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Para as minhas Raparigas com Guarda-Chuva,

Stephanie, Bree e Chelsey

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A nossa vida é aquilo que os nossos pensamentos fizerem dela.

— Marco aurélio

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Primeira Parte

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Capítulo 1K e n d r a

Cotswolds, Inglaterra

A casa de campo, rodeada por uma sebe e erigida com pedra dourada,

teria um aspeto ainda mais intemporal, quase tirada de um conto

de fadas, não fosse o agitar dos balões de festa atados ao portão principal.

A hera apropriou‑se das paredes e expande‑se descontroladamente até

ao segundo piso, embora esteja bem aparada em redor das janelas envi‑

draçadas. Sob os peitoris, as malvas ‑rosas arroxeadas erguem ‑se em filas

solenes. Ao percorrer o caminho da entrada, o ruído dos pneus sobre a

gravilha assemelha ‑se a aplausos, o que me parece bastante apropriado,

pois a mulher que vou entrevistar celebra o seu nonagésimo terceiro

aniversário. Paro o carro, desligo o motor e alcanço a mala que coloquei

no assento do passageiro. Saio do veículo para o charme típico de um

bilhete ‑postal que ilustra o encanto do mês de abril nas Cotswolds. Não

estou a contar ser convidada para a festa, mas, ainda assim, espero que

me peçam para ficar. Aprendi a adorar a forma como os britânicos cele‑

bram uma ocasião feliz a meio da tarde.

Não conheço a Sra. Isabel MacFarland, embora me tenham dito que

já devo ter visto as suas aguarelas à venda nas lojas de recordações de

Oxford. Também nunca ouvi a sua voz. A pedido de um professor, ela

aceitou deixar ‑me entrevistá ‑la sobre a sua experiência como sobrevi‑

vente do Blitz, tudo porque a primeira pessoa com quem eu combinara

falar morreu durante o sono no lar onde residia, em Banbury. Hoje era

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o único dia que convinha a ambas e que me permitia cumprir o prazo,

realizar os exames finais e, contra vontade, dizer adeus a Oxford e aos

meus estudos no estrangeiro, para regressar à Califórnia.

Saio do carro, dando vivas por ter chegado sã e salva à aldeia de

Stow‑on‑the ‑Wold — e sem ter arruinado o dia de ninguém. Nos quatro

meses de intercâmbio no Keble College da Universidade de Oxford, pe‑

dira aquele automóvel emprestado em quatro ocasiões: a primeira, para

ver se me atreveria a utilizá ‑lo uma segunda vez; depois, novamente,

para me preparar para a terceira tentativa, em que, mais recentemente,

levei os meus pais e a minha irmã a conhecer o Castelo de Warwick

e Stratford ‑upon ‑Avon quando me vieram visitar, a meio do semestre.

Estatisticamente falando, não deveria receber quaisquer louros por ter

chegado aqui inteira. Ao que tudo indica, as primeiras experiências de

um ianque a conduzir do lado contrário da estrada são, de facto, as mais

seguras. É após uma dúzia de viagens ao volante que o exercício se torna

perigoso. Uma pessoa distrai ‑se. Esquece ‑se de onde está. É nessa altura

que comete um erro fatal, quando os seus sentidos ficam entorpecidos

pela familiaridade.

A viagem deste dia, a quarta vez que guiei um automóvel em

Inglaterra, está bem longe da definição da múltipla experiência do hábi‑

to, e é pouco provável que volte a conduzir antes do final do período. Não

era preciso trazer o carro neste dia, pois há uma estação de comboios na

aldeia vizinha de Moreton‑in‑Marsh, mas teria de enfrentar uma cami‑

nhada de oito quilómetros por estreitas estradas de província, onde pas‑

sa um autocarro de vez em quando. A Penelope, a minha companheira

de dormitório e uma cidadã de Manchester, que tivera a coragem de me

emprestar o seu carro várias vezes, insistira para que eu o trouxesse.

Paro, por instantes, junto à viatura, contemplo o céu azul e aspiro o

aroma da erva molhada — um odor refrescante, após semanas de fumo

de escapes. Rodeiam ‑me campos suaves decorados por pequenos bos‑

ques e habitações dispersas que mais parecem retiradas de um livro de

histórias de encantar. Algumas das casas têm telhados de colmo, outras

não, mas todas exibem a mesma pedra dourada que nos leva a acreditar

que devem saber a caramelo se alguma vez as lambêssemos. Uma figura

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surge à porta — uma mulher —, engrinaldada por roseiras trepadeiras.

Limpa as mãos a um pano e sorri. O seu cabelo grisalho tem um corte

moderno, com um dos lados mais comprido do que o outro. Presumo

que seja a assistente domiciliária e governanta da Sra. MacFarland,

a Beryl Avery, que me deu as indicações para chegar até ali.

— Conseguiu encontrar ‑nos! — grita.

Fecho a porta do Austin Morris da Penelope.

— As suas orientações eram perfeitas. Posso deixar o carro aqui?

— Pode, claro. Entre.

Os balões saltitam para um lado e para o outro assim que abro o por‑

tão. Ao passar, um dos balões tenta colar ‑se à alça da minha mala, e eu

empurro ‑o gentilmente.

A Sra. Avery segura a porta, pintada de vermelho ‑cereja, para que eu

entre.

— Ainda bem que conseguiu chegar sem problemas. Sou a Beryl

Avery, mas, por favor, trate ‑me por Beryl. — Estende a mão livre na mi‑

nha direção assim que passo.

— Kendra Van Zant. Muito obrigada por me receber, principalmente

quando sei que tem tanta coisa para fazer. Nem sabe o quanto lhe estou

grata.

A Beryl fecha a porta. Presumo que tenha 60 e poucos anos. Cheira

a bolo e a natas e a outras coisas doces. Tem um pouco de farinha numa

das maçãs do rosto.

— Não tem o menor problema — responde ela, num tom alegre.

— Fico feliz que aqui esteja. A tia não fala muito sobre a sua experiência

durante a guerra, e todos desejamos que o fizesse. Quando lhe pergun‑

tam algo sobre esse tempo, ela desvaloriza a pergunta como se não fosse

possível alguém estar interessado numa coisa que se passou há tanto

tempo. Mas claro que estamos interessados. E muito, se pensarmos no

que lhe aconteceu. É uma enorme e agradável surpresa ela ter aceitado

conversar consigo.

Não sei o que lhe responder, uma vez que, para mim, também foi uma

surpresa a velha senhora ter assentido. O professor Briswell informara‑

‑me que a Sra. MacFarland, uma conhecida artista local e amiga da sua

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falecida mãe, era famosa por ter sobrevivido aos bombardeamentos du‑

rante o Blitz, mas também por nunca falar desse assunto.

— Eu perguntava ‑lhe o que a levou a aceitar se não temesse que, ao

fazê ‑lo, ela mudasse de ideias — continua a Beryl.

Penso em perguntar ‑lhe por que razão a Sra. MacFarland se mostra

tão relutante em falar da guerra, para, assim, saber que perguntas evitar,

mas a Beryl preenche, antes de mim, o curto silêncio que se instala.

— Devo alertá ‑la para o facto de ela hoje estar ligeiramente abstraí‑

da. Vai ter de lhe dar um pouco mais de tempo para responder às suas

perguntas. Palpita ‑me que tenha que ver com todo o banzé a propósito

da festa.

— Mas ela continua disposta a receber ‑me hoje?

A Beryl inclina a cabeça para o lado.

— Penso que sim. É difícil de dizer, uma vez que a tia não é uma

pessoa muito expansiva. Diria que ela aprecia a sua vinda. Creio que está

mais preocupada com a festa desta tarde. Não queria um grande espa‑

lhafato, mas, infelizmente, é isso mesmo que vai ter. Ninguém me quis

dar ouvidos quando expliquei que ela não desejava uma grande festa.

Avançamos do estreito vestíbulo para uma sala de estar com um

aspeto tão acolhedor e convidativo quanto as habitações dos hobbits de

Tolkien. Um sofá verde e o correspondente cadeirão ocupam o centro

da sala, estando separados por mesas com tampos de vidro sobre as quais

se dispõem livros e junquilhos em vasos. Tapetes persas cobrem o chão

de madeira. Vejo um curioso carrinho de chá a um canto, um aparador

no outro e uma estante em forma de «L» num terceiro. Encantadoras

aguarelas de jovens com guarda ‑chuvas às bolinhas decoram as paredes.

— Os quadros são da Sra. MacFarland? — pergunto.

— São, sim — responde a Beryl. — Estão por toda a casa. Ela é uma

pintora muito talentosa, mas já deve saber disso. As Raparigas com

Guarda ‑Chuva são a sua imagem de marca, mas a artrite já não lhe per‑

mite pintar. Viu ‑se obrigada a parar há algum tempo. — A Beryl suspira.

— Foi uma altura difícil. Ela tem tido muitos dias difíceis. Demasiados.

— A mulher abana a cabeça ligeiramente, como se para afastar o fardo

de toda a angústia que testemunhou. — Sente ‑se. Eu vou chamá ‑la.

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A Beryl ausenta ‑se, e eu acomodo ‑me no cadeirão, afastando algu‑

mas das almofadas que tenho atrás das costas. Ouço vozes, oriundas de

outras zonas da casa, e gargalhadas no jardim das traseiras. Uma crian‑

ça guincha. Outra grita que é a sua vez de jogar. Uma voz mais calma

e adulta, própria de uma avó, alerta alguém chamado Timmy que deve

partilhar o seu brinquedo com outra criança chamada Garth, ou terá de

ir para casa, de castigo.

Retiro o gravador da mala e coloco ‑o sobre a mesa à minha frente.

Faço figas para que a Sra. MacFarland não se importe que eu grave a

nossa conversa. Revejo as perguntas no meu bloco de notas e opto por

deixar que as respostas dela me guiem. Não quero sabotar a entrevista

fazendo demasiadas perguntas demasiado cedo. Ao tirar a lapiseira da

mala, ouço o ruído de pés que se arrastam.

— Estou bem, Beryl — declara uma voz suavizada pela idade.

— O chá está pronto?

— Oh, sim! O tabuleiro já está preparado — responde a Beryl, do

corredor, embora eu não a consiga ver.

— Ótimo. Podes trazê ‑lo.

— E o seu remédio?

— Apenas o chá, obrigada.

— Mas ontem também não o tomou.

— Ora, não te inquietes, Beryl.

A Sra. MacFarland entra na sala. Tem um ar frágil; a sua pele é fina

como um lenço de papel e o cabelo branco assemelha ‑se a uma nuvem.

Está impecavelmente vestida, envergando uma saia cor de alfazema que

se estende até aos joelhos e uma blusa creme com botões forrados a

cetim. Usa um discreto colar de ouro ao pescoço e calça uns sapatos pre‑

tos, baixos e confortáveis. Nas unhas, brilha um verniz rosa ‑pálido. Tem

o cabelo apanhado atrás, com um pente de madrepérola, e transporta

o que parece um livro embrulhado em tecido e atado com uma fita.

Levanto ‑me com a intenção de a ajudar.

— Menina Van Zant. É um prazer conhecê ‑la. — O sotaque não é

como o da Beryl. Há qualquer coisa nele que parece esforçado.

— Posso ajudá ‑la? — Dou uns quantos passos em frente.

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— Não é necessário, mas obrigada. Sente ‑se, por favor.

Regresso ao cadeirão, e ela acomoda ‑se no sofá à minha frente.

— Muito obrigada por ter aceitado receber ‑me — digo. — E ainda

por cima no dia do seu aniversário.

Ela acena com a mão, descartando o meu agradecimento.

— É um dia como todos os outros.

A Beryl surge à porta com o tabuleiro do chá.

— Fazer 93 anos não é um acontecimento banal, tia.

A Sra. MacFarland sorri, como se tivesse acabado de se recordar de

uma piada. A Beryl pousa o tabuleiro e entrega ‑lhe uma chávena

de chá, já açucarado e com a porção de natas desejada. Depois, estende‑

‑me uma chávena, e eu junto ‑lhe uma colher de açúcar. O tilintar da

colher de prata contra a porcelana de uma chávena de chá inglês é

um dos sons de que mais sentirei falta quando regressar aos Estados

Unidos.

— Obrigada, Beryl — diz a Sra. MacFarland. — Podes deixar o tabu‑

leiro. Importavas ‑te de fechar a porta para não incomodarmos ninguém?

A Beryl olha de mim para a Sra. MacFarland com uma óbvia expres‑

são de desapontamento no rosto.

— Claro — responde com fingida vivacidade. Dirige ‑se para a porta e

olha para nós com um sorriso educado, que, obviamente, exigiu grande

esforço. Sai e fecha a porta.

— Creio que ela contava ficar — declaro.

— A Beryl é uma encantadora acompanhante, e eu não poderia viver

aqui sozinha sem ela, mas prefiro ter a liberdade de dizer aquilo que

desejo, se não se importar.

A sua sinceridade apanha ‑me desprevenida.

— Hum… Claro.

— Quando se chega à minha idade, as nossas fragilidades físicas

levam as pessoas a pensar que outras coisas em nós se tornaram igual‑

mente frágeis, incluindo a capacidade de tomarmos as nossas próprias

decisões. Foi decisão minha encontrar ‑me consigo hoje, e é decisão mi‑

nha dizer aquilo que desejar sobre o que aconteceu durante a guerra.

Não preciso, nem quero, ter a Beryl a dar ‑me palmadinhas na mão ou

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a dizer ‑me que não estou a responder às suas perguntas da melhor ma‑

neira. Posso tratá ‑la por Kendra?

— Sim. Claro que sim.

A Sra. MacFarland dá um gole no chá e recosta ‑se nas almofadas do

sofá.

— E pode chamar ‑me Isabel. Está a gostar dos seus estudos em

Oxford, Kendra?

O interesse dela pela minha vida tem um efeito deveras calmante.

— Sairei daqui a chorar no final do próximo mês. Adorei cada minuto da

minha estadia. Há tanta história compactada em cada lugar. É inebriante.

— Sinto que falei como uma verdadeira estudante universitária de História.

— E não há história no local de onde vem?

— Há. É apenas diferente, eu diria. Não é assim tão antiga. Na minha

terra, o edifício mais antigo não chega a ter 200 anos. É apenas uma casa

vulgar.

Ela mostra ‑me um sorriso.

— Eu aprecio bastante as casas vulgares.

Enrubesço um pouco.

— Não quero com isto dizer que a sua casa não seja encantadora,

Sra. MacFarland. É muito bonita. Pertence à sua família há muito tempo?

— Trate ‑me por Isabel, por favor. E, sim, pode dizer ‑se que nos per‑

tence há bastante tempo. Está, então, a fazer a sua especialização em

História, não é?

Assinto com a cabeça, enquanto beberrico um pouco de chá.

— E o que a interessa particularmente na disciplina?

Nunca compreendi o que leva as pessoas a perguntar ‑me porque é

que me interesso por História, como se o tema não tivesse o menor ape‑

lo para quem não estivesse a estudá ‑lo. Durante o último ano do ensino

secundário, quando adultos bem ‑intencionados, e outros estudantes,

me perguntavam que curso planeava tirar e eu lhes respondia, a per‑

gunta seguinte era quase sempre para que explicasse a minha escolha.

Três anos mais tarde, continuo a ouvir a mesma pergunta.

— Como pode uma pessoa não se interessar por História? — Sorrio,

para que a minha interlocutora não se ofenda. Mas, a sério, como pode

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uma pessoa que sobreviveu ao Blitz não compreender a importância de

se gostar de História? O escritor Michael Crichton disse: «Quem não

sabe história, não sabe nada. Não passa de uma folha que não sabe fazer

parte de uma árvore.»

A Isabel acha graça à minha pergunta.

— Ah, mas o que é a História? Um registo do que se passou, ou

a nossa interpretação dos acontecimentos?

— Creio que ambas as coisas — respondo. — Tem de ser as duas.

De que nos serve recordar um acontecimento se não nos lembrarmos

daquilo que esse evento nos fez sentir? De que forma afetou os outros,

o que os fez sentir. Não aprenderíamos nada, e os outros também não.

A boca da Isabel torna ‑se uma linha fina, e eu pergunto ‑me se a terei

ofendido e acabado de arruinar a minha última hipótese de obter uma

entrevista.

Contudo, ela inspira profundamente, e eu percebo que não ficou

aborrecida comigo.

— Tem toda a razão, minha querida. Está absolutamente correta.

— Dá outro gole no chá, e os seus lábios demoram ‑se no rebordo da

chávena. Por momentos, parece evadir ‑se, absorta em pensamentos,

ausentando ‑se para um local antigo e doloroso da memória. Depois, de‑

volve a chávena ao pires, produzindo um delicado arranhar. — E o que

fará quando regressar aos Estados Unidos, Kendra?

— Ainda me falta um ano na Universidade do Sul da Califórnia para

terminar a licenciatura. — Respondo rapidamente, ansiando por despa‑

char as amabilidades e avançar para o que me trouxe ali. — E depois ten‑

ciono fazer o doutoramento em História e lecionar numa universidade.

— Uma jovem com planos. E que idade tem, minha querida?

Não consigo evitar não me indignar. As pessoas só perguntam a mi‑

nha idade quando pensam que a resposta é relevante. Raramente o é.

— Não tem de revelar, claro. É apenas curiosidade — acrescenta.

— Tenho 21 anos.

— Aborreceu ‑a que tivesse perguntado.

— Não. Fico apenas surpreendida quando as pessoas perguntam.

Não entendo por que razão é importante.

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— Mas é precisamente por isso que a incomoda. Em tempos, senti o

mesmo. As pessoas tratam ‑nos de forma diferente quando pensam que

somos demasiado jovens para sabermos o que queremos.

A minha indignação dá, aos poucos, lugar a uma espécie de afinidade.

— Sim, isso é verdade.

— Compreendo perfeitamente. É a mais velha?

— Tenho uma irmã quatro anos mais nova.

— Só uma irmã?

Assinto com a cabeça.

Ela parece necessitar de uns instantes para processar essa informação.

— Presumi que fosse a mais velha. Nós, os primogénitos, somos de‑

terminados, não é? Temos de o ser. Não temos ninguém para nos deixar

migalhas pelo caminho. Abrimos o nosso próprio caminho. E os mais

novos seguem a nossa deixa. Observam ‑nos e seguem o nosso exemplo,

ainda que não o queiramos. — Termina de beber o chá e pousa a cháve‑

na e o pires no tabuleiro.

Não percebo onde ela quer chegar com aquele comentário.

— Creio que tem razão. Talvez. Não sei se a minha irmã concordaria.

Ela tem opiniões muito fortes. Penso que ela diria que está a espalhar as

suas próprias migalhas.

A Isabel solta uma gargalhada alegre e graciosa. É o tipo de riso que

se desprende quando se desencadeia uma memória — o tipo de memó‑

ria que talvez não fosse minimamente engraçada no momento em que

aconteceu.

— Como se chama a sua irmã? — pergunta quando as gargalhadas

cessam.

— Chloe.

A Isabel fecha os olhos, como se estivesse a tentar precisar o sabor

da palavra.

— É um nome bonito. — Abre os olhos. — Tem uma foto dela?

Tiro o telemóvel da mala e procuro uma fotografia minha e da

Chloe, tirada diante da Christ Church, no último dia da visita dela

e dos meus pais. A minha irmã é morena, como eu, com o cabelo pelos

ombros, também como eu, e tem os mesmos olhos cinzento ‑azulados.

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No entanto, ao contrário de mim, tempera tudo com ketchup, joga la‑

crosse, toca violino e quer ser engenheira civil. Somos próximas, mas

nenhuma dessas coisas me interessa. Nem sequer o ketchup.

Mostro ‑lhe a fotografia, e a Isabel examina os nossos sorrisos.

— É parecida consigo — declara.

— Na verdade, somos parecidas com o nosso pai. — Procuro uma

fotografia dos nossos pais, tirada nesse mesmo dia. Os caracóis ruivos

da minha mãe dançam um bailado dirigido pela brisa, e o seu sorriso

é tão largo que os olhos estão fechados. O meu pai, com os olhos azuis

e o cabelo castanho com uma pincelada de cinzento junto às têmporas,

tem o braço em volta dela. As suas cabeças quase se tocam.

A Isabel observa a fotografia, memorizando ‑a. Em seguida, devolve‑

‑me o telemóvel.

— É uma bela família, Kendra. Espero que tenha consciência da sorte

que tem.

Nunca soube o que responder quando me dizem que tenho uma

bela família. Não posso colher os louros desse facto, por isso, agradecer

parece ‑me disparatado. Porém, ainda assim, é o que faço agora, sorrin‑

do, enquanto guardo o telemóvel na mala.

— Muito bem — diz a Isabel. Pressinto que está, por fim, a mudar

o foco da conversa. — O Charles disse ‑me que isto é mais do que uma

entrevista para um trabalho da faculdade.

Demoro um segundo a perceber que o Charles é o professor Briswell.

— Sim. Comemora ‑se no próximo mês o septuagésimo aniversário

do Dia da Vitória na Europa. O professor de uma das outras cadeiras

conseguiu um acordo com um jornal londrino, e os cinco melhores tra‑

balhos serão publicados na semana de 8 de maio.

Observo atentamente a expressão da Isabel para tentar perceber se

esta informação adicional vai significar o fim da entrevista.

— Então, aquilo que a Kendra escrever vai ser lido por muita gente?

— Bem, isso só acontecerá se o meu trabalho estiver entre os cinco

melhores. Espero que não se importe.

— E vai escrever para ganhar, não vai? Ficará feliz se o seu trabalho

for um dos escolhidos.

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— Sim.

— Esse outro professor é amigo do Charles? Pode contar com ele

para avaliar o seu trabalho com base na força da escrita? Seria uma pena

se ele pusesse o seu trabalho de lado só porque um dos professores a

ajudou a conseguir uma entrevista.

Continuo sem perceber se a possibilidade de ser publicada num jor‑

nal londrino vai ajudar ou arruinar a entrevista.

— Não faço ideia se serão amigos. Presumo que sim, uma vez que

lecionam na mesma faculdade. Referi ao professor Briswell que estava

com dificuldades numa outra cadeira, e ele teve a amabilidade de se

oferecer para me ajudar.

A Isabel recosta ‑se no sofá, e apercebo ‑me de que está satisfeita com

a minha resposta.

— E o que foi que o Charles lhe disse sobre mim? — indaga.

Eu havia realizado uma pesquisa aprofundada sobre os efeitos do

Blitz na população feminina de Londres e necessitava apenas da en‑

trevista para escrever o meu trabalho e dá ‑lo por terminado. Quando a

mulher que eu planeava entrevistar faleceu, era demasiado tarde para

alterar o tema do trabalho sem o entregar fora do prazo. Mencionara, de

passagem, esse facto ao professor Briswell, e ele dissera ‑me que talvez

fosse capaz de persuadir uma senhora idosa amiga da família a ajudar‑

‑me. Essa pessoa sempre recusara entrevistas, até a propósito das suas

aguarelas, pelas quais era sobejamente conhecida por todo o sudoeste de

Inglaterra. Prometera perguntar ‑lhe, de qualquer maneira, explicando‑

‑lhe que eu estava numa enrascada. Todavia, preparara ‑me para uma

resposta negativa.

— Contou ‑me que a Isabel não costuma dar entrevistas — respondo.

Ela sorri.

— E mais nada?

— Também me disse que é famosa pelas suas aguarelas. A propósito,

gosto muito do seu trabalho.

— Ah, sim. As minhas Raparigas com Guarda ‑Chuva.

Viro a cabeça na direção de um dos mais proeminentes quadros

da sala: uma jovem de vestido cor ‑de ‑rosa a atravessar um campo de

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margaridas brilhantes da chuva que segura um guarda ‑chuva às boli‑

nhas vermelhas, que acabou por se tornar imagem de marca. O sol bri‑

lha por entre nuvens carregadas.

— Pintou sempre raparigas com guarda ‑chuvas?

— Não. Nem sempre — responde prontamente, sem hesitações.

Contudo, a forma como alonga a última palavra diz ‑me que há mais

qualquer coisa por detrás daquela resposta. Não acrescenta mais nada,

embora eu fique à espera. — Diga ‑me, Kendra — prossegue após uma

breve pausa. — O que gostaria de saber acerca do Blitz? Penso que de‑

vam existir centenas de livros sobre o tema. Que tipo de informação lhe

falta que não possa ler num desses livros?

Procuro uma resposta.

— Bem, além de ter de entrevistar alguém, penso que… penso que a

informação e os dados são apenas metade de uma história. A experiên‑

cia pessoal é a outra metade. Não posso perguntar a um livro como é

sobreviver a um bombardeamento.

A Isabel inclina a cabeça para o lado

— É isso o que deseja perguntar ‑me? Como foi ver a minha casa ser

bombardeada?

Ocorre ‑me que coloquei uma pergunta bastante elementar, que terá

uma resposta igualmente básica. De repente, sinto ‑me extremamente in‑

segura em relação às perguntas que elaborei. Olho para o bloco de notas

que tenho no colo e todas as frases aí escritas parecem ‑me superficiais.

«Como era passar noite atrás de noite num abrigo?»

«Teve medo?»

«Perdeu alguém querido?»

«Perguntou ‑se se os bombardeamentos teriam fim?»

— Planeia ligar esse aparelho?

Levanto a cabeça. A Isabel aponta para o meu pequeno gravador, que

deixei sobre a mesa de centro.

— Importa ‑se?

— Mais vale ligá ‑lo, já que o trouxe.

Quando me inclino para a frente, para dar início à gravação, o bloco

de notas escorrega ‑me do colo e cai no tapete persa, junto aos meus pés.

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Assim que lhe toco, dou ‑me conta de que existe apenas uma per‑

gunta para colocar a esta mulher que, durante 70 anos, se recusou a dar

entrevistas e que, nem há dez minutos pediu à Beryl que fechasse a por‑

ta, de forma a poder dizer apenas aquilo que desejasse.

Coloco o bloco ao meu lado.

— O que gostaria de me dizer sobre a guerra, Isabel?

Ela sorri, satisfeita — e talvez impressionada por eu ter percebido tão

depressa a única pergunta à qual ela responderia.

Faz outra pausa e, em seguida, declara:

— Bem, para começar, não tenho 93 anos. E o meu nome não é Isabel.

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Capítulo 2e m m y

Londres, Inglaterra

1940

O vestido de noiva em exibição na montra parecia escorrer como

champanhe borbulhante na direção de Emmy Downtree, enquanto

esta o observava do outro lado do vidro partido. Havia cacos espalhados

pela ampla saia, a brilhar, como se fossem parte integrante da decoração

do vestido. Fitas amarelas ondulavam atrás do manequim, simulando

um sol dourado e animador. Aos pés de Emmy, fragmentos salientes

jaziam no passeio em ângulos ameaçadores. Um pequeno letreiro es‑

crito à mão, que pedia uma empregada, continuava parcialmente colado

a uma aresta partida, e Emmy, de 15 anos, ajoelhou ‑se para o descolar

do vidro despedaçado. No interior da loja, a proprietária da Primrose

Bridal falava ao telefone com a polícia, exigindo que prestassem aten‑

ção ao seu caso. Alguém embatera contra a montra da sua loja durante

a noite.

Julia, a irmã de Emmy, de apenas 7 anos, fitou ‑a.

— Porque é que os alemães não gostam de vestidos de noiva?

Emmy não se riu da suposição da irmã de que havia sido a Luftwaffe

a rebentar a montra. Durante o último ano, tinham vivido com sire‑

nes de alerta de ataques aéreos, simulações na escola e cortinas ne‑

gras obrigatórias. Haviam passado sete desconfortáveis noites com

a mãe no abrigo mais perto do apartamento, na companhia de uma

dúzia dos seus vizinhos, quando um ataque aéreo parecera iminente.

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Durante o último período letivo, ambas as raparigas tinham levado uma

máscara de gás para a escola. Por isso, não era de espantar que Julia

visse a montra destruída e concluísse que acontecera aquilo que, du‑

rante um ano inteiro, lhes haviam dito que podia ocorrer a qualquer

momento.

Emmy ergueu ‑se com o pequeno letreiro na mão.

— Não foram os alemães que fizeram isto, Jewels. Mais nenhuma

das montras desta rua está partida. Vês? Deve ter sido um carro que tre‑

pou o passeio. O condutor deve ter carregado no acelerador em vez do

travão. Ou qualquer coisa assim.

O olhar de Julia não se desviou da montra partida.

— Tens a certeza?

— Absoluta. Teríamos ouvido as sirenes, não achas? E ontem à noite

esteve tudo tranquilo.

Em rigor, as sirenes não soavam há mais de uma semana, e o zunido

da Luftwaffe sobre as suas cabeças não se ouvia há bem mais tempo

do que isso. A cidade estava quase tão silenciosa como havia sido um

ano antes, quando a guerra estava no início e era algo indefinido.

— Agora ninguém vai querer esse vestido — observou Julia, apa‑

rentemente satisfeita com o facto de, afinal, os nazis não odiarem os

vestidos de noiva. — Está cheio de vidros.

— Basta sacudi ‑lo. Aposto que a noiva que o comprar nunca saberá.

— Emmy arrancou um pequeno pedaço de vidro do letreiro que dizia

«Colaboradora Precisa ‑se» e leu o que estava escrito por baixo, em le‑

tras pequenas: «Coser à mão e alterações. Oito a dez horas por semana.

Informações no interior.» Não tinha visto o letreiro antes e perguntou ‑se

há quanto tempo estaria colado na montra. De certeza que havia sido

ali colocado recentemente. Emmy conhecia bem a montra da Primrose

para saber que o anúncio era novo.

— Eu não usava esse vestido. Gosto mais das tuas noivas. São mais

bonitas.

Emmy soltou uma gargalhada.

— Achas? — Olhou para o interior da loja e para a mulher que parecia

cada vez mais determinada que um agente da polícia ali se deslocasse.

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— Não, não fui roubada. — A voz da mulher era ouvida sem qual‑

quer dificuldade pelas duas raparigas no passeio. — A questão não é

essa! Alguém embateu contra a minha montra e destruiu ‑a.

— Este é muito volumoso — prosseguiu Julia. — Os teus são mais

elegantes.

— Os meus não passam de desenhos, Jewels. É difícil perceber como

seriam se fossem de verdade.

Emmy olhou para a farmácia, do outro lado da estreita rua, e, através

do vidro, viu a mãe junto à caixa registadora. Não demoraria a sair. Emmy

colocou o letreiro no interior da montra, virado para baixo. Regressaria

mais tarde — quando a proprietária não estivesse tão distraída —, mu‑

nida dos seus desenhos, para o caso de necessitar de mais provas de que

devia ser considerada para o cargo.

— Ainda assim, os teus são mais bonitos — insistiu Julia.

Do outro lado, a mãe saiu para o passeio. Annie Downtree cami‑

nhou em direção às filhas por entre automóveis que se deslocavam

devagar. Um homem num Citroën azul parou para a deixar passar.

Tocou na aba do chapéu, e Emmy observou ‑lhe o olhar a deslocar ‑se

dos caracóis cor de mel da sua mãe para a sua cintura fina, para as

pernas compridas e para os tornozelos esguios. Com apenas 16 anos

de diferença, Emmy e a mãe já haviam sido tomadas por irmãs.

Ao princípio, Emmy ficara aborrecida, mas não demorara a aperceber‑

‑se de que o erro significava que ela parecia a adulta que tanto deseja‑

va ser. Quanto mais depressa se tornasse independente da mãe, mais

cedo poderia perseguir os seus sonhos. De qualquer maneira, a mãe

já se comportava como uma irmã, confidenciando ‑lhe segredos, lendo

revistas e fumando cigarros, enquanto a filha preparava o jantar, che‑

gando a casa a altas horas da noite sempre que lhe apetecia e pedindo

conselhos a Emmy no que dizia respeito a Neville, o seu amante in‑

termitente, e pai de Julia. As demonstrações de competência mater‑

nal eram dirigidas a Julia, que nunca ninguém confundira com uma

irmã.

— Vamos lá — disse Annie quando as alcançou. Guardou na mala

o pequeno pacote branco que havia ido buscar para a sua patroa.

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— Vê o que aconteceu à loja de vestidos de noiva, mãe — alertou Julia

com alguma urgência na voz.

A mãe lançou um olhar desinteressado à montra partida.

— Bem, é uma pena. Mas, seja como for, também agora ninguém

quer casar. Vamos. Ainda preciso de ir ao talho antes de seguir para o

trabalho. A Sra. Billingsley exige um pernil de porco.

— Isso não é verdade — contrapôs Emmy.

A mãe, que já se encontrava um pouco mais adiante, olhou para

trás.

— Claro que é verdade. Eu disse ‑te ontem que hoje ia estar a trabalhar.

— Eu referia ‑me ao facto de ninguém se casar. Se fosse verdade,

a loja não estava aberta. E a proprietária não estaria a contratar uma

ajudante.

— Pelo amor de Deus, Em. Estamos em guerra, para o caso de te

teres esquecido. — Girou nos calcanhares e retomou o passo célere.

— Mas não foram os alemães que destruíram a montra — declarou

Julia.

A mãe voltou ‑se, franzindo ainda mais o sobrolho.

— Andas a encher ‑lhe a cabeça com o quê, Emmy?

— Não ando a encher ‑lhe a cabeça com nada. Ela perguntou ‑me se os

alemães tinham bombardeado a loja, e eu respondi ‑lhe que não.

A mãe suspirou e continuou a andar.

— Gostamos de olhar para os vestidos de noiva — disse Julia. — Não

queremos ir ao talho.

— Pois, eu também gosto de olhar para as joias da coroa — argumen‑

tou a mãe por cima do ombro.

Emmy desviou a sua atenção da montra despedaçada, dos metros

de tecido de seda e do letreiro virado para baixo. Julia deu ‑lhe a mão,

enquanto se afastavam da loja, com os sapatos a esmagar as pequenas

lascas de vidro.

— Não gosto do talho. Cheira a coisas mortas. Não gosto de lá entrar.

— Podemos esperar à porta.

Haviam dado apenas meia dúzia de passos quando Emmy ouviu

o arrastar das cerdas de uma vassoura e o tilintar de vidros contra o

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rebordo de uma pá. E, logo depois, uma voz gritou, seguindo ‑se uma

imprecação murmurada. Emmy virou ‑se a tempo de ver a vassoura cair

ao chão. A proprietária da loja segurava uma das mãos com a outra,

e a sua expressão era mais de contrariedade do que de dor. A vassoura e

a pá encontravam ‑se aos seus pés.

— Vai ter com a mãe. — Emmy soltou a mão de Julia e dirigiu ‑se para

a dona da loja. Uma linha vermelha escorria ‑lhe da mão, onde um pedaço

de vidro a havia cortado. — A senhora está bem? — perguntou Emmy.

— Sim, sim — resmoneou a mulher, tirando um lenço do bolso do

vestido e sacudindo ‑o para o abrir. Pressionou o tecido contra a ferida.

Emmy dobrou ‑se para apanhar a vassoura e a pá. — Cuidado! Não vale

a pena ambas cortarmos as mãos — alertou a mulher.

— Precisa de ajuda com isto? Eu posso varrer os cacos enquanto a

senhora trata da mão.

A mulher lançou um olhar perscrutador a Emmy, como se tivesse

sido apanhada de surpresa por aquele gesto altruísta vindo de uma es‑

tranha. Só depois os seus olhos se arregalaram.

— Eu conheço ‑te. Já te vi a olhar para a montra, não foi? E muitas

vezes.

Emmy sentiu as bochechas quentes.

— Sim, senhora. Gosto… gosto dos seus vestidos. Espero um dia po‑

der ter também uma loja de vestidos de noiva.

A mulher esboçou um sorriso, enquanto atava o lenço em volta da

mão, e uma mancha escarlate começava a aparecer.

— Bem, espero sinceramente que o futuro te traga tempos mais ale‑

gres. — Apontou com o queixo para a montra partida. — Como po‑

des ver, gerir o próprio negócio não é sempre uma vida de encantos.

Principalmente em tempo de guerra. Se me dás licença, tenho de ir

procurar um pedaço de gaze. Limpo esta confusão mais tarde, mas obri‑

gada. — Começou a dirigir ‑se para o interior da loja.

— Vi que está à procura de uma ajudante — desembuchou Emmy.

A mulher virou ‑se, inclinando a cabeça num interesse quase insig‑

nificante.

— Sim.

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Emmy engoliu o nervosismo.

— Posso voltar mais tarde e conversar consigo sobre a vaga?

A mulher hesitou.

— Que idade tens?

— Quase 16 anos. — A pequena mentira voou da boca de Emmy an‑

tes mesmo de ela a conseguir calar. Só fazia anos dali a um ano. Porém,

com 15, não passava de uma criança, e ainda podia ser asilada.

— E tens experiência?

Emmy engoliu em seco.

— Alguma.

Pressionando o lenço contra a ferida, a proprietária da loja fez um

aceno de cabeça.

— Regressa à hora do fecho, às seis da tarde, e conversaremos. Vou

precisar de recomendações.

— Oh. Hum, está bem. Às seis, então. Certo — gaguejou Emmy,

a sua mente já a maquinar de que forma poderia convencer aquela mu‑

lher de que os seus desenhos eram a melhor das recomendações.

— Sou a Sra. Crofton, e não aprecio atrasos. Podes deixar a vassoura

e a pá ali.

— Chamo ‑me Em… Emmeline Downtree. Estarei aqui às seis. Muito

obrigada, Sra. Crofton.

A mulher fez um leve aceno e entrou na loja. Emmy encostou a vas‑

soura e a pá à lateral da montra sem vidro e afastou ‑se, admirada com

a sorte que tivera. Passara grande parte do ano a espreitar a montra da

Primrose Bridal, sempre que era dia de mercado, encantada com os

vestidos de contos de fadas exibidos por manequins ou que pendiam

de cabides almofadados. Aquela afinidade, recentemente descoberta,

havia eclipsado a sua predileção por desenhar vestidos durante a aula

de Matemática e por fazer incontáveis bonecas de papel para Julia.

A sua mãe costumava passar pela Primrose Bridal com total indiferença.

Nunca casara, e, se algum dia o fizesse, Emmy duvidava que fosse de

branco. Naquele instante, Emmy desejou poder agradecer ao patife que

embatera contra a montra da Sra. Crofton e pusera em marcha os acon‑

tecimentos que haviam resultado na consecução da entrevista.

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Contornou a esquina, e, por pouco, não esbarrou na irmã.

— Não estás com a mãe porquê? — inquiriu Emmy.

Julia franziu o sobrolho.

— Não gosto do talho. Cheira mal.

Emmy agarrou na mão dela e arrastou ‑a atrás de si.

— Devias ter feito o que te disse.

— Porque é que estavas a falar com aquela senhora?

— Isso agora não importa.

— Mas eu vi ‑te a conversar com ela.

— Estava só a oferecer ‑me para lhe varrer os vidros.

— Ela cortou a mão.

— Sim.

Emmy estugou o passo. Era certo e sabido que iam ouvir um ras‑

panete da mãe por terem ficado para trás. Ainda assim, não lhes iria

perguntar o que haviam ficado a fazer. Pouco lhe interessava que Emmy

gostasse de olhar para vestidos de noiva.

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Capítulo 3

Emmy encontrava ‑se diante do espelho do quarto que partilhava com

Julia, examinando o vestido que retirara do guarda ‑roupa da mãe.

Conseguira alisar os vincos com o ferro, mas não houvera maneira de se

livrar do perfume de Annie — um eflúvio floral e bafiento que cheirava

a um convite para outras coisas. O vestido azul ‑escuro com colarinho e

punhos brancos não era o preferido de Emmy, mas era mais elegante

do que qualquer um dos seus, e ela esperava que existisse ainda um

pouco de sorte agarrada aos fios que o teciam. A sua mãe usara ‑o há

dois anos, quando fora a uma entrevista para a vaga de criada em casa da

Sra. Billingsley, uma viúva milionária, e voltara para casa com o emprego

garantido. Emmy não se recordaria desse pormenor acerca do vestido,

não fosse pelo facto de a avó ainda ser viva nessa altura e se encontrar lá

em casa, de visita.

Era um dia quente de julho, e a guerra não passava de um desagradá‑

vel desentendimento entre alguns países da Europa. A avó materna de

Emmy, que vivia em Devonshire, estava a ensiná ‑la a bordar. As rapari‑

gas só viam a avó quando esta as vinha visitar, o que não acontecia com

muita frequência. Emmy gostava daquelas visitas, embora a avó e a mãe

discutissem por tudo e por nada. Ficava sempre triste com a partida

dela, ainda que significasse o fim das discussões.

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Nessa tarde em particular, Annie saíra do quarto envergando o ves‑

tido azul ‑escuro e posou, qual modelo, diante das raparigas e da mãe.

Julia soltou uma gargalhada, e Annie riu‑se também. A avó abanou a

cabeça e disse ‑lhe que ela não devia alimentar muitas esperanças. Até

então, limitara ‑se a trabalhar na lavandaria de um hotel. Tanto quanto

Emmy sabia, nunca havia sido criada de cozinha. E nunca trabalhara

para ninguém com muito dinheiro.

— E porque é que não haveria de ter esperança? — Annie abriu um

espelho compacto e passou o batom pelos lábios. Emmy não se recorda‑

va de alguma vez a ter visto tão confiante.

— Uma herdeira honesta é um empregador diferente de um hotel

movimentado.

Annie fechou o espelho com um estrépito.

— E isso quer dizer o quê?

— És mãe solteira — murmurou a avó, como se as paredes da cozinha

pudessem ouvir a escandalosa verdade e transmitir a notícia para toda

a cidade de Londres. — E isso tem importância. Se essa Sra. Billingsley

for verificar as tuas recomendações, irá descobrir que as tuas filhas têm

pais diferentes, e que tu não és casada com nenhum deles.

Annie semicerrou os olhos, sorrindo para Emmy de forma conspira‑

tória — como faria uma irmã mais velha. Agradeceu à mãe o conselho

tão afetuoso e maternal e bateu com a porta ao sair.

A avó perguntou a Emmy onde é que a mãe arranjara aquele vestido.

Emmy não sabia. Volta e meia, apareciam roupas novas no guarda‑

‑vestidos da mãe.

— Nunca te perguntas de onde vêm? — indagou a avó.

— Ela diz que são as pessoas com quem trabalha que lhas dão quan‑

do se fartam delas — explicou Emmy.

— Claro que sim — murmurou a avó, continuando a ensinar a neta

a fazer um ponto ‑cheio perfeito.

Uma hora mais tarde, enquanto Emmy trabalhava num pano para

decorar o aparador, e a avó mostrava a Julia a sua caixa de madeira reple‑

ta de coloridas meadas de linha de bordar, a mãe regressara a casa, exu‑

berante, com um uniforme preto muito chique dobrado sobre o braço.

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A avó ficou pálida.

— Contrataram ‑te?

Emmy ficou admirada com o medo que detetou na voz da avó.

— Não fique tão surpreendida — argumentou Annie. — Eu sei fer‑

ver água.

— Tenho a certeza de que existem muitas coisas que sabes fazer —

disse a avó em voz baixa. Era quase um murmúrio, mas não exatamente.

Annie pousou o uniforme nas costas de uma cadeira da cozinha

e voltou ‑se.

— O que foi que disse?

— Nada.

Calmamente, Annie dirigiu ‑se para porta da frente e escancarou ‑a.

— Quero ‑a fora daqui!

Emmy olhava de uma para a outra. De certeza que lhe tinha escapado

alguma coisa.

Os lábios da avó tornaram ‑se uma fina linha. Fechou a caixa de ma‑

deira e passou ‑a para as mãos de Emmy.

— Pratica esses pontos, Emmeline — disse ‑lhe. — Dar ‑te ‑ão qual‑

quer coisa de construtivo para fazer, enquanto a tua mãe ganha o vosso

sustento.

Despediu ‑se de Julia com um beijo e saiu. Foi a última vez que Emmy

a viu. Quatro meses mais tarde, faleceu, vítima de um ataque cardíaco

fulminante. Chegou um telegrama do tio Stuart, o irmão mais velho da

avó, que Emmy nunca conhecera, com a notícia da sua morte. A mãe leu

o telegrama, pousou o pedaço de papel na mesa da cozinha e fechou ‑se

no quarto. Emmy não a viu durante horas. Quando finalmente emergiu,

a jovem estava cheia de dúvidas e de perguntas. Julia, com 5 anos, tinha

apenas uma pergunta: onde estava a avó? A mãe, todavia, não respon‑

deu a nenhuma das dúvidas de Emmy, e disse a Julia que a avó estava

no Céu, onde tudo era perfeito, por isso, o mais provável, era que se

sentisse em casa.

Emmy não compreendera o motivo da discussão entre a mãe e a avó

no último dia. Tanto quanto percebera, a mãe havia sido contratada como

criada. A avó quase dera a entender que ela estava a fazer alguma coisa de

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mal, em troca do seu novo emprego, mas a Sra. Billingsley não geria um

bordel; era uma viúva respeitada. E não havia nenhum homem na vida de

Annie Downtree; não desde que o pai de Julia a abandonara, um ano antes.

Pouco tempo após a morte da avó, Emmy estava na cozinha a bordar

ásteres numa fronha. A caminho da porta, para ir trabalhar, a mãe pa‑

rara para ver a colorida coleção de linhas que enchia a caixa, fechando

em seguida a tampa com toda a força. Depois disso, Emmy passara a

guardar a caixa no quarto que dividia com a irmã.

Julia apareceu à porta do quarto, enquanto Emmy se observava ao

espelho.

— Quero ir à loja das noivas contigo.

Emmy pegou na escova do cabelo, pousada sobre a cómoda.

— Preciso que fiques aqui.

— Não quero ficar.

— Eu não demoro, Jewels. Prometo — garantiu Emmy, passando

a escova pelo cabelo com movimentos rápidos.

— Leva ‑me contigo.

Emmy guardou a escova, ajoelhou ‑se diante da irmã e pegou ‑lhe nas

mãos.

— Eu não demoro nada. Estarei de volta antes de dares pela minha

falta.

— Mas daqui a pouco fica escuro.

— E eu estarei de regresso antes disso.

Os olhos temerosos de Julia brilharam com lágrimas teimosas.

As noites eram o pior. Era quase sempre à noite que as sirenes soavam,

como lamúrias agonizantes dos mais solitários e consternados.

— Sê uma querida e vai buscar a caixa de linhas da avó — pediu

Emmy.

— Porquê?

— Eu já te mostro.

Julia aproximou ‑se da cama da irmã, ajoelhou ‑se e meteu a mão por

baixo da saia da cama. Puxou a caixa de madeira e ergueu ‑se com ela

nas mãos.

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— Importas ‑te de tirar todas as linhas? Podes despejá ‑las sobre a mi‑

nha cama.

Enquanto Julia obedecia, Emmy foi buscar a mala que levava para

a escola. Aproximou ‑se da cama e sentou ‑se ao lado da irmã. Entre as

duas, encontrava ‑se a caixa das meadas, uma confusão de cores. Do in‑

terior da mala, Emmy tirou uma pasta que dizia «Geometria», abriu ‑a

e retirou um maço de desenhos.

— O que vais fazer com as tuas noivas? — perguntou Julia.

— Sou capaz de ter de as mostrar à senhora da loja das noivas.

— Porquê?

— Quando disser à senhora que nunca trabalhei numa boutique, ela

é capaz de não me querer contratar, mas, se lhe mostrar as noivas, pode

ser que mude de ideias.

Emmy alcançou a caixa vazia que Julia equilibrava no colo. As dobra‑

diças e o fecho, outrora dourados, haviam envelhecido e adquirido uma

tonalidade acastanhada. Gravuras de vinhas decoravam a parte da frente

e as laterais da caixa, juntamente com os riscos e arranhões provocados

por tantos anos de uso. Emmy folheou os desenhos, puxou os primei‑

ros esboços e depois descartou ‑os para cima da cama. Abriu a tampa e

guardou os melhores desenhos — cerca de uma dúzia — no interior da

caixa.

— Pronto. Sempre é melhor do que uma pasta de geometria.

— E se ela não te aceitar?

— Então, não estarei pior do que estava antes de lhe mostrar os de‑

senhos, não é?

— E se ela te tirar as noivas?

— Não o fará.

— Como podes ter a certeza?

— Não acredito que seja esse tipo de pessoa. Além disso, eu não

o permitirei. Não deixarei que ninguém fique com os meus desenhos,

está bem?

Julia assentiu com a cabeça, mas havia uma ruga de dúvida na sua

testa. Era como se já soubesse que as coisas boas muitas vezes acabavam

por ser retiradas — principalmente em tempo de guerra.

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— E estes? — Julia apontou para os esboços rejeitados.

— Que tal se, enquanto eu estiver fora, tu ofereceres uns ramos de

flores a estas noivas? Podes usar os meus lápis de cor e desenhar flores

nos cabelos delas e ramos nas suas mãos. O que achas?

Julia parecia satisfeita com a tarefa.

— E se eu quiser que elas segurem outras coisas? Tem de ser ramos

de flores?

Emmy deu um beijo no cocuruto da cabeça da irmã.

— Pode ser o que tu desejares. Até podes dar ‑lhes cangurus, se te

apetecer.

Julia riu‑se, e Emmy levantou ‑se.

— Estou bem?

— Pareces a mãe.

Emmy anuiu. Era o que bastava.

— Não demoro. Não abras a porta a ninguém e trata bem dessas

noivas.

Meteu a caixa debaixo do braço e dirigiu ‑se para a porta, com os cal‑

canhares a saírem dos sapatos demasiado grandes da mãe, a cada passo

que dava.

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Capítulo 4

Os vidros partidos tinham sido varridos, e havia tábuas pregadas

à moldura da montra da Primrose Bridal. Emmy entrou na loja.

O tilintar de dois sininhos anunciou a sua chegada, e a Sra. Crofton le‑

vantou a cabeça de uma escrivaninha branca de estilo francês, colocada

junto à parede, do lado esquerdo. À sua frente, estavam duas cadeiras

estilo Queen Anne estofadas com veludo azul ‑cobalto. Emmy pressupôs

que uma delas fosse para a noiva e a outra para a mãe da noiva, ou para

a irmã, ou até para a dama de honor. A Sra. Crofton devia ter recebido já

uma centena de noivas sentada àquela secretária.

— Vira o letreiro para «Fechado», pode ser? — pediu ela. — E tranca

a porta.

Emmy virou ‑se e fez o que a Sra. Crofton lhe pediu, aproveitando

aqueles segundos para acalmar os nervos que, de súbito, lhe cresciam

no peito.

— Senta ‑te, por favor. Desculpa, esqueci ‑me do teu nome — disse a

Sra. Crofton, enquanto Emmy terminava a pequena tarefa. — Foi um

dia de loucos.

— Chamo ‑me Emmeline. Emmeline Downtree. — Emmy avançou

até à secretária e serviu ‑se de uma das cadeiras.

A Sra. Crofton terminou de fazer anotações num livro ‑razão encader‑

nado a couro e fechou ‑o gentilmente com a mão ligada.

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— E eu chamo ‑me Eloise Crofton. Quando não são os condutores

embriagados a embater contra a montra, são os fornecedores idiotas que

acham que, por estarmos em guerra, as mulheres não se casam.

Emmy dissera o mesmo à sua mãe naquela manhã. Anuiu.

A Sra. Crofton pousou a caneta.

— A guerra tão depressa faz noivas como faz viúvas, Emmeline.

E sabes porquê?

— Porque as pessoas continuam a apaixonar ‑se? — respondeu

Emmy, num tom esperançoso.

— Porque as pessoas precisam de acreditar que o amor é mais pode‑

roso do que a guerra. Um soldado casa antes de partir para a frente de

batalha para que a aliança no seu dedo o recorde de quem é quando es‑

tiver agachado numa trincheira com a arma apontada ao inimigo. Nesse

momento, uma pessoa não quer esquecer ‑se de quem é. — Abriu uma

das gavetas da secretária e guardou o livro ‑razão. — Muito bem. Diz ‑me,

há quanto tempo admiras a minha montra?

— Creio que desde que vivo em Whitechapel. Mudámo ‑nos para aqui

há dois anos, quando a minha mãe conseguiu um novo emprego.

A mulher esperou que Emmy prosseguisse, mas ela ficou a pensar

se não teria já falado demasiado. Referir o novo emprego da mãe e não

dizer nada acerca do pai podia significar que faltava alguma coisa.

— Oh. Compreendo. Muito simpático da tua parte. — A Sra. Crofton

inclinou ligeiramente a cabeça, e Emmy viu a pergunta implícita nos

olhos dela.

— Sim, desde essa altura que, todos os sábados de manhã paro dian‑

te da sua loja para admirar a montra. Adoro os seus vestidos. São lindos

e… tão cheios de promessas.

A Sra. Crofton observou os vestidos pendurados em redor e expostos

em manequins.

— Isso é verdade. São muito bonitos. O vestido mais belo que uma

rapariga alguma vez usará num dia único e inesquecível. — Voltou a sua

atenção para Emmy. — E que experiência tens?

Emmy pigarreou com o intuito de se ver livre do nó de ansiedade que

se formara na sua garganta.

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— Bem, a minha avó ensinou ‑me todos os pontos que se utilizam

para coser à mão. Sei fazer o ponto ‑cheio, o ponto de cruz, sei chulear,

alinhavar, sei fazer o ponto em cadeia… Todos, na verdade.

A Sra. Crofton inclinou ‑se para a frente e apoiou o queixo no punho.

— Referia ‑me a experiência como empregada de loja.

O nó de ansiedade regressou ao seu lugar, e Emmy empurrou ‑o no‑

vamente para baixo.

— Nunca trabalhei numa loja. Mas teria todo o prazer em mostrar ‑lhe

os meus pontos. No seu letreiro, dizia precisar de uma pessoa que soubesse

coser à mão e fazer alterações, não de alguém com experiência em venda.

A Sra. Crofton sorriu.

— Tens razão. Vem comigo.

A mulher ergueu ‑se da cadeira, e Emmy seguiu ‑a até uma salinha

nas traseiras. Havia uma mesa comprida ao meio e um vestido estendi‑

do sobre a mesa. A um canto, podia ver ‑se uma Singer preta e dourada,

e, noutro canto, amontoavam ‑se rolos de tule e peças de renda. Num ar‑

mário encostado à parede, havia cestos com linhas brancas, cartões com

colchetes machos e fêmeas e pequenas taças de vidro repletas de botões

em forma de pérola e com imitações de diamantes.

— Vou dar ‑te 20 minutos para terminares a bainha invisível daquele

vestido de noiva. Se gostar do teu trabalho, contrato ‑te à experiência. Se

não gostar, terás de descoser todos os pontos antes de te ires embora,

para que eu possa coser a bainha mais tarde. Combinado?

Emmy teve de recorrer a toda a sua força de vontade para não abraçar

a Sra. Crofton por lhe propor aquele teste.

— Volto daqui a 20 minutos — anunciou a mulher.

Emmy sentou ‑se diante do vestido, de um chiffon muito leve, e pou‑

sou a sua caixa com os desenhos dos vestidos de noiva aos seus pés,

um pouco desiludida por não ter tido oportunidade de os mostrar

à Sra. Crofton. Só um quarto da bainha estava feito, as minúsculas pica‑

das da agulha quase invisíveis. Emmy puxou o vestido para o colo, pediu

a Deus que não a deixasse fazer asneira e recomeçou onde a costureira

havia ficado. Fez com que os seus pontos saíssem iguais aos anteriores,

e fossem igualmente leves. Terminou a tarefa em 17 minutos.

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Susan Meissner

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Procurou um cabide, e encontrava ‑se a pendurar o vestido quando a

Sra. Crofton entrou na salinha com uma chávena azul e branca na mão.

O ar ficou de imediato impregnado com o aroma do Earl Grey.

— Ora, vejam só. Já terminaste? — Pousou a chávena, levantou a

saia e examinou abainha. — Tens muito jeito com a agulha, Emmeline.

— Obrigada.

— A tua avó por acaso ensinou ‑te a usar a máquina de costura?

Emmy olhou para a Singer, ao canto da sala.

— Não a via com muita frequência. E ela morreu há dois anos.

— Ah. — A Sra. Crofton largou a saia e contemplou a forma como

esta caía, assim, pendurada no cabide. — Muito bem. Está, de facto,

muito bem. És capaz de servir.

Emmy examinou o rosto da Sra. Crofton para se certificar de que ela

não estava a brincar.

— Está a contratar ‑me?

— Digamos de terça a quinta, das duas às seis. Um sábado ou dois

por mês, dependendo. Vinte xelins por semana. No final do mês, vemos

como estão as coisas. Vivemos num mundo incerto.

— Muito obrigada, Sra. Crofton. Não se irá arrepender. — Uma vez

mais, o olhar de Emmy fugiu para a Singer. — Poderia… quero dizer,

talvez se não se importasse… — Mas não foi capaz de terminar a frase.

Era demasiado cedo para se pôr a pedir favores.

A Sra. Crofton seguiu o olhar de Emmy.

— Queres aprender a usar a minha máquina?

— Se não for pedir demasiado.

— Posso ensinar ‑te algumas coisas, se quiseres. Palpita ‑me que

aprendes depressa. Até seria bom para mim se soubesses usá ‑la.

A oportunidade de aprender a coser à máquina era mais do que

Emmy alguma vez esperara. Sentia ‑se tão maravilhada e grata que o seu

queixo caiu. Então, saíram ‑lhe da boca as palavras que ela não precisara

de dizer. Eram como um jato da fonte da exaltação que borbulhava den‑

tro de si, e não havia como impedi ‑lo.

— Sra. Crofton, posso mostrar ‑lhe uma coisa?

— Claro. Do que se trata?

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Emmy alcançou a caixa que pousara no chão, abriu a tampa e

entregou ‑lhe os desenhos.

Depois de observar alguns dos desenhos, a Sra. Crofton inclinou

a cabeça, intrigada.

— De onde saíram estes esboços?

— Saíram… saíram da minha cabeça. — Emmy não sabia muito

bem se a expressão no rosto da Sra. Crofton era de deleite ou de cons‑

ternação.

— Estás a dizer que foste tu que os criaste? Não os copiaste de uma

revista?

Emmy negou com a cabeça.

A Sra. Crofton folheou os desenhos uma segunda vez. Parou naquele

de que Emmy mais gostava: um vestido que acompanhava as formas do

corpo e que caía de um corpete guarnecido de tule com a cintura descaí‑

da, terminando numa saia em pétala.

— Este lembra ‑me um vestido que tive na montra, a primavera

passada.

— O seu tinha o decote redondo e a cintura subida. Era muito bonito,

mas nenhuma mulher com as pernas altas teria ficado bem nele. —

O coração de Emmy falhou uma batida. Falara demasiado.

A Sra. Crofton arqueou uma sobrancelha. Contudo, os seus olhos

sorriam.

— Ai sim? E como foi que chegaste a essa conclusão?

— Costumo olhar para a forma como as mulheres usam os vestidos.

Sempre tive esse hábito. Até quando desenhava bonecas de papel para a

minha irmã. Todos os vestidos começam da mesma maneira. Um corpe‑

te, mangas, saia e linha da cintura. Mas nem todas as mulheres podem

usar o mesmo tipo de vestido. E um vestido de noiva não deixa de ser

um vestido.

Emmy sentiu que estava a divagar. Porém, a Sra. Crofton parecia fas‑

cinada.

— E nunca tocaste numa máquina de costura?

— Posso e quero aprender.

A Sra. Crofton mirou o desenho que tinha na mão.

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— É uma proeza e tanto costurar um vestido cujo modelo se dese‑

nhou. É isso que estás a pensar fazer?

— Sim. Quero dizer, se achar que valem a pena.

— Gosto deste. E deste. — A Sra. Crofton mostrou dois desenhos:

um era de um vestido pela canela, em estilo Império, com mangas em

forma de sino; o outro estendia ‑se até aos pés, tinha as costas abertas e

mangas transparentes. — Onde foi que aprendeste a desenhar? Tens

uma professora de arte na escola? Ou talvez um dos teus pais te tenha

ensinado?

Uma gargalhada cresceu na garganta de Emmy, mas a jovem

reprimiu ‑a.

— Não. Não tenho nenhuma professora de arte.

— E os teus pais?

Emmy tossicou para que a gargalhada não se escapasse.

— A minha mãe não… Ela não sabe desenhar.

— E o teu pai, sabe?

— Não faço ideia.

Instalou ‑se um silêncio incómodo. Era uma tensão muda que Emmy

conhecia muito bem e que sentia sempre que alguém lhe fazia uma

pergunta sobre o pai para a qual ela não tinha resposta. Uma vez que já

mentira sobre a idade, porque não voltar a iludir a verdade? Afinal, não

desejava que a Sra. Crofton se arrependesse de a ter contratado.

— Já morreu.

— Oh. Lamento muito.

— Nem sequer me recordo dele. Já foi há muito tempo. Aprendi a

desenhar sozinha, Sra. Crofton. Requisitei livros na biblioteca e dese‑

nhei em todos os papéis em branco que encontrei. Depois, quando nos

mudámos para aqui, vi os vestidos na sua montra e percebi que queria

desenhar os meus próprios vestidos de noiva. É isso que desejo para

o resto da minha vida.

A Sra. Crofton fez uma pausa antes de falar.

— Não vou poder ajudar ‑te a fazer nenhum dos modelos. É uma

aptidão de que não disponho. Para isso, irás precisar de uma costureira.

Emmy não conhecia nenhuma costureira, e confessou ‑o.

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— Eu sei de uma pessoa. O meu primo Graham. Sou capaz de o

convencer a aceitar ‑te como aprendiza. Ele costuma fazer isso com jo‑

vens estilistas quando acredita que têm potencial. Posso perguntar ‑lhe,

se estiveres interessada.

Já havia passado tanto tempo desde que outra pessoa, além de Julia,

demonstrara interesse por alguma coisa que fosse importante para

Emmy que os olhos da jovem se encheram de lágrimas. Não soube

o que dizer.

A Sra. Crofton sorriu, como se soubesse que Emmy não estava habi‑

tuada a que lhe fizessem favores.

— Escuta. Eu sei o que é ter as pessoas à nossa volta a olharem

simplesmente para nós quando nos poderiam perfeitamente ajudar,

Emmeline. Quem sabe quanto tempo cada uma de nós aqui vai andar,

para pensarmos em empreendimentos maiores do que as nossas insig‑

nificantes vidas? Não me agradeças ainda. Posso ensinar ‑te a coser à

máquina, e irei falar com o meu primo para ver se ele tem interesse em

aceitar ‑te como aprendiza. Mas, no final de tudo, só o tempo dirá se os

vestidos de noiva são o teu futuro.

— Não sei como lhe agradecer.

— Podes ajudar outra pessoa, quando tiveres oportunidade.

Emmy limpou as lágrimas. Sabia que nunca mais iria esquecer aque‑

le dia, o momento em que uma pessoa que ela mal conhecia lhe realiza‑

ra todos os sonhos de infância.

— Lamento muito o que aconteceu à sua montra. — A voz de Emmy

soava bem mais jovem do que a sua idade.

A mudança do tema da conversa pareceu surpreender a Sra. Crofton.

— Oh! Bem, o vidro pode ser substituído. E será substituído. Podia

ter sido pior. Pode sempre ser pior.

Emmy voltou a agradecer, e a Sra. Crofton acompanhou ‑a até à porta.

O céu exibia já tonalidades púrpuras e cinza. Teria de se apressar para

chegar a casa antes que o sol se pusesse por completo. De súbito, a ama‑

bilidade da Sra. Crofton pesou ‑lhe como tijolos.

— Eu não tenho quase 16 anos, Sra. Crofton — desembuchou Emmy

quando a mulher destrancou a porta. — Fiz 15 anos em abril. O meu

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próximo aniversário é daqui a 11 meses. E não sei quem é o meu pai.

Não sei sequer se ele está morto ou vivo.

A Sra. Crofton não disse nada. Por segundos, Emmy teve a certeza

de que toda aquela sinceridade a havia prejudicado. Por fim, a mulher

abriu a porta e disse:

— Então, ainda bem que não o estou a contratar a ele. Vejo ‑te na

terça ‑feira, Emmeline.

Emmy regressou a casa a vogar nas nuvens, mal se dando conta de

que o véu negro da noite começava a envolver a cidade. Correu o último

quarteirão já às escuras.

Quando abriu a porta do apartamento, reparou que a irmã havia

adormecido sobre a mesa da cozinha, rodeada de lápis cor. Espreitou

para ver de que forma Julia ocupara a hora em que estivera ausente.

Em vez de desenhar ramos de flores, as noivas que Emmy deixara

aos cuidados de Julia seguravam enormes guarda ‑chuvas às bolinhas

vermelhas.

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