

Page 596: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

596

UMA JANELA PARA O OCIDENTE

1

Alexander partiu. Tatiana escrevia-lhe todos os dias, até que ficou sem tinta. Dirigiu-se então ao outro lado da rua, ao apartamento de Vania Rechnikov,

que às vezes emprestava tinta. Vania estava morto à escrivaninha. Pousara a cabeça na carta que escrevia e morrera. Não conseguiu arrancar-lhe a caneta dos dedos inteiriçados.

Ia todos os dias ao correio, na esperança de ter notícias de Alexander. Não suportava a espera entre uma carta e outra. Ele escrevia-lhe com a freqüência de um curso de água, mas este chegava-lhe na forma de inundação e não de um gotejar constante. Maldito correio!

Quando não estava a trabalhar, ficava no quarto a estudar inglês. Durante os ataques aéreos, lia o livro de receitas da mãe. Começou a cozinhar para Inga, doente e só.

Uma tarde, o chefe do correio não quis entregar-lhe a correspondência de Alexander, mas disse-lhe que lhe daria não só as cartas como também um saco de batatas, se ela lhe desse outra coisa em troca.

Escreveu-lhe a contar o sucedido, com medo de que nenhuma das cartas dele lhe chegassem mais às mãos.

«Tania: Vai ao quartel e pede para falar com o tenente Oleg Kashnikov. Penso que

está de serviço das oito às seis. Tem três balas alojadas na perna e não pode combater. Foi ele que me ajudou a desenterrar-te em Luga. Pede-lhe comida. Garanto-te que não te pedirá nada em troca. Oh, Tatia!

Dá-lhe também as tuas cartas, que ele traz-mas num dia. Por favor, não vás ao correio.

Dizes que a Inga está sozinha? E o Stanislav? Porque continuas a trabalhar tanto? O inverno está a ficar mais rigoroso.

Page 597: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

597

É uma consolação imensa saber que não estás muito longe de mim. Não vou dizer-te que fizeste bem em regressar a Leninegrado, mas... Já te disse que nos prometeram dez dias de licença se rompermos o bloqueio?

Dez dias, Tania! Gostaria que até lá tivesses onde te aconchegar. Mas espera. Não te preocupes comigo. De momento, não fazemos nada a não ser reunir

tropas e munições para o nosso assalto ao Neva, no princípio do ano que vem. Queres saber uma novidade? Nem sequer sei o que fiz para a merecer, mas

recebi não só outra medalha como também fui promovido. Se calhar o Dimitri tem razão: não sei como, mas até uma derrota consigo transformar em vitória.

Estamos a experimentar o gelo no Neva, que ainda não parece muito sólido. Aguenta um homem, uma espingarda e talvez um Katyusha, mas não cederá com um tanque?

Pensamos que sim. Depois que não. A seguir que sim outra vez. Um general engenheiro que desenhou o metro de Leninegrado teve a idéia de meter o tanque num encaixe de madeira, uma espécie de carris feitos de tábuas, onde o peso pudesse ser distribuído por igual. Os tanques e as outras viaturas blindadas atravessariam com a ajuda deste encaixe. Concordamos.

Construímos o encaixe. Quem iria conduzir o tanque para ver se resultava? Ofereci-me. No dia seguinte, o meu comandante não ficou nada satisfeito ao ver os cinco

generais aparecendo para assistir à experiência, incluindo o novo amiguinho do Dimitri, e fez-me sinal para que não estragasse o espetáculo.

Meti-me então no nosso tanque melhor e mais pesado, o KV-1... lembras-te dele, Tatia? Conduzi este monstro no gelo, com o meu comandante caminhando ao lado e os cinco generais mesmo atrás de nós, a dizerem: «Muito bem, muito bem, muito bem.»

Avancei cento e cinqüenta metros e o gelo começou a rachar. Ouvi-o e pensei: «Ai!» Os generais berraram ao meu comandante: «Fuja, fuja!»

Ele correu, os outros correram e o tanque abriu um buraco no gelo e começou a afundar como um... olha, como um tanque!

E eu com ele. Como o torreão estava aberto, nadei para fora. O comandante ajudou-me a sair e deu-me um copo de vodca para me

aquecer. Um dos generais disse: «Condecorem este homem com a ordem da Estrela

Vermelha.» Também fui promovido a major. O Marazov afirma que ando insuportável e que penso que toda a gente devia

dar-me ouvidos só a mim. Achas que sou assim? Alexander»

Page 598: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

598

«Querido MAJOR Belov! Sim, major, és assim. Estou muito orgulhosa de ti. Qualquer dia és general. Obrigada por me deixares dar as cartas ao Oleg, que é um homem muito

simpático e educado. Ontem achei muita piada porque deu-me uns ovos desidratados aos quais eu não sabia o que fazer. Juntei-lhes água. São uma espécie de... oh, não sei! Fritei-os sem óleo no fogareiro do Slavin e comi- -os. Pareciam borracha.

Mas o Slavin gostou e disse que o czar Nicolau os teria apreciado em Sverdlovsk. Às vezes não sei o que pensar do nosso Slavin maluco.

Alexander... eu tenho onde me aconchegar. Onde acordo e adormeço, estou em paz e sou amada: nos teus braços.

Tatiana»

Page 599: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

599

2

Em dezembro, a Cruz Vermelha Internacional chegou ao Hospital Grechesky. Restavam poucos médicos em Leninegrado. Dos três mil e quinhentos que havia antes da guerra, tinham ficado apenas dois mil, e o número de doentes inter¬nados nos vários hospitais da cidade atingia os duzentos e cinqüenta mil.

Tatiana conheceu o doutor Matthew Sayers quando estava a lavar a ferida da garganta de um jovem cabo.

Quando ele entrou, e ainda antes de abrir a boca, desconfiou logo que era americano. Antes do mais, porque cheirava a lavado. Era magro, baixo, louro -escuro e tinha a cabeça um tanto grande para o resto do corpo, mas irradiava uma confiança que só vira em Alexander.

O médico consultou a ficha, olhou para o doente, fitou-a de relance, obser¬vou novamente o paciente, fez estalar a língua, abanou a cabeça, pôs os olhos em alvo e disse em inglês:

- «Não me parece muito bem.» Embora o compreendesse, Tatiana lembrou-se do aviso de Alexander e

per¬maneceu calada. Ele então repetiu o que dissera num russo onde a pronúncia inglesa era

evidente. Tatiana assentiu: - Mas acho que vai ficar bom. Já vi pior. Ele soltou uma bela gargalhada americana: - Aposto que sim, aposto que sim. — Aproximando-se dela e estendendo-lhe a

mão: — Sou da Cruz Vermelha. Doutor Matthew Sayers. Consegue dizer Sayers? - Sayers - repetiu ela na perfeição. - Muito bem! Como se diz Matthew em russo? - Matvei. Ele largou-lhe a mão: - Matvei. Gosta? - Gosto mais de Matthew — respondeu ela, virando-se de novo para o

doente. Não se enganara quanto ao médico, que era competente e simpático e que melhorou imediatamente as terríveis condições do hospital, trazendo milagres com ele: penicilina, morfina e plasma. Também não se enganara quanto ao doente, que ficou bom.

Page 600: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

600

3

«Querida Tania: Não tenho notícias tuas. Que andas a fazer? Está tudo bem? O Oleg disse-me

que já há uns dias que não te vê. Não queria nada andar preocupado também contigo. Já tenho problemas que cheguem nas mãos.

Que, por falar nisso, estão melhores. Escreve-me imediatamente. E pouco me importa se as mãos te caíram. Uma

vez perdoei-te por não me teres escrito. Não sei se conseguirei voltar a ter tanta caridade.

Como sabes, é quase chegada a hora. Preciso dos teus conselhos. Vamos mandar à frente uma força de reconhecimento de seiscentos homens. Na verdade, é mais do que isso: trata-se de um ataque furtivo, durante o qual ficaremos a observar o tipo de defesas dos Alemães. Se as coisas correrem bem, avançaremos.

Preciso de decidir que batalhão vou mandar. Tens alguma idéia? Alexander PS - Não me contaste o que aconteceu ao Stanislav.»

«Querido Shura: Não mandes o teu amigo Marazov. É possível enviares unidades de abastecimento? Ah, era só uma piada de mau

gosto. Por falar nisso, não devemos esquecer que o nosso honrado Alexander Pushkin

desafiou o barão George d’Anthes para um duelo e não viveu para escrever um poema sobre ele. Por isso, em lugar de tentarmos vingar-nos, vamos apenas manter à distância aqueles que podem fazer-nos mal, está bem?

Eu estou bem. Ando muito ocupada no hospital. Quase nunca estou em casa. Também ninguém precisa de mim lá. Shura, querido, não te preocupes comigo. Estou aqui e espero impacientemente o dia em que te verei outra vez. É só o que faço, Alexander: espero por ti.

Está escuro de manhã à noite. Só há uma hora de luz à tarde. Como o meu sol é pensar em ti, tenho uns dias perpetuamente claros. E quentes.

Tatiana PS — O que aconteceu ao Stanislav? Aconteceu-lhe a União Soviética.»

Page 601: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

601

«Querida Tania: Depois de O Cavaleiro de Bronze, Pushkin nunca mais precisou de escrever

nada... e não o fez, pois morreu muito jovem. Tens razão: as pessoas íntegras nem sempre forjam um caminho para a glória. Mas muitas vezes fazem-no.

Não me interessa que andes muito ocupada. Tens de me escrever mais do que umas linhas por semana.

Alexander PS — E querias tu ter o que a Inga e o Stanislav têm.»

«Minha querida Tatiana: Como passaste o fim do ano? Espero que tenhas comido bem. Tens ido ver o

Oleg? Não estou nada satisfeito. Passei o fim do ano na tenda da messe com várias

pessoas, nenhuma das quais eras tu. Tenho saudades. As vezes sonho com uma vida na qual possamos brindar juntos no fim do ano. Bebemos vodca e fumamos muito. Fizemos votos para que 1943 seja melhor do que 1942.

Eu também o desejei, mas pensei no verão de 1942. Alexander PS — Perdemos todos os seiscentos homens. Não mandei o Tolya, que diz que

há de agradecer-me quando a guerra acabar. PPS — Onde raio te meteste? Há dez dias que não sei de ti. Não voltaste para

Lazarevo logo agora, que finalmente me habituei à tua força a apenas setenta quilômetros de distância, pois não? Por favor, escreve-me nos próxi¬mos dias. Já sabes que vamos avançar e que não regressaremos até a frente de Leninegrado e a de Volkhov apertarem as mãos. Preciso de saber de ti. Preciso de uma palavra tua. Não me deixes partir para o gelo sem notícias tuas, Tatiana.»

«Querido Shura! Estou aqui, estou aqui! Não me sentes, soldado? Passei o fim do ano no hospital, e quero que saibas que todos os dias brindo a

nós. Nem sei quantas horas seguidas trabalho, quantas noites durmo no hos¬pital

e nem ponho os pés em casa. Shura! Logo que regressares, tens de vir imediatamente ver-me. Para além das

razões óbvias, tenho uma coisa espantosa, maravilhosa, fantástica para te contar... e depressa. Querias uma palavra minha? Ei-la; ESPERANÇA.

Tua Tania»

Page 602: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

602

EM BATALHAS LENDARIAS 1

Alexander consultou o relógio. Era a manhã do dia 12 de janeiro de 1943 e a Batalha de Leninegrado ia começar. Não haveria mais tentativas. Por ordem do camarada Estaline, iam romper o bloqueio alemão e não regressariam até o fazerem.

Passara os últimos três dias e noites no bunker de madeira das margens do Neva, juntamente com Marazov e seis cabos. As suas portas, o acampamento de artilharia escondia dois morteiros de carregar pela culatra de 120 milímetros, dois morteiros portáteis de carregar pela boca de 81 milímetros, uma metralhadora antiaérea Zenith, um lança-foguetes Katyusha e duas metralhadoras portáteis de 76 milímetros. Na manhã do ataque, Alexander não só estava pronto a combater como até teria lutado com Marazov, se isso significasse sair da prisão que era o bunker. Passara ali setenta e duas horas, mas ao fim de seis já estava farto de jogar às cartas, fumar, falar da guerra, contar anedotas e dormir. Pensou na última carta de Tatiana. Que quereria ela dizer ao escrever «ESPERANÇA»? Como iria ajudá-lo? Era evidente que não podia contar na carta, mas gostaria que ela não lhe ateasse a imaginação numa altura em que não sabia quando poderia estar com ela.

Precisava de estar com ela. Envergando o camuflado branco, espreitou para lá do acampamento. O rio

estava da cor dele. A margem sul mal se via à luz cinzenta. Encontrava-se na margem norte do Neva, a oeste de Shlisselburg. A sua unidade de artilharia protegia o flanco mais afastado da travessia do rio, e também o mais perigoso: os Alemães estavam muito bem entrincheirados e defendidos em Shlisselburg. De onde se encontrava, via a fortaleza Oreshek a um quilômetro de distância. Umas centenas de metros antes de Oreshek jaziam os corpos dos seiscentos homens que seis dias antes tinham falhado a tentativa de fazer um ataque-surpresa. Alexander gostaria de saber se haviam fracassado com glória ou em vão. Atravessando o gelo com coragem e sem auxílio, tinham sido abatidos um a um. «A história recordá-los-á? », pensou, desviando o olhar.

Estava de serviço à antiaérea. Marazov dispararia os foguetes da Katyusha. Sabia que seria agora. Sentia-o. Romperiam o bloqueio ou morreriam. O 67.° Exército ia assaltar o rio ao longo de oito quilômetros, fosse a que preço fosse. A es¬tratégia do ataque era cerrar fileiras em Volkhov com o 2.° Exército de

Page 603: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

603

Meretskov, que ao mesmo tempo atacava a retaguarda do Grupo Exército Norte de Manstein. O plano era atravessar o rio com quatro divisões de fuzileiros e alguns tanques leves. Duas horas mais tarde, seguir-se-iam mais três divisões de fuzileiros com tanques pesados e médios, incluindo seis homens sob o comando imediato de Alexander, que permaneceria no Neva atrás da Zenith e que avançaria com a terceira vaga e mais um pelotão fortemente armado, comandando um T-34, um tanque médio que tinha probabilidades de atravessar o rio sem se afundar.

Ainda não eram nove horas e o sol mal nascera. O céu da manhã tinha uma cor carregada de alfazema.

- Major, o teu telefone está a funcionar? - perguntou Marazov. - Apagou o cigarro e aproximou-se de Alexander.

- Está, tenente. Volta para o teu posto. - Sorriu. Marazov devolveu-lhe o sorriso.

- Quantos quilômetros de fio telefônico exigiu Estaline aos Americanos? - tomou Marazov.

- Cem mil. — Alexander deu a última passa no cigarro. - E o teu telefone ainda não funciona. - Tenente! Marazov fez-lhe a continência: - Estou pronto, meu major. - Dirigiu-se à Katyusha: - Já estou pronto há muito

tempo. Cem mil quilômetros é um bocado de mais, não te parece? Alexander atirou a ponta do cigarro para a neve, pensando se teria tempo

para acender outro: - Nem por sombras. Ainda vão fornecer-nos cinco vezes mais antes de a

guerra acabar. - Já agora podiam fornecer também um telefone que funcionasse -

resmun¬gou Marazov, desviando o olhar. - Paciência, soldado! O telefone está a funcionar bem. - Alexander estava a

tentar perceber se o Neva era mais largo do que o Kama. Chegou à conclusão que sim, mas não muito. Com a corrente forte, nadava até ao outro lado do Kama e regressava em cerca de vinte e cinco minutos. De quanto tempo precisaria para atravessar os seiscentos metros de gelo do Neva, sob fogo alemão?

Teriam de ser menos de vinte e cinco minutos. O telefone tocou. Sorriram os dois. - Até que enfim! — exclamou Marazov. - Quem espera sempre alcança. - O coração voou-lhe para Tatiana. - Muito

bem - gritou aos seus homens. - É agora. Prontos? - Colocou-se ligeiramente atrás deles e virou o cano da Zenith para cima. - Coragem!

Levantou o auscultador e fez sinal aos cabos, que com os morteiros dispara¬ram três bombas de fumo, que voaram até ao outro lado do rio e explodiram fazendo desaparecer temporariamente a linha nazi. Os soldados do

Page 604: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

604

Exército Ver¬melho avançaram imediatamente para o gelo em formações longas e sinuosas uma delas mesmo à frente de Alexander, e atravessaram a correr.

O fogo de quatro mil e quinhentas espingardas não se calou durante duas horas. Os morteiros eram ensurdecedores. Pareceu a Alexander que os soldados soviéticos se saíram melhor do que o esperado... notavelmente melhor. Viu através dos binóculos vários homens tombados na outra margem, mas também descorti¬nou muitos correndo a esconder-se na floresta.

Três aviões alemães passaram em vôo rasante, disparando sobre os soldados soviéticos e abrindo buracos no gelo... mais zonas de perigo que caminhões e homens teriam de evitar. «Um bocadinho mais baixo, um bocadinho mais baixo», pensou Alexander, abrindo fogo sobre os aparelhos. Um deles explodiu; os outros dois ganharam rapidamente altitude para evitarem ser atingidos. Alexander car¬regou a Zenith com uma bomba altamente explosiva e disparou. Outro dos aviões incendiou-se. O último subiu ainda mais, ficando impossibilitado de disparar sobre o gelo e regressando ao lado alemão do Neva. Alexander fez que sim com a cabeça e acendeu um cigarro.

- Estão a ir muito bem — berrou aos seus homens, tão ocupados a carregar bombas e a disparar que nem o ouviram. De resto, mal se ouvia a si próprio: tinha os ouvidos tapados para evitar perder a audição.

Às onze e meia, um clarão verde deu o sinal para o avanço da divisão moto¬rizada na segunda vaga do ataque.

Era talvez cedo de mais, mas Alexander esperava que o fator surpresa rever¬tesse a seu favor... podia ser que sim, se conseguissem atravessar o gelo depressa. Fez sinal a Marazov para que pegasse nos seus homens e corresse.

- Vão! — berrou. — Cubram-se! Cabo Smirnoff! — Um dos homens voltou-se. — Leve as suas armas.

Marazov fez a continência a Alexander, agarrou bem a metralhadora de 76 milímetros, gritou aos seus homens, desceram todos a pequena encosta e come¬çaram a correr no gelo. Os outros dois cabos corriam com os morteiros de 81 milímetros. As metralhadoras de 120 milímetros ficaram para trás. Eram pesadas de mais para transportar sem um caminhão. Três soldados seguiam à frente com as suas Shpagins.

Alexander viu Marazov tombar ainda mal percorrera trinta metros de gelo. - Meu Deus, Tolya! — gritou, olhando para cima. O avião alemão sobrevoava

o Neva, disparando sobre os homens que corriam no gelo. Os soldados de Mara¬zov tombavam. Antes de o aparelho ter tempo de dar meia-volta e regressar, Ale¬xander virou o cano da Zenith, apontou e disparou uma bomba de impacte. Não falhou. O avião voava a baixa altitude; explodiu em chamas e mergulhou no rio em espiral.

Marazov continuava imóvel no gelo. Observando-o sem poderem fazer nada, os seus homens não largavam a metralhadora. As bombas fustigavam o rio.

Page 605: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

605

- Oh, por amor de Deus! - Entregando a Zenith a Ivanov, o cabo que restava, Alexander pegou na metralhadora, saltou pela encosta abaixo e correu para Mara¬zov, berrando aos outros soldados que continuassem a atravessar o rio. - Vão! Vão!

- Obedecendo, agarraram na metralhadora e nos morteiros e correram. Marazov tinha a barriga aberta. Agora percebia o olhar de impotência dos

seus homens. Queria virá-lo, mas ele respirava com tanta dificuldade que teve medo de lhe tocar.

- Tolya - ofegou. - Tolya, agüenta-te. Fora atingido no pescoço. O capacete caíra-lhe. Olhou desesperadamente em volta à procura de um médico que pudesse dar-lhe morfina.

Viu um homem aparecer no gelo, não com uma arma mas com um estojo médico. Envergava um sobretudo pesado e um carapuço de lã... nem sequer um capacete! Corria à direita de Alexander, em direção a um grupo de homens tom¬bados perto de um buraco no gelo. Só teve tempo para pensar: «Que maluco, um médico aqui, está louco», quando ouviu atrás dele uns soldados gritando:

- Para baixo! Para baixo! - Mas com as rajadas ensurdecedoras de metralha¬dora e o fumo preto que tapava a visão, o médico continuou de pé, virou-se e gri¬tou em inglês:

- O quê? O que estão a dizer? O quê? Alexander viu o médico no gelo, no meio do fogo inimigo e, mais impor¬tante,

na trajetória dos obuses alemães. Sabia que tinha um quarto de segundo para pensar. Saltando, gritou a plenos pulmões em inglês:

-JÁ PARA BAIXO! O médico ouviu e deixou-se cair imediatamente. Mesmo a tempo. O obus

cônico passou a voar um metro acima da sua cabeça e explodiu atrás dele. O mé¬dico foi projetado sobre o gelo e aterrou de cabeça no buraco de água.

Alexander observou Marazov, que tinha as pupilas fixas e deitava sangue pela boca. Benzeu-o, pegou na metralhadora, correu vinte metros em cima do gelo, deixou-se cair de barriga e deslizou mais dez até ao buraco.

O médico boiava na água, inconsciente e de rosto para baixo. Alexander tentou alcançá-lo, mas como ele estava muito longe, pousou as armas, as munições e a mochila e mergulhou. Um dilúvio penetrante e gelado anestesiou-o de imediato, entorpecendo-o como a morfina. Agarrando-o pelo pescoço, puxou-o para a borda do buraco e atirou-o com toda a força para fora com uma mão, enquanto se segu¬rava no gelo com a outra. Respirando com dificuldade, saiu e deixou-se cair em cima do médico, que recuperou os sentidos:

- Meu Deus! Que aconteceu? - gemeu em inglês. - Quieto! - ordenou Alexander, também em inglês. - Continue deitado. Temos

de chegar ao caminhão blindado que está naquelas tábuas, vê? São vinte metros. Se conseguirmos pôr-nos atrás dele, ficaremos mais seguros. Aqui estamos a descoberto.

Page 606: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

606

- Não posso mexer-me — replicou. — A água está a gelar-me de fora para dentro.

Alexander sabia o que ele queria dizer, pois também sentia o frio molhado e intenso. Olhou em volta. A única cobertura eram os três corpos perto do buraco. Rastejando, puxou um e içou-o para cima do médico:

- Fique quieto e deixe o cadáver assim. A seguir tirou outro, pô-lo às costas e pegou na mochila e nas armas: - Pronto? - perguntou-lhe em inglês. - Sim. - Agarre-se ao meu casaco, pela sua vida. Não me largue. Vai patinar sobre o

gelo. Com um morto nas costas, Alexander arrastou o médico e o cadáver ao longo

dos vinte metros que os separavam do caminhão blindado, movendo-se o mais depressa que lhe era possível.

Pareceu-lhe que estava a perder a audição. O barulho ensurdecedor pene- trava-lhe em ondas no capacete e na parte consciente do cérebro. Tinha de conseguir. Tatiana furara o bloqueio e nem sequer tivera um morto a protegê-la. «Vou ser capaz», pensava, puxando o médico cada vez mais depressa através do barulho negro e aterrador. Julgou ouvir o silvo de um avião passando a baixa altitude e perguntou-se quando iria Ivanov abater o filho da mãe.

A última coisa de que teve consciência foi de ouvir um assobio muito perto e depois uma explosão. A seguir foi projetado de cabeça para a frente contra um caminhão blindado e sentiu um impacto indolor mas muito forte. «Ainda bem que tenho um morto às costas», pensou.

Page 607: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

607

2

Abrir os olhos tirou-lhe todas as energias. Foi um esforço tão grande que voltou logo a fechá-los, dormindo o que lhe pareceu uma semana ou um ano, impossível de dizer ao certo. Ouvia vozes e barulhos baixos; chegavam-lhe cheiros fracos a cânfora e álcool. Sonhou com a sua primeira montanha-russa, a assombrosa Cyclont, na praia Revere, Massachusetts, e com a areia de Nantucket Sound. Havia urna pequena ponte de madeira onde se vendia algodão-doce. Nos seus sonhos, comprou e comeu três algodões-doces vermelhos. De vez em quando, chegava- lhe um cheiro que não era nem de algodão-doce nem de água salgada. Em vez de suspirar por andar de montanha-russa, nadar ou brincar aos polícias e ladrões debaixo da ponte, punha-se a tentar identificar o cheiro.

Havia também outras lembranças de bosques, um lago, um barco. E outras imagens de alguém apanhando pinhas, atando uma rede, caindo numa armadilha para ursos. Mas não eram suas.

Com os olhos e o cérebro fechados, ouvia vozes suaves de homem e mulher; uma vez caiu ao chão qualquer coisa que fez muito barulho; outra, chegou-lhe o bater de um coração: devia ser o metrônomo. Depois viu-se em criança a viajar no deserto de Mojave, apertado entre a mãe e o pai. Não era bonito, mas estava calor e abafado no carro... no entanto, sentia frio. Tinha frio?

O deserto... e outra vez o mesmo cheiro no deserto. Não era algodão-doce nem sal, só...

Um rio correndo na manhã. Abriu novamente os olhos. Antes de os fechar, tentou focá-los. Não

descor¬tinou nenhum rosto, nem enevoado. Porquê? Tudo o que via eram manchas brancas. Mas sentiu novamente o cheiro. Uma forma debruçando-se sobre ele. Fechou os olhos e quase jurava que ouviu alguém sussurrar:

- Alexander. — Um barulho de metal. Umas mãos na cabeça. Umas mãos. Mãos. De repente, o seu cérebro acordou. Fez um esforço para abrir os olhos. Estava

deitado de barriga para baixo. Por isso não conseguia ver nenhum rosto. Tudo enevoado. Uma forma pequena e branca. Uma voz murmurando. «O quê?, o quê?», quis dizer. Não conseguia falar. O cheiro. Era um hálito, um hálito doce perto do seu rosto. Um cheiro nítido a reconforto, um reconforto que só conhecera uma vez na vida.

Ficou com os olhos alerta. Não se focaram. Via apenas uma mancha branca. - Shura, por favor, acorda — segredou a voz. - Alexander, abre os olhos. Abre

os olhos, meu amor. — Sentiu uns lábios carnudos na face.

Page 608: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

608

Obedeceu. E viu o rosto da sua Tatiana. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Fechou-os. - Não, não — articulou. Tinha de abrir os olhos. Ela chamava-o: - Shura, abre já os olhos. - Onde estou? - No hospital de campanha de Morozovo. Tentou abanar a cabeça. Não conseguia mexer-se. - Tatia? – murmurou. – Não podes ser tu. Adormeceu. Estava deitado de costas. De pé à sua frente, um médico falava-lhe em russo.

Concentrou-se na voz. Sim. Um médico. Que dizia? Não percebia bem. Não conseguia entender russo.

Um pouco mais tarde, o russo deixou de ser estrangeiro, tornando-se mais claro, mais compreensível.

- Parece-me que está a acordar. Como se sente? Tentou focar a vista. - Como tenho estado? – perguntou devagar. - Não muito bem. Olhou em volta. Encontrava-se dentro de uma estrutura retangular de

madeira com algumas janelas pequenas. As camas, cheias de pessoas com ligaduras brancas e vermelhas, formavam duas filas com um corredor no meio.

Tentou distinguir as enfermeiras à distância. O método chamou-o. Voltou relutantemente o olhar para ele. Não queria responder a quaisquer perguntas:

- Quanto tempo? - Quatro semanas. - Que aconteceu? - Não se lembra? - Não. O médico sentou-se na cama e falou muito baixinho: - Salvou-me a visa – disse num inglês reconfortante e agradecido. Lembrou-se vagamente. O gelo. O buraco. O frio. Abanou a cabeça: - Em russo, por favor. Não quero trocar a sua pela minha – acrescentou. O médico assentiu: - Compreendo. – Apertando-lhe a mão: - Voltarei daqui a uns dias, quando

estiver melhor. Depois conta-me tudo. Não vou ficar aqui muito tempo. Mas pode ter a certeza de que nunca o deixaria até me certificar de que já não corre perigo.

- Que ideia foi a sua ao ir assim para o gelo? Temos enfermeiros para isso. - Eu sei. Ia salvar o enfermeiro. Quem pensa que me pôs às costas quando me

arrastou para o camião? -Oh!

Page 609: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

609

- Pois. Foi a primeira vez que estive na frente. Notou-se? – Sorriu-lhe. Um bom sorriso americano. Alexander tentou devolver-lhe.

- Então o nosso doente dorminhoco já acordou? – Um enfermeira muito alegre, de cabelo preto e olhos como botões negros, aproximou-se sorridente e azafamada, tomando-lhe o pulso. – Olá. Sou a Ina. Seu sortudo!

- Sou? – Não se sentia com sorte. – Porque tenho a boca cheia de algodão? - Não tem. Há um mês que lhe damos morfina. Começávamos a reduzir-lhe a

semana passada. Parece-me que estava a começar a entrar num processo de habituação.

- Como se chama? – perguntou Alexander ao médico. - Matthew Sayers. Sou da Cruz Vermelha. – Depois de uma pausa: - Fui um

idiota, e você quase pagou com a vida por minha causa. Abanou a cabeça e examinou a enfermaria. Estava calma. Se calhar sonhara

Se calhar sonhara-a. Inventara-a. Não seria bom? Ela nunca estivera na sua vida. Nunca a conhecera e podia ser

tudo como dantes. Como ele era dantes. Mas como era dantes? Esse Alexander morrera. Não o conhecia. - Explodiu um obus mesmo atrás de nós e um estilhaço atingiu-o explicou o

doutor Sayers. – Você bateu contra o camião e caiu. Não fui capaz de o deslocar sozinho. – O russo dele não era lá muito bom. – Gesticulei a pedir ajuda. Não queria deixa-lo ali, mas... – Passeou o olhar por Alexander: - Digamos que era preciso uma maca. Uma das minhas enfermeiras correu a ajudar. – Abanando a cabeça: - É um prodígio, aquela ali. Avançou de gatas. Eu disse-lhe: “Olhe, é três vezes mais esperta do que eu!” – Inclinando-se para ele: - Como se não chegasse, avançou de gatas empurrando a caixa de plasma à frente dela!

- Plasma? - Fluido sanguíneo sem sangue. Dura mais do que o sangue e congela muito

bem, especialmente no vosso inverno. Um milagre para os feridos como você... substitui o líquido perdido até ser possível fazer-se a transfusão.

- E eu precisava... de substituição? – perguntou. A enfermeira bateu-lhe alegremente no braço: - Precisava, major. Digamos que precisava. Chega, enfermeira – objetou o doutor Sayers. – Na América temos uma regra:

nunca perturbar o doente. Conhece-a? Alexander interrompeu-o: - Estava muito mal? Sayers respondeu-lhe animadamente: - O seu aspecto não era o melhor. Deixei a enfermeira consigo e fui... gatinhei

– corrigiu-se, sorrindo - ...a ir buscar a maca. Não sei como, mas ajudou-me a carregá-la. Pegou no lado onde você tinha a cabeça. Quando chegámos à margem, pensei que quem precisava de plasma era ela.

Page 610: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

610

Querendo que o médico se sentisse melhor. Alexander comentou: - De gatas ou não, se uma bomba nos atinge estamos arrumados. - Quase arrumados – retificou a enfermeira. – O major foi atingido por uma

bomba. - Gatinhou no gelo? – indagou ele, sentindo-se grato e com vontade de lhe dar

umas palmadinhas afetuosas na mão. Ela abanou a cabeça: - Não, eu não me aproximo da linha da frente. Não sou da Cruz Vermelha. - Não, trouxe a enfermeira comigo de Leninegrado – explicaou Sayers. –

Sorrindo: - Ela ofereceu-se. - Oh! – exclamou. – Em que hospital estava? – Começava a sentir-se a

desmaiar de novo. - No Grachesky. Não conseguiu dominar-se e gemeu de dor. Só parou quando Ina lhe deu mais

uma dose de morfina. Examinando-o com cuidado, o médico perguntou-lhe como se sentia.

- Doutor, a enfermeira que veio consigo... - Sim? - Como se chama? - Tatiana Metanova. Soltou um queixume. - Onde está agora? Sayers encolheu os ombros: - E onde não está? A construir o caminho de ferro, suponho. Rompemos o

bloqueio, sabe. Seis dias depois de ter sido atingido, as duas frentes encontraram-se. E mil e cem mulheres começaram imediatamente a construir o caminho de ferro. A Tania está a ajudar deste lado...

- Bem, não começou logo – comentou Ina. – Esteve quase sempre consigo, major.

- Sim, mas agora que ele está melhor, foi ajudar. – O doutor Sayers sorriu. – Chamam-lhe o caminho de ferro da vitória. Na minha opinião, ainda é cedo, a julgar pelo estado dos homens que chegam aqui.

- Pode trazer-me a enfermeira quando ela voltar? – Calou-se. Queria explicar, mas sentia-se desfeito. Na verdade, estava mesmo desfeito. – Onde disse que fui atingido?

- Nas costas. Do lado direito. Mas o estilhaço da bomba cortou a meio o corpo que trazia em cima de si. Ainda bem que o trazia. – Depois de uma pausa, o doutor Sayers continuou: - Suamos muito para lhe salvar o rim. – Inclinando-se para a frente: - Não queríamos vê-lo a atacar os Alemões de futuro só com um rim, major.

- Obrigado, doutor. – Tentou perceber o que lhe doía. – As minhas costas não parecem lá grande coisa.

Page 611: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

611

- Pois não, é natural. Tem uma queimadura do terceiro grau em volta da ferida. Foi por isso que esteve de barriga para baixo durante tanto tempo. Só começamos a virá-lo agora. - Sayers deu-lhe uma pancadinhas no ombro. - Sente a cabeça? Embateu no camião com bastante força. Mas vai ficar como novo, suponho, quando a ferida e a queimadura sararem e lhe tirarmos a morfina. Daqui a um mês talvez tenha alta. - O médico hesitou, estudando Alexander, que não queria ser estudado: - Falamos depois, está bem?

- Está - murmurou. - Por outro lado - acrescentou o médico, animando-se - , foi-lhe atribuída

outra medalha. - Desde que não seja póstuma... - Disseram-me que vão promovê-lo logo que puder ter-se de pé. É verdade, há

um soldado dos abastecimentos que passa a vida aqui a perguntar por si. Chernenko?

- Traga-me a enfermeira, sim? - Fechou os olhos.

Page 612: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

612

3

Passou uma noite antes de a ver outra vez. Quando acordou, deu com ela sentada ao seu lado. Contemplaram-se um ao outro.

- Shura, não estejas zangado comigo. - Oh, meu Deus! – foi tudo quando conseguiu dizer. – Tu és impossível! Tatiana anuiu e respondeu baixinho: - Impossivelmente casada. - Não. Só impossível. Ela debruçou-se sobre ele e murmurou: - Impossivelmente apaixonada. – E acrescentou: - Tu precisava de mim e eu

vim. - E quem te mantém em segurança a ti? Deu-lhe a mão e sorriu. Olhando em volta para ver se não havia médicos nem enfermeiras por perto, beijo-lhe a mão e encostou-a ao rosto. – Vais ficar bom, grandalhão. Espera e verás.

- Tania, quando sair daqui peço o divórcio. – Não lhe largava o rosto. Por nada.

Ela abanou a cabeça: - Tenho muita pena mas não podes. Queria um contrato com Deus? Aí está. - Tatiasha... - Sim, querido Shura? Estou tão contente por ouvir a tua voz, por te ouvir

falar! - Diz-me a verdade: fiquei muito ferido? - Não muito – retorquiu em voz baixa, sorrindo com o rosto branco. - Não sei o que me deu para ir atrás do Marazov. Devia ter deixado os seus

homens tratarem dele. Mas também estavam encurralados. Não podiam avançar nem trazê-lo para trás. – Depois de uma pausa: - Pobre Tolya.

Com os olhos ligeiramente vítreos de tristeza, mas sempre de sorriso na cara, Tatiana observou:

- Rezei pelo Tolya. - E rezaste por mim? - Não. Tu não estavas a morrer. Rezei por mim, pedindo a Deus que me

ajudasse a curar-te. – Apertou-lhe a mão. – Mas sabes, podias tanto impedir-te de tentar socorrer o Marazov como de berrar ao médico em inglês, saltar para a água atrás dele ou arrastá-lo atrás de ti. Podias tanto fazê-lo como evitar regressar com o Yuri Stepanov. Não te esqueças de que somos a soma das nossas partes. E que dizem as tuas partes de ti?

Page 613: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

613

- Que sou doido varrido! Parece que tenho as costas a arder. – Sorriu, recordando Luga. – São só cortes de vidro, Tânia?

Ela hesitou por um momento: - Estás queimado. Mas vais ficar bom. – Apertou mais a mão dele contra a

face. – Diz-me a verdade: não estás contente por me ver, pois não? - Podia dizê-lo, mas estaria a mentir. – Esfregou-lhe as sardas, fitando-a sem

pestanejar. Ela tirou do bolo um frasquinho de morfina e ajustou-o ao tubo do soro. - Que estás a fazer? - A dar-te um bocadinho de morfina por via intravenosa – segredou. – Para

não sentires as costas a arder. – Dali a segundos, já se sentia melhor. Tatiana voltou a encostar-lhe a cabeça à mão.

Alexander mirou-se de cima a baixo. Irradiava um calor poroso, evanescente e, no entanto, permanente; as costas doíam-lhe menos só com a sua presença, o seu rosto de cetim na palma da mão. Os olhos radiosos, as faces afogueadas, os lábios adoráveis ligeiramente entreabertos... Examinou-a com a alma exposta, sentindo uma dor delicada no coração apaixonado:

- És um anjo enviado do céu, não és? Um sorriso elétrico iluminou-lhe o rosto: - E ainda nem sabes metade. Nem te passa pela cabeça o que a tua Tania anda

a tramar. – Quase guinchou de prazer. - E que tens andado a tramar? Não, não te ponhas direita. Quero sentir a tua

cara. Não posso, Shura. Estou praticamente em cima de ti. Temos de ser

cuidadosos. – O sorriso desvaneceu-se um bocadinho. – O Dimitri passa a vida aqui. Entra, sai, olha para ti, vai-se embora, vem outra vez... O que o preocupa? Ficou muito admirado ao encontrar-me aqui.

- Não foi o único. Como vieste cá parar? - Faz tudo parte do meu plano. - Que plano, Tatiana? - Morrer velhinha ao teu lado – segredou. - Oh, esse plano! - Shura, tenho de falar contigo. Preciso de falar contigo quando estiveres

lúcido. Tens de me ouvir com muita atenção. - Fala agora. - Não posso. Eu disse lúcido. - Sorrindo: - Além disso, tenho de ir. Fiquei uma

hora sentada à espera que acordasse. Volto amanhã. – Olhou em volta. – Já viste como te pus aqui ao canto, para ficares com uma parede ao lado e podermos ter um bocadinho de privacidade? – Apontando para a janela: - Sei que é alta, mas mesmo assim consegue ver-se um pedaço do céu e duas árvores, pinheiros-silvestres, suponho, Pinheiros, Shura.

- Pinheiros, Tania.

Page 614: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

614

Ela levantou-se. - O homem que tens ao lado não ouve nem vê. Se fala, é um mistério. –

Sorrindo: Além disso, vês a tenda de isolamento que tem à volta para poder respirar ar mais puro? Pu-la para o ajudar, mas de caminho metade da enfermaria não pode ver-te, Isto é quase mais privao do que a Quinto Soviete.

- Como está a Inga? Tatiana calou-se e mordeu o lábio: - A Inga já não está na Quinto Soviete. - Oh, mudou-se finalmente? - Isso. Foi mudada. Entreolharam-se e assentiram lentamente. Alexander fechou os olhos. Não a

largou: não podia. - Tânia, é verdade que saísse para o gelo? No meio de uma aguerrida batalha

por Leninegrado, saíste de gatas para o gelo? Ela debruçou-se e beijou rapidamente: - Saí, soldado do meu coração. Por Leninegrado. - Amanhã não esperes uma hora para me acordar. – Sentia um formigueiro

nas terminações nervosas.

Page 615: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

615

4

Alexandre só pensava na altura em que voltaria a vê-la no dia seguinte. Apareceu à hora do almoço, levando-lhe a refeição.

- Eu dou-lhe de comer, Ina – comunicou alegremente à enfermeira de serviço, que não pareceu muito satisfeita. Mas Tatiana não lhe prestou atenção.

- A enfermeira Metanova pensa que o meu doente lhe pertence – comentou, assinando a ficha deAlexander.

- E pertenço, Ina. Não foi ela que me levou o plasma? - E não sabe nem metade – resmungou amuada, fulminando Tatiana com

olhar e afastando-se. - Que quis ela dizer? - Não sei. Abre a boca. - Tania, eu posso comer sozinho. - Queres comer sozinho? - Não. - Deixa-me tratar de ti – disse ternamente. – Deixa-me fazer o que sabes que

morro por fazer. - Onde está a minha aliança? Tinha-a pendurada ao pescoço numa corda.

Perdi-a? Sorrindo, tirou do uniforme a corda entrançada, onde estavam duas alianças: - Eu guardo-a até podermos usá-las outra vez. - Dá-me de comer – pediu, com a voz embargada de emoção. Mas antes de conseguir fazê-lo, o coronel Stepanov apareceu para visitar

Alexander: - Disseram-me que tinha acordado – começou, lançando um olhar de relance

a Tatiana. – Venho em má altura? Ela abanou a cabeça, voltou a poupar a colher no tabuleiro e levantou-se: - É o coronel Stepanov? – perguntou, olhando de um para o outro. - Sou – respondeu, perplexo. – Com quem tenho a honra... Tomou-lhe a mão nas suas: - Chamou-me Tatiana Metanova. Só queria agradecer-lhe tudo o que fez pelo

major Belov. – Não lhe largou a mão e ele não atirou. – Obrigada – repetiu. Alexander teve vontade de abraçar a mulher. - Meu coronel – começou, sorrindo de orelha a orelha - , a enfermeira sabe

que o meu comandante tem sido muito bom para mim. - É merecido. major. – Não retirou a mão até Tatiana lhe largar. – Já vou a sua

medalha?

Page 616: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

616

A condecoração encontrava-se pendurada nas costas da cadeira, ao lado da cama.

- Porque não esperaram que eu estivesse consciente para me darem? – indagou Alexander.

- Não sabíamos se... - Não é uma medalha qualquer, major – interrompeu Tatiana. – É a

condecoração mais elevada que existe. Herói da União Soviética! – acrescentou sem fôlego.

Stepanov olhou de um para o outro: - A sua enfermeira tem muito... orgulho em si, major. - Pois tem, meu coronel. – Tentava não sorrir. - Olhe, eu volto noutra altura, quando estiver menos ocupado – sugeriu

Stepanov. - Espere, meu coronel. – Desviou o olhar de Tatiana por um momento: - Que

tal estão a sair-se as nossas tropas? - Bem. Tiveram os seus dez dias de licença, e agora tentam desalojar os

Alemães de Sinyavino. Está difícil. Mas sabe como é grão a grão... – Depois de uma pausa: No entanto, há notícias melhores... von Paulus rendeu-se em Estalinegrado no mês passado. – Casquinou: - Hitler promoveu-o a marechal de campo se rendera na história alemã.

Alexander sorriu: - É evidente que Von Paulus quis entrar na história. São notícias excelentes.

Estalinegrado aguentou-se. Leninegrado rompeu o bloqueio. Pode ser que ainda ganhemos esta guerra. – Calou-se. – Vai ser uma verdadeira vitória pírrica,

- Tem razão.- Stepanov apertou-lhe a mão. – Mas como as perdas que estamos a sofrer, não sei quem ficará para gozar até uma vitória pírrica. – Suspirou: -Ponha-se bom depressa, major. Espera-o outra promoção. Aconteça o que acontecer, não irá mais para a linha da frente.

- Não quero ficar inativo, meu coronel. Tatiana bateu-lhe no ombro. - Quer dizer... sim, obrigado. Stepanov voltou a fita-los aos dois. - Ainda bem que está mais animado, major. Já nem me lembro da última vez

que o vi tão... bem-disposto. Pelos vistos fez-lhe bem sofrer um ferimento quase fatal.

Foi-se embora. - Desconcertaste completamente o coronel. – De sorriso aberto: - Ferimento

quase fatal? - Foi só uma maneira de dizer. Mas tinhas razão: é um bom homem. –

Fingindo uma expressão de censura: - Estou a ver é que não lhe agradeceste por mim.

- Tania, somos homens. Não passamos a vida nas costas uns dos outros.

Page 617: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

617

- Abre a boca. - Que comida me trouxeste? Levara-lhe sopa de couve com batatas e pão branco com manteiga. - Onde arranjaste tanta manteiga? – Era um quarto de quilo. - Os soldados feridos têm direito a um suplemento de manteiga. E tu a um

suplemento de suplemento. - E também a um suplemento de um suplemento de morfina? – Sorriu-lhe. - Hum. Tens de te pôr bom depressa. De cada vez que a colher de sopa lhe chegava à boca, Alexander inspirava

profundamente, tentando cheirar-lhe as mãos. -Já comeste? Encolheu os ombros: - Quem tem tempo para comer? – disse jovialmente, aproximando a cadeira

da cama. - Achas que os outros doentes vão protestar se a minha enfermeira me der

um beijo? Ela afastou-se um bocadinho: - Acho que vão pensar que eu ando aos beijos a toda a gente. Alexander olhou em redor. Do outro lado da enfermaria, um homem sem

pernas agonizava. Não se podia fazer nada por ele. Ouviu outro lutando para respirar na tenda montada ao seu lado. Como Marazov.

- O que tem ele? - O Nikolai Ouspensky? Perdeu um pulmão. – Pigarreou: - Mas vai ficar bom. É

um homem simpático. A mulher vive numa aldeia aqui perto e passa a vida a mandar-lhe cebolas.

- Cebolas? Encolheu os ombros: - Gente de aldeia! - Tania- começou ele calmamente – a Ina disse-me que precisei de plasma.

Que... - Vais ficar bom – apressou-se ela a dizer. – Perdeste algum sangue, é tudo. –

Depois de uma pausa, baixou a voz: - Ouve, ouve com atenção... - Porque não estás sempre aqui comigo? Porque não és a minha enfermeira? - Espera lá! Há dois dias dizes-me para desaparecer e agora queres-me o

tempo todo aqui? - Quero. - Querido, ele passa a vida aqui – cochichou, sorrindo. – Não ouviste o que te

disse? Estou a tentar manter uma distância profissional. A Ina é uma boa enfermeira de cuidados intensivos. Daqui a pouco melhoras e talvez possamos mudar-te para uma cama de convalescente, se quiseres.

- Se é onde trabalhas, melhoro numa semana. - Não, Shura, não trabalho lá.

Page 618: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

618

- Então onde? - Olha, preciso de falar contigo e estás sempre a interromper-me. - Não te interrompo mais, se me deres a mão por baixo do cobertor. Tatiana acedeu e entrelaçou os dedos pequenos nos deles. - Se fosse mais forte e grande como tu, teria pegado em ti para te levar sobre

o gelo – disse ternamente. Ele apertou-lhe a mão: - Não me faças zangar, agora que estou tão feliz por ver teu rosto adorável.

Beija-me, por favor. - Não, Shura. Queres ouvir... - Porque tens um ar tão incrível? A felicidade sai-te por todos os poros. Nunca

me pareceste tão bonita. Ela inclinou-se, entreabriu os lábios e sussurrou-lhe em voz rouca: - Nem sequer em Lazarevo? - Cala-te. Ainda fazes um homem crescido chorar. É que brilhas por dentro. - Tu estás vivo e eu em êxtase. – E parecia mesmo. - Como foste parar à frente? - Se me ouvisses, eu contava-te. – Sorriu. – Quando parti de Lazarevo, já sabia

que queria ser enfermeira de cuidados intensivos. Em novembro, depois de ter estado contigo, decidi alistar-me. Ia para frente, onde tu te encontravas. Se tu ias lutar por Leninegrado, eu também o faria. Iria para o gelo com os primeiros-socorros.

- Era o teu plano? - Era. Ele abanou a cabeça. - Ainda bem que não me disseste nada na altura. De resto, não tenho forças

para ouvir mais. - Pois vais precisar quando souberes o que te vou dizer. – Mal conseguia

dominar a ansiedade. O coração dele bateu com força. – Quando o doutor Sayers chegou ao Grechesky, perguntei-lhe logo se precisava de mais uma ajudante. Sabes, ele veio para Leninegrado a pedido do Exército Vermelho, que já previa um grande fluxo de feridos neste ataque. – Baixou a voz: - Deixa-me que te diga que até os Soviéticos subestimaram o seu número. Já não há lugar onde pôr ninguém. Bem, o doutor Sayers disse-me que ia para a frente de Leninegrado e eu perguntei-lhe se podia ajudar... – Sorriu: - Aprendi a fazer esta pergunta contigo. E realmente precisava de mim. A única enfermeira que trouxera adoecera. Em Leninegrado no inverno, não é para admirar. A coitada apanhou tuberculose. – Abanou a cabeça: - Imagina. Agora está melhor, mas ficou no Grechesky. Precisam dela lá.

Como ainda não me tinha alistado, vim na qualidade de assistente temporário do doutor Sayers. Olha. – Mostrou-lhe orgulhosamente a braçadeira branca com o símbolo da Cruz Vermelha. – Em lugar de ser enfermeira do Exército Vermelho, sou enfermeira da Cruz Vermelha! Não é excelente? – Esboçou um sorriso radioso.

Page 619: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

619

- Ainda bem que gostas de estar na frente, Tania. - Shura! Não é isso! Sabes de onde veio o doutor Sayers? - Desisto. Num sussurro de nervosismo: - De Helsínquia! - Helsínquia. - Sim. - Muito me contas... – Suspirou. - E sabes para onde vai voltar depois? - Não, para onde? - Shura! Helsínquia! Alexander não disse nada. Virou lentamente a cabeça e fechou os olhos.

Ouviu-a chama-lo. Tornou a abrir os olhos e virou-se de novo para ela. De expressão radiante, tamborilava-lhe com os dedos no braço. Tinha o rosto afogueado e a respiração acelerada.

Ele soltou uma gargalhada. No outro lado, uma enfermeira virou-se. - Não, não te rias. Está calado. - Tatia, Tatia, para. Peço-te. - Queres ouvir? Logo que conheci o doutor Sayers, comecei a dar voltas à

cabeça. - Oh, não! - Oh, sim! - Que voltas? - No Grechesky, fartei-me de pensar num plano... - Não, outro plano não. - Sim, sim. Perguntei-me se poderia confiar no doutor Sayers e cheguei à

conclusão que sim. Pareceu-me um bom americano. Ia confiar nele, contar-lhe o que se passa e suplicar-lhe que te ajudasse a regressar, que nos ajudasse a chegar a Helsínquia. Só a Helsínquia. Depois, poderíamos seguir os dois sozinhos até Estocolmo...

- Tania, não aguento ouvir mais. - Não, escuta! Segredou ela. – Se soubesse como Deus está conosco! Em

dezembro, chegou ao Grechesky um piloto finlandês. Estão sempre a chegar... para morrer. Tentávamos salvá-lo, mas tinha ferimentos graves na cabeça. O avião dele desempenhara-se no golfo da Finlândia. – Mal se ouvia: - Fiquei-lhe com a farda e o distintivo de identificação. Escondi-os no jipe do doutor Sayers, numa caixa de ligaduras. E é onde estão... à tua espera.

Atónito, fitou-a de boca aberta. - A única coisa de que tinha medo era de pedir ao doutor Sayers que

arriscasse a visa por dois desconhecidos. Não sabia como havia de o fazer. – Inclinou-se e beijou-lhe o ombro: - E aí intervieste tu, meu marido. Salvaste o

Page 620: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

620

médico. Agora não duvido de que te ajudará nem que tenha de te carregar às costas.

Alexander estava sem palavras. - Vestes uma farda finlandesa, durante umas horas chamas-te Tove Hanssen,

a atravessamos a fronteira finlandesa no jipe da Cruz Vermelha do doutor Sayers. Shura! Vou tirar-te da União Soviética.

Ele continuava mudo. Tatiana riu-se em silêncio, mas inchando de felicidade: - Temos uma sorte incrível, não achas? – Apontou para a braçadeira da Cruz

Vermelha e apertou-lhe a mão debaixo do cobertor: - Dependendo do teu estado de saúde, seguiremos de Helsínquia para Estocolmo ou num navio mercante, caso o Báltrico não esteja gelado, ou num camião com escolta. Como sabes, a Suécia é neutral. – Sorrindo: - Não, nunca me esqueço de nenhuma palavra tua. – Largando-o, juntou as mãos: - Não é o melhor plano que já ouviste? Muito melhor do que a idade de andares meses escondido nos atoleiros do golfo.

Observou-a, tonto e incrédulo: - Mas quem é esta mulher sentada à minha frente? Ela levantou-se, dobrou-se e beijou-lhe intensamente os lábios: - A tua adorada esposa – segredou. A esperança foi um remédio miraculoso. De repente, os dias deixaram de ser suficientemente compridos pata

Alexander tentar sentar-se, andar, mexer-se. Não podia sair da cama, mas acabou por conseguir sentar-se apoiando-se nos braços. Comia sozinho e vivia para os minutos em que Tatiana ia visita-lo.

O ócio estava a pô-lo maluco. Pediu a Tatiana que lhe levasse bocados de madeira e um canivete e, enquanto esperava por ela, sentava-se horas a fio a esculpir palmeiras, pinheiros, facas, estacas e formas humanas.

Ela aparecia todos os dias, várias vezes ao dia, sentava-se ao seu lado e cochichava:

- Shura, em Helsínquia podemos ir andar de trenó, de drozhki. Não vai ser bom? E entrar numa igreja a sério! O doutor Sayers disse-me que a Igreja do Imperador Nicolau é muito parecida com Santo Isaac. Shura, estás a ouvir?

Sorrindo, assentia e continuava a esculpir. E ela segredava: - Sabias que a cidade de Estocolmo é toda de granito, como Leninegrado?

Sabias que o nosso Pedro , o Grande conquistou a disputada Carélia à Suécia em 1725? É irônico, não achas? Até na altura lutávamos pela terra que agora nos libertará. Quando chegarmos a Estocolmo será primavera, e parece que logo ali no porto, de manhã, há um mercado onde se vende fruta, legumes e peixe... oh, e o doutor Sayers disse-me que têm presunto e uma coisa que se chama bacon. Já comeste bacon? Shura, estás a ouvir?

Sorrindo, assentia e continuava a esculpir.

Page 621: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

621

- E em Estocolmo iremos a um lugar que se chama... agora não me lembro... ah, o Tempo da Fama, onde estão sepultados os seus reis. – O prazer estampava-se no rosto. – Os seus reis e os seus heróis. Havia de gostar. Vamos lá?

- Vamos, meu encanto. – Alexander pousou o canivete e o pedaço de madeira, estendeu os braços e puxou-a para si: Vamos lá.

Page 622: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

622

5

- Alexander? – O doutor Sayers sentou-se na cadeira, ao seu lado. – Se for baixinho, posso falar em inglês? Custa-me tanto falar russo todos os dias!

- Claro – responde ele em inglês. – É bom voltar a ouvir a minha língua. - Peço desculpa, mas não pude vir mais cedo. – Abanando a cabeça: - Começo

a ficar atolado no inferno que é a frente russa. Estou a ficar sem nada, os abastecimentos da Lend-Lease demoram a chegar, como a vossa comida russa, durmo sem colchão...

- Devia ter um colchão. - Os feridos têm colchão. Ei disponho de um cartão grosso. Tatiana também dormiria num cartão grosso? - Pensei que já não estaria aqui, e olhe. Ainda no mesmo sítio. Trabalho vinte

horas por dia. Mas finalmente tenho algum tempo. Quer falar? Alexander encolheu os ombros examinou o médico: - De onde é, doutor Sayers? - De Boston. – Sorrindo: - Conhece? Assentiu: - A minha família era de Barrington. - Ah, então somos praticamente vizinhos! – exclamou Sayers. – Mas conte lá.

Uma história comprida, suponho. - Muito comprida. - Pode contar-me? Morro por saber como foi que um americano deu em

major do Exército Vermelho. Em resposta, Alexander estou o médico, que disse afetuosamente: - Há quanto tempo vive sem poder confiar em ninguém? Confie em mim. Suspirando profundamente, começou a falar. Se Tatiana confiava nele,

também o faria. O doutor Sayers escutou-o com atenção. - Que trapalhada! – exclamou no fim. - Nem me fale. Foi a voz de o médico estudar Alexander: - Posso fazer alguma coisa para ajudar? Não respondeu logo. - Não me deve nada. Sayers fez uma pausa. - Quer... voltar para a América? - Quero. Quero voltar para a América.

Page 623: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

623

- E que posso fazer? Alexander fitou-o: - Fale com a minha enfermeira. Ela diz-lhe o que há a fazer. – Onde estaria a

sua enfermeira? Precisava de pousar os olhos nela. - A Ina? - A Tatiana. - Ah, a Tatiana! – O seu rosto adquiriu uma expressão afetuosa. – Ela sabe de

si? O jovem examinou-o riu baixinho, abanando a cabeça: - Doutor Sayers, vou confiar em si até ap fim. Ficará com duas vidas nas mãos.

A Tatiana... - Sim? - ...é minha mulher. – Foram palavras que o aqueceram por dentro. - É o quê? - Minha mulher. O médico fitou-o com incredulidade: - É? Divertido, observou Sayers contemplando-o sem expressão, depois com olhar

iluminando-se, a seguir pensando e finalmente compreendendo com um misto de tristeza e lucidez:

- Oh, que estúpido! A Tatiana é sua mulher. Devia ter desconfiado. Agora percebo muita coisa. – Respirando pesadamente: - Ora, ora. Tem sorte.

- Sim... - Não, major. É um home com sorte. Mas não interessa. - Ninguém mais sabe. Fale com ela, que não está nem ferida nem sob o efeito

da morfina. Ela diz-lhe o que quer que faça. - Disso não tenho dúvidas nenhuma. Estou a ver que tão depressa não saio

daqui. Quer que ajude mais alguém? - Não, obrigado. O doutor Sayers levantou-se e estendeu a mão a Alexander. - Ina, quando me transferem para a enfermaria dos convalescentes? –

perguntou à enfermeira que tratava dele entre as visitas de Tatiana. - Está com pressa? Ainda agora recobrou os sentidos. Nós tratamos de si. - Só perdi um bocadinho de sangue. Deixe-me sair daqui. Até vou a pé - Major Belov, tem um buraco nas costas do tamanho do meu punho. É claro

que não vai a lado nenhum. - O seu punho é pequeno. Qual é o problema? - Eu digo-lhe qual é o problema. O problema é que não vai a lugar nenhum.

Agora deixe-me virá-lo para limpar essa sua ferida mal-encarada. Alexander virou-se sozinho: - Muito mal-encarada? - Bastante, major. O obus arrancou-lhe um pedaço de carne.

Page 624: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

624

- Arrancou-me uma libra de carne, Ina? - Sorriu. - Uma quê? - Deixe lá. Mas diga-me a verdade: fiquei muito ferido? Ina começou a mudar-lhe as ligaduras: - Muito. A enfermeira Metanova não lhe contou? É impossível. Quando o

trouxeram para aqui, o doutor Sayers examinou-o e disse que achava que não se ia salvar.

Não ficou surpreendido. Flutuara durante muito tempo na periferia da consciência. Não se sentira muito vivo, mas a morte parecia-lhe inconcebível. Deitado de barriga para baixo, ouvia Ina enquanto esta lhe limpava a ferida.

- O médico é um bom homem. Queria salvá-lo, pois sentia-se pessoalmente responsável. Mas disse que o major tinha perdido muito sangue.

- Oh! É por isso que estou nos cuidados intensivos? - Agora, porque ao princípio nem veio para aqui. – Abanou a cabeça. – Foi

logo para a enfermaria dos doentes terminais. – Bateu-lhe ao de leve no ombro. - Oh! É por isso que estou nos cuidados intensivos? - Agora, porque ao princípio nem veio para aqui. – Abanou a cabeça. – Foi lago

para a enfermaria dos doentes terminais. – Bateu-lhe ao de leve no ombro. - Oh! – O sorriso desapareceu-lhe do rosto. - É aquela enfermeira Tatiana – continuou Ina. – É... francamente, acho que se

concentra de mais nos caos terminais. Devia ajudar os doentes críticos, mas passa a vida na enfermaria dos terminais tentando salvar os que não têm salvação.

Portanto, era onde ela estava. - E sai-se bem? Murmurou Alexander. - Não muito. Os doentes morrem como moscas, mas ela fia com eles até ao

fim. Não sei o que tem. Eles morrem na mesma, mas... - Morrem felizes? - Felizes não, mas... não sei explicar. - Sem medo? - Sim! Exclamou, debruçando-se e fitando-o. – É isso. Sem medo. Farto-me de

lhe dizer para os deixar estar, uma vez que de qualquer maneira vão morrer. E não sou só eu. O doutor Sayers passa a vida a dizer-lhe para vir trabalhar na enfermaria dos doentes graves, Mas ela faz ouvidos de mercador. – Baixando a voz: - Não liga nem ao médico!

Alexander voltou a sorrir. - E tem cá uma língua! Não sei como consegue dizer um décimo do que diz a

um homem tão bom, sempre a correr de um lado para o outro neste hospital. Como lhe contei, quando o trouxeram para aqui o médico examinou-o e abanou a cabeça. “Está perdido”, declarou, mas fê-lo com tristeza. Vi que se sentia muito mal.

“Perdido?”, pensou Alexander. - “Não há nada a fazer”, disse. – Parou de o lavar por um segundo: - E sabe o

que aquela Tatiana lhe respondeu?

Page 625: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

625

- Não imagino. O quê? Na voz de Ina havia uma nota de coscuvilhive e frustração: - Quem pensa ela que é? Aproximou-se muito dele, baixou a voz, olhou-o a

direito e disse: “Doutor: ainda bem que ele não pensou a mesma coisa de si quando o viu a flutuar inconsciente no rio! Ainda bem que ele não lhe virou costas quando caiu, doutor Sayers.” – Riu com maldade. – Que descaramento! Falar assim com um médico!

- Qual foi a ideia dela? – murmurou, fechando os olhos e imaginando a sua Tania.

- Estava determinada. Parecia uma espécie de cruzada pessoal. Deu ao médico um litro de sangue para si...

- Onde o arranjou? - Nela, evidentemente. – Sorrindo: - Felizmente para si, major, a nossa

enfermeira Metanova é dadora universal. “Claro que é”, pensou, com os olhos muito fechados. - O médico disse-lhe que não podia dar mais e ela respondeu que um litro não

chegava. Vai ele: “ Pois não, mas a enfermeira não tem mais para dar.” E ela: “Eu faço mais.” Ele disse “Não”, ela teimou “Sim”, e dali a quatro horas deu-lhe mais meio litro.

Ainda deitado de barriga para baixo, Alexander escutava atentamente enquanto Ina lhe tapava a ferida com gaze. Mal respirava.

- O médico disse-lhe: “Tânia, está a perder o seu tempo. Olhe para a queimadura. Vai infetar.” Não havia penicilina que chegasse para lhe dar, especialmente porque tinha muito pouco sangue. – Soltando uma risadinha de incredulidade: - Nessa noite, estava eu a fazer a minha ronda, e quem encontrei ao lado da sua cama? A Tatiana, sentada com uma seringa no raço, ligada a um catéter. Espretei o que estava a fazer e juro-lhe, major, nem vai acreditar quando eu lhe disser... tinha ligado o catéter ao tubo do seu soro. – Os olhos esbugalharam-se-lhe: - Bombeava sangue da artéria do braço para o seu sos. Corri para ela: “Ficou maluca? Perdeu o juízo? Está a passar o seu sangue para ele?”

E ela respondeu-me naquela voz calma de quem não admite discussões: “Ina, se não for assim, ele morre.” Berrei-lhe: “Temos nos cuidados intensivos trinta soldados que precisam de suturas e ligaduras e de alguém que lhes limpe as feridas. Porque não vai tratar deles e entrega os mortos na mão de Deus?”

Então ela disse-me: “ Ele não morreu. Ainda está vivo. E enquando estver vivo, é meu.” Acredita, major? Mas foi o que ela disse. Exclamei: “Oh, por amor de Deus! Está bem, então morra. Não quero saber.” Mas na manhã seguinte fui apresentar queixa ao doutor Sayers, contei-lhe o que tinha feito e ele correu a repreendê-la. – Baixou a voz, que não era agora mais do que um sussuro sibilante e incrédulo: - Encontrámo-la sem sentidos no chão, ao lado da sua cama. Estava desmaiada, mas o major melhorara, Os seus sinais vitais tinham aumentado. A Tatiana levantou-se do

Page 626: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

626

chão, pálida como a morte, e disse friamente ao médico: “Será que agora pode dar-lhe a penicilina de que ele precisa?”

O doutor Sayers estava pasmado. Mas administrou-lhe a penicilina, mais plasma e morfina. Depois operou-o para lhe tirar os estilhaços do corpo, salvou-lhe o rim e coseu-o. E durante todo o tempo ela nunca saiu do lado dele nem do seu.

As suas ligaduras tinham de ser mudadas de três em três horas para evitar infecção. Só tínhamos duas enfermeiras a acompanhar os doentes, porque ela só se ocupou de si. Mudou-lhe as ligaduras e limpou-o durante quinze dias e noites. De três em três horas. No fim, parecia um esperto. Mas o major conseguira sobreviver. Foi então que passamos para a unidade de cuidados intensivos. Eu até lhe disse: “Tania, este homem devia casar consigo por tudo o que fez por ele.” E vai ela: “Acha?” – Ina soltou outra exclamação e calou-se. – Sente-se bem, major? Porque está a chorar?

Nessa tarde, quando Tatiana foi dar-lhe de comer, Alexander pegou-lhe na mão e não foi capaz de falar durante muito tempo.

- Que foi, querido? – murmurou ela. – Que te dói? - O coração – respondeu. Ela inclinou-se na cadeira: - Shura, querido, deixa-me dar-te de comer. Depois de ti, ainda tenho d dar de

comer a dez homens muito doentes. Um deles nem se quer tem língua. Imagina a dificuldade. Se puder, volto à noite. A Ina conhece-me. Acha que

tenho um fraquinho por ti. – Sorriu: - Porque me olhas assim? Alexander continuava sem conseguir falar. Tatiana voltou à noite. As luzes estavam apagadas e toda a gente dormia;

sentou-se ao lado dele. - Tatia... - A Ina fala de mais – disse baixinho. – Eu avisei-a para não perturbar o meu

paciente. Não queria que te preocupasses. Mas, claro, não conseguiu ficar calada! - Não te mereço. - Alexander, achas que eu te ia deixar morrer sabendo que estamos

destinados a sair daqui? Não podia chegar assim tão perto e depois perder-se. - Não te mereço – repetiu ele. - Marido, esqueces-te de Luga? Meu Deus, esqueces-te de Leninegrado? De

Lazarevo? Eu não. A minha vida pertence-te.

Page 627: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

627

6

Alexander acordou e deu com Tatiana sentada na cadeira. Com a cabeça loura tapada pela touca, dormia debruçada para a frente sobre a sua cama. A grande enfermaria estava silenciosa, escura e fria. Puxou-lhe a touca, tocou-lhe nas madeixas de cabelo que lhe caíam sobre os olhos, acariciou-lhe as sobrancelhas e passou-lhe os dedos em volta das sardas, do nariz pequeno, dos lábios macios. Ela acordou:

- Hum. – Levantou a mão para lhe dar uma palmadinha. – Tenho de ir anadando.

- Tania... – murmurou. – Quando vou ser eu outra vez? - Querido, não te sentes tu? – perguntou em voz tranquila. Inclinou-se para

ele, embalando-o. – Abraça-me, Shura. Abraça-me com força. – Depois de uma pausa, acrescentou num murmúrio: - Como eu gosto...

Ele rodeou-a com os braços. Tatiana lançou-se-lhe ao pescoço e beijou-o ternamente, roçando-lhe com o cabelo.

- Conta-me um episódio que se tenha passado conosco. - Hum, que tipo de episódio? - Tu sabes o que quero dizer. Ela continuou a beijar-lhe rosto ao de leve, murmurando: - Lembro-me de uma noite de chuva em que fomos jantar com a Naira e

depois corremos para casa. Estendemos os cobertores perto do lime e tu fizeste amor comigo, dizendo-me que só pararias quando eu te suplicasse... – Sorriu com os lábios pousados na face dele. – E eu supliquei?

- Não – respondeu em voz rouca. – A fraqueza não quer nada contigo, Tatiasha

-Nem contigo. E depois adormeceu em cima de mim. Fiquei acordada abraçando-te durante muito tempo. Nem sequer te afastei e também adormeci. De manhã, continuava em ima de mim. Lembras-te?

- Lembro. – Fechou os olhos. – Lembro-me de tudo. – “De todas as palavras, dos sorrisos, de cada beijo que pousaste no meu corpo, dos jogos que jogamos, de cada torta de couve ‘Cavalheiro de Bronze’ que me cozinhaste. Lembro-me de tudo.”

- Agora conta tu. Mas baixinho, ou aquele cego do outro lado ainda tem um ataque de coração.

- Alexander afastou-lhe o cabelo do rosto e sorriu:

Page 628: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

628

- Lembro-me da Axinya de guarda à porta dos banya. Estávamos lá dentro sozinhos, ensaboados e loucos de desejo, e eu só dizia: chiu.

- Chiu – segredou ela sem ar, olhando para os homens adormecidos do outro lado da enfermaria.

Alexander sentiu-a tentando afastar-se. - Espera. – Abraçando-a, passeou o olhar pela enfermaria às escuras. – Preciso

de uma coisa. Ela sorriu-lhe: - Sim? O quê? – Conhecia bem aquele olhar. – Deves estar mesmo a ficar bom,

soldado. - Mais depressa do que imaginas. Colando o rosto ao dele, Tatiana segredou: - Oh, imagino. Alexander começou a desabotoar-lhe a parte de cima da farda. Ela recuou: - Não, não – pediu com ternura. - Não? Tatia, abre o uniforme. Preciso de te tocar nos seios. - Não, Shura. Se alguém acorda e nos vê, metemo-nos num grande sarilho. E

de certeza que alguém nos vai ver. Como enfermeira, ainda posso dar-te a mão, mas isso é de mais. Acho que nem o doutor Sayers ia compreender.

Ele não a largou: - Quero beijar-te e sentir os teus seios no meu rosto. Só por um segundo. Vá,

Tatiasha, desabotoa a parte de cima do uniforme, debruça-te como se estivesses a ajeitar-me a almofada e deixa-me sentir-te os seios na cara.

Obedeceu, suspirando e sentindo-se obviamente pouco à vontade. Alexander desejava-a tanto que estava pouco preocupado com a decência. “Está toda a gente a dormir”, pensou, observando-a avidamente enquanto ela desapertava a farda até à cintura, se aproximava dele e levantava a camisola interior.

Soltou uma exclamação tão alta quando lhe viu o peito que ela recusou e puxou rapidamente a camisola para baixo. Tinha os seios do dobro do tamanho, inchados e de um branco leitoso.

- Tatiana. – Soltou um queixume. Antes que ela recuasse mais, agarrou-lhe no braço e puxou-a para si.

- Shura, larga-me. - Tatiana – repetiu – Oh, não, Tania... Ela deixou de se debater, dobrou-se e beijou-o: - Vá lá, larga-me – murmurou. Não o fez: -Meu Deus, estás... - Estou, Alexander. Estou grávida. Emudecido, fitou-lhe o rosto radioso. - Que vamos fazer? – perguntou finalmente.

Page 629: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

629

- Vamos ter um filho! – Beijou-o. – Na América. Por isso, despacha-te e põe-te bom depressa para podermos sair daqui.

À falta de melhor, Alexander conseguiu articular: - Há quanto tempo sabes? - Desde dezembro. Sentiu-se alagado em suor: - Já sabias antes de vires para a frente? - Já. - E foste para o gelo sabendo que estavas grávida? - Fui. - Deste-me sangue sabendo que estavas grávida? -Dei. – Sorrindo: - Dei. Alexander desviou o olhar da parede, da cadeira e dela e virou a cabeça para a

tenda do isolamento: - Porque não me disseste? - Shura, não te disse por isto mesmo. Porque sabia... que ias ficar doente de

preocupação, especialmente porque ainda não estás bom e te pões a pensar que não podes proteger-me. Mas estou bem. – Sorrindo. – Melhor do que bem. E ainda é cedo. O bebê só nasce em agosto.

Alexander tapou o rosto com o braço. Não conseguia olhar para ela. - Queres ver-me outra vez os seios? – ouviu-a sussurrar. Abanou a cabeça: - Vou tentar dormir. Anda falar comigo amanhã. – Sentiu-a beijar-lhe o braço.

Tatiana partiu e ele ficou acordado toda a noite. Como era possível que ela não entendesse o terror, o pavor que lhe apertava

o coração ao imaginar-se a tentar passar pelas tropas fronteiriças da NKVD e atravessar a hostil Finlândia com uma mulher grávida? Onde estava a sua sensatez, o seu juízo?

“Mas é natural. Trata-se da mesma mulher que percorreu alegremente cento e cinquenta quilômetros, passando pelo Grupo Exército Norte de Manstein para me trazer dinheiro a fim de eu poder fugir, deixando-a. É evidente que não tem juízo.”

“Não vou fugir da Rússia a pé com a manha mulher e o meu filho”, disse Alexander com os seus botões. O pensamento voou-lhe para o apartamento comunitário da Quinto Soviete, a sujidade, o mau cheiro, as sirenes antiaéreas todas as manhãs e todas as noites, o frio. Lembrou-se de uma mãe que vira no ano anterior sentada na neve, gelada, com o filho gelado no regaço, e tremeu. O que seria pior para ele? Permanecer na União Soviética ou arriscar a vida de Tatiana?

Apesar de ser um militar, um oficial condecorado do maior exército do mundo, sentiu-se desanimado com a impossibilidade a sua escolha.

Na manhã seguinte, quando a mulher foi levar-lhe o pequeno-almoço, disse serenamente:

Page 630: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

630

- Espero que saibas, espero que compreendas que não vou para lado nenhum contigo grávida.

- O quê? Claro que vais. - Nem penses. - Meu Deus, Shura! Por isso é que não te queria dizer nada. Sei como ficas. - Como fico eu, Tania? – indagou acaloradamente – Como fico? Se não posso

sair da cama, como queres que fique? Deitado aqui como um inválido enquanto a minha mulher...

- Tu não és inválido! Exclamou ela. – Continuas a ser tudo o que eras, apesar de ferido. Não me venhas com histórias! É tudo temporário, Mas tués permanente. Por isso, coragem, soldado! Olha o que te arranjei... ovos. O doutor Sayers garantiu-me que são ovos a sério, e não desidratados. Verifica.

Alexander arrepiou-se ao pensar nos quinhentos quilômetros que separavam Helsínquia de Estocolmo, imaginando-se metido num camião percorrendo o gelo sob fogo alemão. Nem sequer olhou para os ovos que ela lhe estendia.

Ouviu-a suspirar: -Mas porquê? Porque ficas sempre assim? - Assim como? - Assim – Estendeu-lhe o garfo para os ovos. – Come... Alexander atirou o garfo para o tabuleiro de metal: - Tania, faz um aborto – disse com decisão. – Pede ao doutor Sayers que trate

disso. Teremos outros filhos. Muitos, muitos filhos, prometo. Não faremos nada a não ser ter filhos. Seremos como os católicos, está bem? Mas agora não podemos fazer o que planeámos contigo grávida. Não podemos. Eu não posso- acrescentou. Pegou-lhe na mão, mas ela deu-lhe um safanão e levantou-se.

- Estás a brincar? - Claro que não. Toda a gente faz. – Depois de uma pausa: - A Dasha fez três. –

Viu pela sua expressão que ela estava horrorizada. - Teus? – perguntou em voz fraca. - Não. Tatia. – Esfregou os olhos. – Não eram meus. Com um suspiro de alívio mas ainda muito pálida, segredou: -Mas eu pensava que o aborto era ilegal desde 1938. - Oh, meu Deus! – exclamou ele – És tão ingênua. As mãos tremiam-lhe. Tentou dominar-se e cerrou os dentes: - Pois sou. Se calhar podia ter feito três abortos ilegais antes de te conhecer.

Talvez isso me tornasse mais atraente e menos ingênua aos teus olhos. O coração de Alexander apertou-se: - Desculpa... não quis dizer isso. – Calou-se. Ela estava longe de mais e muito

zangada para ele poder dar-lhe a mão. – Pensei que a Dasha te tinha contado. - Não, não contou – retorquiu em voz baixa e torturada. – Nunca me falava

dessas coisas. Vivíamos quase em cima uns dos outros num apartamento comunitário, mas a minha família protegia-me o melhor que podia. Sabia que a

Page 631: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

631

minha mãe tinha feito meia dúzia de abortos em meados da década de 1930 e a Nina Iglenko oito, mas nem sequer é disso que estou a falar...

- Então qual é o problema? De que estás a falar? - Sabendo o que sinto por ti... achas que alguma vez poderia fazê-lo? Ele cerrou os lábios: - Não, claro que não. Porque haverias de o fazer? – Levantou a voz: - Porque

haverias de fazer alguma coisa que me desse um bocadinho de paz de espírito? Inclinando-se para ele, Tatiana sussurrou em voz zangada: - Tens razão. Ou a tua paz de espírito ou o nosso filho. A escolha é difícil. –

Atirou com o prato dos ovos para o tabuleiro de metal e saiu sem mais uma palavra. Não regressou durante todo o dia e Alexander chegou à conclusão de que não

suportava sabê-la zangada nem por um minuto, quanto mais durante as dezesseis horas que demorou a voltar. Pediu a Ina e ao doutor Sayers para a irem chamar, mas aparentemente não podia largar o que estava a fazer. Por fim apareceu à noite, muito tarde, levando-lhe um pedaço de pão branco com manteiga.

- Estás zangada comigo. – Tirou-lhe o pão das mãos. - Zangada não. Desiludida. - O que é ainda pior. Resignado, abanou a cabeça: - Tania, olha para mim. –

Ela levantou os olhos e ele viu-lhe o amor transbordando dos rebordos das íriscor de mar. – Vamos fazer exatamente o que queres. – Suspirou pesadamente: - Como sempre.

Sorrindo, Tatiana sentou-se na cama e tirou um cigarro do bolso: - Olha o que te trouxe. Queres fumar? - Não, Tania. – Puxou-a para sim: - Quero sentir os teus seios no rosto. –

Beijou-a e desapertou-lhe o uniforme. - Não vais ficar paralisado de terror, pois não? - Anda cá. Debruça-te por cima de mim. Estava escuro. Toda a gente dormia. Tatiana levantou a camisola, cursou-se e

encostou-se a ele. Sem ar e de olhos abertos, Alexander segurou-lhe nos seios com as mãos em concha, aconchegou o rosto entre eles, aspirou profundamente e beijou a pele branca que lhe cobria o coração:

- Oh, Tatiasha... - Sim? - Amo-te. - Também te amo, soldado. – Esfregou-lhe os seios ao de leve na boca, nariz,

faces. – Tenho de te barbear. Pica muit. - E tu estás muito macia. – murmurou, fechando a boca sobre o mamilo

dilatado. Percebeu que ela fazia um grande esforço para não gemer. Quando não aguentou e soltou mesmo um gemido, recuou e baixou a camisola.

- Não me excites, Shura. Garanto-te que todos estes homens vão acordar. Parece que cheiram o desejo.

- Eu também – retorquiu ele em voz rouca.

Page 632: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

632

Já abotoada e mais composta, Tatiana abraçou-o: - Não vês, Shura? O nosso bebê é um sinal de Deus. - É? - Sem dúvida. – O seu rosto brilhava. Ele compreendeu de repente: - Daí é que te vem a luminosidade! – exclamou. – Por isso pareces uma chama

a atravessar este hospital! É o bebê! - Pois é. Era isto que estava guardado para nós. Pensa em Lazarevo... quantas

vezes fizemos amor durante aqueles vinte e nove dias? - Não sei. – Sorriu: - Quantas? Vinte e nove mais quantos zeros? Riu sem fazer barulho: - Dois ou três. Fizemos amor com doidos, e no entanto não fiquei grávida.

Depois estás comigo uma semana e fico logo... como se diz... “de esperanças”? Alexander soltou uma gargalhada: - É isso, Tania. Mas deixa-me lembrar-te que também fizemos bastante amor

nesse fim de semana. - Pois foi. Entreolharam-se em silêncio, sem sorrir. Alexander sabia: tinham-se sentido

muito próximo da morte nesse fim de semana cinzento em Leninegrado. E no entanto...

Como a confirmar os seus pensamentos, Tatiana observou: - É Deus dizendo-nos para irmos. Não sentes isso? Está a dizer-nos: “Este é o

vosso destino! Não deixarei que nada aconteça à Tatiana enquanto tiver dentro dela o bebê do Alexander.”

- Sim? – As mãos dele afagavam-lhe o ventre com ternura. – Deus está a dizer isso? Então vai depressa contar o filho morto desde o quartel até Kobona.

- Agora sinto-me mais forte do que nunca, - Abraçou-o. – Onde está a tua famosa fé, grandalhão?

- Falaste com o doutor Sayers, Tania? – Afagava-lhe os dedos, os pulsos e as palmas das mãos debaixo do cobertor.

- Claro. Passo a vida a falar com ele, revendo todos os pormenores. Só temos de esperar que possas andar. Está tudo arranjado. Ele até já preencheu os meus documentos de viagem da Cruz Vermelha. – Ronronou e encostou-se mais a ele: - Isso é tão bom, Shura! Daqui a bocado estou a dormir.

- Não adormeças. Em que nome? - Jane Barrington. - É bonito: Jane Barrington e Tobe Hanssen. - Tove. - A minha mãe e um finlandês. Um belo casal! - Não é? – Semicerrando os olhos: - Mas que bom, Shura! Não apres. - Não vou parar – segredou ele em voz rouca, contemplando-a. Ela abriu logo

os olhos.

Page 633: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

633

Um momento. Fitaram-se. Recordando. Tatiana sorriu: - Na América, posso usar o teu nome? - Na América, vou insistir que o faças. – Ficou pensativo. - Que se passa? - Não temos passaportes. - E depois? Em Estocolmo, vais ao consulado dos Estados Unidos. Não há

problema. - Eu sei. Mas temos de ir de Helsínquia a Estocolmo. Não podemos ficar em

Helsínquia nem em segundo. É muito perigoso. E não vai ser fácil atravessar o mar Báltico.

Ela fez um sorriso aberto: - Que ias fazer ao teu demônio coxo? Passa-se o mesmo comigo. – Depois de

uma pausa: - “Chama ansioso o barqueiro - / E o barqueiro, desprendido, / Por dez copeques o transporta / Pelo rio embravecido.” – Sorrindo de felicidade: - A tua mãe, tu e os teus dez mil dólares levar-nos-ão à América. – Tinha as duas mãos pequenas e delicadas entrelaçadas nas dele.

Alexander sufocava sob o peso do amor que sentia. - Shura – começou ela em voz trêmula -, lembras-te do dia em que me

ofereceste o livro de Pushkin e me deste de comer nos Jardins de Verão? - Como se fosse ontem. – Sorriu. – Foi nessa noite que te apaixonaste por

mim. Ela enrubesceu e pigarreou: - Estavas... se eu não fosse tão medricas... ter-me-ias... – Interrompeu-se,

desviando momentaneamente o olhar. - O quê? O quê? – Apertou-lhe a mão. – Ter-te-ia beijado? - Hum. - Tania, estavas tão apavorada! -Abanou a cabeça, sentindo uma onda de

desejo: - Eu estava caidinho por ti. Beijar? Se me tivesse dado um sinalzinho que fosse, ter-te-ia devorado logo ali no banco, ao lado de Saturno comendo o filho.

Page 634: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

634

7

Melhorava a cada dia que passava. Já conseguia levantar-se e ficar de pé ao lado da cama. Ainda lhe doía estar direito, mas já não tomava morfina. As costas palpitavam-lhe de manhã à noite por causa disso, recordando-lhe a sua natureza mortal. Passava a vida a esculpir bocados de madeira. Até fizera um berço. “Em breve, em breve” repetia constantemente para si próprio. Quisera mudar para a enfermaria dos convalescentes, mas Tatiana convencera-o a deixar-se estar, dizendo-lhe que o sítio que ocupava e o tratamento que recebia eram bons de mais para desistir do seu lugar na unidade de cuidados Intensivos.

Quando uma tarde estavam os dois de pé junto da cama, ele com o braço passado, ainda em volta dela, Tatiana disse:

- Tens de melhorar de forma a que ninguém perceba que estás melhor. De contrário, ainda te mandam outra vez para a frente com o estúpido do teu morteiro. – Sorriu-lhe.

Alexandre retirou o braço ao ver Dimitri caminhando na sua direção. -Coragem, Tania – segredou. - O quê? - Tatiana! Alexander! – exclamou Dimitri. – Mas isto é incrível! Outra vez os

três juntos. Se a Dasha estivesse aqui! Não disseram nada nem olharam um para o outro. - Como estão as coisas nos casos terminais, Tania? Trouxe-te mais lençóis

brancos. - Obrigada, Dimitri. - De nada. Toma estes cigarros, Alexander. Não é preciso pagares. Sei que

provavelmente não tens dinheiro contigo. Posso levantar-te e trazer-te... - Não vale a pena, Dimitri. - Não me custa nada. – Parado aos pés da cama, os seus olhos dardejavam de

um para o outro. – Que fazes aqui na unidade de cuidados intensivos, Tania? Pensei que estavas na enfermaria dos doentes terminais.

- E estou. Mas também venho cá ver os meus doentes que escaparam. O Leo, da cama número 30, era terminal. Agora passa a vida a perguntar por mim.

Ele sorriu: - Não é só o Leo. Toda a gente pergunta por ti. – A jovem não disse nada. De

rosto, nem Alexander, que se sentou na cama. Dimitri continuou a estuda-los – Olhem, gostei de vos ver, Alexander, amanhã passo por cá. Tania, acompanhas-me à saída?

Page 635: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

635

- Não, tenho de mudar o pensamento do Alexander. - Oh, é que o doutor Sayers andava à tua procura. “Onde está a minha

Tania?”, perguntava ele. – Sorrindo calorosamente: - Foram as suas palavras exatas. Dás-te muito bem com ele, não é? – Erguendo as sobrancelhas: - Sabes o que se diz dos Americanos...

Ela não assentiu nem pestanejou. Limitou-se a virar-se para Alexander: - Vá, deita-te. – Ele não se mexeu. - Ouviste, Tania? – insistiu Dimitri. - Ouvi – respondeu ela sem levantar o olhar. – Se vires o doutor Sayers, podes

dizer-lhe que irei ter com ele logo que puder. Quando ele partiu, Alexander e Tatiana entreolharam-se. - Em que estás a pensar? – perguntou ele. - Que tenho de mudar esse penso e ir-me embora. Deita-te. - Queres saber em que estou a pensar? - De maneira nenhuma. Deitando-se de barriga para baixo: - Onde está a mochila com as minhas coisas? - Não sei. Porquê? Para que precisas dela? - Tinha-a nas costas quando fui atingido... - Mas não quando chegamos ao pé de ti. Provavelmente perdeu-se, querido. - Sim... Mas normalmente as unidades da retaguarda andam a apanhar coisas

assim quando a batalha termina. Importas-te de perguntar por aí? - Está bem. – Desenrolando s ligaduras: - Vou perguntar ao coronel Stepanov.

– Interrompeu-se e ele ouviu-a ronronar: - Sabes, Shura, o que mais desejo na vida é brincar aos comboios nas tuas costas. – Beijou-lhe o ombro nu.

- Pois então estás como eu. – Fechou os olhos. Nessa noite, mais tarde, com ela sentada ao seu lado. Alexander disse-lhe: - Tania, tens de me prometer que vais na mesma se me acontecer alguma

coisa. – Agarrou-se a ela. - Não sejas ridículo. Que te pode acontecer? – Não olhou para ele. - Estás a tentar ser muito valente? - Claro que não. Logo que estivermos em condições, partimos. O doutor

Sayers está pronto... na verdade, mortinho por ir. É um grande resmungão. Passa a vida a refilar. Não gosta de frio, não gosta dos ajudantes, não gosta... – Interrompeu-se. – Por isso, de que estás a falar? Que pode acontecer? Não permitirei que voltes para a frente. E não parirei sem ti.

- É disso que estou a falar. Claro que partirás. - Claro que não. Alexander pegou-lhe na mão: - Ouve... Ela fez menção de se levantar e virou a cabeça:

Page 636: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

636

- Não quero ouvir. – Ele não a largava. – Alexander, por favor, não me assustes. Não me desencorajes. Por favor – disse com seriedade, respirando muito ao de leve.

- Há muitas coisas que podem correr mal. Sabes bem eu existe sempre o perigo de eu ser preso.

Assentiu: - Eu sei. Mas se fores levado pelos homens do Mekhlis, ficarei à espera. - À espera de quê? – exclamou, frustrado. Aprendera à sua custa que o melhor

que podia esperar era que Tatiana concordasse com ele, porque ela tomou-lhe as mãos escuras e marcadas pela guerra nas suas brancas e imaculadas e levou-as aos lábios:

- À tua espera. Depois tentou afastar-se, mas ele não deixou, puxando-a da cadeira e

obrigando-a a sentar-se ao seu lado na cama. - À minha espera onde? – perguntou. - Em Leninegrado. Em minha casa. A Inga e o Stanislav foram-se embora.

Tenho dois quartos. Esperarei. E quando regressares estarei lá com o teu filho. - As autoridades soviéticas tirar-te-ão a entrada e o quarto com o fogão. - Então esperarei no outro. - Durante quanto tempo? Ela contemplou os outros doentes adormecidos e as janelas às escuras.

Passeou o olhar por tudo menos por ele. O silêncio reinava na enfermaria. Só se ouvia a respiração dele e a dela.

- Durante o tempo que for preciso. - Oh, por amor de Deus! Preferes ser uma solteirona metida num quarto frio

sem canalização a tentar lutar pela vida? - Prefiro. Não existe outra vida para mim. Nem vale a pena falar mais no

assunto. - Tania, por favor... – murmurou Alexander, sem conseguir prosseguir. – E

quando o Mekhlis te for buscar a ti? Que farás? - Irei para onde me mandarem. Para Kolyma. Para a península de Taimir. O

consumismo há de acabar por cair... - Tens a certeza? - Tenho. Quando já não houver pessoas para reconstruir o país, nessa altura

soltar-me-ão. - Meu Deus do Céu – sussurrou Alexander. – Agora já não és só tu. Tens de

pensar no bebê! - Mas de que estás a falar? O doutor Sayers não me leva sem ti. Não tenho

direito... à América. Vou seja para onde for contigo. Quares ir para a América? Está bem. Queres ir para Austrália? Vamos lá. Para a Mongólia? O deserto de Gobi? O Daguestão? O lago Baical? A Alemanha? O lado frio do Inferno? Quando partimos?

Page 637: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

637

Seja para onde for... irei contigo. Mas se ficares, então também ficarei. Não deixo o pai do meu filho na União Soviética.

Debruçando-se sobre Alexander, emocionado, apertou-lhe os seios contra o rosto e beijou-lhe a cabeça. Voltou a sentar-se e beijou-lhe os dedos trêmulos.

- Que me disseste em Leninegrado? ”Que visa poderia eu conseguir sabendo que tenha deixado na União Soviética à morte ou ao abandono?” Estou a citar-te. Foram palavras tuas. – Sorriu: - E aqui tenho de concordar contigo. – Assentiu e acrescentou com ternura: - Se te deixasse, independentemente do caminho que tomasse, o Cavaleiro de Bronze havia na verdade de me perseguir toda a noite até à loucura, com um bater de cascos ensurdecedor.

- Tatiana... estamos em guerra – replicou ele com emoção – A guerra está à nossa volta. – Sem conseguir olhar para ela: - Há homens que morrem na guerra.

Por muito forte que estivesse a tentar ser, escapou-lhe uma lágrima de olhos: - Por favor, não morras – segredou. – Não conseguirei sepultar-te. Já sepultei

todos os outros. - Como posso morrer... – a voz embargou-se-lhe - ... quando derramaste em

mim o teu sangue imortal? Dimitri apareceu numa manhã fria, com a mochila de Alexander na mão.

Coxeava muito da perna direita. O moço de recados dos generais, o lacaio imprestável, transbordando constantemente cigarros, vodca e livros entre as tendas da retaguarda, o estafeta que se recusava a pegar em armas avançou a coxear, estendendo-lhe a mochila.

- Ah, então foi mesmo encontrada! – observou Alexander com firmeza. – O que te aconteceu?

- Sei lá! Uma estupidez no cais. Uns gajos... não sei, estavam lixados. Olha para a minha cara.

Alexander examinou-lhe as nódoas negras. - Segundo eles, eu andava a cobrar de mais pelos cigarros. Desse-lhes para

levarem tudo. Foi o que fizeram, mas pregaram-me um susto. – Com um sorriso afetado: - Não vão rir-se durante muito tempo. – Aproximando-se, sentou-se na cadeira por baixo da janela. – A Tatiana fez um bom trabalho comigo. Consertou-me bem. – Alguma coisa na sua voz pôs o estômago de Alexander às voltas. – Ela é maravilhosa, não achas?

- Acho. É uma boa enfermeira. - Boa enfermeira, boa mulher, boa... – Interrompeu-se. - Excelente. Obrigado pela mochila. - Oh, de nada. – Levantou-se para partir. Depois, fingindo lembrar-se de

alguma coisa, voltou a sentar-se: - Quis certificar-me de que tinhas tudo aquilo de que precisavas na mochila: livros, caneta e papel. Na verdade, não tinhas caneta nem papel, por isso ainda bem que verifiquei, porque pus-te o que faltava. Só para o caso de quereres escrever alguma carta. – Sorriu com simpatia: - E também cigarros e um isqueiro novo.

Page 638: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

638

Segurando a mochila, Alexander replicou com ar sombrio: - Andaste a vasculhar as minhas coisas? – O estômago embrulhou-se-lhe com

mais intensidade. - Oh, só para te ser útil. – Fez novamente menção de partir: - Mas sabes... –

Virou-se. – Encontrei uma coisa muito interessante. Alexander desviou o olhar. Queimara relutantemente as cartas de Tatiana,

mas havia uma coisa que não podia destruir. Uma réstia de esperança que tinha sempre consigo.

- Dimitri, que queres? – Atirando com a mochila para o lado da cama, cruzou os braços em ar de desafio.

Dimitri pegou nela com modos amáveis e delicados, abriu-a e tirou o vestido branco com rosas vermelhas:

- Olha o que encontrei no fundo. - E depois? – Falou em voz calma. - Depois? Realmente tens razão. Porque não haverias de andar com vestido da

irmã da tua falecida noiva? - Admiras-te por o teres encontrado? Não deve ser assim uma surpresa muito

grande – comentou com acidez. – De resto, vasculhastes as minhas coisas à sua procura.

- Bem... sim e não – respondeu jovialmente. – Reconheço que fiquei um tanto surpreendido. Espantado.

- Espantado? Porquê? - Achei muito interessante. O vestido, a Tatiana aqui na frente trabalhando

com um médico da Cruz Vermelha, tu no mesmo hospital... Desconfiei que não era coincidência. Sempre achei que vocês não eram indiferentes um ao outro. – Olhou de relance para Alexander. – Sempre, sabes? Desde o princípio. Por isso, fui falar com o coronel Stepanov, que se lembrou de mim dos velhos tempos e se mostrou muito simpático. Gosto mesmo daquele homem. Desse-lhe que não me importava de te trazer o teu pré, para poderes comprar tabaco, jornais e vodca, e ele mandou-me ir ter com o oficial às suas ordens, que me deu quinhentos rublos. Quando me mostrei admirado por só receberes quinhentos rublos sendo major, sabes o que ele me disse?

Cerrando os dentes, a fim de diminuir a palpitação que sentia nas têmporas, Alexander perguntou devagar:

- O quê? - Que o resto do dinheiro era enviado para um tal Tatiana Metanova,

redindete na Quinto Soviete. - É verdade, sim. - Claro, porque não? Então fui outra vez ter o coronel Stepanov e disse-lhe:

“Meu coronel, não é fantástico o boêmio do nosso Alexander ter arranjado uma boa rapariga como a enfermeira Metanova?” E o coronel responde-me que também

Page 639: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

639

ficara muito admirado por te teres casado em Molotov durante a licença de verão sem dizeres nada a ninguém.

Ficou calado. - Sim! – exclamou Dimitri num tom franco e jovial. – Eu disse que era

realmente uma surpresa, porque também não sabia, apesar de ser o teu melhor amigo, O coronel concordou que, na verdade, és uma pessoa muito fechada. “Oh, nem faz ideia, meu coronel!”, tornei-lhe eu.

Alexander desviou o olhar de Dimitri e observou os outros soldados deitados na cama. Conseguiria levantar-se? Andar: Que podias fazer?

Dimitri pôs-se em pé: - Olha que bela notícia! Só queria dar-te os parabéns. Vou procurar a Tatiana

para felicitá-la. Tatiana apareceu mais tarde. Depois de lhe dar de comer, foi buscar um balde

de água quente e sabão. - Tania não pegues nisso. É muito pesado para você. - Cala-te. – Sorrindo: - Ando com o teu filho... e um balde é muito pesado para

mim? Não falaram muito. Tatiana lavou-o, barbeou-o e enxugou-lhe o rosto. Ele

mantinha os olhos fechados para ela não ver através deles. De vez em quando cheirava o seu hálito quente ou sentia-lhe os lábios nas sobrancelhas e nos dedos. Depois, ela afagou-lhe o rosto e suspirou:

- Shura – começou em voz séria -, estive com o Dimitri. - Sim. – Não era uma pergunta. - Sim. – Interrompeu-se. – Estava... Disse-me que lhe tinhas contado que

casamos e que se sentia muito contente por nós... – Suspirando: - Suponho que era inevitável que ele descobrisse mais cedo ou mais tarde.

- Pois foi. Escondemo-nos o melhor que pudemos do Dimitri. - Olha, posso estar errada, mas ele não me pareceu tão nervoso como de

costume. Era como seja não quisesse saber de nós. Que achas? – indagou com esperança;

Alexander teve vontade de lhe perguntar: Penas que esta guerra talvez tenha feito dele um ser humano? Pensas que a guerra é uma escola de humanidade e que o Dimitri vai passar o exame de distinção? Mas então abriu os olhos e vou sua expressão assustada.

- Que tens razão – retorquiu serenamente. – Ele já não deve querer saber de nós.

Ela pigarreou tocou no seu rosto barbeado, curvou-se e sussurrou: - Pensas que daqui a pouco já consegue levantar-te? Não quero apressar-te,

mas ontem vi-te a tentares andar. Custa-te estar de pé? As costas doem-te: Não tarda nada ficam boas, Shura. Estás a ir muito bem. Partiremos logo que puder. E nunca mais teremos de o ver.

Contemplou-a durante minutos intermináveis.

Page 640: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

640

Antes de ele poder abrir a boca, Tatiana continuou: - Não te preocupes, Shura. Tenho os olhos abertos. Sei muito bem quem é o

Dimitri. - Sabes? - Sei. Porque, tal como todos nós, ele também é a soma das partes. - Ninguém pode salvá-lo, Tania. Nem você. - Achas que não? Alexander apertou-lhe a mão: - Ele é exatamente o que quer ser. Como pode ser salvo se construiu a sua

vida sobre aquilo que acredita ser a única maneira de viver? Não a tua maneira, nem a minha, mas a dele. Fortaleceu-se apoiando-se na mentira e na falsidade, na manipulação e na maldade, no desprezo por mim e no desrespeito por ti.

- Eu sei. - Meteu-se num canto escuro do Universo e quer-nos a todos com ele. - Eu sei. - Tem muito cuidado. E não lhe contes nada. - Está bem. - Que seria preciso para o rejeitares, para lhe virares as costas e dizeres: Não

posso dar-lhe a mão porque ele não quer ser salvo? O que? Os pensamentos transbordaram-lhe dos olhos: - Oh, mas ele vai querer ser salvo, Shura. Só que isso não acontecerá. Dimitri foi visitar Alexander no dia seguinte caminhando apoiado numa

bengala. Que vida a minha!,pensou ele. Há combates no rio, as pessoas recuperam a saúde na enfermaria do lado, os generais fazem planos, os comboios transportam comida para Leninegrado, os alemães chacinam-nos do alto do Sinyavino, o doutro Sayers prepara-se para deixar a União Soviética, a Tatiana senta-se com os soldados terminais enquanto a vida cresce dentro dela e eu aqui deitado no meu berço, observando os lençóis a serem mudados e o mundo a passar à minha frente. Os meus minutos a ecoarem-se. Estava farto que afastou os cobertores, levantou-se e já ia a desenganchar-se o frasco do soro quando Ina correu a deitá-lo, resmungando que era melhor que nunca mais tentasse fazer o mesmo.

- Quer que eu faça queixa à Tatiana?- murmurou, deixando-o a sós com Dimitri, que se sentou na cadeira.

- Preciso falar contido, Alexander. Tens forças para me ouvir? - Tenho, Dimitri, tenho. – Fez um esforço sobrenatural para virar a cabeça na

direção dele, mas não conseguiu encontrar os seus olhos. - Olha, estou francamente satisfeito por tu e Tania se terem casado. A sério

que não guardo rancor. Mas, como cabes, ainda temos um assunto por resolver. - Sei – retorquiu. - A Tatiana mantém muito bem a compostura. Creio que a subestimei. É

menos ingênua do que pensei. Nem ele sabia como!

Page 641: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

641

- Sei que vocês os dois estão a preparar alguma. Tenho certeza. Sinto-o aqui dentro. Tentei que desembuchasse comigo, mas a única coisa que me disse foi que não fazia ideia do que eu estava falando. Mas eu sei! – Parecia agitado: - Conheço-te, Alexander Barrington, e por isso te pergunto se caibo em vossos planos.

- Não faço ideia do que está falando – declarou Alexander com firmeza, pensando. Houve um tempo em que eu não tinha ninguém em quem confiar exceto neste homem. Pus minha vida nas mãos deste homem. – Não tenho planos nenhum, Dimitri.

- Hum. Sim. Mas, sabes, agora entendo muitas coisas. – Com um sorriso untuoso: - É por causa da Tatiana que tens adiado a fuga. – Depois de uma pausa: - Queria congeminar uma maneira de fugir com ela? Não querias desertar e deixa-la para trás? Compreendo. – Pigarreou: - Vamos todos juntos.

- Não temos quaisquer planos, mas eu comunico-te se houver mudanças. Dimitri regressou a coxear cerca de uma hora mais tarde, desta vez com

Tatiana, que sentou na cadeira, agachando-se ao seu lado. - Vê se metes algum juízo na cabeça do teu marido, Tania. Explica-lhe que

tudo o que quero é que me tirem da União Soviética. Foi o que sempre quis. E estou ficando nervoso, sabe: Por que não posso ver-vos fugir deixando-me aqui, no meio da guerra. Entende?

Nem Alexander nem Tatiana disseram nada. Ele observou o cobertor. Ela olhou-o sem pestanejar, Quando a viu fitando-o

sem vacilar, Alexander sentiu-se mais forte e também o enfrentou. - Estou do seu lado, Tania. Não quero que vos aconteça nada de mal, nem a ti

nem ao Alexander. Bem pelo contrário. – Sorriu: - Desejo-vos toda a sorte do mundo. É tão difícil duas pessoas encontrarem a felicidade! Sei-o bem, porque tentei. E vocês terem-no conseguido... Não sei como... é um milagre. Só quero ter a mesma oportunidade. Quero que me ajudem.

- A auto conservação como direito inalienável – comentou Alexander. - O que? – inquiriu Dimitri. - Nada. - Dimitri, não percebo o que tem isso a ver comigo – observou Tatiana. - Tudo, querida Tanechka. Tem tudo a ver contigo. A não ser, claro, que seja

com o bonito e sadio médico americano que tencionas fugir e não com o teu marido ferido. Andam a planejar ir com Sayers quando ele regressar a Helsínquia, não é?

Ninguém falou. - Não tenho tempo para estes joguinhos – atirou ele friamente, pondo-se de

pé e encostando-se à bengala. – Tania, estou a falar contigo. Ou me leva com você ou receio muito que o Alexander tenha de ficar aqui na União Soviética comigo.

Com a mãe na de Alexander, Tatiana permaneceu estoicamente sentada na cadeira. Depois, levantou os ombros para perguntar qualquer coisa.

Alexander apertou-lhe a mão com tanta força que ela soltou um gritinho.

Page 642: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

642

- Ora, ora! – exclamou Dimitri. – É mesmo assim. Compreendendo tudo, ela convence-te. Tatiana, como o fazer? Que insondável capacidade tem para entender tudo tão bem? O teu marido, que nesse campo é menos capaz, bem tenta contrariar-te, mas acaba por ceder porque ele sabe que é o único caminho.

Nenhum dos dois disse uma palavra. Ele diminuiu a pressão na mão dela, que permaneceu aninhada na sua.

Dimitri cruzou os braços e ficou à espera. - Não saio daqui enquanto não obtiver uma resposta. Tania, que dizes? O

Alexander é meu amigo há seis anos. Gosto de vocês dois. Não quero problemas. – Pondo os olhos em alvo: - Acredita... odeio problemas. Tudo o que quero é uma pequena parte do que estão planejando. Não é pedir muito, pois não? Só um bocadinho. Não te sente egoísta ao negar-me a oportunidade de uma vida nova, Tania? Então... tu, que deste as tuas papas de aveia à Nina Iglenko o ano passado, de certeza que não vais recursar-me tão pouco, quando... – olhou para ela e Alexander - ...vocês tem tanto?

Com a mágoa e a revolta disputando-lhe o coração aguerrido, Alexander disse:

- Tania, não lhe dê ouvidos. Deixa-a em paz, Dimitri. Isso é entre nós. Não tem nada a ver com ela. – O outro homem ficou calado. Também em silêncio, Tatiana esfregou ritmicamente os dedos na palma da mão de Alexander. Com um ar pensativo, abriu a boca para falar. – Não digas nem uma palavra.

- Diz, Tatiana. É contigo. Mas, por favor, dá-me uma resposta. Não tenho muito tempo.

A jovem levantou-se: - Dimitri – começou sem pestanejar -, ai daquele que está só e cai, porque não

terá ninguém para o levantar. Ele encolheu os ombros: - Devo então perceber que tu... – Interrompeu-se – O que? Que estás a dizer?

É sim ou não? Apertando com força a mãe de Alexander, Tatiana disse tão baixinho que mal

se ouvia. - O meu marido fez-te uma promessa. E ele cumpre sempre a sua palavra. - Sim! – exclamou Dimitri, saltando para ela. Alexander viu-a encolhendo-se. - Amor com amor se paga – continuou suavemente. – Mais tarde falo-te dos

nossos planos. Mas tens de estar pronto a qualquer altura. Entende? - Até estou pronto já. Retorquiu, agitado. – A sério. Quero partir o mais cedo

possível. – Estendeu a mão esquerda a Alexander, que virou a cabeça, ainda agarrado a mulher. Não fazia tenções de lhe apertar.

Foi uma Tatiana muito pálida que as juntou. - Esta tudo bem – A voz tremia-lhe ao de leve. – Vai correr tudo bem. Dimitri foi-se embora.

Page 643: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

643

- Que podíamos fazer Shura? – indagou, dando-lhe de comer. – Terá de ser assim. Muda um bocadinho as coisas, mas não muito. Cá nos arranjaremos.

Alexander a contemplou-a. Ela assentiu: - O que mais quer é sobreviver. Tu próprio me disse. E o que me disse você, Tania?,pensou ele. Que você me disse no alto de Santo

Isaac, sob o céu negro de Leninegrado? - Vamos leva-lo. Assim deixa-nos em paz. Vai ver. Por favor, melhora

depressa. - Partamos Tania. Diz ao doutor Sayers que quando quiser ir, estou pronto. Tatiana saiu. Passou um dia. Dimitri regressou. Sentou-se na cadeira ao lado de Alexander, que não olhou na sua direção.

Fitando primeiro a distância e pousando depois o olhar no cobertor castanho de lá, tentou lembrar-se do último nome de pensão residencial de Moscovo onde vivera com a mãe e o pai. Mudava regularmente de nome, o que era uma fonte de confusão e divertimento para Alexander, que agora tentava propositadamente afastar o pensamento de Tatiana e da pessoa que se encontrava sentada na cadeira, a menos de um metro dele. Oh, não! Pensou com uma picada de dor.

Lembrou-se do último nome da pensão. Era Kirov. Dimitri pigarreou. Alexander ficou à espera. - Podemos falar? É muito importante. - Tudo é importante – declarou Alexander. – Não faço mais nada senão falar.

O que é? - É sobre Tatiana. - Que tem ela: - Observou o frasco do soro. Quanto tempo faltaria para o

poder desligar? Sangraria? Passeou o olhar em volta da enfermaria. Passava pouco da hora do almoço e os outros feridos dormiam ou liam. Sentada junto a porta, a enfermeira de serviço também lia. Onde andaria Tatiana. Puxou-se para cima e sentou-se encostado à parede.

- Sei o que sentes por ela... - Sabes? - Claro que sim... Não sei porquê, mas duvido. Que tem ela? - Está doente. Alexander calou-se. - Sim, doente. Tu nãos abes o que eu sei. Não vês o que eu vejo. Parece um

fantasma caminhando pelo hospital. Passa a vida a desmaiar. No outro dia, ficou desfalecida na neve não sei quanto tempo. Foi um tenente que a ajudou a levantar-se. Trouxemo-la ao doutro Sayers. Ela fez um ar muito corajoso...

Page 644: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

644

- Como sabes que desmaiou na neve? - Ouvi a história. Ouço tudo. E também a vejo na enfermaria dos doentes

terminais. Anda agarrada a parede. Disse ao doutor Sayers que não tem o suficiente para comer.

- E como sabes disso? - O Sayers contou-me. Pelos visto tu o doutor Sayers estão ficando muito amigos. - Não. Só lhe trago ligaduras, tintura de iodo e remédios do outro lado do

lago. Nunca tem que chegue. Depois falamos uns minutos. - Onde queres chegar? - Sabias que ela nãos e sente bem? Alexander ficou pensativo e carrancudo. Sabia que precisava de se alimentar

mais e porque passava a vida a desmaiar, mas a última coisa que faria na vida era contar o que fosse a Dimitri. Manteve-se em silêncio por um momento.

- Dimitri, queres chegar a algum lado? - Quero. – Baixou a voz e aproximou a cadeira da cama: - Os nossos planos...

são arriscados. Exigem força física, coragem e determinação. Virou a cabeça para ele: - Sim? – perguntou, admirado ao ouvir a boca de Dimitri pronunciando

palavras como determinação. – E depois? - Como achas que Tatiana se vai sair? - Que estás para aí a dizer... - Alexander! Ouve-me por um segundo. Espera até falares. Ouve. Ela é fraca, e

temos um caminho muito duro á nossa frente, mesmo contando com a ajuda do Sayers. Sabes que há seus postos de controle até Lisiy Nos? Seis. Basta uma palavra em qualquer um deles e estamos arrumados. Alexander... – Depois de uma pausa: - Ela não pode vir.

Alexander não levantou a voz? - Essa conversa é ridícula. - Não está ouvindo. - Pois não. - Deixa de ser teimoso. Sabes que tenho razão... - Não tens nada! – exclamou, cerrando os punhos. – Sei quem sem ela... –

Calou-se. Que fazia? Tentava convencer Dimitri? Impedir-se de gritar exigia-lheum esforço que nãos e sentia capaz de fazer. – Estou a ficar cansado – afirmou em voz alta. – Acabaremos essa discussão noutra altua.

- Não há outra altura? – silvou Dimitri. – Fala baixo. Vamos partir daqui a quarenta e oito horas e não quero que deites tudo a perder só porque não vês o que tens a frente dos olhos.

- Vejo perfeitamente – atirou-lhe Alexander. – Não te preocupes. Ela vem conosco.

- Mas se não se tem pernas depois de seis horas de trabalho!

Page 645: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

645

- Seis horas? Onde tens andado? Passa vinte quatro horas por dia! E o seu trabalho não é estar sentada num caminhão a fumar e a beber vodca. Dorme num cartão, come os restos dos soldados e lava a cara na neve. Não me fales do dia dela!

- E se acontecer alguma coisa na fronteira? Se, apesar dos esforços do Sayers, nos mandarem parar e nos interrogarem? E eu tu teremos de usar as ramas. Teremos de lutar.

- Faremos o que tiver que ser feito. – Lançou um olhar colérico a Dimitri com a sua bengala, rosto ferido e corpo corcunda.

- Sim, mas que fará ela? - O que tiver de ser. - Vai desmaiar! Vai cair na neve e tu ficas sem saber se hás de matar as tropas

fronteiriças ou ajuda-la a pôr-se de pé. - Farei as duas coisas. - Ela não corre, não dispara, não luta. E vai perder os sentidos ao primeiro

problema. E acredita, há sempre problemas. - E tu corres, Dimitri? – Não foi capaz de afastar o ódio da voz. - Corro! Ainda sou um soldado. - Então e o médico? Também não luta. - Mas é homem! De resto, sinceramente não me preocupa muito... - E a Tatiana sim? Que amável! - Preocupa-me o que ela fará. - Ah, digamos que há aí uma diferença. - Tenho medo de que fique nervoso por causa dela, cometa erros estúpidos e

estragues tudo. Ela vai atrasar-te, fazer-te pensar duas vezes antes de corrermos riscos que talvez seja preciso correr. O posto da floresta de Lisiy está mal guardado, mas não abandonado.

- Tens razão. Talvez tenhamos de lutar pela nossa liberdade. - Então concorda? - Não. - Ouve, Alexander. Está é a nossa última oportunidade. Sei que sim. O plano é

perfeito e pode funcionar muito bem. Mas ela vai levar à nossa perda. Não estáà altura. Não sejas estúpido agora que estás tão perto. – Sorrindo: - Temos esperando tanto tempo por isto! Não há tentativas de fuga, amanhãs ou próximas vezes. É agora ou nunca.

- Sou da mesma opinião. É agora ou nunca. – Fechando brevemente os olhos, teve de contrariar impulso para mantê-los fechados.

- Então ouve-me... - Não. - Vais ouvir quer queira quer não! – exclamou Dimitri. – Andamos a planejar

isso há muito tempo. Está aqui a nossa oportunidade! E não te digo que deixes a Tania na União Soviética para sempre. Nem por sombras. Só que não impeças que nós, que somos homens, façamos o que temos de fazer para escapar em segurança

Page 646: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

646

e, mais importante ainda, vivo! Se morrermos, nem tu lhe serves para nada nem vou apreciar a América. Temos de viver, Alexander! Além disso, andando escondidos nos atoleiros...

- Vamos de caminhão para Helsínquia. Que atoleiros. - Imagina que é preciso. Três homens e uma rapariguinha... uma multidão.

Não será escondermo-nos mas sim pedirmos para sermos apanhados. Se acontece alguma coisa ao Sayers, se é morto...

- Por que havia de ser morto? É um médico da Cruz Vermelha. – Estudou Dimitri com intensidade.

- Não sei. Mas se tivéssemos de atravessar o Báltico sozinhos... no gelo, a pé, escondendo-nos nos caminhões de abastecimento... bem, dois homens é possível. Mas três pessoas? Vamos dar muito nas vistas. Vão nos obrigar a parar e ela não se safará.

- Safou-se do bloqueio. Safou-se do gelo do Volga. Safou-se coma Dasha – lembrou Alexander. Mas o seu coração ardia de incerteza. Os perigos que Dimitri apontava correspondiam tanto ás suas próprias reticências que até sentia o estômago ás voltas. – O que dizes pode ser verdade – continuou com um grande esforço -, mas esqueces-te de duas coisas muito importantes. Que pensas que lhe acontecerá quando descobrir que eu desapareci?

- A ela? Nada. O seu nome continua a ser Tatiana Metanova. – Assentiu manhosamente: - Escondeste muito bem o teu casamento, o que te ajudará agora.

- Mas não a ajudará a ela. – Calou-se. - Ninguém saberá. - Está enganado. Eu saberei. – Cerrou os dentes para não lhe escapasse da

garganta um gemido de dor. - Sim, mas estarás na América. Em casa. Alexander falou em voz monocórdia: - Ela não pode ficar. - Pode. E fica bem. Alexander, ela nunca conheceu nada a não ser esta vida... - E tu também não! - Continuará aqui como se nunca te tivesse conhecido... - O que? Dimitri riu-se: - Sei que pensas muito em ti, mas ela há de esquecer-te. Já outras o fizeram.

Provavelmente gosta muito de ti... mas, com o tempo encontrará alguém. - Deixa-te de idiotices! Será presa em menos de três dias, na qualidade de

mulher de um desertor. Três dias. E tu sabes. Cala-te com esses disparates. - Ninguém saberá quem é. - Tu descobriste! Ignorando-o, Dimitri continuou calmamente: - A Tatiana Metanova regressará ao Hospital Grechesky e continuará a sua

vida em Leninegrado. E se ainda quiseres uma vez instalado na América, depois da

Page 647: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

647

guerra acabar podes mandar-lhe um convite formal, pedindo-lhe que vá a Boston visitar uma tia distante que está morrendo. Se puder, irá se juntar a ti, mas legalmente, em condições... de comboio ou de barco. Pensa nisto como uma separação temporária até os tempos serem melhores para ela... para todos nós.

Alexander coçou a cana do nariz com a mão esquerda. Não haverá ninguém que me livre desse Inferno?,pensou. Até tinha os cabelos da nunca em pé. Respirava com irregularidade.

- Dimitri! – Fitou-o bem de frente. – Já teve uma oportunidade na vida de fazer uma coisa decente: quando me ajudaste a ver meu pai. Agora tens uma segunda... não a deixe escapar. Que te importa que ela venha conosco?

- Tenho de pensar em mim, Alexander. Não posso perder tempo a pensar em proteger a tua mulher.

- E quando tempo perdeste a pensar nisso? Sempre te preocupaste só contigo...

- Ao contrário de ti, por exemplo? – riu? - Ao contrário de toda a gente. Anda conosco. Ela estendeu-te a mão. - Para te proteger. - Sim, mas estendeu. Aceita-a. Sairemos todos daqui. Seremos livros. Terás

aquilo que mais queres: uma vida libre longe da guerra. É o que mais queres, não é? – Lembrou-se das palavras de Tania em Santo Isaac: Ele cobiça mais aquilo que tu queres mais. Mas não seria derrotado. Nunca te tirará tudo, dissera-lhe sua Tatiana. Nunca terá tanto poder. – Gozarás a tua vida livre... graças a ela. Não perecemos... graças a ela.

- Seremos todos mortos... graças a ela. - Garanto-te que não. Agarra esta oportunidade, a tua vida. Não te nego o que

é teu por direito. Disse-te que te tiraria daqui e vou fazer. A Tania é muito forte e não nos deixará ficar mal. Vai ser. Não vacilará nem fracassará. A única coisa que tens a fazer é dizer sim. Eu e ela nos encarregamos do resto. Tu mesmo falaste que esta é a nossa última oportunidade. Concordo. Sinto-o mais do que nunca.

- Aposto que sim – retorquiu Dimitri. Tentou disfarçar a sua fúria desesperada: - Deixa-te guiar por outros sentimentos! Esta guerra levou-te a meteres-te na

tua concha e esqueceres os outros. Pensa nela ao menos uma vez. Sabes muito bem que morrerá se ficar aqui. Salva-a, Dimitri. – Quase disse por favor.

- E se vier, morreremos todos – replicou friamente. – Estou convencido disso. Alexander virou-se para diante e voltou a contemplar a distância. Os seus

olhos ficaram vítreos, desanuviaram-se e tornaram vítreos. A escuridão engoliu-o. - Alexander, será como morresse na frente. Se morresses no gelo, ela teria de

encontrar maneira de continuar a viver na União Soviética, não? É a mesma coisa. - É completamente diferente. – Observou as mãos tensas. Agora há luz á sua

frente.

Page 648: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

648

- Claro que não. De uma maneira ou de outra, ficará sem ti. - Não. - É um preço pequeno a pagar pela América! – exclamou Dimitri. Arrepiando-se e com o coração aos saltos no peito, Alexander não respondeu. A Ponte Fontanka, os parapeitos de granito, Tatiana de joelhos. - Vai perder-nos a todos. - Já disse que não. – A sua voz era de aço. Dimitri semicerrou os olhos: - Esta fazendo de propósito para não compreender? Ela não pode vir. Eu sou só um meio para atingir, dissera ela. Sou só as munições dele. Soltou uma gargalhada: - Até que enfim! Estava a ver que nunca mais me vinhas com as tuas ameaças

inúteis. Diz que ela não pode vir? - Não, não pode. - Muito bem – anuiu. – Também não vou. Acabou-se a discussão. O doutor

Sayers parte para Helsínquia imediatamente, eu regresso à frente daqui a três dias e a Tania volta para Leninegrado. – Fitando-o com ódio: - Não vai ninguém. Pode retirar-se, soldado. A reunião terminou.

O outro o observou com uma surpresa fria: - Está dizendo que não vai sem ela: - Não ouviu? - Compreendo. – Fez uma pausa coçava as mãos. Depois se inclinou,

debruçando-se sobre a cama: - Subestimas-me, Alexander. Vejo que não darás ouvidos à razão. É uma pena. Então se calhar vou falar com a Tania e explicar-lhe a situação. Ela é muito mais razoável do que você. Quando perceber que o marido corre um grave perigo, tenho certeza que se oferecerá para ficar... – Não acabou.

Agarrou-lhe no braço. Dimitri soltou uma exclamação e levantou a outra mão, mas já era tarde. Alexander prendeu-lhes as duas:

- Vê se entendes – começou, apertando o polegar e o indicador como um torno em volta do pulso. – Tanto faz que fales com a Tania, o Stepnov, o Mekhlis ou toda União Soviética, Podes falar à vontade, Não saio daqui sem ela. Se ela fica, eu também. – Com um empurrão violento, partiu-lhe o osso do antebraço. Apesar de cego de fúria, ouviu-o estalar. Pareceu-lhe o machado batendo nos pinheiros flexíveis de Lazarevo. Dimitri gritou mas ele não o alargou.

- És tu que me subestima, seu filho da mãe! – Tantos sacões lhe deram no pulso, que o osso partido furou a pele.

Dimitri continuava a gritar. Cerrando o punho, deu-lhe um soco na cara. O murro faturou-lhe o osso do nariz, que teria ido alojar-se no lóbulo frontal, se o choque não houvesse sido amortizado por um enfermeiro que lhe travou o braço, atirando-se literalmente para cima dele e berrando.

- Pare! Que está fazendo? Largue, largue! Ofegando, empurrou Dimitri que caiu ao chão como um saco de batatas.

Page 649: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

649

- Solte-me! – berrou ao espantado enfermeiro, limpando as mãos. Como arrancara a agulha do soro, o sangue escorria-lhe agora por entre os dedos. Afinal sangra mesmo, pensou.

- O que aconteceu aqui? – gritou a enfermeira, aparecendo a correr. – Que se passa? Então este soldado vem visita-lo e faz-lhe isso?

- Da próxima vez não o deixe passar. – Afastou os cobertores e levantou-se. - Volte já pra cama! Tenho ordens para não o deixar sair da cama em

circunstância alguma. Vai ver quando Ina voltar! Nunca trabalho na enfermaria dos cuidados intensivos. Porque acontece sempre alguma coisa no meu turno?

Depois de uma agitação que durou uma boa meia hora, um Dimitri coberto de sangue e inconsciente foi levantado do chão e o enfermeiro limpou a sujeira, queixando-se de que já tinha bastante trabalho e resmungando que não precisava que doentes andassem agora a ferir homens perfeitamente saudáveis.

- Perfeitamente saudável? – repetiu Alexander. – Não viu como coxeava? Não lhe viu a cara marcada? Perguntei aí. Não é a primeira vez que lhe batem. E garanto-lhe que não será a última.

Mas sabia que não fora só bater-lhe: se não o tivessem agarrado, o teria matado de mãos nuas.

Alexander adormeceu, acordou e olhou em volta. Estava-se a meio da tarde. Ina encontrava-se à paisana. Observou-se com

atenção. Não demorou muito tempo, pensou. Imóvel e só, permaneceu com a mochila no colo e ambas as mãos pousadas

no vestido branco com as rosas vermelhas. Por fim, teve sua resposta. Percebeu o preço de Tatiana. O coronel Stepanov foi visitá-la nessa tarde, com os olhos cavados e o rosto

cinza. Alexander fez continência ao seu comandante que se sentou pesadamente na cadeira e disse baixinho:

- Não sei como hei de dizer-lhe isto. Na verdade, não devia estará aqui. Vim não na qualidade de seu comandante, mas de alguém que...

Alexander interrompeu-se com delicadeza: - Meu coronel, a sua presença é um bálsamo para a minha alma. Mais do que

pensa. Sei porque está aqui. - Sabe? - Sei. - Então é verdade? O general Govorov veio dizer-me que o Mekhlis... –

pareceu cuspir o seu nome - ...o abordou informando-o que você tinha fugido da cadeia e que era um provocador estrangeiro. Um americano! – Rindo: - Como é possível? Respondi que era ridículo...

- Meu coronel, servi orgulhosamente o Exército Vermelho durante quase seis anos.

- Tem sido um militar exemplar, major. Disse-lhes isso repeti-lhes que não podia ser verdade. Mas como sabe... – Interrompeu-se. – A acusação é tudo.

Page 650: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

650

Lembra-se do Meretskov? Agora comanda a frente de Volkhov, mas há nove meses estava nas caves da NKVD esperando que uma parede ficasse disponível.

- Conheço a história. Quando tempo pensa que ainda tenho? Stepanov ficou calado. - Virão busca-lo à noite – replicou por fim. – Não se conhece a sua maneira de

funcionar... - Infelizmente, muito bem, meu coronel – respondeu sem olhar para ele. – É

tudo furtivo e clandestino. Não sabia que tinham instalações aqui em Morozovo. - Primitivas, mas tem. De resto, tem-se em todo lado. Mas como é um oficial,

devem manda-lo para Volkhov, do outro lado do lago. – Falou num murmúrio. Do outro lado do lago. - Obrigado, meu coronel. – Conseguiu sorrir ao seu comandante: - Acha que

primeiro vou ser promovido a tenente- coronel? Stepanov soltou uma exclamação: - De todos os meus homens, era em si que depositava mais esperanças,

major. Alexander abanou a cabeça: - Mas eu também era o que tinha menos hipóteses, meu coronel. Faça-me um

favor: se for interrogado a meu respeito, compreenda que... – disse, esforçando - se por encontrar as palavras adequadas - ...apesar do seu valor, há batalhas que estão perdidas à partida.

- Sim, major. Se sabe isso, então não perca tempo a defender a minha honra nem a minha

folha de serviços. Afaste-se e recue, meu coronel. - Baixou o olhar: - E leve as armas consigo.

Stepanov levantou-se. Havia, no entanto, um assunto que permanecia por mencionar. Alexander não conseguia pensar em si próprio nem Stepanov. Tinha de

perguntar: - Ouviu falar alguma coisa da minha... – Não foi capaz de continuar. Porém, Stepanov percebeu: - Não. Mas é só uma questão de tempo. Graças a Deus, Então Dimitri não os queria aos dois. A única coisa que

pretendia era que não se tivesse um ao outro, mas tencionava salvar a pele. Ele nunca tirará tudo, Alexander. Ainda havia esperança.

- Posso fazer alguma coisa por ela? – ouviu Stepanov perguntar. – Quer que tente transferi-la para um hospital de Leninegrado ou Molotov... para longe daqui?

Teve um espasmo e virou a cabeça: - Sim, meu coronel, realmente podia fazer uma coisa para ajudar... Não teve tempo para pensar nem paras sentir. Sabia que restava dele em

breve seria engolido. Mas agora tinha de agir. Logo que Stepanov partiu, fez sinal a Ina e pediu-lhe para chamar doutor Sayers.

Page 651: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

651

- Major, não sei se deixam alguém aproximar-se de si depois do que se passou esta tarde.

Alexander olhou de relance para os homens vestidos à paisana: - Foi um acidente, Ina. Não há motivo para preocupações. Mas faça-me um

favor: não diga nada à enfermeira Metanova. Sabe como ela fica. - Sei. Ou se porta bem daqui para frente ou eu conto-lhe tudo. - Eu porto-me bem, Ina. Sayers apareceu uns minutos mais tarde, sentou-se e comentou jovialmente: - O que se passa, major? Que história é essa sobre o braço de um soldado?

Que aconteceu? Encolheu os ombros: - Perdeu ao braço de ferro. - Pois, parece que sim. E o nariz partido? Também perdeu ao nariz de ferro? - Ouça doutor Sayers: esqueça-o por um segundo. – Reuniu a vontade que lhe

restava para falar. A força que em tempos possuíra deixara-lhe o corpo e voara para uma mulher pequenina cheia de sardas. – Da primeira vez que falamos de...

- Já sei. Não diga mais nada. - Perguntou-me o que podia fazer para ajudar, lembra-se? Eu respondi-lhe

que não me devia nada. – Fez uma pausa recompondo-se: Pois estava enganado. Preciso desesperadamente da sua ajuda.

Sayers sorriu: Major Belov, já estou a fazer tudo que posso por ti. A sua enfermeira tem um

grande poder de persuasão. A minha enfermeira. Alexander recolheu-se dentro de si próprio: - Não, ouça com atenção. Quero que faça uma coisa por mim: só uma. - O que é: Se puder... Falou em voz hesitante: - Tire a minha mulher da União Soviética. - É o que vou fazer, major. - Não, doutor. Agora. Leve a minha mulher e... – Não conseguia articular as

palavras: - Leve o Chernenko, aquele verme do braço partido – sussurrou. - O que? - Temos muito tempo pouco, doutor. Daqui a pouco chamam-no e eu não

consigo acabar de falar. - O major vem conosco. - Não vou. Agitado, Sayers exclamou em inglês: - Não estou a entender nada! - Chiu! Tem de partir no máximo até amanhã. - E o major?

Page 652: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

652

- Eu não interesso – replicou com firmeza. – Doutor, Sayers, a Tania precisa da sua ajuda. Está grávida... sabia?

O médico abanou a cabeça, estarrecido. - Mas está. Vai ficar muito assustada e a precisar da sua proteção. Por favor,

tire-a da União Soviética. E proteja-a. – Desviou o rosto. Os seus encheram-se de... o rio Kama, com o corpo ensaboado. Encheram-se de... lançando-se os braços ao pescoço e sussurrando-lhe como o seu hálito quente: panquecas de batata ou ovos, Shura?

Encheram-se de... saindo do Hospital Grechesky em novembro, pequena sozinha, envergonhada um casaco muito grande, de olhos postos no chão; não conseguiu levantar os olhos ao passar por ele rumo à sua vida na Quinto Soviete, sozinha rumo à sua vida no Quinto Soviete.

- Salve a minha mulher – segredou. O doutor Sayers falou em voz comedida: - Não entendo nada. Alexander abanou a cabeça: - Está a ver aqueles homens vestidos à paisana pelos quais teve de passar para

chegar aqui? São da NKVD. Lembra-se de eu lhe ter falado da NKVD e do que aconteceu à minha mãe, ao meu pai e a mim, doutor:

Sayers empalideceu. - A NKVD faz cumprir a lei nesse grande país. E veio buscar-me... outra vez.

Amanhã já não estarei aqui. A Tania não pode ficar nem mais um minuto depois disso. Corre grave perigo. Tem de tirar ela daqui.

O médico continuava sem entender. Protestou a abanou a cabeça. Estava cada vez mais nervoso:

- Vou telefonar pessoalmente para o consulado dos Estados Unidos e defender o seu caso.

Alexander começou a ficar preocupado. O médico seria capaz de fazer o que de fato era preciso? Conseguiria manter a compostura na altura em que mais precisaria dela? De momento, não parecia controlado.

- Doutor – começou, dominando-se -, sei que não compreende, mas não tenho tempo para explicar. Onde é o consulado dos Estados Unidos? Na Suécia? Em Inglaterra? Quando lhes telefonar e eles contatarem o Departamento de Estado Norte-Americano, já os rapazes do Mekhlis me terão levado, não só a mim como também a ela. Que tem a Tatiana a ver com a América?

- É a sua mulher. - Desposei-me com o meu nome russo. Quando os Estados Unidos

esclarecerem a confusão com a NKVD, Já será muito tarde para ela. Não se preocupe comigo. Trate mas é dela.

- Não. Pôs-se em pé de um salto. Não conseguia estar sentado. Caminhou em volta da cama, ajeitando os cobertores.

Page 653: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

653

- Doutor! – exclamou Alexander. – Seique não tem muito tempo para refletir, mas o que pensa que acontecerá a uma russa quando descobrir que é casada com um homem suspeito de ser americano e de se infiltrar no alto comando do Exército Vermelho? Para que pensa que o Comissariado dos Assuntos Internos quererá a minha mulher russa e grávida?

Sayers emudeceu. - Eu digo-lhe para que. Para usarem contra mim quando nos interrogarem.

Diga-nos tudo ou a sua mulher terá um “julgamento sumário”. Sabe o que isso significa? Que serei obrigado a contar tudo. Não terei outra opção. Ou então vão me usar contra ela: Não acontecerá nada com seu marido se nos disse a verdade. E ela dirá. Mas depois...

O médico abanou a cabeça: - Não, vamos metê-lo imediatamente na ambulância e conduzi-lo a

Leninegrado, ao Grechesky. Imediatamente. Levante-se. E depois seguiremos para Finlândia.

- Está bem. Mas aqueles homens – baixou a cabeça na sua direção – virão conosco. Acompanharão cada passou nosso... nenhum de nós sairá;

Alexander bem via que o doutro Sayers tentava agarrar-se ao que podia. Olhou de relance para porta, na direção de Ina e dos homens que fumavam e conversavam com ela e abanou a cabeça. Sayers não se conformava:

- E ele? O Chernenko? Não o conheço nem lhe devo nada. - Tem de levá-lo – murmurou Alexander. – Esta tarde finalmente percebeu.

Pensava que eu a sacrificaria para me salvar, porque não imagina que se possa agir de outra maneira. Agora já sabe a verdade. E também sabe que eu não a sacrificarei para o destruir. Que não impedirei que ela fuja para impedir que ele fuja. E tem razão. Por isso, leve-o. Desde que isso a ajude, não quero saber de mais nada.

O doutor Sayers não sabia o que dizer. - Doutor – acrescentou Alexander com suavidade-, não lute mais por mim.

Não quero que se preocupe comigo; o meu destino está traçado. Mas o dela continua por escrever. Preocupe-se só com ela.

O médico coçou a face, se deixar de abanar a cabeça: - Alexander, eu vi-a... Interrompendo-se comovido. – Vi a dar-lhe o sangue da

vida. Luto por si porque sei que ela... - Doutor! – Estava quase no limite da resistência. – Assim não me ajuda. Acha

que não sei? – Fechou os olhos. Deu-me tudo o que tinha. - Pensa que ela vai sem você, major? - Nunca. Valha-me Deus! Então o que posso fazer? - ela não deve saber que fui preso. Se descobrir, não irá. Ficará para saber de

mim, para me ajudar para me ver uma última vez... e depois será tarde demais. A seguir, disse ao doutro, Sayers como deviam agir. - Não posso fazer isso, Major! – exclamou o médico.

Page 654: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

654

- Pode sim. Bastam-lhe algumas palavras, doutor. Palavras e uma expressão impassível.

Sayers abanou a cabeça. - Há muitas coisas que podem correr mal. E vão correr – observou Alexander. -

Não é um plano perfeito, nem, seguro, nem a toda prova, mas não temos alternativa. Se queremos que funcione, temos de usar todas as armas ao nosso alcance.

- Depois de uma pausa: - Até as que não tiverem munições. - Major, não esta bom da cabeça. Ela nunca acreditará em mim. Alexander agarrou-lhe no pulso? - Isso vai depender de você! A única hipótese que ela tem de viver é fugir

daqui. Se o doutor vacilar, se não a convencer, se fraquejar ao ver a sua dor e ela desconfiar que não esteja lhe dizendo a verdade, não irá. Se pensar que ainda estou vivo, nunca irá. E lembre-se: se não for será uma questão de dias até a virem buscar. – Abalado, acrescentou: - Quando vir a minha cama vazia irá abaixo à sua frente, perderá a compostura, erguerá para si os olhos lacrimosos e dirá: Mente, sei que mente. Sinto que ele ainda está vivo. Será então que o doutor a contemplará e a consolará, como já a viu consolar tanta gente. A dor dela será de mais para si. Ela lhe dirá: Diga-me a verdade e eu irei com você. Se parar um segundo para refletir, se pestanejar se cerrar os lábios, saiba que nesse instante estará a condená-la a ela e ao nosso bebê à prisão ou à morte. Ela tem uma grande capacidade de persuasão e é muito difícil dizer-lhe que não. Continuará a insistir até o convencer. Saiba que... quando a reconfortar com a verdade, estará a matá-la. – Largou-o: - Agora vá. Olhe-a nos olhos e minta. Minta com todo o coração! – Quase sem voz, sussurrou: - E se a salvar, estará a ajudar-me.

Sayers levantou-se com lágrimas nos olhos: - Este país e demais para mim! - Para mim também. – Alexander estende-lhe a mão: - Agora pode ir buscá-la? Preciso vê-la uma última vez. Mas venha com ela. Venha com ela e fique ao

meu lado. A Tatiana é tímida quando estão presentes outras pessoas. Terá de se mostrar distante.

- E se eu os deixar sozinhos só por um minuto? - Lembra-se do que lhe disse? Não posso ficar frente a frente com ela. Talvez o

doutor consiga disfarçar, mas eu não. Esperou de olhos fechados, Passados dez minutos, ouviu os passos e a voz

dela: - Eu bem lhe disse que ele dormia, doutor. O que o fez pensar que estava

desassossegado? - Major? – chamou Sayers. - Major? Acorde. – Alexander sentiu-lhe as mãos quentes na testa. – Não tem

febre. Parece-me muito bem. Estendendo o braço, posou-lhe a mão nas suas.

Page 655: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

655

Ei-la Tatiana. Eis a minha expressão corajosa e indiferente. Inspirou e abriu os olhos. Tatiana contemplava-o com tanto amor que tornou

a fechá-los, dizendo em palavras entrecortadas que mal lhe saíam a boca: - Estou cansado, Tatia. E tu? Como te sentes? - Abre os olhos soldados – retorquiu ternamente, afastando-lhe o rosto. Tem

fome? - Tinha. Mas tu me alimentaste. – O corpo tremia-lhe debaixo do lençol. - Por que o soro está desligado? – Pegando-lhe na mão: - E porque tem a mão

toda roxa, como se tivesses arrancado o tubo? Que andastes fazendo esta tarde enquanto eu não estava aqui?

- Já não preciso de soro. Estou quase bom. Ela voltou a pousar-lhe a mão na testa: - Parece-me um bocadinho frio, doutor. Pomos-lhe outro cobertor? Tatiana desapareceu. Alexander abriu os olhos e viu a expressão angustiada

de Sayers. - Coragem – articulou. Quando regressou, tapou-o e estudou-o por um momento. A sério que estou bem – insistiu ele. – Tenho uma anedota para você: qual é o

resultado do cruzamento de um urso branco com um urso preto? - Dois ursos felizes – respondeu ela. Sorriram um para o outro. Alexander não desviou o olhar. - Fica bem? Volto amanhã de manhã para te dar o pequeno-almoço. Ele abanou a cabeça: - Não, de manhã não. Aposto que não advinhas onde vão levar-me amanhã de

manhã. – Sorriu de orelha a orelha. - Onde? A Volkhov. Não vale a pena inchares de orgulho, mas finalmente o teu marido

vai ser promovido a tenente- coronel. – Lançou um olhar ao doutro Sayers, que se encontrava aos pés da cama com esgar macilento estampado no rosto.

- A sério? – Sorria de felicidade. - Sim. É para dar com a medalha de Herói da União Soviética que recebi por

ter ajudado o nosso doutor, Que achas? Sorrindo, Tatiana curvou-se para ele e comentou em tom jovial: - Acho que vai ficar verdadeiramente insuportável. Terei de obedecer a todas

as tuas ordens, não é? - Para conseguir que obedecesses às minhas ordens, teria de ser general. Ela riu-se: Quando regressas? - Na manhã do dia seguinte. - Por quê? Por que não amanhã à tarde?

Page 656: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

656

- Só há transporte no lago de manhã muito cedinho. É mais seguro. Há menos bombardeio.

- Temos de ir, Tania – observou Sayers em voz fraca. Alexander fechou os olhos e ouviu-a dizer: - Doutor Sayers, posso dar uma palavrinha ao major Belov? Não! pensou Alexander, abrindo os olhos e fitando o médico, que respondeu: - Temos mesmo de ir andando, Tatiana. Ainda vou fazer a ronda a três

enfermarias. - É só um segundo. Olhe, o Leo da cama número 30 está te chamando. O médico afastou-se. Ele não consegue dizer-lhe que não nem sequer a uma

coisa assim tão simples, pensou Alexander, abanando a cabeça. Tatiana avançou, aproximou-se o rosto sardento do dele, olhou em volta e viu

o doutor Sayers a observá-los. - Meu Deus, não posso beijar-te, pois não? Não vejo a altura de poder beijar

ás claras! – Deu-lhe uma palmadinhas no peito: - Em breve estaremos fora daqui – segredou.

- Mas beija-me na mesma. - A sério? - A sério. Curvou-se, deixando a mão tranquila no peito. Os seus lábios de mel beijaram

ternamente os de Alexander. Depois, encostou a face á dele: - Shura, abre os olhos. - Não. - Abre. Abriu-os. Tatiana contemplou-o com amor e pestanejou três vezes muito depressa. A seguir endireitou-se, afivelou uma expressão séria e fez-lhe continência: - Durma bem, major. Até a vista. - Até à vista, Tania. Ela encaminhou-se para os pés da cama. Não!,quis gritar, Não Tania, por

favor, volta. Que posso deixar-lhe, que posso dizer-lhe, que palavra direi a ela, para ela? Que palavra para a minha mulher?

- Tatiasha – chamou. Meu Deus, como se chamava o procurador?... Ela olhou para trás. - Orbeli. Não te esqueças... - Tania! – gritou o doutor Sayers do outro lado da enfermaria. – Venha, por

favor! Ela teve uma expressão de frustração e desculpou-se rapidamente: - Shura, querido, tenho de ir. Depois você me diz, está bem? Assentiu. Tatiana afastou-se de Alexander e passou pelas camas, tocando na perna de

um doente em convalescença e suscitando um sorriso no seu rosto ligado. Disse boa

Page 657: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

657

noite a Ina e parou a ajeitar um cobertor. À porta, trocou umas palavras com o doutro Sayers, riu e virou-se uma última vez para Alexander, que viu o amor nos seus olhos. Depois saiu pela porta e desapareceu.

- Tatiana! – sussurrou. – Não temerás o terror da noite... a seta que voa... a pestilência que caminha na escuridão nem a destruição que grassa de dia. Mil homens tombarão ao teu lado e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido.

Alexander benzeu-se, cruzou os braços e esperou, pensando nas últimas palavras do pai.

Pai, vi desfeito aquilo que tenho vivido, mas alguma vez saberei se o construí de novo com as minhas ferramentas gastas?

Descalça, Tania pôs-se em sentido à frente de Alexander. Envergava o vestido amarelo e as tranças douradas espreitavam debaixo do boné dele. Tinha o rosto iluminado por um sorriso exuberante. Fez-lhe continência.

- À vontade, Tania – disse, fazendo também a continência. - Obrigada, capitão. – Aproximando-se, subiu de pés para cima das suas botas.

Ergueu o rosto e beijou-lhe o queixo... era o mais alto que conseguiu chegar sem ele se curvar. Alexander cingiu-a com uma mão.

Tatiana afastou-se um metro e virou-lhe as costas: - Vou deixar-me cair. É melhor que me apanhes. Pronto? - Estou pronto há cinco minutos. Cai. As suas gargalhadas repicaram no ar enquanto caía. Alexander apanhou-a e

beijou-a. Tatiana endireitou-se, abriu os braços e riu, encantada: - Agora é sua vez. Adeus, minha canção do luar e minha respiração, minhas noites brancas e

meus dias dourados, minha água fresca e meu fogo. Adeus, e que você tenha uma vida melhor, encontre o conforto novamente com seu sorriso de tirar meu fôlego. E quando o seu belo rosto se iluminar mais uma vez perante o sol do Ocidente tenha certeza de que tudo que eu senti por você não foi em vão.

Adeus, e tenha fé, minha Tatiana.

Page 658: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

658

AO BRILHO PALIDO DO LUAR 1

Ao fim da manhã do dia seguinte, Tatiana entrou na enfermaria dos cuidados intensivos, um edifício de madeira que dantes era uma escola e encontrou outra pessoa na cama de Alexander. Esperava vê-la vazia e não ocupada por outro doente, um homem sem braços nem pernas.

Fitando-o com incompreensão, pensou que se enganava. Acordara tarde e correra para a enfermaria dos doentes terminais, onde passara muitas horas seguidas. Tinham morrido sete soldados nessa manhã.

Mas não, estava realmente na enfermaria de cuidados intensivos. Leo lia na cama número 30. As duas camas ao lado da de Alexander também tinham pacientes novos. Nikolai Ouspensky, o tenente só com um pulmão, e o cabo ao seu lado haviam desaparecido.

Foi verificar. Nada Regressou à unidade de cuidado intensivos e espreitou para baixo da cama. A

mochila desaparecera. A medalha já não estava pendurada na cadeira de madeira arrumada ao lado do novo docente, que tinha o rosto coberto de gaze e sangrava do ouvido direito. Tatiana disse-lhe distraidamente que ia chamar um médico e afastou-se com passos pouco seguros. Sentia-se o melhor possível para uma mulher grávida de quatro meses. Sabia que a barriga começava a notar-se. Ainda bem que iam partir, pois não se imaginava a dar explicações às enfermeiras e aos doentes. Ia a caminho do refeitório para comer, mas alguma coisa lhe revolveu as entranhas. Ficou com medo que Alexander houvesse sido mandado outra vez para a frente,

que tivesse atravessado o lado e sido obrigado a ficar. Não conseguiu comer nada e foi procurar o doutor Sayers.

Não o achou por lado nenhum, mas Ina, que estava a prepara-se para começar o seu turno, disse-lhe que ele andava atrás dela.

- Não deve ter procurado muito, porque tenho estado toda a manhã na enfermaria dos doentes terminais. - Por fim, encontrou-o com um doente terminal que perdera grande parte do estômago. - Doutor Sayers – sussurrou – que se passa? Onde está o major Belov? - Viu que o paciente tinha apenas mais uns minutos de vida.

Sayers não tirou os olhos dos ferimentos do homem:

Page 659: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

659

- Estou quase a acabar, Tatiana. Segure aqui enquanto coso. - Que se passa, doutor? - repetiu enquanto o ajudava. - Primeiro vamos terminar isto, sim? Ela observou o médico, fitou o doente e pousou-lhe a luva ensanguentada na

testa por um momento: - Morreu, doutor. Pode parar de coser. O médico assentiu. Tatiana descalçou as luvas e saiu, seguida por ele. Estavam quase em meados

de março e o veto soprava de modo constante. - Ouça, Tania – começou Sayers muito pálido, tomando-lhe as mãos -, lamento

muito. Aconteceu uma fatalidade. - A voz quase se lhe sumiu ao dizer aconteceu. Tinha umas olheiras tão escuras que parecia que lhe haviam batido. Ela ditou-o por um momento...

Retirou as mãos: - Que aconteceu? - perguntou, empalidecendo e procurando em volta

qualquer coisa a que se agarrar. - Tania, espere, não grite. - Lamento muito, muito mesmo, mas o Alexander... - A garganta deu-lhe um

nó. - Hoje de manhã, quando foi para Volkhow com outros dois soldados... - Não conseguia continuar.

Tatiana escutava imóvel, com as entranhas anestesiadas: - O quê? - tentou dizer. - Iam a atravessar o lago quando o fogo inimigo... - Que fogo inimigo? - inquiriu com veemência. - Saíram antes de os bombardeamentos começaram, mas estamos em guerra.

Não ouve os Alemães a dispararem de Sinyavino? Um foguete de longo alcance atingiu o gelo à frente do camião e explodiu.

- Onde está ele? - Lamento. Seguiam cinco pessoas no camião... não houve sobreviventes. Tatiana virou costas ao médico e tremeu tão violentamente que pensou que

ia rasgar-se ao meio. Sem olhar para trás, perguntou: - Como sabe, doutor? - Fui chamado ao local. Tentamos salvá-los mas o camião era muito pesado e

afundou-se. - Falava num murmúrio. Tatiana agarrou-se às barriga e vomitou na neve. Com o sangue disparando-

lhe no corpo a mais de duzentas pulsações por minuto, curvou-se, pegou num punhado de neve e limpou a boca. Apanhou mais um bocado e encostou-o ao rosto. O coração não lhe acalmava. Não conseguia para de vomitar. Sentiu a mão do médico na costas e ouviu a sua voz chamando-a ao longe:

- Tania, Tania. Não se virou: - Viu-o? - perguntou, ofegando.

Page 660: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

660

- Vi. Lamento muito – sussurrou. - Apanhei-lhe o boné... - Estava vivo quando o viu? - Lamento, Tatiana, Não. Não aguentava mais. - Não, por favor – ouviu o doutor Sayers dizer. Sentiu os seus braços

amparando-a. - Por favor. Endireitou-se, fez um esforço para não se ir abaixo, virou-se e olhou de frente

para o doutor Sayers, que lhe tocou no rosto com uma expressão de grande preocupação:

- Precisa de se ir sentar imediatamente. O seu estado... - Eu sei do meu estado. Dê-me o boné dele. - Lamento muito. Sinto-me... - Dê-me o boné. - A mão tremia-lhe tanto que, por um momento, não

conseguiu agarrá-lo. Quando finalmente lhe pegou, deixou-o cair das mãos. Também não conseguiu segurar na certidão de óbito. Teve de ser o doutor

Sayers e mostrar-lha. Viu apenas o seu nome e o lugar onde morrera: o lago Ladoga. O gelo do Ladoga. - Onde está? - perguntou em voz fraca. - Onde está ele agora... - Não

conseguiu acabar. - Oh, Tania... Que podíamos fazer?Nós... Dobrou-se, mandando-o calar-se com um gesto: - Não fale mais comigo. Porque não me acordou? Porque não foi dizer-me

imediatamente? - Olhe para mim, Tania. - Sentiu-se a ser puxada. Sayers tinha lágrimas nos

olhos. - Procurei-a quando voltei. Mas na verdade é me quase impossível estar aqui à sua frente, agora que foi a Tania a vir ter comigo e não tenho alternativa.

Se pudesse, ter-lhe-ia, mandado um telegrama. - Arrepiou-se – Vamos embora daqui! Acabemos com isto! Tenho de me ir embora, já não aguento mais. Preciso de regressar a Helsínquia. Venha, vamos buscar as nossas coisas. Eu telefono para Leninegrado. - Depois de uma pausa: - Tenho de partir hoje. - Olhando de relance: - Temos de partir hoje.

Tatiana não reagiu. O cérebro estava a pregar-lhe alguma partida. Não sabia porquê, mas a certidão de óbito não lhe saía da cabeça. Não era do Exército Vermelho mas sim da Cruz Vermelha.

- Está a ouvir? - Estou. - Falou indistintamente. - Venha comigo. - Agora não consigo pensar – logrou dizer. - Preciso de uns minutos para

pensar. - Quer... Pode vir ao meu gabinete? Não será... Venha sentar-se. Vai... Recuou, fitou-o com uma intensidade que sabia extremamente dolorosa para

ele, virou-se e dirigiu-se o mais depressa que pôde ao edifício principal. Tinha de

Page 661: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

661

falar com o coronel Stepanov, que estava ocupado e que ao princípio se recusou a recebê-la.

Esperou por ele junto à porta principal. - Vou à tenda da messe. Vem comigo? - indagou, sem a olhar de frente e

continuando a andar. Falou nas suas costas, sem dar um passo em frente: - Coronel, que aconteceu ao seu oficial... - Não conseguiu pronunciar o seu

nome em voz alta. Stapanov abrandou, parou e encaroua-a: - Lamento muito pelo seu marido – disse delicadamente. Ela não respondeu. Aproximando-se pegou-lhe na mão: - O coronel é um homem bom e era o seu comandante. - O vento fustigava-

lhe o rosto. - Por favor, conte-me o que aconteceu. - Não sei. Não estava aqui. Parecia ainda mais pequena em frente do coronel fardado, que suspirou: - Tiudo o que sei é que um dos nossos camiões blindados transportando o seu

marido, o tenente Ouspensky, um cabo e dois condutores explodiu esta manhã sob o que parecia ser fogo inimigo e acabou por se afundar. Não tenho mais informações.

- Blindado? Mas ele disse-me que ia a Volkhow para ser promovido – protestou num murmúrio débil.

- Enfermeira Metanova... - O coronel Stepanov pestanejou – P camião afundou-se. O resto não interessa.

Tatiana não tirava os olhos dele. Stepanov assentiu: - Estou desolado. O seu marido era... - Eu sei o que era – interrompeu, apertando contra o peito o boné e a

certidão. Observando-a com os seus dolorosos olhos azuis, o coronel teve um ligeiro

arrepio na voz: - Sim. Ambos sabermos. Entreolharam-se em silêncio. - Tatiana! - continuou, comovido. - Vá com o doutor Sayers o mais depressa

que puder. A vida será mais fácil e segura para si em Leninegrado...ou talvez em Molotov. Vá com ele.

Viu-o abotoar a parte de cima da farda. O seu olhar não o largava: - Ele trouxe o seu filho – segredou. Stepanov baixou a cabeça: - Sim. - Mas quem vai trazê-lo a ele? Como poderei mexer-me, como poderei andar? Ponho-me de gatas? Não,

seguirei de pé. Olharei para o chão e afastar-me-ei sem tropeçar.

Page 662: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

662

Tropeçou. Caiu na neve. O coronel aproximou-se, ajudou-a a levantar-se e deu-lhe uma

pancadinha nas costas. Apertou o casaco e, sem olhar novamente para ele, seguiu a cambalear para o hospital, apoiando-se nas paredes dos edifícios.

Escondera-o toda a vida, a cada passo. De Dasha, de Dimitri e da morte... e agora tinha de o esconder de si própria. Parecia-lhe que a sua fraqueza era inultrapassável.

Encontrou o doutor Sayers no seu pequeno gabinete. - Doutor, olhe para mim. Olhe-me nos olhos e jure-me que ele morreu –

implorou. Deixando-se cair de joelhos, fitou-o com as mãos postas numa súplica. O médico baixou-se e tomou-lhe as mãos: - Juro que morreu. - Não olhou para ela. - Não posso – replicou em voz cavernosa. - Não me conformo. Não consigo

pensar nele a morrer naquele lago sem mim. Percebe? Não consigo aceitar – sussurrou com desespero. - Diga-me que a NKVD o levou. Diga-me que foi preso e que para a semana andará a saltar das pontes. Diga-me que o mandaram para a Ucrânia, Sinyavino, Sibéria... i que quiser. Mas, por favor, diga-me que não morreu no gelo sem mim. Suportarei tudo menos isso. Diga-me, e eu irei consigo, prometo. Farei tudo o que me disser, mas suplico-lhe que m diga a verdade.

- Lamento. Não consegui salvá-lo. Lamento sinceramente não o ter salvado. Tatiana chegou-se à parede e escondeu o rosto nas mãos: - Já não vou para lado nenhum. Não vale a pena. Sayers aproximou-se e pousou-lhe a mão na cabeça: - Não diga isso, por favor. Querido...deixe-me salvá-la... por ele. - Não vale a pena. - Não vale a pena? E o filho dele? Ela afastou as mãos e fitou-o, sem compreender: - Ele disse-lhe que estou grávida? - Disse. - Porquê ? Afogueado, respondeu: - Não sei. - Continuava com a mão na sua cabeça. - Sente-se bem? Está fria.

Está... Não respondei. Tremia toda. - Vai ficar bem? Tapou o rosto. - Fique aqui à minha espera. Não se levante. Porque não dorme? Tatiana soltou o som gorgolejante de um animal arrastando a ferida aberta

pelo chão, esperando morrer antes de se esvair em sangue. - Os seus doentes estavam a perguntar por si – disse Sayers com suavidade. -

Acha que...?

Page 663: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

663

- Não. - Falou por entre as mãos. - Deixe-me, por favor. Preciso de estar sozinha.

Ficou sentada no chão do gabinete do doutor Sayers até a noite cair. Pousou a cabeça nos joelhos e encontrou-se à parede. Quando já não conseguia estar sentada, deitou-se e aninhou-se.

Ouviu-o regressar e soltar uma exclamação. Tentou levantar-se, mas não conseguiu. Sayers ajudou-a a pôr-se de pé e prendeu a respiração quando lhe viu o rosto:

- Meu Deus, Tania! Por favor. Preciso que... - Neste momento não posso ser nada do que precisa que eu seja. Serei o que

puder. Já são horas de irmos? - São, Tania. Vamos. -Baixando a voz: - Olhe, fui à sua cama e trouxe-lhe a

mochila. É sua, não é? - É. - Pegou-lhe. - Precisa de mais alguma coisa? - Não – murmurou. - A mochila é tudo que tenho. Só vamos os dois? O doutor Sayers fez uma pausa antes de lhe responder: - O Chernenko veio ter comigo e perguntou-me se tínhamos mudado de

planos agora que... - E o doutor disse... - As pernas fracas vergaram-se-lhe. Deixou-se cair na cadeira e levantou os

olhos: - Não posso ir com ele. Não posso. - Também não quero levá-lo, mas que posso fazer? Não precisou de muitas

palavras para me dizer que, sem ele, a Tania não conseguiria passar nem o primeiro posto de controlo. E eu quero tirá-la daqui. Que posso fazer?

- Nada. Ajudou-o a reunir os seus poucos haveres, pegou na maleta de enfermagem e

levou-lhe o estojo médico. A viatura da Cruz Vermelha era uma grande jipe sem a sólida carroçaria de aço das ambulâncias. Tinha uma cabina com vidro mas só um oleado atrás. Não era a mais segura para o transporte de feridos ou pessoal médico, mas fora a única disponível na altura em Helsínquia, e Sayers não pudera ficar à espera de uma ambulância em condições. Os distintivos da Cruz Vermelha estavam cosidos ao aleado.

Dimitri encontrava-se ao lado do veiculo. Tatiana não olhou para ele ao abrir o oleado e subir para carregar o estojo de primeiros-socorros e a caixa de plasma.

- Tania? - disse ele. O doutor Sayers aproximou-se por trás e dirigiu-se a Dimitrí: - Vamos embora. Suba para trás. Quando sairmos daqui, vista a farda do

piloto finlandês. Não sei como vai passar o braço pela... Onde está a roupa, Tania? Dimitri, precisa de morfina? Como vai essa cara?

- Terrível. Quase não consigo ver. O meu braço vai infetar?

Page 664: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

664

Tatiana observou-o de dentro do camião. Tinha o braço engessado e pendurado ao peito e o rosto inchado e cheio de nódoas negras. Ainda pensou em perguntar-lhe o que acontecera, mas pouco lhe importava.

- Tania? - chamou ele. - Soube o que sucedeu esta manhã. Lamento muito. Ela tirou a roupa do piloto finlandês do seu esconderijo e atirou-a para o chão

do jipe, aos pés de Dimitri. - Venha, Tatiana – disse-lhe o doutor Sayers. - Eu ajudo-a a descer. Temos de

ir andando. Deu a mão ao médico e saltou perto de Dimitri. - Tania? – repetiu ele. Havia uma tal condenação nos seus olhos quando o fitou que foi obrigado a

virar a cabeça. - veste a farda, deita-te no chão e fica muito quieto – indicou ela entre dentes. - Olha, lamento muito. Sei como... Cerrando os punhos, atirou-se furiosamente a ele e ter-lhe-ia esmurrado o

nariz partido se o doutor Sayers não a houvesse agarrado, dizendo: - Tania, meu Deus! Não! Não! Dimitri recuou, abriu a boca e gaguejou: - eu disse que l... - Não quero ouvir mais as tuas malditas mentiras! - berrou, com os braços

ainda travados pelo doutor Sayers. - Nunca mais quero ouvir-te falar comigo. Percebido?

Gaguejando com nervosismo que não entendia porque estava zangada com ele, subiu para a traseira do jipe.

O médico sentou-se atrás do volante e fitou-a de olhos muito abertos. - Estou pronta, doutor. Vamos – Abotoou o casaco branco de enfermeira com

o distintivo da Cruz Vermelha na manga e pôs a touca na cabeça. Tinha o dinheiro, as cartas, o boné e a aliança de Alexander, o livro de Pushkin e as fotografias.

Embrenharam-se na noite. Tatiana levava o mapa aberto, mas nunca teria conseguido indicar-lhe o

caminho para Lisy Nos. O doutor Sayers seguiu pelas florestas do Norte, conduzindo o jipe por caminhos de terra, lamacentos e cheios de neve. Sem ser nada, a jovem fitava a escuridão pela janela, tentando aguentar-se a direita.

Sayers não parava de falar com ela em inglês. - Tania, querida, vai correr tudo bem... - Vai, doutor? - perguntou, também em inglês. - O que faremos com ele? - Que interessa? Que faça o que quiser quando chegarmos a Helsínquia,

tomaremos os dois um avião da Cruz Vermelha para Estocolmo. Depois seguiremos de comboio para Gotemburgo, no mar do Norte, e atravessá-lo-emos até a Inglaterra num barco com escolta. Está a ouvir, Tania? Percebe?

- Percebo – retorquiu em voz fraca.

Page 665: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

665

- tenho umas coisas para fazer em Inglaterra, mas depois ou tomamos um avião para os Estados Unidos ou partimos de Leverpol num navio de passageiros. Quando chegar a Nova Iorque.

- Matthew, por favor – murmurou ela. - Só estou a tentar ajudá-la a sentir-se melhor. Vai correr tudo bem. Dimitri comentou lá trás: - Não sabia que falavas inglês, Tania. Ao principio, não respondeu. Depois, pegou num tubo de metal que sabia que

o doutor Sayers tinha sempre aos pés para o caso de haver sarilho, levantou o braço e bateu violentamente com ele na divisória de metal que a separava de Dimitri, assuntando o médico, que quase saiu da estrada.

- está calado – gritou. - És finlandês. Não quero ouvir nem mais uma sílaba russa na tua boca.

Deixou cair o tubo ao chão e cruzou os braços na cintura. - Tania... - Não, doutor... - Não comeu nada, pois não? - perguntou-lhe o médico com doçura. Abanou a cabeça: - nem estou a pensar em comida – respondeu. Pararam na berma da estrada a meio da noite. Dimitri já vestira o uniforme

finlandês. - É muito grande – ouviu-o Tatiana comentar para o doutor Sayers. - Espero

não ter me pôr de pé. Qualquer pessoa vê que não é meu. Tem mais morfina? Estou...

O médico regressou uns minutos depois: - Se lhe der mais morfina, morrerá. Aquele braço não está nada bom. - Que lhe aconteceu? - perguntou ela em inglês. Ficou calado. - Quase o mataram – explicou por fim. - Tem uma fratura exposta com muito

mau espeto. - Depois de uma pausa: - Até pode perder o braço. Nem sei como ainda está consciente. Ontem pensei que ia entrar em coma, mas hoje já anda a pé. - Abanou a cabeça.

A jovem não falou. < Como pode ele continuar de pé? >, pensou. <Como é possível que todos nós.. fortes, decididos, firmes, jovens...caiamos de joelhos demolidos pelas nossas vidas e ele continue de pé?>

Sayers falou em inglês: - Qualquer dia há de explicar-me o … - Calou-se e apontou para trás. - É que

juro que não compreendo. - Não me parece que consiga explicar – murmurou. A caminho de Lisiy Nos, foram obrigados a parar em meia dúzia de postos de

controlo. Sayers mostrou a sua identificação e a de sua enfermeira, Jane Barrington. Dimitri, um finlandês chamado Tose Hanssen, não possuía nada exceto uma placa

Page 666: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

666

com o nome do morto. Ia regressar a Helsínquia para uma troca de prisioneiros. Das seis vezes, os guardas abriram o oleado, apontaram uma lanterna ao rosto magoado de Dimitri e mandaram seguir.

- É bom termos a proteção da Cruz Vermelha – comentou o médico. Tatiana assentiu. Sayers encontrou à berma e desligou o motor: - Tem frio? - perguntou - Não muito. - Não o suficiente. - Quer que conduza? - Sabe conduzir? Em Luga, tinha ela dezesseis anos, no verão antes de conhecer Alexander,

travara amizade com um cabo do Exercito colocado no Sobiete da aldeia, que a deixara a ela e a Pasha conduzir o camião durante toda a temporada. O irmão bem tentara passar o tempo todo ao volante, mas o cabo fizera questão de que ela também aprendesse. Tatiana achava que conduzia bem, melhor do que Pasha, e o cabo dissera-lhe que aprendia depressa.

- Sei. - Não, está muito escuro e o caminho tem gelo. - Dormitou durante uma hora. Sentada em silencio, com as mãos no casaco, tentou lembra-se da última vez

que fizera amor com Alexander. Fora num domingo de novembro, mas onde? Não se recordava. Que tinham feito? Onde estavam? Erguera o rosto para ele? Inga escutava do outro lado da porta? Fora na banheira, no sofá, no chão? Não se lembrava.

Que lhe dissera Alexander na noite anterior? Contara uma anedota, beijara-a, sorrira, tocara-lhe na mão e comunicara-lhe que ia a Volkhov receber a sua promoção. Ter-lhe-iam mentido? Ele ter-lhe-ia mentido a ela?

Tremia, e ela pensara que tinha frio. Que mais lhe dissera? Até à vista. Tão descontraído! Sem sequer pestanejar. Que mais? Orbeli. Não te esqueças.

Que seria? Contava-lhe muitas vezes histórias fascinantes que ouvia no Exército sobre

Hitler, Rommel, Inglaterra ou Itália, Estalinegrado, Richthoffen, Von Paulus, el Alamein ou Montgomery. E as vezes dizia nomes que ela não compreendia. Mas nunca ouvira a palavra Orbeli, e no entanto Alexander pedira-lhe para não a esquecer.

Acordou o médico: - Doutor Sayers, o que é Orbeli? - indagou. - Quem é Orbeli? - Não sei – replicou ele, estremunhado. - Nunca ouvi. Porquê? Não respondeu. Sayers voltou a ligar o motor. Chegaram à fronteira entre a União Soviética e a Finlândia, silenciosa e

adormecida, às seis da manhã. Alexander dissera-lhe que não se tratava tanto de uma fronteira como de uma

linha defensiva, com as tropas soviéticas e finlandesas a uma distância de trinta a

Page 667: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

667

sessenta metros umas das outras. Cada um dos lados marcava o seu território, sentando-se depois à espera da guerra.

Para Tatiana, os bosques finlandeses de coníferas e salgueiros eram iguais aos bosques soviéticos de coníferas e salgueiros que atravessavam havia umas horas. Os faróis do jipe iluminavam uma estreita faixa de estrada de terra batida. O sol nascia devagar nos idos de março.

O doutor Sayers comentou que, se estavam todos a dormir, talvez pudesse atravessar e ir apresentar-se diretamente aos Finlandeses. Tatiana achou uma ideia excelente.

De repente, alguém berrou para que parassem. Três sonolentos guardas da NKVD aproximaram-se da janela do médico. Sayers mostrou-lhes os documentos deidentificação. Depois de os examinar com toda a atenção, um deles virou-se para Tatiana e observou num inglês cheio de sotaque:

- Está um vento frio, não acha? - Muito desagradável. Parece que vai nevar – replicou ela num inglês perfeito. Ele assentiu e deram os três a volta para irem ver Dimitri às traseira do jipe.

Tatiana ficou à espera. Silêncio. A lanterna faiscou. Silêncio. - Esperem! - ouviu ela. - Deixem-me ver a cara dele outra vez. A lanterna faiscou. Sentada imóvel, escutava atentamente. Ouviu um dos guardas rir e dizer qualquer coisa a Dimitri em finlandês. Como

não falava finlandês, não podia garantir que fosse mesmo, mas o certo era que o guarda soviético lhe falara numa língua que Tatiana não compreendia e que obviamente Dimitri também não, pois não respondeu.

O oficial soviético repetiu a pergunta em voz mais alta. Dimitri permaneceu em silêncio. Depois, disse qualquer coisa no que lhe

pareceu finlandês. Após um silêncio de risos abafados da parte dos guardas, um deles ordenou, em russo:

- Sai daí. - Oh, não! - segredou o doutor Sayers. - Fomos apanhados. - Chiu! - fez ela. Os guardas repetiram a ordem para Dimitri sair. Ele não se mexeu. O doutor Sayers virou-se e falou em russo: - Está ferido. Não pode levantar-se. - Se quiser viver, levantar-se-á – replicou o oficial soviético – Fale ao seu

doente na língua dele e diga-lhe que se levante. - Doutor, tenha muito cuidado – segredou Tatiana. - Se ele não conseguir

salvar-se, tentará matar-nos aos dois.

Page 668: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

668

Os três solados da NKVD arrastaram Dimitri para fora do jipe e ordenaram a Sayers e a Tatiana que também saíssem. O médico deu a volta e parou junto da porta aberta dela, tapando-a parcialmente com o corpo delgado. Sentindo-se fraquejar, Tatiana tocou-lhe no casaco, esperando conseguir forças. Estava preste a desfalecer. Dimitri encontrava-se a uns metros deles. O uniforme finlandês, que teria sido perfeito para um homem maior, fazia-o parecer anão.

Rindo com a arma apontada para ele, um dos guardas da NKDV disse-lhe em russo:

- Então ó finlandês, perguntamos-te como te feriste na cara e tu responde que vais para Helsínquia? Como é isso? Queres explicar?

Dimitri não disse nada, mas lançou um olhar de súplica a Tatiana. - Olhem, trouxemo-lo de Leninegrado. Estava gravemente ferido... - começou

o doutor Sayers. Imperceptivelmente, Tatiana deu-lhe uma cotovelada: - Cala-se – sussurrou. - Ainda é pior. - Pode estar gravemente ferido, mas não é gravemente finlandês – Os três

guardas soltaram uma gargalhada. Um deles aproximou-se: - Chernenko, não me reconheces? Perguntou em russo. - Sou o Rasskovsky. -

Dimitri baixou o braço bom. - Põe a mão no ar! - berrou rindo. - Levanta-a! Tatiana percebeu que não estavam a levar os seus ferimentos a sério. Onde teria a arma? Possuiria alguma? Os outros dois soldados encontravam-se a uma curta distancia de Dimitri.

- Conhece-lo? - perguntou um deles, baixando a espingarda. - Se o conheço?! - exclamou Rasskovsky – Claro que sim! Chernenko, já não te

lembras de quanto me levavas pelos cigarros? E eu tinha de pagar, porque não conseguia passar sem fumar no meio da floresta – Riu: - Vi-te ainda há quatro semanas. Já te esqueceste?

Dimitri não pronunciou uma única palavra. - Pensaste que não te reconheceria por causa dessa linda cor que tensa na

cara - Rasskovsky parecia estar a divertir-se muito. - Chernenko, meu querido, pode explicar-me o que fazes com uma farda finlandesa, deitado nas traseiras de um jipe Cruz vermelha? Lá o braço e a cara percebo: provavelmente foi alguém que não gostou dos teus preços exorbitantes.

Um dos outros dois perguntou? - Rasskovsky , achas que o nosso estafeta está a tentar fugir? - todos

rebentaram de riso. À luz intensa, Dimitri fitou Tatiana, que o olhou apenas por um instante,

voltando-lhe depois as costas e aproximando-se do doutor Sayers toda encolhida. - Tenho frio. - Tatiana! - berrou-lhe Dimitri. - Queres contar-lhes? Ou conto eu? Rasskovsky virou-se para ela:

Page 669: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

669

- Tatiana? Uma americana chamada Tatiana? - Encaminhou-se para Sayers. - Que se passa aqui? Porque fala com ela em russo? Deixe-me ver os papéis outra vez.

O médico mostrou-lhos. Estavam em ordem. Olhando de frente para Rasskovsky, Tatiana falou em inglês: - Tatiana? Que está ela a dizer? Ouça, que sabemos nós? Garantiu-nos que era

finlandês, não foi, doutor? - Foi – retorquiu Sayers, afastando-se dela e do jipe e pousando a mão

amigável nas costas de Rasskovsky. - Espero que não haja problemas. Ele chegou ao hospital...

nesse momento, Dimitri pegou na arma com a mão esquerda e disparou contra Rasskovsky que caminhava à frente de Tatiana.

Não ficou bem com a certeza de quem ele queria alvejar, mas também não ia ficar ali para descobrir. Atirou-se ao chão. Talvez quisesse acertar no homem da NKVD. Talvez. Mas falhou e atingiu o doutor Sayers. Ou se calhar não falhou. Ou então quis acertar ela, que estava atrás dos dois homens, e falhou. Nem queria pensar nisso.

Rasskovsky correu para ele. Dimitri tornou a disparar, e desta vez atingiu-o. Mas não foi o suficientemente rápido para apontar aos outros dois, que entretanto se debatiam a tirar as espingardas dos ombros. Por fim, abriam fogo sobre ele. A força do impacte atirou Dimitri a vários metros de distância.

De repente, ouviram-se tiros vindos da floresta. Não eram os disparos metódicos do metrónomo da batalha: cinco cartuchos, abrir o carregados, pousar o polegar noutros cinco, fechar o carregador. Não, eram rajadas de metralhadora, que fizeram saltar a parte da frente da cobertura do jipe e todo o para-brisas. Os dois homens da NKVD desapareceram.

A janela da porta estilhaçou-se e Tatiana sentiu qualquer coisas dura e aguçada cair e alojar-se-lhe na face. Soube-lhe a metal líquido. Passou a língua pela boca e sentiu uma coisa pontiaguda. Quando a abriu, escorreu sangue. Mas não teve tempo de pensar nisso. Rastejou para debaixo da parte da frente do jipe.

Viu Dimitri no chão. O doutor Sayers e arrastou o seu corpo imóvel. Ao puxá-lo e tapá-lo com o seu próprio corpo, pareceu-lhe ver Dimitri ainda a mexer-se..ou seriam as luzes ritmadas das metralhadoras? Não,era ele, tentando rastejar até o jipe. Do lado soviético, uma bomba de morteiro voou pelo ar e explodiu na floresta. Fogo, fumo negro, gritos. Daqui? Dali? Não sabia. Não havia daqui nem dali...só Dimitri avançando para ela. Viu-o à luz dos faróis, procurando-a e encontrando-a. Durante a fração de segundo entre os disparos, ouviu-o chamá-la de mão estendida:

- Tatiana... Tatiana... por favor... - Fechou os olhos <Não vai aproximar-se de mim> Ouviu um assobio e viu um clarão. Uma carga explodiu tão perto que a onda

empurrou-lhe a cabeça contra a parte de baixo do jipe e perdeu os sentidos. Quando recuperou a consciência, decidiu não abrir os olhos. Como acabava de

recobrar os sentidos, não conseguia ouvir muito bem, mas sentia-se quente como

Page 670: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

670

nos banhos de Lazavero, em que atirava água para as rochas e estas assobiavam e soltavam vapor. O doutor Sayers continuava parcialmente debaixo do seu corpo. Não tinha para onde ir. A língua passou-lhe outra vez sobre o objeto pontiagudo que tinha na boca. Sentia um gosto salgado e metálico.

Sayers parecia pegajoso. Perda de sangue. Tatiana abriu os olhos e apalpou-o. Uma pequena chama atrás do jipe iluminava o rosto do médico. Onde teria sido atingido? Tateou com os dedos debaixo do casaco e descobriu o buraco da bala no ombro. Não encontrou o local de saída, mas comprimiu-lhe o braço com a mão enluvada para tentar estancar o sangue. Voltou a fechar os olhos. Havia um clarão atrás de si, mas já não se ouviam tiros.

Quanto tempo passar? Dois minutos? Três? Sentiu-se a deslizar para um abismo negro. Não só não conseguia abrir os

olhos como também não queria. Quanto tempo para sua vida acabar, continuar? Quanto tempo para o doutor Sayers morrer, para Dimitri surgir sozinho à luz

intensa? Quantp tepo para Tatiana? Quanto mais tempo para ela? Quanto tempo demorava Alexander a socorrer o doutor Sayers e a ser

atingido? Tatiana vira tudo do jipe da Cruz Vermelha, parado atrás das árvores da clareira que descia para a margem do rio e que Alexander percorrera e correr na tentativa de ir em socorro de Anatoly Marazow.

Tatiana vira tudo. Aqueles dois minutos durante os quais observara Alexander correndo para

Mazarov, gritando ao doutor Sayers, correndo para o doutor Sayers, puxando-o e arrastando três homens até ao camião tinham sido os dois minutos mais longos de sua vida.

Estivera tão perto da segurança! Viu a bomba lançada pelo avião alemão cair no gelo e explodir e Alexander voar de cabeça contra o camião blindado. Quando ele aterrou, agarrou numa caixa cheia de frascos cilíndrico de plasma e no estojo de primeiros-socorros e correu pela margem. Perto do gelo, foi travada por um cabo, que a fez atira-se para o chão berrando:

- É maluca? - Sou enfermeira. Tenho de ir socorrer o médico. - Pois sim, uma enfermeira morta. Deixe-se estar deitada. Obedeceu durante exatamente dois segundos. Observou o doutor Sayers

escondendo-se atrás do veiculo blindado que o protegia a ele e a Alexander e levantando o braço a pedir ajuda. Vendo que Alexander não se levantava, pôs-se em pé de um salto e correu para o gelo antes que o cabo pudesse dizer fosse o que fosse. Ao principio correu, mas depois, assustada com as bombas que caiam em seu redor, atirou-se para o chão e avançou a rastejar. Alexander estava imóvel. No lado direito das costas do camufladobranco em farrapos alastrava uma mancha vermelha, rodeada por cinza preta. Tatiana gatinhou na sua direção e arrancou-lhe o capacete da cabeça coberta de sangue.

Page 671: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

671

Bastou-lhe um olhar para perceber que Alexander agonizava. Estava cinzento e sem vida. Por baixo dele, o sangue tornava o gelo

escorregadio. Encontrava-se ajoelhada nele: - Está em estado de choque. Precisa de plasma. O doutor Sayers concordou imediatamente. Enquanto o médico procurava um

instrumento cirúrgico para lhe cortar a manga. Tatiana tirou a toca e apertou-o com força contra o ferimento de modo a diminuir a perda de sangue. Estendendo a mão para a bota direita dele, tirou a faca da tropa e atirou-a ao doutor Sayers:

- Tome, use isto. - Pareceu-lhe que não respirou nem uma vez. O médico cortou-lhe o casaco e o uniforme, expondo o antebraço esquerdo.

Procurou uma veia e espetou-lhe uma seringa a qual ligou um tubo e um fraco de plasma.

Quando foi busca uma maca e ajuda, Tatiana, por esta altura sentada em cima do ferimento, cortou-lhe a outra manga, pegou noutro frasco de plasma, noutra seringa e noutro catéter e espetou-os numa veia do antebraço direito, ajustando-os de modo a que o líquido entrasse no corpo de Alexander a uma velocidade de sessenta e nove gotas por minuto, o máximo possível. Esperou que a maca chegasse sentada nas suas costas, fazendo toda a força que podia, com a touca e o casaco brancos ensopados de sangue, murmurando:

- Aguenta-te soldado. Aguenta-te Quando o médico regressou, o frasco de plasma do lado esquerdo já se

esvaziara e ela já o substituíra. Tatiana despiu o casaco manchado e estendeu-o de lado na maca, aportando-lhe com força em volta do ferimento. Alexander estava extremamente pesado devido às roupas molhadas. O doutor Sayers perguntou-lhe como iam transportá-lo e ela respondeu que pegavam nele e pronto.

-Vai pegar nele? - indagou incredulidade. - Vou. Agora – respondeu sem pestanejar. Depois, discutiu com os médicos soviéticos, com as enfermeiras soviéticas e

até com o doutor Sayers, que ao examinar o ferimento e ver a quantidade de sangue que Alexander perdera, declarou:

- Não há nada a fazer. Ponham-no na enfermaria dos doentes terminais. Deem-lhe um grama de morfina, mas não mais.

Tatiana administrou-lhe morfina e plasma por via intravenosa. Ao vê que não chegava, deu-lhe o seu sangue. E ao ver que também isso não chegava e que parecia que nada chegaria, fez correr o sangue das suas artérias para as veias dele.

Gota a gota. Sentada ao seu lado, murmurava: - Só quero que ouças o meu espírito a traves da tua dor. Sento-me aqui

contigo, derramando o meu amor gota a gota, esperando que me ouças, esperando que levantes a cabeça e voltes a sorrir. Ouves-me, Shurra?

Sentes-me sentada ao teu lado, dizendo-te que ainda está vivo? Sentes a minha mão no teu coração palpitante, dizendo-te que acredito em ti, que acredito

Page 672: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

672

na tuia vida eterna, que acredito que criarás asas e voaras sobre a morte? E quando voltares a abrir os olhos, estarei aqui. Estarei sempre aqui acreditando em ti, fazendo votos por ti e amando-te. Estou aqui. Sente-me, Alexander. Sente-me e vive.

Ele viveu. Naquele momento, deitada debaixo do jipe da Cruz Vermelha ao nascer da

fria manhã de março, pensou: < Salvei-o para ele morrer no gelo sem as minhas mãos amparando-lhe o corpo jovem, lindo e devastado pela guerra, que me amou com todo o seu poder? Como pode o meu Alexander ter tombado sozinho?>

Preferia tê-lo sepultado como sepultara a irmã e viver assim. Preferia saber que lhe dera paz e viver outro segundo assim.

Não se suportava nem mais um momento. Nem mais um momento. Mais um instante e não restaria nada dela.

Ouviu vagamente o doutor Sayers gemer. Pestanejou afastando Alexander, e abriu os olhos:

- Doutor? - Estava semiconsciente. Na floresta silenciosa, a manhã nascia de um azul de aço. Desembaraçando-se dele, rastejou pra fora do jipe. Esfregou o rosto e reparou que estava coberto de sangue. Os seus dedos tocaram num pedaço de vidro espetado na face. Tentou puxar, mas doía muito. Agarrando-o firmemente por um lado, arrancou-o gritando.

Não doeu o suficiente. Continuou a gritar. Os bosques estéreis devolveram-lhe os gritos de agonia.

Agarrando as pernas, a barriga e o peito, ajoelhou-se na neve a gritar. O sangue escorria-lhe da face.?

Deitou-se no chão e encontrou a ferida à neve. Não estava suficientemente fria pra a entorpecer.

Já não tinha nada pontiagudo na boca, mas sentia a língua lacerada e inchada. Sentou-se na neve e olhou em volta. O silencio era fantasmagórico; as bétulas despidas e sem vida faziam um contraste sombrio com o solo branco. No coração da floresta, perto do golfo da Finlândia, já não havia nenhum som, nenhum eco, nem sequer dela, nenhum ramo fora do lugar.

Mas as coisas estavam fora do lugar. O jipe da Cruz Vermelha achava-se inutilizado. Um homem da NKVD, de uniforme azul-escuro, encontrava-se caído à sua direita. Dimitri fazia a um metro do jipe. Ainda tinha os olhos abertos e a sua mãos estendida para Tatiana, como se esperasse que algum milagre da providencia o salvasse da sua eternidade.

Observou o rosto gelado durante um momento. Como Alexander apreciaria saber que Dimitri fora reconhecido pela NKVD! Desviou o olhar.

Alexander tinha razão: aquele era mesmo um bom sítio para atravessar a fronteira, pois havia poucos homens, mal armados. As tropas da NKVD dispunham das suas espingardas e, pelo que via, de um morteiro, que não chegava para os defender: as bombas dos Finlandeses eram maiores. O silencio também reinava ao

Page 673: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

673

lado finlandês. Apesar do tamanho das suas bombas, também estariam todos mortos? Não via nenhum movimento através das árvores. Ainda se encontrava do lado russo. Que fazer? Sem dúvida que não tardariam a chegar reforços da NKVD, que em breve a levariam para ser interrogada. E depois?

Apalpou a barriga por cima do casaco. Tina as mãos geladas. Voltou a rastejar para debaixo do jipe da Cruz Vermelha. - Doutor Sayersa – sussurrou, pondo-lhe as mãos no pescoço. - Matthew, está

a ouvir? - Não respondia. Parecia muito mal; tinha cerca de quarenta pulsações por minuto e notava-se através da carótida que a pressão arterial estava muito fraca. Tatiana deitou-se ao seu lado e tirou-lhe do bolso do casaco o passaporte americano e os papeis da cruz vermelha dos dois, que declaravam em inglês que Matthew Sayers e Jane Barrington se dirigiam a Helsínquia.

Que havia de fazer? Deveria ir? Para onde? Como? Subiu para dentro da viatura e rodou a ignição. Nada. Não valia a pena. Bem

via a extensão dos danos provocados pelas rajadas de metralhadora. Espreitou para o lado finlandês através dos bosques. Estava alguém a mover-se? Não. Distinguiu formas humanas na neve e, atrás delas, uma camião do exercito finlandês, um pouco maior do que a viatura da Cruz Vermelha. Mas não era esta a única diferença: o camião finlandês não parecia danificado.

Saltou para fora e disse ao doutor Sayers: - Venho já. Ele não respondeu. - Então muito bem. - Atravessou a fronteira soviético-finlandesa, pensando

que a sensação de estar na Finlândia ou na União Soviética era quase a mesma. Passou cuidadosamente pela meia duzia de cadáveres finlandeses. No camião, estava um outro morto ao volante, com o coro caído para a frente. Para entrar, teria de o tirar.

Içou-o deixou-o cair na neve pisada com um baque surdo, subiu para a cabina e rodou a chave, ainda na ignição. O motor não trabalhava. Pô-lo em ponto morto e tentou de novo. Nada. Experimentou outra vez. Nada. Olhou para o indicador do deposito do combustível. Estava cheio. Saltando para o chão, foi as traseiras do camião e espreitou para baixo, tentando ver se o deposito estava furado. Não, estava intacto. Deu novamente a volta e abriu o capot. Por um muito ficou a olhar, indecisa, mas estão lembrou-se de uma coisa. Era um motor a diesel. Como sabia?

Kirov. A palavra Kirov provocou-lhe um arrepio e teve de combater o impulso de se

deitar outra vez na neve. Na fabrica de Kirov, produzia os motores a diesel dos tanques. < Fiz-te um tanque inteiro hoje, Alexander!> De que se lembrava deles?

De nada. Acontecera tanta coisa entre os motores a diesel e a floresta finlandesa que mal se lembrava do numero do elétrico que apanhava para casa.

Um.

Page 674: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

674

Era o elétrico numero 1. Seguiam nele parte do caminho e percorriam o resto do canal Obvodnoy a pé, falando da guerra e da América com os braços batendo um no outro.

Motor a diesel. Tinha frio. Puxou a touca para as orelhas. Frio. Os motores a diesel tinham alguma dificuldade em pegar a baixas

temperaturas. Verificou o numero de cilindros. Seis. Seis pistões e seis câmaras de combustão, muito frias: o ar não aquecia o suficiente para provocar a ignição do combustível. Onde estava a resistência que aparafusava de lado na câmara de combustão?

Encontrou as seis. Tinha de as aquecer para que a temperatura do ar subisse durante a compressão. De contrario, o motor continuaria a alimentar os cilindros com ar gelado, esperando que este aquecesse a quinhentos e quarenta graus centigrados só com o movimento de vaivém dos pistões.

Olhou em volta. Nas proximidades jaziam cinco soldados mortos. Meteu a mão no bolso pequeno de uma das suas mochilas e tirou um isqueiro. Era onde Alexander também guardava sempre o dele. Tatiana costumava ir lá buscá-lo para lhe acender os cigarros. Acendeu-o e aproximou a pequena chama da primeira resistência durante uns segundos. Depois, da segunda. A seguir, da terceira. Quando chegou ao fim das seis, a primeira já estava tão fria como quando começara. Perdeu a paciência. Rangendo os dentes e gemendo, partiu o ramo baixo de uma bétula e tentou pegar-lhe fogo, mas a neve molhara-o muito. Não acendeu.

Desesperada, tornou a olhar em volta. Sabia exatamente o que procurava. Atrás do camião, viu uma lança-chamas no corpo de um dos finlandeses mortos. De queixo fincado e expressão sombria, arrancou-o do cadáver e pô-lo as costas, como a mochila de Alexander. Segurou firmemente o tubo com a mão esquerda, puxou o tampão do deposito, acendeu o isqueiro chegou-o ao combustível.

Nada aconteceu durante meio segundo. De repente o tubo lançou uma chama tão violentamente que o recuo quase a fez cair na neve. Quase. Mas permaneceu de pé.

Encaminhou-se então para o capot aberto do camião e apontou a chama ao motor durante uns segundos. Depois mais uns segundos. Talvez trinta, não sabia. Por fim, baixou a alavanca com a mão direita e a chama extinguiu-se. Arrancou o lança-chamas das costas, subiu para o camião e rodou a chave. O motor roncou uma vez e começou a trabalhar. Pôs o pé na embraiagem, meteu a primeira e carregou no acelerador. O camião deu um solavanco. Tatiana conduziu-o devagar através da linha defensiva, ate junto do doutor Sayers.

Içar o médico para o camião filandês exigiu dela mais do que podia dar. Mas não muito mais. Depois de o ter pousado la dentro, deu com os olhos na bandeira da Cruz

vermelha do jipe.

Page 675: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

675

Foi a bota de Dimitri buscar a faca da tropa, encaminhou-se para o jipe, esticou-se e cortou cuidadosamente o distintivo da cruz vermelha. Não fazia ideia de como ia pregá-lo ao oleado do camião finlandês. Ouviu o doutor Sayers gemer na parte de trás e lembrou-se do estojo de primeiros-socorros. Com uma determinação tresloucada, pegou o estojo, cortou o casaco e a camisa do medico e ligou-lhe um frasco de plasma a veia. A seguir, examinou-lhe a ferida inflada, suja e vermelha em volta do buraco. Sayers estava quente e a delirar. Limpou o ferimento com tintura de iodo diluída e tapou-o com gaze. Com uma satisfação sinistra, derramou então tintura sobre o rosto e sentou-se a apertar um penso contra a face durante uns minutos. Pareceu-lhe que ainda tinha o vidro dentro da pele. Desejando ter tintura de iodo pura, pensou-se o folpe precisaria de pontos. Achava que sim.

Pontos. Lembrou-se da agulha do estojo de primeiros-socorros. Com os olhos menos enevoados, pegou na agulha e numa linha de suturar,

saltou para fora e, em bicos de pés, coseu cuidadosamente o grande simbolo da cruz vermelha ao oleado castanho do camião finlandês. A linha fina rebentou varias vezes. Não interessava. Só era preciso que se aguentasse ate Helsínquia.

Quando acabou, sentou-se ao voltante, virou-se e perguntou para a pequena janela:

- Pronto? - conduziu o camião para fora da União Soviética, deixando Dimitri morto no chão.

Conduziu o camião pelo caminho arborizado e alagadiço. Seguia com cuidado e hesitação. Agarrava o grande volante com ambas as mãos e pés mal lhe chegava aos três pedais. Foi fácil encontrar a estrada que se estendia ao longo do golfo da Finlândia, de Lisiy Nos a Vyborg: só havia uma. Restava-lhe apenas seguir para oeste, que determinou pela posição do sol melancólico e pouco interessado de março.

Em Vyborg, mostrou as credenciais da cruz Vermelha a um sentinela, pediu combustível e informou-se sobre o caminho a seguir para Helsinquia. Pareceu-lhe que ele lhe perguntou o que lhe acontecera ao rosto, pois apontou para ele, mas como não falava finlandês, não respondeu e seguiu em frente, desta vez por uma estrada alcatroada. Parou em outo posto de controlo para mostrar os documentos e o medico ferido na parte de trás do camião. Guiou quatro horas e chegou a Helsinquia a meio da tarde.

A primeira coisa que viu foi a Igreja de São Nicolau toda iluminada, erguendo-se numa elevação sobranceira ao porto. Parou a perguntar onde era o Helsingin Yliopistollinen Keskussairaala, o Hospítal da universidade de Helsínquia. Sabia dizê-lo em finlandês; o que não entendeu foi a resposta. Depois de parar cinco vezes, encontrou finalmente alguém que falava inglês e que lhe indiciou que o hospital ficava atrás da igreja iluminada.

O doutor Sayers era muito conhecido e apreciado no hospital onde trabalhava desde a guerra de 1940. As enfermeiras foram buscar uma maca e fizeram a Tatiana

Page 676: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

676

todo o tipo de perguntas, que ela não compreendeu: a maioria em inglês, algumas em finlandês, nenhuma em russo.

No hospital, conheceu outro médico americano da Cruz Vermelha, Sam Leasvitt, que lhe examinou o rosto e declarou que o golpe precisava de ser suturado, perguntando-lhe se queria que lhe desse uma anestesia local. Tatiana recusou:

- Cosa, doutor. - vai precisar de cerca de dez pontos – informou o médico. - Só dez? Sentou-se imóvel e em silencio numa cama do hospital enquanto ele lhe cosia

a face. Depois, o medico receitou-lhe um antibiótico e um medicamento contra as dores e ofereceu-lhe comida. Aceitou apenas o antibiótico. Não comeu e mostrou a Leavitt a língua inchada e feria.

- Amanhã – sussurrou. - Amanhã estará melhor. Amanhã comerei. As enfermeiras levaram-lhe não só outro uniforme limpo e muito grande, que

lhe escondia a barriga, como também meias quentes e uma camisola interior de flanela, oferecendo-se para lhe levarem a roupa suja. Tatiana deu-lhe a farda e o casaco de lã, mas ficou com a braçadeira da cruz Vermelha.

Mais tarde, foi deitar-se no chão ao lado da cama do doutro Sayers. Quando a enfermeiras do turno da noite entrou, pediu-lhe para ir dormir noutro quarto, levantou-a e acompanhou à porta. Tatiana deixou-se conduzir, mas voltou para junto do doutor Sayers mal a enfermeira atravessou o corredor em direção ao seu posto.

De manhã, ele estava pior e ela melhor. Vestiu a sua velha farda, lavada e passada e conseguiu comer um bocadinho. Permaneceu todo o dia com o doutor Sayers, olhando pela janela para a faixa gelada do golfo da Finlândia que conseguia ver atrás dos edifícios de pedra e das arvores despidas. A meio da tarde, o doutor Leavitt foi examinar-lhe a face e pergunta-lhe se queria ir deitar-se. Recusou.

- Porque está sentada aqui? Porque não vai descansar? Tatiana não respondeu, Virando a cabeça na direção de Mattew Sayers,

pensou: < Porque é o que eu faço...agora e sempre. Sento-me a cabeceira dos moribundos.>

À noite, Sayers estava ainda pior. Tinha quase 42ºC de febre e suava abundantemente. Os antibióticos não estavam a fazer efeito, Tatiana não percebia porque. Só queria que ele recuperasse a consciência. Adormeceu na cadeira ao lado da sua cama, com a cabeça junto dele.

A meio da noite, acordou com o pressentimento de que o doutor Sayers não se ia salvar. Já conhecia bem aquela respiração: os últimos estertores de um moribundo. Deu-lhe uma mão e pois lhe a outra na cabeça. Com a língua dilacerada, falou-lhe baixinho, em russo e em inglês, da América e de tudo o que iria ver quando melhorasse. Ele abriu os olhos e disse em voz fraca que tinha frio. Tatiana foi buscar-lhe outro cobertor. Sayers apertou-lhe a mão:

- Lamento tanto, Tania! - murmurou, respirando rapidamente pela boca.

Page 677: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

677

- Não, eu é que lamento – respondeu quase sem se ouvir. Depois, mais alto: - doutor Sayers...Matthew... - Sentiu um nó na garganta, - Suplico-lhe...diga-me o que aconteceu ao meu marido. O Dimitri traiu-o? Ele foi preso? Estamos em Helsínquia, fora da União Soviética. Não vou regressar. Quero tão pouco para mim! - Encontrou-lhe a cabeça ao braço. - Só algum consolo – sussurrou.

- Vá para a .. América, Tania. - A voz enfraquecia-lhe. - Será o consolo dele. - Reconforte-me com a verdade. Viu-o mesmo no lago? O médico fitou-a longamente com uma expressão que lhe pareceu de

compreensão e incredulidade e fechou os olhos. Tatiana sentiu-lhe a mão a tremer e ouviu-lhe a respiração falhando-lhe no peito. Depois, parou.

Não lhe largou a mão até de manhã. Uma enfermeira entrou e conduziu-a afetuosamente para fora no corredor

abraçou-a e disse em inglês: - Querida, fazemos o que podemos pelas pessoas, mas mesmo assim elas

morrem. Estamos em guerra. Não é possível salvar toda a gente. Sam Leavitt, a meio das suas rondas, aproximou-se dela e perguntou-lhe o

que tencionava fazer. Tatiana respondeu-lhe que tinha de regressar à América. Ele fitou-a:

- Regressar à América? - inclinou-se para ela: - olhe, não sei onde o Matthew a desencantou... o seu inglês é bom, mas também não é assim tão bom. É mesmo americana?

Ela empalideceu e assentiu. - Tem o passaporte? Não pode viajar sem passaporte. Tatiana observou-o sem dizer nada. - Além disso, agora é muito perigoso. Os alemães bombardeiam o Báltico sem

piedade. - Eu sei - Há sempre barcos a afundar - Eu sei - Fique aqui até abril. Espere que o gelo derreta. Ainda tem de tirar os pontos.

E faz-nos jeito mais uma pessoa para ajudar. Fique em Helsínquia. Ela abanou a cabeça. - De qualquer maneira, terá de ficar até lhe arranjarmos outro passaporte.

Quer que a leve à Praça do Senado? Eu acompanho-a ao consulado dos Estados Unidos. Vai ser preciso pelo menos um mês para lhe emitirem documentos novos. Por essa altura, o gelo já deve ter derretido. Nos tempos que correm é difícil chegar à América.

Tatiana sabia que, ao tentar encontrar uma pessoa de nome Jane Barrington, o Departamento de Estado só iria descobrir que ela não era Jane Barrington. Alexander dissera-lhe que não poderiam ficar nem um segundo em Helsínquia... por causa do braço comprido da NKVD... e que teriam de partir imediatamente para Estocolmo. Por isso, abanou a cabeça e afastou-se.

Page 678: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

678

Deixou o hospital com a mochila, o estojo de enfermagem e os documentos de viagem em nome de Jane Barrington. Caminhou até ao porto semicircular do lado sul e sentou-se num banco observando os vendedores do mercado, que arrumavam as carroças e as mesas e varriam a praça.

A calma voltou a reinar. As gaivotas gritavam no céu. Sentada no banco, esperou horas a fio que a noite caísse. Depois levantou-se

e passou por uma rua estreita que subia para a luminosa Igreja de São Nicolau. Mal olhou para ela.

Vagueou de um lado para o outro no porto até descobrir uns camiões com a bandeira azul e branca da Suécia, carregando pequenas quantidades de tábuas empilhadas no chão. Havia bastante atividade. Pelos vistos, a noite era a altura adequada para atravessar o Báltico. Sabia que os camiões não viajavam de dia quando era fácil localizá-los. Embora os alemães não bombardeassem normalmente veículos comerciais neutrais, às vezes faziam-no. Por isso, os comboios de carregamentos e camiões suecos andavam sempre com escolta. Fora Alexander que lho dissera.

Percebeu para onde iam os camiões porque ouviu um homem dizendo a palavra <Stokgilm>, parecida com <Estocolmo> em russo.

Parou numa ponta do porto observando a madeira a ser carregada para as traseiras de um camião. Tinha medo? Não. Já não. Aproximando-se de um camionista, mostrou-lhe o distintivo da Cruz Vermelha, explicou-lhe em inglês que estava a tentar chegar a Estocolmo e perguntou-lhe se poderia levá-la para o outro lado do golfo de Bótnia por cem dólares americanos. Ele não percebeu uma palavra. Tatiana mostrou-lhe então uma nota de cem dólares e disse:

- Stokgolm? - Ele tirou-lhe o dinheiro das mãos de bom grado e deu-lhe boleia. Como não falava nem inglês nem russo, mal conversaram , oque não lhe fez

diferença nenhuma. Percorrendo a escuridão iluminada pelos faróis e pela luz polar cintilante, recordou que a primeira vez que beijara Alexander nos bosques de Luga receara que ele percebesse imediatamente que nunca fora beijada e pensara: < Se me perguntar alguma coisa vou mentir, porque até tenho vergonha> Pensara-o durante um ou dois segundos, mas ao sentir os seus lábios apaixonados não se lembrara de mais nada. Correspondendo-lhe com avidez, esquecera-se da sua inexperiência.

Pensar no primeiro beijo ocupou-a durante grande parte da viagem. Depois, adormeceu.

Não sabia quanto tempo demorou. Durante as ultimas horas, serpentearam no gelo por etre as pequenas ilhas antes de Estocolmo.

- Tack – disse ao camionista quando pararam no porto. - tack sa mycket. - Alexander ensina-lhe a dizer obrigado em sueco. Atravessou o gelo com cuidado para não escorregar e subiu uns degraus de granito que iam dar aos paralelepípedos da esplanada à beira-mar. <estou em Estocolmo>, pensou. < Quase em liberdade.>

Page 679: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

679

vagueou devagar pelas ruas meio desertas. Era de manhã, ainda muito cedo para as lojas estarem abertas. Que dia seria? Não sabia. Perto das docas industriais, encontrou uma pequena padaria aberta com pão branco nas prateleiras. Mostrou à dona da loja o dinheiro americano. A mulher abanou a cabeça e respondeu qualquer coisa em sueco:

- Bank. Pengar, dolars. Virou-se para sair. A mulher chamou-a, mas em voz estridente. Com medo de

que ela desconfiasse que não tinha nada que estar na Suécia, não olhou para trás. Já estava na rua quando ela a fez para e lhe ofereceu um pão quente e estaladiço, como Tatiana nunca cheirava, e um copo de papel de café preto.

- Tack – agradeceu. - Tack sa mycket. - Varsagos - replicou, abanando a cabeça ao dinheiro que Tatiana lhe

estendeu. Sentou-se num banco das docas sobranceiro ao mar Bático e ao golfo de

Bótnia a comer o pão e a beber o café. Contemplava a madrugada azul sem pestanejar. Algures a leste ficava a cidade cercada de Leninegrado. E algures mais para leste, Lazarevo. No meio, a Segunda Guerra Mundial e o camarada Estaline.

Depois de comer, vagueou pelas ruas o tempo suficiente pra encontrar um banco aberto, onde trocou algum dinheiro americano. Na posse de alguma coroas, foi comparar mais pão branco e encontrou uma loja que vendia queijo... aliais, vários tipo de que queijo. Melhor ainda, perto do porto descobriu um café onde lhe serviram o pequeno almoço, constituído não só por papas de aveia, ovos e pão, como também por bacon! Comeu três doses de bacon e decidiu que, dali em diante, seria só o que comeria ao pequeno-almoço.

O dia ainda ia no início. Tatiana não sabia onde ir dormir. Alexander dissera-lhe que em Estocolmo havia hotéis onde as pessoas podiam alugar um quarto sem terem de mostrar os passaportes. Tal e qual como na polônia. Na altura, não acreditara. Mas claro que Alexander tinha razão.

O quarto de hotel do qual lhe entregaram a chave não só era quente como também tinha uma cama e vista pra o porto, além de uma casa de banho com aquela coisa de que Alexander lhe falara, um chuveiro, de onde a água jorrava. Devia ter ficado uma hora debaixo da água quente.

Depois, dormiu mais vinte e quatro. Ficou durante mais de dois meses em Estocolmo. Setenta e seis dias sentada no banco do cais, olhando para lá do golfo e da

Finlândia, na direção da União Sovietica, enquanto as gaivotas gritavam no céu. Setenta e seis dias... ela e Alexander haviam decidido passar a primavera em Estocolmo, à espera

de que o Departamento de Estado Norte-americano mandasse os documentos dele. Teriam festejado o seu vigésimo quarto aniversario em Estocolmo, a 29 de maio.

A austeridade da cidade suavizou-se com a primavera. Tatiana comprava túlipas amarelas e fruta no mercado e comia carne...presunto, porco e salsichas.

Page 680: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

680

Comia gelado. A ferida no rosto ficou boa e a barriga cresceu. Pensou em ficar em Estocolmo, arranjar trabalho num hospital e ter o bebê na Suécia. Gostava das tulipas e do duche quente.

Mas as gaivotas choravam no céu. Nunca chegou a ir à igreja Riddarholm, o Templo da fama da Suécia.? Por fim, apanhou um comboio que atravessou o país até Gotemburgo, onde

facilmente arranjou lugar no porão de um cargueiro sueco que ia transportar produtos de papel para Harwich, Inglaterra. Tal como durante a travessia da Finlândia para a Suécia, a embarcação seguiu acompanhada de uma escolta fortemente armada. Dado que a Noruega estava ocupada pelos alemães, havia alguns bombardeamentos e naufrágios no mar do Norte. A Suécia, neutral, não queria ter nada haver com o assunto... e Tatiana também não.

A viagem até Harwich decorreu sem incidentes. Para chegar a Liverpool, tomou um comboio cujos bancos eram extremamente confortáveis. Por curiosidade, comprou um bilhete de primeira classe. As almofadas eram brancas. <Quem me dera ter ido num comboio assim para Lazarevo depois de seplutar a Dasha!>, pensou.

Passou duas semanas na cidade húmida e industrial, até descobrir que uma companhia de navegação chamada White Star fazia uma ligação com Nova Iorque uma vez por mês. Mas precisava de visto para entrar a bordo. Comprou um bilhete de segunda classe e apresentou-se na prancha de embarque. Quando um jovem marinheiro lhe pediu a identificação, mostrou-lhe os documentos da cruz vermelha que trouxera da União Soviética lhe disse-lhe que não serviam e que precisava de um visto. Tatiana retorquiu-lhe que não tinha, ele comunicou-lhe que precisava de passaporte. Ela respondeu que não tinha. Ele então soltou uma gargalhada e rematou:

- Então, minha querida, não entra neste barco. Mas Tatiana explicou: - Não tenho visto nem passaporte, mas tenho quinhentos dólares que gostaria

de lhe dar se me deixar passar. - tossiu, sabia que os quinhentos dólares correspondia ao salário anual do marinheiro.

O jovem aceitou imediatamente o dinheiro e conduziu-a a um compartimento pequeno abaixo do nível do mar, onde Tatiana se instalou no beliche de cima. Alexander dissera-lhe que, no quartel de Lenigegrado, dormia na tarimba superior. Mas não estava a sentir-se bem. Envergava o maior dos seus uniformes brancos, aquele que lhe tinham dado em Helsínquia. O primeiro havia muito que deixara de lhe servir; de resto, o outro também repuxava na barriga.

Em Estocolmo, descobrira um sítio chamado tvatteri, onde podia lavar os uniformes. Punha dinheiro numas máquinas chamadas de tvatt maskins e tork tumlares e as roupas saíam lavadas trinta minutos depois e secas passados outros trinta, sem ser preciso meter-se na água fria com sabão e tábua de esfregar. Tudo o que tinha a fazer era ficar sentada a olhar as maquinas e a recordar.

Page 681: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

681

Da ultima vez que fez amor com Alexander, ele tinha de sair às seis da tarde e acabaram por volta das cinco e cinquenta e cinco. Só teve tempo para vestir, beijá-la e correr porta fora. Fizera amor em cima dela. Tatiana observa-lhe o rosto o tempo todo, agarrada ao seu pescoço, gritando e suplicando-lhe que não acabasse, uma vez que depois teria de partir. Amor. Como se dizia em sueco?

Karlek. Jag alskar dig, Alexander. Fitando o tork tuimlare torcendo-lhe as meias e as fardas da cruz Vermelha,

dera graças por ter visto o seu rosto enquanto faziam amor pela última vez. A viagem até Nova Iorque demorou dez dias de enjoos e vômitos. Chegou no

fim de junho. Fizeras dezanove anos a bordo do navio da White Star, no meio do oceano Atlântico.

No navio, tossia e pensava em Orbeli. - Tatiasha. Orbeli. Não te esqueças... tossindo sangue, reunira as ultimas forças e a energia que lhe restava no

coração para pensar.... se Alexander soubesse que ia ser preso e não pudesse dizer-lhe porque assim ela nunca iria sem ele, teria cerrado os dentes, fincado o queixo e mentido?

Sim. Seria. Exatamente o que faria. Sabendo da verdade, deixa-lhe-ia uma palavra.

Orbeli. O peito doía-lhe tanto que parecia que ia rasgar-lhe a caixa torácica. Quando o navio da White Star atracou no porto de Nova Iorque, não

conseguiu levantar-se. Não que não quisesse: não conseguia. Depois de um violento ataque de tosse, pareceu-lhe que estava molhada.

Dali a pouco ouviu vozes e entraram dois homens vestidos de branco. -Oh, não! Que temos aqui? – disse o mais baixo. – Mais uma refugiada? - Espera! Esta tem o uniforme da Cruz Vermelha – replicou o mais alto. - É evidente que o roubou. Olha como lhe está apertado na barriga. Claro que

não é dela. Anda, Edward. Depois damos parte dela. Agora temos de inspecionar o navio.

Tatiana gemeu. Os homens regressaram. O mais alto examinou-a: - Chris, acho que vai ter um bebê. - O quê... agora? - Parece-me que sim. – O médico meteu-lhe a mão abaixo. – Rebentaram-lhe

as águas. Chris aproximou-se de Tatiana e posou-lhe a mão na testa: - Está a arder. Ouve-lhe a respiração. Nem sequer preciso de estetoscópio.

Tem uma tuberculose. Meu Deus, quantos casos haverá mais? Deixa lá. Ainda temos de inspecionar as outras cabinas. Esta é a primeira, mas garanto-te que não será a última.

Edward continuou com a mão na barriga de Tatiana: - Está muito doente. Miss, fala inglês?

Page 682: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

682

Ela não respondeu. - Vês? – exclamou Chris. - Pode ser que tenha passaporte. Miss, tem passaporte? Continuou sem responder. - Já chega. Vou andando – disse Chris. - Mas ela está doente e prestes a ter um filho. Queres deixá-la aqui? – Riu-se.

– Que médico és tu? - Um médico cansado e mal pago. No Departamento de Saúde Pública não me

pagam o suficiente para me preocupar. Para onde a levamos? - Pô-mo-la de quarentena no hospital de Ellis Island, onde há espaço para ela

se tratar e ficar boa. - Com tuberculose? - Edward, é uma refugiada! De onde vem? Olha para ela! Se estivesse só

doente, tudo bem, mas vai ter o filho em solo americano... e ficará com tanto direito a estar aqui como qualquer um de nós. Desiste. Deixa-a dar à luz no barco, para não ter nenhum direito, e depois põe-na em Ellis. Logo que melhorar, será deportada. Pensam que podem vir para cá sem autorização... pois bem, acabou-se. Vê só a quantidade de gente que já temo. E vai piorar ainda mais quando esta maldita guerra acabar. Todo o continente europeu vai querer...

- O quê, Chris Pandolfi? - Oh, é fácil para ti julgar, Edward Ludlow. - Estou aqui desde as guerras franco-índias. Não faço juízos. Chris fez sinal de que não queria mais conversas e foi-se embora, mas ainda

espreitou para dentro do compartimento, dizendo: - Depois vimos cá. Ela ainda não vai ter a criança. Olha como está quieta.

Vamos. Edward já ia a sair quando Tatiana gemeu baixinho. Voltou para trás e

examinou-a: - Miss? – chamou. – Miss? Tatiana levantou a mão e pousou-a no rosto de Edward. - Ajude-me – pediu em inglês. – Vou ter um bebê. Ajude-me, por favor. Edward Ludlow foi buscar uma maca. De má vontade e a resmungar, Chris

Pandolfi ajudou-o a tirá-la do navio e metê-la no barco que a levou para Ellis Island, no meio do porto de Nova Iorque. Havia já vários anos que o hospital da ilha era um centro de detenção e quarentena dos imigrantes e refugiados que chegavam aos Estados Unidos.

Tatiana tinha os olhos tão embaçados que se sentia meia cega, mas apesar da névoa e dos vidros sujos do barco viu a mão valorosa erguendo a chama para o céu iluminado, levantando a mão ao lado da porta dourada.

Fechou os olhos.

Page 683: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

683

Em Ellis, levaram-na para um quarto pequeno e espartano, onde Edward a deitou numa cama com lençóis impecavelmente brancos, indo depois chamar uma enfermeira para a despir. Depois de a examinar, fitou-a com surpresa:

- O seu filho está mesmo a nascer. Não sente? Tatiana mal se mexia, mal respirava. Quando a cabeça do bebê saiu, cerrou os

dentes ao sentir palpitações ligeiramente semelhantes a dores. Edward ajudou-a a dar à luz. - Miss, está a ouvir? Olhe. Veja o que tem. Um bonito rapaz! – O médico sorriu

e mostrou-lhe o recém-nascido. – Olhe. Que grane... até me admira como conseguiu tê-lo com um corpo tão pequenino. Já viu. Brenda? Não concorda? – A enfermeira embrulhou-o num pequeno cobertor branco e deitou-o ao lado de Tatiana.

- É prematuro – articulou ela, observando o filho e pousando a mão em cima dele.

- Prematuro? – Edward soltou uma gargalhada. – Não, diria que nasceu mesmo a tempo. Se fosse mais tarde, ia tê-lo em... de onde é?

- Da União Soviética – respondeu Tatiana quase imperceptivelmente. - Meu Deus! Da União Soviética? Como chegou aqui? - Se eu lhe contasse, nem ia acreditar – retorquiu ela, deitada de lado e

fechando os olhos. - Bem, agora o que interessa é que o seu filho é um cidadão americano –

tornou Edward alegremente, sentando-se na cadeira ao lado da cama. – Era isso que queria?

Tatiana abafou um queixume: - Era. – encostou o filho ao rosto febril. – Era o que eu queria. – Doía-lhe

respirar. - Tem tuberculose. Agora dói, mas vai melhorar – observou ele com doçura. - Tudo aquilo por que passou já ficou para trás. - É disso que tenho medo –sussurrou. - Não, é bom! – exclamou o médico. – Fica aqui em Ellis, vai melhorar... Onde

arranjou a farda da Cruz Vermelha? É enfermeira? - Sou. - Isso é ótimo – disse jovialmente. – Vê? Tem habilitações. Vai poder arranjar

um emprego. E fala um bocadinho inglês, o que é mais do que se pode dizer da maioria das pessoas que passa por aqui. Acredite que vai desenvencilhar-se muito bem. – Sorriu – Bem, quer alguma coisa para comer? Temos sanduiches de peru...

- De quê? - Oh, acho que vai gostar de peru. E há também de queijo. Eu trago-lhe. - O senhor é um bom médico. Chama-se Edward Ludlow, não é? - É - Edward... - Dobre a língua! Doutor Ludlow – exclamou a enfermeira Brenda em voz alta. - Enfermeira! Deixe-a chamar-me Edward se quiser. Que lhe interessa a si?

Page 684: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

684

Brenda saiu com um ar ofendido e Edward pegou numa toalha para limpar as lágrimas de Tatiana:

- Eu sei que deve ser triste... e assustador. Mas tenho um bom pressentimento. Vai correr tudo bem. – Sorrindo: - Prometo.

Tatiana ergueu para ele os olhos verdes e magoados: - Os americanos gostam de fazer promessas. Edward assentiu: - E cumprimos sempre a nossa palavra. Agora vou chamar a enfermeira dos

serviços administrativos do Departamento de Saúde Pública. Se a Vikki se mostrar rabugenta, não ligue. Hoje está de mau humor, mas tem muito bom coração. Ela trata-lhe de certidão de nascimento. – Observando o recém-nascido com afeto: - É um rapagão. E tem imenso cabelo. Um milagre, não é?

Já pensou no nome que lhe vai dar? - Já – respondeu, chorando encostada à cabeça morena do filho, - vai ter o

nome do pai: Anthony Alexander Barrington. <<Soldado! Deixa-me embalar-te a cabeça e acariciar-te o rosto, deixa-me

beijar-te os lábios doces e amados, chorar através dos mares e segredar à erva gelada da Rússia a falta que me fazes... Luga, Ladoga, Leninegrado, Lazarevo...Alexander, houve um tempo em que me levaste contigo. Agora é a minha vez. Levo-te agora comigo até à minha eternidade.

Pela Finlândia, pela Suécia, até à América, cambaleio em frente de mão estendida, seguida pelo galope do corcel preto, sem cavaleiro. O teu coração, a tua espingarda, consolar-me-ão, serão o meu berço e a minha tumba.

Penetras-me na alma com cada gota do rio Kama, da madrugada ao luar. Quando quiseres saber de mim, procura-me lá, porque é onde estarei todos os dias da minha vida.>>

- Shura, não suporto pensar na tua morte – disse-lhe Tatiana deitada na manta, depois de terem feio amor junto da fogueira, ao orvalho da manhã.

- É um pensamento que também não me entusiasma muito. – Sorriu com todos os dentes. – Não vou morrer. Tu própria disseste que eu estava destinado a grandes coisas.

- E estás – replicou ela. – Mas é melhor continuares vivo por mim, soldado, porque não posso viver sem ti. – Falou olhando-o no rosto, com as mãos pousadas no seu coração palpitante.

Ele inclinou-se e beijou-lhe as sardas: - Não podes? A minha rainha das rodas do lago Ilmen? Sorriu e abanou a

cabeça:- Encontrará maneira de viver sem mim. Encontrarás maneira de viver nós os dois – respondeu Alexander. O rio Kama corria dos montes Urais, atravessando uma aldeia de pinheiros chamada Lazarevo. Eram jovens e estavam apaixonados.

Page 685: Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que ......Para os meus queridos avós, Maria e Lev Handler, que viveram a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a Guerra

685

Esta obra foi formatada pelo grupo de MV, de forma a propiciar ao leitor o acesso à obra, incentivando-o à aquisição da obra literária física ou em formato ebook. O grupo é ausente de qualquer forma de obtenção de lucro, direto ou indireto. O Grupo tem como meta a formatação de ebooks achados na internet, apenas para melhor visualização em tela, ausentes qualquer forma de obtenção de lucro, direto ou indireto. No intuito de preservar os direitos autorais e contratuais de autores e editoras, o grupos, sem prévio aviso e quando julgar necessário poderá cancelar o acesso e retirar o link de download do livro cuja publicação for veiculada por editoras brasileiras.

O leitor e usuário ficam cientes de que o download da presente obra destina-se tão somente ao uso pessoal e privado, e que deverá abster-se da postagem ou hospedagem do mesmo em qualquer rede social, blog, sites e, bem como abster-se de tornar público ou noticiar o trabalho do grupo, sem a prévia e expressa autorização do mesmo. O leitor e usuário, ao acessar a obra disponibilizada, também responderão individualmente pela correta e lícita utilização da mesma, eximindo-se os grupos citados no começo de qualquer parceria, coautoria ou coparticipação em eventual delito cometido por aquele que, por ato ou omissão, tentar ou concretamente utilizar da presente obra literária para obtenção de lucro direto ou indireto, nos termos do art. 184 do código penal e lei 9.610/1998.