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Para Geoffroy de Lagasnerie

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U M

E pronto, algumas horas depois daquilo a que a cópia da minha queixa, que ainda guardo dobrada em quatro numa gaveta, chama «tentativa de homicídio», saí de casa e desci

as escadas. Atravessei a rua debaixo da chuva para ir lavar os lençóis a

noventa graus na lavandaria lá em baixo, a menos de cinquenta metros da porta do meu prédio, curvado e com as pernas a fra‑quejar sob o peso de um saco de roupa demasiado incómodo.

Ainda não tinha amanhecido por completo. A rua estava vazia. Eu estava sozinho e caminhava, os meus pés tropeçavam, só tinha de dar uns quantos passos e, contudo, a pressa fazia‑‑me contar: Só mais cinquenta passos, vá lá, só mais vinte passos e já lá estás. Acelerava. Também pensava, impaciente do futuro que, de algum modo, atiraria, mandaria, despacharia aquela cena para o passado: Daqui a uma semana vais dizer: já passou uma semana desde que aconteceu; e daqui a um ano vais dizer: já faz um ano que aconteceu. A chuva gelada, não muito intensa, mas extremamente fina, minúscula, desagradável, infiltrava‑se pela lona dos meus sapatos, a água propagava‑se pelas solas e pelo tecido das meias. Tinha frio — e pensava: Se calhar ele vai voltar, vai voltar, e eu fico condenado a andar sempre de um lado para o outro, ele condenou-te a andares sempre de um lado para o outro. Na lavandaria só estava o dono do estabelecimento, pequenino, atarracado. Os ombros e a cabeça assomavam‑lhe por trás de fileiras de máquinas. Perguntou‑me se estava tudo bem e eu respondi «não», tão rispidamente quanto

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fui capaz. Esperei pela sua reação. Queria que ele reagisse. Ele não quis saber mais nada, encolheu os ombros, virou a cabeça, entrou num gabinete estreito escondido por trás das secadoras, e eu detestei‑o por não me fazer mais perguntas.

Regressei a casa com os lençóis lavados. Suava ao subir as escadas. Voltei a fazer a cama, mas parecia que continuava a sentir‑se o cheiro de Reda, por isso acendi velas e queimei incenso; não era suficiente; peguei em desodorizantes, em ambientadores, nos perfumes que me tinham oferecido no último aniversário, nas águas de colónia, e aspergi os lençóis com tudo isso, ensaboei as fronhas das almofadas, que, contudo, tinha acabado de lavar, e o tecido cuspia a água sob a forma de pequenas bolhas sobrepostas, aglomeradas. Ensaboei as cadeiras de madeira, passei uma esponja molhada pelos livros em que ele tocara, esfreguei as maçanetas das portas com toalhitas de limpeza, minuciosamente, uma a uma as lâminas de madeira das persianas, desloquei e troquei as pilhas de livros pousadas no chão, puxei o lustro à estrutura metálica da cama, pulveri‑zei a superfície lisa e branca do frigorífico com um produto à base de limão; não conseguia parar, movido por uma energia próxima da loucura. Pensei: Antes louco do que morto. Esfreguei o duche que ele tinha utilizado, despejei vários litros de lixí‑via pela sanita e pelo lavatório (pelo menos, pouco mais de dois litros, isto é, uma garrafa de litro e meio ainda por abrir, e outra meia, vazia), esfreguei a casa de banho toda, dispara‑tadamente, chegando ao ponto de limpar o espelho no qual ele se tinha olhado, ou melhor, admirado nessa noite, deitei fora as roupas em que ele tocara, pois lavá‑las não seria suficiente; não sei porque o fora para os lençóis, mas não para as roupas. Esfreguei o chão, de gatas, com a água a ferver a queimar‑me os dedos; o pano arrancava‑me a pele amolecida em farrapos pequeninos e retangulares. Os pedaços de pele enrolavam‑se em

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si mesmos. Eu parava, inspirava profundamente, fungava, na verdade, como um animal, tinha‑me transformado num animal à procura do cheiro que parecia nunca mais desaparecer, apesar de todos os meus esforços, o cheiro dele não desaparecia e eu cheguei à conclusão de que estava em mim, não nos lençóis, nem nos móveis. O problema vinha de mim. Entrei no duche, lavei‑‑me uma vez, depois duas, depois três e assim por diante. Usei sabonete, champô, amaciador em todo o corpo para o perfumar o mais possível, o cheiro dele parecia ter‑se incrustado em mim, dentro de mim, entre a carne e a epiderme, e eu arranhava todas as partes do meu corpo com as pontas das unhas, espetava‑as com força, com obstinação, para chegar até às camadas internas da pele e tirar de lá o cheiro dele, e praguejava: Que porra, que merda!, e o cheiro persistia, provocava‑me cada vez mais náu‑seas e vertigens. Por isso deduzi: O cheiro está no interior do meu nariz. É o interior do nariz que estás a cheirar. O cheiro está bloqueado dentro do meu nariz. Saí da casa de banho, voltei e despejei soro fisiológico nas narinas; inspirei com força, como quando nos queremos assoar, de maneira a que, era o efeito que queria causar, o soro atingisse toda a superfície interior das minhas narinas; não servia de nada; abri as janelas e saí para ir ter com Henri, o único dos meus amigos que estaria acordado nessa manhã de 25 de dezembro, pelas nove ou dez horas.

É a minha irmã quem está a descrever esta cena ao marido. Estou escondido atrás de uma porta, a ouvir. Ouço a voz dela e reconheço‑a, mesmo depois de tantos anos de ausência, a voz dela, na qual se misturam sempre fúria, ressentimento, ironia e, também, resignação.

Cheguei a casa dela há quatro dias. Tinha imaginado, inge‑nuamente, que uns dias no campo seriam a única maneira de me recompor do cansaço e da lassidão do meu modo de vida,

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mas mal pousei o pé naquela casa, mal atirei o saco para cima do colchão, mal abri a janela do quarto que dá para os bosques e para a fábrica da aldeia ao lado, percebi que tinha cometido um erro e que iria regressar ainda mais melancólico e ainda mais deprimido pelo tédio.

Há dois anos que não vinha vê‑la. Quando ela se queixa do meu afastamento, gaguejo uma fórmula oca, do género «Tenho a minha vida», e tento ser suficientemente convincente para a culpa ficar do lado dela.

Mas não sei o que estou aqui a fazer. Já da outra vez, ao entrar no mesmo carro desta semana, o carro que me põe doente, com o cheiro a tabaco velho, e ao ver desfilar pela janela os mesmos campos de milho e de colza, as mesmas extensões de beterraba doce que cheiram mal, as fileiras de casas de tijolo, os horrendos cartazes da Frente Nacional, as igrejinhas sinistras, as estações de serviço desativadas, os supermercados enferrujados, oscilantes, colocados no meio das pastagens, toda a deprimente paisagem do norte da França, tinha ficado agoniado. Percebi que iria sentir ‑‑me só. Fui‑me embora, dizendo a mim mesmo que detestava o campo e que nunca mais voltaria. Regressei este ano. E mais uma coisa. Não é só por vocês dois acabarem sempre a queixarem-se de que nunca mais cá vieste, cinco minutos depois de chegares, pensei quando cheguei, quando já estava no carro dela, quando me pus a cantar para não falar, não é só porque tudo nela, nos seus modos, nos seus hábitos, porque tudo na sua maneira de pensar choca contigo e te exaspera. É também por já não conseguires vê-la desde que te apercebeste da facilidade e da indiferença com que a negligencias, muitas vezes cruelmente, porque esperas de que ela te acompanhe nesse esforço de abandono. Agora ela sabe. Ele sabe de que frieza és capaz, e tens vergonha. Mesmo não havendo razões para teres vergonha, pois tens direito ao abandono, tens vergonha. Sabes que visitá-la te obriga a confrontares-te com a tua crueldade, com aquilo a que a vergonha te faz

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chamar «a tua crueldade». Sabes que estar com Clara te obriga a ver o que não queres ver de ti mesmo, e que, por isso, ficas ressentido com ela. Não consegues impedir-te de ficares ressentido com ela.

Desde a última vez em que a visitei, só lhe enviei alguns SMS e alguns postais, secos, escolhidos ao acaso pelo vago sentimento de obrigação familiar, postais que ela colou no frigorífico, sempre garatujados à pressa num banco de jardim ou a uma mesa de café, «Beijinhos de Barcelona, até breve, Édouard» ou «Recordação de Roma, está um tempo magnífico», talvez, na verdade, menos para manter um laço ténue entre nós, como julgo pensar, do que para lhe recordar a distância que nos separa e para lhe mostrar que agora estou longe dela.

O seu marido voltou do trabalho. Do sítio onde estou, consigo ver os pés dele. Clara e ele estão na sala, eu estou na divisão ao lado. A porta está entreaberta quatro ou cinco centímetros e eu ouço sem eles conseguirem ver‑me, escondido de pé, hirto atrás da porta. Não consigo vê‑los, só ouvi‑los, só vejo os pés dele, mas adivinho‑a sentada numa cadeira à sua frente. Ele escuta sem se mexer e ela fala.

— Disse‑me que não sabia quase nada dele a não ser o nome: Reda.

Didier e Geoffroy acham que ele me mentiu e que me deu um nome falso. Não sei. Obstino‑me a não pensar nisso e, sem‑pre que penso, faço um esforço para afastá‑lo da minha mente. Concentro‑me noutra coisa, como se quisesse, depois de tudo o que ele me tirou, que me deixasse ao menos isso, como se o meu conhecimento dessas quatro letras fosse algo parecido a uma vin‑gança, ou, se essa palavra for demasiado forte, a um poder sobre ele, diretamente extraído desse conhecimento. Não quero ter sido derrotado em todos os planos. Quando falo desta história e me dizem que é óbvio que ele não me disse o seu verdadeiro nome,

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e que dizer um nome falso, num caso como aquele, num contexto assim, é uma técnica clássica, cresce em mim um sentimento de irritação e agressividade de que não consigo desfazer‑me; essa ideia afigura‑se‑me insuportável, de um momento para o outro enraiveço‑me, apetece‑me gritar, apetece‑me fazer calar o meu interlocutor, abaná‑lo.

— Voltou a dizer‑mo esta manhã. Estávamos na padaria e eu pedi‑lhe que me contasse tudo outra vez.

E, de facto, a caminho da padaria tinha‑lhe dito que quando Reda me apontou o revólver, já que era essa a cena que ela queria que eu contasse outra, e outra e outra vez, quando ele me apontou o revólver, a pergunta que eu fazia a mim mesmo já não era «Ele vai mesmo matar‑me?», pois naquele momento já não tinha dúvi‑das acerca disso, era irreversível, ele ia matar‑me e eu ia morrer nessa noite, no meu quarto, e submetia‑me às circunstâncias com aquela capacidade que uma pessoa tem de se submeter e de se adaptar a todas as situações, basta olhar para a História, mesmo nos contextos mais bizarros e mais atrozes, os homens ajustam‑se, adaptam‑se — e isso, disse eu a Clara, por causa da minha tendência para as declarações grandiloquentes, era simultaneamente a melhor e a pior mensagem para a humani‑dade, porque significava que basta mudar o mundo para mudar os homens, ou, pelo menos, a maioria, e Clara não me escutava, não era preciso mudar um de cada vez, demoraria demasiado, os homens adaptam‑se, não aguentam, adaptam‑se. A pergunta não era, portanto, Ele vai mesmo matar-me?, mas antes Como é que me vai matar?, ou seja, Vai pôr-me outra vez a echarpe à volta do pescoço para me estrangular? ou Vai buscar facas sujas à banca da cozinha? ou Vai puxar o gatilho? ou Vai descobrir outra coisa que nem consigo imaginar?; já não esperava escapar, já não esperava sobreviver, apenas morrer da maneira menos dolorosa possível. Mais tarde, a polícia ou Clara deram‑me os parabéns pela minha

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coragem e nada me parecia mais contrário e estranho a essa noite do que um conceito como «coragem». Ele dá alguns passos atrás, segurando firmemente na coronha do revólver. Estende o outro braço, o que não está a segurar a arma, sem deixar de me fitar, e tateia o monte de roupas empilhadas na cadeira da minha secretária. Volta a pegar na echarpe. Penso: Vai estrangular --me outra vez. Contudo, ao voltar para junto de mim, não tentou estrangular‑me como fizera minutos mais cedo, antes de pegar na pistola. Não dirigiu as mãos ao meu pescoço. Desta vez tenta amarrar‑me os pulsos, pega no meu braço direito, tenta chegar ao outro para me prender com a echarpe, e eu recordo‑me do cheiro a transpiração que vinha dele, e também do cheiro a sexo. Eu debatia‑me, impedia‑o, e tinha muito medo, pensava: Não quero morrer, uma frase tão tristemente, tão tragicamente banal. Gritava baixinho, claro que não gritava muito alto. Não queria correr esse risco. Afastava‑o, devagar, o mais devagar possível, pedia‑lhe que não o fizesse. Eu resistia, ele não conseguia atingir os seus fins, estava sempre a repetir, e cada vez mais alto, Vou rebentar contigo, vou tratar-te da saúde («tratar da saúde» não no sentido mais literal, claro, mas, naquele contexto, no sentido de «destruir»). Gritava‑o. Eu tinha esperança de que um vizinho ouvisse e chamasse a polícia. Mas se a polícia vier, é possível que o medo de ser apanhado o faça perder a cabeça e que ele, num acesso de pânico, me mate imediatamente ao ouvir a voz dos polícias através da porta a articular qualquer coisa como: Polícia, abram imediatamente. Como não conseguia prender‑me, pegou novamente na pistola, que tinha guardado no bolso de dentro do casaco de couro artificial, atirou a echarpe ao chão ou voltou a pô‑la ao pescoço, já não sei, e empurrou‑me de encontro ao colchão.

Na manhã do dia 25, poucas horas depois desta cena, pedalei até casa de Henri, e pelo caminho ainda pensava: Daqui a uma

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semana vais dizer: Já passou uma semana desde que aconteceu, e daqui a um ano vais dizer: Já faz um ano que aconteceu. Tinha acabado de che‑gar ao patamar de sua casa quando Henri me abriu a porta. Deve ter ouvido o ruído dos meus passos. Tive vontade de refugiar‑me nos seus braços, mas contive‑me num primeiro momento, não sei dizer por que razão.

Tinha dito a Clara: — No entanto, não pensei que ele pudesse ser perigoso.Imediatamente depois daquela noite com Reda, ainda não acre‑

ditava naquilo em que vim a acreditar depois, durante meses, que todas as pessoas podiam potencialmente ser perigosas, incluindo aquelas de quem era mais próximo, pensando que qualquer uma delas podia ser tomada por uma loucura assassina, subitamente dominada por vontade de destruição e sangue, e atacar‑me sem avisar, mesmo Didier e Geoffroy, os meus dois melhores amigos; porém, diante de Henri, alguma coisa me retraía. Ficámos imó‑veis e, nesses instantes em que o tempo parou, eu senti que ele me perscrutava e analisava discretamente, em busca de todos os sinais que pudessem justificar a minha presença ali, tão cedo, num dia tão inesperado como aquele. Os seus olhos varriam‑me, percorriam o meu cabelo sujo, oleoso, os meus olhos cheios de olheiras, carregados, extenuados, o meu pescoço salpicado de marcas roxas, os meus lábios purpúreos, inchados. A cada marca que descobria, o seu rosto ficava mais abatido; lembro‑me dos duches tomados repetidamente antes de ir para casa de Henri e, contudo, lembro‑me perfeitamente de ter o cabelo muito sujo quando lá cheguei. Mandou‑me entrar. Caminhava atrás de mim e, ao andar, eu sentia o seu olhar pousado na minha nuca. Eu não estava a chorar. Entrei no apartamento. Havia molduras com fotografias em cima dos móveis e, atrás do sofá, um grande retrato seu encaixilhado. Sentei‑me e Henri fez café. Voltou da cozinha com duas chávenas nas mãos, a tremerem em cima

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dos pires; perguntou‑me se queria falar daquilo e eu disse que sim. Descrevi Reda, primeiro os olhos castanhos e as sobrance‑lhas pretas, comecei pelos olhos. Tinha o rosto liso, com traços simultaneamente doces e marcados, masculinos. Quando sorria, apareciam‑lhe covinhas na cara, e ele sorria muito. A cópia da queixa que guardo em casa, redigida numa linguagem policial, menciona: «Tipo magrebino». Sempre que os meus olhos pousam ali, aquela palavra exaspera‑me, porque ainda ouço o racismo dos polícias durante o interrogatório que se seguiu, no dia 25 de dezembro, um racismo compulsivo que, no fim de contas, tendo tudo em consideração, me parecia ser o único elemento que os ligava entre si, o único elemento, juntamente com o uniforme bem apertado, no qual residia a sua unidade nessa noite, visto que, para eles, «tipo magrebino» não se referia a uma origem geográfica, mas queria dizer «ralé», «vadio», «delinquente». Eu tinha feito uma descrição rápida de Reda à polícia, quando eles mo pediram, e, de súbito, o agente interrompeu‑me:

— Ah, tipo magrebino, quer o senhor dizer. Estava triunfante, não diria muito feliz, porque seria um exa‑

gero, mas sorria, jubilante como se eu tivesse admitido qualquer coisa que ele queria fazer‑me confessar desde o início, como se eu lhe tivesse finalmente fornecido a prova de que ele estava desde sempre do lado da verdade, e repetia: «tipo magrebino, tipo magrebino», entre duas frases voltava a dizer: «tipo magrebino, tipo magrebino». Contei essa noite a Henri, antes de me ir deitar na cama dele. Ele apontou para o quarto na mezzanine e eu subi para ir dormir. Há muito tempo que não dormia, exceto durante algumas sestas com Reda.

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A minha irmã continua o monólogo, estou a ouvi‑la, bebe água aos golinhos, engole, pousa o copo na mesa e eu ouço o copo a bater no tampo de contraplacado:

— E isso era o que lhe parecia mais espantoso, disse‑me assim: Acordei naquele dia e foi então que começou tudo. Assim (eu disse-lhe que estava deitado na cama, de barriga para cima, tinha aberto os olhos e sentia dores a atravessarem-me o corpo, como lâminas, a cortarem-me o corpo por todo o lado, entre as costelas, sentia as costas tão duras como se tivesse uma carapaça), e então o que ele pensou nesse momento e que voltou a pensar depois, nos dias a seguir, foi que a partir dali nunca mais iria suportar ver pessoas felizes. É uma estupidez. Uma frase tão parva. Que é que querias que eu respondesse? Não disse nada, fiz de conta que estava a olhar para os sapatos. Fiquei com cara de parva (tentava voltar a adormecer, queria dormir mais, mas o meu corpo estava demasiado dorido). E então diz ele: Eu detestava os outros, sei perfeitamente que isto não faz sentido, Clara, mas acordei nessa manhã a pensar que detestava as outras pessoas (e pensava: Como é que podes fazê-lo?).

» Parecia‑me um bocado esquisito. Não se pode acreditar, não achava aquilo normal. Bom. Dizia a mim mesma: mais vale ouvir isto que ser surda. Mas evitava pensar sobre aquilo, senão ainda me caía tudo em cima. Ele disse‑me: Detestava os outros (e eu pensava: Como é que podes fazê-lo?, tinha acordado naquela manhã, depois de Reda se ter ido embora, com um sabor desconhecido na boca

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e com a ideia de que nunca mais conseguiria suportar o menor vestí-gio, o menor sinal ou a menor aparência daquilo que se apresentasse como felicidade, era capaz de esbofetear a primeira pessoa a sorrir com quem me cruzasse, agarrá-la pelos colarinhos do casaco, sacudi-la com toda a força, e gritar, berrar, mesmo às crianças, mesmo às crianças, aos mais débeis, aos doentes, queria sacudi-los e cuspir-lhes na cara, esbofeteá-los até fazer sangue, até já não terem cara, para que todas as caras à minha volta desaparecessem. Queria enfiar-lhes os dedos pelos olhos dentro, arrancá-los, esmagá-los nas minhas mãos, e pensava: Como é que vocês conseguem, e não era culpa minha, estava capaz de pegar nos doentes, levantá-los e atirá-los para fora das cadeiras de rodas, meu Deus, não suportava ver mais nenhum sorriso nem ouvir um riso lá fora, nas ruas, no parque, no café, em todo o lado, os risos trespassavam-me os tímpanos e ficavam bloqueados nos meus ouvidos, ressoavam-me no crânio, nos meus olhos, nos meus lábios — como se os risos existissem contra mim).

» Então, o quê? Suponho que passou as mãos pela pele e pelos braços, e pelas pernas e pelo sexo, apalpando‑se para ter a certeza de que não era um sonho. Nem sequer podia sair para apanhar ar e refrescar as ideias. Não era possível, estava um tempo horrível lá fora (eu ouvia o bater da água nos vidros, estava a chover, tinha cho-vido durante todo o mês de janeiro). Tentava voltar a adormecer, mas tinha o corpo todo dorido e, de qualquer modo, estava sempre a pensar naquilo. Já não reconhecia nada. Era um pouco como quando adormecemos com a esperança de no dia seguinte sermos outra pessoa ao acordar, como numa metamorfose, só que não fora ele que o quisera, não assim.

E mesmo quando não era real (mesmo quando não era real). Mesmo quando ele via cartazes de publicidade nos autocarros ou nas paredes dos prédios, quero eu dizer, só fotografias de famílias felizes a tomarem o pequeno‑almoço ou à beira de uma piscina, enfim aquilo que a publicidade quer fazer crer que é a felicidade,

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apetecia‑lhe pegar numa faca ou noutra coisa qualquer, numa chave que tivesse no bolso, e rasgar aquelas caras (apetecia-me deitar-lhes fogo). Queria arrastar com ele para o fundo o maior número possível de pessoas, disse‑me ele (tinha-lhe dito: espalhar a dor). E disse‑me: Sei perfeitamente que isto não faz sentido (eu pensava: Como é que vocês conseguem, mas não era só quando as via a sorrir, tinha-lhe dito que também não suportava ver a infelicidade na cara dos outros, porque me parecia menos autêntica, menos verdadeira, menos profunda, menos real do que a minha).

» Também é verdade que a mãe nos contava muitas histórias assim. Talvez tenha sido por ela estar sempre a repeti‑las quando ele ainda vivia connosco que ele teve esta reação. Quem sabe. Há dias, num programa do canal 2 estava um tipo a explicar que se nunca tivermos ouvido falar de amor talvez não sejamos capazes de nos apaixonarmos. Bem. Quando ele diz isso, eu digo a mim mesma: Desliga a televisão, minha querida, que ainda ficas com os neurónios assados. Mas mesmo assim penso nisso.

» Foi quando ela começou a trabalhar em casa de idosos, antes de eu te conhecer. Oh, não se pode dizer que não seja uma profis‑são com futuro, há de haver sempre jovens a ficarem velhos. Ela lavava‑os e depois dava‑lhes a medicação, e quando voltava para casa queixava‑se. Santo Deus, o que ela lutou como uma louca para conseguir ter aquele trabalho. Uma mulher aqui não arranja muito que fazer, sobretudo quando a fábrica já não dá emprego a mais ninguém e até se ouve dizer que vai fechar de vez.

E mais ainda, tinha sido mais complicado para a nossa mãe do que ela dizia, que não tinha carta de condução e que tinha de aguentar a concorrência das outras mulheres, muitas, que que‑riam fazer o mesmo trabalho, em parte para trazerem dinheiro para a família, em parte para se libertarem do peso dos maridos. Tinha lutado para conseguir aquele lugar, que ficara vago por

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milagre, pegando na bicicleta, que mandou arranjar de propósito para aquela ocasião, e pedalando de um organismo social para o outro, muito bem arranjada e com o cabelo preso atrás, um pouco mais maquilhada e um pouco melhor do que nos dias anteriores, embora o nosso pai não gostasse, censurando‑a ou proibindo‑a, «És muito mais bonita sem isso», «Isso é bom é para as vadias», voltando a bater à porta dos organismos em questão, e voltando outra vez, e outra, quando lhe davam uma resposta negativa ou quando ela sentia que a situação lhe estava a escapar por entre os dedos, para provar a sua determinação, deslocando‑se quer chovesse quer nevasse sempre de bicicleta, escrevendo cartas umas atrás das outras, telefonando para exprimir a sua preo‑cupação quando não obtinha resposta. E tinha conseguido, e foi esse o seu trabalho durante vários anos. Voltava para casa e descrevia‑nos como as pessoas de idade com quem trabalhava, certamente por causa de uma espécie de instinto animal, res‑valavam para estados indefiníveis, como se quisessem que os outros pagassem pela sua morte já próxima, como se deixarem uma memória infeta da sua vida pudesse tornar a ideia da morte mais aceitável; partiam tudo o que tinham em casa, arrancavam as toalhas, despedaçavam as recordações atirando‑as ao chão, arremessavam a loiça de encontro às paredes.

— E todos os dias voltavam ao mesmo. Todos os dias atira‑vam os bibelôs pelo ar, em todas as direções, as molduras, as bolas de neve de Lourdes, os conjuntos de mesa que tinham trazido de férias. Partiam tudo, davam cabo de tudo. Soltavam gritos enlouquecidos como nunca ouviste e como nunca hás de ouvir, gritos que depois ficam connosco e que não conseguimos esquecer, oh, até aquelas mulheres que tinham vivido sempre como se fossem muito finas, todas cheias de cerimónias. Até elas, que não são nada melhores do que as outras. Até são mais

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obscenas, porque finalmente podem libertar‑se e fazer tudo o que lhes foi proibido durante toda a vida. Gritavam canções depravadas, cheias de obscenidades e de palavrões, e noutros dias, nos piores dias, faziam as necessidades em qualquer canto da casa, contava a minha mãe, na mesa da cozinha, no chão, em todo o lado. Espalhavam as necessidades quando a minha mãe, de joelhos, tentava o melhor que podia limpar‑lhes a pele flácida e enrugada pousada numa cadeira da sala, apenas com uma luva de limpeza muito áspera e uma bacia de plástico estragada, os corpos eram tão flácidos que pareciam transbordar e até escorrerem pela cadeira abaixo. E a mãe, ao chegar a casa, depois do dia de trabalho, chorava. Já não aguentava mais. Chorava: Acreditas que a velha da Milard cagou por toda a parte? Limpou‑se com as cortinas da sala de jantar, já não aguento mais, não vou durar muito assim, não duro muito. Contava‑nos: Havia merda por todo o lado, tive de limpar tudo e não consigo suportar o cheiro da merda, bem sabes que é uma coisa que sempre me deixou maldisposta, é a pior coisa para mim, nunca me habituei e amanhã não vai ser a véspera desse dia. Só me apetecia vomitar, tentava controlar‑me, mas era difícil não vomitar por todo o lado, não vomitar por cima daquela porcaria e sempre assim, e nunca me livrar daquilo — então nós dizíamos‑lhe: Há de vir aí uma onda de calor e tu ficas livre delas. Isso fazia‑lhe bem. E por isso, Édouard — não ao mesmo ponto, apesar de tudo, não vale a pena ir tão longe, não exageremos —, depois desse Natal teve umas crises de nervos assim, uma vontade de arrastar os outros para o fundo com ele, como as velhas que a nossa mãe tratava. Ele disse‑me: cada dia era mais difícil. Tinha acabado por decidir ficar em casa, sozi‑nho, sem sair. Fechava as persianas. Ficava lá encerrado. Punha as mãos sobre as orelhas e fazia força, para não ouvir as vozes dos vizinhos através das paredes, nem as conversas da porteira no pátio do prédio.

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Nos dias em que me sentia mais calmo, imaginava‑me a apro‑ximar‑me de um desconhecido num lugar público, num passeio ou num supermercado, para lhe revelar a minha história, para lhe contar tudo. Nas minhas visões, aproximava‑me, o desconhecido sobressaltava‑se, e eu começava a falar com toda a familiaridade e à‑vontade, como se o tivesse conhecido desde sempre, nunca dizendo o meu nome, e o que lhe contava era tão feio que ele não podia senão ficar parado e ouvir‑me até ao fim; ele ouvia‑me e eu observava‑lhe a cara. Passava o tempo a criar cenas em que tudo isto acontecia. Não o disse a Clara, mas este fantasma do impudor total e do espetáculo alimentou‑me durante semanas.

É que já não conseguia deixar de falar do assunto. Tinha con‑tado a história à maioria dos meus amigos na semana a seguir ao Natal, mas não só: também a repetira a pessoas de quem não era tão próximo, conhecidos ou gente com quem só falara meia dúzia de vezes, algumas apenas pelo Facebook. Irritava‑me quando os outros tentavam responder‑me ou mostravam demasiada empatia, ou se me davam a sua opinião sobre o que acontecera, como Didier e Geoffroy a apostarem que Reda não era o nome verdadeiro. Desejava que toda a gente soubesse, mas queria ser o único no meio de todos que sabia a verdade e, quanto mais eu contava, quanto mais falava disso, mais fortificava essa sensação de ser o único a saber realmente, o único de todos, em contraste com aquilo que, para mim, era apenas ingenuidade risível dos outros. Fosse qual fosse a conversa, arranjava sempre maneira de voltar a Reda, de ir até ele, de levar tudo para ele, como se todos os temas de conversa tivessem logicamente de conduzir à sua recordação.

Na primeira semana de fevereiro — pouco mais de um mês depois do Natal —, estive com um escritor que me contactara

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pouco antes a convidar‑me para um almoço. Não o conhecia, mas aceitei e sabia por que o tinha feito. Ele queria que eu escrevesse um texto para um número especial de uma revista literária que ele coordenava (entreguei‑lhe um texto péssimo uns dias mais tarde, por razões evidentes), e com ele tive o mesmo comporta‑mento. Durante esses dias, as palavras que eu dizia não eram exatamente as minhas. O escritor entrou no restaurante onde eu o esperava, a estremecer na cadeira e a carregar freneticamente na borracha da lapiseira que trazia por acaso no bolso; sentou‑se, tirou o casaco de flanela, estendeu‑me a mão e, mal se tinha acomodado na cadeira, já os lábios me ardiam com a vontade de falar do Natal. Pensei: Não, apesar de tudo não podes falar disso agora. Espera um pouco. Agora não. Nem que seja por uma questão de delicadeza. Espera um pouco. Faz ao menos de conta que estás a falar de outra coisa. Lá fora, o cinzento‑azulado do céu refletia‑se nas paredes dos prédios, lembro‑me disso não porque o céu me inte‑ressasse, mas porque não estava a ouvi‑lo e porque me punha a olhar pela janela, distraído e desinteressado, quando não era eu a falar.

Trocámos algumas frases e, durante uns dez minutos, con‑segui suster a respiração, entupido, sentindo o nome de Reda a chegar‑me aos lábios. Continha‑me, tentava fazer a conversa típica deste género de encontros, fazia de conta, levava‑o a falar do seu trabalho, dos seus livros, dos seus projetos, mas não o ouvia. Não ouvia nada. Respondia às perguntas dele sobre os mesmos assuntos e ouvia tanto as minhas respostas como as dele; era extremamente difícil acalmar‑me, porque todas as frases que ele dizia ou que me levava a dizer com as suas perguntas, todas as suas reflexões me pareciam convites indiretos para falar do Natal. Quero dizer que estava a criar ligações por todo o lado, que toda a minha perceção, logo, a minha construção da realidade, estava condicionada por Reda. E exprimia‑me com o receio de

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que as palavras «Reda» ou «Natal» se escapassem demasiado cedo, contra a minha vontade.

Depois falei. Achei que o momento tinha chegado, pensei: Já te controlaste demasiado tempo, conquistaste o direito de falar e fiz aquilo de que estava à espera desde que ele entrara no res‑taurante: monopolizei a conversa, falei sozinho durante todo o almoço e ele não disse mais nada além de breves comentários entre duas garfadas de comida, que aumentavam o meu júbilo: «É terrível, Que horror, Meu Deus, etc.» No fim do almoço, pedi‑lhe que não contasse a ninguém; não percebia porquê e também por isso pedi desculpa, porque é que lhe tinha contado tudo aquilo, a ele, que não conhecia, como é que tinha sido capaz, eu sei, de ser tão inconveniente e tão grosseiro. Foi segundo este modelo que eu vivi, falei, agi durante as semanas que se seguiram à agressão.

A loucura de falar começou no hospital. Mais ou menos uma hora ou duas depois de Reda ir embora, fui às urgências perto de minha casa pedir medicamentos antirretrovirais. O hospi‑tal estava quase deserto, nessa manhã de 25 de dezembro; um sem‑abrigo andava para trás e para diante na sala de espera das urgências. Não estava à espera de ser atendido, servia‑se daquele sítio para não ficar lá fora ao frio. Desejou‑me um feliz Natal quando me sentei a alguns metros dele. Esse «Feliz Natal», deslocado, improvável naquele contexto, e depois do que acabara de acontecer, fez‑me rir. Fui acometido de um riso louco e incon‑trolável, um riso barulhento e brutal que ressoava pela sala de espera vazia, ainda me lembro, um riso terrível que batia contra as paredes, e eu dobrava‑me, segurava a barriga com as mãos, mal conseguia respirar, e respondi‑lhe entre duas gargalhadas, sem fôlego:

— Muito obrigado e feliz Natal também para o senhor.

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Eu estava à espera. Mas não vinha ninguém. Fiquei sentado. Tinha a impressão de ser um figurante numa história que não era a minha. Teimei em recordar‑me de afastar a ideia, não de que nada me acontecera — como poderia eu pensar tal coisa —, mas de que tinha acontecido a outra pessoa e de que eu tinha assistido a tudo de fora; pensei: É daí que vem esta obsessão. É por isso que tu perguntas obsessivamente o que é que a criança que foste pensaria do adulto em que te tornaste. Pensava: Porque tiveste sem-pre a impressão de que a tua vida decorreu fora de ti e apesar de ti, e porque sempre a viste a construir-se em separado e ela não se parece contigo. Não foi só hoje. Quando eras pequeno e ias com os teus pais ao supermercado, punhas-te a olhar para as pessoas com os carrinhos de compras. Observava-las fixamente, ganharas essa mania já não sabes onde. Observavas as roupas delas, a maneira de andarem, e pensavas: Espero ser assim, espero não ser assado. E nunca pensarias vir a ser o que és hoje. Nunca. Nem sequer pensarias em não o querer ser.

Esticava o pescoço a tentar ver para lá das janelinhas a toda a volta da sala de espera, a passar o tempo. O tempo enredava‑se. Eu esperava que uma das portas se abrisse, esperava que apare‑cesse um médico, tossia, fungava, carregava no botão vermelho de uma campainha na secretária da receção e passados vinte ou trinta minutos de espera chegou um enfermeiro. Foi aí que come‑çou esta loucura de falar. A sua primeira manifestação, portanto. Já tinha sido preciso impedir‑me de falar daquilo ao sem‑abrigo, que estava visivelmente bêbado, depois do seu «Feliz Natal», e para não lhe responder que o que ele me dizia era irónico, visto que eu estava no hospital num 25 de dezembro, isto é, numa altura em que deveria estar noutro sítio qualquer, tal como ele, para não começar a contar‑lhe tudo o que me tinha levado ali, às urgências. Desta vez não me controlei e contei tudo àquele enfermeiro que queria saber para que serviço deveria mandar‑me — pensando melhor, creio que não era enfermeiro, mas talvez guarda, ou

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rececionista, ou telefonista. Eu já não continha o choro. Não tentava contê‑lo, convencido de que ele não ia acreditar em mim, caso eu não chorasse. As minhas lágrimas não eram falsas, a dor era real. Mas sabia que tinha de me entregar à personagem se quisesse ter hipótese de acreditarem em mim.

Evidentemente, foi uma angústia que não parou de crescer nos dias seguintes. Mais tarde, noutro hospital, apesar da minha determinação em comover o médico para ele me compreender e para acreditar em mim, a minha voz tinha‑se mantido monocór‑dica e metálica, eu falava com frieza e distância, os meus olhos mantinham‑se secos. Tinha chorado demasiado, já não tinha mais nada para dar. Tens de chorar, para acreditarem em ti, pensava eu, tens de chorar. Os meus olhos tinham‑se transformado nos olhos de um estranho. Eu forçava‑me. Obrigava‑me a provocar lágri‑mas, concentrava‑me na imagem de Reda, da sua cara, da pistola, para as lágrimas correrem, mas não conseguia, as lágrimas não corriam, os meus esforços não resultavam, as lágrimas não se formavam, não cresciam nas extremidades do meu olhar, o meu olhar ficava desesperadamente seco, eu continuava tão sereno como à chegada e o médico acenava com a cabeça por trás dos óculos, os óculos escorregavam‑lhe pelo nariz.

Chamei em meu auxílio outras cenas da minha vida. Trouxe à memória recordações difíceis, as mais tristes e mais dolorosas que possuía para fazer vir as lágrimas. Lembrei‑me de quando soube a notícia da morte de Dimitri.

Didier tinha‑me telefonado a meio da noite para me dar a notícia da morte dele, eu estava a passear, era de noite, estava sozinho e o telefone primeiro tinha tocado e vibrado no meu bolso. Era uma mensagem de Didier a perguntar: «Posso ligar?»; e eu pensei logo no pior, ele não costumava perguntar se podia ligar antes de o fazer, fiquei com medo que tivesse aconte‑cido alguma coisa grave a Geoffroy, um acidente, imaginei eu.

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