PARA ALÉM DAS PRÁTICAS DE CUIDADO EM SAÚDE: o desafio ... · fundaÇÃo oswaldo cruz escola...

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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE Andressa Ambrosino Pinto PARA ALÉM DAS PRÁTICAS DE CUIDADO EM SAÚDE: o desafio dos modos de cuidar dos Agentes Comunitários de Saúde (ACSs) Rio de Janeiro 2016

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FUNDAO OSWALDO CRUZ

ESCOLA POLITCNICA DE SADE JOAQUIM VENNCIO

PROGRAMA DE PS- GRADUAO EM EDUCAO PROFISSIONAL EM SADE

Andressa Ambrosino Pinto

PARA ALM DAS PRTICAS DE CUIDADO EM SADE: o desafio dos modos de

cuidar dos Agentes Comunitrios de Sade (ACSs)

Rio de Janeiro

2016

FUNDAO OSWALDO CRUZ

ESCOLA POLITCNICA DE SADE JOAQUIM VENNCIO

PROGRAMA DE PS- GRADUAO EM EDUCAO PROFISSIONAL EM SADE

PARA ALM DAS PRTICAS DE CUIDADO EM SADE: o desafio dos modos de

cuidar dos Agentes Comunitrios de Sade (ACSs)

Andressa Ambrosino Pinto

Dissertao apresentada Escola Politcnica

de Sade Joaquim Venncio como requisito

parcial para a obteno do ttulo de Mestre em

Educao Profissional em Sade.

Orientadora: Prof.a Dr.

a Mrcia Cavalcanti

Raposo Lopes

Rio de Janeiro

2016

Catalogao na fonte

Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio

Biblioteca Emlia Bustamante

P659p Pinto, Andressa Ambrosino

Para alm das prticas de cuidado em sade: o

desafio dos modos de cuidar dos Agentes

Comunitrios de Sade (ACS) / Andressa Ambrosino

Pinto. Rio de Janeiro, 2016.

92 f.

Orientador: Mrcia Cavalcanti Raposo Lopes

Dissertao (Mestrado Profissional em Educao

Profissional em Sade) Escola Politcnica de

Sade Joaquim Venncio, Fundao Oswaldo Cruz,

2016.

1. Ateno Bsica Sade. 2. Agente Comunitrio de

Sade. 3. Estratgia Sade da Famlia. I. Lopes,

Mrcia Cavalcanti Raposo. II. Ttulo.

CDD 614.4

ANDRESSA AMBROSINO PINTO

PARA ALM DAS PRTICAS DE CUIDADO EM SADE: o desafio dos modos de

cuidar dos Agentes Comunitrios de Sade (ACSs)

Dissertao apresentada Escola Politcnica

de Sade Joaquim Venncio como requisito

parcial para a obteno do ttulo de Mestre em

Educao Profissional em Sade.

Aprovada em: 29/02/2016

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________________________

(Professora Doutora e Orientadora Mrcia Cavalcanti Raposo Lopes - EPSJV/FIOCRUZ)

_______________________________________________________________________

(Professora Doutora Donizete Vago Daher - EEAAC/UFF)

________________________________________________________________________

(Professora Doutora Monica Vieira - EPSJV/FIOCRUZ)

________________________________________________________________________

(Professora Doutora Vera Joana Bornstein - EPSJV/FIOCRUZ)

Dedicatria

Dedico esta conquista a Deus, minha maior Luz.

Dedico estes escritos repletos de ternuras e afetamentos ao meu amado pai Acyr (in memoriam),

minha me Ana Dalva e ao meu irmo Anderson.

E dedico a todos os Agentes Comunitrios de Sade pelos ensinamentos e aprendizados em cada

encontro de cuidado na sade da famlia.

AGRADECIMENTOS

A composio deste estudo revela-se como mais um dos meus infinitos sonhos

realizados, em que pude plantar, semear e cultivar cada pedacinho de escritos e aprendizados.

Relembro que a cada estgio, prtica, leituras, aprendizados e ensinamentos, apreendidos em

cada encontro/contato com os Agentes Comunitrios de Sade (ACSs) de diferentes

territrios, pude perceber a prestao do cuidado desses profissionais de sade. E com os

meus escritos, pude regar e cultivar o meu querer e mais do que querer em conhecer, estudar e

aprender mais de pertinho sobre os modos de cuidado dos ACSs.

Para tal feitura, agradeo a Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio, na qual

pude aprender a cada novo tempo de aula infinitas construes, anlises, questionamentos e

discusses sobre trabalho, educao e sade, tambm dos ACSs.

A minha orientadora Mrcia Lopes pela liberdade de construo de cada escrito, das

valiosas contribuies e novos questionamentos a cada leitura e (re)leitura.

Aos professores Donizete Vago Daher, Gustavo Matta e Vera Joana Bornstein pelas

pertinentes sugestes ao comporem minha Banca de Qualificao do meu Projeto de

Dissertao.

s professoras Donizete Vago Daher, Monica Vieira e Vera Joana Bornstein por

partilharem comigo um momento de tanta felicidade, a constituio da minha defesa.

E no poderia deixar de dizer o meu saudoso agradecimento a alguns docentes e

preceptores que em meu ba de memrias se fazem sempre presentes. A minha professora do

primrio, que me ensinou a conjugar as minhas primeiras palavras; um tempo depois aprendi

os inmeros sentidos de um territrio no ensino mdio; e na graduao de Enfermagem e

Licenciatura aprendi a amar minha profisso, sim, eu escolhi ser enfermeira. E com o meu

preceptor-emprestado na residncia, tive um cmplice de muitas indagaes e tantos outros

afetamentos na sade da famlia.

E aos professores, Marco Antnio e Neise Deluiz, com os quais me encantei para com

a docilidade de professorar.

Aos meus familiares, em especial ao meu querido pai (in memoriam), minha me e ao

meu irmo, o meu eterno carinho. Aos meus amigos da infncia, da juventude e da vida

adulta, que entre alguns desafios e outras tantas alegrias vamos nos encontrando e

desencontrando, aqui, ali e acol.

Aos profissionais do Ncleo de Educao Permanente em Sade e Coordenao

Regional da Estratgia de Sade da Famlia do municpio de Itabora - RJ, Rosngela Martins

Gomes, Jose Silva, Viviane Alves de Sousa e a enfermeira Flvia de Jesus Ribeiro Chagas,

que me acolheram com ternura para a realizao da minha pesquisa. Obrigada pela parceria!

E aos ACSs, participantes-chaves, que com toda presteza, solicitude e tantos outros

afetamentos participaram do presente estudo compartilhando comigo, entre um depoimento e

outro, os seus modos de cuidado. Obrigada pela disponibilidade!

As palavras a esto,

uma por uma:

porm minha alma sabe mais.

(Ceclia Meireles)

RESUMO

Este estudo analisa os modos de cuidar dos ACSs de uma ESF no municpio de Itabora - RJ.

Para realizarmos a dada anlise, em um primeiro instante, consubstanciou-se estes escritos

com um referencial conceitual a fim de clarear a historicidade do ACS no SUS, fragmentos da

trajetria do cuidado e uma breve reflexo sobre os modos de cuidado do ACS. Estudo de

carter qualitativo, em que para a coleta dos dados foi aplicado um questionrio para a

composio do perfil dos ACSs. A tcnica do Grupo Focal e os ACSs ainda representaram

atravs de um desenho seus modos de cuidar (Croquis de Cuidado). Participaram da coleta

dos dados sete ACSs de duas equipes de sade da famlia de uma unidade bsica do dado

muncipio, seus depoimentos foram gravados, transcritos e analisados. Apreendeu-se que os

ACSs reconhecem que sim: so ACSs que realizam o cuidado, principalmente quando do

voz aos usurios. Outro ponto que chama ateno refere-se que eles revelam que aprenderam

a cuidar em casa, no dia a dia, nas capacitaes e cursos, mas h um predomnio da formao

por capacitao, o que ainda demonstra uma fragilidade inerente nesse processo formativo. E

em relao aos tensionamentos, destaca-se a falta de recursos humanos e fsicos, que so

relatados de forma atinada. No entanto, a participao social ainda imperceptvel. E poucas

facilidades so expressas. Diante desse compilado de constataes, possvel perceber que os

ACSs se reconhecem como cuidadores, ou melhor, que detm modos de cuidar que so

vivenciados no cotidiano de trabalho na ESF, porm a centralidade do modelo biomdico

ainda se faz presente.

Palavras-chave: Ateno Bsica Sade; ACS; Cuidado; Estratgia Sade da Famlia.

ABSTRACT

This study analyzes the ways to care for CHWs of a FHS in the town of Itabora - RJ. Firstly,

in order to conduct the analysis in question, these writings were consolidated with a

conceptual framework with the purpose of clarifying the historicity of CHW in SUS, pieces of

the care pathway and a short reflection about the ways of care of CHW. This is a qualitative

study, where, in order to collect data, we applied a questionnaire for composing the profile of

CHWs. Moreover, the technique of Focus Group and the CHWs have represented by means

of a design of their ways to care (Care Sketches). Data collection had the participation of

seven CHWs of two family health teams of a basic unit of the town in question, and their

speeches were recorded, transcribed and analyzed. We have understood that CHWs recognize

that yes: CHWs are the ones who conduct care actions, mainly when they give voice to users.

Another point that draws attention mentions that they reveal that they have learned to care for

at home, on a daily basis, in trainings and courses, but there is a prevalence of education by

training, which also demonstrates an inherent weakness in this educational process. Regarding

the tensions, one should highlight lack of human and physical resources, which are sagely

reported. Nonetheless, social participation is still invisible. Furthermore, few facilities are

shown. In light of this amount of findings, it is possible to realize that CHWs recognize

themselves as caregivers, or rather, that they preserve ways to care that are experienced in the

daily work in FHS, but the centrality of the biomedical model is still present.

Keywords: Primary Health Care; CHW; Care; Family Health Strategy.

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Mapeamento cronolgico da insero do ACS na sade pblica no Brasil ..........21

Quadro 2 Perfil dos ACSs......................................................................................................55

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABS - Ateno Bsica Sade

ACS - Agente Comunitrio de Sade

AIDS - Sndrome da Imunodeficincia Adquirida

APS - Ateno Primria Sade

CAAE - Certificado de Apresentao para Apreciao tica

CEP - Comit de tica e Pesquisa

CNCT - Catlogo Nacional de Cursos Tcnicos

DNSP - Departamento Nacional de Sade Pblica

DOTS - Tratamento Supervisionado

DST - Doena Sexualmente Transmissvel

EEAAC Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa

ENSP - Escola Nacional de Sade Pblica

EPSJV - Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio

eSF - Equipe Sade da Famlia

ESF- Estratgia Sade da Famlia

FIOCRUZ - Fundao Oswaldo Cruz

FMS - Fundao Municipal de Sade

FNS - Fundao Nacional de Sade

F. Sesp - Fundao Servio Especial de Sade Pblica

GOBI - Growth monitoring (acompanhamento do crescimento), oral rehydration (reidratao

oral), breast-feeding (aleitamento materno) e immunization (imunizao)

HIV - Vrus da Imunodeficincia Humana

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

MS - Ministrio da Sade

NE - Nordeste

NEPS - Ncleo de Educao Permanente em Sade

OSS - Organizao Social de Sade

PACS - Programa de Agente Comunitrio de Sade

PECs - Programas de Extenso de Cobertura

PET- Sade - Programa de Educao pelo Trabalho para a Sade

Piass - Programa de Interiorizao de Aes de Sade e Saneamento

PNAB - Poltica Nacional de Ateno Bsica

Pnacs - Programa Nacional de Agente Comunitrio de Sade

PROESF - Projeto de Expanso e Consolidao da Sade da Famlia

PSF - Programa Sade da Famlia

SES - Secretarias Estaduais de Sade

Sesp - Servio Especial de Sade Pblica

SUS - Sistema nico de Sade

TCLE - Termo de Consentimento Livre Esclarecido

UBS - Unidade Bsica de Sade

UFF - Universidade Federal Fluminense

UNICEF - Fundo das Naes Unidas para a Infncia

VD - Visita Domiciliria

SUMRIO

I NTRODUO......................................................................................................................15

1.1 JUSTIFICATIVA............................ ....................................................................................19

1.2 OBJETIVO ......................................................................................................................... 20

1.2.1 Objetivo geral........................................................... ........................................................20

1.2.2 Objetivos especficos................................................. ......................................................20

II REFERENCIAL CONCEITUAL..................................................................................... 21

2.1 HISTORIANDO A CHEGADA DO ACS NO SUS: a sade pblica no Brasil conquista

um novo profissional............................................................................................... ..................21

2.2 FRAGMENTOS DA TRAJETRIA DO CUIDADO....................................................... 35

2.2.1 A diversidade das concepes sobre cuidado em sade................................................. . 38

2.2.2 Mltiplos olhares sobre modos de cuidar........................................................................ 44

2.3 BREVE REFLEXO SOBRE OS MODOS DE CUIDADO DO ACS: buscando uma

ao singular............................................................................................................................. 46

III ABORDAGEM METODOLGICA............................................................................... 51

3.1 CAMINHO METODOLGICO........................................................................................ 51

IV RESULTADOS: anlise e discusso................................................................................55

4.1 COMPONDO O PERFIL DOS ACSs MARIA(s) E JOO............................................... 55

4.2 DESVELANDO UM RELICRIO DE POSSIBILIDADES DOS MODOS DE CUIDAR

DO ACS.................................................................................................................................... 57

4.2.1 Primeira Categoria A singularidade de percepes sobre os modos de

cuidado...................................................................................................................................... 57

4.2.2 Segunda Categoria Descontinuidade e fragilidade do processo de capacitao para o

cuidado......................................................................................................................................64

4.2.3 Terceira Categoria Facilidades e tenses no processo de cuidar na ESF......................67

V CONSIDERAES FINAIS............................................................................................. 71

REFERNCIAS...................................................................................................................... 74

LISTA DE APNDICES................................................................................................ ....... 81

APNDICE A Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ......................... 82

APNDICE B QUESTIONRIO DE CARACTERIZAO: Perfil dos Agentes

Comunitrios de Sade (ACSs) .......................................................................................... .. 83

APNDICE C - Roteiro do Grupo Focal.............................................................................. 84

APNDICE D Fragmentos de Depoimentos..................................................................... 85

LISTA DE ANEXOS.............................................................................................................. 86

ANEXO A Parecer consubstanciado do CEP.................................................................... 87

ANEXO B Autorizao para a realizao da pesquisa.................................................... 90

ANEXO C CROQUIS DE CUIDADO: conjunto de imagens ilustrativas referentes ao

Grupo Focal............................................................................................................................. 91

15

I INTRODUO

A minha trajetria de formao e a apropriao do tema PARA ALM DAS

PRTICAS DE CUIDADO EM SADE: o desafio dos modos de cuidar dos Agentes

Comunitrios de Sade (ACSs) vm se constituindo a partir do entendimento da prtica

deste profissional como sujeito de potncia para mudanas da realidade do territrio em que

atua, ora como sujeito social, ora como agente1 poltico, ora ainda como profissional e

cidado.

A aproximao e a busca de reflexes sobre os modos de cuidado dos profissionais de

sade, e aqui mais especificamente sobre a prtica do ACS2, vm se aflorando desde a minha

graduao em Enfermagem e Licenciatura na Escola de Enfermagem da Universidade Federal

Fluminense (UFF). Assim, em diferentes momentos, compartilhei experincias de cuidado

com os ACSs em estgios curriculares nos municpios de Itabora - RJ e de Niteri - RJ e,

nestes cenrios, pude com eles aprender a olhar e observar os mltiplos e diferenciados modos

de vida das famlias em suas residncias, sobretudo quando pude acompanh-los nas visitas

domicilirias (VD). Cada um deles, a seu modo ou contexto de ser-fazer-refletir, inseria-me

como parceira no cotidiano de produzir sade e prestar cuidado no territrio e, mais

intimamente, em sua microrea (ou seja, menor espao do territrio sob a responsabilidade do

ACS). Deste modo, com eles aprendi, reaprendi e apreendi saberes e prticas de cuidado em

sade.

Uns com um tom mais de liderana conheciam todos os usurios do territrio e me

apresentavam e alertavam sobre os problemas ou limitaes da comunidade, ou de um

determinado usurio, ou ainda as vrias possibilidades de fazer sade em seus respectivos

territrios.

1Apontamos que quando utilizamos em nossos escritos o termo agente, nossa inteno nomear um agente de

ao.

2Assinalamos que no dado estudo para identificar o profissional de sade, Agente Comunitrio de Sade,

utilizamos, alm da forma por extenso j mencionada, tambm em forma da sigla ACS. E alguns autores que

trazemos e compartilhamos de algumas reflexes utilizam e, logo, trazemos tambm aqui o termo Agente.

16

Outra experincia de parceria de cuidado em sade aconteceu com minha participao

no PET-Sade (Programa de Educao pelo Trabalho para a Sade) na UFF e Fundao

Municipal de Sade (FMS) de Niteri. Neste investimento que fiz para me aproximar e

conhecer a realidade do territrio onde a sade e a doena circulam, os ACSs atuaram como

guias ou condutores desbravadores ao percorrerem conosco vielas, becos e morros do bairro

Engenhoca, em Niteri.

J no contexto da Residncia Multiprofissional em Sade da Famlia, realizada na

Escola Nacional de Sade Pblica (ENSP), em que estive inserida por dois anos em uma

Clnica de Sade da Famlia no municpio do Rio de Janeiro RJ, o contato cotidiano com os

ACSs me despertava, a cada dia, um querer conhecer sobre as prticas desses ACSs em seus

territrios de ao.

Nesta conjuntura de prxis, na Residncia em Sade da Famlia, pude ainda conhecer,

acompanhar e aprender com as peculiaridades dos Agentes Comunitrios de Sade do

municpio de Pira - RJ, em uma vivncia singular durante o percurso da realizao de Estgio

optativo (modalidade de ensino prtico em que o aluno Residente faz escolha por um

especfico cenrio para realizao de estgio). Diante dessas ricas experincias, elenco

algumas questes que me acompanham, as quais buscarei refletir: O ACS se reconhece como

sujeito do cuidado em sade? Como este profissional vem desenvolvendo os modos de

cuidado nos cenrios da Ateno Bsica Sade (ABS)3?

Conhecer os modos de cuidado dos ACSs poder contribuir para o meu processo de

formao enquanto profissional de sade e, mais especificamente, como enfermeira que

estuda, reflete, atua no Sistema nico de Sade (SUS) e que reconhece os ACSs como

profissionais-chave para a reorientao dos sistemas locais de sade. Para contextualizar a

apropriao da temtica, discorrerei, a seguir, sobre um breve histrico da trajetria de

insero dos ACSs no campo da sade.

Ao percorremos a historicidade dos modelos de ateno sade do Brasil, salientamos

que, no que se refere aos cenrios de ABS, o trabalho em equipe apropriado pelos servios

3 Optamos por utilizar o termo Ateno Bsica Sade (ABS) por ter surgido e ser frequentemente utilizado no

Brasil, ao invs de Ateno Primria Sade (APS), que utilizado mundialmente.

17

como uma forma de responder, com qualidade, s diferentes necessidades e demandas de

sade dos usurios e de suas famlias. Debruamo-nos, assim, a pensar sobre a histrica

insero dos ACSs nestes cenrios e no exerccio destes na ABS.

Em 1991, o Ministrio da Sade (MS) criou o Programa Nacional de Agentes

Comunitrios de Sade (Pnacs), institucionalizando uma srie de experincias prticas em

sade que se desenvolviam em diversas regies do pas, porm de forma isolada e focal,

atendendo populaes em situao de maior risco sade. Em 1992, o Pnacs foi transformado

em Programa de Agentes Comunitrios de Sade (PACS), nomenclatura que permanece at o

presente e que se difundiu nacionalmente (MOROSINI; CORBO; GUIMARES, 2007).

Moyss (2011) tambm destaca que como uma possvel resposta ao desafio de

reorientar o modelo de ateno no espao poltico-operacional, o MS lanou o Programa

Sade da Famlia (PSF), que, em 1998, passou a ser chamado de Estratgia Sade da Famlia

(ESF) por ser considerada estratgia estruturante dos sistemas municipais de sade.

Perspectiva esta que fortalece a ideia da prtica de sade para alm do pontual, passando a ser

ampliada, contnua, e humanizada, muito alm de um programa. Esta proposta apoia o

trabalho em equipe e tem o ACS como mediador. Nesse sentido, Stotz; David; Bornstein

(2009, p. 493), dizem que preciso reconhecer que, de todos os profissionais, o ACS o que

se encontra mais prximo das pessoas da comunidade e dos seus modos de viver. Ele o que

se chama de elo entre a comunidade e os servios de sade. Seu trabalho tem uma funo

mediadora.

O recorte histrico comprova a importncia do trabalho em equipe, da

multiprofissionalidade, da interdisciplinaridade e do ACS como figura-chave, ou seja,

elemento nuclear e potencializador das aes da ESF. Este tem sua identidade profissional

ainda em fase de consolidao, convive com as necessidades de sade a serem trabalhadas

tambm pelos demais profissionais de sade na prestao de um cuidado vivo e resolutivo,

contribuindo para a mudana do modelo mdico-curativista ainda vigente, mas em fase de

reorientao.

Em 2002, pela Lei n. 10.507, foi criada formalmente a profisso de ACS (BRASIL,

2002a). Posteriormente, o Ministrio da Sade e o Ministrio da Educao instituem o

Referencial Curricular para Curso Tcnico de Agente Comunitrio de Sade (BRASIL, 2004),

haja vista que as mudanas que foram ocorrendo nos processos de trabalho refletiram em

18

alteraes no requisito de escolaridade dos ACSs e nas disputas em torno da sua formao.

Subsequente Lei n. 11.350 de 2006 (BRASIL, 2006a) que revoga a Lei n. 10.507

regulamentando as atividades dos ACSs. Outros documentos que so dignos de nota em

relao constituio do processo de trabalho dos ACSs so os seguintes manuais lanados

em 2009 pelo MS: Guia Prtico do Agente Comunitrio de Sade e O trabalho do Agente

Comunitrio de Sade. Manuais estes que visam apresentar o conjunto de atividades a serem

desenvolvidas especificamente pelos ACSs. Quanto a estes documentos, o dado guia

apresenta o seguinte objetivo: oferecer subsdios para o desenvolvimento do trabalho do

ACS (BRASIL, 2009a, p.09).

Percorrendo essa trajetria de avanos e desafios da insero dos ACSs, pontua-se,

ainda, as atribuies destes profissionais descritas na Poltica Nacional de Ateno Bsica

(PNAB), publicada inicialmente em 2006 e atualizada em 2012. Nesta ltima verso, so

delineadas oito funes especficas dos Agentes Comunitrios de Sade, que trafegam entre

cadastro, orientaes, atividades educativas, VD, acompanhamento das famlias, entre outras

(BRASIL, 2012a). Vale ainda destacar que mais recentemente, atravs da Lei n. 12.994

(BRASIL, 2014), o piso salarial profissional nacional foi institudo, alm das diretrizes como

guia para o plano de carreira dos ACSs. Nesse sentido, torna-se evidente que o cuidado est

ancorado dentre suas aes.

Assim, enfatiza-se que a elaborao destes documentos vem sendo uma das maneiras

concretas para orientar as prticas dos Agentes Comunitrios de Sade diante da

complexidade do cotidiano de prestar o cuidado em sade da famlia. Neles esto contidas

diretrizes para a realizao de um cuidado que trabalhe a promoo de sade e a preveno de

agravos por meio de aes educativas e assistenciais. Entretanto, por meio das vivncias em

alguns cenrios, pode-se pontuar que os ACSs continuam com habilidades e saberes ainda

pouco trabalhados, reproduzindo modos de fazer que, por vezes, no expressam a plenitude de

suas potencialidades no cotidiano de fazer-sade.

19

1.1 JUSTIFICATIVA

O fazer-sade uma atividade realizada por uma equipe profissional no cotidiano da

ESF. Esta composta por mdico, enfermeiro, tcnico de enfermagem e Agente Comunitrio

de Sade. Todos possuem aes especficas definidas e tambm aes realizadas de forma

cooperativa. As aes dos ACSs possuem significativa relevncia por colocar em conexo o

usurio e os demais profissionais de sade. Ele contribui, de fato, para a adeso ou no do

usurio ao sistema de sade. Logo, refletir sobre os modos de cuidado dos ACSs relevante e

justifica-se.

De acordo com o documento O trabalho do ACS (BRASIL, 2009b, p.24), o principal

objetivo do trabalho do Agente Comunitrio de Sade de contribuir para a qualidade de

vida das pessoas e da comunidade. Diz ainda que o trabalho em sade tem uma dimenso de

cuidado humanizado insubstituvel, que ocorre no momento da interao com o usurio nesse

encontro programado para produzir cuidado. E ratifica a importncia de toda equipe assumir a

tarefa de cuidar do usurio, reconhecendo que, para abordar a complexidade do trabalho em

sade, so necessrios diferentes olhares, saberes e fazeres (BRASIL, 2009b, p.34-35).

Uma vez compreendido que os ACSs tm modos especficos de cuidado nos

respectivos territrios de ao, relevante problematizar que modos de cuidado so estes e se

esses sujeitos se reconhecem como agentes de cuidado no contexto da ESF.

Destarte, ratifica-se que a importncia deste estudo baseia-se no fato de possibilitar

desvendar, conhecer e (re)conhecer os modos de cuidado de fazer-sade dos ACSs nos

cenrios de ABS, de perceber e divulgar a importncia desse ator-social para a construo de

um cuidado vivo, presente nos reais territrios deste pas.

Pretende-se com esta pesquisa fortalecer o SUS, mais precisamente militar e refletir

sobre a ESF, como uma das propostas inerentes ao processo de mudana do modelo de

ateno sade curativista, tendo o ACS como um dos profissionais de sade, que

contribuem para essa transformao. Com o seu olhar para alm da doena, ou seja, com um

olhar vivo e pulsante de um agente verdadeiramente de sade, que contribui para essa

reorientao da prtica.

20

Estudos sobre os modos de cuidado do Agente Comunitrio de Sade, como tambm

dos demais profissionais de sade da famlia, precisam ser desenvolvidos para que, diante

deste movimento em constante resilincia, seja possvel aprender, a fazer e a refletir sobre os

modos de cuidado nosso/do outro/da gente.

Nesse sentido, faz-se necessrio clarear o vocbulo modos de cuidar, que se faz

presente em todo nosso estudo, uma vez que autores como Jos Ricardo Ayres e Acioli

utilizam a expresso prticas de sade, em que h uma mescla de objetividade e

subjetividade. Todavia, optou-se por utilizar modos de cuidar, pois, como desenvolvemos

posteriormente, acreditamos ser um avano pensarmos alm da prtica, ou seja, a partir de

uma perspectiva de ser-fazer-refletir diante de um contexto de crises, que tambm incide no

campo da sade. Dessa forma, trazemos essa construo alternativa que consideramos ser de

grande valia, a partir de um leque de possibilidades e de tantos outros encabulamentos, que

ladeiam o trabalho do ACS.

1.2 OBJETIVOS

1.2.1 Objetivo geral

- Compreender como os ACSs percebem e realizam modos de cuidado nos cenrios da ESF.

1.2.2 Objetivos especficos

- Identificar os modos de cuidado presentes no cotidiano de trabalho dos ACSs;

- Analisar os modos de cuidado no trabalho cotidiano dos ACSs na interface com os demais

profissionais da ESF;

- Problematizar como os ACSs contribuem para o desenvolvimento dos modos de cuidado na

ABS.

21

II REFERENCIAL CONCEITUAL

2.1 HISTORIANDO A CHEGADA DO ACS NO SUS: a sade pblica no Brasil conquista

um novo profissional

Para iniciar o itinerrio sobre o surgimento do Agente Comunitrio de Sade, ser

trilhado nestas primeiras composies um caminho histrico com o intuito de desvelar em

algumas estaes de conhecimentos apreendidas alguns Programas, Estratgias, Portarias,

Leis e Polticas presentes ao historiarmos sobre o campo da sade luz do Sistema nico de

Sade.

Quadro 1 - Mapeamento cronolgico da insero do ACS na sade pblica no

Brasil

Ano de publicao

e Autoria

Denominao Caracterizao

Momento

1942 Ministrio

da Sade,

Ministrio da

Educao e Estados

Unidos

Servio Especial de

Sade Pblica Sesp

Atuao das visitadoras sanitrias (auxiliares) que

iniciaram as primeiras aes em sade pblica.

Destaca-se que as atividades exercidas pelos ACSs

um tempo depois so diferenciadas, ou seja, no

so consideradas como sinnimos das exercidas

pelas visitadoras sanitrias.

Substitudo

por um

programa

posterior

denominado

F. Sesp.

1960 Ministrio

da Sade

Fundao Servio

Especial de Sade

Pblica - F. Sesp

percebida esta fundao como pioneira na

construo de modelos que ampliariam a cobertura

dos servios de sade. Assim, princpios e

diretrizes elaborados neste contexto ainda se

fizeram presentes nas formulaes do Programa

Agente Comunitrio de Sade (PACS) e Programa

Sade da Famlia (PSF).

Substitudo

por um

programa

posterior

denominado

Piass.

Dcada de 70

Ministrio da Sade

Programa de

Interiorizao de Aes

de Sade e Saneamento

Piass

No Piass, o recrutamento de auxiliares locais j era

presente, assim como o engajamento comunitrio.

E no Projeto Devale, h o esboo das primeiras

aes dos Agentes de Sade.

Substitudo

pela criao

de um

sistema de

sade

denominado

de SUS.

1988 Brasil Sistema nico de Sade -

SUS

Com a criao do SUS, institudo pela Constituio

de 1988, uma concepo ampliada de sade passa a

ser instituda e regulamentada como um direito

pblico.

Ativo

1991 Ministrio

da Sade

Programa Nacional de

Agente Comunitrio de

O Pnacs foi criado com o objetivo de unir as vrias

aes cultivadas e espalhadas no pas a partir de

Substitudo

por um

22

Fonte: Elaborado pela autora, a partir de publicaes referentes ao ACS, presentes no observatrio dos Tcnicos em Sade.

Disposto em:< http://www.observatorio.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Trabalhador&Num=16> e do texto, ACS: um trabalhador inventado pelo SUS. Disposto em: . 2015.

Vale a pena trazer luz nessa trajetria histrica o surgimento do Servio Especial de

Sade Pblica (Sesp), em 1942, haja vista ter sido uma cooperao de sade e saneamento

firmada entre o governo brasileiro e os Estados Unidos. Esse acordo internacional se inseria

no esforo de guerra visando atender aos interesses americanos em obter matrias-primas de

importncia estratgica para os pases aliados, em guerra contra a Alemanha, para a produo

de material blico, como borracha e minrios produzidos na Amaznia e Vale do Rio Doce,

Sade Pnacs uma nica orientao com a insero do Agente de

Sade.

programa

posterior

denominado

PACS.

1992 - Ministrio da

Sade

Programa de Agentes

Comunitrios de Sade

PACS

Institui as primeiras atribuies dos ACSs e

regulamenta um salrio-mnimo mensal.

Ativo

1994 - Ministrio da

Sade

Programa Sade da

Famlia PSF

O ACS passa a ser integrante de uma equipe de

sade e suas atribuies so ampliadas em prol da

implementao de um modelo de sade de ateno

integral.

Substitudo

por

indicao do

MS para

ESF.

1997 Ministrio

da Sade

Portaria n. 1886 Aprova as normas e diretrizes do PACS e do PSF e

define atribuies dos ACSs.

No consta

revogao

expressa.

1997 - Ministrio da

Sade

Estratgia Sade da

Famlia ESF

Unidos o PACS e o PSF, passam a estruturar a ESF

no SUS.

Ativo

2002 - Brasil

Lei n. 10.507 A profisso de ACS instituda e incentivou o

processo de formao profissional.

Revogado

2004 Ministrio

da Sade e

Ministrio da

Educao

Referencial Curricular

para Curso Tcnico de

Agente Comunitrio de

Sade

definido o Referencial Curricular para Curso

Tcnico de Agente Comunitrio de Sade.

Ativo

2006 Brasil Lei n. 11.350 Cria o processo seletivo pblico para o ACS com o

intento de desprecarizar as relaes de trabalho.

Ativo

2006 Ministrio

da Sade

Portaria n. 648

Aprova a Poltica Nacional de Ateno Bsica

PNAB (publicada no mesmo ano), estabelecendo a

reviso de diretrizes e normas para a organizao

da ateno bsica a partir do PACS e do PSF.

Revogado

2011 Ministrio

da Sade

Portaria n. 2488 Aprova a PNAB (publicada no ano de 2012),

revisando as diretrizes e normas para a organizao

da ateno bsica, com o PACS e ESF.

Ativo

2014 Brasil Lei n. 12.994 Institui o piso salarial profissional nacional e

diretrizes para o plano de carreira dos ACSs.

Ativo

23

com contrapartida de investimento financeiro em melhorias de sade dos trabalhadores e da

populao da regio. De incio, as atividades do Sesp caracterizavam-se por monitorar, quase

exclusivamente, a situao de sade dos indivduos e da famlia, bem como prevenir e

controlar as doenas transmissveis (LACERDA, 2010; SILVA; DALMASO, 2002a;

TEIXEIRA, 2008). Nesse contexto, salientamos que as visitadoras sanitrias4 [auxiliares]

detinham contato direto e permanente com a populao e realizavam, sobretudo, aes

educativas. Exerciam atividades muito semelhantes a dos Agentes Comunitrios de Sade que

conhecemos hoje.

Um legado consiste nas visitadoras sanitrias. Auxiliares que desenvolviam o

atendimento aos indivduos e s famlias, na unidade e na comunidade, sob superviso e

orientao do enfermeiro. Mediante protocolos estabelecidos, eram responsveis por atender

gestantes e crianas de baixo risco, na unidade sanitria (SILVA; DALMASO, 2002a). As

visitadoras sanitrias, que foram nomeadas de pessoal auxiliar, detinham traos em comum

com o perfil do ACS, mas realizavam algumas tcnicas especficas, tais como vacinao e

realizao de curativos que so diferenciadas.

Ideias estruturantes do modelo dos centros de sade so retomadas em princpios

organizativos da Ateno Primria Sade, de um modo geral, da Estratgia Sade da

Famlia e do trabalho do ACS no Brasil. Neste sentido, as ideias mais significativas so: a

centralidade de um trabalhador, que no da categoria mdica, nem da enfermagem, com o

4Na historiografia da enfermagem de sade pblica, mais especificamente sobre as enfermeiras visitadoras,

observamos que havia um embate das denominaes criadas para design-las: enfermeira visitadora, visitadora,

visitadora de higiene, visitadora sanitria, visitadora de sade, entre outras. No cenrio brasileiro, a partir do

final dos anos de 1920, a visitadora sanitria foi adquirindo prestgio profissional, cada vez mais reconhecida

como um ator importante dos servios de sade pblica. Atuando na rea de conhecimento da educao

sanitria, particularmente por sua atuao nos centros de sade, postos de higiene e atividades de visitao. Falar

sobre a formao de recursos humanos nesse perodo exige colocar em destaque a expanso do papel da mulher

na sociedade brasileira em especial da visitadora sanitria e da enfermeira de sade pblica. Um exemplo

pioneiro foi a Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Sade Pblica (DNSP) embrio da atual

Escola Anna Nery criada em 1921 por Carlos Chagas, uma das primeiras instituies a valorizar o trabalho

feminino. Em So Paulo, o fruto desse esforo inicial veio com a criao, em 1925, do Curso de Educao

Sanitria, ministrado no Centro de Sade Modelo do Instituto de Higiene de So Paulo. O projeto dos centros de

sade possibilitava maior proximidade com a populao carente das cidades e do campo, grande parte afetada

por endemias. A ancilostomase, a malria e a febre amarela atacavam com maior violncia as populaes pobres

daquelas regies. A necessidade premente de enfermeiras para trabalhar nas campanhas sanitrias e a longa

durao do curso de enfermagem conduziram criao do Curso de Educao Sanitria, com requisitos menos

exigentes de formao. Esse curso teria durao de um ano e seis meses e ofereceria experincia terica e prtica

s visitadoras. Aos poucos, as visitadoras foram sendo substitudas por enfermeiras graduadas pela Escola de

Enfermagem da Universidade de So Paulo, a partir da segunda metade dos anos de 1940 (AYRES, L., 2010;

FARIA, 2006).

24

papel de articular conhecimentos dessas reas com aqueles da educao, a prtica da visita

domiciliar e a definio de um territrio de atuao (FONSECA, 2013, p.24).

No ano de 1960, chega ao fim o acordo de cooperao entre o governo brasileiro e

americano, assim o Sesp passou a ser a Fundao Sesp (F. Sesp), vinculada ao Ministrio da

Sade. Destaque para a importncia desta fundao cujos princpios e diretrizes esto

presentes nas formulaes do Programa de Agentes Comunitrios de Sade (PACS) e

Programa Sade da Famlia (PSF), tais como a abordagem integral da famlia, o trabalho nas

unidades de sade e nas comunidades, a adscrio de clientela, a atuao das visitadoras

sanitrias, a hierarquizao e regionalizao dos servios de sade, entre outros (LACERDA,

2010; SILVA; DALMASO, 2006).

Apreendemos com as primeiras experincias exitosas que as visitadoras sanitrias j

detinham a caracterstica de atuar em um dado territrio promovendo orientaes em sade,

realizando visitas domicilirias e acompanhamento das gestantes e das crianas, assim como

os Agentes Comunitrios de Sade de hoje. Destacamos que no incio esses primeiros

projetos/programas destinavam-se populao rural e as visitadoras sanitrias realizavam

algumas tcnicas, tais como vacinao e realizao de curativos.

Na dcada de 70, com a emergncia das discusses sobre Ateno Primria Sade no

mbito internacional, teve incio, no Brasil, programas focalizados na Ateno Primria

Seletiva, que convergiram com o Programa de Interiorizao de Aes de Sade e

Saneamento (Piass) (MENDES, 2002).

Nota-se que dentre os Programas de Extenso de Cobertura (PECs),

institucionalizados como poltica governamental neste perodo, o Piass foi o de maior

expresso. Alm de absorver outros programas importantes, como o Programa de Integrao

de Servios de Sade do Norte de Minas, recobriu, em um primeiro momento, o Nordeste

(NE) e acabou tornando-se objeto de uma proposta de expanso a outras reas rurais do

territrio nacional. Sua finalidade era implementar uma estrutura bsica de sade pblica nas

comunidades de at 20 mil habitantes, bem como contribuir para a melhoria do nvel de sade

da populao local. O Piass propunha-se a desenvolver prticas que se estendiam desde as

questes relacionadas ao meio ambiente at os problemas sanitrios que demandavam ateno

mdica individual (SILVA; DALMASO, 2002a).

25

A proposta de ao para o Agente de Sade, nestas primeiras experincias exitosas,

como no Projeto Devale, inclua: proporcionar a extenso do atendimento aos problemas de

sade da populao rural por meio da aplicao de conhecimentos e execuo de atividades

especficas e orientaes (curativos, vacinas, diagnsticos e tratamento de doenas mais

prevalentes, atendimento criana e gestante, encaminhamentos, primeiros socorros); adotar

uma viso global do indivduo e seu papel na comunidade; incorporar um componente de

discusso desses problemas de sade em funo das condies gerais de vida da populao;

organizar a comunidade para lutar pela sade (SILVA; DALMASO, 2002a, p.35).

O investimento na Ateno Primria cresce com a institucionalizao do SUS em

1988. Conquista dos movimentos populares no processo de redemocratizao do pas, o SUS

formalizado na Constituio a partir da seguinte premissa: A sade direito de todos e

dever do Estado, garantido mediante polticas sociais e econmicas que visem reduo do

risco de doena e de outros agravos e ao acesso universal e igualitrio s aes e servios para

sua promoo, proteo e recuperao (BRASIL, 1988).

Pode-se perceber a valorizao da APS e o desenho do trabalho dos ACSs, no interior

desta, no processo de institucionalizao do SUS. Nossas anlises a partir daqui e a legislao

diretamente relacionada ao trabalho do ACS referem-se a propostas que fundamentam o

PACS (Programa de Agentes Comunitrios de Sade), PSF (Programa Sade da Famlia) e

ESF (Estratgia Sade da Famlia). Alm da Lei n. 10.507 de 2002, que institui a

profissionalizao, da implementao do Referencial Curricular para Curso Tcnico de

Agente Comunitrio de Sade, em 2004, da Lei n. 11.350 de 2006 que define algumas

atribuies do ACS, da PNAB (Poltica Nacional de Ateno Bsica) de 2006, instituda pela

Portaria n. 648 e da PNAB de 2012, estabelecida pela Portaria n. 2.488 e da Lei n.12.994 de

2014, que define o piso salarial nacional do profissional ACS.

A institucionalizao dos Agentes de Sade se concretizou com a criao do Pnacs

pelo Ministrio da Sade nos anos 1991. O Pnacs foi pensado a partir da experincia exitosa

do Programa de Agentes de Sade da Secretaria Estadual de Sade do Cear, implantado em

1987, que reduziu significativamente a mortalidade infantil, e tambm de outras iniciativas

locais de Ateno Primria desenvolvidas em algumas regies do Brasil com a insero de

Agentes de Sade (SILVA; DALMASO, 2006). At ento, esse trabalhador era referido como

Agente de Sade e com a institucionalizao acrescentou-se o termo Comunitrio, passando

a ser chamado de Agente Comunitrio de Sade (RAMOS, 2007).

26

A rea de atuao inicial do Pnacs foi a regio Nordeste, onde se assumiu como

prioridades do trabalho dos Agentes as aes de educao em sade, de mobilizao da

comunidade e de ateno ao grupo materno-infantil (SILVA; DALMASO, 2002a, p.51).

Vale ainda destacarmos que o Pnacs teve o intuito de resgatar variadas experincias de

Ateno Primria que eram cultivadas em todo o Brasil. Sendo assim, com a implementao

do dado programa, primava-se oferecer condies para que as comunidades aprendessem a

cuidar da sua sade, alm de fazer o ACS o elo entre a comunidade e o servio formal de

sade. E, como meta principal, pretendia a reduo da mortalidade infantil de 64 para 30 em

cada 1000 crianas nascidas vivas at o ano de 1994 (BRASIL, [1991? ]; SILVA, 2001).

Com o passar do tempo e a constituio do Pnacs, institucionaliza-se o ACS, que

herdou em seu legado das visitadoras sanitrias as seguintes atribuies: aes de educao

em sade, de ateno ao grupo materno-infantil, e a realizao de VD. E as novas funes

adquiridas esto ligadas terapia de reidratao oral, estmulo ao aleitamento materno,

mobilizao da comunidade, o cadastro das famlias, a fiscalizao da alimentao pblica,

cuidados e medidas do programa da clera etc.

Em 1992, o Pnacs perdeu o termo nacional, passando a chamar-se PACS. Assinaram-

se convnios entre a Fundao Nacional de Sade (FNS) e o Ministrio da Sade e as

Secretarias Estaduais de Sade (SES) para repasse de recursos para custeio do programa e o

pagamento, sob a forma de bolsa, no valor de um salrio-mnimo mensal, aos Agentes

(SILVA; DALMASO, 2002a, p.56).

Para realizar o atendimento ao usurio /famlia/ comunidade, h inicialmente no PACS

um arranjo de cada ACS ser responsvel em sua rea de atuao por um contingente que

podia variar de 100 - 250 famlias, ou um numeral de 750 pessoas em sua completude

(MOROSINI, 2010, p.32).

Dentre as aes vinculadas ao ACS, Souza (2003, p.76) pontua de forma geral as

visitas domicilirias, cadastro das famlias, orientaes em sade, fiscalizao da alimentao

pblica (mercados, feiras), mobilizao da comunidade (hortas comunitrias), cuidados e

medidas do programa da clera etc.

Ainda nesse sentido, Fonseca; Morosini; Mendona (2013, p.538) assinalam que:

27

O Agente Comunitrio de Sade atuava no territrio definido sob a superviso de

um enfermeiro. Realizava um determinado nmero de VD regularmente,

acompanhando e registrando as condies de sade, fornecendo orientaes

preventivas e difundindo tcnicas simples e de alto impacto nos indicadores de

sade, como terapia de reidratao oral, aleitamento materno e incentivo

imunizao, que compem o pacote GOBI5.

Podemos dizer que o ACS passa a contribuir e muito para se pensar e se fazer sade, a

partir de outro escopo, no apenas mdico/curativista/centrado na doena, como era realizado,

sobretudo nos cenrios hospitalares. Dentre os primeiros resultados palpveis e vitoriosos do

PACS, percebe-se j em 1994, segundo Souza (2001, p. 50), os seguintes: reduo da

incidncia de doenas evitveis e deteco precoce das demais, aumento da possibilidade de

exerccio do controle social, no acompanhamento do desempenho do trabalho dos ACSs e da

qualidade dos servios prestados e na reorganizao e redimensionamento da oferta de

servios em funo da morbidade aferida e alterao do perfil da demanda.

Com esses avanos e um longo caminho de possibilidades e desafios a ser percorrido,

cria-se o PSF em que os ACSs passam a se integrar a uma equipe de sade com, pelo menos,

um mdico, um enfermeiro e um auxiliar de enfermagem. O autor mencionado anteriormente

ainda nomeia esse momento de mudana, como uma verdadeira peregrinao, em que os

sujeitos sociais6 envolvidos percorrem quase de porta em porta, em vrios municpios e

estados brasileiros, vendendo as ideias, os princpios, os faris orientadores de uma nova

sade, cuja novidade era de sonhar com os ps no cho colocando no caldeiro as saudades,

esperanas, orgulhos, convices, alegrias e acolhidas, misturando tudo isso, como efeito

protetor, aos males dos confrontos destrutivos (SOUZA, 2001, p. 36).

Com uma proposta diferenciada dos postos de sade tradicionais, aos poucos, o PSF

vai se expandindo, abrindo possibilidades para a construo de novas prticas de sade, em

que a preveno de doenas, promoo da sade, cuidado, cura e reabilitao passam a guiar

5 GOBI, sigla, em ingls, que combina os procedimentos growth monitoring (acompanhamento do crescimento),

oral rehydration (reidratao oral), breast-feeding (aleitamento materno) e immunization (imunizao)

proposto pela UNICEF (Fundo das Naes Unidas para a Infncia) nos anos de 1980, nos marcos da APS

seletiva (FONSECA; MOROSINI; MENDONA, 2013, p.538, grifos dos autores).

6 Souza (2001, p. 35, grifo nosso) nomeia os sujeitos sociais ou ainda vendedores, com um sentido valorativo de

intelectuais sonhadores, militantes de uma tese, indutores de um projeto e provocadores de mudanas.

Formuladores do PACS/PSF, ou seja, vrios tcnicos com experincias em APS (incluindo Souza como sujeito

participante desses fenmenos).

28

as atividades e modos de atuar das equipes de sade. importante pontuar que a implantao

do PSF no foi organizada isolada do PACS.

E no PSF so recomendadas as seguintes atribuies para os Agentes Comunitrios de

Sade: cadastramento das famlias e atualizao das fichas; participao na construo do

diagnstico da comunidade; descrio do perfil do meio ambiente e mapeamento da sua rea

de abrangncia; acompanhamento das microreas de risco; realizao das visitas

domicilirias; acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da sade da criana

(vigilncia de crianas menores de 01 ano em situao de risco, acompanhamento das

crianas de 0 a 5 anos e promoo da imunizao de rotina); acompanhamento das gestantes

(identificar, encaminhar as gestantes para a realizao do pr-natal e acompanhar o

seguimento, atentar aos sinais e sintomas de risco na gestao, nutrio, promoo da

imunizao de rotina, do aleitamento exclusivo, preparo para o parto, ateno, cuidados e

monitoramento ao recm-nascido e das purperas, e VD); monitoramento das diarreias e

promoo da reidratao oral, das infeces respiratrias agudas, com identificao de sinais

de risco e encaminhamento dos casos suspeitos de pneumonia ao servio de sade de

referncia e de dermatoses e parasitoses em crianas; orientao dos adolescentes e familiares

na preveno de DST (doenas sexualmente transmissveis)/AIDS Sndrome da

Imunodeficincia Adquirida), gravidez precoce e uso de drogas; aes educativas: preveno

do cncer crvico-uterino e de mama (encaminhando das mulheres em idade frtil para

realizao dos exames peridicos nas unidades de sade de referncia) sobre mtodos de

planejamento familiar, referentes ao climatrio, e sobre nutrio e sade bucal, alm da

preservao do meio ambiente; busca ativa das doenas infectocontagiosas e apoio a

inquritos epidemiolgicos ou investigao de surtos ou ocorrncia de doenas de notificao

compulsria; superviso dos usurios em tratamento domiciliar e dos com doenas crnicas;

realizao de atividades de preveno e promoo da sade do idoso; identificao dos

portadores de deficincia psicofsica com orientao aos familiares para o apoio necessrio no

prprio domiclio e incentivo comunidade na aceitao e insero social desses usurios,

famlias e comunidade: orientao para a preveno e o controle das doenas endmicas,

sensibilizao para abordagem dos direitos humanos e estmulo participao comunitria. E

outras aes e atividades a serem definidas de acordo com as prioridades locais (BRASIL,

1997, grifos nosso).

29

Ainda assinala-se que a Portaria n. 1.886 (BRASIL, 1997) aprova as normas e

diretrizes do PACS e do PSF com o intuito de regulamentar tanto a implantao quanto a

operacionalizao dos Programas mencionados, uma vez que o Ministrio da Sade

reconhece os dados Programas como importantes estratgias para conduzir uma nova

orientao, assim como a consolidao do SUS a partir da reorientao da assistncia

domiciliar e ambulatorial.

No PSF, as atribuies no territrio /microrea ficam mais especficas, assim o ACS

passa a ter participao na construo do diagnstico da comunidade, na descrio do perfil

do meio ambiente e mapeamento da sua rea de abrangncia, acompanhamento das

microreas de risco e a atualizao das fichas de cadastramento das famlias. Alm das

mulheres e das crianas, passa-se a se acompanhar tambm os idosos, os usurios com

doenas crnicas, os que precisam de tratamento domiciliar e os que so portadores de

deficincia psicofsica, os adolescentes e a sade da mulher, alm do perodo gestacional. E

com maior veemncia o monitoramento de algumas doenas passa a ocorrer: monitoramento

das diarreias e promoo da reidratao oral; monitoramento das infeces respiratrias

agudas, com identificao de sinais de risco e encaminhamento dos casos suspeitos de

pneumonia ao servio de sade de referncia e de dermatoses e parasitoses em crianas; busca

ativa das doenas infectocontagiosas e apoio a inquritos epidemiolgicos ou investigao de

surtos ou ocorrncia de doenas de notificao compulsria; e orientao para a preveno e o

controle das doenas endmicas.

Apreendeu-se que o passo seguinte foi o PSF passar a ser nomeado como ESF (1997),

em que a ideia de um programa passageiro ou ainda a imagem de um programa paralelo ao

SUS com tom hospitalocntrico e de certa forma restritivo foi sendo substituda pela forma de

uma estratgia, estruturante do SUS, em que o modelo de sade passa a compor uma matriz

de aes e servios em sade, sobretudo na ABS7.

Pode-se dizer ainda que o PACS e o PSF integram a ESF, que ganha o status de

modelo de reorientao da Ateno Bsica e articula aes de preveno, vigilncia e

promoo da sade nos territrios adscritos, com o propsito de resolver a maior parte dos

7 Lembrando que optamos por utilizar o termo Ateno Bsica Sade (ABS), mais difundido no Brasil, do que

Ateno Primria Sade (APS).

30

problemas de sade da populao. Nos anos 2000, essa estratgia amplia-se para os grandes

centros urbanos, fortemente apoiada por recursos do Banco Mundial e do MS, alocados por

meio do Projeto de Expanso e Consolidao da Sade da Famlia (PROESF) (FONSECA;

MOROSINI; MENDONA, 2013).

Como afirma Morosini (2009; 2010), compreender a sade da famlia enquanto

estratgia significa tambm consider-la como o vetor que promove a organizao da Ateno

Bsica, por meio de mecanismos indutivos, especialmente financeiros, que dirigem a adoo

desse modelo por parte dos municpios brasileiros. No entanto, preciso demarcar a

contradio em que esta proposta est inserida a partir de trs elementos que constituram o

processo de sua difuso: a simplificao do pacote de ateno oferecido, a precarizao do

vnculo de trabalho da equipe, especialmente do ACS, e o esvaziamento da formao dos

Agentes Comunitrios de Sade. Sendo oportuno ressaltar que a formao simplificada,

associada aos vnculos precrios, configura as principais condies limitantes para o processo

de qualificao profissional desse trabalhador.

Percorrida essas estaes de tempo e aprendizados presentes no histrico de

composio da sade da famlia, destaca-se o novo modo de se pensar e fazer sade em nosso

pas, em que o ACS um trabalhador fundamental. Seja no PACS, no PSF e atualmente na

ESF, percebe-se a importncia desse profissional para a construo dos modos de fazer e de

se prestar o cuidado ao usurio/famlia/comunidade. Uma vez que na ESF ao compartilhar o

sentimento compaixo, vivenciar as fragilidades e fortalezas de uma dada microrea, da

comunidade, de um territrio, o ACS favorece a aproximao do seu mundo de trabalho e de

vida tanto para com os usurios quanto para os demais profissionais de sade,

compartilhando, assim, o seu modo de ser e de cuidar no mundo.

Para clarear alguns sentidos e significados do trabalho do ACS, logo, dos modos de

cuidado em seu cotidiano, trazemos neste momento alguns escritos e reflexes sobre os

Agentes Comunitrios de Sade, que foram reconhecidos como profissionais de sade, aps

anos de luta, pela Lei n. 10.507 (BRASIL, 2002a). Nesse sentido de profissionalizao e

incentivo capacitao, verifica-se que neste novo compilado o manejo de algumas

mudanas, desta maneira o ACS deve: I - residir na rea da comunidade em que atuar; II -

haver concludo com aproveitamento curso de qualificao bsica para a formao de Agente

Comunitrio de Sade; III - haver concludo o ensino fundamental (BRASIL, 2002a).

Verifica-se que, dentre os requisitos para se tornar um ACS, exige-se o ensino fundamental e

31

o curso de qualificao bsica. Notou-se aqui um stil incentivo do processo de formao

profissional.

A exigncia de uma qualificao formal (ensino fundamental), no lugar de saber ler e

escrever, mostra uma direo de sentido que aponta para um determinado tipo de

conhecimento j previsto/ necessrio para um trabalhador da comunidade. Soma-se a isso o

fato de que o curso de capacitao ter seu contedo programtico estabelecido pelo

Ministrio da Sade, o que apaga a possibilidade de priorizao de contedos conforme

anlise especfica do territrio de atuao do ACS (CRREA; PFEIFFER; LORA, 2010,

p.187, grifo nosso).

Como podemos apreender, algumas mudanas vo se fazendo presentes nos processos

de trabalho e da escolarizao dos ACSs, no entanto uma ambiguidade ainda corrente.

David (2001) afirma que nos primeiros projetos essa ambiguidade j era percebida, uma vez

que o ACS era visto como mediador, com grande potencial para o desenvolvimento de

atividades pedaggicas e educativas. Fato que acabava fazendo com que se selecionasse

mulheres com um perfil de liderana ou mobilizao comunitria, pessoas sem escolaridade, o

que permitia, por vezes, a incluso de mulheres analfabetas, deixando em segundo plano o

saber, ou melhor, uma formao tcnica como importante.

Nesse sentido, visualiza-se a formulao, divulgao e implementao em algumas

localidades do Referencial Curricular para Curso Tcnico de Agente Comunitrio de Sade

(BRASIL, 2004) como um avano importante.

Percebe-se que fragilidades para a formao dos ACSs ainda se fazem presentes, haja

vista que dentre as opes de capacitaes, Curso Introdutrio e o Curso tcnico (1.200

horas), muitos Agentes Comunitrios de Sade ainda no puderam cursar um ou outro, ou

ainda nenhum, nem outro. Ainda ratificamos que a formao tcnica do ACS urgente para

que possa realizar com mais qualidade o seu trabalho no SUS, na ESF. Nesse sentido, no

Catlogo Nacional de Cursos Tcnicos (CNCT) formulado pelo Ministrio da Educao, o

ACS descrito como o profissional que (grifo nosso):

Atuando na perspectiva de promoo, preveno e proteo da sade, orienta e

acompanha famlias e grupos em seus domiclios e os encaminha aos servios de

sade. Realiza mapeamento e cadastramento de dados sociais, demogrficos e de

sade, consolidando e analisando as informaes obtidas; participa, com as equipes

de sade e a comunidade, da elaborao, implementao, avaliao e reprogramao

32

do plano de ao local de sade. Participa e mobiliza a populao para as reunies

do conselho de sade. Identifica indivduos ou grupos que demandam cuidados

especiais, sensibilizando a comunidade para a convivncia. Trabalha em equipe nas

unidades bsicas do SUS, promovendo a integrao entre populao atendida e os

servios de Ateno Bsica Sade (BRASIL, 2009c).

A Lei n. 11.350 de 2006 aprova como atribuies do ACS: o registro, para fins

exclusivos de controle e planejamento das aes de sade, de nascimentos, bitos, doenas e

outros agravos sade e a participao em aes que fortaleam os elos entre o setor sade e

outras polticas que promovam a qualidade de vida. E cria o processo seletivo pblico

especificamente para o ACS, haja vista as tnues condies de relaes de trabalho dos

mesmos (BRASIL, 2006a).

Nesta Lei n. 11.350 de 2006 aparece de novo a atribuio de registrar, para fins

exclusivos de controle e planejamento das aes de sade, nascimentos, bitos, doenas e

outros agravos sade, alm da participao em aes que fortaleam os elos entre o setor

sade e outras polticas de promoo de qualidade de vida. Vale ressaltar que o piso salarial

ainda no institudo.

Atentamo-nos, a partir de agora, s atribuies especficas dos ACSs descritas na

Poltica Nacional de Ateno Bsica (PNAB) de 2006, que foi instituda atravs da Portaria n.

648 do ano referido: desenvolver aes que busquem a integrao entre a equipe de sade e a

populao adstrita Unidade Bsica de Sade (UBS), considerando as caractersticas e as

finalidades do trabalho de acompanhamento de indivduos e grupos sociais ou coletividade;

orientar famlias quanto utilizao dos servios de sade disponveis; cumprir com as

atribuies atualmente definidas para os ACSs em relao preveno e ao controle da

malria e da dengue, como previamente estabelecido pela Portaria n. 44/GM, de 3 de janeiro

de 2002 (BRASIL, 2002b). permitido tambm ao ACS desenvolver atividades nas UBS,

desde que vinculadas s atribuies acima (BRASIL, 2006b).

Na PNAB de 2006 - Portaria n. 648 (BRASIL, 2006c), o Agente Comunitrio de

Sade passa a ser designado formalmente como responsvel por desenvolver integrao entre

ESF e a populao, a orientar as famlias quanto utilizao dos servios de sade

disponveis e a cumprir com as atribuies definidas em relao preveno e ao controle da

malria e da dengue.

33

Na PNAB de 2012, instaurada com a Portaria n. 2488 de 2011, constata-se as

seguintes funes: realizar atividades programadas e de ateno demanda espontnea; visitar

mais vezes as famlias com maior necessidade (mdia de uma visita /famlia /ms); combater

alm da dengue e da malria, a leishmaniose e outras doenas, mantendo a equipe informada;

acompanhar as condicionalidades do Programa Bolsa Famlia ou de qualquer outro programa

similar de transferncia de renda e enfrentamento de vulnerabilidades implantado pelo

governo federal, estadual e municipal, de acordo com o planejamento da equipe (BRASIL,

2012a, grifo nosso).

E na PNAB de 2012 (Portaria n. 2488 de 2011), o que aparece de novidade a

possibilidade de o ACS realizar atividades de demanda espontnea, a visitao de uma vez

por ms s famlias consideradas prioritrias, o combate a outras doenas ampliado e o

acompanhamento das condicionalidades do Programa Bolsa Famlia institudo.

Percebemos que algumas aes, como a visitao, as orientaes e educao em

sade, o acompanhamento materno-infantil e a luta/participao popular permanecem como

atribuies dos ACSs por todos estes anos, sendo inclusive ampliadas, uma vez que os

Agentes Comunitrios de Sade passaram a acompanhar, visitar e orientar todos os usurios e

famlias, na unidade, nas escolas, nas casas. Aos poucos, a importncia de se conhecer o

territrio, as fragilidades e fortalezas do ambiente e das pessoas foi sendo valorizada. O

enfoque de novas doenas da clera para a dengue e malria vai sendo legitimado. As

interaes para com a equipe e tambm para com outras instituies, como escola, conselho

tutelar, foram tambm sendo formalizadas e legitimadas.

Outras atribuies como atender demanda espontnea e monitorar programas como o

Bolsa Famlia so funes mais recentes.

Compreende-se que as funes basilares dos ACSs foram mantidas, entretanto entre

idas e vindas surge uma incumbncia aqui e outra acol, que ora esto ligadas mais doena,

ora s atividades burocrticas. Assim, por vezes, o territrio e as pessoas vo dividindo espao

e tempo com o acolhimento, com os registros, com a demanda espontnea e com o Bolsa

Famlia.

Claro que alguns programas e algumas atividades so novatos, todavia reafirmamos

que o tempo para as principais funes do ACS vai sendo capturado por outras atribuies

34

que esto legalizadas, e outras ainda que acontecem no cotidiano de trabalho e de vida, ou

seja, so apenas vivenciadas.

Em 2014, com a Lei n. 12.994, foi institudo o piso salarial profissional nacional do

ACS - fixado no valor de R$ 1.014,00 (mil e quatorze reais) mensais, com jornada de trabalho

de 40 (quarenta) horas exigida. Sendo assim, a Unio passou a prestar assistncia financeira

complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios para o cumprimento do piso

salarial. O valor que fixado para a Unio contribuir corresponde a 95% (noventa e cinco por

cento) do piso salarial, que ser distribudo em 12 (doze) parcelas consecutivas e 1 (uma)

parcela adicional no ltimo trimestre. J em relao elaborao dos planos de carreira dos

ACSs, as seguintes diretrizes devem ser obedecidas: definio de metas dos servios e das

equipes; estabelecimento de critrios de progresso e promoo; adoo de modelos e

instrumentos de avaliao. Outra clusula pertinente nesta Lei, que instituda, refere-se ao

vnculo dos Agentes Comunitrios de Sade. Nesse sentido, ainda vedada a contratao

temporria ou terceirizada de ACSs, salvo na hiptese de combate a surtos epidmicos, na

forma da Lei aplicvel (BRASIL, 2014).

Percebe-se como uma conquista necessria e pertinente a fixao do piso salarial

nacional do ACS. Alm disso, outras mudanas foram aprovadas, tais como o plano de cargos

e carreiras, que em um primeiro instante apontamos como outra aquisio essencial, todavia

se observa nas diretrizes tons de produtividade embutidos. Por exemplo, quando se menciona

atingir metas, critrios para haver a promoo e outros para a avaliao do ACS. Claro que

algumas pontuaes como guias-chaves so necessrias, entretanto a execuo dessas

exigncias na prtica, no cotidiano de trabalho do ACS, por vezes severa, at desumana.

Outro registro dessa Lei, que nos encabula, a brecha que se faz presente de que em

alguns contextos peculiares poder se contratar ou terceirizar os Agentes Comunitrios de

Sade. Morosini; Nunes (apud MATHIAS, 2008, p.24), em entrevista Revista Poli,

singularizam que S no mbito do SUS a profisso de ACS faz sentido, a ligao entre SUS

e ACS muito estreita, o ACS est organicamente ligado ao SUS. Torcemos para a no

privatizao dos ACSs, logo, para a no desestatizao do SUS. Infelizmente, uma

privatizao velada insistente j vem ocorrendo no processo de contratao, de formao de

profissionais de sade e tende a aprisionar/enclausurar tambm o ACS.

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Diante desse enovelado de atribuies que vo aparecendo, sendo algumas

reafirmadas, outras substitudas, outras ainda ampliadas ou revogadas, a profisso ACS vai

aos poucos tendo sua identidade construda.

Diante desse corolrio de atribuies dos Agentes Comunitrios de Sade apresentado,

apreendeu-se que ao realizarem suas tarefas especficas, alm de outras prticas, ora de

maneira individual, ora ainda de forma coletiva, com o intuito de acompanhar a sade,

prevenir doenas, atender s necessidades, promover orientaes aos usurios e famlias, o

ACS tambm cuida. E um cuidado que perpassa por uma linha tnue entre o saber cientfico

e o emprico, ou seja, exercita em seu cotidiano de vida e de trabalho uma prxis em sade da

famlia, com um tom de cuidado tambm de ACS, que est em construo. E, por vezes, ainda

no revelado para si, para a eSF (Equipe Sade da Famlia) ou ainda para o usurio.

2.2 FRAGMENTOS DA TRAJETRIA DO CUIDADO

Para iniciar nossos escritos, em que os diferentes modos de cuidado do Agente

Comunitrio de Sade nos instigam e nos afetam, nos debruaremos sobre alguns dos sentidos

e significados atribudos palavra cuidado e da expresso/fraseologia cuidado em sade com

o intuito de clarear e fundamentar esta praxe, por vezes, ainda a ser desvelada por estes

profissionais de sade.

Nesse sentido, Waldow (1998) entre os seus muitos registros acerca do cuidado, diz

que historicamente as mulheres tm sido associadas a esta prtica. Algumas ocupaes e

profisses, tradicionalmente as da rea da sade, tambm so vinculadas ao cuidar ou ao

papel de ajuda no sentido de incumbncia. Na verdade, todos cuidamos e somos cuidados: na

famlia, nas nossas relaes, na escola. No entanto, em algumas situaes e contextos,

apreende-se que o cuidado assume funes ou papis bem mais caractersticos, tcnicos e

especficos.

Tambm Daher; Santo; Escudeiro (2002) destacam que o cuidado historicamente

feminino, uma vez que a genealogia da prtica de cuidar demonstra que a mesma teve seu

incio restrito ao espao domstico, privado, particular. Desse modo, uma prtica com sua

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origem no interior das famlias e, para sua realizao, demandava apenas um saber emprico,

ou seja, um saber prtico adquirido no fazer cotidiano, passando, assim, de gerao a gerao.

Marin; Giordani (2009) afirmam que o cuidado sempre esteve presente desde o incio,

com a origem das civilizaes. Era exercido como uma prtica instintiva e emprica, por meio

de um tmido tom de reflexo crtica e outros poucos princpios cientficos.

Com o passar dos perodos, tempos e momentos, Zoboli; Fracolli; Chiesa (2013),

indicam que na era capitalista variadas aes no campo da sade [como o cuidado prestado]

se subordinam lgica de mercado, passando a serem organizadas, a partir de uma lgica

privada, tratando a sade como uma mercadoria com/para fins lucrativos.

E mais especificamente na contemporaneidade, Pinheiro (2008, p. 112) faz a seguinte

constatao:

[...]a prtica de pesquisar sinrgica prtica do cuidar e vice-versa, na medida em

que a vida cotidiana evidencia cada vez mais a crescente demanda por cuidado. Mais

que isso, constata-se que a demanda por cuidado vem, dia aps dia, se

complexificando, o que tem exigido cada vez mais a atuao de diferentes sujeitos -

cidados - profissionais, mulheres e homens, cujo outro demandante, cada vez mais

requerer ateno, responsabilidade, zelo e desvelo com seus desejos, suas

aspiraes e especificidades, de modo a inclu-lo na tomada de deciso sobre sua

vida, ou melhor dizendo, sobre sua sade.

Claro que outras intenes, aes e objetivos atravessaram e ainda perpassam pela

maneira em que o cuidado de certa forma construdo conforme a organizao da sociedade.

Entre esses fragmentos iniciais apresentados pelos autores acima mencionados, apreende-se

que o cuidado registrado por alguns como um ato caritativo em tempos remotos, e por

outros como um objeto de compra e venda em tempos mais recentes. Percebe-se, alm disso,

que o cuidado passa a ser objeto de pesquisa, de produo de conhecimento e ao mesmo

tempo uma demanda crescente e cada vez mais complexa.

Questionando aqui e acol esses exemplos de fragmentos presentes na historicidade do

cuidado, elencamos outras definies de cuidado a seguir para embalarmos nossas reflexes,

contentamentos e, por vezes, descontentamentos.

Collire (2003, p.102) pontua que o cuidar uma necessidade imperiosa de todas as

espcies vivas. Desde que surge a vida, os cuidados existem: necessrio, cuidar da vida para

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que ela possa permanecer. Aponta ainda que foi a partir das prticas que nasceram todos

os saberes, mas as mais antigas de todas so as prticas de cuidar (COLLIRE, 2003,

p.117).

Waldow (2008) ainda menciona que o ser humano um ser de cuidado, o ser nasce

com este potencial, portanto todas as pessoas so capazes de cuidar e necessitam, igualmente,

de serem cuidadas. Porm, esta capacidade ser mais ou menos desenvolvida de acordo com

as circunstncias, depender da forma como as pessoas foram cuidadas durante as etapas da

vida. Vrios fatores intervm neste processo, tais como ambiente, cultura, economia, poltica,

religio, entre outros.

Boff (1999, p. 89) alude que:

[...] o cuidado se torna um fenmeno para a nossa conscincia, se mostra em nossa

experincia e molda a nossa prtica. Nesse sentido no se trata de pensar e falar

sobre o cuidado como objeto independente de ns. Mas de pensar e falar a partir do

cuidado como vivido e se estrutura em ns mesmos. No temos cuidado. Somos

cuidado. Isto significa que o cuidado possui uma dimenso ontolgica que entra na

constituio do ser humano. um modo-de-ser singular do homem e da mulher.

Sem cuidado deixamos de ser humanos.

E para revelar o cuidado, outras duas significaes basilares e intimamente ligadas

entre si so colocadas em tela. A primeira designa a atitude de desvelo, de solicitude e

ateno para com o outro. A segunda nasce desta primeira: a preocupao e a inquietao pelo

outro, porque nos sentimos envolvidos e afetivamente ligados ao outro. Os dois significados

fundamentais colhidos da filologia nos confirmam a ideia de que o cuidado mais do que um

ato singular ou uma virtude ao lado de outras. um modo-de-ser, isto , a forma como a

pessoa humana se estrutura e se realiza no mundo com os outros. Melhor ainda: um modo

de ser-no-mundo que funda as relaes que se estabelecem com todas as coisas (BOFF,

1999, p.91-92).

Pinheiro (2008, p. 110-111), mais uma vez contribui conosco ao enveredar que o:

Cuidado um modo de fazer na vida cotidiana que se caracteriza pela ateno,

responsabilidade, zelo e desvelo com pessoas e coisas em lugares e tempos

distintos de sua realizao. O cotidiano que produzido social e historicamente, em

que se pratica o cuidado, o conhecimento, o vivido, se constri a partir do

entendimento de que o dia aps dia, as coisas acontecem sempre, ainda que tudo

mude. Dessa maneira o cuidado consiste em um modo de agir que produzido

como experincia de um modo de vida especfico e delineado por aspectos

38

polticos, sociais, culturais e histricos, que se traduzem em prticas de espao e

na ao de cidados sobre os outros em uma dada sociedade. Da o cuidado

como ato resulta na prtica do cuidar, que, ao ser exercido por um cidado, um

sujeito, reveste-se de novos sentidos imprimindo uma identidade ou domnio prprio

sobre um conjunto de conhecimentos voltados para o outro. O outro o lugar do

cuidado. O outro tem no seu olhar o caminho para construo do seu cuidado,

cujo sujeito que se responsabiliza por pratic-lo tem a tarefa de garantir-lhe a

autonomia acerca do modo de andar de sua prpria vida.

Apreende-se que ser cuidado... cuidar-se.... cuidar, este verbo conjugado na forma

passiva, pronominal e ativa, abraa todas as principais passagens da vida, traduzindo a

indispensvel necessidade dos cuidados sem que para isso haja doena (COLLIRE, 2003,

p.178). CUIDAR... acompanhar os momentos difceis da vida, permitir transpor um limiar,

ultrapassar uma etapa. No entanto, necessrio ser capaz de o viver. ainda necessrio ser

capaz e ter a coragem de o fazer reconhecer (COLLIRE, 2003, p.189).

Assinalamos que os dados autores, de certa forma, se misturam, se conectam em

relao aos significados e sentimentos atribudos ao vocbulo cuidado. E nos revelam que o

cuidado algo prprio do ser humano, que vai florescendo em cada itinerrio de vida, a partir

das experincias, aprendizados e desafios.

2.2.1 A diversidade de concepes sobre cuidado em sade

Para acontecer o encontro de cuidado, vlido aclararmos algumas acepes e outros

dizeres sobre o termo cuidado em sade.

No histrico da sade pblica e coletiva no Brasil, ainda percebido um leque diverso

de formulaes de modelos de ateno sade, de conceitos de sade e de doena. Assim

sendo, constantes enquadramentos, feituras e tantas outras reformulaes perpassam os

Programas, as Estratgias, as Polticas, as Portarias e as Leis que so implementadas no

contexto da sade em nosso pas.

Desse modo, perpassa-se de um modelo de ateno sade curativista, mdico-

centrado, para um com tons sanitaristas. Os documentos do SUS trazem uma proposta de

ateno integral, que vem tentando se fazer presente tambm na prtica. Essa proposta

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visando realizao do cuidado em sade nos revela uma multiprofissionalidade que se

interpe ao biomdico. Contudo, variados desafios e tantos outros atravessamentos polticos,

culturais, de formao etc. contribuem ainda para a continuidade/predomnio da lgica

biomdica na ateno sade.

Ayres, J.R. (2001) discorre e analisa acerca do cuidado em sade a partir da seguinte

conjectura de sade: um projeto de felicidade.

Percebendo a felicidade e a interao entre usurios profissionais de sade ou ainda

dentre profissionais profissionais de sade como importante para se promover o cuidado em

sade, aclaramos Ayres, J. R. (2001, p. 71), que prediz o seguinte:

Cuidar da sade de algum mais que construir um objeto e intervir sobre ele. Para

cuidar h que se considerar e construir projetos; h que se sustentar, ao longo do

tempo, uma certa relao entre a matria e o esprito, o corpo e a mente, moldados a

partir de uma forma que o sujeito quer opor dissoluo, inerte e amorfa, de sua

presena no mundo. Ento foroso saber qual o projeto de felicidade que est ali

em questo, no ato assistencial, mediato ou imediato. A atitude de cuidar no pode

ser apenas uma pequena e subordinada tarefa parcelar das prticas de sade. A

atitude cuidadora precisa se expandir mesmo para a totalidade das reflexes e

intervenes no campo da sade. Como aparece no encontro de sujeitos no e pelo

ato de cuidar, os projetos de felicidade, de sucesso prtico, de quem quer ser

cuidado? Que papel temos desempenhado ns, os que queremos ser cuidadores, nas

possibilidades de conceber essa felicidade, em termos de sade? Que lugar podemos

ocupar na construo desses projetos de felicidade que estamos ajudando a

conceber?

Uma vez entendido que o projeto de felicidade est coligado ao cuidado em sade,

vale ainda nos atermos aos protagonistas do cuidado em sade:

Os protagonistas do cuidado ocupam lugares distintos, mas tais diferenas no

verticalizam a relao. Um dos protagonistas, o cuidador, detm um saber

instrumental especfico, mas o outro, o destinatrio das aes de cuidado, mesmo

fragilizado pelo seu padecimento, e por isso mesmo, detm um saber prtico

indispensvel para as escolhas relevantes ao seu cuidado. No voltar-se presena do

outro no cuidado em sade, deve-se ter claramente quem este outro. Deve-se

compreender e ter uma escuta deste outro como aquele que construiu e constri uma

histria particular de existncia, mas que no separado do mundo que o rodeia em

seus significados compartilhados (ANAS; AYRES, J.R., 2011, p. 658- 659).

Alm disso, da escuta recproca e de tantas outras possibilidades, Ayres, J.R. (2004, p.

85) ainda enuncia que no cuidado em sade:

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[...] a presena do cuidador frente ao outro nunca poder ser a de um estrito

aplicador de conhecimentos, pois um saber instrumental absolutizado substituiria a

responsabilidade e as potencialidades de cuidador (es) e cuidando (s) apropriarem-se

criativamente da instrumentalidade disponvel nas prticas de sade para a

construo de suas possibilidades existenciais mais autnticas, para o advir de seus

projetos de felicidade.

Diante desses primeiros apontamentos quanto ao cuidado em sade, notou-se que os

autores referidos nos atinam com seus escritos sobre felicidade e cuidado em sade. Dentre os

mltiplos aspectos a serem considerados, apreendeu-se a importncia dos protagonistas do

cuidado, da escuta ativa, dos saberes compartilhados e de tantos outros modos de cuidar, que

devem ser cultivados ao se exercitar o cuidado em sade.

Filgueiras; Silva (2011) assinalam que o cuidado em sade resulta de processos de

trabalhos individuais e coletivos, institucionalizados ou no. Envolve relaes entre as

pessoas, trocas afetivas e de saberes, comunicaes e inmeros atos associados entre si, em

que os cuidadores - sejam eles profissionais, semiprofissionais, quase profissionais,

trabalhadores ou prticos - passam a produzir modos de agir para interferirem no processo

sade-doena, mantendo e restaurando a vida. Utilizam, para tanto, diferentes tecnologias do

cuidado, do campo cientfico e tambm emprico.

Sendo assim, Ayres, J.R. (2004, p.84) aponta que preciso ter ateno ao se realizar o

cuidado em sade, na medida em que nossa interveno tcnica tem que se articular com

outros aspectos no tecnolgicos. No podemos limitar a arte de assistir apenas criao e

manipulao de objetos .

O mesmo autor ainda indica o dilogo/a conversao como um campo a ser cultivado.

Os onipresentes e substantivos dilogos que entretecem todo o trabalho em sade no

conformam apenas a matria por meio da qual operam as tecnologias, mas que a conversao,

ela prpria, na forma em que se realiza, constitui um campo de conformao de tecnologias

(AYRES, J.R., 2004, p. 88).

Foi possvel perceber com os dados autores referidos que para se promover o cuidado

em sade, variados tipos de tecnologias so importantes, todavia no se deve confundir

objetos, maquinarias, com pessoas e dilogos, ou seja, conversar, dialogar so pressupostos

inerentes ao cuidado em sade.

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Pinheiro (2008, p.113), afirma que:

Cuidado em sade o tratar, o respeitar, o acolher, o atender o ser humano em seu

sofrimento em grande medida fruto de sua fragilidade social, mas com qualidade e

resolutividade de seus problemas. O cuidado em sade uma ao integral fruto

do entre - relaes de pessoas, ou seja, ao integral como efeitos e repercusses

de interaes positivas entre usurios, profissionais e instituies, que so traduzidas

em atitudes, tais como: tratamento digno e respeitoso, com qualidade, acolhimento e

vnculo. O cuidar em sade uma atitude interativa que inclui o envolvimento e o

relacionamento entre as partes, compreendendo acolhimento como escuta do sujeito,

respeito pelo seu sofrimento e histria de vida.

Para alicerar de maneira mais plena nossas reflexes sobre o cuidado em sade,

elencou-se, a seguir, outras ponderaes, que Ayres, J. R. (2004) nos aclara atravs dos seus

escritos. Para o autor:

[...] qualquer indivduo , de fato, potencial objeto de conhecimento e interveno

[...]. Contudo, nada, nem ningum, pode subtrair a esse mesmo indivduo, como

aspirante ao bem-estar, a palavra ltima sobre suas necessidades [...]. preciso que

o cuidado em sade considere e participe da construo de projetos humanos. Como

vimos, para cuidar h que se sustentar, ao longo do tempo, uma certa relao entre a

matria e o esprito, o corpo e a mente, moldados a partir de uma forma de vida que

quer se opor dissoluo, que quer garantir e fazer valer sua presena no mundo.

Ento foroso, quando cuidamos, saber qual o projeto de felicidade, isto , que

concepo de vida bem-sucedida orienta os projetos existenciais dos sujeitos a quem

prestamos assistncia (AYRES, J.R, 2004, p.84-85).

Assim, percebe-se que a prestao do cuidado pode vir a colaborar para com a

construo dos projetos de felicidade, aspirando junto com os usurios o bem-estar, segundo

as necessidades identificadas, expressas pela voz ativa ou ainda gestos pulsantes dos usurios.

Waldow (2008, p. 89-90) tambm corrobora ao dizer que a preocupao para com o

usurio , antes de tudo, um modo de cuidar:

As duas partes envolvidas na relao, ser cuidado e cuidador, contribuem para ele;

existe responsabilidade, compromisso. O cuidado deve ser, de alguma forma,

completado no outro para assim ser descrita como uma relao de cuidado. A

relao o reconhecimento do encontro humano que implica uma resposta afetiva.

Ayres, J. R. (2004, p. 85) tambm pe em tela o pressuposto de que cada encontro de

cuidado deve ser realizado de forma renovada/refeita/reconstruda, levando em considerao o

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dilogo entre a cincia e a vida, haja vista que: existe uma potencialidade reconciliadora

entre as prticas assistenciais e a vida, ou seja, a possibilidade de um dilogo aberto e

produtivo entre a tecnocincia mdica e a construo livre e solidria de uma vida que se quer

feliz, a que estamos chamando de Cuidado.

Ainda, o dado autor revela que as tecnologias podem ser utilizadas ao se prestar um

cuidado, para isso salienta quanto importncia do profissional de sade ao diferenciar

objetos de sujeitos para que o cuidado seja prestado com qualidade.

Com efeito, a interao teraputica apoia-se na tecnologia, mas no se limita a ela.

Estabelece-se a partir e em torno dos objetos que ela constri, mas precisa enxergar

seus interstcios. Nesse sentido, o Cuidar pe em cena um tipo de saber que se

distingue da universalidade da tcnica e da cincia, como tambm se diferencia do

livre exerccio de subjetividade criadora de um produtor de artefatos. [...] utilizar ou

no certas tecnologias, desenvolver ou no novas tecnologias, quais tecnologias

combinar, quais tecnologias transformar, todas essas escolhas resultam de um juzo

prtico, um tipo de sabedoria diferente daquela produzida pelas cincias. Trata-se de

uma sabedoria que no cria produtos, no gera procedimentos sistemticos e

transmissveis, no cria universais, posto que s cabe no momento mesmo em que os

seus juzos se fazem necessrios. Quando o cientista e/ou profissional da sade no

pode prescindir da ausculta do que o outro (o paciente ou os grupos populacionais

assistidos) deseja como modo de vida e como, para atingir esse fim, pode lanar mo

do que est disponvel (saberes tcnicos inclusive, mas no s, pois h tambm os

saberes populares, as convices e valores pessoais, a religio etc.), ento de fato j

no h mais objetos apenas, mas sujeitos e seus objetos. A a ao assistencial

reveste-se efetivamente do carter de Cuidado (AYRES, J.R., 2004, p. 85-86).

E revela a importncia de conhecer e reconhecer o querer e o no querer dos usurios

ao se realizar o cuidado (AYRES, J.R, 2004, p. 87):

Embora estas cincias ocupem lugar fundamental e insubstituvel, pelo tanto que j

avanaram na traduo de demandas de sade no plano da corporeidade, ao

atentarmos presena do outro (sujeito) na formulao e execuo das intervenes

em sade, precisamos de conhecim