Palestra Safatle

download Palestra Safatle

of 6

Transcript of Palestra Safatle

  • 7/26/2019 Palestra Safatle

    1/6

    Safatle: "Em poltica, entrar em

    confrontao desconstruir circuitos de

    afetos"09/05/2016 - 18h06

    Palestra do professor da USP estdisponvel na ntegra

    A palestra Medo, esperana, desamparo: por uma poltica dos afetos, proferida pelo filsofo e professor daUSP Vladimir Safatle na Reitoria da UFBA,no dia 02/05, jestdisponvel em vdeo, na ntegra, no Repositrioda UFBA.

    O vdeo pode ser acessado clicando aqui.Leia, abaixo, uma transcrio dos principais trechos da palestra:

    Livro Circuito dos afetosO livro ["O circuito dos afetos - Corpos polticos, desamparo e o fim do indivduo", recm-lanado pela EditoraAutntica] todo partiu de uma reflexo acerca da natureza dos vnculos sociais e da insistncia de que associedades no so simplesmente circuitos de circulao de bens, riquezas e de produo. Isso significa que asquestes vinculadas a uma teoria da justia no devem simplesmente se direcionar a uma reflexo pontual sobreproblemas de distribuio e de redistribuio de riqueza - embora esses problemas tenham a sua relevncia. Masno sendo um mero circuito de bens e de riquezas - de objetos - , as sociedades so, antes de mais nada, umcircuito de afetos. Isso significa que as sociedades tm, na sua circulao de afetos, a base da constituio dosvnculos sociais. Somos sujeitos que entram nos vnculos sociais corporificados - isso significa que ns nosdeixamos afetar de certas formas, ns evitamos ser afetados de certas formas. Eu diria que quem controla osmodos de afeco controla a visibilidade e a urgncia dos fatos polticos.

    PolticaPoltica uma questo do que eu sou capaz de sentir e do que eu no sou capaz de sentir; do que eu sou capaz deperceber e do que no sou capaz de perceber; do que eu sou capaz de ver e do que eu no sou capaz de ver. Quemcontrola o regime de visibilidade, o regime de percepo e o regime de sensibilidade define a configurao docampo poltico. Por isso huma aesthesis- uma esttica - na base de toda poltica. Mas uma esttica no sentidode que huma determinao sobre os modos de afeco nos tempo e no espao como fundamento do regime devisibilidade que organiza o campo do poltico. uma maneira de lembrar que a experincia poltica no aconstituio de um campo no qual ns poderamos organizar o debate racional a partir de demandas de consensoem direo possibilidade de identificar o melhor argumento no interior de um processo de argumentao. Comose houvesse uma racionalidade comunicacional de base no interior do que poderamos entender como a "razo"no campo da experincia poltica. Ao contrrio: sendo o campo social organizado a partir do circuito de afetos,poltica , antes de mais nada, um embate a respeito do que os afetos trazem no seu interior. Porque a maneira

    como eu sou afetado socialmente constituda da sensibilidade, ela significa a adeso a uma certa forma de vida,a uma histria da experincia, que se enraza no seu interior na maneira com que os corpos so constitudos, comque a corporeidade constituda.

    Corpo

    Ns, de uma certa maneira, nos acostumamos idia de uma diviso, que tem suas razes profundas na histriada metafsica ocidental. Poderia lembrar das discusses de Plato [Fedro] sobre como a entrada do corpo na cenada experincia social provoca distores e distrbios. Temos essa idia de que, de uma certa maneira, deve existiruma diviso entre a razo e a irracionalidade dos afetos e da corporeidade. Ento s[haveria] dilogo racionalpossvel londe ns conseguiramos afastar o que da ordem da dimenso dos afetos, como se os afeto fosse aexperincia do irracional, das fantasias, das crenas que se misturam aos desejos... que vo constituindo umncleo que deve ser desconstitudo se ns quisermos impor o regime de funcionamento de uma sociedade que

    capaz de dar conta de expectativas de racionalidade. Essa leitura criticvel.

    https://www.ufba.br/noticias/vladimir-safatle-palestra-sobre-pol%C3%ADtica-dos-afetos-na-reitoria-da-ufbahttps://www.ufba.br/noticias/vladimir-safatle-palestra-sobre-pol%C3%ADtica-dos-afetos-na-reitoria-da-ufbahttp://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/19081http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/19081http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/19081https://www.ufba.br/noticias/vladimir-safatle-palestra-sobre-pol%C3%ADtica-dos-afetos-na-reitoria-da-ufba
  • 7/26/2019 Palestra Safatle

    2/6

    Corpo poltico

    A metfora do corpo poltico usada insistentemente pelos mais diferentes filsofos: Hobbes, no Leviat;Spinoza, na discusso sobre o corpo poltico; Rousseau, no corpo poltico. Se andarmos frente, e chegarmos filosofia contempornea, Deleuze e Guatari, [temos a idia do] social como um corpo sem rgos. Todo esse usotalvez indique que no se trata, em todos esses casos, de um pertencimento dessas perspectivas filosficas a umacompreenso autoritria do poder. Mas essa presena constante demonstra que, na verdade, o que elas tm emcomum? O fato de que a instaurao poltica indissocivel de um processo de incorporao da sociedade. Nohexperincia poltica sem alguma forma de incorporao. E essa incorporao pode se dar de vrias maneiras, eessa maneira orgnica, unitria, identitria uma delas. Poltica nunca foi, nunca ser, nunca um espaodesincorporado.

    Corpo poltico e Estrutura dos afetos

    O exemplo que me parece paradigmtico o medo como afeto poltico. O medo como afeto poltico central, quecria uma certa idia de corpo social. Temos uma idia maior deste debate, fornecida pela teoria hobbesiana.Vamos lembrar alguns aspectos fundamentais da teoria hobbesiana, jque hobbes tem essa grande virtude decompreender, de fato, como a experincia afetiva o elemento decisivo na constituio da legitimidade do podersoberano. Hobbes parte do pressuposto de que a sociedade uma associao entre termos sem relao natural.Esses termos so o que Hobbes chama de "indivduos". Esses indivduos no tm lugar natural - ou seja, no tem

    nenhum lugar que lhes seja prprio. Eles so marcados por uma experincia na qual a natureza deu a eles odireito de tudo desejar. Os indivduos podem tudo desejar. E exatamente por no terem uma naturalidade na suadeterminao de local - todos desejam tudo - , [que] ns entramos, necessariamente, em um modelo de relaoque tem duas caractersticas centrais: ele belicista e concorrencial.

    Ele belicista - ou seja: huma iminncia da violncia como elemento fundamental da relao entre indivduos,que pode ser expressa pela despossesso dos meus bens, do risco da morte violenta - e concorrencial - porquetrata-se de compreender que essa relao entre indivduos organiza uma concorrncia contnua entre todos os quecompem a vida social. Dentro desse universo aparece essa fantasia social por excelncia, que a guerra de todoscontra todos. A sociedade a iminncia de uma guerra de todos contra todos, devido natureza possessiva econcorrencial da relao entre os indivduos.

    MedoDentro desse universo, o poder de Estado aparece como aquele que, sua maneira, vai conseguir estabelecer umpacto de segurana: vai reconhecer o medo nos indivduos, vai transformar este medo em uma paixocalculadora. Porque, atravs do medo, eu posso calcular os danos possveis das aes, eu posso prever danospossveis, eu organizo uma expectativa dos danos graas a experincias passadas uma expectativa que aexpresso de uma temporalidade que se organiza a partir da lembrana dos danos. E essa temporalidade instaurauma racionalidade social baseada no medo como uma paixo calculadora. Esse medo vai ser o fundamento, oesteio para a constituio do poder de Estado. Por isso podemos dizer que o poder de Estado o poderhobbesiano ele o bombeiro e o piromanaco da vida social.

    Ele o bombeiro porque fornece a todos o indivduos a possibilidade da garantia da experincia da segurana,num pacto em que eles fornecem ao Estado a possibilidade do uso da violncia devido garantia da segurana.

    Por outro lado, o Estado o piromanaco, porque ele deve lembrar a todo momento sociedade que, se ele,Estado, no estivesse l, a insegurana reinaria. Ele deve lembrar a todo momento da insegurana na vida social.Ele deve gerir a insegurana: um gestor da insegurana total. Porque no se trata de livrar a sociedade dos seusfantasmas da insegurana; trata-se de geri-los no interior de uma lgica prpria de legitimao do Estado.

    A primeira pgina do Leviattem uma figura, o corpo social. o corpo do rei, que tem uma srie de pequenoscorpos que ocupam o seu lugar e tm uma funo especfica: so os estratos da vida social, os estamentos da vidasocial que se organizam no interior desse grande corpo soberano, esse segundo corpo do rei. Essa figura da

    soberania, sua maneira, no fica spresente no estado absolutista: vai ser o horizonte fundamental da nossavida poltica em vrios momentos. O medo vai aparecer como figura social como excelncia: essa demanda deamparo, a poltica como uma demanda de amparo a figuras de autoridade que vo ocupar esse lugar de soberania.

    Poderamos fazer uma grande fenomenologia desses processos no interior da vida poltica contempornea.

  • 7/26/2019 Palestra Safatle

    3/6

    Esperana

    Sque, normalmente, quando ns tentamos nos contrapor a esse modelo de corpo social construdo pelo medocomo afeto, ns fazemos apelo a um outro afeto - que , normalmente, a esperana. A esperana o afetofundamental que pode colocar em curto-circuito o medo. Sque, talvez valha a pena lembrar das discusses deSpinoza sobre a complementaridade entre esses dois afetos. A respeito da idia de que no hesperana semmedo, nem medo sem esperana. Por que? Porque a esperana nada mais que a expectativa de um bem quepode ocorrer no futuro. Enquanto o medo nada mais que a expectativa de um mal que pode ocorrer no futuro.Sque quem tem a expectativa de que um bem pode ocorrer, tambm teme que esse bem no ocorra. Quem temexpectativa de um mal que pode ocorrer, tambm tem a esperana de que esse mal no ocorra. Ento, esses doisafetos estabelecem uma relao de contnua polaridade, de passagem no oposto, um no outro - por isso essa idia:no hmedo sem esperana, no hesperana sem medo.

    Mas o que esses afetos tm em comum? Tm em comum, antes de mais nadas, [o fato de] serem um mesmomodo de afeco no tempo. Tanto o medo quanto a esperana organizam a experincia atravs da projeo de umhorizonte de expectativas. Eu organizo o tempo sob a forma da submisso do desdobrar do tempo projeo deum horizonte de expectativas seja de um mal que ocorrer, seja de um bem que ocorrer. Exatamente por ter essaligao a uma mesma forma de experincia temporal que esses afetos tm uma relao profunda entre si.

    Utopia

    Ns conhecemos algumas figuras polticas da esperana como afeto social central. Uma delas a idia de utopia.A utopia aparece como a idia desse corpo social por vir. Diferente do corpo social tal como ele se constitui comseus antagonismos atuais, ele um corpo que se projeta no futuro, que objeto da expectativa das nossas aes.Mas vejam que interessante: uma poltica baseada na utopia tem duas caractersticas fundamentais: uma polticado esvaziamento do tempo e da defesa contra a contingncia. Esses dois elementos me parecem decisivos.

    Por que uma poltica do esvaziamento do tempo? Porque trata-se de esvaziar o tempo de todo acontecimentoque no seja a confirmao de uma projeo prvia, feita no interior do nosso horizonte de expectativas. Esse tipode modelo parte da idia de que possvel esvaziar o tempo de todo acontecimento que no seja a confirmaodesse elemento prvio. possvel controlar todo acontecimento, possvel lutar contra isso. Mas vejam que dadointeressante: para que haja tempo, no necessrio apenas que determinemos o modo das sucesses e dos

    acontecimentos. necessrio que ns possamos admitir que huma plasticidade da experincia temporal, que elauma resultante, entre outras coisas, do impacto do tempo das coisas. Do tempo que, de uma maneira ou deoutra, produz acontecimentos.

    E daento o segundo elemento: uma poltica baseada na utopia uma poltica baseada na defesa contra todo equalquer tipo de contingncia. Por que contingncia? Se ns pensarmos contingncia para alm da idiaaristotlica clssica como aquilo que poderia ser outro , e compreendermos contingncia como aquilo que, nointerior de uma situao dada, impossvel de ser previsto e pensado, mas [que], quando ocorre, modifica asituao dada de forma tal que ela nos obriga a passar a uma outra situao - ou seja, algo que, mesmo sendoimpredicado, quando ocorre, cria retroativamente um sistema de necessidades; se ns admitirmos isso, percebam:a experincia poltica que se abre contingncia a experincia poltica que no se organiza mais a partir denenhuma forma de expectativa. Ela compreende que os verdadeiros acontecimentos depem toda e qualquer

    expectativa.

    Acontecimento

    No toa que, diante de um acontecimento real, normalmente a reao mais tpica dos atores sociais "ns noestamos entendendo nada!". Essa era a frase mais ouvida na Revoluo Francesa. Por que? Porque oacontecimento no obedece a um sistema de previso, de inteligibilidade dado de antemo. Ns vimos isso em2013 - no era[m] essa[s] a[s] frase[s] que as pessoas mais diziam: "ns no estamos entendendo nada"; "isso noera para estar ocorrendo"; "no era para ocorrer o que estocorrendo"? Isso significa que estvamos diante de umverdadeiro acontecimento. O acontecimento aquilo que traz em si mesmo a sua prpria medida de avaliao.

    Desamparo

    Queria insistir em um terceiro afeto, que, a meu ver, pode ter uma fora, uma importncia poltica decisiva: o

    desamparo como afeto poltico. Essa uma idia que vem de um psicanalista, Sigmund Freud: o que nos abre experincia social o desamparo. Ele faz uma diferena muito clara entre medo e desamparo: no so a mesma

  • 7/26/2019 Palestra Safatle

    4/6

    coisa. Ele diz: medo a expectativa que eu produzo diante de um objeto de perigo que eu sou capaz derepresentar. Ento, eu represento esse objeto de perigo suposto e organizo a minha ateno, a minha expectativa,atravs da possibilidade da realizao desse objeto. Qual a idia fundamental aqui? A possibilidade derepresentar o objeto, submet-lo a um sistema prvio de representao de coordenadas. [Enquanto] desamparo uma reao a um objeto, a um acontecimento, que eu no consigo representar, porque ele quebra o meu sistemade representaes. Ele quebra meu sistema de projees. E por isso o desamparo equivale ao desabamento da

    ao: eu no consigo mais agir, momentaneamente, porque eu no sei mais como agir. porque eu no sei maiscomo responder. Porque eu no consigo representar de maneira adequada aquilo que parece como objeto do meuafeto. Freud vai dizer: o outro no aquele que me confirma, no meu sistema suposto de interesses; o outro aquele que me desampara, que me obriga me narrar de outra forma, a recompor minha estrutura narrativa, a me

    redescrever. Ele me colocou diante de uma experincia de implicao afetiva que quebrou minha capacidadeprvia de representao.

    Essa ideia de desamparo muito importante para Freud. Ele vai tirar o desamparo de uma situao meramentebiolgica - por exemplo, o desamparo da criana diante do nascimento, diante da impossibilidade de a me estarpresente em todas as situaes de demanda - para transformar praticamente em uma definio ontolgica, decerta insegurana existencial, que vai ser constitutiva da experincia individual. O que interessante neste caso?Freud vai lembrar o seguinte: desamparo no algo que ns curamos. No se cura o desamparo. Desamparo

    algo que se afirma. Por que? Porque, de certa forma, o desamparo uma figura fenomenolgica fundamental daliberdade. Existe uma vinculao fundamental entre liberdade e desamparo, que faz com que a experinciafreudiana seja uma experincia em que, antes de mais nada, no se trata de constituir figuras de amparo, mastrata-se, na verdade, de permitir a circulao do desamparo.

    Autoridade

    Do ponto de vista poltico, hum dado muito interessante aqui. Ns conhecemos algumas tendncias polticascontemporneas que tendem a compreender as demandas polticas como demandas de "amparo". Por exemplo, osamericanos falam da poltica do "care", do cuidado. Mas vejam que interessante: a demanda por cuidado umademanda antipoltica por excelncia. Porque quem demanda cuidado demanda cuidado para algum. Algum queeu constituo como capaz de ouvir e de dar conta do meu desamparo. Ou seja: eu constituo uma autoridade que

    ganha sua fora atravs da possibilidade que ela teria de responder ao meu desamparo. Sque a poltica no a

    constituio de uma autoridade a desconstituio de toda forma de autoridade, atravs de um processo defortalecimento da capacidade de criao dos prprios sujeitos que organizam suas demandas.

    Voltando discusso freudiana do desamparo como forma de liberdade: entre outras coisas, ns estamos muitoacostumados idia de que a liberdade , antes de mais nada, conjugada sob a forma da autonomia. Ou seja: essaidia, como jdizia Rousseau, de que ser livre poder ser o legislador de si mesmo, poder dar a si mesmo a suaprpria lei. [Essa figura tem como base] a idia de que autonomia, autonoms, como auto-legislao, comocapacidade que eu tenho de ser imanente minha prpria legislao. A minha vontade imanente minhaprpria lei.

    Isso ao ponto de algum como Kant poder dizer que, mesmo aquela conscincia que no tem nenhumaexperincia do mundo capaz de saber o que fazer diante da exigncia da lei moral. Eu posso, por exemplo, neste

    momento, no saber se eu no conto mentiras por amor lei ou por medo da coero, [por] medo de serdescoberto. Eu posso no saber se eu ajo por um princpio de conduta moral ou por simplesmente um clculosocial que me diz "se eu mentir, o que eu receberei vai ser profundamente problemtico." Mas, para Kant, muito claro: mesmo sem saber qual a motivao real, eu sei "como eu devo agir" para respeitar a lei. Eu sei que,em qualquer circunstncia, mentir contra a lei moral. Huma imediaticidade sinttica, mesmo que no hajauma imediaticidade semntica com respeito ao contedo.

    Essa imanncia que faz com que eu seja causa de mim mesmo, porque eu sou legislador de uma lei que aexpresso imediata da minha prpria vontade ela fundou nossa idia do que liberdade. De uma certa maneira,se naturaliza um princpio que , atravs da imanncia que eu tenho em relao minha prpria lei (em sentidofigurado, minha vontade), [o de que] eu posso tomar distncia dos meus prprios desejos, posso julgar os meusprprios desejos.

  • 7/26/2019 Palestra Safatle

    5/6

    Poder e dominao

    O que interessante no caso de Freud ele trazer uma de liberdade que , antes de mais nada, no umaautonomia, mas uma heteronomia mas uma heteronomia sem sujeio. O que significa uma heteronomia semsujeio? Eu reconheo que o que me causa vem do exterior; sque esse exterior no simplesmente uma outravontade que submete a minha vontade porque ele algo tambm que, no outro, aparece para alm da suaprpria vontade. sempre interessante a gente lembrar o seguinte: o poder nunca nos colocou problema o quenos coloca problema a idia de dominao. A idia de que a minha vontade sersubmetida vontade de umoutro. Mas o poder, no sentido de eu me abrir a algo que me causa de fora, que tem impacto, que consegue me

    afetar de fora e que eu no controlo - e que talvez o outro tambm no controle isso nunca colocou problema.Vejam que interessante: se esse for o modelo, de fato, de uma experincia de liberdade, o que ns temos comodesamparo a idia de que toda sociedade que se organiza e se pensa como uma associao entre indivduos vaiter sempre o medo como afeto poltico central. E ns conseguirmos nos livrar do medo como afeto polticosignifica, entre outras coisas, sabermos nos livrar do indivduo como figura fundamental da vida social.

    Indivduo

    O que um indivduo dentro da nossa tradio liberal? , antes de mais nada, aquele que dotado de trscaractersticas fundamentais: um sistema de interesses; a possibilidade de propriedade; [e o hbito de estabelecer]relaes de uma forma contratual.

    O que so interesses? O sistema de interesses o meio termo entre a paixo e o clculo. O interesse acapacidade que eu tenho de submeter a paixo a um certo clculo, a um clculo da maximizao do prazer, doafastamento do desprazer, da reflexo sobre a utilidade. Esse modelo de submisso faz com que eu submeta aracionalidade da minha conduta possibilidade de uma contabilidade, que jvem desde os utilitaristas a idiade que existe uma contabilidade da felicidade a ponto de eu poder falar que ao moral a que produz a maiorfelicidade para o maior nmero de pessoas. O indivduo aprende a submeter suas aes a uma contabilidade vocs mesmos [demonstram que] internalizaram esse processo, quando, no interior de uma relao afetiva, vocsfalam: Mas eu investi tanto! No sei se vocs jpararam para perceber o que realmente se fala quando se falaisso. Como assim vocinvestiu tanto? Voctem a medida do investimento? Foi um investimento malrealizado? Adorno fazia uma crtica a uma psicanalista chamada Karen Horney, que falava que uma relaoafetiva bem sucedida uma relao marcada pela reciprocidade, pela consensualidade e por um certo padro

    [dessa] reciprocidade eu dei o quanto eu recebi. Adorno [ento] falava: para Karen Horney, uma boa relaoafetiva uma boa relao mercantil: eu paguei e recebi mais ou menos a mesma coisa. Isso simplesmente amaneira como os indivduos organizam seus sistemas de interesse.

    Por isso, entre outras coisas, a segunda caracterstica fundamental que os indivduos organizam as relaes a sisobre a forma da propriedade. No toa que algum como Locke vai descrever o indivduo como aquele que proprietrio da sua prpria pessoa, no Segundo Tratado do Governo. Jpensaram no que significa essa idia deself ownership, de ser proprietrio de si mesmo? Que eu estabeleo meu modo de relao sob a forma do quepode se dar a partir da disposio de objetos dos quais eu sou o proprietrios. O indivduo [nessa concepo] proprietrio no sde objetos ele proprietrio dos seus atributos, dos seus predicados. Ele determina suaidentidade a partir da possibilidade de predicao suposta. Essa predicao suposta , antes de mais nada, umarelao de possesso. Ele tem uma estrutura possessiva: daporque ele organiza suas relaes sob a forma do

    contrato. Por que o que a relao do contrato - seja ele o contrato suposto, social, efetivo a no ser apossibilidade de determinar o usufruto de certos bens e propriedades no interior de uma experinciaintersubjetiva?

    Talvez vocs lembrem de uma brincadeira importante que Hegel fazia com Kant, em que ele falava veja como o barbarismo dessa compreenso das relaes subjetivas como relaes de contrato. Kant definia o casamentocomo um contrato entre duas pessoas de sexo diferente pelo usufruto das qualidades sexuais do outro. O que

    Hegel dizia era: veja que coisa engraada: se eu for kantiano, se eu chegar em casa, depois do meu dia detrabalho, e quero transar com a minha mulher, [mas] ela no quer... eu chamo a polcia! Eu estou sendo lesadonas minhas relaes contratuais, eu tenho direitos! Isso para dizer: veja quo brbara a metfora do contrato nointerior dessas relaes intersubjetivas.

    Por qu? Porque, antes de mais nada, as relaes intersubjetivas no so relaes de confirmao consensual deinteresse. Relaes intersubjetivas reais e concretas so relaes de despossesso. Eu sou despossudo pelo outro:

  • 7/26/2019 Palestra Safatle

    6/6

    sou despossudo das minhas narrativas, sou despossudo da minha forma de organizar meus interesses pelaimplicao que eu tenho em relao ao outro. Huma despossesso que no simplesmente a despossesso dosbens, mas a despossesso dos atributos, dos meus predicados, que da esse tipo de relao a sua dinmicaprpria.

    Desamparo: afeto poltico central

    Ento, podemos nos perguntar: mas o que isso tem a ver com a experincia poltica? Quando Freud falava que aexperincia intersubjetiva marcada pelo desamparo [] porque ele compreendia que essas experincias eramexpresses de despossesso, que obrigam a me deparar com alguma coisa que, do ponto de interesse dosindivduos, no era pensvel, mas que, no entanto, me implica; [algo que] no era controlvel, mas, no entanto,me implicam; e essa implicao me obriga a uma redescrio contnua de mim mesmo. A uma reconstruocontnua do que eu entendia ser eu mesmo. Esse processo, do ponto de vista dos indivduos, irracional doponto de vista da conservao dos indivduos, ele completamente irracional. E abre um outro modelo dedinmica de vnculos de implicao social.

    Ento, voltando nossa discusso sobre poltica: o que significa elevar o desamparo a afeto poltico central?Significa, primeiro, compreender que o campo da experincia poltica marcado por acontecimentos que socontingentes, que so impredicveis, que so imprevistsos, e que nos obrigam a todo momento a reconstruirnossas normatividades, a regularidade das nossas normatividades a normatividade nada mais que um modelode organizao do tempo sob a norma da regularidade.

    Admitir que ho acontecimento que quebra normatividades e que impe novas normatividades compreenderque o tempo o tempo poltico no o tempo da regularidade; o tempo das quebras; o tempo dasdesarticulaes; este tempo a condio fundamental para um processo efetivo de criao e redescrio contnua,que o elemento fundamental da experincia social. Esse tempo spode ser vivenciado londe o discursopoltico jno mais o discurso da segurana que na verdade o discurso da gesto contnua da insegurana,que faz com que as figuras de autoridade apaream como as figuras de um amparo possvel, que podem nosamparar, que prometem para ns um momento, uma situao de tolerncia zero com a insegurana, em quenenhuma insegurana nos afetar.

    Eu poderia dar um exemplo, spara ir terminando. Hanos atrs, na Inglaterra, uma pessoa mentalmentedesequilibrada pegou uma machadinha e saiu gritando na rua Alseja louvado!. Por infelicidade, esse sujeito deuuma machadinha num guarda isso estava sendo filmado e matou o guarda. Trs horas depois, o primeiro-ministrobritnico David Cameron estava no parlamento dizendo: Eles nunca passaro. Eles nunca nos vencero. Eles quem?A loucura? Vocs percebem o que significa voctransformar o medo em elemento fundamental da gesto social? Umlouco com uma machadinha para um pas. E parou um pas inteiro. Por que ele parou um pas inteiro? Porque, odiscurso de um pas todo foi criado [fundamentalmente de maneira que], no importa o que acontea, qualquer coisavai servir