PalograficoEditadoasuhasusa

download PalograficoEditadoasuhasusa

of 27

Transcript of PalograficoEditadoasuhasusa

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    1/27

    O PEDIDO DE COOPERAO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL AOBRASIL NA CAPTURA DO PRESIDENTE DO SUDO

    RESUMOEste trabalho tem como tema a relao de cooperao entre o Tribunal PenalInternacional e o Brasil. Partindo das questes levantadas pelo despacho referente Petio 4625-1, redigido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, seu objetivo saber se as dificuldades em se harmonizar certas disposies do Estatuto doTribunal Penal Internacional com a Constituio brasileira podem impedir o Brasil decooperar com o Tribunal Penal Internacional no tocante deteno e posteriorentrega do Presidente do Sudo, Omar al-Bashir. Analisando o fundamento jurdicodo pedido de cooperao e os pontos de conflito, apontados pela doutrina, conclui-se que no h obstculo para o atendimento do pedido de cooperao, sendo este,pelo contrrio, uma obrigao jurdica do Estado brasileiro.

    Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional Cooperao Internacional -Supremo Tribunal Federal

    ABSTRACTThis work has as its theme the relationship of cooperation between the InternationalCriminal Court and Brazil. Using the issues raised by the order on the Petition 4625-1, made by the President of the Supreme Court, his goal is whether the difficulties toharmonize certain provisions of the Statute of the International Criminal Court to theBrazilian Constitution may prevent Brazil to cooperate with the International CriminalCourt in relation to the arrest and surrender of the President of Sudan, Omar al-Bashir. Analyzing the legal basis of the request for cooperation and conflict pointshighlighted by the doctrine concludes that there is no obstacle to meet the request forcooperation, which is, however, a legal obligation of the Brazilian state.

    Keywords: International Criminal Court - International Cooperation - Supreme Court

    Introduo

    Em 17 de julho de 2009, o Presidente em Exerccio do Supremo Tribunal

    Federal, Ministro Celso de Mello, expediu despacho referente Petio 4625-1, naqual o Tribunal Penal Internacional envia ao Brasil pedido de deteno esubseqente entrega de Omar Hassan Ahmad al-Bashir, atual Presidente do Sudo.Neste despacho o ilustre magistrado suscita importantes questes acerca documprimento ou no do requerimento pelo Brasil, solicitando a manifestao daProcuradoria Geral da Repblica a esse respeito (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL,2009, p. 2).

    O despacho considera a exeqibilidade do pedido de cooperao enviadopelo Tribunal Penal Internacional em face das controvrsias jurdicas em torno dacompatibilidade entre determinados artigos do Estatuto de Roma, o tratado que criae regulamenta o Tribunal Penal Internacional, e a Constituio do Brasil. Dentre as

    controvrsias destaca-se a irrelevncia da imunidade de Omar al Bashir perante oTribunal Penal Internacional frente ao costume do Brasil em se respeitar aimunidade de Chefes de Estado e a ausncia, por parte do Estatuto de Roma, de

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    2/27

    2

    certas garantias presentes no artigo 5 da Constituio Federal (SUPREMOTRIBUNAL FEDERAL, p. 3 e 7).

    Adotando como premissas os questionamentos citados pelo despacho doPresidente em exerccio do Supremo Tribunal Federal, o presente artigo pretende

    analisar o fundamento jurdico do pedido de cooperao enviado pelo Tribunal aoBrasil para descobrir se as discutidas incompatibilidades entre o Estatuto de Roma ea Constituio e a imunidade de Omar al Bashir como Chefe de Estado podem ouno constituir fundamento para a recusa, por parte do Brasil ao pedido decooperao enviado pelo Tribunal Penal Internacional. Considerando que o Estadobrasileiro est inserido em uma comunidade internacional regulada por um conjuntode normas jurdicas de aplicao geral, ser utilizado o mtodo dedutivo, buscandoaplicar estas normas ao caso concreto em questo, recorrendo a pesquisa a fontesbibliogrficas e jurisprudenciais.

    1. A situao em Darfur, Sudo

    A anlise do fundamento jurdico do pedido de cooperao do TribunalPenal Internacional ao Brasil exige um rpido relato acerca da situao determinantedo processo penal internacional em favor do qual se pede a cooperao brasileira.Desde sua independncia, em 1956, o Sudo sofre com uma guerra civil entre seusvrios grupos tnicos. Aps a relativa pacificao do conflito entre o norte e o sul dopas, em 2003, o conflito direcionou-se para a regio de Darfur, no leste do pas, naqual o governo rabe estabelecido voltou-se contra as etnias Fur, Masalit e Zagawa,em sua maioria animistas 1, atacando a populao civil atravs de milciasparamilitares conhecidas como Janjaweed, comprovadamente apoiadas peloexrcito sudans (SMITH, 2007, p. 96 e 97). Desde o incio do conflito mais de doismilhes e meio de pessoas j foram expulsas de suas casas e internadas emcampos, submetidas a assassinatos e estupros coletivos, alm de padecer de fomee doenas (UNITED NATIONS SECURITY COUNCIL, 2007).

    Em 31 de maro de 2005, o Conselho de Segurana da ONU Organizaodas Naes Unidas - adotou a Resoluo n 1593, a qual denuncia ao Procurador doTribunal Penal Internacional a situao em Darfur. O Procurador recebeu paraanlise a documentao reunida por uma comisso da ONU encarregadapreviamente de investigar os fatos, iniciando formalmente as investigaes em 06 de junho de 2005. Em 27 de abril de 2007, o Tribunal emitiu mandados de priso contra Ahmad Muhammad Harun e Ali Mohammed Kushayb, lderes polticos ligados ao

    governo do Sudo, acusados de crimes de guerra e crimes contra a humanidade,somando 51 condutas criminosas que incluem homicdio, extermnio, estupro,tortura, pilhagem de aldeias, transferncia forada de civis e destruio depropriedade privada (WANTED FOR WAR CRIMES, 2008).Desde ento, a conduta do governo sudans tem sido pautada pela no-cooperaoe pelo apoio aos criminosos. O Decreto Presidencial n. 114/06 trouxe uma anistiageral sem especificar quais os crimes em que tal benesse aplicada, como forma degarantir a impunidade dos perpetradores das atrocidades. Nesse sentido, o AltoComissariado para Direitos Humanos da ONU relatava, j em julho de 2006, que: As estruturas sudanesas especialmente criadas para tratar dos crimes em Darfur,como as Cortes Penais Especiais, tem continuamente falhado em realizar a justia e

    processar os comandantes de alto escalo responsveis pelas ofensas aos direitos1 Religies tradicionais inerentes a sociedades autctones de certas regies da Asia, da frica, e das Amricas, que veneram as foras da natureza.

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    3/27

    3

    humanos. (traduo do autor).2 Em 05 de dezembro de 2007, o Procurador doTribunal Penal Internacional, Luis Moreno Ocampo, relatou que o governo do Sudonegava-se a cumprir os mandados de priso expedidos em 27 de abril de 2007,inclusive mantendo um dos acusados cujo mandado de priso foi expedido, Ahmad

    Muhammad Harum, como Ministro dos Assuntos Humanitrios. Desafiava, assim, oTribunal, o Conselho de Segurana e a comunidade internacional (UNITEDNATIONS SECURITY COUNCIL, 2007) enquanto os massacres avanavam aoritmo de dez mil mortos ao ms, sem a adoo de medidas mais efetivas paraenfrentar o grave incidente humanitrio que ali ocorria (UDOMBANA, 2005, p. 1149).

    Em 05 de junho de 2008 o Procurador relatou que o Sudo recusava-se acumprir os termos da Resoluo n. 1593 e que as provas demonstravam que todo oaparato estatal encontrava-se envolvido no cometimento dos crimes. O ConselhoSegurana, presidido pelos Estados Unidos, redigiu a Declarao Presidencial n. 21na qual conclamou as partes envolvidas no conflito em Darfur a cooperar com oTribunal Penal Internacional (BURNIAT, 2008, p. 1 e 10). Em 14 de julho de 2008, oProcurador solicitou Cmara de Pr-Julgamento I do Tribunal Penal Internacionalque emitisse um mandado de priso para Omar Hassan Ahmad al-Bashir, presidentedo Sudo por crimes de guerra, crimes contra a humanidade e pelo crime degenocdio, por ter planejado e executado um plano com o objetivo de destruir partesubstancial das etnias Fur, Masalit e Zagawa enquanto tais (INTERNATIONALCRIMINAL COURT, 2008).

    Em seu relatrio de 03 de dezembro de 2008, o Procurador demonstrou, pormeio de fatos, que o presidente Bashir mentia ao afirmar seus esforos pela paz ereconciliao com os rebeldes, e ainda que seu governo ignorava a DeclaraoPresidencial do Conselho de Segurana n 21 (INTERNATIONAL CRIMINALCOURT THE OFFICE OF THE PROSECUTOR, 2008, p. 7). Em posteriorcomunicado imprensa, O Procurador enfatizou a necessidade do Conselho deSegurana da ONU responsabilizar internacionalmente o Sudo por suas atitudes econclamou a comunidade internacional a colaborar no fornecendo apoio poltico oufinanceiro a Omar al Bashir e aos indivduos com priso decretada, congelando suascontas correntes no exterior (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT OTP PRESSRELEASE, 2008). Luis Moreno Ocampo encerra seu relatrio de 03 de dezembropara o Conselho de Segurana da ONU observando quele rgo que

    Vocs solicitaram interveno judicial. Eu investiguei aqueles quepossuem maior responsabilidade. Todos os mandados de priso etodos os pedidos de execuo dos mandados de priso foramtornados pblicos. No h outros. Ahmad Harun e Ali Kushaybdevem ser entregues Corte. Todas as partes envolvidas no conflitodevem respeitar Lei. A deciso de um pedido de emisso de ummandado de priso contra o Presidente Al-Bashir est agora nasmos dos juzes. O Conselho deve estar preparado. Se os juzesdecidirem emitir um mandado de priso contra o Presidente Al-Bashir, existir a necessidade de uma ao unida e consistente paragarantir sua execuo. O Presidente Al-Bashir insistir em negarseus crimes e oferecer algumas palavras. O Presidente Al-Bashirinsistir em conseguir sua proteo. A comunidade internacional nopode ser complacente com os crimes. As aes criminosas do

    2 Sudanese structures specifically set up to deal with crimes in Darfur, such as the Special CriminalCourts, have continually failed to deliver justice and to prosecute high-level commanders responsiblefor human rights offenses (STOMPOR, 2007, p.12).

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    4/27

    4

    Presidente Al-Bashir no podem ser ignoradas. Declaraes decessar-fogo seguidas por bombardeios, negativas de estupros emmassa ou promessas de justia concomitantes com a tortura detestemunhas no devem ser apoiadas. A comunidade internacionalno pode ser parte de qualquer acobertamento de genocdio oucrimes contra a humanidade. (traduo do autor). 3

    Em 04 de maro de 2009, a Primeira Cmara de Pr-Julgamento do TribunalPenal Internacional expediu mandado de priso contra Omar Hassan Ahmad alBashir considerando que existem fundamentos relevantes para se acreditar que oPresidente do Sudo criminalmente responsvel por apoiar e incentivar a prticade crimes de guerra (ordenar ataques intencionais populao civil e pilhagem dealdeias) e crimes contra a humanidade (assassinatos, imposio a populaes decondies crticas de sobrevivncia, transferncia forada de populaes, tortura eestupro) (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 2008). Como resposta o Omar al

    Bashir desafiou a comunidade internacional em repetidos discursos a cumprir osmandados de priso, expulsou as principais organizaes internacionais queprestavam ajuda humanitria s vtimas do conflito bem como mandou prender etorturar lderes de organizaes de ajuda humanitria sudanesas por supostamentecolaborar com o Tribunal Penal Internacional.

    2. A obrigao de cooperar do Brasil

    Comum s vrias correntes de pensamento relativas natureza do DireitoInternacional, o fundamento da existncia de obrigaes assumidas no planoexterno entre sujeitos de Direito Internacional fundamenta-se no prprio princpio do

    pacta sunt servanda (DIHN, 2003, p. 776). Independentemente de como secaracteriza a ordem internacional, consenso que Estados e organizaesinternacionais tem o dever de cumprir as obrigaes que mutuamente assumementre si especialmente atravs de tratados podendo ser responsabilizadosinternacionalmente pela no observncia do dever previamente assumido. Quando oTribunal Penal Internacional envia um pedido de cooperao ao Brasil em verdadese est demandando o cumprimento de um dever previamente assumido por nossoEstado frente ao Tribunal, nos termos de uma obrigao internacional resultante daratificao do Estatuto de Roma, atravs do Decreto n. 4388/02.

    Para o Tribunal Penal Internacional a cooperao dos Estados fundamental para a efetividade do procedimento judicial. Tribunais internacionaisno possuem foras de segurana prprias, portanto, so as autoridades estatais ouos representantes de organizaes internacionais que iro executar seus mandados

    3 You requested judicial intervention. I investigate those bearing the greater responsibility. All arrestwarrants, and all the requests for arrest warrants, have been made public. There are no others. Ahmad Harun and Ali Kushayb must be surrendered to the Court. All parties to the conflict mustrespect the law. The decision on the request for an arrest warrant against President Al Bashir is nowin the hands of the Judges. The Council must be prepared. If the judges decide to issue an arrestwarrant against President Al Bashir, there will be a need for united and consistent action to ensure itsexecution. President Al Bashir will insist to deny his crimes and will offer a few words. President AlBashir will insist to get your protection. The International community cannot conceal the crimes.President Al Bashir criminal actions should not be ignored, statements of ceasefire followed bybombings, denial of massive rapes or promises of justice while torturing the witnesses should not besupported. The international community cannot be part of any cover up of genocide or crimes againsthumanity (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT- THE OFFICE OF THE PROSECUTOR, 2008, p.8).

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    5/27

    5

    e requerimentos sendo, assim, cruciais para realizar prises, colher provas e obtertestemunhos (CASSESE, 1999, p. 164). Sobre a obrigao de cooperar MurielUbda afirma que

    A obrigao de cooperar com as jurisdies penaisinternacionais uma necessidade, seu respeito condiciona aeficcia delas, por conseguinte a sua razo de ser e, enfim,sua viabilidade. No entanto, ela traduz aspiraes a uma justia penal internacional que deve ser conciliada com asrealidades da sociedade internacional, composta, sobretudopor Estados soberanos preocupados em presumir suaindependncia. imagem do direito internacional, a obrigaode cooperar no homognea: seus elementos constitutivosvariam em funo da jurisdio, do aspecto da cooperao edo destinatrio da obrigao levada em conta (traduo doautor).4

    O Captulo IX do Estatuto de Roma estabeleceu a cooperao internacionalentre o Tribunal e os Estados sob trs aspectos: cooperao legislativa, cooperaoadministrativa judicial e cooperao executria. A cooperao legislativa diz respeito relao vertical entre o Tribunal e o Estado Parte dizendo respeito obrigaodeste em prever em sua ordem jurdica norma que regulamente as formas decooperao previstas no Estatuto de Roma (HIZUME, 2007, p. 188). O artigo 88prev expressamente que os Estados Partes devero assegurar-se de que o seudireito interno preveja procedimentos que permitam responder as formas decooperao especificadas no Captulo IX do Estatuto. 5 A cooperao administrativa judicial diz respeito relao entre o Tribunal e o Estado Parte no interesse de umainvestigao ou do andamento de um processo, incluindo a entrega de pessoas aoTribunal, a priso preventiva de um indivduo ou realizao de outras formas decooperao. Finalmente, a cooperao executria refere-se ao cumprimento daspenas impostas pelo Tribunal nos Estados que aceitaram receber os indivduoscondenados, chamados de Estados de deteno (OOSTERVELD; PERRY;McMANUS, 2002, p. 768).

    Assim, conforme disposto no Captulo IX do Estatuto de Roma, o TribunalPenal Internacional dirigiu aos seus Estados Parte pedido de cooperao no sentidode se executar o mandado de deteno supracitado caso Omar al-Bashir venha a

    adentrar em seus territrios. neste contexto que o pedido foi dirigido ao Brasil eque se insere a obrigao internacional do Estado brasileiro em cooperar com oTribunal Penal Internacional. O artigo 86 dispe que o Estado Parte tem a obrigaode cooperar plenamente com o Tribunal no inqurito e nos procedimentos contra

    4 Lobligation de cooprer avec les juridictions pnales internationals est une necessit son respectconditionne leur efficacit donc leur raison dtre et, terme, leur viabilit. Nanmoins, elle traduit desaspirations une justice pnale internationale qui doivent tre concilies avec les realits de lasociet internationale, composte avant tout dtats souverains soucieux de prsumer leurindependence. limage du droit international, lobligation de cooprer nest donc pas homogne:ses elements constitutifs varient en fonction de la juridiction, de laspect de la coopration et dudestinataire de lobligation pris en compte (UBDA, 2000, p. 951). 5 No Brasil, o Projeto de Lei n. 4038/2008, em tramitao no Congresso Nacional, traz elementosimportantes para garantir a cooperao entre o Brasil e o Tribunal Penal Internacional. No obstante,o fato de ainda no existir uma Lei especfica no impede o Estado brasileiro de realizar atos decooperao com o Tribunal.

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    6/27

    6

    crimes de competncia do Tribunal, desdobrando-se esta obrigao geral em vriasobrigaes especficas que se desenvolvem nos artigos subseqentes e nas Regrasde Procedimento e Prova do Tribunal (UBDA, 2000, p. 953).

    Entre as obrigaes presentes no Captulo IX e abarcadas pelo dever geral

    de cooperar do artigo 866 encontra-se a obrigao do Estado Parte do Estatuto deRoma de prender e entregar para o Tribunal Penal Internacional o indivduo contra o

    qual exista um mandado de priso. Para o funcionamento do Tribunal PenalInternacional, preciso que os indivduos acusados de praticarem os crimes sob suacompetncia efetivamente se apresentem para o julgamento, visto que o Tribunalno julga revelia. Deste modo, necessrio um procedimento que assegure adeteno e aprisionamento do acusado. Isto s ocorrer se o Estado Parte em cujoterritrio o indivduo se encontre, cumpra a ordem de deteno expedida peloTribunal e o entregue para julgamento. Para evitar os vrios obstculos inerentes aotradicional instituto da extradio, o artigo 102 do Estatuto de Roma diferencia aextradio, ou seja, a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estadoconforme previsto em um tratado, em uma conveno ou no direito interno, daentrega, o que significa a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nostermos do presente Estatuto. Embora exista controvrsia doutrinria no tocante distino entre os institutos (RODAS, 2000, p. 33) entende-se, neste texto, queextradio e entrega no se confundem porque a extradio pressupe areciprocidade inerente s relaes entre Estados, enquanto a entrega corresponde concretizao de um Tratado assinado entre um Estado e uma organizaointernacional (MIRANDA, 2000, p. 26). Assim, a adoo do instituto da entrega sedeve a dois argumentos: o princpio da complementaridade permite aos Estadosperseguir seus nacionais sem entreg-los ao Tribunal; no seria necessrioenfrentar os vrios obstculos presentes no procedimento da extradio (KREB,2000, p. 137 e 138).

    O artigo 91 (2), c, do Estatuto de Roma dispe que o Estado pode criar umprocedimento em separado para a entrega de indivduos ao Tribunal PenalInternacional ou adaptar o procedimento de extradio existente. 7 O artigo 89adverte, entretanto, que o procedimento de entrega no pode ser mais restritivo queo procedimento de extradio. A Regra 184 das Regras de Procedimento e Provadetermina o dever do Estado informar imediatamente o Secretrio do Tribunal PenalInternacional no caso dos indiciados estiverem prontos para a entrega(OOSTERVELD; PERRY; McMANUS, 2002, p. 772). Embora o Estado Parte devaresponder sem demora ao pedido de cooperao que receber do Tribunal o p edido

    de entrega ser transmitido pela via tradicional diplomtica e os Estados so livrespara determinar o procedimento e quais rgos ficaro responsveis pelacooperao (BUCHET, 2000, 974 e 975).

    6 Decreto n. 4388/02 (Estatuto de Roma) Artigo 86. Obrigao Geral de Cooperar. Os Estados Partesdevero, em conformidade com o disposto no presente Estatuto, cooperar plenamente com o Tribunalno inqurito e no procedimento contra crimes da competncia deste.

    7 Decreto n. 4388/02 (Estatuto de Roma) Artigo 91 Contedo do pedido de deteno e de entrega [...]2. [...] c) Os documentos, declaraes e informaes necessrios para satisfazer os requisitos doprocesso de entrega pelo Estado requerido; contudo, tais requisitos no devero ser mais rigorososdos que os que devem ser observados em caso de um pedido de extradio em conformidade comtratados ou convnios celebrados entre o Estado requerido e outros Estados, devendo, se possvel,ser menos rigorosos face natureza especfica de que se reveste o Tribunal.

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    7/27

    7

    necessrio ressaltar, contudo, que no exerccio de um procedimentorelativo entrega como ato de cooperao com o Tribunal Penal Internacional, acerteza e a segurana jurdica em torno da imputabilidade e da culpabilidade doindivduo objeto do mandado de priso maior do que a existente nos

    procedimentos de extradio tradicionais. Como visto anteriormente, fato pblico enotrio o cometimento de crimes de larga escala no Sudo e a vinculao de Omaral-Bashir a eles. O procedimento criminal pelo qual sua priso requeridacaracteriza-se pelos mais altos padres internacionais de respeito ao devidoprocesso legal, pela publicidade e pela transparncia de seus atos. Os valoresfundamentais do Estatuto de Roma so compartilhados pela Repblica Federativado Brasil e uma juza brasileira assina o mandado de priso. descabida, destemodo, qualquer expresso de estranheza ao pedido, bem como qualquer insinuaode arbtrio em relao ao procedimento do Tribunal Penal Internacional.

    O artigo 87, em seu pargrafo stimo, dispe que a recusa ao pedido decooperao ser relatada Assemblia dos Estados Partes ou ao Conselho deSegurana, quando o pedido de cooperao for relativo a um caso cuja origem seencontra em uma referncia do Conselho ao Tribunal. 8 Tal medida, primeira vista,se apresenta como incua , pois o artigo 112, (2), alnea f do Estatuto, que concedecompetncia Assemblia dos Estados Partes para apreciar a no-cooperao deum Estado a um pedido do Tribunal, no prev a aplicao de qualquer sano aoEstado no-cooperante. 9

    Valerie Oosterveld, Mike Perry e John McManus observam, contudo, que necessrio diferenciar um pedido de cooperao cuja base uma investigaodeterminada pelo Conselho de Segurana da ONU como o presente pedido -daquele fundamentado em uma investigao originada na denncia de um EstadoParte ou da iniciativa do Promotor. O Conselho de Segurana da ONU tem seuspoderes baseados no artigo 39 10 da Carta da ONU e o artigo 25 deste documentodispe que todos os membros devem aceitar e executar suas decises. 11 O artigo49, por sua vez, determina que todos os membros da ONU devem cooperar com oConselho de Segurana. 12 Assim, as investigaes nascidas da referncia de uma

    8 Decreto n. 4388/02 (Estatuto de Roma) Artigo 87 Pedidos de cooperao: disposies gerais [...] 7.Se, contrariamente ao disposto no presente Estatuto, um Estado Parte recusar um pedido decooperao formulado pelo Tribunal, impedindo-o assim de exercer os seus poderes e funes nostermos do presente Estatuto, o Tribunal poder elaborar um relatrio e remeter a questo Assemblia dos Estados Partes ou ao Conselho de Segurana, quando tiver sido este a submeter ofato ao Tribunal.

    9 Decreto n. 4388/02 (Estatuto de Roma) Artigo 112 Assemblia dos Estados Partes [...] 2. A Assemblia [...] f) Examinar, em harmonia com os pargrafos 5 e 7 do artigo 87, qualquer questorelativa no cooperao dos Estados;

    10 Decreto-Lei n. 7935/1945 (Carta das Naes Unidas) Artigo 39 O Conselho de Seguranadeterminar a existncia de qualquer ameaa paz, ruptura da paz ou ato de agresso, e farrecomendaes ou decidir que medidas devero ser tomadas de acordo com os artigos 41 e 42, afim de manter ou restabelecer a paz e segurana internacionais.

    11 Decreto-Lei n. 7935/1945 (Carta das Naes Unidas) Artigo 25 Os membros das Naes Unidasconcordam em aceitar e executar as decises do Conselho de Segurana, de acordo com a presenteCarta.

    12 Decreto-Lei n. 7935/1945 (Carta das Naes Unidas) Artigo 49 Os membros das Naes Unidasprestar-se-o assistncia mtua para a execuo das medidas determinadas pelo Conselho deSegurana.

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    8/27

    8

    situao pelo Conselho de Segurana, de acordo com os autores, podem originarrequisies de cooperao obrigatrias a qualquer membro da ONU e no apenasaos Estados Partes do Tribunal Penal Internacional (OOSTERVELD; PERRY;McMANUS, 2002, p. 789). Alm disso, sendo o pedido de cooperao resultado de

    uma resoluo prvia do Conselho de Segurana da ONU, este poder considerar odescumprimento do pedido como um descumprimento da prpria resoluo e adotarmedidas sancionatrias contra o Estado no o cumpriu, nos termos do Captulo VIIda Carta da ONU.

    2.1. A Questo das imunidades

    Para o Tribunal Penal Internacional, a questo das imunidades e do foroprivilegiado central, visto que na imensa maioria dos casos, os crimes sob suacompetncia so cometidos por funcionrios do Estado agindo de acordo comordens de pessoas que se encontram protegidas por imunidades em razo doexerccio do cargo que ocupam ou funo que desempenham, ou ainda gozam dodireito de um foro especial para o julgamento de seus crimes, o que geralmentegarante a impunidade (SOARES, 2000, p. 57). No causa, deste modo, nenhumaespcie o Tribunal ter emitido um mandado de priso contra um chefe de Estado erequerer a cooperao internacional para efetiv-lo. O Brasil, no obstante,tradicionalmente respeita a imunidade dos chefes de Estado. No presente tpicopretende-se afirmar que no existe conflito entre o uso geral do Estado brasileiro e oacatamento do presente pedido de cooperao do Tribunal.

    Em primeiro lugar, preciso que se analise qual a norma que contemplariaOmar al Bashir com a imunidade de um chefe de Estado. A Constituio prev parao Presidente da Repblica foros privilegiados: o Senado Federal para os crimes deresponsabilidade, juntamente com o Vice-Presidente, os Ministros de Estado, osComandantes da Marinha, do Exrcito e da Aeronutica, nos termos do artigo 52, Ida Constituio13 e o Supremo Tribunal Federal para crimes comuns, privilgioextensvel a todos os cargos citados acima, conforme o art. 102, I da Constituio. 14 Os deputados e senadores, por sua vez, possuem imunidade nos termos do artigo53 da Constituio.15 Torna-se claro, contudo que, em relao ao pedido de

    13 Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Art. 52. Compete privativamente ao SenadoFederal:I processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da Repblica nos crimes de responsabilidade,bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exrcito e da Aeronutica noscrimes da mesma natureza conexos com aqueles.14 Constituio da Repblica Federativa do Brasil, Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal,precipuamente a guarda da Constituio, cabendo-lhe:[...]b) nas infraes penais comuns, o Presidente da Repblica, o Vice-Presidente, os membros doCongresso Nacional, seus prprios ministros e o Procurador Geral da Repblica. (BRASIL.Constituio..., 2008)15 Constituio da Repblica Federativa do Brasil Art. 53. Os Deputados e Senadores so inviolveiscivil e penalmente, por quaisquer de suas opinies, palavras e votos.Pargrafo 1 Os deputados e senadores, desde a expedio do diploma, sero submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.Pargrafo 2 Desde a expedio do diploma, os membros do Congresso Nacional no podero serpresos, salvo em flagrante de crime inafianvel. Nesse caso, os autos sero remetidos dentro devinte e quatro horas Casa respectiva, que, por iniciativa de partido poltico nela representado e pelovoto da maioria dos seus membros, poder, at a deciso final, sustar o andamento da ao.

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    9/27

    9

    cooperao do Tribunal quanto priso de Omar al Bashir no cabe a invocao daConstituio Federal haja vista que sua imunidade no se encontra contempladapelo mbito de incidncia das normas de nossa Magna Carta. A questo daimunidade de Omar al Bashir, dever ser analisada sob o ponto de vista do Direito

    Internacional, o qual, alis, o plano no qual o pedido de cooperao se apresenta.Para o Direito Internacional existem duas categorias de imunidades: asimunidades funcionais, ratione materiae, extensveis a qualquer indivduo enquantorgo do Estado, no exerccio de funes pblicas, cobrindo exclusivamente os atosrealizados no exerccio dessas funes pblicas que, por serem atos de Estado,estendem a imunidade do indivduo para alm do exerccio da funo; e asimunidades pessoais ou diplomticas, ratione personae, concedidas aos agentesdiplomticos para garantir o livre exerccio de suas funes, que cobrem outrasreas de atividade alm daquelas do servio, tornando o embaixador, por exemplo,imune jurisdio civil no Estado que o recebeu. Alm deste aspecto, o quediferencia as imunidades funcionais das imunidades pessoais que estas noperduram aps o fim do exerccio da funo (FRULLI, 2004, p. 270). As imunidadesfuncionais encontram-se reconhecidas por norma costumeira (inclusive em relaoao costume de se conceder imunidade diplomtica ao chefe de Estado ou degoverno em visita a outro Estado), enquanto as imunidades pessoais soprovenientes da Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas. Desta feita,Omar al Bashir tambm no teria sua imunidade derivada de tratado ratificado peloBrasil e, sim, de uma regra costumeira internacional.

    Analisando o costume enquanto fonte do Direito Internacional a partir daatual conjuntura da ordem internacional, Alberto do Amaral Jnior afirma que [...]cada vez mais o costume a expresso do direito internacional geral, reservando-ses convenes o papel de direito particular, que esclarece o contedo das normasgerais e afasta a aplicao de tais regras quando circunstncias oficiais assim orecomendarem. (AMARAL JNIOR, 2008, p. 119). Juntamente com o Costume, ostratados so fontes do Direito Internacional, e visam, muitas vezes, codificar asnormas costumeiras pr-existentes. Outras vezes, contudo, os tratados acabam pormodificar o costume internacional e, quando o fazem, preponderam em relao aocostume modificado, no podendo este ser alegado como escusa para odescumprimento daquele (PIOVESAN, 2000, p. 66).

    verdade que o Brasil reconhece a imunidade de Chefes de Estadoestrangeiros, especialmente em visita, no entanto este um costume geral, que serefere ao direito de representao dos Estados. Este costume, todavia, pressupe a

    regularidade da situao jurdica destes Chefes de Estado. No caso especfico emque exista a atuao da jurisdio complementar do Tribunal Penal Internacional emrelao a um Chefe de Estado, vinculada a uma Resoluo do Conselho de

    Pargrafo 4 O pedido de sustao ser apreciado pela Casa respectiva no prazo improrrogvel de45 dias de seu recebimento pela Mesa Diretora.Pargrafo 5 A sustao do processo suspende a prescrio, enquanto durar o mandato.Pargrafo 6 Os Deputados e Senadores no sero obrigados a testemunhar sobre informaesrecebidas ou prestadas em razo do exerccio do mandato, nem sobre as pessoas que lhesconfiaram ou deles receberam informaes.Pargrafo 7 A incorporao s Foras Armadas de Deputados e Senadores, embora militares eainda que em tempo de guerra, depender de prvia licena da Casa respectiva.Pargrafo 8 As imunidades de Deputados e Senadores subsistiro durante o estado de stio, spodendo ser suspensas mediante o voto de dois teros dos membros da Casa respectiva, nos casosde atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatveis com a execuoda medida. (BRASIL.Constituio..., 2008).

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    10/27

    10

    Segurana da ONU como o atual pedido de cooperao aplica-se, por fora daratificao realizada pelo Brasil, o artigo 27 do Estatuto de Roma:

    Artigo 27: Irrelevncia da Qualidade Oficial.

    1. O presente Estatuto ser aplicvel de forma igual a todas as pessoassem distino alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, aqualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro deGoverno ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionriopblico, em caso algum eximir a pessoa em causa de responsabilidadecriminal nos termos do presente Estatuto, nem constituir de per semotivo para reduo de pena.2. As imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes daqualidade oficial de uma pessoa; nos termos do direito interno ou dodireito internacional, no devero obstar a que o Tribunal exera a sua jurisdio sobre essa pessoa.

    No cabe, portanto, a invocao de norma costumeira internacional geralcomo escusa do cumprimento da obrigao jurdica assumida pelo Estado brasileiroperante o Tribunal Penal Internacional. O costume internacional possui doiselementos: o objetivo, que consiste na prtica reiterada de determinada conduta e osubjetivo, ou seja, a crena de que a conduta reiteradamente repetida a correta. Oelemento subjetivo pode ser referido prxis internacional do Estado e aos tratadosque este celebra, o qual constitui um repositrio de valores a qual se vincula. Nocaso do costume do Brasil em respeitar a imunidade de Chefes de Estadoestrangeiros pode-se dizer que houve uma revogao parcial, pois o pas ratificou oEstatuto de Roma e seu artigo 27.

    Contra esta interpretao seria possvel argumentar que a CorteInternacional de Justia, no julgado do Caso Yerodia tambm conhecido comoArrest Warrant Case- reafirmou as imunidades funcionais previstas na regracostumeira em detrimento do Direito Internacional Penal. Argumentar-se-ia, tambm,que o prprio Estatuto de Roma, em seu artigo 98, estabelece a possibilidade doEstado furtar-se ao cumprimento da obrigao de cooperar com a alegao daexistncia de outra obrigao internacional que lhe seria vinculante. possvelafirmar, entretanto, que o primeiro argumento no aplicvel a uma obrigaoassumida perante o Tribunal Penal Internacional e que o segundo no abrangecasos como o pedido de cooperao em anlise.

    No Caso Yerodia a Corte Internacional de Justia condenou a Blgica por

    no respeitar a imunidade do Ministro das Relaes Exteriores do Congo, ao emitirum mandado de priso internacional devido a uma acusao de crimes de guerra(INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE, 2004). Este julgado da Corte Internacionalde Justia, contudo, no adequado como precedente a um padro de conduta queo Brasil deveria seguir perante pedidos de cooperao do Tribunal PenalInternacional. O julgado diz respeito a uma priso preventiva pedida por um juizbelga com base em uma Lei de 1993 na qual o Estado belga concedia a si prpriocompetncia universal para julgar crimes internacionais, permitindo ao seu Judicirio julgar crimes em relao aos quais no tivesse nenhuma conexo. A deciso daCorte Internacional de Justia reafirma a igualdade soberana entre os Estados (nocaso Congo e a Blgica) e o costume internacional de se respeitar a imunidade deindivduos que os representam. No entanto, este julgado da Corte Internacional deJustia no extensivo jurisdio complementar do Tribunal Penal Internacional,como seu prprio texto esclarece:

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    11/27

    11

    A corte enfatiza, entretanto, que a imunidade da jurisdio gozada porministros de Negcios Estrangeiros no se estende a todos os crimes quepossam ter cometido, independentemente de sua gravidade. A imunidade

    jurisdicionalmente pode barrar a acusao por um determinado perodoou para determinadas ofensas; mas no pode exonerar a pessoa a quemse aplica de toda a responsabilidade criminal. Deste modo, as imunidadesconcedidas pelo direito internacional a um encarregado ou anteriorministro para Negcios Estrangeiros no representa um obstculo aoprocesso criminal em determinadas circunstncias. A corte refere-se ascircunstncias onde tais pessoas so julgadas em seus prprios pases,onde o Estado que representam ou representaram decide retirar essaimunidade, onde tais pessoas j no gozam de todas as imunidadesaceitas pelo direito internacional, em outros Estados aps a cessaoexerccio do cargo de ministro para Negcios Estrangeiros, e quando taispessoas so objeto de procedimentos criminais perante tribunais penais

    internacionais que sobre elas tenham jurisdio. (traduo do autor)16

    O julgado do Caso Yerodia, portanto, no analisa a irrelevncia da

    qualidade oficial prevista pela jurisdio complementar estabelecida pelo Estatuto deRoma, nem das relaes de cooperao entre o Tribunal Penal Internacional e seusEstados Parte. Seu foco o controvertido conceito de competncia universal sobrecrimes internacionais que alguns Estados atriburam a si prprios de formaunilateral. oportuno lembrar, tambm, que o Congo - em seu passado colonial - foipropriedade particular do Rei da Blgica e ainda guarda laos econmicos eculturais com sua antiga metrpole. Por isso, a deciso da Corte Internacional deJustia pode ser interpretada como um repdio a uma conduta abusiva e neocolonialde um Estado e no como a afirmao de um costume em detrimento de umaobrigao regularmente prevista em um tratado.

    Desta maneira, pode-se dizer que existe uma tendncia na doutrinainternacionalista e nas decises da Corte Internacional de Justia em determinar aextenso da imunidade funcional a partir da relativizao do carter absoluto doconceito de ato de Estado. A imunidade absoluta de jurisdio, ou seja, paraqualquer ato praticado pelo indivduo que se encontra em um cargo ou funopblica, tornou-se algo anacrnico. Aps a internacionalizao dos direitoshumanos, afirmar a imunidade em casos de crimes internacionais seria utilizar oDireito Internacional como escusa para sua prpria implementao (SOARES, 2000,p. 60). ilgico afirmar que o Direito Internacional, depois de estabelecer a proteoaos direitos humanos enquanto norma imperativa e tipificar os crimes internacionais,

    16 The Court emphasizes, however, that the immunity from jurisdiction enjoyed by incumbentMinisters for Foreign Affairs does not mean that they enjoy impunity in respect of any crimes theymight have committed, irrespective of their gravity. Jurisdictional immunity may well bar prosecutionfor a certain period or for certain offences; it cannot exonerate the person to whom it applies from allcriminal responsibility. Accordingly, the immunities enjoyed under international law by an incumbent orformer Minister for Foreign Affairs do not represent a bar to criminal prosecution in certaincircumstances. The Court refers to circumstances where such persons are tried in their own countries,where the State which they represent or have represented decides to waive that immunity, where suchpersons no longer enjoy all of the immunities accorded by international law in other States afterceasing to hold the office of Minister for Foreign Affairs,and where such persons are subject tocriminal proceedings before certain international criminal courts, where they have jurisdiction. (INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE, 2000, p. 213) (grifo do autor).

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    12/27

    12

    permanece reconhecendo a imunidade - e a impunidade - justamente das pessoasacusadas de cometerem tais crimes. Omar al Bashir foi formalmente acusado deprover os meios e de incentivar a prtica, em larga escala, de assassinatos, torturas,estupros e da pilhagem de aldeias inteiras. Crimes contra a humanidade jamais

    podem fazer parte das funes pblicas de um chefe de Estado em um estgio doDireito Internacional que se caracteriza pela promoo e garantia dos direitoshumanos. Por isso, no podem ser considerados como ato de Estado para o DireitoInternacional. Neste sentido, Micaela Frulli afirma:

    Segundo a prtica internacional, podemos concluir que existe, emdireito costumeiro, uma regra que permite abrir exceo simunidades funcionais para determinadas categorias de crimesinternacionais. A exceo s imunidades funcionais visa tanto aosfuncionrios de alto escalo quanto aos chefes de Estado e degoverno. Ela opera perante os Tribunais Internacionais da mesma

    forma que perante as jurisdies internas (FRULLI, 2004, p. 283 e284).

    O polmico artigo 98 do Estatuto dispe que o Tribunal pode no darseguimento a um pedido de entrega ou de auxlio por fora do qual o Estadorequerido devesse atuar de forma incompatvel com as obrigaes que lheincumbem luz do Direito Internacional em matria de imunidades ou de um acordointernacional. Assim, em relao s imunidades funcionais, existe um problema dedelimitao: enquanto o artigo 27 determina que a capacidade oficial de umindivduo no o exime de sua responsabilidade o artigo 98 afirma que as imunidadespodem ser aceitas pelo Estatuto (PAULUS, 2003, p. 855). O artigo 98 no claro se

    o costume ou os tratados protegem nacionais de Estados que no so parte doTribunal ou todos os Estados. Em verdade, este artigo s faz sentido se forentendido que a imunidade em relao jurisdio domstica de um Estado noParte aplicvel frente ao Tribunal, exigindo-se um acordo para exerccio de jurisdio ad hoc. Combinando-se a interpretao do artigo 98 com a do artigo 27que dispe sobre a irrelevncia da capacidade oficial parece, conseqentemente,que um Estado seria obrigado a prender e entregar ao Tribunal seu prprio chefe deEstado, mas teria de respeitar a imunidade jurisdicional de um chefe de Estadoestrangeiro (PAULUS, 2003, p. 856).

    Uma interpretao sistemtica do Estatuto de Roma, por outro lado,forosamente deve impor limites situaes criadas a partir da aplicao do artigo

    98. Se a jurisdio complementar estabelece que o dever do Estado julgar oindivduo acusado pelos crimes sob a competncia do Tribunal Penal Internacionalou entrega-lo para quem o faa, a questo a qual o artigo 98 prope equacionar no se o indivduo ser ou no julgado, mas, sim, por qual jurisdio ser julgado(ZAPALL, 2002, p. 116). Desta forma, considerando que o Estatuto de Romadispe sobre a irrelevncia de qualquer imunidade ou capacidade oficial estas nopodero ser utilizadas para eximir o indivduo da responsabilidade por seus atos,seja perante o Tribunal, seja perante um Estado e, uma interpretao que isentasseo indivduo de sua responsabilidade, no tem validade perante o artigo 98. Damesma forma, considerando que o principal objetivo do Estatuto por um fim impunidade, as imunidades consubstanciadas pelo costume ou pelos acordosrealizados entre terceiros Estados e Estados Parte do Tribunal, determinando a noentrega de indivduos para julgamento ao Tribunal, s tero validade se garantiremque estes indivduos efetivamente sejam levados justia pelo Estado requerente

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    13/27

    13

    (ZAPALL, 2002, p. 124). Como visto, o Brasil ratificou o Estatuto de Roma e oartigo 27 desta conveno tornou-se uma regra especfica de exceo a umcostume geral de se respeitar a imunidade dos Chefes de Estado. No existindonenhum acordo bilateral de imunidade entre o Sudo e o Brasil que possa ser

    oposto ao pedido de cooperao nos termos do artigo 98 nem nenhum elemento deconexo que conceda ao Brasil jurisdio originria sobre os crimes pelos quaisOmar al Bashir acusado no Sudo a nica conduta lcita ao Estado brasileiro mesmo nos termos do artigo 98 do Estatuto de Roma - a execuo do mandadode priso e a posterior entrega de Bashir ao Tribunal, caso isto esteja ao seualcance.

    Em vista disso o Estado brasileiro no poder se furtar colaborao com oTribunal Penal Internacional alegando o dever de se reconhecer a imunidade deOmar al Bashir como Chefe de Estado em exerccio.

    2.2. A Compatibilidade entre a Constituio e o Estatuto de Roma

    Em seu despacho acerca do pedido de cooperao feito pelo Tribunal PenalInternacional ao Brasil, o presidente em exerccio do Supremo Tribunal Federalalerta para a existncia de dvida acerca da compatibilidade entre alguns artigos doEstatuto de Roma com determinados direitos e garantias presentes em nossaConstituio, salientando que o pedido poderia ser uma ocasio de debate acercadestes pontos (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2009, p. 3). Alm da questo dasimunidades, acima mencionada, alguns autores apontam como problemtica aadoo pelo Brasil do Estatuto de Roma considerando as disposiesconstitucionais acerca da priso perptua, da individualizao das penas em relaoaos crimes cometidos, da imprescritibilidade dos crimes do Estatuto de Roma, doinstituto da coisa julgada e da no previso em nosso ordenamento do instituto daentrega.

    A respeito do instituto da entrega, como foi visto, o prprio Estatuto deRoma pressupe que sua execuo possa ser concretizada atravs da analogia aoinstituto da extradio. No entanto, est disposto na Constituio Federal, art. 5,inciso LI, que: Nenhum brasileiro ser extraditado, salvo naturalizado, em caso decrime comum praticado antes da naturalizao ou de comprovado envolvimento emtrfico ilcito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei. O Estatuto de Roma,incorporado em nosso ordenamento pelo Decreto n. 4388/2002, estabelece aentrega de nacionais que cometeram os crimes sob a competncia do Tribunal

    Penal Internacional, a Constituio Federal, em seu art. 5, inciso LI, dispe que osbrasileiros no sero entregues para processamento e punio, exceto nascircunstncias previstas pelo prprio inciso, que no se assemelham as do Estatuto.

    A questo da pena de priso perptua se apresenta porque esta sano prevista no artigo 77, pargrafo 1, alnea b do Estatuto de Roma17 e proibida peloartigo 5, inciso XLVII, alnea b da Constituio do Brasil18. Em relao s

    17 Decreto n. 4388/02 (Estatuto de Roma) Artigo 77. Penas Aplicveis. 1. Sem prejuzo do dispostono artigo 110, o Tribunal pode impor pessoa condenada por um dos crimes previstos no artigo 5 dopresente Estatuto uma das seguintes penas:[...] b) Pena de priso perptua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condies pessoais docondenado o justificarem.18 Constituio da Repblica Federativa do Brasil, Art. 5 [...]XLVII No haver penas:[...]b) de carter perptuo.

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    14/27

    14

    excees ao respeito pelo instituto da coisa julgada, presentes no Estatuto de Roma,pode-se indagar se existe uma antinomia entre o artigo 20 do Estatuto 19 e o artigo5, inciso XXXVI da Constituio Federal.20 Sobre a ausncia de individualizao daspenas para cada um dos tipos penais sob a competncia do Estatuto de Roma

    existe uma previso, no artigo 77 do Estatuto de Roma21

    , comum a todos os crimesde sua competncia, que se choca com o artigo 5, inciso XLVI da ConstituioFederal, que prev que cada crime tenha uma pena a ele prevista. 22

    Em relao imprescritibilidade dos crimes, estabelecida pelo artigo 29 doEstatuto de Roma 23, a questo a respeito de sua compatibilidade mais sutil.Inicialmente, h o desacordo entre o Estatuto e o artigo 109 do Cdigo Penal 24, que lei ordinria e, portanto, teria sido revogado parcialmente com a ratificao doEstatuto de Roma, que alm de lei posterior, lei especfica. No entanto, algunsautores afirmam que o artigo 109 do Cdigo Penal qual se encontraria protegidopela Constituio (RAMOS, 2000, p. 272) porque esta determina seremimprescritveis o crime de racismo e a ao armada de grupos civis ou militarescontra a ordem constitucional e o Estado democrtico. 25 Como no existem outrostipos penais qualificados como imprescritveis no articulado constitucional, entende-

    [...] (BRASIL.Constituio..., 2008)19 Decreto n. 4388/02 (Estatuto de Roma) Artigo 20 Ne bis in idem 1. Salvo disposio contrria dopresente Estatuto, nenhuma pessoa poder ser julgada pelo Tribunal por atos constitutivos de crimespelos quais este j a tenha condenado ou absolvido.2. Nenhuma pessoa poder ser julgada por outro tribunal por um crime mencionado no artigo 5,relativamente ao qual j tenha sido condenada ou absolvida pelo Tribunal.3. O Tribunal no poder julgar uma pessoa que j tenha sido julgada por outro tribunal, por atostambm punidos pelos artigos 6, 7 ou 8, a menos que, o processo nesse outro tribunal:a) Tenha tido por objetivo subtrair o acusado sua responsabilidade criminal por crimes dacompetncia do Tribunal; oub) No tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantiasde um processo eqitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de umamaneira que, no caso concreto, se revele incompatvel com a inteno de submeter a pessoa aoda justia. (BRASIL.Decreto n. 4388..., 2002)20 Art. 5 [...]XXXVI a lei no prejudicar o direito adquirido, o ato jurdico perfeito e a coisa julgada. (BRASIL.Constituio..., 2008)21 Decreto n. 4388/02 (Estatuto de Roma) Art. 77: Penas Aplicveis. 1. Sem prejuzo do disposto noartigo 110, o Tribunal pode impor pessoa condenada por um dos crimes previsto no artigo 5 dopresente Estatuto uma das seguintes penas:a) Pena de priso por um nmero determinado de anos, at o limite mximo de 30 anos; oub) Pena de priso perptua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condies pessoais docondenado o justificarem. [...] (BRASIL.Decreto n. 4388..., 2002)22 Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Art. 5 [...]XLVI a lei regular a individualizao da pena e adotar, entre outras, as seguintes: [...] (BRASIL.Constituio..., 2008)23 Decreto n. 4388/02 (Estatuto de Roma), Artigo 29. Os crimes da competncia do Tribunal noprescrevem. (BRASIL.Decreto..., 2002)24 Cdigo Penal Brasileiro, Artigo 109. A prescrio, antes de transitar em julgado a sentena final,salvo o disposto nos pargrafos 1 e 2 do artigo 110 deste Cdigo, regula-se pelo mximo da penaprivativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:I em 20 (vinte) anos, se o mximo da pena superior a 12 (doze) anos. [...] (BRASIL. Cdigo...,2004)25 Constituio Federal Art. 5 [...]XLII a prtica do racismo constitui crime inafianvel e imprescritvel, sujeito pena de recluso,nos termos da lei; [...]XLIV constitui crime inafianvel e imprescritvel a ao de grupos armados, civis ou militares,contra a ordem constitucional e o Estado Democrtico; [...] (BRASIL.Constituio..., 2003)

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    15/27

    15

    se que a incluso de novos tipos penais imprescritveis pelo Estatuto de Romaestaria vedada.

    A busca por uma interpretao que considere como compatvel taisdisposies um desafio que se apresenta a todos os estudiosos do tema da

    proteo internacional dos direitos humanos. As disposies constitucionais emdebate, como as demais do artigo 5, so clusulas ptreas, estando determinadono artigo 60, pragrafo 4, inciso IV, que: no ser objeto de deliberao propostade emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Por outro lado, aEmenda Constitucional n. 45 de 2004 incluiu no artigo 5 o pargrafo 4, o qualestabelece que o Brasil se submete jurisdio de Tribunal Penal Internacional acuja criao tenha manifestado adeso. Como a jurisdio do Tribunal PenalInternacional encontra-se prevista e regulamentada no Estatuto de Roma indaga-sese este pargrafo no se constituiu em clusula aberta com o fito de relativizar asdisposies constitucionais acima mencionadas (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL,2009, p. 15). Por outro lado encontra-se em tramitao no Congresso Nacional oProjeto de Lei n. 4038/2008 que vem a regulamentar o instituto da entrega noBrasil.

    J tivemos a oportunidade, em outro trabalho, de analisar os artigos em telasob o prisma da Teoria do Ordenamento Jurdico e percebemos que as nicasantinomias reais entre o texto constitucional e o Estatuto de Roma seriam a previsoda priso perptua pelo Estatuto e a no individualizao das penas dos crimesinternacionais. No obstante podemos afirmar que mesmo estas antinomias soapenas o resultado de uma hermenutica constitucional calcada em uma teoria doordenamento jurdico estrutural (que considera as normas a partir de sua posiohierrquica), cujas bases remetem ainda ao sculo XIX e que no existe nenhumaincompatibilidade entre os textos normativos se os interpretarmos sob uma ticafuncionalista do ordenamento jurdico (a qual considera as normas sob o prisma dafuno que estas desempenham no ordenamento), mais acorde com a realidadescio-poltica do sculo XXI (MIRANDA, J.I.R., 2005, fl. 146).

    O pedido de cooperao do Tribunal Penal Internacional com certeza umaoportunidade de se discutir tais questes, contudo os problemas de compatibilidadecitados no podem influenciar a deciso do Brasil em cooperar ou no com oTribunal porque as garantias constitucionais no se aplicam ao presente caso. Oartigo 5, caput dispe que: Todos so iguais perante a lei, sem distino dequalquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentesno Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e

    propriedade [...] (grifei). Na qualidade de estrangeiro no residente no Brasil oPresidente Omar al-Bashir no gozaria dos direitos e garantias fundamentaispresentes no artigo 5 de nossa Constituio, direitos e garantias, alis, que elenega aos prprios concidados em sua atuao como Presidente.

    Qualquer interpretao extensiva do artigo 5 neste caso incorreria emgrande equvoco. Deve-se considerar que o Tribunal representa uma jurisdiointernacional pautada pelos mais altos padres internacionais de respeito ao devidoprocesso legal. No se trata, pois, de uma jurisdio estrangeira, nem h que sefalar em arbitrariedade no procedimento. Contudo, mesmo ao se fazer um paralelocom o instituto da extradio foroso perceber que a hipottica entrega de Bashirseria algo imperativo. O Brasil j extraditou estrangeiros que poderiam ser

    condenados priso perptua bem como para sistemas jurdicos diferenciados notocante individualizao das penas. Alm disso, no existe coisa julgada nestecaso e os crimes que Omar al Bashir acusado no prescreveram, mesmo nos

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    16/27

    16

    termos do artigo 109 do Cdigo Penal. Finalmente, a Constituio no probe aextradio de estrangeiro no residente no pas.

    Neste importante momento das relaes entre o Brasil e o Tribunal PenalInternacional a norma constitucional aplicvel no o artigo 5, mas, sim, o artigo 4,

    II, o qual dispe que, em suas relaes internacionais a Repblica Federativa doBrasil rege-se pelo princpio da prevalncia dos direitos humanos.26 A recusa emcooperar com o Tribunal Penal Internacional tornaria este inciso constitucional emletra morta.

    Assim, considerando que o Estatuto de Roma, por fora de seu artigo 120,no admite reservas, e que este j se encontra incorporado ao ordenamentobrasileiro, o no atendimento do pedido de cooperao do Tribunal uma infraodireta do artigo 27 da Conveno de Viena sobre Direito dos Tratados, o qualestabelece que os Estados signatrios se obrigam a cooperar integralmente com oTribunal, ao dispor que: Uma parte no pode invocar disposies de direito internocomo justificativa para o no cumprimento do tratado. (RANGEL, 1993, p. 251)27 Talfato remete possibilidade de responsabilizao internacional do Brasil caso noatenda ao pedido de cooperao com o Tribunal Penal Internacional.

    3. A possibilidade de responsabilizao internacional do Brasil por nocooperao

    A teoria da responsabilidade internacional fruto de um processo decodificao das normas jurdicas internacionais sendo, provavelmente, o ltimogrande projeto neste sentido (CARON, 2002, p. 868). Como foi visto, a noo de queum Estado pode ser responsabilizado internacionalmente vem do prprio princpiopacta sunt servanda: o Estado deve manter os compromissos que assumiu e, emcaso de dano por seu descumprimento, buscar a reparar o prejuzo que causou. Apartir deste mecanismo de responsabilizao que o Estado pode ser entendidocomo responsvel internacionalmente por todo ato ou omisso que viole normainternacional e que lhe seja atribuvel. O referencial terico da teoria daresponsabilidade internacional dado pelo Projeto da Conveno sobreResponsabilidade dos Estados por Atos Ilcitos, elaborado pela Comisso de DireitoInternacional, entidade que tem como misso codificar e desenvolver o DireitoInternacional principalmente atravs da positivao do costume nos termos doartigo 13, (1), a, da Carta da ONU.28 A Assemblia Geral da ONU lhe conferiumandato neste sentido, atravs da Resoluo n. 174 (II) de 1947, tendo a Comisso

    atuado em matrias como o Direito dos Tratados e a regulamentao das relaesdiplomticas e consulares, entre outras (CARON, 2002, p. 860).O texto sobre responsabilidade estatal por atos ilcitos internacionais

    apresenta o formato de um tratado, com cinqenta e nove artigos e comentriosinterpretativos ao final, embora a Assemblia Geral da ONU tenha decidido noconvocar uma Conferncia de Plenipotencirios para apreci-lo, de acordo com arecomendao da prpria Comisso (CARON, 2002, p. 862). A justificativa dada

    26 Constituio da Repblica Federativa do Brasil, Art. 4 A Repblica Federativa do Brasil rege-senas suas relaes internacionais pelos seguintes princpios: [...] II prevalncia dos direitoshumanos.27 Embora esteja em vigor desde 1980, esta Conveno ainda no foi ratificada pelo Brasil.28 Decreto-Lei n. 7935/1945 (Carta das Naes Unidas) Artigo 13. 1. A Assemblia Geral iniciarestudos e far recomendaes, destinados a: a) promover cooperao internacional no terrenopoltico e incentivar o desenvolvimento progressivo do direito internacional e sua codificao (...)

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    17/27

    17

    para esta recomendao que uma Conferncia um processo trabalhoso eimprevisvel que pode resultar em emendas prejudiciais a um texto elaboradocoletivamente durante quarenta anos, alm do fato de que eventuais reservaslegitimariam posturas no-cooperativas por parte dos Estados (CARON, 2002, p.

    864). Isto poderia significar uma menor influncia para o Projeto da Comisso doque ele tem agora, pois suas disposies no s so adotadas como se fosse Leipelas cortes arbitrais internacionais como pela prpria Corte Internacional de Justia(MILANOVIC, 2006, p. 683).

    Dentro da estrutura da obrigao jurdica internacional o mecanismo daresponsabilizao estatal por atos ilcitos depende, obviamente, da noo de atoilcito internacional. O artigo 2 do Projeto da Conveno dispe que existe fatointernacionalmente ilcito quando uma ao ou omisso atribuvel a um Estadoconstitui violao de uma obrigao internacional.29 A doutrina clssica exigia aocorrncia de um dano para a configurao da responsabilidade, mas oentendimento da Comisso evoluiu para a idia de que a ocorrncia do fatointernacionalmente ilcito condio necessria e suficiente para ocompr ometimento da responsabilidade (DIHN, 2003, p. 805). O artigo 42 autorizaque Estados que no foram individualmente prejudicados nem tenham interesseespecfico possam protestar formalmente contra o descumprimento da obrigaopelo Estado malfeitor, sem que isso implique em sua responsabilizao. 30 O Projetoda Conveno estabelece, em seu artigo 3, que: A caracterizao de um ato de umEstado como ilcito internacionalmente determinada pelo Direito Internacional. Talcaracterizao no afetada pela caracterizao do mesmo ato como lcito pela Leiinterna.31 Ou seja, o conceito de ato ilcito uma noo autnoma de DireitoInternacional, o ato que o Direito interno do Estado reputa como lcito pode ser ilcitoperante o Direito Internacional. Como conseqncia, normas jurdicas internas (leis,decretos) e decises administrativas sero consideradas como fato e podero serveculo de um ato ilcito internacional, embasando-se esta viso no tradicionalargumento de que o Estado no pode assumir obrigaes no plano internacionalpara posteriormente descumpri-las alegando incompatibilidade com seu Direitointerno (DIHN, 2003, p. 782 e 783).

    Coube ao terceiro relator do Projeto da Conveno, Roberto Ago, aintroduo no tema da responsabilidade internacional da distino entre obrigaoprimria e obrigao secundria a partir da qual o cometimento de um ato ilcito ou aviolao de uma obrigao internacional (primria) faz nascer uma ou vriasobrigaes secundrias como a cessao do ato ilcito, a satisfao moral atravs

    de um pedido de desculpas ou a indenizao (CRAWFORD, 2002, p. 876). Assim,do mecanismo da responsabilidade resulta uma nova relao jurdica entre o Estado

    29 INTERNATIONAL LAW COMMISSION.Responsibility of States for Internationally WrongfulActs . Article 2 Elements of an internationally wrongful act of a State. There is an internationallywrongful act of a State when conduct consisting of an action or omission: (a) Is attributable to theState under international law; and (b) Constitutes a breach of an international obligation of the State.30 INTERNATIONAL LAW COMMISSION.Responsibility of States for Internationally WrongfulActs . Article 42 Invocation of responsibility by an injured State A State is entitled as an injured State toinvoke the responsibility of another State if the obligation breached is owed to: () (b) A group ofStates including that State, or the international community as a whole, and the breach of theobligation: () (ii) Is of such a character as radically to change the position of all the other States towich the obligation is owed with respect to the further performance of the obligation.31 INTERNATIONAL LAW COMMISSION.Responsibility of States for Internationally WrongfulActs . Article 3 Characterization of an act of a State as internationally wrongful. The characterization ofan act of a State as internationally wrongful is governed by international law. Such characterization isnot affected by the characterization of the same act as lawful by internal law.

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    18/27

    18

    autor do ato ilcito ou descumprimento e o Sujeito de Direito Internacional (DIHN,2003, p. 802). Esta concatenao das regras sobre responsabilizao remonta aoscdigos de tradio continental: distinguindo-se claramente entre a regra e o assuntoo qual se impe a obrigao e aquela que determina as conseqncias da violao

    desta obrigao. possvel assim, uma coerncia dentro da matria e,conseqentemente, a afirmao da responsabilidade internacional como umprincpio geral do Direito Internacional (MILANOVIC, 2006, p. 560 e 561). A distinoformal entre obrigao primria e secundria tambm enseja a criao deprocedimentos internacionais para determinao de responsabilidade queconcorrem para a proporcionalidade das contra-medidas (BEDERMAN , 2002, p.822).

    O fundamento jurdico da obrigao de cooperar com a justia internacionalpenal depende da forma de criao de jurisdio, se unilateral (como no caso dostribunais ad hoc) ou convencional, como no caso do Estatuto do Tribunal PenalInternacional (UBDA, 2000, p. 952). ric David afirma que no existe obrigaocostumeira em matria de cooperao judiciria, sendo seu fundamento, portanto,unicamente convencional (DAVID, 2000, p. 129). No caso do Tribunal PenalInternacional, importante observar que o regime jurdico no qual a obrigao decooperar est prevista, tem natureza convencional e encontra-se regulado peloDireito dos Tratados, inexistindo, portanto, nenhuma incerteza jurdica acerca dodever de cooperar (UBDA, 2000, p. 953). Como foi visto, a obrigao geral decooperar est presente no artigo 86 e uma srie de obrigaes precisas, visandoaspectos especficos da cooperao encontram-se entre os artigos 87 e 102 doEstatuto. Por fim a Assemblia Geral dos Estados Parte adotou um Regulamentocontendo Regras sobre Procedimento e Prova dentro dos procedimentos penais doTribunal. Devido fundamentao convencional e ao embasamento jurdico acooperao com o Tribunal apresenta-se como uma obrigao primria para osEstados Parte e, em alguns casos, para qualquer Estado, todavia no se constituiem uma obrigao absoluta (DAVID, 2000, p. 130). A natureza convencional daobrigao, na forma em que se encontra, comporta inconvenientes e vantagens. Porum lado previsto que os Estados exeram sua soberania nos termos do princpioda complementaridade, por outro oferece uma base jurdica slida e incontestvelpara determinar a cooperao com o Tribunal (UBDA, 2000, p. 956).

    O artigo 12 do Projeto da Conveno sobre Responsabilidade dos Estadospor Atos Ilcitos conceituam a ilicitude como a desconformidade com a obrigaoassumida. O artigo 12 preceitua que O Estado viola uma obrigao internacional

    quando um ato por ele realizado est em desconformidade com o requerido por estaobrigao, no importante a sua origem ou caracterizao. 32 A conformao dessailicitude vai depender se a obrigao assumida pelo Estado de comportamento oude resultado. So de resultado as regras que prevem as obrigaes primrias quedeterminam se o Estado possui a livre escolha dos meios para atingir os resultadospactuados ou se, ao cumprir a obrigao, seu comportamento deve obedecer a umaconduta anteriormente estabelecida (SICILIANOS, 2000, p. 122).

    Em relao s obrigaes de comportamento basta que se constate que oEstado no tomou as medidas esperadas para se deduzir a violao da obrigao

    32 INTERNATIONAL LAW COMMISSION.Responsibility of States for Internationally WrongfulActs . Article 12. Existence of a breach of an international obligation. There is a breach of aninternational obligation by a State when an act of that State is not in conformity with what is required ofit by that obligation, regardless of its origin or character.

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    19/27

    19

    internacional (DIHN, 2003, p. 787). Por outro lado, a penalizao no Direito Internodas condutas tpicas como fator dissuatrio para a prtica de crimes internacionais entendida como obrigao de resultado porque a inao pode responsabilizar oEstado (SICILIANOS, 2000, p. 123). A obrigao de cooperar com as jurisdies

    penais internacionais no se insere completamente na categoria das obrigaes decomportamento ou na categoria das obrigaes de resultado porque geralmente deixado ao Estado a escolha dos meios dentre aqueles que seriam razoveis e, poroutro lado, no se pretende que o Estado sofra uma sano por no alcanar umresultado definido. Teria, assim, a natureza de uma obrigao de comportamentoatenuada com meios e frmulas suficientemente ambguos para conci liar-se com asoberania estatal (UBDA, 2000, p. 954 e 955).

    Neste contexto, a Corte Internacional de Justia, em deciso no caso movidapela Bsnia-Herzegovina contra Srvia e Montenegro estabeleceu que a obrigaode prevenir o crime de genocdio de comportamento e no de resultado: o Estadono obrigado a ser bem sucedido em prevenir o genocdio, no entanto deveempregar todos os meios razoavelmente disponveis neste sentido (MILANOVIC,2007, p. 684 e 685). Os padres internacionais que determinam a responsabilizaodo Estado a partir de sua diligncia constituem-se de trs elementos: a importnciado bem jurdico protegido, o conceito (elstico) de razoabilidade e a probabilidade deperpetuao dos crimes que se quer impedir (SICILIANOS, 2000, p. 124 e 125). Apartir deles pode-se compreender o entendimento da Corte Internacional de Justiano caso citado acima de que a obrigao do Estado em se prevenir o genocdio no territorialmente definida nem dependente de verificao prvia de jurisdio sobrepessoa ou territrio (MILANOVIC, 2007, p. 685).

    O dever de cooperar evidencia que os Estados so obrigados no s a nocometer crimes internacionais como tambm a prevenir que ele ocorra e a punirseus responsveis (MILANOVIC, 2006, p. 570). Esta violao se materializa por umainao do Estado (omisso) ao no adotar medidas adequadas legislativas,administrativas ou judicirias para prevenir os atos criminosos ou, aps seucometimento, sua omisso em perseguir e punir seus autores. A responsabilidadepor omisso inicialmente foi afirmada no contexto da viso tradicional deresponsabilidade em razo dos danos causados a estrangeiros, conformeentendimento do Instituto de Direito Internacional, na sesso de Lausanne, em 1927.Depois da Segunda Guerra Mundial a responsabilidade por omisso afirmada pelaCorte Internacional de Justia no Caso do Estreito de Corfu, onde a Albnia foiresponsabilizada, com base no direito consuetudinrio. No Caso sobre o Pessoal

    Diplomtico e Consular dos Estados Unidos em Teer a Corte responsabilizou o Irnos termos da Conveno sobre Relaes Diplomticas e Consulares por faltar obrigao de prevenir e fazer cessar o ataque embaixada norte-americana(SICILIANOS, 2000, p. 116 e 117).

    No campo dos direitos humanos, pacfico que o Estado pode responderpela inao de seus rgos pblicos na perseguio e no julgamento de autores deviolaes aos direitos do homem (DIHN, 2003, p. 789). A Corte de Estrasburgo, a fimde assegurar o efetivo respeito dos direitos e garantias da Conveno Europia deDireitos Humanos formou uma jurisprudncia a qual constatou diversas vezes que ainao do Estado constitui uma violao da Conveno. No caso movido pelaBsnia-Herzegovina contra Srvia e Montenegro pelo genocdio ocorrido naquele

    pas a Corte Internacional de Justia entendeu que, como a preveno e arepresso do genocdio assim como dos crimes contra a humanidade apresenta-se como uma norma primria imposta como um direito inderrogvel por tratados

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    20/27

    20

    internacionais, jus cogens. A no cooperao com a Justia Internacional Penal(naquele caso, o Tribunal Penal Internacional Ad Hoc para a Ex-Iugoslvia)enquadra-se no regime de responsabilidade penal agravada, previsto o artigo 41 doProjeto da Conveno sobre a Responsabilidade dos Estado por Atos Ilcitos

    (MILANOVIC, 2006, p. 571). Assim, o carter peremptrio da norma pode suprir aimpreciso da regra primria permitindo a responsabilizao do Estado por atos deno-cooperao que podem significar violao da obrigao de prevenir e punir ocrime de genocdio e crimes contra a humanidade. Os dois primeiros pargrafos doartigo 41 trazem importantes conseqncias ao determinar que : 1. Os Estadosdevem cooperar para, atravs de meios lcitos, acabar com toda a violao grave nosentido do artigo 40; 2. Nenhum Estado deve reconhecer como lcita uma situaocausada por uma violao grave, no sentido do artigo 40, nem prestar nenhumaassistncia manuteno desta situao. 33

    Uma das conseqncias do regime de responsabilidade agravada porinfrao de normas peremptrias de Direito Internacional a possibilidade deinvocao da responsabilidade atravs da actio popularis. Ao contrrio dasobrigaes internacionais em geral, cuja responsabilidade no pode ser invocadapor terceiros Estados que no tenham sofrido dano com o descumprimento dodever, a obrigao de cooperar com Justia Internacional Penal adquire nesteregime o carter erga omnes partes concedendo a todos os Estados o interesse jurdico em seu respeito pelo Estado recalcitrante (UBDA, 2000, p. 954).

    Deste modo, o mecanismo da responsabilizao resultar em uma novaobrigao jurdica entre o Estado autor do fato e o Sujeito de Direito Internacional(DIHN, 2003, p. 802). No caso do regime de responsabilidade agravada pelaviolao de norma peremptria de Direito Internacional - em virtude de no prevenirnem punir um crime internacional ao no cooperar - alm da responsabilidade penalindividual do acusado do cometimento do crime o Estado pode ser responsabilizadoseparadamente por faltar obrigao de prevenir e punir atividade qualificada comocriminosa pelo Direito Internacional (SICILIANOS, 2000, p. 115). Neste sentido EricDavid afirma que[...] se o Estado Parte de uma conveno de assistncia judiciriano cumpre suas obrigaes convencionais, mesmo levando-se em conta asrestries previstas pela conveno, sua responsabilidade internacional evidentemente colocada em causa conforme os princpios clssicos dainstituio.(traduo do autor)34

    A responsabilidade do Estado infrator pode ser invocada por todas as vias deDireito e pode-se ainda recorrer a todos os meios pacficos conforme o princpio da

    livre escolha dos meios presentes na Declarao da Assemblia Geral da ONUsobre os Princpios de Direito Internacional sobre Relaes Amigveis e Cooperaoentre os Estados (UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY , 1970).

    Alis, a responsabilizao pelo descumprimento da obrigao no retira odever do Estado de executar a obrigao violada, nos termos do artigo 29 do Projetoda Conveno sobre a Responsabilidade dos Estados por Atos Ilcitos, o qual afirma

    33 INTERNATIONAL LAW COMMISSION.Responsibility of States for Internationally WrongfulActs . Article 41 Particular consequences of a serious breach of an obligation under this chapter. 1.States shall cooperate to bring to an end through lawful means any searious breach within themeaning of article 40. 2. No State shall recognize as lawful a situation created by a serious breachwithin the meaning of article 40, nor render aid or assistance in maintaining that situation. 34 [] si ltat partie a une convention dassistance judiciaire ne remplit ps ss obligations conventionnelles, compte tenu des restrictions prvues par la convention, sa responsabilitinternationale est videmment mise em cause conformment aux prncipes classiques de linstitution(DAVID, 2000, p. 132).

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    21/27

    21

    que: As conseqncias legais de um ato ilcito internacional nesta parte (do Projeto)no afetam a continuidade do dever do Estado de realizar a obrigao violada. 35

    Desse modo pode-se entender porque no Caso em que Bsnia-Herzegovinaintentou contra Srvia e Montenegro pleiteando a responsabilidade internacional

    deste pas em face do genocdio a Corte condenou a Srvia, embora tenhaentendido que este Estado no tenha sido diretamente responsvel nem cmplicecom o crime de genocdio ocorrido na Bsnia. A Corte Internacional de Justia julgouque a Srvia responsvel devido s obrigaes primrias previstas na Convenopara a Preveno e Represso ao Crime de Genocdio por falhar ao prevenir ogenocdio cometido pelo exrcito bsnio-srvio no Massacre de Srebrenica, em julhode 1995, e por no cooperar com o Tribunal Penal Internacional Ad Hoc para a Ex-Iugoslvia na punio aos perpetradores desta atrocidade (MILANOVIC, 2007, 669 e670).

    Um aspecto fundamental da responsabilidade internacional por no cooperarna preveno e punio dos mais graves crimes internacionais a natureza destaresponsabilizao. Como foi visto, a responsabilidade do Estado regulada peloregime da responsabilidade agravada nos termos do Projeto da Conveno sobreResponsabilidade dos Estados por Atos Ilcitos. Por outro lado, a noo de crimesinternacionais (no sentido dos core crimes, os mais graves crimes internacionaiscom violaes massivas aos direitos humanos) est vinculada ao DireitoInternacional Penal e a categoria da responsabilidade individual penal, o que inclui aevoluo conceitual de se reconhecer, mesmo que passivamente, a personalidadeinternacional de certos indivduos e a reviso da doutrina das imunidades estatais(PELLET, 2000, p. 85 e 86). A questo da responsabilidade individual penal porcrimes internacionais no exaure a questo da responsabilidade estatal por estescrimes, uma no exclui nem diminui a outra (MILANOVIC, 2006, p. 554). Aresponsabilidade estatal pelo cometimento do crime no apenas, por sua natureza,criminal, embora isto no retire a natureza de grave violao obrigao primriapresente em norma internacional peremptria nem a responsabilidade individualcriminal concorrente (MILANOVIC, 2006, p. 574). Como assevera Alain Pellet

    De uma maneira geral, a responsabilidade internacional do Estadono nem penal, nem civil; ela apresenta caractersticas prpriasque no seriam assimiladas s categorias do direito interno tantoquanto a sociedade internacional apresenta poucos pontos comunscom as comunidades nacionais. Da sua maneira, ela apresenta,contudo elementos civis e penais (traduo do autor). 36

    Uma esfera de responsabilizao de grande importncia prtica aresponsabilizao do Estado por cumplicidade com o crime que pode constituir-seatravs de vrias condutas: encorajamento, fornecimento de ajuda, ocultao deprovas do crime, etc... (MILANOVIC, 2006, p. 573). Um argumento que podecorroborar a viso exposta acima que o descumprimento de uma obrigaoprimria que seja norma peremptria de Direito Internacional ultrapassa em seus

    35 INTERNATIONAL LAW COMISSION.Responsibility of States for Internationally WrongfulActs . Article 29. The legal consequences of an internationally wrongful act under this part do notaffect the continued duty of the responsible State to perform the obligation breached.36

    Dune faon gnerale, la responsabilit internationale de ltat nest ni pnale, ni civile; elleprsente des carcteres propres et ne saurait tre assimile aux catgories du droit interne tant lasocit internationale presente peu de points communs avec ls communauts nationales. samanire, ele presente cepedant des lments civils et penaux (PELLET, 2000, p. 88).

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    22/27

    22

    efeitos os prprios limites ordinrios do Direito da Responsabilidade Internacional.Como assevera Marko Milanovic

    Mesmo que esta responsabilidade estatal permanea de natureza

    civil, deve-se enfatizar que as conseqncias de uma quebra sriade uma norma peremptria de lei internacional no se exaurem noregime da responsabilidade internacional do Estado: elas podem, edeveriam, provocar uma reao institucional muito mais ampla, umaao nos termos do Captulo VII pelo Conselho de Segurana ouuma ao efetiva por uma organizao internacional (traduo doautor).37

    Em concluso, lcito dizer que a obrigao de se cooperar com a JustiaInternacional Penal possui um fundamento slido e, pelo menos nas relaes com oTribunal Penal Internacional, um corpo de normas jurdicas de natureza obrigatria erelativamente precisas. Seu mecanismo de responsabilizao, no caso do Tribunal,encontra-se institucionalizado e mesmo a natureza especfica de suaresponsabilidade encontra-se analisada pela doutrina e reconhecida por recente jurisprudncia da Corte Internacional de Justia.

    juridicamente possvel, portanto - considerando-se uma hipottica recusade cooperao ao pedido do Tribunal Penal Internacional uma demanda judicialcontra o Estado brasileiro (ou contra qualquer Estado Parte do Tribunal com condutasemelhante), buscando sua responsabilizao por no cooperar com o Tribunal narepresso do genocdio que ocorre no Sudo. O fato do mandado de priso contraBashir no citar a acusao de crime de genocdio contra ele no retira estapossibilidade, como se depreende do julgado da Corte Internacional de Justia a

    respeito da responsabilizao da Srvia em relao ao crime de genocdio ocorridona Bsnia-Herzegovina.38 A responsabilizao internacional poderia ser invocadapor um Estado Parte do Tribunal (actio popularis) perante a Corte Internacional deJustia. Alm disso, o prprio Tribunal Penal Internacional, atravs de reunio desua Assemblia dos Estados Parte, poderia comunicar formalmente o fato aoConselho de Segurana da ONU, pedindo providncias daquele rgo nos termosda Resoluo n. 1593.

    Concluso

    Tendo em vista o exposto deve-se considerar que:

    37 Even though such state responsibility remains civil, it must be emphasized that the consequencesof a serious breach of a peremptory norm of international law are not exhausted by the regime of stateresponsibility: they can, and should, provoke a much wider, institutional reaction, such a Chapter VIIaction by the Security Council or enforcement action by regional organizations (MILANOVIC, 2006, p.603).38 Isto porque o elemento subjetivo do tipo penal genocdio o dolo especfico, o que torna sua provamuito difcil. O processo internacional penal adota, em relao a este crime, o mais rigoroso standardprobatrio: proof beyond any reasonable doubt, devido seriedade de sua imputao. Neste sentidoo fato de Bashir no ser formalmente acusado de genocdio no significa que sua priso e julgamentopelo Tribunal Penal Internacional no sejam vitais para o fim da ocorrncia deste crime naqueleEstado. Em relao ao elemento subjetivo do tipo penal do genocdio vide MILANOVIC, Marko,Responsibility , cit , p. 594. Deve-se ressaltar, contudo, que a Cmara de Apelao do Tribunal PenalInternacional determinou que a Cmara de Pr-Julgamento reconsiderasse o pedido do Procurador arespeito da incluso do crime de genocdio no mandado de priso, sugerindo uma possvel mudanade entendimento a respeito do assunto, neste sentido vide http://www.icc-cpi.int/Menus/ICC/Situations+and+Cases/Situations/Situation+ICC+0205/

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    23/27

    23

    1. O Brasil possui a obrigao internacional de cooperar com o Tribunal PenalInternacional. Esta obrigao est prevista de forma especfica nos artigos 86e 91, 2, c do Estatuto de Roma, ratificado pelo Estado brasileiro.

    2. As questes relativas compatibilidade entre o Estatuto de Roma e aConstituio brasileira no tocante s garantias relativas ao procedimento deextradio, priso perptua e a imprescritibilidade de crimes no sopertinentes ao presente pedido de cooperao, pois a norma constitucionalinvocada tem seu mbito de aplicao reservado a brasileiros e estrangeirosresidentes no pas, o que no o caso do Presidente do Sudo. Trata-se decaso de aplicao direta do artigo 4, II da Constituio Federal, o qual dispeque, em suas relaes internacionais, o Brasil se pautar pela prevalnciados direitos humanos.

    3. No h que se falar em respeito a imunidade de um Chefe de Estado emrelao ao presente pedido de cooperao. As imunidades previstas naConstituio no se dirigem a chefes de Estado estrangeiros, tambm nosendo aplicveis as imunidades diplomticas previstas na Conveno deViena. A imunidade de chefes de Estado em visita regra costumeira geral e,enquanto tal, no se aplica a Omar al Bashir porque, no caso de um chefe deEstado acusado pela prtica de crimes internacionais com mandado de prisodecretado o Brasil adota expressamente o artigo 27 do Estatuto de Romacomo norma especfica, o qual dispe sobre a irrelevncia da qualidade oficialcomo ensejadora de imunidade em relao a crimes internacionais.

    4. Caso no aquiesa com o pedido de cooperao do Tribunal PenalInternacional o Estado brasileiro ser passvel de responsabilizaointernacional por ato ilcito. Esta responsabilidade poderia ser invocadaperante a Corte Internacional de Justia por qualquer Estado ou, ainda,perante o Conselho de Segurana da ONU por meio de comunicao formalda Assemblia dos Estados Parte do Tribunal Penal Internacional.

    REFERNCIAS

    AMARAL JNIOR, A.Introduo ao Direito Internacional Pblico . So Paulo : Atlas, 2008.

    BEDERMAN, D. J. Counterintuiting Countermeasures.The American Journal of

    International Law , vol. 96, n. 4. p. 817-832, oct. 2002.BRASIL.Constituio da Repblica Federativa do Brasil (promulgada em 5 deOutubro de 1988). So Paulo : Saraiva, 2008.

    BRASIL.Cdigo Penal . Organizao dos textos, notas remissivas e ndices porJuarez de Oliveira. 31. ed. So Paulo : Saraiva, 2004.

    BRASIL.Decreto n. 4388 de 25 de Setembro de 2002 . Promulga o Estatuto deRoma do Tribunal Penal Internacional. Publicado no Dirio Oficial da Unio em26/09/2002.

  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    24/27

    24

    BUCHET, A. Le Transfert devant les juridictions internationalesin ASCENSIO, H.;DECAUX, E.; PELLET A. (Orgs.)Droit International Penal . Paris : A. Pedone, 2000,p. 969-980.

    BURNIAT, N.; APPLE, B. Genocide in Darfur: Challenges and Opportunities for Action. The ICC Monitor : Journal of the Coalition for the International Criminal Court,p. 10-11, n 37, 2008.

    CARON, D. D. The ILC Articles on State Responsibility: the paradoxical relationshipbetween form and autorithy. The American Journal of International Law , Vol. 36,n. 4, p.857-873, out. 2002.

    CASSESE, A. The Statute of the International Criminal Court: some preliminaryreflections. European Journal of International Law, Vol 10, p. 144-171, 1999.

    CRAWFORD, J. The ILCs Articles on Responsibility of States for InternationalWrongful Acts: A Retrospect.American Journal of International Law , Vol. 96, n.41, p. 874-890, set. 2002.

    DAVID, E. La Responsabilit de ltat pour absence de cooperation in ASCENSIO,Herv, DECAUX, Emmanuel; PELLET Alain (Orgs.)Droit International Penal . Paris: A. Pedone, 2000, p. 129-135.

    DIHN, N. Q.; DAILLIER, P.; PELLET, A.Direito Internacional Pblico . 2 ed.Lisboa : Fundao Calouste Gulbenkian, 2003.

    FRULLI, M. O Direito Internacional e os Obstculos Implantao deResponsabilidade Penal para Crimes Internacionais In: CASSESE, A.; DELMAS-MARTY, M. (Org.).Crimes Internacionais e Jurisdies Internacionais. Barueri :Manole, 2004. p. 269-327.

    HIZUME, G. C. Breves Reflexes Acerca da Questo da Cooperao Jurdica noTribunal Penal Internacional in MENEZES, W. (Coord.). Estudos de DireitoInternacional : Anais do 5 Congresso Brasileiro de Direito Internacional. Vol. X.Curitiba : Juru, 2007, p. 187-193.

    INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE.Press Release n. 2002/4bi . Disponvelem Acesso em: 12/08/2004.

    INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Arrest Warrant of 11 April 2000(Democratic Republic of Congo vs. Belgium):Summary of the Judgment of 14February, 2002 . Disponvel em Acesso em: 15/10/2009.

    INTERNATIONAL CRIMINAL COURT PRE-TRIAL CHAMBER I.Warrant ofArrest for Omar Hassan Ahmad Al Bashir. n. ICC 02/05-01/09, 4 March 2009.Disponvel em http://www.icc-cpi.int/iccdocs/doc/doc639078.pdf Acesso em22/09/09.

    http://www.icj-cij.org/http://www.icj-cij.org/http://www.icc-cpi.int/iccdocs/doc/doc639078.pdfhttp://www.icc-cpi.int/iccdocs/doc/doc639078.pdfhttp://www.icj-cij.org/http://www.icj-cij.org/
  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    25/27

    25

    INTERNATIONAL CRIMINAL COURT - THE OFFICE OF THE PROSECUTOR.Statement to the United Nations Security Council on the situation in Darfur, theSudan, pursuant to UNSCR 1593 (2005). The Hague, 2008.

    INTERNATIONAL CRIMINAL COURT OTP PRESS RELEASE. ICC Prosecutor:States must gear up for arrests. ICC-OTP-20081203-PR379_Eng. Informaoobtida no endereo http://www.icc-cpi.int/press/pressreleases/455.html no dia 16 deDezembro de 2008.

    INTERNATIONAL LAW COMMISSION.Responsibility of States forInternationally Wrongful Acts .

    KREB, C. Penas, execuo e cooperao no Estatuto para o Tribunal PenalInternacional. in CHOUKR, F. H.; AMBOS, K.Tribunal Penal Internacional . SoPaulo : Revista dos Tribunais, 2000, 125-147.

    MILANOVIC, M. State Responsibility for Genocide.European Journal ofInternational Law , vol. 17, n. 3, p. 553-604, 2006.

    _______. State Responsibility for Genocide: a follow up. European Journal ofInternational Law, vol. 18, n. 4, p. 669-694, 2007.

    MIRANDA, J. I. R.O Tribunal Penal Internacional frente ao Princpio daSoberania. Dissertao de Mestrado defendida na Faculdade de Direito daUniversidade de So Paulo em 17 de Maio de 2005.

    MIRANDA, J. A incorporao ao Direito interno de instrumentos jurdicos de DireitoInternacional Humanitrio e Direito Internacional dos Direitos Humanos. RevistaCEJ, n. 11, p. 23-26, maio./ago. 2000.

    PAULUS, A. L. The legalist groundwork of the International Criminal Court:commentaries on the Statute of the International Criminal Court. The EuropeanJournal of International Law , vol. 14, n. 4, p. 843-860, 2003.

    PELLET, A. Prsentation de la 1 Partie. in ASCENSIO, Herv; DECAUX,Emmanuel; PELLET, Alain (Orgs)Droit International Penal . Paris : A. Pedone,

    2000. 83-89.PIOVESAN, F. Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional . SoPaulo : Max Limonad, 2000.

    OOSTERVELD, V.; PERRY, M.; McMANUS, J. The Cooperation of States with theInternational Criminal Court.Fordham International Law Journal , vol. 25, n. 3, p.767-839, mar 2002.

    RAMOS, A. C. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional e a Constituio BrasileiraIn: CHOUKR, F. H.; AMBOS, K. (Org.)Tribunal Penal Internacional. So Paulo :

    Revista dos Tribunais, 2000. p. 245-288.

    http://www.icc-cpi.int/press/pressreleases/455.htmlhttp://www.icc-cpi.int/press/pressreleases/455.html
  • 8/10/2019 PalograficoEditadoasuhasusa

    26/27

    26

    RANGEL, V. M.Direito e Relaes Internacionais . 4. ed. So Paulo : Revista dosTribunais, 1993.

    RODAS, J. G. A extradio de brasileiro para o Tribunal Penal Internacional. Revista

    CEJ, n. 11, p. 32-35, maio/ago. 2000.SICILIANOS, L. A. La Responsabilit de ltat pour absence de prvention et derepresin des crimes internationaux. in ASCENSIO, H., DECAUX, E.; PELLET A.(Orgs.) Droit International Penal . Paris : A. Pedone, 2000, p. 115-128.

    SMITH, D.Atlas do Conflitos Mundiais . So Paulo : Companhia Editora Nacional,2007.

    SOARES, G. F. Imunidades de jurisdio e foro por prerrogativa de funo. RevistaCEJ, n. 11, p. 55-58, maio/ago. 2000.

    STOMPOR, J. High Expectations for ICC Investigation Despite Worsening Situationin Darfur.The ICC Monitor , n. 33, p. 12, 2007.

    SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.Petio 4625-1 Repblica do Sudo. Braslia,2009.

    UBDA, M. LObligation de Cooprer avec les Juridictions Internationalesin ASCENSIO, H.; DECAUX, E; PELLET A. (Orgs.)Droit International Penal . Paris : A. Pedone, 2000, 951-967.

    UDOMBANA, N. J. When Neutrality is a Sin: The Darfur Crisis and the Crisis ofHumanitarian Intervention in Sudan.Human Rights Quarterly , n. 27, p. 1149-1199,2005.

    UNITED NATIONS GENE