Paginas Amarelas - RAFAELA PIETRA

3
carnaval, a maior expressão da cultira e da felicidade brasileiras é visto com paixão por Lia Picci. A jornalista que deixou a profissão para fazer aquilo que gosta, conta como se afastou do jornalismo policial em busca de novos desafios, aventurando- -se no mundo da arte do povo, da cultura e da alegria. Motivada pela necessidade de utilizar sempre sua criatividade, a também artesã se viu disposta a revolu- cionar o trabalho, desenvolveu formas de facilitar a máquina carnavalesca e ajudou a transformar a festa em trabalho e vida para muitas comunidades paulis- tanas. Defendendo a profissionalização do carnaval, Lia Picci nos fala sobre o desenvolvimento do enredo, as difi- culdades, as responsabilidades de uma Agremiação Carnavalesca, o dinheiro e a quantidade de pessoas envolvidas para levar um bom carnaval para a avenida. Nesta entrevista, poderemos conhecer melhor este mundo, ouvindo as palavras de alguém que defende o carnaval como modo de vida. Antes de se tornar carnavalesca, você trabalhava com jornalismo. Como você se envolveu com o carnaval? Eu sempre quis trabalhar com uma área cultural do jornalismo, e na época em que eu trabalhei as opções eram de jornalismo social, político ou policial. Existia sim o lado cultural, que eu fiz em criticas de cinema, teatro, literatu- ra, mas que ao final das contas nunca me satisfizeram. Daí surgiu a idéia de trabalhar com carnaval?Na verdade eu só optei. Fui me envolver em alguma coisa mais feliz, mais bonita, com um lado cultu- ral mais alegre e mais saudável. Eu já tinha um curso de artes plásticas, sou artesã e trabalhei com isso anos, aliás, faço muito disso ainda hoje e recebi um convite de uma escola de samba para desenvolver um enredo e dese- Entrevista LIA PICCI RAFAELA PIETRA Do Jornal ao Carnaval A jornalista que virou carnavalesca por amor, defende a Industria do Carnaval como uma maneira de impulsionar a profissionalização no setor carnavalesco. veja/universidade cruzeiro do sul I 28 DE MAIO, 2011 I 17 O O carnaval nunca me decepcionou!

Transcript of Paginas Amarelas - RAFAELA PIETRA

Page 1: Paginas Amarelas - RAFAELA PIETRA

carnaval, a maior expressão da cultira e da felicidade brasileirasé visto com paixão por Lia Picci. A jornalista que deixou a profi ssão

para fazer aquilo que gosta, conta como se afastou do jornalismo policial em busca de novos desafi os, aventurando--se no mundo da arte do povo, da cultura e da alegria. Motivada pela necessidade de utilizar sempre sua criatividade, a também artesã se viu disposta a revolu-cionar o trabalho, desenvolveu formas de facilitar a máquina carnavalesca e ajudou a transformar a festa em trabalho e vida para muitas comunidades paulis-tanas. Defendendo a profi ssionalização do carnaval, Lia Picci nos fala sobre o desenvolvimento do enredo, as difi -culdades, as responsabilidades de uma Agremiação Carnavalesca, o dinheiro e a quantidade de pessoas envolvidas para levar um bom carnaval para a avenida. Nesta entrevista, poderemos conhecer melhor este mundo, ouvindo as palavras de alguém que defende o carnaval como modo de vida.

Antes de se tornar carnavalesca, você trabalhava com jornalismo. Como você se envolveu com o carnaval? Eu sempre quis trabalhar com uma área cultural do jornalismo, e na época em que eu trabalhei as opções eram de jornalismo social, político ou policial. Existia sim o lado cultural, que eu fi z em criticas de cinema, teatro, literatu-ra, mas que ao fi nal das contas nunca me satisfi zeram. Daí surgiu a idéia de trabalhar com carnaval?Na verdade eu só optei. Fui me envolver em alguma coisa mais feliz, mais bonita, com um lado cultu-ral mais alegre e mais saudável. Eu já tinha um curso de artes plásticas, sou artesã e trabalhei com isso anos, aliás, faço muito disso ainda hoje e recebi um convite de uma escola de samba para desenvolver um enredo e dese-

Entrevista LIA PICCIRAFAELA PIETRA

Do Jornal ao CarnavalA jornalista que virou carnavalesca por amor, defende a Industria do Carnaval como

uma maneira de impulsionar a profi ssionalização no setor carnavalesco.

veja/universidade cruzeiro do sul I 28 DE MAIO, 2011 I 17

O

“O carnaval nunca

me decepcionou!”

Page 2: Paginas Amarelas - RAFAELA PIETRA

“Na Escola de

Samba Imperador,

institui a contratação

de pessoas da

comunidade como

trabalhadores de

horário integral e

criei alguns cursos

para facilitar o nosso

próprio trabalho. E

deu certo.”

nhar os fi gurinos do carnaval de 1984. Foi na Escola de Samba Imperador do Ipiranga que eu me apaixonei pelo mundo do carnaval.

Você diz que optou por algo mais feliz, isso signifi ca que antes não era feliz no jornalismo? Não, de modo algum. Quando achei que tinha feito tudo o que podia na área cultural eu parti para a área policial e trabalhei nisso durante quase 5 anos. No decorrer deste período, você vai tomando contato com o pior lado das pesso-as, e isso foi me deixando mais fria, fazendo com que as cenas se tornas-sem quase naturais, perdendo o real signifi cado. É a isso que me refi ro.

E por isso saiu do jornalismo policial? Também. Eu tinha fi lhos, pequenos, não podia mais lidar com aquilo, mes-mo sem querer me afastar totalmente do contato com o povo, da cultura, e nem da notícia. As coisas começaram a me fazer mal, e ameaçavam não só a minha saúde, como minha vida também.

E como surgiu essa paixão pelo carna-val? Me apaixonei porque tudo me exigia muita criatividade para a trans-missão da informação cultural de boa qualidade. As possibilidades de levar a história e a própria cultura para uma parte da população que muitas vezes não tem acesso a isso me fascinava. Aliteratura é uma parte da cultura que o povo difi cilmente acessa, ou por falta de tempo ou por desinteresse mesmo. O carnaval possibilita o acesso a esse tipo de informação mesmo que ele não tenha oportunidade de ir a um museu, conhecer a vida de uma perso-nalidade importante, etc.

É possível então, encarar a profi ssão de carnavalesco como modo de vida? É possível sustentar-se assim?Sim, sem dúvida. Um bom carnavalesco não trabalha apenas na época do carnaval. Geralmente, cria-se um forte vínculo entre a Agremiação e o carnavalesco, transformando-o num funcionário de tempo integral. Dessa forma, estabe-lece-se um salário mensal, compatível

com a qualidade do trabalho executa-do ou assina-se um contrato estipulan-do um valor único, pago de uma só vez, ao término ou durante o período de execução do carnaval. Normalmen-te esse valor é sufi ciente para que o profi ssional mantenha-se dignamente durante o ano.

Você diz que o carnaval além de alegria também leva cultura. Como? O car-naval transforma a informação em algo bonito, em lazer. Faz com que a história e a cultura façam parte da festa, daquele momento de descontra-ção, fazendo com que o povo guarde aquilo, leve na lembrança e transmita a outros.

Pensando em valores, como uma Agremiação se mantém no resto do ano em que a verba não está disponível? Depende da Agremiação. As gran-des escolas geralmente dispõem de mais recursos, conseguidos através de eventos contratados, patrocínio de empresas privadas, apresentações no exterior, shows e etc. As escolas menores, tem mais difi culdades, na-turalmente, mas numa escala menor acabam fazendo mais ou menos as mesmas coisas.Utilizam suas quadras e barracões para promoverem festas,

bingos benefi centes, shows de bandas nacionais e até mesmo internacionais, promovem almoços e apresentações diversas, sempre com o objetivo de arrecadar fundos para garantir as despesas durante o período pré carna-valesco.

Falando em números, quanto uma esco-la de samba pode contribuir para o mer-cado de trabalho? Hoje, uma escola de samba como a Mocidade Alegre, uma de nossas grandes escolas de São Pau-lo, emprega em torno de 300 a 400 pessoas para entregar um carnaval, utilizando-se de aderecistas, alegoris-tas, marceneiros, pintores, costureiras entre tantos outros. Acho que são bons números, não?

E como se desenvolve um carnaval?

Bom, enquanto jornalista que eu ainda sou, sem dúvida, eu sempre busco a informação e a história das coisas, e como carnavalesca eu analiso os fatos, as características históricas do mo-mento ou do personagem. Faço uma pesquisa aprofundada com relação a datas, locais, fatos pitorescos, tudo o que seja interessante e importante no tema. A partir daí, com toda a infor-mação reunida, eu começo a dividir em fazes e vou criando, ou recriando os fatos através de fi guras, desenhos, cores, contando a história de maneira visual. Daí é só juntar tudo e colocar na avenida.

Da maneira como você fala parece fácil.Não é tão simples, o carnaval na ave-nida é uma história de anos, contada em 60 minutos e que leva em torno de 6 meses ou mais para ser construída. Envolve muitas pessoas, é um traba-lho árduo e difícil, mas extremamente gratifi cante. O carnaval parece somen-te diversão, mas é também profi ssio-nalização em um mercado de trabalho sempre em expansão. Os profi ssionais utilizados na confecção do carnaval vão desde engenheiros até os mais simples empurradores das alegorias

A profi ssionalização do carnaval é algo que temos visto na mídia nos últimos anos. Como você acha possível desen-

Entrevista LIA PICCI

18 I 28 DE MAIO, 2011 I veja/universidade cruzeiro do sul

Page 3: Paginas Amarelas - RAFAELA PIETRA

volver isso? Acredito que seja neces-sário criar cursos que profi ssionalizem as pessoas que trabalham no carnaval. Essas pessoas geralmente são de baixíssima renda ou estão desempre-gadas e aproveitam a oportunidade para aumentar o orçamento familiar. Isso deveria se tornar uma profi ssão, pois atrai muitas pessoas e elas se tornam indispensáveis, mais até que os próprios carnavalescos, dentro das agremiações.

Isso signifi ca carteira de trabalho as-sinada pelas Agremiações? A profi s-sionalização da mão de obra utilizada no carnaval abre um novo nicho de trabalho que pode abrigar uma grande parte de famílias carentes, além de desenvolver e promover a arte, a cria-tividade e a cultura. Porque não?

Quanto a sua experiência no carnaval, o que as instituições podem fazer para contribuir com essa profi ssionalização? Quando eu entrei no carnaval, não havia o habito de se contratar pessoas especializadas para esse trabalho. Tudo era feito pela comunidade, nas horas vagas. Todos participavam. Isso criava grandes problemas. Logica-mente que todos faziam com muito carinho, mas mesmo assim as coisas não corriam como deviam, respeitan-do prazos e outras imposições do tra-balho. Na Escola de Samba Imperador do Ipiranga, eu institui a contratação de pessoas da comunidade como trabalhadores de horário integral, com salário, alimentação, transporte, etc. Criei alguns cursos ministrados por mim e outros profi ssionais fora do período do carnaval para facilitar o nosso próprio trabalho. E deu certo.

Você acredita então que as Agremia-ções devem investir mais nisso? A escola de samba deve sim agir como uma empresa criando oportunidades e auxiliando no desenvolvimento da sua própria comunidade. Hoje, nos carnavais que faço, emprego durante pelo menos 6 meses muitas pessoas que todos os anos voltam como uma equipe. Isso é gratifi cante para mim e extremamente vantajoso para o

carnaval.

A idéia de uma “Indústria do Carnaval” te agrada então? Muita gente acha que o carnaval mudou, que deixou de ser cultural para ser empresarial. Acham que isso descaracterizou o carnaval. Eu não concordo. O carnaval mudou sim, mas pra muito melhor. O espetá-culo hoje tem muito mais qualidade visual, os artistas se dedicam a esse trabalho são pessoas da mais alta competência, reconhecidos mundial-mente. Claro que não devemos virar as costas para a tradição do carnaval, que é lindíssima por sinal.

Então não há motivos para afastarmos a idéia de uma boa empresa carnava-lesca, funcionando realmente como uma indústria da arte? Veja, o carnaval do RJ é o maior espetáculo da terra e atrai pessoas do mundo todo. O carnaval de Parintins é a prova da competência artística do brasileiro, transformando a cultura indígena num espetáculo de beleza incomparável. Nós mesmos contamos com a ajuda de alguns desses profi ssionais de Parintins nos carnavais de São Paulo e Rio de Janeiro e aprendemos muito com eles. Tudo é uma questão de se enxergar o lado bom e útil das coisas.

Qual o papel que uma escola de samba pode desempenhar na sociedade, além do fator profi ssionalizante? O papel mais importante que uma Agremiação Carnavalesca pode e deve desem-penhar na sociedade é o cultural. As escolas de samba e blocos carnava-lescos tem o poder de levar a cultura ao povo da maneira mais simples e agradável que existe, através do lazer. No carnaval, aprendemos muito nos divertindo. Outro fator muito im-portante e que defendo muito são os projetos sociais que as Agremiações desenvolvem. Quando se trabalha no carnaval, percebemos o poder que o povo unido tem. Uma maneira maravilhosa de utilizar esse poder é o desenvolvimento de projetos sociais como acesso a médicos, dentistas, palestras com profi ssionais gabarita-dos para a população jovem, cursos, ofi cinas de arte, tudo o que possa con-tribuir para o desenvolvimento social e cultural daquela counidade. Isso é muito importante.

Conhecemos as grandes agremiações, mas como vivem os blocos carnavales-cos e as escolas de menor visibilidade? É mais fácil trabalhar com elas? As escolas menores e blocos carnavales-cos têm suas difi culdades, geralmente fi nanceiras, mas por outro lado, essas Agremiações são mais unidas, suas comunidades participam muito ativa-mente dentro delas pois não há apenas o objetivo de ganhar dinheiro traba-lhando para o carnaval. Não acho que seja mais fácil ou mais difícil traba-lhar com elas pois o trabalho é muito parecido. Obviamente se ganha menos dinheiro mas a compensação pessoal é muitas vezes maior. Convive-se mais com a comunidade, faz-se amigos para a vida toda. Eu gosto muito e nunca me recusei a fazer o meu trabalho numa escola pequena mesmo que por vezes não tenha tido nenhuma remuneração. Ganhei muito mais que dinheiro, ganhei pessoas maravilhosas que fi zeram uma enorme diferença na minha vida. Ganhei amigos que leva-rei para sempre. Gente a quem ajudei e que me ajudou muito. O carnaval nunca me decepcionou!

“Muita gente acha que o carnaval

mudou, que deixou de ser cultural para

ser empresarial. Acham que isso

descaracterizou ocarnaval. Eu não

concordo. O carnaval mudou sim, mas pra

muito melhor.”

veja/universidade cruzeiro do sul I 28 DE MAIO, 2011 I 19