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PAISAGENS DE SAL: CONEXÕES ENTRE ARARUAMA (BRASIL),
SALAR DE UYUNI (BOLÍVIA) E DESERTO DO ATACAMA (CHILE) Sérgio Augusto de Oliveira / Universidade do Estado de São Paulo Comitê de Poéticas Artísticas
PAISAGENS DE SAL: CONEXÕES ENTRE ARARUAMA (BRASIL), SALAR DE UYUNI (BOLÍVIA) E DESERTO DO ATACAMA (CHILE) Sérgio Augusto de Oliveira / Universidade do Estado de São Paulo
RESUMO
O artigo apresenta o estado da pesquisa que discute a influência do sal na formação das paisagens típicas dos salares, salinas e desertos na América do Sul, tendo como objetos de investigação as salinas de Araruama/RJ no Brasil, o Salar de Uyuni na Bolívia e o Deserto do Atacama no Chile; locais que se pretende a realização de residências com o objetivo de produzir intervenções locais, bem como a coleta de fotografias, vídeos e entrevistas, no intuito de investigar as características próprias de cada espaço e sobretudo promover uma integração regional e cultural/artística na busca de reconhecer semelhanças e diferenças entre as paisagens escolhidas, a partir do elemento sal.
PALAVRAS-CHAVE sal; material; residência; arte contemporânea; instalação. ABSTRACT
The article presents the state of research that discusses the influence of salt in the formation of the typical landscape of salt flats, salt marshes in South America, with the objects of investigation the salt of Araruama / RJ in Brazil, the Salar de Uyuni in Bolivia and the Desert Atacama in Chile; sites that want to conduct residential property with the goal of producing local interventions, as well as the collection of photographs, videos and interviews, in order to investigate the characteristics of each space and especially promote regional and cultural / artistic integration in search recognize similarities and differences between the chosen landscapes, from the salt element. KEYWORDS
material; residency; contemporary art; salt; installation view
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Introdução
A presente investigação se configura como continuidade da pesquisa de Mestrado,
defendido em 2014, que se iniciou com a produção de objetos e instalações
produzidos com sal, tomando como elementos de diálogo as associações
simbólicas, físicas ou experienciais com o material, bem como experimentos de
contato com outros materiais, como metais, plásticos e resina.
Ao escolher o sal como matéria para a produção de trabalhos artísticos, busquei
demonstrar e enfatizar o diálogo existente entre o artista e a matéria, nos moldes
como Luigi Pareyson (1918–1981) define o “diálogo do artista com a sua matéria, no
qual o artista deve saber interrogar a matéria para poder dominá-la, e a matéria só
se rende a quem soube respeitá-la” (PAREYSON, 2001, p. 164).
“A matéria só se rende a quem soube respeitá-la. Luigi Pareyson” (2012–2014)
Serjão Augusto Sal e desenho sobre latão em caixa de vidro, 30 x 30 cm
Deste modo, no Mestrado a pesquisa investigou tais relações e, ao final dele, percebi
a necessidade de uma maior aproximação com a formação natural e essencial do sal,
surgindo a idéia da realização de uma residência numa salina. Assim, foi realizada
uma residência de sete dias na região dos Lagos, focada na cidade de Araruama
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(RJ), que proporcionou uma vivência e compreensão mais abrangente sobre os
elementos formadores do sal, a partir da observação das salinas da região implicando,
sobretudo, em novas articulações com a pesquisa em desenvolvimento.
Tal contato também revelou um novo modo de dialogar com o sal, permitindo
observar, através de seu processo de formação, as variações cromáticas que o
material sofre, suas múltiplas texturas, a vida que o circunda, os vínculos vitais que
estipula com esses seres, assim como as mudanças e interferências que provoca no
ambiente e nos trabalhadores envolvidos no processo.
A consequente projeção para o espaço aberto e natural também provocou na
pesquisa mudanças relevantes, dando-lhe um caráter mais próximo ao conceito de
campo expandido1 que fundamentalmente embasou grande parte das produções
escultóricas pós anos 70 e assim se apresenta como pilar conceitual nesta pesquisa
ao contemplar, por exemplo, a noção de site specific, modalidade que foi explorada
em Araruama e que pretendo explorar nas demais residências.
Serjão Augusto
Intervenção na Salina Santa Teresa (Araruama/RJ), 2014
A escolha por salar, salina e deserto na América do sul reflete a tentativa de
investigar as características próprias de cada espaço, para confrontar com a
residência realizada nas salinas em Araruama (RJ) em 2014, promovendo uma
integração regional e cultural/artística na busca de reconhecer semelhanças e
diferenças entre as paisagens escolhidas.
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Serjão Augusto
Intervenção na Salina Santa Teresa (Araruama/RJ), 2014
O processo de residência também pretende relacionar e perceber com maior nitidez
a formação cultural e social da América Latina, já que a pesquisa vislumbra a
permanência em três países distintos (Brasil, Bolívia e Chile), o que promoverá, a
partir de uma referência comum (o sal), percepções de proximidade e de distinções
entre as regiões estudadas, assim como as inferências e transformações que a
matéria estipulou em cada espaço.
Através da produção de trabalhos de arte e de intervenções que pretendo executar
nos locais das residências, também vislumbro a possibilidade de diálogo com
artistas destas regiões, promovendo a construção e a amplitude das minhas ações
enquanto artista, assim como o contato com trabalhos de diferentes abordagens e
linguagens, associados a variadas culturas.
A experiência da residência surgiu diante da necessidade de ampliação da pesquisa
plástica que se baseou no material sal, tendo sido produzidos objetos e instalações
num primeiro momento da pesquisa, surgindo daí a possibilidade de partir para o
‘campo ampliado’ e de formação original do material.
Nas salinas de Araruama...
No desenvolvimento do trabalho e de acordo com o encaminhamento da pesquisa
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plástica percebi a necessidade de incorporar ao trabalho algo além da configuração
objeto/escultura que ele, até então, vinha se configurando. Pensei então num
processo de residência numa salina da região dos Lagos, Rio de Janeiro.
A residência foi executada em dois momentos: um em janeiro e outro em abril/maio
de 2014 totalizando uma permanência de sete dias na região, num processo de
registro e reconhecimento do ambiente das salinas.
Neste período, os registros e reconhecimento do espaço, num primeiro momento, se
deram no intuito de reunir informações sobre o material físico e humano, e
posteriormente foram coletados dados relacionados aos aspectos concernentes à
história e influência do sal na cultura e vida locais. Tais dados foram construídos
através de entrevistas com os salineiros e conversas informais com pessoas da
comunidade. Também realizei múltiplos registros em vídeo e fotografia que
documentam este processo, bem como tais registros utilizei na produção da
exposição de defesa do Mestrado e na análise dos elementos citados e presentes
no contexto da salina.
A realização desta atividade tornou-se relevante e importante, na medida em que
potencializou o processo de pesquisa, voltando-se para o aspecto prático, poético e
experimental, atrelado aos objetivos da linha de pesquisa “Processos e
procedimentos”, num desfecho ampliado em relação ao início da pesquisa.
A busca pela realização de trabalhos numa salina vai de encontro à ampliação da
pesquisa plástica para os âmbitos do espaço aberto, público, o que os torna
representativos no sentido transformador, espacial e específico da arte, tomando
assim uma direção focada na influência do espaço no trabalho de arte. Este mesmo
aspecto foi objeto de reflexão durante a construção dos trabalhos iniciais da
pesquisa, ainda em ateliê, ao construir diálogos entre o sal e as características
espaciais presentes como a temperatura e umidade, por exemplo.
A proposição da residência foi salientada diante da necessidade de complementar a
pesquisa, já que o desenvolvimento do trabalho foi direcionado para reflexões sobre
o elemento sal como matéria para a produção de arte, bem como suas
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transformações perante as influências sofridas, de maneira que a compreensão
sobre a formação e os ciclos de transformação tornam-se construtivas de um
universo de maior compreensão em relação ao material foco desta pesquisa.
Neste viés a proposta de residência inseriu-se na pesquisa como um elemento
constituinte do levantamento de campo, dando-lhe um caráter validador e de
potencial veia contemporânea.
Na possibilidade de aliar teoria com elementos práticos, esta pesquisa trouxe também,
reflexões acerca das interações entre arte e vida, num processo unificador e detentor
de caracteres próprios da linguagem e expressão, típicas do universo da arte.
O local escolhido é uma área de antigas e tradicionais salinas do Brasil: a região dos
Lagos no Rio de Janeiro; que tem natural destinação para a produção de sal
artesanal, tendo sido uma das principais fornecedoras para o mercado brasileiro há
muitas décadas. Araruama, São Pedro da Aldeia e Cabo Frio tem histórias ligadas à
exploração do sal, com clima e condições geográficas propícias à extração e
beneficiamento do sal marinho.
A região também já foi a maior produtora de sal do país na década de 70, tendo
atualmente como concorrentes, principalmente a região nordeste do Brasil (RN) e o
sal chileno.
Nos últimos anos, a produção salineira da região dos Lagos vem progressivamente
sendo desmontada através do sucateamento das estruturas das antigas salinas,
surgindo desse contexto, cenários que mesclam paisagens planas com moinhos e
construções remanescentes do período áureo da produção salineira, com áreas
abandonadas e com inserções visíveis da especulação imobiliária que ora se
aproveita, quando não estimula tal desmonte.
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Serjão Augusto
Detalhe de ferramenta abandonada em salina de Araruama (RJ), 2014
A residência realizada tornou-se, então, um elemento de fechamento de um ciclo de
pesquisa do Mestrado e que certamente se revelou definidor de um novo momento
da produção, tomando um rumo mais adequado às preocupações espaciais e de
apropriação de locais específicos.
A primeira visita à região aconteceu entre os dias 05 e 07 de janeiro de 2014 e
focou-se na região da Praia Seca em Araruama/RJ, local de implantação de várias
das primeiras salinas da região do Lagos. A proximidade com a lagoa de Araruama
foi fundamental para esta ocorrência, já que a mesma tem alto grau de salinidade.
Após longa e cansativa viagem, ao chegar em Araruama por volta das 21h30 do dia
05/01/2014 percebi um contato diferente com a lagoa de Araruama: ventos
fortíssimos e um cheiro estranho no ar. A lua estalava no céu, grande e luminosa,
espelhada nas águas movimentadas e muito agitadas produzindo um ruído parecido
com o do mar. Uma bela noite na Praia Seca que parecia ser um lugar tranquilo e
muito arejado, elementos fundamentais para a produção do sal.
No dia seguinte ao adentrar nas áreas destinadas às salinas e ao travar contato com
um primeiro salineiro iniciei um diálogo, onde o relato sobre as difíceis condições de
trabalho e subsistência foram a tônica da conversa. Foi descrita uma vida dura e
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pobre num ambiente hostil e de intensa exploração.
Este primeiro salineiro, em conversa informal, revelou-se como um salineiro em
tempo restrito, pois tinha outra atividade num supermercado da cidade, mas que
acompanhou, desde criança, a atividade realizada pelos pais, tios e avós.
Foram obtidos muitos dados através deste salineiro, desde a maneira de se construir
os poços de água destinados à produção na salina até detalhes sobre os moinhos e
relações de trabalho. Ele, gentilmente, forneceu dados sobre questões cotidianas,
como a relação entre patrão-empregado e empregados entre si, revelando o caráter
econômico e de subsistência que rege a atividade.
De forma humilde e simples, nas palavras do salineiro ficou claro que as condições
eram precárias e que em outros tempos o sal era bem mais valorizado, descrevendo
o “trabalho com o sal” como muito rentável, mas de variação muito grande, tornando
a atividade de caráter imprevisível. Esta sazonalidade, segundo ele, afasta e torna-
se decisiva para a diminuição e progressiva escassez de mão de obra na atividade,
exemplificando, inclusive a partir da vinda, em outros tempos, de trabalhadores de
fora para trabalhar na salina; o que hoje não acontece mais.
Outro aspecto que percebi foi o da clara decadência da atividade que sofre com a
concorrência das grandes empresas, como a Sal Cisne em Cabo Frio, que se
instalou nos anos 70 e progressivamente desvalorizou e tornou obsoleto o processo
artesanal de produção do sal utilizado pelos salineiros autônomos. Esta situação
agravou ainda mais o cenário nas salinas, provocando o enfraquecimento e
dificuldades de manutenção. Diversos vestígios deste processo foram encontrados:
áreas de antigas salinas abandonadas, antigas construções e antigas residências de
salineiros em estado de total abandono e semidemolidas, partes de moinhos
quebrados, pedaços de ferramentas, etc.
Um antigo morador, professor de Geografia aposentado, indicou os vestígios da
antiga Companhia Nacional de Álcalis em São Pedro da Aldeia, responsável pela
produção de Carbonato de Cálcio, um tipo de sal, e que teve sua origem e ápice no
período de Getúlio Vargas, na sua historicamente conhecida estratégia política de
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impulsionar a indústria nacional.
Deparei ao caminhar pelas áreas que abrangem estas antigas salinas com
amontoados de sucatas de moinhos que ficaram como resultado da desativação de
muitas áreas de produção, fragmentos de hélices enferrujando ao ar livre, restos de
estruturas e demolições que são o retrato fiel da desarticulação e esfacelamento da
produção salineira na região dos Lagos.
Serjão Augusto
Vestígios de estrutura de moinho e antiga residência de salineiros em Araruama(RJ) Acervo pessoal
O próprio relato dos moradores da região da Praia Seca demonstra a decadência
humana, social e econômica por conta do desmonte do ciclo salineiro.
A segunda visita aconteceu entre os dias 30/04 e 05/05/2014 e pretendia um
aprofundamento nas questões levantadas na primeira visita, como os aspectos
visuais construídos pela idéia de “paisagem de sal”.2
Um aspecto que me havia chamado à atenção da primeira visita foi o da “paisagem
dentro da paisagem”. As várias paisagens construídas pela diversidade cromática,
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material e simbólica constituídas pelo universo formal e visual da salina. O foco da
segunda visita foi, de certo modo, a captação de registros que demonstrassem por
metáforas visuais a construção deste ideário.
Serjão Augusto
Detalhe de um dos poços na salina Fluminense em Araruama (RJ) Acervo pessoal
As múltiplas manifestações vegetais, minerais e animais demonstraram ser capazes
de se reunir harmonicamente tecendo um campo de variedade formal e simbólico,
definidor e representativo nesta pesquisa do caráter transformador representado
pelo sal. Superfícies e texturas diferentes compõem este cenário; quente e frio
dialogam lado a lado, marinho e terrestre, sólido e líquido, enfim oposições que se
equilibram, constituindo unidade.
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Serjão Augusto
Detalhe do fundo de um dos poços na salina Fluminense em Araruama (RJ) Acervo pessoal
Ao retornar para a segunda visita objetivei uma referencia construída na primeira
visita: a localidade da Praia Seca, onde já se havia firmado contatos anteriores.
Retornei então à salina Santa Helena no intuito de colher depoimentos e mais
imagens que complementassem às registradas na primeira visita.
No primeiro dia já se notou certo ar de deserto. Os salineiros não estavam lá, os
galpões muito cheios, com os estoques muito altos, os trabalhadores provavelmente
estariam envolvidos em outras atividades.
Consegui captar o depoimento de dois salineiros, que descreveram à sua maneira
as condições de trabalho e vida decorrentes da atividade salineira. Trabalhadores
humildes e dependentes das condições impostas pelos patrões e pelo modo de vida
que lhes é imposto. Vindos de famílias que há décadas são envolvidas com o
trabalho com o sal, em sua maioria não sabem desenvolver outra atividade, não lhes
permitindo, portanto, alternativa senão acatar aos desmandos dos patrões, às
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condições desumanas de trabalho ou aos desígnios que lhes foram outorgados.
A triste história de cada um deles é percebida no semblante cansado e queimado
pelo sol, permitindo imaginar os caminhos difíceis que trilharam.
A dificuldade em conseguir manter a família e negociar o sal também é perceptível. A
relação patrão-empregado é de clara exploração. Os trinta a cinquenta por cento que
os salineiros têm de entregar “de mão beijada” para os patrões refletem este estado.
Outro aspecto que me chamou a atenção nas salinas visitadas foram as situações
ou imagens relacionadas e associadas a algum contexto que alude à transformação.
O girar dos moinhos, o meu caminhar pelas salinas, as águas que correm, o vento
que bate, os sons ritmados, etc. são exemplos associados à idéia de organismos em
funcionamento e que se pode refletir a partir do funcionamento de uma salina.
Este aspecto relaciona-se mais diretamente com o desenvolvimento da pesquisa,
pois dialoga diretamente com os trabalhos produzidos e derivados dela, podendo ser
o elemento que liga o início e o final da pesquisa.
As transformações acontecidas quando os materiais dialogam entre si ou quando se
transmutam a partir do contato físico entre eles, podem ser verificados também no
contexto das salinas, sendo uma espécie de ampliação das experiências realizadas
em ateliê. As águas que circulam entre os poços, bombeadas pela ação dos moinhos,
determinam a produção do sal, intensificando e alimentando o seu ciclo. Suas
mudanças de estados físicos, a passagem e mudança de estado do sal mediante as
variações de temperatura, umidade e ventilação também são aspectos importantes na
região das salinas, pois depende destes elementos a maior ou menor produção.
Portanto, as transformações acontecidas e observadas determinam o caráter vital da
salina, aludindo à vida que corre por entre os processos de formação e que se
multiplicam dentro e fora dela. Imagens e sons que possam aludir, metaforicamente,
a estas paisagens se multiplicam desde a água que corre silenciosa, o girar ruidoso
dos moinhos, o caminhar, o movimentar das hélices e dos vegetais ao vento, etc.
Desta maneira, a proposição de um trabalho que englobe esses olhares sobre a
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idéia de ‘transformação’ tornou-se imprescindível e que surgiu na captação de
imagens relacionadas a movimentos, como as citadas acima.
A produção de pequenos vídeos3 que tivessem como trilha, as cenas e os sons
típicos do funcionamento das salinas responde à tentativa de ligar o espectador ao
ambiente das salinas, por isso esta é uma das soluções que pensei para adequar o
material colhido na permanência nas salinas, para compor a exposição que foi
realizada na Galeria do Instituto de artes da Unesp em junho de 2014, como parte
da defesa de Mestrado.
Considerações finais e próximas conexões: Salar de Uyuni e Deserto do
Atacama
A partir da experiência nas salinas de Araruama pretendo, agora na pesquisa do
Doutorado, estipular conexões com outras paisagens de sal, para que partindo de
dados colhidos nestes locais, possa refletir sobre como o sal constrói e interfere nas
paisagens típicas de cada espaço.
Tenho a expectativa que as próximas residências que realizarei no Salar de Uyuni
(Bolívia) e no Deserto do Atacama (Chile) contribuam para uma maior compreensão
sobre as formações baseadas em sais na América do Sul, se configurando como um
possível elo de reflexão e de constituição referencial para a análise destas paisagens.
Da mesma forma que procedi na residência em Araruama, pretendo realizar
intervenções no espaço, bem como registros acerca das paisagens e dos aspectos
sociais e humanos.
Atualmente venho me preparando e levantando informações sobre os locais,
características e condições de cada espaço, num movimento de preparação para as
próximas residências.
Notas 1 Expressão associada à crítica Rosalind Krauss publicada pela primeira vez na revista October em 1979 e que
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trata de uma nova abordagem do espaço em relação à escultura tradicional, revelando sobretudo a necessidade de incorporação de elementos que estão fora do objeto de arte e que interferem na percepção do objeto artístico; além de ser um marco de passagem para a pós-modernidade.
2 Para saber mais sobre o conceito “Paisagem de sal” ver a minha publicação no VIII Seminário Nacional de
Pesquisa em Arte e Cultura Visual realizado em Goiânia/GO em jun/2014; e publicação disponível em:http://projetos.extras.ufg.br/seminariodeculturavisual/Arquivos/2014/narrativas/Residencia%20artistica%20nas%20salinas.pdf
3 Vídeos disponíveis em https://www.youtube.com/watch?v=mF-aettPMWI e
https://www.youtube.com/watch?v=zwRim2FWqhM
Referências
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BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001.
JONES, Ernest. The simbolic significance of salt in folklore and supersticion. In Essays in Apllied Psicho Analisys: London: The International Psycho-Analytical Press, 1912
KURLANSKI, Mark. Sal: Uma História do mundo. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004
KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da escultura moderna. tradução de Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998
LLOYD, Christopher. O que aconteceu na Terra? A História do planeta, da vida & das civilizações do Big bang até hoje. São Paulo: Intrínseca, 2011
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo:
Loyola, 2003
PAREYSON, Luigi. Os problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001
PEIXOTO, Nelson Brissac. Robert Smithson: arte, ciência e indústria. São Paulo: Editora Senac, 2010
THIÉBLOT, Marcel Jules. Os homens do sal no Brasil. São Paulo: Conselho Estadual de
Artes e Ciências Humanas, 1979
ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. 3ª ed. rev.
Campinas: Autores Associados, 2006 (Coleção Polêmicas do nosso tempo, 59)
Sérgio Augusto de Oliveira Artista visual, Doutorando e Mestre em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, Campus São Paulo, sob a orientação do Profº Dr. José Paiani Spaniol. Docente na UnG (Universidade Guarulhos) atuando nos cursos de Arquitetura e Design Gráfico, membro do Coletivo 308.