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PARA CÁ DE BAGDÁ: BREVE PANORAMA DA INFLUÊNCIA ÁRABE- ISLÂMICA NO PENSAMENTO OCIDENTAL DURANTE A IDADE MÉDIA José Caetano Dable Correa Mestrando HCTE – UFRJ [email protected] RESUMO xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx Palavras-chave: xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx “Eu ia muito a ópera no São Carlos, no teatro de ópera de Lisboa. E eu ia sempre para o galinheiro, para a parte de cima, de onde via uma coroa. O camarote real começava lá embaixo, ia até em cima e fechava com uma coroa dourada enorme. Coroa essa que vista do lado da plateia, dos camarotes era magnífica. Mas do lado em que

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PARA CÁ, DE BAGDÁ: BREVE PANORAMA DA INFLUÊNCIA ÁRABE-ISLÂMICA NO PENSAMENTO OCIDENTAL DURANTE A IDADE MÉDIAJosé Caetano Dable CorreaMestrando HCTE – UFRJRESUMOTraça-se um breve panorama histórico da civilização árabe-islâmica para, partindo das observações dos comentadores árabes Avicena e Averróis sobre a filosofia aristotélica, seguirmos o caminho de volta ao oriente. Em meio a confluência de culturas que a expansão do império árabe promoveu, tenta-se desvelar a contribuição técnica e teórica da civilização árabe no surgimento do pensamento científico durante a idade média.Palavras-chave: ciência árabe, transposição cultural, idade média

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PARA CÁ DE BAGDÁ: BREVE PANORAMA DA INFLUÊNCIA ÁRABE-

ISLÂMICA NO PENSAMENTO OCIDENTAL DURANTE A IDADE MÉDIA

José Caetano Dable Correa

Mestrando HCTE – UFRJ

[email protected]

RESUMO

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Palavras-chave: xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

“Eu ia muito a ópera no São Carlos, no teatro de ópera de Lisboa.

E eu ia sempre para o galinheiro, para a parte de cima, de onde

via uma coroa. O camarote real começava lá embaixo, ia até em

cima e fechava com uma coroa dourada enorme. Coroa essa que

vista do lado da plateia, dos camarotes era magnífica. Mas do

lado em que nós estávamos não era, pois a coroa só estava feita

entre as quartas partes e dentro era oca e tinha teias de aranha e

pó. Isso foi uma lição que eu nunca esqueci: para conhecer as

coisas há que dar-lhes a volta, dar-lhes a volta toda.”

José Saramago (trecho do documentário “Janela da Alma”)

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Síntese da ascensão da Civilização Árabe-Islâmica durante a Idade Média

Dois grandes períodos históricos podem ser bem delimitados para o mundo

árabe-islâmico: o pré-islâmico (até o início do século VII) e o islâmico, iniciado

com a Hégira (ano 622 da cronologia ocidental) e que perdura até hoje, apesar

de que, para a Ciência no mundo árabe, o período significativo correspondeu

do século IX ao XII, tendo Bagdá, Cairo e Córdoba como centros principais.

No decorrer do período islâmico, menos de um século passado sobre o retorno

de Maomé a Meca em 629, uma nova civilização tinha nascido. As forças

islâmicas tinham conquistado um território imenso que se entendia pela Síria,

pelo Egito e Pérsia. Ameaçavam a Índia e partes da Ásia Central, dominavam o

norte de África e entendiam-se até à Península Ibérica. Governar tal império

não era fácil. O primeiro califado, originalmente estabelecido em Damasco,

desmembrou-se. Na parte oriental, um outro califado (abássida) conseguiu uma

paz prolongada e um crescimento econômico propício ao desenvolvimento das

ciências e das artes. Foram os abássidas que transferiram a capital da

civilização islâmica para Bagdá e estimularam seu crescimento econômico e

cultural ao ponto de se tornar o epicentro do mundo árabe da época.

No século IX, o califa Harun-al-Rashid, referido no romance Mil e Uma Noites

como patrono das artes, criou em Bagdá uma biblioteca onde reuniu diversos

tradutores que compilavam manuscritos de diversas áreas do saber para a

língua árabe. Alguns anos depois, o califa al-Mamun fundou o Bait al-Hikma

(Casa da Sabedoria), um centro de investigação intelectual e tecnológica que

esteve ativo durante dois séculos. Destacou-se como produção da Casa da

Sabedoria o grande esforço de tradução, interpretação e desenvolvimento dos

manuscritos científicos por parte da civilização árabe. A civilização árabe se

encontrava então na época dos califados (que sucedeu o controle político-

religioso árabe após a morte do profeta Maomé).

Com a morte de Maomé em 632, houve a unificação dos povos da península

arábica e a expansão desta civilização em direção ao Egito, Palestina, Síria,

Pérsia e Armênia. Em apenas 15 anos, a expansão árabe fez império Bizantino

recuar e no início do século VII já haviam agregado também ao seu império o

norte da África e da Península Ibérica. Em seu auge, o domínio do império

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árabe se estendia oceano Atlântico até a Índia. Dominando politicamente esse

território, a civilização árabe formada até então por povos nômades, tem

acesso ao conhecimento das áreas conquistadas. De maneira distinta do

padrão de conquista dos povos europeus, ao invés de empenhar esforços em

destruir as culturas dos povos conquistados, os árabes não só mantiveram os

centros de conhecimento da época, como criaram novos.

Durante a dinastia dos Abássidas em 750 d.C. o califa Al Mansur inicia um

projeto de transformar Bagdá, a capital do império Árabe, em um epicentro

cultural. É criada a Casa da Sabedoria em Bagdá onde reuniram-se filósofos,

astrônomos, matemáticos, médicos e tradutores de várias partes do império em

um esforço monumental de compilação, tradução e nova síntese do

conhecimento humano produzido até então. Rivalidades políticas entre a

dinastia dos Abássidas e a dos Omíada fizeram estes últimos incentivassem

outros centros de investigação paralelos a Casa da Sabedoria em Bagdá. Um

destes “centros periféricos” foi criado em Córdoba, na Península Ibérica. Nesta

época, Córdoba recebeu o fluxo de conhecimento trazido através das rotas

comerciais do norte da África. Foi em Córdoba que viveu entre 1126 a 1198 um

dos pensadores árabes mais polêmicos e um dos principais comentadores da

filosofia grega de Aristóteles: Ibn Rushd, ou Averróis, como é conhecido no

ocidente. A filosofia de Averróis não se desenvolvia tendo como premissa ser

consoante com a fé islâmica, o que levou a grupos fundamentalistas

perseguirem sua obra na tentativa de eliminá-la do pensamento que estava

sendo erigido. Como em outros episódios históricos de censura intelectual, o

efeito foi oposto: diversas cópias das obras de Averróis foram distribuídas para

bibliotecas dentro e fora do império árabe.

A chegada ao ocidente cristão desta parcela da produção de conhecimento do

império árabe foi uma das maneiras através das quais a civilização cristã

retomou o acesso á filosofia grega, devidamente revista à luz da cultura árabe,

durante a idade média. Assim como a filosofia de Averróis não foi bem aceita

pela fé islâmica, tampouco foi por parte dos estudiosos da fé cristã. Averróis

defendia uma total separação entre razão e fé, o que obviamente nunca foi

uma linha de pensamento estimulada por instituições religiosas.

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Entra então em ação Tomás de Aquino: teólogo e futuro santo católico. Ao

chegar a Paris em 1269, encontrou os estudiosos aturdidos com uma questão

persistente: o que fazer com as novas traduções dos filósofos gregos que

chegaram por intermédio dos árabes? Antes de entrar para a igreja, Tomás

estudou na Universidade de Nápoles, financiada pelo imperador romano

Frederico II que estimulava o estudo do pensamento árabe. Tomás foi educado

em meio a discussões das obras dos pensadores árabes Avicena e Averróis

além do judeu Maimônides contra os quais já se posicionava criticamente ainda

na universidade.

Combalida pela avalanche intelectual árabe, a igreja incentivou a partir do

século XII o surgimento de novas escolas teológicas (ordens religiosas) que

fossem capazes de se posicionar intelectualmente frente ao novo

conhecimento árabe que se impunha. Neste contexto surge a ordem dos

Dominicanos da qual Tomás fará parte: uma “tropa de elite” formada por

intelectuais devidamente equipados com instrumentos de análise e

argumentação aristotélicos para proteger o ocidente do conhecimento herege

que vinha do oriente.

“A física aristotélica, transmitida para a cultura medieval,

graças aos árabes, foi incorporada e modificada em alguns

aspectos secundários pela filosofia religiosa de Santo Tomás de

Aquino. Esta se tornou a doutrina oficial da Igreja e do poder

temporal. O Motor Imóvel de Aristóteles e o Pai personalizado dos

cristãos haviam se tornado uma só coisa na síntese escolástica

medieval da filosofia grega com a teologia judaico-cristã. No início

da Idade Média esta síntese se dera entre a teologia cristã e a

filosofia platônica ou neoplatônica, passando depois ao

aristotelismo, dominante ao fim da idade média. Era limitante e

autoritária, mas confortante e inteligível para o senso comum a

visão de mundo que aquela filosofia passava.” ¹

¹ ROSA, Luiz Pinguelli – Tecnociências e Humanidades, Vol 1 - Ed. Paz e Terra

, pag. 81

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A ciência antes do método

Inicialmente, ciência, filosofia e religião não podiam ser separadas como

correntes de pensamento independentes; todas compunham juntas explicações

de mundo (causas imediatas e ontológicas) que teciam a noção de cosmos da

antiguidade. Antes do conhecimento cientifico se tornar hegemônico através

da cultura ocidental, outras civilizações já desenvolviam o pensamento

investigativo da natureza. Houve no oriente diversas correntes de pensamento

científico e produção de conhecimento técnico muito anterior a ciência

ocidental como observa-se na historiografia materialista das civilizações

chinesa, hindu e islâmica.

Apesar de uma série infindável de evidências históricas, o senso-comum de

que a ciência é uma produção cultural exclusivamente ocidental se consolida

por alguns motivos: A história ocidental descreve, em geral, a civilização

europeia como autogerada, tomando a cultura grega como predominantemente

europeia e abstraindo suas raízes em outras culturas. Mesmo depois de ter sua

periodicidade histórica apontada como anterior ao conhecimento científico

produzido pelo ocidente, os conhecimentos técnico e empírico desenvolvidos

por culturas não europeias não costumam ser incluídos na história da ciência, o

que delimita a noção de “ciência” quase exclusivamente dentro do campo

europeu ocidental.

Indo em direção oposta a essa etimologia da exclusão, alguns historiadores da

ciência apontam a importância de diversas culturas orientais na formulação do

campo de saber da ciência moderna. Além disto, pesquisadores descobriram

que civilizações indígenas já relacionavam o movimento das marés à variação

do ciclo lunar, períodos de seca e chuva bem como outros conhecimentos

obtidos por um empirismo randômico natural da experiência cotidiana com o

meio. Só muitos anos depois esse mesmo conhecimento foi validado como

científico ao ser (re)descoberto através da análise racional de dados

quantitativos obtidos empiricamente dentro do método clássico da ciência

formal.

Embora tenham sido os gregos os primeiros a submeterem o conhecimento ao

exame racional, para tentar traçar relações causais, o conhecimento empírico

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já havia aparecido no Egito e na Babilônia na forma de unidades e regras de

medidas, aritmética simples, calendário e periodicidade na astronomia. Regras

empíricas egípcias para relacionar distâncias medidas no terreno foram

convertidas em teoria geométrica a partir de Tales de Mileto e de Pitágoras de

Samos. Tales visitou o Egito e usou tabelas da Babilônia para prever um

eclipse; julgava que a Terra era um disco sólido flutuando na água, inspirado

em teorias dos egípcios e babilônios de que o universo era uma caixa fechada,

da qual a Terra era o chão. Os primeiros filósofos gregos tiraram grande parte

de suas constatações sobre a natureza de fontes de informação transmitidas

de culturas mais antigas, como a astronomia da Babilônia e a geometria do

Egito. O mérito dos gregos foi submetê-los a uma análise racional exaustiva

além de adicionar conhecimentos novos.

O sucesso do método científico desenvolvido no ocidente talvez consista

justamente da fusão do pensamento analítico-racional grego com o

pensamento tecno-empirista oriental que o antecederam.

Delineando “ciência árabe” na época da idade média

Nenhum historiador foi tão categórico como Pierre Duhem (1861-1916), que

escreveu: “Não há ciência árabe. Os sábios Maometanos foram sempre

discípulos mais ou menos fiéis dos Gregos, mas foram destituídos de qualquer

originalidade” (Lindberg,1992, p. 175). Embora imperativa, a visão de Duhem

estava amparada pelos dados históricos disponíveis na época – ou melhor

dizendo, pela ausência destes.

Esta tese, a de terem sido os árabes meros guardiões e transmissores da

ciência grega, sem terem acrescentado qualquer pensamento ou conceito

relevante para o desenvolvimento científico, parece, hoje em dia, superada.

A expressiva maioria dos historiadores da ciência atuais defende a noção de

que os árabes teriam estudado, interpretado e comentado o conhecimento que

se apropriaram durante a expansão do seu império. As observações feitas

pelos estudiosos árabes sobre a base de conhecimento grego atestam sua

capacidade especulativa e criativa.

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Baseando-se na historiografia contemporânea, pode-se entender que a

revolução científica europeia dos séculos XVI e XVII foi a continuação natural

de uma produção intelectual e técnica que já vinha se desenvolvendo

anteriormente na civilização árabe, hindu e chinesa e que chegou ao ocidente

com a expansão do império árabe durante a idade média.

O Pensamento tencno-empirista árabe

Os astrônomos árabes interpretavam o conhecimento já produzido por outras

civilizações com grande liberdade e se permitiam alterar elementos que não

condissessem com suas próprias observações. Os dados observacionais

produzidos pela investigação árabe eram obtidos por um empirismo que

dispunha de instrumentos técnicos extremamente apurados para época. No

entanto, o método usado na interpretação e correlação dos dados com a teoria

em construção seguia um raciocínio distinto da lógica analítica do pensamento

grego. A produção cientifica árabe de alguns pensadores como Avicena com

seu cânone de medicina, é continuamente revisitada pela ciência moderna na

busca de encontrar ali deduções empíricas que fogem do campo de

proposições lógicas do método científico utilizado sobre dados pontuais.

A Obra dos Comentadores Árabes lida no Ocidente

Ibn Rushd (1126-1198), ou Averróis como é mais conhecido no ocidente,

dedicou-se ao estudo da “partícula mínima” que pode-se chegar dividindo a

matéria. Para isto, partiu do conceito de substância utilizado por Aristóteles

para propor explicações para as mudanças dos estados físicos da matéria.

Aristóteles assumia uma ideia de “matéria prima” material: o que liga o estado

inicial ao final de uma transformação física da matéria é a substância desta

matéria, substância esta que não se circunscreve ao limite físico da matéria,

mas sim à sua potencialidade material. Para Aristóteles a matéria prima e a

forma substancial não existiriam através da matéria, tampouco independentes

desta, seriam então princípios determinantes. Averróis traz a discussão do

limite da possibilidade de divisão da matéria para uma lógica mais materialista

do que a empregada no pensamento aristotélico. Usa como exemplos

empíricos o fogo e o limite físico da divisão: ao removermos gradualmente

partes do fogo, este chegara a um mínimo e então se extinguirá; ao tentarmos

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dividir sucessivamente em intervalos menores uma linha traçada na terra, nos

depararemos com o limite físico de operar uma nova divisão (embora seja

possível efetuá-la mentalmente). Averróis circunscreve o limite da divisibilidade

da matéria na sua própria dimensão física. Nota-se aqui um pensamento que

hoje seria classificado como tecnicista por operar nos limites da realidade

perceptível (e operacional) desprezando abstrações puramente mentais que

pudessem serem derivadas. O método científico atual deve muito do seu

pensamento técnico aos pensadores orientais. Embora desmerecidos no

ocidente pela sua devoção à fé como sistema de organização político-cultural,

talvez tivessem maior liberdade intelectual para desenvolver um pensamento

técnico emancipado das explicações místicas justamente por dedicarem à

religião a responsabilidade de lidar com a necessidade humana de explicações

primordiais, ontológicas e místicas.

Ibn Sina (980-1037), com nome latinizado para “Avicena” foi um pensador

árabe que continuou as investigações propostas pelo cristão neoplatônico João

Philoponus de Alexandria. Philoponus foi o primeiro a sintetizar uma crítica

sistemática a explicação aristotélica para o movimento e propor a esta uma

explicação alternativa tirando do ar o duplo papel de impulso e resistência ao

lançamento de projéteis. Avicena partiu da tese de força impressão do lançador

ao projetil proposta por Philoponus e concluiu que esta força tinha seu valor

alterado de acordo com a resistência do meio, deduzindo daí a impossibilidade

de vácuo no campo de ação dos movimentos observáveis. Avicena

desenvolveu um tratamento quantitativo para os movimentos deduzindo que se

imposta a mesma força de lançamento, a velocidade seria inversamente

proporcional ao peso dos projéteis. Outro crítico do estudo aristotélico do

movimento foi Ibn Bãja (Avanpace) que partindo da ideia de éter analisou a

possibilidade do movimento dos corpos celestes através desta tese de “fluido

perfeito”.

Alquimia

Entre os saberes árabes que mais se destacaram no mundo cristão ocidental,

destacam-se a o que se convencionou chamar de “Alquimia”. Na realidade,

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este não era um saber unificado, mas sim um conjunto de técnicas e

conhecimentos desenvolvidos designados pela palavra chemeia. Sua produção

não era apenas árabe, mas se originou da compilação de praticas realizadas

por diversos povos de civilizações como China, India, Pérsia, Mesopotâmia,

Síria e Egito. Ao serem incorporadas e desenvolvidas pela civilização árabe-

islâmica recebe o prefixo al tornando-se Alkymiya.

O nome árabe que figura como alquimista de maior importância foi Jabir Ibn

Hayyân (latinizado para “Geber”). No entanto, pouco se sabe sobre ele; alguns

historiadores apontam a possibilidade de um grupo de alquimistas assinar suas

produções sob este nome, o que era uma prática comum desde a Antiguidade.

Outro nome que se destaca é o de Abu Bakr Muhammad ibn Zakariyya

(conhecido no mundo latino como Al-Razi ou Razes). Sua obra deu grande

impulso no que viria a se tornar a medicina no ocidente. Conhecida como

iatroquímica, Al-Razi desenvolvia uma alquimia voltada para fins medicinais.

Buscando processos de transmutação, desenvolveu uma série de elixires

utilizados em seu hospital em Bagdá.

Conclusão

A criação e o desenvolvimento árabe-islâmico só foi possível pela conjunção de

dois poderosos fatores culturais aglutinadores: língua e religião. As conquistas

territoriais dos árabes, povo de origem semita, além da Península Arábica e da

Síria, em outras áreas (Iraque, Egito, Magreb e parte do Irã) “arabizaram”,

através de uma língua comum, toda esta região do Oriente Médio e Norte da

África. Outras etnias, porém, como os persas, os turcos, os curdos e os

berberes, não se “arabizaram” no sentido de adotar inicialmente uma mesma

língua, mas se “islamizaram”, adotando uma mesma referência mitológico-

religiosa e assim participando de uma confluência político-ideológica comum.

Desta forma, esses dois fatores de unidade cultural devem ser examinados em

conjunto, como expressão da mencionada característica arábico-islâmica, e

não de forma excludente. Pode-se então atribuir o grande desenvolvimento

cultural e científico da civilização árabe-islâmica à esta unidade linguística e

religiosa e graças a isto, uma confluência político-ideológica sobre a

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assimilação de fontes externas de conhecimento, ressignificação e

desenvolvimento de uma leitura própria.

Bibliografia consultada

ATTIE, Miguel - Falsafa – a Filosofia entre os Árabes (PDF disponível no site

pessoal do autor)

CRATO, Nuno - Da tradução à criação da ciência árabe - Revista História n.48,

Set 2002

GUERRA, Andréia - Breve História da Ciência Moderna, vol 1: Convergência

de saberes (Idade Média) - Zahar

HART-DAVIS, Adam - 160 séculos de ciência – vol 1: A Aurora da Ciência -

Duetto

LYONS, Jonathan – A Casa da Sabedoria – Zahar

RASHED, Rachid - Histoire des sciences arabes, Le Seuil, Paris.

ROSA, Carlos Augusto de Proença. - História da Ciência : da antiguidade ao

renascimento científico - FUNAG

ROSA, Luiz Pinguelli – Tecnociências e Humanidades, Vol 1 - Ed. Paz e Terra

RONAN, Colin – História Ilustrada da Ciência - Zahar

SZULC, Tadeus Witold - Abraão – Pai do Cristianismo, Islamismo e Judaísmo -

National Geographic, Dezembro 2001

VICENTINO, Claudio - História Geral

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Anexo

ROSA, Carlos Augusto de Proença. - História da Ciência : da antiguidade ao renascimento

científico ─ vol 1 ─ Brasília : FUNAG, 2012. – pag 270