Padres Do Deserto

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J A C Q U E S L A C A R R I E R E

DO DESERTOHOMENS EMBRIAGADOS DE DEUSEltes Loyola

Ttulo original:

Les hommes ivres de Dieu Librairie Arthme Fayard, 1975.

Edies Loyola

Rua 1822 ny 347 - Ipiranga 04216-000 So Paulo, SP Caixa Postal 42.335 04218-970 So Paulo, SP (0**11) 6914-1922 $ (0**11) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: [email protected] Vendas: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e / o u quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita da Editora. ISBN: 85-15-01278-2 2a edio: agosto de 2002 Material com direitos autorais

EDIES LOYOLA, So Paulo, Brasil, 1996

Material com direitos autorais

PADRES DO DESERTO

PREFCIO ......................................................................................................... 13 INTRODUO ................................................................................................. LZ

Primeira parte O FIM DE

1

UM MUNDO O FIM DOS TEMPOS ..................................................................... 23 Crena no fim iminente do mundo no tempo de Jesus e nos trs sculos seguintes: so Paulo, santo Hiplito de Roma, Baslio de Ancira, Tertuliano, so Cipriano. Suas conseqncias: a ruptura com o mundo. Santo do deserto e bom selvagem. Relaes entre o anacoretismo e a ascese. A partida para o deserto.

2 4

A GRANDE TRANSIO ............................................................

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Os textos sobre a vida no deserto. A ocupao grega e romana no Egito. Dois mundos estranhos um para o outro. O exotismo egpcio em Roma. Primeiros assaltos contra o paganismo. A "morte" do deus egpcio Serpis. A cristianizao do Egito. Sincretismo dos meios citadinos helenizados. O meio rural. A aventura copta. Tornar-se cristo permanecendo egpcio. Panorama da heresia monofisita. As perseguies. O fim de um mundo. Partida de Anto para o deserto.

Segunda parte OS HOMENS BRIOS DE DEUS3 A ESTRELA DO DESERTO ........................................................... 51 Santo Anto existiu? A Vida de Anto e a tradio aretolgica. Onde comea e onde termina a histria? O Chamado: Anto se instala junto de um ancio. A experincia das trevas. Permanncia de Anto num tmulo. Suas primeiras tentaes. O bestirio fantstico do Egito antigo. Crenas funerrias e Livro do Am-Duat. A experincia da luz. Anto parte para a montanha de Colzum. Seus vinte anos de solido. Seus primeiros ensinamentos e seus primeiros discpulos. ltimos anos de Anto. Suas vises ednicas. Sua morte. 4 A PRADARIA DOS SANTOS ....................................................... 71

Um santo entre os anjos: Paulo de Tebas. A Vida de Paulo de Tebas por soJernimo. O problema de sua historicidade. Vida de Paulo de Tebas no deserto. Sua gruta, o po de Deus, seu encontro com Anto, sua morte milagrosa.

Um santo entre os homens: Pacmio. As Vidas coptas de Pacmio. Sua vocao. Sua ascese perto de Khenobskion com o apa Palamo.NDICE Seu encontro com o anjo. Primeiros discpulos e primeiras tentaes. Fundao do primeiro mosteiro em Tabenesi. A regra do anjo e os mosteirosMaterial com direitos autorais

PADRES DO DESERTO pacomianos. Sua organizao. Sua disciplina. Tcnicas de asceses coletivas. A lngua do anjo. Morte de Pacmio. 5 OS ATLETAS DO EXLIO (I) ........................................................ 93 O Imprio romano se torna cristo. Reconhecimento do cristianismo pelo imperador Constantino. Suas conseqncias sobre o destino do cristianismo. A Igreja dos militantes e a recusa do temporal. Vida econmica do Egito do sculo IV. Prestgio dos primeiros eremitas. Uma nova Terra Santa. Os primeiros peregrinos do Egito cristo: Paldio, Rufino, Cassiano. Nos desertos do Alto Egito. Mosteiros e anacoretas. A curiosa viagem de um monge no deserto. A Tebaida. Port-Royal e a redescoberta do deserto. As tradues de Arnauld d'Andilly. Mosteiros e eremitas da verdadeira Tebaida. Os discpulos de Anto: Paulo o Simples e so Sisos. Ao encontro de anacoretas estranhos. Precaues indispensveis da parte do leitor: no confiar nas aparncias. Vida de Joo do Egito, o recluso. Santo Apoio e seus milagres. Pafncio e seu anjo. A converso de Tais. Um mito de antes da Graa. 6 OS ATLETAS DO EXLIO (II) ..................................................... 119 Os desertos do Wadi-an-Natrun. Suas paisagens fantsticas. Os perigos que ali se corre. Homens em tocas de hienas. O deserto da Ntria e o deserto das Celas. Macrio o Jovem. Sua vida e suas asceses incrveis. Macrio e o mosquito. Seus discpulos. O po e a alma. Os homens mais humildes do mundo. Macrio o Antigo e o deserto de Skete. Suas vises. Macrio e o9

querubim. Macrio e o cadver. O ensinamento e os discpulos de Macrio o Antigo: Moiss e os ladres, Bessario, Poimm e a esttua. Joo o Pequeno e a vara milagrosa. Arsnio, o preceptor. 7 O FIM DOS DOLOS ....................................................................... 141 6Material com direitos autorais

Proibio oficial de praticar os cultos pagos. Controvrsia entre pagos e cristos. As violncias dos cristos: pilhagens, incndios dos templos, execues dos sacerdotes. Motins em Alexandria. A ltima mensagem do pensamento pago. Vida e vocao de Cancio de Atrip. Seus mosteiros. Suas regras implacveis. Sua divisa: forar os homens a amar a Deus. O porrete e a salvao da alma. Expedies de Cancio contra os templos e os sacerdotes pagos. Fim do paganismo no Egito. 8 FICAR MAIS PERTO DO CU ..................................................... 159 A Palestina e a Sria crists. Autores e viajantes cristos: Teodoreto de Ciro, Joo Mosco. Na Palestina. Santo Hilario, primeiro eremita palestino. Sua vida singular. O Sinai e seus anacoretas errantes. Eremitrios do mar Morto. Santa Maria Egipcaca e sua estranha histria. Uma prostituta arrependida. Os contos cristos do deserto. A Sria crist. Breve histria do cristianismo siraco. Os reclusos. Viver no interior das rvores e das grutas. Santo Acpsimo, so Talelo e sua jaula, so Maro e sua rvore de espinhos.

Pastadores e estacionrios. O testemunho de santo Efrm. Naturezadessas estranhas asceses. Fechar os olhos para o mundo. As lgrimas de santa Domnina. Esttis e dendiitas. Natureza e origem possvel do estilitismo. As Vidas de so Simeo o Antigo. Sua vocao. Sua temporada num poo. As correntes. Sua primeira coluna. Suas asceses e seus milagres. Morte de so Simeo. Fascnio dos visitantes. Outros cstilitas clebres. Os dendritas. Estar brio de cu e de Deus.

Terceira parte MORRER PARA OMUNDO 9 0 ROSTO DE SAT ..................................................................... 195Material com direitos autorais

PADRES DO DESERTO As tentaes, formas agressivas do mundo demitido. As Tena^es na pintura. A obra de Hieronymus Bosch. As iluses do deserto. Anjos carrascos. O inferno copta. Nova conversa de Macrio com um crnio. Os rostos de Sat. Diferentes aspectos do demnio. Origem do Diabo e de Sat. Papel do Egito no nascimento do Diabo. O Diabo-monstro e o Diabo-sedutor. A voz das eras. Aparncia monstruosa do Diabo no deserto. A parte tenebrosa do homem. A Serpente. O Drago. As vozes do passado. O Diabo-sedutor. As tentaes de so Paco e de Joo do Egito. "Uma mulher vagando neste deserto..." O Diabo como duplo do asceta. 10 A CARNE DOS ANJOS ................................................................. 215 O paraso copta. Operrios das chamas. Natureza, aspectos e funes dos anjos. Seu papel no pensamento e nas vises crists dos primeiros sculos. Os anjos no deserto. Os anjos e os milagres. Reflexes sobre os milagres do deserto. O paraso perdido e o paraso recuperado. Fraternidade dos ascetas com os animais. O leo de so Gersimo. A hiena de Macrio. O crocodilo de santo Heleno. A condio de Ado no paraso terrestre. Como fulminar um drago. Ser contemporneo de Cristo. Ressurreio dos mortos. Cura dos doentes. Conservao dos corpos. Outros milagres particulares. Os milagres cinticos: levitao, transporte a distncia, imobilizao a distncia. O homem glorificado. O deserto como prefigurao do paraso.11

PARA ALM DA ASCESE .......................................................... 221

O ensinamento do deserto e suas ambigidades. Santidade e masoquismo. O silncio dos grandes anacoretas. Aprender olhando. 8Material com direitos autorais

Papel do contexto cultural na gnese de certos "milagres". Que significa morrer para o mundo? As etapas da ascese e as vias da contemplao: apatheia, hcsychia. O ensinamento de Joo Clmaco, Evgrio Pntico, Didoco de Foticia. "Estar atento a si mesmo." - Os paradoxos da ascese. Renunciar prpria santidade. Os santos simuladores. Os santos loucos. Histria de Simeo Slos. Uma taberna em Antioquia. EPLOGO ........................................................................................................... 249 Vestgios contemporneos dos "homens brios de Deus". Os mosteiros coptas do Egito. O castelo de Simeo na Sria. As igrejas rupestres na Capadcia. Os ltimos anacoretas do monte Atos.

^exa c i o

FONTES F. TEXTOS ..........................................................................................251

T

ero os desertos do Oriente Mdio deixado de ser hoje em dia o lugar das experincias soberanas? E, porque se busca neles antes de tudo o ouro negro que encerram, tem-se deixado de buscar ali a Deus, o sentido do mundo ou simplesmente uma imagem mais verdadeira de si mesmo? Durante sculos, sua nudez pareceu rechaar a histria para os confins de suas areias: ali aparentemente nada se mexia, nada parecia "progredir". Eles eram o lugar do imutvel, de uma virgindade perptua onde o homem acaba por se assemelhar aos anjos. Ei-los hoje tornados fontes de vida e morte porque dali se extrai a energia combustvel. Mas talvez assim s faam continuar essa vocao de fogo que os lanou por todo o tempo na direo das margens grvidas da histria. Tenho pouca prtica do deserto. Alguns dias somente no Baixo Egito, no Wadi-an-Natrun, h dezoito anos. Aqueles que conhecem esta regio e que a atravessaram em todo o esplendor do fogo solar me compreendero se euMaterial com direitos autorais

PADRES DO DESERTO disser que ela me pareceu de imediato, estranhamente, um mar de gelo. Porque este deserto ocidental do Egito no de areia, mas de sal. Mar mineral e branco, cuja crosta endurecida insensvel aos ventos e ressoa em alguns lugares sob os ps como uma abbada de cristal. Oceano atapetado de sedimentos fossilizados, de cascas imemoriais, como se as batalhas das guas e da terra, a alternncia dos elementos tivessem encontrado a o seu campo de repouso. Num tal mundo, o homem quase excrescncia intil,13

presena absurda. E ele s pode viver ali tornando-se tambm peso morto do tempo, hibernando-o num perptuo inverno. Eis por que durante tantos sculos esse lugar extremo s abrigou fantasmas hirsutos, sombras andrajosas, engodos de seres humanos que as testemunhas de ento designaram os atletas do exlio e que eu chamei os homens brios de Deus. Este livro foi escrito e publicado h treze anos. Mas ele nasceu bem mais cedo em meu esprito, gerado por uma viso noturna. Eu estava ento no monte Atos, no mosteiro da Grande Laura, onde jantava, aps o ofcio da noite, no grande refeitrio cheio de monges e eremitas para a festa anual de santo Atansio o Atnita. As paredes eram cobertas de afrescos antigos, cuja faixa inferior representava, alinhados lado a lado, os grandes santos do deserto: Anto, Paulo de Tebas, Pacmio, Macrio, Onofre, Poimm. Silhuetas nuas, longos corpos esqulidos vestidos de barbas e de cabelos caindo at os ps, com grandes olhos negros cavados na ossatura do rosto. luz das velas, suas aurolas realavam a padez de seus traos e todos aqueles santos retomavam vida, repentinamente, distantes e familiares ao mesmo tempo, como se, dos continentes seculares de seu afresco, eles surgissem da borda luminosa daquela refeio noturna. Aquela noite, compreendi que eles no estavam pintados somente para figurar uma experincia insubstituvel, para se ancorar num tempo passado, mas para surgir tambm a cada instante no presente dos homens. E naquela noite senti vir a mim todo um povo da sombra, cuja existncia e histria eu havia ignorado at ento. Quis conhec-los, encontrar um a um os habitantes desse mundo desconhecido do deserto. Li as Vidas dos santos, os relatos e os testemunhos dos que os conheceram, inventariei dezenas de textos gregos e coptas que, mais tarde, me levaram ao Egito. E foi l, no corao do Wadi-an-Natrun, que decidi escrever um livro para o qual s tinha, por enquanto, o ttulo: Les hommes ivres de Dieu. 10Material com direitos autorais

Hoje, no sei muito bem o que pensar deste livro. Ele foi o testemunho de uma poca e de uma vida que me levaram mais freqentemente ao Oriente que ao Ocidente. O que ento me fascinava continua a me interessar, mas me diz menos respeito. Nada tenho de asceta e nunca busquei aprofundar melhor aquilo que, durante anos, me conduziu procura daqueles homens. Alm do mais, sinto-me totalmente ateu e escrevi a histria desses homens sem jamais compar-

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PREFCIO

tilhar sua opo e sua f. Empreendimento sempre incerto, j que ele recusa a identificao sem que o recuo implicado seja por isso revelador. Isto explica por que, ao lado de um grande nmero de reaes entusiastas e muito elogiosas, este livro tenha sido criticado, vilipendiado em alguns meios catlicos. De minha parte, no me preocupava muito com isso, pois na histria no existe domnio reservado. Se os crentes fossem os nicos habilitados a falar de sua f, se s os monges tivessem de escrever sobre o monaquismo, a histria do pensamento no passaria de uma eterna tautologia. Como no tenho, alis, nenhuma pretenso de historiador, encontrei-me mais uma vez rejeitado diante de mim mesmo. Porque este livro no um tratado de histria, uma hinologia ou uma critica pretensamente objetiva do fenmeno que ele estuda. Os homens bnos de Deus o dirio de um encontro inteiramente pessoal com uma poca e com homens que at hoje no sei se foram loucos ou se foram santos. E no sei igualmente se eles foram e ainda so para mim os indgenas de um outro mundo ou os irmos desconhecidos de um continente que o meu. Este estudo tambm um livro-testemunha, quero dizer, o relato de um testemunho pessoal, termos contraditrios para um ocidental, mas que sempre se confundiram estreitamente em todo o domnio oriental. Testemunha, em grego, se diz martyr, que tambm significa mrtir. Como, enfim, meu objetivo em todos os meus livros nunca foi redigir teses de pretenso universitria nem marcar data para a posteridade, mas simplesmente, organicamente eu diria, comunicar-me com meus contemporneos, relatar o que vivi e pensei, para que outros o vivam e o pensem por si mesmos, reivindico particularmente as insuficincias at mesmo as ignorncias deste livro: como as tentativas e os erros das amebas e dos paramcios, elas so a marca dos titubeios sem os quais nenhuma verdade faz sentido. assim que surge finalmente este livro, aps tantos anos: um ensaio para interrogar, pressentir ou delinear os limites do homem. Pois foi isso, sem dvida alguma, que me atraiu outrora para a experincia desses santos do deserto: esse desafio lanado ao nosso destino de homindeo, essa recusa visceral da nossa casca antiga e essa busca ltima de um homem diferente. Sacy, setembro de 1974.Material com direitos autorais

PREFCIO15

*t- solar-se do mundo, romper com a sociedade do seu V^/ tempo, pensar, como

fizeram os eremitas, que s fora dela se encontra a resposta ao problema do destino humano no tem por si s nada de inslito. uma atitude das mais naturais na medida em que toda sociedade altamente civilizada engendra inevitavelmente uma franja anti-social onde figuram como irmos o eremita e o fora-da-lei. Que ningum se espante ao ver aqui estas duas atitudes marginais colocadas no mesmo plano, pois de fato nada as distingue radicalmente em seu comportamento com relao comunidade: refratrio dos homens ou refratrio de Deus, cada um deles antes de tudo um rebelde frente a uma ordem julgada intolervel ou caduca. Digamos mesmo que, a partir do momento em que esse passo decisivo for dado, ser mais fcil para o anti-social passar de um estado refratrio ao outro do que reintegrar-se a um grupo com o qual ele rompeu definitivamente. uma evidncia que as tradies populares e a histria oficial tm confirmado desde sempre, como atestam os inmeros contos do Bandido que virou monge e os textos das Vidas dos Padres do deserto, nos quais vemos constantemente ex-bandidos que se tornam eremitas. Romper com a sociedade de seu tempo , pois, uma atitude natural, que no de forma alguma privilgio da nossa gerao, a tal ponto que a histria de cada civilizao poderia comportar tambm a17

histria das "anti-sociedades" que ela engendra. Se escolhi ilustrar esse fenmeno limitando-me a uma poca e a um lugar preciso, o Egito cristo do sculo IV, porque ele atingiu ali uma nitidez e uma amplitude excepcionais, raramente igualadas na histria, e porque teve at nossa poca conseqncias duradouras, ao suscitar os primeiros mosteiros conhecidos da histria crist. Uma palavra basta para definir esse fenmeno: anacorese. O termo grego anachresis significa uma retirada, uma fuga para longe do mundo cotidiano. Trata-sc antes de mais nada de uma opo anti-social que s bem mais tarde ganhar um significado religioso. Das centenas de camponeses, de escravos, de ladres que, no Egito greco-romano, fugiam para o deserto para escapar do fisco, de seus amos ou da justia, dizia-se que praticavam a anacorese. Em suma, ganhavam o deserto, como se diz em francs moderno que um parsan ganha o maquis*. E o termo anacorese nunca perder totalmente mesmo quando, bem mais tarde, se aplicar unicamente

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PREFCIO aos eremitas e aos santos este sentido original de refratrio, de "maquisard" dos homens ou de Deus. Atitude negativa na aparncia, j que antes de tudo uma fuga, uma recusa, uma ruptura radical com toda a sociedade organizada. Mas sabemos que no basta fugir para a solido do deserto (ou, hoje em dia, para a do mato) para romper com os valores de seu tempo. O anacoreta cristo foge, no deserto, da comunidade temporal a que pertence, mas para juntar-se ali comunidade espiritual, invisvel, que rene todos os cristos, mortos ou vivos, os santos, os mrtires. Ele s se isola de seus contemporneos, das delcias ou dos horrores de seu tempo para encontrar a comunidade ideal e atemporal de seus irmos dos outros sculos, dos outros lugares. assim que este comportamento anti-social culminar paradoxalmente na constituio, pouco a pouco, nas solides do Alto e do Baixo Egito, de uma nova sociedade

* maquis: nas regies mediterrneas, o maquis uma configurao vegetal composta de moitas, arbustos e touceiras. A expresso francesa prendre le maquis significa

"refugiar-se, aps ler cometido um delito, numa zona pouco acessvel coberta pelo maquis". Durante a Segunda Guerra Mundial, chamavam-se maquis os grupos de resistentes (partisans) que lutavam na clandestinidade contra a ocupao alem da Frana; os membros destes grupos eram chamados maquisards (N. do T.).

INTRODUO margem da antiga, verdadeiras comunidades do deserto que, com o nome de lauras, skites, coenobia, mosteiros, se tornaro o modelo da cidade futura ou da cidade celeste. Paradoxo que se encontra na histria da palavra "monge", do grego mnachos, que significava na origem um homem vivendo s e que acabou por designar todo homem vivendo no seio de uma comunidade religiosa e organizada. Dos milhares de homens que escolheram, assim, viver fora do mundo e do tempo, a histria guardou sobretudo dois nomes: santo Anto e so Pacmio. Anto foi, segundo a tradio, o primeiro que teve a idia de abandonar o mundo para se consagrar no deserto meditao e orao. Pacmio, por seu lado, partiu para os desertos do Alto Egito no para viver sozinho, mas para fundar ali uma comunidade monstica. Se imaginarmos que meio sculo aps a morte destes dois precursores contavam-se s centenas e, um sculo depois, aos milhares os anacoretas e os monges vivendo nas grutas e lauras do deserto, que em seguida este movimento se estendeu Palestina, Sria, Prsia, Capadcia, Armnia e, mais tarde ainda, aMaterial com direitos autorais

PREFCIO todos os pases do Ocidente, a distncia parece incomensurvel entre a aventura aleatria, afinal de contas destes dois homens e suas repercusses na histria. Eis um fato que, por enquanto, me contento em assinalar, sem pretender em momento algum explic-lo. Sublinhemos apenas que logo de sada o anacoretismo se apresenta como um fenmeno ao mesmo tempo individual e coletivo, um impulso sentido por cada um como a livre escolha de sua conscincia, mas que rapidamente se transformou em algo que hoje chamaramos um movimento de massa. Ora, a maioria dos textos que possumos sobre a vida destes ascetas relata essencialmente o aspecto individual do fenmeno. Eles se consagram a seguir, cada um em sua vida eremuica, seus jejuns, suas oraes, seus milagres e suas tentaes sem nunca entrever ou mesmo suspeitar a amplitude futura e o significado histrico da fuga para o deserto.r

E por isso que me parece til, antes de acompanhar no Baixo e Alto Egito a vida e a aventura excepcionais desses homens, investigar as razes desse estranho fenmeno. No foi sem razes imperiosas, sem profundas motivaes, que milhares de cristos romperam com sua poca, seus bens, sua vida familiar, com o que todos os textos chamam "o sculo" ou "o mundo". Parece que assistimos ali a um19

esforo consciente ou inconsciente? para realizar, margem do mundo profano, uma sociedade ideal e santa, as comunidades mons-ticas, e um tipo ideal de ser humano, o homem novo ou o santo do deserto. "O mosteiro um cu terrestre e, assim, ns todos devemos ser como anjos", escreve Joo Clmaco, autor asctico do sculo VII. Foi ento para se tornarem anjos, seres no limite do humano, que Anto, Pacmio e todos os que os imitaram um dia desertaram as cidades e a histria para enfrentar a provao do deserto?

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Primeira Parte

CDj -im de. umMaterial com direitos autorais

W\IAV\C\O

PADRES DO DESERTO

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1.

O

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m d os temp

uando os primeiros monges e os primeiros anacoretas se ^ instalaram, no sculo IV, nos desertos do Egito, o cristianismo praticamente j se tornara a religio oficial do Imprio romano. As perseguies cessam, as converses se multiplicam e o famoso edito de Milo, proclamado alguns anos antes pelo imperador Constantino, permite que os cristos celebrem livremente seu culto. O paganismo deixar de ser pelo mesmo ato a religio representativa do Imprio, cuja histria se confunde doravante com a da Igreja. A quinze sculos de distncia, nada aparentemente mais natural que esta emergncia do cristianismo na histria. Na verdade, ela tem razes para surpreender se pensarmos que, na origem, nada era mais contrrio sua primeira vocao. Tal como foi pregada por Jesus e propagada pelos Apstolos, a religio nova, de fato, no tinha de forma alguma o objetivo de conquistar o mundo temporal, mas de pregar o advento prximo do Reino dos Cus e a morte da Histria. Como todas as grandes religies, foi primeiro modificando profundamente as relaes do homem e do tempo que o cristianismo se imps a seus primeiros fiis. Para os gentios em outras palavras, os pagos , vivendo num Tempo cclico em que as cerimnias religiosas, as festas, os sacrifcios recomeavam infatigavelmente os mesmos eventos primordiais, no seio de um universo que se repete, logo, de um universo eterno, o cristianismo trazia a brusca, angustiante revelao de um Tempo que progride,23 Material com direitos

evolui, se consuma, de um universo em transformao e, portanto, suscetvel de acabar um dia. Um dos temas que encontramos freqentemente nos lbios de Jesus no a evidncia e a iminncia do fim do mundo? O universo logo vai se acabar, pois Jesus, vindo uma primeira vez sobre a terra "para cumprir as profecias", retornar a ela uma segunda vez e dentro de pouco tempo para pr um termo sua histria profana1. difcil imaginar a repercusso que tais idias poderiam ter nas multides da poca, quer se trate dos judeus, cuja sensibilidade tinha sido amplamente preparada h geraes para este acontecimento pelos profetas e autores de Apocalipses, quer se trate dos gentios, que nelas descobriam bruscamente a viso insuspeitada de um universo submetido ao Tempo. Repercusso tanto maior porque no se trata de uma simples advertncia, mas do anncio do fim iminente do mundo. A gerao dos que escutam Jesus "no passar sem que tudo isto acontea", e o evento ser to repentino que "aquele que estiver no terrao e tiver pertences na casa" no ter tempo de descer para busc-los. O Filho do Homem aparecer "como o relmpago que pane do oriente e brilha at o ocidente". Como viver, ento, neste temor perptuo da aniquilao de todas as coisas? Como no espreitar, dia e noite, os sinais precursores do Apocalipse e sobretudo j que se espera, de um momento para o outro, pelo fim do mundo como no abandonar todas as preocupaes, os afazeres, os valores deste mundo? Tanto mais porque esta crena no deixar de ser apregoada, alimentada, ao longo de todo o sculo I, pelos pregadores cristos, inclusive so Paulo. queles que lhe perguntam quando e como ocorrer o Juzo Final, so Paulo responde, na Primeira Epstola aos Tessalonicenses:

[.../ ns os vivos, que houvermos ficado at a vinda do Senhor, no precederemos de modo nenhum os que morreram. Porque o Senhor em pessoa, ao sinal dado. a voz do arcanjo e ao toque da trombeta de Deus, descer do cu: ento os mortos em Cristo ressuscitaro primeiro; em seguida ns, os vivos que tivermos ficado, seremos arrebatados com eles sobre as nuvens, ao encontro do Senhor, nos ares... (ITs 4,15-17)".O FIM DOS TEMPOS1. Para evitar acumular citaes conhecidas, dou apenas a referncia das passagens essenciais: Mateus 24,29-31; Marcos 13,24-27; Lucas 21,25-28. * Todas as citaes de trechos bblicos nesta obra se basearo na edio brasileira da Traduo Ecumnica da Bblia, So Paulo, Edies Loyola, 1994. (N. do T.)

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Esta profecia encontrar tal eco nos meios evangelizados pelo Apstolo, que alguns cristos cessaro todo trabalho e vivero ociosos, espera do dia iminente. Esse clima escatolgico e exaltado no deixar de se ampliar nos sculos seguintes e com toda certeza est na origem de muitos comportamentos irracionais e excessivos, como a vocao para o martrio, a obsesso da virgindade e da ascese, a fuga para os desertos. Todos esses comportamentos tm entre si o trao essencial de serem antes de tudo uma recusa radical do

mundo, recusa que se compreende facilmente uma vez que este mundo estdestinado a desaparecer de um dia para o outro. Que numa poca a nfase seja dada ao mrtir e, na outra, ao asceta ou ao anacoreta, tanto faz! Pois todas essas atitudes se prendem a uma mesma e total desafeio para com o mundo aqui de baixo, conseqncia das conturbaes, dos traumatismos operados nos espritos pelo medo, pela angstia, pela exaltao do Fim dos Tempos. Um exemplo disso? Posto que Jesus disse, a propsito dos sinais precursores de sua segunda Vinda: "Ai das que estiverem grvidas ou amamentando nesse dia!", muitas jovens permanecero virgens e inmeros casais praticaro os casamentos virginais ou apotcticos (consistindo em viver juntos, mas renunciando s relaes sexuais), para no serem surpreendidos impuros no momento do Juzo Final1. Se for necessria uma prova suplementar desta ligao, operada em muitos espritos, entre o zelo da virgindade e o temor do fim do mundo, eis um texto muito revelador de santo Hiplito, bispo de Roma, extrado do seu Comenio sobre Daniel, escrito no incio do sculo III:

Um bispo, homem piedoso e modesto, mas que tinha excessivo confiana em suas vises, tivera trs sonhos e se ps a profetizar: "Sabei, meus irmos, que o luizo Final ocorrer em um ano. Sc o que vos digo no acontecer, no creiais mais nas Escrituras e agi como vos aprouver". Ao cabo de um ano, nada aconteceu, ele ficou confuso, os irmos escandalizados, as virgens se casaram e 05 que tinham vendido todos os seus bens foram reduzidos mendicncia.1. Apotctico significa, em sentido prprio: remmciante. Servia tambm para designar, durante os primeiros sculos, todos aqueles que praticavam a ascese onde quer que fosse, inclusive em casa, que renunciavam, em suma, vida dita mundana. 25 Material com direitos

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O UM DOS TEMPOS

So Cipriano de Cartago, numa Carta a Dimitriano (mais um texto notvel que valeria a pena comparar com os textos ecolgicos contemporneos), escreve: Quem no v que o mundo caminha para seu declnio, que j no tem as

mesmas foras nem o mesmo vigor de antigamente? No preciso prov-lo com a autoridade da Santa Escritura. O prprio mundo o diz e testemunha que se aproxima de seu fim pela decadncia de todas as coisas. Cai menos chuva no inverno para alimentar as sementes. O sol no mais to quente no vero para alimentar os frutos. A primavera no mais to agradvel nem o outono to fecundo. As pedreiras, como se estivessem cansadas, fornecem menos pedras, e as minas de ouro e de prata j esto esgotadas. As terras ficam incultas, os mares sem pilotos, os exrcitos sem soldados. H menos inocncia no tribunal, menos justia entre os juizes, menos unio entre os amigos, menos indstria nas artes, menos disciplina nos costumes... Vemos crianas que j so totalmente brancas. Seus cabelos caem antes de nascerem e comeam pela velhice em vez de terminar por ela. Assim, todas as coisas, desde agora, se precipitam rumo morte, sofrem do esgotamento geral deste mundo1.Em outros termos, o fim do mundo j no aparece ento como um objeto de terrores ou de esperanas insensatas, mas, ao contrrio, como uma fonte de meditaes, de reflexes racionais sobre os fins ltimos do homem. Compreende-se melhor agora como (e por que) os primeiros cristos deram tanta importncia ao mrtir, ao asceta e depois ao anacoreta. Cada um deles, por esse comportamento anti-social, essa recusa de um mundo moribundo, aparecia a um s tempo como um modelo e um profeta, como a nica "resposta" possvel angstia de um mundo que lia em si mesmo os sinais de sua prpria agonia.1. Ressaltemos esta frase de aparncia sibilina: "crianas que j so totalmente brancas". Devia tratar-se com toda certeza de bebs germanos que so Cipriano deve ter visto pela primeira vez nesta poca, na frica, onde vivia. Seus cabelos, inteiramente brancos ao nascer, s se tornam louros com o tempo. Observemos tambm que Plato, na Poltica, j tinha imaginado esse tema dos homens que nascem ancios e rejuvenescem pouco a pouco, para retornar ao ventre materno da terra. Essa inverso do tempo, Plato explicava-a pela retirada dos deuses de sua criao. O universo, abandonado a si mesmo, v suas formas e seus seres regredirem at que cada coisa se dissipe. Ora, idias anlogas nasciam ento nos espritos cristos: Deus havia se retirado do mundo, deixando o universo entregue a si mesmo, isto , regresso, morte. 29 You have either reached a page thatis unavailable forviewing or reached yourviewing limitforthis book.

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O UM DOS TEMPOS

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2.^ande t^arasio

Vir um tempo em que parecer que os egpcios adoraram seus deuses em vo. Da terra esses deuses retornaro ao cu, e o Egito ser deixado no abandono. Essa terra santa, ptria dos santurios, se cobrir de sepulcros e de morte. Egito! Egito! Das tuas crenas s subsistiro fbulas que parecero incrveis s geraes futuras, s restaro palavras sobre as pedras que contam teus atos de piedade!

Asclpio

A

branca, serena abstrao dos desertos. A Palestina, a Sria, a Lbia, o Egito podiam oferec-la aos que renunciavam ao mundo. Por que foi o Egito que venceu e se tornou a terra de predileo da ascese e da anacorese? Antes de abordar essa questo, ressaltemos um ponto importante: os textos que relatam a vida no deserto dos "homens brios de Deus", e aos quais apelaremos neste livro, so em sua maioria textos gregos escritos por gregos: a Vida de Anto, pelo bispo de Alexandria, Atan-sio; a Histria lausaca de Paldio, a Histria dos monges do Egito de Rufino de Aquilia. Os dois outros textos mais importantes, a Vida de Paulo de Tebas, primeiro eremxa, de so Jernimo, e as Conversas com33 Material com direitos autorais

os monges do Egito, de Cassiano, foram escritos em latim. Mas escrever em grego significa tambm pensar em grego. Todos os textos em questo, redigidos com vistas a um pblico cultivado que fala grego e latim, naturalmente transpuseram em sua prpria lngua os ensinamentos, as palavras, a mentalidade particular dos homens dos desertos do Egito. Ora, estes homens no eram nem gregos nem romanos, mas egpcios: Anto, Pacmio, Macrio o Antigo, Poimm, Pior, Serapio, Hor, Pafncio, Onofre, Cancio, Pisntios, todos esses grandes nomes do cristianismo copta* eram de raa egpcia, nascidos no Egito de pais egpcios (e mesmo pagos, muitas vezes). No falavam nem grego nem latim, mas copta, forma demtica da lngua egpcia tradicional. Alm disso, eram em sua maioria de origem camponesa, pertenciam quela classe dos fels que nunca teve qualquer contato (a no ser pelas revoltas constantes) com os ocupantes gregos e romanos e que perpetuou por longo tempo as tradies, os cultos, a mentalidade do Egito faranico. essencial estabelecer desde j esta distino, pois do contrrio sujeitamo-nos a no captar em toda a sua originalidade o fenmeno singular que foi o nascimento do mona-quismo no Egito. Na sua gnese e no seu alcance, um fenmeno puramente egpcio o ressurgimento com outras formas de um passado e de uma cultura que se acreditavam mortos mas que, de fato, nunca deixaram de existir nem de crescer, apesar dos sculos de ocupao estrangeira.& $r ifc

Quando Anto e Pacmio partiram para o deserto, o Egito tinha deixado de ser h mais de oito sculos um pas independente. O* Como o autor falar com insistncia dos captas, parece-nos interessante traar aqui um rpido perfil deste povo. Os coptas so os cristos do Egito e da Etipia. So atualmente os descendentes mais autnticos da populao do Egito antigo, e sua continuidade racial se deve sua religio, que no admite casamentos mistos. Falam uma lngua da famlia camito-semltica que a continuao do egpcio falado na poca dos faras (os egpcios muulmanos falam rabe). Esta lngua se escreve num alfabeto prprio, baseado no grego. O hierarca supremo da Igreja copta o Patriarca, que vive no Cairo. Celebram a liturgia de so Baslio. Do ponto de vista doutrinai, a Igreja copta est desligada da igreja catlica romana e das Igrejas ortodoxas por ter permanecido na heresia do monofisismo. O termo copta provm de gyptus, alterao do nome grego do Egito, Aegypus. (N. do T.)

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PADRES DO DESERTO tamanho descomunal de certos animais, os gregos reagiram com zombaria, escrnio e esse esprito mordaz que os egpcios no apreciavam muito. Eles lhes retriburam, alis, a gentileza e captamos, nesses jogos da linguagem, todas os abismos que separam dois povos que esto lado a lado durante sculos sem se compreenderem. Para os egpcios, os gregos eram gente turbulenta, superficial e pouco sria, um povo irresponsvel e infantil. Recordemos esta frase atribuda por Plato a um sacerdote egpcio frase cuja justeza permanece mais que nunca vlida a trinta sculos de distncia e que poderia aplicar-se aos gregos de hoje: "Vs outros, gregos, permanecereis sempre crianas. Quando que os gregos se tornaro um povo adulto?" A presena romana no Egito foi menos sensvel ainda que a dos gregos. Roma tratou o Egito como uma terra parte, um pas cujos costumes, modos de vida, deuses e o lugar excntrico que ocupava nos confins do mundo o diferenciavam das outras provncias do Imprio. Se os gregos se justapuseram aos egpcios sem realmente misturar-se a eles, os romanos s fizeram ocupar o Egito. Seno, vejamos um mapa do Egito romano. Que vemos a? Cidades gregas: Alexandria, Nucratis no' Delta, Arsnoe no Faium; depois, medida que subimos o Nilo, Afroditpolis, Oxirrinco, Hermpolis, Licpolis, Ptolomaida, Coptas, Tebas, Siena. Algumas dessas cidades eram evidentemente de origem egpcia, mas elas usaram durante muito tempo e com mais freqncia seu nome grego. Uma nica cidade tem um nome e uma origem devidos a Roma: Antino, fundada por Adriano aps a morte de seu favorito, Antnoo. que, de fato, a penetrao romana no foi muito alm do Mdio Egito. Nada de limes, faixa-fronteira como em tantos outros pases do Imprio, nada de fortifica-es, de vias, de implantaes duradouras. Antes uma presena espordica, nos limites do deserto hostil, que obrigou os romanos a se servirem de dromedrios; presena limitada a algumas guarnies de militares, algumas dezenas de funcionrios e cidados confinados unicamente no Delta e nos burgos importantes. Roma ocupa militarmente o Egito, mas no constri nada ali, no funda nada, no compreende nada. Contenta-se em reprimir as revoltas que estouram a todo momento e, como diz com acerto um historiador do Egito romano, "em fazer o pas suar trigo e prata para alimentar os romanos".31 Material com direitos autorais

PADRES DO DESERTO Diro que estamos fazendo o jogo do mistrio e do exotismo, mas isso seria ignorar o papel singular que o Egito desempenhou para a cultura romana. Pois este pas to desconhecido e to pouco apreciado pelos que o ocuparam suscitou uma verdadeira febre entre os romanos da Itlia. Visto de Roma ou de Pompia, o Egito no mais uma terra de trigo povoada de indgenas embrutecidos, mas o pas da sabedoria e do conhecimento, o reino das tradies ocultas e dos poderes mgicos. Ele cristaliza, em torno de seus enigmas, seus smbolos indecifrveis, seus monumentos misteriosos, toda uma carncia de exotismo e de maravilhoso de que as culturas antigas se ressentiam tanto quanto as nossas. Pode-se ver uma prova disso na moda que fizeram os cultos egpcios (os de sis, principalmente) a partir do sculo I antes de nossa era. Toda uma aristocracia culta se entusiasma com sis, seus mistrios, seus sacerdotes, com esses cultos estranhos e at ento desconhecidos, a ponto de obrigar o imperador Tibrio a suprimi-los, a mandar crucificar alguns sacerdotes como exemplo e a deportar alguns milhares de fiis de sis para a Sardenha. Tudo isso, junto com os relatos mais ou menos fantsticos trazidos pelos viajantes (pois a moda ento a dos relatos de viagem fabulosos, onde tudo pitoresco e fcil, exotismo de bazar, prodgios e milagres, relatos que Luciano de Samosata parodiar na sua Histria verdadeira1), acaba formando no esprito do profano uma imagem convencional do Egito que se encontra nessas pinturas de paisagens nilticas que "causam furor" na mesma poca nas casas de Roma e de Pompia. Templos e cabanas de juncos beira do Nilo, barcos e barqueiros, bis e crocodilos se reproduzem ali ao infinito, tal como naqueles papis pintados de nossa infncia onde, numa paisagem oriental estereotipada deserto, camelos, mesquita , mulheres com vus apanhavam gua sombra das palmeiras. Os romanos, nos primeiros sculos de nossa era, tero o seu Egito, tal como o sculo XVI teve as suas ndias ocidentais e o sculo XIX a sua Polinsia: terras paradisacas onde se cristalizam essa amargura inconsciente e essa nostalgia da inocncia que afetam as civilizaes nas pocas de xito material e de conquista.

1. Histria chamada "verdadeira" por ser, justamente, fruto de pura imaginao e por ser o primeiro modelo de uma literatura antiextica, diramos hoje desmistificadora, contra todos os viajantes, autores de relatos fabulosos e fceis, der32 ramados nas "salas Pleyel" da poca. Material com direitos autorais 37

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entre vs, ou em qualquer outro lugar, tudo o que se produziu de belo, de grande, de notvel sobre a terra, tudo isso est escrito, aqui, de longa data em nossos templos e salvo do esquecimento. Nossas leis, basta olhar para elas, e nossa maneira de viver e nossos conhecimentos: vers que elas tm mais de oito mil anos de idade". Outra prova ser encontrada num relato de Herdoto (anterior, portanto, ao de Plato) que tambm estabelece em oito mil anos a antigidade do Egito. Quando Herdoto visitou o templo de Amon-R, em Carnac, c perguntou aos sacerdotes desde quando os deuses reinavam sobre o Egito, eles o levaram ao interior do santurio e lhe enumeraram nomeando-as uma a uma trezentas e quarenta e uma esttuas de madeira: "pois cada sumo sacerdote, em vida, manda erguer sua esttua e, por uma enumerao metdica, os sacerdotes me mostraram que eles se sucediam assim, como os reis, de pai para filho, desde as origens". Trezentas e quarenta e uma geraes: isso d quase oito mil anos, o nmero citado por Plato. Mesmo dividindo por dois os nmeros dados por Herdoto (para ficarmos de acordo com os dados da arqueologia), eles permanecem bastante eloqentes. Diante da idade que supunham para seus deuses, diante da perenidade de suas crenas e de sua civilizao, os sacerdotes egpcios deviam sentir uma espcie de vertigem essa vertigem que arrebatava o visitante estrangeiro viso das trezentas e quarenta e uma esttuas alinhadas na penumbra do templo, sendo cada uma delas um elo do tempo. O Egito viveu durante quatro mil anos nessa vertigem da eternidade, nessa certeza de que o tempo era imvel, de que os deuses egpcios reinavam desde sempre sobre a terra. E ento, um dia, essa vertigem acabou, pois os deuses egpcios morreram. "Morreram" uma maneira de dizer, pois dificlimo descrever e mesmo

compreender , na sua complexidade, a morte de um deus. Quando se pode dizer que um deus morreu? Quando deixa de ter um culto oficial? Mas nada prova, s por isso, que seus flis deixam de crer nele, de crer em sua presena e em seu poder oculto. No sculo VI de nossa era, ou seja, dois sculos depois da proibio oficial do paganismo pelo imperador Teodsio, ainda havia no mundo romano homens filsofos msticos que continuavam a crer na verdade dos deuses egpcios. Um deles escreve: "Sabemos que os deuses viveram e continuam a viver l".39

Uma questo que toca to de perto a alma humana no pode ser resolvida com base nos vestgios externos que os deuses e seus cultos sempre deixaram na terra,You have either reached a page thatis unavailable forviewing or reached yourviewing limitforthis book. 1. Este episdio foi descrito com algumas variantes por Sozmeno, Histria eclesistica (VII, 15), e Scrates, Histria eclesistica (XI.29).

A GRANDE TRANSIO sobretudo no Egito. De tal sorte que o nico critrio que permite dizer que um deus acaba de morrer ainda aquele fornecido por seus prprios fiis, quando tomam conscincia de que ele morreu neles, de que deixaram de crer nele. Ora, tal fenmeno se produziu no Egito, em Alexandria, na ltima dcada do sculo IV, no dia em que o patriarca Tefilo foi autorizado a instalar uma igreja num templo de Dioniso. Descobre ali estatuetas obscenas (ou melhor, que ele acha obscenas), as destri e lana seus pedaos multido dos cristos. Os pagos, furiosos, se revoltam, atacam os cristos e, tomados de pnico, correm a se trancar no Serapeu o grande templo de Serpis. Este templo era de uma magnificncia excepcional, que j impressionara, dois sculos antes, um cristo como Clemente de Alexandria. Mas nem a hora nem o sculo se prestavam mais admirao dos templos pagos. Os cristos, excitados por Tefilo, sobem os cem degraus que levam entrada do santurio, penetram no seu interior e se detm de chofre, tomados de assombro, de pavor, medo, diante da imensa esttua do deus. A tal ponto que ningum ousa atac-la. Finalmente, a uma ordem de Tefilo, um soldado se apodera de um machado, trepa a uma escada e comea a golpear a cabea do deus. O dolo balana, desaba, a multido lana um grito de medo enquanto... uma enxurrada de ratos sai do buraco aberto na esttua! Ento, passado todo o medo, os cristos arremetem contra o dolo. Os prprios pagos esto consternados: no havia um orculo muito antigo anunciando que o mundo desmoronaria no dia em que Serpis fosse profanado? Serpis qucbrou-se e o mundo no desmoronou. Os cristos ento arrastam os escombros vontade por toda a cidade e os queimam1. E cada um deve ter lido, ento, na viso daquele colosso arruinado de onde escapavam ratos, daquele deus esquartejado que era arrastado pelas ruas, a imagem mesma do paganismo dilacerado, moribundo. O cristianismo tinha conseguido no Egito pela violncia aquilo que nem os persas, nem os gregos, nem os romanos tinham podido fazer: suprimir as divindades seculares do pas e dar a ele um novo deus.

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* tr

Os primeiros documentos seguros que atestam a existncia de uma comunidade crist organizada, em Alexandria, datam do final do sculo II. tambm por esta poca que um filsofo grego, Panteno, antigo estico convertido ao cristianismo e que teria viajado at a ndia seguindo as pegadas do apstolo Bartolomeu (segundo Eusbio de Cesaria), funda em Alexandria a clebre Didasclia, escola crist de exegese que ser dirigida depois dele por Clemente de Alexandria e Orgenes. O sucesso encontrado por esta escola prova em todo caso que, data de sua fundao, j havia nesta cidadeMaterial com direitos autorais

comunidades crists suficientemente numerosas e organizadas decerto desde os meados do sculo II. Mas quem so estes primeiros cristos? Antes de tudo, gregos, judeus, romanos, egpcios helenizados, membros da sociedade cosmopolita e culta de Alexandria. no seio desta ineligensta que o cristianismo se difunde a princpio pela simples razo de que s pregado em grego e no pode atingir a massa egpcia propriamente dita, que fala copta. O que no deixa de criar dificuldades: esta sociedade refinada , por natureza, pouco fantica, mais tolerante e aberta a todos os cultos e deuses novos. J tinha aceitado os deuses gregos, romanos e as divindades orientais srias e zorostricas a ponto de "amalgam-las" s do Egito. , por excelncia, uma classe que favorece o sincretismo religioso, onde se recrutaro os mais fervorosos adeptos do gnosticismo, do neoplatonismo, do neopitagorismo, das doutrinas hermticas e de todas as seitas religiosas e filosficas que se multiplicam na Alexandria do sculo II. Para tomar s um exemplo, aquele Serpis cuja "morte" retratamos um pouco mais acima e que foi o grande deus da poca greco-romana , aquele Serpis era uma "mescla" de Zeus-Jpiter, Hades, Osris, pis, Dioniso e mesmo de um pouco de Amon-R! Alm de seu santurio de Alexandria, ele possua um outro, clebre, onde podia ser adorado segundo o rito egpcio ou o rito grego e cujas alias eram ornadas com esfinges egpcias, sereias gregas, esttuas de Ptndaro, Protgoras e Plato! Tal flexibilidade no sincretismo tem qualquer coisa de fascinante. difcil hoje em dia, aps vinte sculos de cristianismo, imaginar que as divindades pudessem associar-se desse modo sem se excluir, amalgamar-se em pantees incessantemente enriquecidos. A facilidade com que ento se "fabrica41

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A GRANDE TRANSIO

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ramente dizem respeito ao meio que nos interessa aqui, o do campons copta. O que certo que tornar-se cristo, no sculo III, para um campons do Egito no significava apenas adotar uma religio nova; implicava tambm renunciar mais ou menos religio antiga, a imagens, a smbolos, a ritos ancestrais. Entre este mais e este menos se situa todo o verdadeiro alcance do cristianismo naquela poca, e a necessidade que ele teve de se acomodar com este passado prodigioso, de no romper com algumas de suas exigncias, em suma, de dar ao copta a impresso de que ele podia tornar-se cristo permanecendo egpcio1. Vale dizer que os termos cristianismo e oisto tinham para um campons copta um sentido bem diferente do que tem para ns. De um extremo a outro do orbis romanus, cada um dos pases convertidos teve, alis, com bastante rapidez a sua prpria viso de Cristo, a ponto de a histria dos seis primeiros sculos da Igreja ter sido uma luta constante contra as heresias, um esforo perptuo para impor a todos uma viso idntica de Cristo. O peso do passado se exerceu profundamente sobre a sensibilidade religiosa do Egito cristo, e e evidente que haver sempre, na maneira como um campons copta era cristo, algo de estranho nossa prpria experincia. A prova disso que no dia em que ele puder, com toda liberdade, escolher o seu cristianismo, escolher um cristianismo todo equivocado, hertico: o monofisismo, que se tornar, a partir do final do sculo V, a religio nacional do Egito2.

1. Permanecer egpcio, para um copta, no significava apenas continuar a pertencer ao Egito enquanto nao, mas enquanto cultura, perpetuando a crena nos smbolos religiosos milenares. Assim, na Vida copta de Teodoro, o discpulo de Pacmio, conta-se que Teodoro, tendo visto no campo um touro que possua os sinais externos dos touros sagrados de pis, "mandou-o matar para que seus monges no se pusessem a ador~lo"\ 2. O monofisismo foi uma heresia que afirmava que o Pai e o Filho tinham somente uma natureza inteiramente divina e, portanto, que a natureza humana de Cristo no passava de uma aparncia. Essa doutrina j havia sustentado certo nmero de seitas dos sculos anteriores, bem como algumas seitas gnsticas e tambm os marcionitas e os docetistas. Na doutrina monofisita, Cristo s tem uma carne aparente e pode mudar vontade de forma e de aspecto. Para explicar a Crucifixo (j que seria impossvel crucificar um fantasma), os monofisitas admitiram que Cristo no foi realmente crucificado, sendo substitudo in extremis por Simo, o Cireneu. Essa heresia devida a um monge de Constantinopla chamado utico se difundiu em todo o Oriente Mdio e ganhou o Egito, a Sria e a Armnia, onde subsistir, apesar da condenao do concilio de Calcednia, em 4 5 1 . 45 You have either reached a page thatis unavailable forviewing or reached yourviewing limitforthis book.

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Segunda Parte

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poca. Nestas Vidas, os sbios, como mais tarde os santos, de fato comandam os elementos, afastam os flagelos, domam as bestas selvagens, operam curas milagrosas, exorcisam os posscssos. O que j permite situar em seu verdadeiro contexto todos esses milagres, essas diabruras e esse maravilhoso que fervilham na Vida de Ano. Eles s tm sentido em funo do objetivo visado pelo autor: escrita para edificar, no para descrever, concebida como um retrato exaltador da vida no deserto e no uma reportagem minuciosa das faanhas e proezas do santo, a Vida de Anto no poderia abrir mo das convenes literrias indispensveis a toda Vida edificante: milagres surpreendentes, grandes discursos retricos sobre a virtude e a sabedoria, recurso ao maravilhoso e ao sobrenatural, assaltos dos demnios. Em suma, o "por qu" da Vida de Anto que explica o "como", no o inverso. Todo esse arsenal de milagres e de tentaes, de conversas com os anjos ou de poderes exaltantes nada tem de cristo. Para o pblico da poca, pago ou cristo, nenhuma Vida de sbio ou de santo podia ter virtude edificante se no tivesse primeiramente um poder de assombro, se no obedecesse s leis do romance aretolgico, to rigorosas e imperativas quanto as que presidem hoje em dia, por exemplo, o romance-folhetim. Dito isto, uma vez bem admitida esta ganga fabuladora, esta inteno edificante das Vidas dos santos, no se pode concluir, porm, que elas no contenham nenhuma parte de histria ou de verdade. Ningum sonha em negar a existncia de Pitgoras ou dos sofistas gregos, ainda que sua vida, escrita por Jmblico e Eunpio, contenha mais de maravilhoso e de fantstico que de real. Tudo leva a crer que Anto de falo existiu. dito em sua Vida que ele fez duas viagens a Alexandria, que tomou posio contra a heresia ariana, e estes fatos puderam ser confirmados por outras fontes. Existiu seguramente, no sculo IV, no deserto do Egito, um personagem chamado Anto, copta iletrado mas dotado de grande sabedoria, que se consagrou a uma ascese espetacular o bastante para impressionar seus contemporneos e incitar um bispo a escrever sua vida. Mas certo que o personagem histrico tem pouca relao com o da Vida de Anto. A parte de histria que esta Vida contm, temos de busc-la contra o prprio texto, contra o autor s vezes, em tudo o que lhe pde escapar sobre os fatos, os lugares, as coisas que ele descreve. ali, nessa parte obscura, inconsciente da obra, que a histria real de Anto (a quem os sinaxnosYou have either reached a page thatis unavailable forviewing or reached yourviewing limitforthis book.

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que fugiam dos lugares habitados para escapar das corvias, dos impostos, de seus amos ou da justia. Mas sua temporada no deserto era apenas passageira. No caso de Anto, esta partida tomava um sentido bem diferente, pois o que o atrai no a realidade concreta, e sim a realidade simblica do deserto. Como todos os anacoreias que o imitaro a seguir, Anto viveu numa poca e num meio profundamente impregnados de smbolos e de imagens bblicas. Toda a realidade material circundante (o deserto, o cu, os sons, as luzes, as sensaes mais quotidianas) possui um valor e um sentido simblicos, por ter servido, de uma maneira ou de outra, a este ou aquele episdio da histria divina. O deserto, antes de tudo, um lugar inspito, trrido, onde ningum poderia levar uma existncia normal. L o homem est nu, apanhado entre a terra e o cu, entre os dias extenuantes c as noites glidas, prisioneiro de uma paisagem abstrata, que no a imagem de nenhum mundo familiar. O deserto um lugar inumano. Mas que quer dizer inumano para um copta? Quer dizer um lugar habitado por outras criaturas que no homens: por anjos e demnios. No deserto, nenhum homem pode viver se no for ajudado por Deus ou por seus anjos, ningum pode morar ali sem enfrentar mais cedo ou mais tarde os assaltos do Diabo: tem de viver ali com os milagres e as tentaes. Mas, de tanto freqentar os anjos, acaba-se parecendo com eles. O que os homens do deserto perdem em humanidade ganharo em angelismo, e compreende-se que os pintores bizantinos que representaro estes homens do Egito nos afrescos dos mosteiros da Capadcia ou da Grcia os tenham pintado sob este duplo aspecto de selvagens c de anjos: rosto emagrecido, trajes esfarrapados, cabelos que caem at os ps, mas tambm olhares perdidos na contemplao de uma outra realidade, carne que quase no mais carne. Todas as convenes da arte bizantina tero como meta fazer dos grandes ascetas no criaturas impassveis, fantasmas ou iluses, mas seres que j pertencem a uma outra espcie de humanidade, a meio caminho do outro mundo. O deserto o lugar de uma experincia suprema, uma provao que conduz fatalmente o homem para alm de si mesmo, rumo ao Anjo ou Besta, rumo ao Diabo ou a Deus. Orgenes que dirigiu por muito tempo a clebre Didasclia de Alexandria e foi um dos espritos mais eminentes do sculo III

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serpentes "com rostos de centelha, fogo na face e fogo no olho", o senhor do cetro, o que est no pas, o falco macho e o falco fmea. De cada lado da margem, assistindo passagem do cortejo divino, aparece uma multido de criaturas: numa das margens, esto todos aqueles que "criam o Oceano e fazem a marcha do Nilo"; so, na ordem, trs deuses, quatro mulheres, quatro mmias chifrudas e aladas, quatro nobres, um objeto de aparncia estranha (provavelmente uma haste de papiro), mas que na realidade um ser vivo, j que se chama aquele que cheio de magia, um homem ajoelhado chamado aquele que traz o despertar, Anbis, um carneiro chamado o matador de seus inimigos, um carregador e uma carrcgadora de olhos, o deus-orictropo* Set e um cinocfalo** (na mitologia egpcia, os cinocfalos abrem e fecham as portas do Reino dos Mortos). Na outra margem se erguem aqueles que cortam as almas e apnsionam as sombras. Dtstinguem-se o deus rion, um deus chamado o Ocidental, uma deusa que est sobre a chama, cinco criaturas com cabea de pssaro carregando facas, mais oito Osris e o deus-carnero Khnum. E isso se repete em cada uma das doze horas do Am-Duat! Alm disso, s mencionamos aqui os deuses e as criaturas mais aparentes, as que esto nas margens do rio. Ao longe, nas trevas desse mundo estranho, o brilho do deus-Sol ilumina de passagem, como um projetor varrendo a noite, criaturas de pesadelo: mortos sepultados na areia, dos quais s a cabea emerge, serpentes montadas em patas to altas quanto pernas-de-pau, o drago Apfis enroscado num penhasco que ele envolve com suas espirais, homens estendidos na terra, decapitados ou manietados (os "inimigos" do Sol), outras, enfim, que mal adivinhamos, sepultadas sob montculos de areia. Essa imaginao funerria no era somente visual, mas sonora. Nesta ou naquela hora do Am-Duat, os textos descrevem os rudos mltiplos que acompanham a passagem da barca divina: gritos de alegria dos mortos enquanto o Sol atravessa sua "hora", gemidos e* Qrictropo: gnero de mamferos tubultdentados, com aparncia geral de um porco, mas dotado de uma boca em forma de tubo, por onde se alimenta de cupins e formigas; chamado na frica do Sul aardvark ("porco da terra"). (N. do T.)* * Cinocfalo: nome grego que significa "cabea de co", aplicado a um gnero de

macacos cuja cabea lembra a de um co. (N. do T.)

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ele apareceu fora daquele castelo queles que vinham at ele, e ficaram cheios de assombro ao v-lo num vigor maior do que jamais tivera. No tinha nem engordado pela ausncia de exerccio nem emagrecido por tantos jejuns e combates sustentados contra os demnios. Tinha o mesmo rosto de antes, a mesma tranqilidade de esprito e o humor agradvel. No estava nem abatido de tristeza nem numa excessiva alegria. Seu rosto no era nem demasiado jovial nem demasiado severo. No dava mostra nem de desagrado de se ver rodeado de tamanha multido nem de satisfao de ser saudado e reverenciado por tanta gente. Era de uma perfeita igualdade de alma, num estado conforme natureza.Ele forma ento seus primeiros discpulos, que decidem renunciar ao mundo e se agrupar em torno dele. Desta poca que podemos situar aproximadamente em 305 data a fundao da primeira comunidade crist no Egito. Ainda no um mosteiro, mas, no mximo, uma laura, um agrupamento de anacoretas, submetidos a uma ascese e a um modo de vida relativamente livres. Esta primeira comunidade, Anto a estabelecer s margens do Nilo, no longe da fortaleza de Pispir, perto da atual aldeia de Deir-el-Maimum. A reputao de Anto, nesta data, j enorme no Egito. Ela atinge todas as camadas da populao e no mais apenas um punhado de devotos e admiradores. Uma multido de pessoas aflui ao "mosteiro" de Pispir, deita-se ao longo da entrada, na esperana de ver o asceta aparecer para lhes falar, cur-las ou exorciz-las. J corre o boato de que basta se aproximar do "mosteiro" de Anto para voltar de t imediatamente curado. Mas Anto no suporta nem a multido, nem os milagres, nem a glria e decide partir de novo para mais longe no deserto, "num lugar onde no fosse conhecido de ningum".

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0m

A ltima parte da vida de Anto, da idade de sessenta anos at suamorte, apesar de alguns detalhes concretos, mal pertence histria humana. Aps ter deixado seus companheiros de Pispir, Anto se deteve s margens do Nilo, sem saber muito para onde iria, quando, de repente, ouviu uma voz celeste lhe dizer que se dirigisse "para o deserto interior". Naquele exato momento, passavam bedunos; ele os

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PADRES DO DESERTO

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PADRES DO DESERTO

assava seu po duas vezes por ano e fazia-o secar ao sol. Ningum podia entrar onde ele morava, mas ficava-se do lado de fora e ouvia -se sua palavra". E quando Anto morreu, no monte Colzum, aos cento e cinco anos de idacle, o sinaxrio acrescenta:You have either reached a page thatis unavailable forviewing or reached yourviewing limitforthis book.

PADRES DO DESERTO "Viveu at a boa velhice sem que sua fora diminusse. Nenhum de seus dentes caiu".

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PADRES DO DESERTO

Sinai, ainda que estivssemos a mais de vinte lguas. O mar fica a oriente deste mosteiro. s pontas do Sinai ficam a leste do mar. Avistamos algumas montanhas do lado do ocidente com um pouco de mata, mas muito distante de l, e todo o conjunto do que podamos vislumbrar era inteiramente rido e causticado. ali que Paulo de Tebas viver durante cem anos. Cem anos de uma existncia quase milagrosa, ainda que so jernimo, no que lhe diz respeito, ache tudo muito natural:

A palmeira de que falei lhe fornecia tudo o que era necessrio sua alimentao e sua vestimenta, o que no deve ser visto como impossvel, j que Jesus Cristo e seus anjos so testemunhas de que, nesta parte do deserto que pertence s terras dos sarracenos e se junta Sria, tenho visto solitrios dos quais um, recluso h trinta anos numa caverna, s vivia de po de cevada e de gua lodosa, e um outro, trancado numa velha cisterna, vivia de cinco figos por dia.Paulo de Tebas viver decerto com menos que isso. Levar nesta gruta uma existncia anglica que o universo teria ignorado se, pouco antes de sua morte, Deus no tivesse avisado Anto da existncia de Paulo. Anto tinha j noventa anos, mas decidiu imediatamente pr-se a caminho, procura dele. A partir deste episdio, a Vida de Paulo de Tebas torna-se uma espcie de sonho acordado em pleno deserto. Para comear, onde vive Paulo de Tebas? Anto no sabe e parte s cegas. Mas s cegas, quando algum se chama Anto e vive no deserto, quer dizer o olho de Deus. A Providncia guarda o caminho do asceta e nele coloca estranhas balizas:

Ao despontar o dia, santo Anto comeou a caminhar sem saber aonde ia e o sol, chegado o meio-dia, j tinha escaldado o ar de tal sorte que parecia todo inflamado quando ele viu uma criatura que tinha em parte o corpo de um cavalo e era como aquelas que os poetas chamam Hpocentauros. To logo o vislumbrou, Anto armou sua fronte com o sinal salutar da cruz e lhe gritou: "Ol! Em que lugar da terra mora aqui o servo de Deus?" O monstro, ento, murmurando no sei o que de brbaro e entrecortando suas palavras mais do que proferindo-as distintamente, esforou-se por fazer sair uma voz doce de seus lbios eriados de plos e, estendendo a mo direita, lhe mostrou o caminho to desejado. Depois, dissipou-se diante dos olhos daquele a quem tinha enchido de espanto. Quanto

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PADRES DO DESERTO A Vida de Pacmio chegou at ns num grande nmero de verses escritas nos diferentes dialetos coptas: bohirico e menfitico (Delta e Baixo Egito), akhmnico e sub-akhmnico (no Mdio Egito) e sahdico (no Alto Egito). Estas Vidas apresentam entre si certo nmero de variantes, mas todas concordam no essencial: os principais episdios da infncia de Pacmio e sua regra so, em todas elas, os mesmos. Por eles, podemos reconstituir com bases histricas bastante seguras a espantosa existncia do primeiro dos monges. Pacmio nasceu em 286 na aldeia de Esneh (atualmente Isna), no Alto Egito, a uns cinqenta quilmetros de Tebas. Ao contrrio de Anto, teve uma infncia paga. Mas, como no se poderia admitir que um futuro santo pudesse, mesmo inconscientemente, adorar os dolos, sua Vida toma o cuidado de assinalar que ele s os adorava na aparncia. Vomitava a cada vez o vinho dos sacrifcios, seu estmago se recusava a ingurgitar alimentos oferecidos aos dolos. Anto, aos vinte anos, teve a revelao de uma vida consagrada a Deus. Em Pacmio, o fenmeno invertido: ele consagrado a Deus sem ao menos saber disso. Inverso que se opera at nos detalhes mais concretos: Anto ouvia o chamado de Jesus; Pacmio, ao penetrar num templo pago, aos oito anos de idade, no ouve voz alguma; ao contrrio, so os dolos que param de falar ou de profetizar. A vocao de Pacmio essa

voz paga que se cala em sua presena.Em nada surpreso com tantos prodgios, Pacmio continua a crescer: aos vinte anos, alistado fora no exrcito romano e parte um belo dia para a guarnio, em Antino. L, pela primeira vez, fica sabendo que existem no mundo seres chamados cristos, que se devotam voluntariamente aos outros e se deixam martirizar, em vez de renegar sua f. Tocado por sua generosidade e sua gentileza, Pacmio os freqenta assiduamente e decide, nesta poca, consagrar-se ao Deus dos cristos. Assim que foi dispensado, dois ou trs anos mais tarde, ele regressou ao sul e chegou um belo dia a Sheneset (em grego Khenobskion),

aldeia deserta e causticada pela intensidade do calor. Ento, ps-se a considerar aquele lugar: no tinha muitos habitantes, apenas alguns. Foi at o rio, num pequeno templo chamado pelos antigos Psampisarapis (lugar de Sarpis), ps-se de p, orou, e o esprito de73Material com direitos autorais

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orao ali... Como se prolongasse na orao, uma voz lhe veio do cu e lhe disse: "Pacmio, instala-te aqui e constri tua morada. Uma multido de homens vir a ti, e isso lhes beneficiar a alma".Nas verses posteriores, o episdio mais preciso ainda: um anjo aparece a Pacmio, lhe d suas instrues e lhe entrega, numa tabuleta de bronze, a Regra de seus futuros mosteiros. Este deserto da Revelao como poderamos cham-lo situava-se perto da aldeia de Tabenesi, na margem ocidental do Nilo, nas proximidades da antiga cidade de Denderah. Foi l que Pacmio se instalou para obedecer s instrues anglicas. l que ele fundar, algum tempo depois, seu primeiro mosteiro. Esse episdio do anjo ilustra de maneira direta as observaes feitas no incio do captulo precedente. Cada vez que uma descoberta ou uma iniciativa humana teve grandes conseqncias para os homens, eles tenderam imediatamente a atribuir-lhe a paternidade a um deus, a um anjo ou a um heri. Aos casos j mencionados (escrita, fogo. linguagem) acrescentemos aqui o das leis. A origem das leis foi quase sempre atribuda a deuses, e esta tendncia se encontra nas tradies hebraica e crist. Nelas, os Dez Mandamentos e a Regra de Pacmio so de inspirao divina. Moiss, no cume do Sinai, e Pacmio, no corao do deserto de Tabenesi, recebem das mos de Deus ou do anjo as tbuas de pedra ou de bronze contendo a Lei sob a qual os homens devero viver. No caso de Pacmio, a influncia tanto mais ntida quanto o episdio do anjo justamente tardio. Foi inventado numa poca em que os mosteiros pacomianos se haviam multiplicado ao longo do Nilo, em que Pacmio, to venerado quanto os maiores fundadores, tinha se tornado o Moiss dos copias. Rapidamente, a lenda ratificou pelo episdio da Tbua do anjo esse destino paralelo dos dois homens. De toda maneira, o fato essencial que, num dado momento de sua vida, Pacmio teve a revelao ou a idia de sua vocao: arrastar os homens para fora do mundo por seu exemplo, agrup-los em torno de si, instituir no deserto comunidades que repousariam em regras e princpios absolutamente novos. Eis o mago do problema, a prodigiosa originalidade da empresa pacomiana: fundar uma sociedade de homens "partindo de novo do zero", organizar a vida deles e suas relaes segundo um sistema origi77 Material com direitos autorais

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PADRES DO DESERTO de salvao, como uma sorte de ascese aniartsca na qual a recusa da beleza teria o mesmo papel que a recusa do corpo na ascese fsica?

*mA partir da fundao do primeiro mosteiro de Tabenesi at sua morte, ocorrida, em 348, durante uma epidemia de peste, Pacmio se consagrou por inteiro organizao da vida cenobtica. Empregamos aqui de propsito o termo cenobtico. O cenobita (do latim coenobium: "comunidade"*) designava na poca todo homem que vivia em comunidade, ao passo que monge ainda tinha o sentido de homem que vivia s. Com o tempo, o termo monge passou a designar tambm todo homem que vivia em comunidade c tornou-se sinnimo de cenobita. Mas no tempo de Anto e Pacmio a distino ainda era muito ntida entre estes dois modos de vida. O termo mosteiro, que os tradutores das Vidas de Anto e Pacmio empregam quase sempre, no deve nos iludir: ele designa, no mais das vezes, uma gruta ou uma simples cabana de gravetos onde vive um solitrio. Dito isso, e para a comodidade da linguagem, ns empregaremos sempre aqui o termo mosteiro em seu sentido corrente de edifcio onde monges vivem em comunidade. At sua morte, portanto, Pacmio cumpriu sua obra cenobtica e fundou nove mosteiros. Todos se situavam entre Tebas, ao sul, e Akhmin, ao norte, tendo como centro a regio de Khenobskion e Tabenesi, onde Pacmio fizera suas primeiras experincias. Depois dos de Tabenesi e de Pabau, fundou sucessivamente os mosteiros de Sheneset (que o nome copta de Khenobskion, j citado), de Tmusus (tambm chamado Moncoso), prximo do precedente, na margem esquerda do Nilo, e depois, mais ao norte, os de Tbeu e de Tesmine, perto de Akhmin, enfim, bem mais ao sul, nas cercanias de Tebas, o de Fnenum. Tambm fundou, perto de Pabau e de Tesmine, dois mosteiros de mulheres. Se situarmos por volta de 318 a construo do primeiro mosteiro, veremos que durante trinta anos Pacmio viveu uma existncia puramente cenobtica. A experincia da solido, dos tmulos e dos anjos estava encerrada. A seus olhos, era possvel doravante ser um asceta vivendo no seio de uma comunidade.

81 * Na verdade, o termo latino coenobium, apresentado pelo autor, de origem grega, formado de hoine ("comum") + bios ("vida"), "vida comum". (N. do T.)

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PADRES DO DESERTO monges usarem um capuz bastante amplo para que cada um pudesse cobrir com ele o seu prato e comer ao abrigo dos olhares indiscretos, sem ele mesmo saber o que seu vizinho fazia. Assim, durante as refeies comuns, todos os capuzes baixados se tornavam, no sentido prprio como no figurado, um testemunho de humildade! Alis, como regra geral, Pacmio no gostava dos jejuns demasiado freqentes ou exagerados. Num domnio em que to delicado traar a fronteira entre o orgulho e a humildade, o prprio fato de recusar um bocado de po ganhava um sentido equivocado: era por orgulho ou por ascese? E Pacmio chegou logo a exigir que cada monge comesse em cada refeio "quatro ou cinco bocados de po para evitar

a vaidade".No trabalho, a ascese tambm era regulamentada. A cada monge cabia trabalhar e fazer, alm dos trabalhos de sua casa, uma esteira de juncos tranados por dia, que ele depositava diante da porta de sua cela. Um dia, por vaidade, um monge depositou duas. Diante disso, Pacmio trancou-o cinco meses em sua cela, obrigando-o a fazer duas esteiras por dia. Obviamente, essas reprimendas sobre a alimentao, o sono, o trabalho eram s um meio destinado a facilitar a ascese mental do monge, permitir-lhe dominar sobretudo o homem interior, "matar o homem mundano", segundo a expresso de um anacoreta. A essas repreenses fsicas correspondiam, portanto, repreenses de outro gnero destinadas a matar a sensibilidade, as reaes afetivas, a individualidade do monge. Por exemplo, o riso era formalmente proscrito e o silncio era de regra durante a refeio, no trabalho e ao longo de todo o dia. "Aprende a calar" era uma das regras essenciais das comunidades pacomianas. Mas ningum estava "ao abrigo da lngua", de uma palavra deslocada, de uma frase infeliz e que traa preocupaes profanas. Um dia, Teodoro, o principal discpulo de Pacmio, avistou um monge que retornava de viagem. "De onde vens?", perguntou-lhe. Pacmio estava presente. Disse a Teodoro: "Teodoro, apressa-te em controlar teu corao. Habitua-te a nunca perguntar a algum de onde vens? ou aonde vais?, a no ser para saber aonde vai sua alma". O temperamento dos monges coptas evidentemente se dobrava bem mal quela disciplina de ferro. As querelas, as disputas, as lutas

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Os ATLETAS DO EXLIO

No entanto, no mesmo momento em que os antigos "resistentes da era das perseguies descobrem as delcias da colaborao com o poder, eis que um movimento inverso leva para os desertos e a vida asctica um grande nmero de cristos de todas as condies: camponeses, primeiro, e foras-da-lei, escravos, pequenos artesos, depois cidados ricos, "gente do mundo" e mesmo altos dignitrios do Imprio. Em outros termos, ao passo que uma parte da Igreja tem acesso histria, uma outra parte recusa-a violentamente, refugiando-se na vida atemporal do deserto. No se trata a de uma simples coincidncia. Entre estas duas ordens de fato, h uma relao de causa e eleito, ressaltada por todos os historiadores de Ferdinand Lot a Louis Bouyer. "A Igreja, imensamente ampliada", escreve Ferdinand Lot em La Fin du monde anque, "no pode mais permanecer na sociedade dos puros, dos santos que esperam o fim dos tempos. Identificada ou quase com o 'mundo1, a Igreja sofre profundamente a influncia degradante da vida. Para escapar dela, uma nica via de recurso: viver fora do mundo, artificialmente, buscando o deserto ou a solido, enclausurando-se sozinho ou coletivamente. No por puro acaso que o ascetismo eremtico e depois monacal surge no Oriente no momento mesmo do triunfo da Igreja." Porque o monaquismo justamente, como escreve por sua vez Louis Bouyer, "a reao instintiva do sentimento cristo contra uma falaciosa reconciliao com o presente que a converso imperial podia parecer justificar", reao a qual preciso, para compreend-la, "situar no contexto da Igreja constantiniana fazendo a paz com o mundo"1. Por qu? Porque, antes da converso do imperador Constantino, permanecer cristo significava arriscar-se a perder tudo: a vida, os bens, o emprego. Aps a converso, ser possvel permanecer cristo conservando tudo. A fuga para o deserto , ento, uma resposta quela seduo nova, tentao do mundo, do poder e do temporal. Na perspectiva deste livro, esse fenmeno ganha tambm um outro sentido: o fim das perseguies significa, para a sociedade crist, o fim do modelo ideal que era o santo-mrtir. A necessidade de um novo "modelo" se faz sentir; atravs dele aquela sociedade poder perseguir seu sonho anti-social. Pois o fim da clandestinidade e o1. Louis Bouyer, UAscse chrtienne et le Monde contemporain (Ed. du Cerf). 95

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E compreende-se tambm por que tantos escravos buscaro asilo nos mosteiros e terminaro, eles tambm, como monges ou eremitas. A tal ponto que essa fuga para o deserto provocar graves distrbios sociais e a Igreja ter de reagir desde o sculo IV O concilio de Gangres, por exemplo (que ocorreu em 342), excomungou o bispo Eusttio e seus discpulos por terem aconselhado aos escravos que abandonassem seu amo e se tornassem ascetas. Bem depressa, alis, como era de se esperar, a Igreja tomar a defesa da ordem social e dos interesses dos amos e dos poderosos. "Ns no permitiremos jamais", diz um Cnon dos santos Apstolos do sculo IV, "coisa semelhante que cause mgoa aos amos aos quais pertencem os escravos e que semeia o distrbio nos lares..." Mais tarde, um edito do imperador Valente chega a ordenar que "sejam trazidos fora os escravos que se escondem entre os monges". Estas disposies acabaram por influenciar a prpria hagiografia, j que um santo do sculo IV, Teodoro, "tinha o poder milagroso de prender os escravos com laos invisveis que tornavam toda fuga impossvel. Se, apesar dessa precauo, o amo perdia seu escravo, tinha a possibilidade de vir dormir noite no tmulo do santo. Esse mostrava em sonho o lugar onde o escravo se refugiara. Parece bem claro que so Teodoro preferia os amos aos escravos"1.

Assim, por ter suscitado o modelo do santo-anacoreta, atleta do exlio e novo mrtir do deserto, empreendido e desenvolvido ao longo do Nilo as prodigiosas "sociedades artificiais" que foram os mosteiros pacomianos, o Egito se tornar bem depressa, a partir do incio do sculo IV, uma "segunda Terra Santa" onde "o igualitarismo cristo, apoiado nos textos do Novo

1 . Anne Hadjinicolaou, Recherches sur la vie des esdaves dans le monde byzann (Institui Franais d'Athnes), 1950. 99Material com direitos autorais

Testamento, a idia da Cidade celeste e

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Vimos tambm no Egito muitos outros solitrios. Que poderamos dizer desses homens admirveis e dessa multido infinita que esto nos arredores de Siena, na Alta Tebaida, cuja virtude pode passar por incrvel tanto ela se elevou acima da condio dos homens? Pois ainda hoje eles ressuscitam os mortos e caminham sobre as guas como so Pedro...O fato de estes mosteiros serem longnquos parece ter contribudo muito para sua lenda. Os desertos do Alto Egito, praticamente inacessveis aos viajantes, passavam por conter anacoretas mais prodigiosos ainda que os das outras regies do pais, e os relatos que comearo a circular sobre os ascetas, a partir do sculo V, esto entre os mais arrebatadores da literatura copta. O anacoreta se torna, nesses textos, um personagem quase no-humano, que vive no mais das vezes em meio aos animais e foge at do "cheiro de homem". Um desses textos, descoberto e traduzido por Robert Amelineau, intitula-se A viagem de um monge egpcio no deserto, e podemos consider-lo o modelo do gnero:

Havia um anacoreta cujo nome era Pafncio. Falava com os padres que amavam a Deus e eis o que lhes disse: "Sou Pafncio e, um dia, concebi no corao o desejo de ir s profundezas do deserto para ver se havia ali algum monge. Caminhei durante quatro dias e quatro noites sem comer nem beber. No quarto dia, cheguei a uma caverna e, antes de penetrar nela, bati porta, segundo o costume dos irmos, para que o irmo sasse e eu o pudesse abraar. Esperei. Bati porta at o meio da noite: ningum respondeu".(Cena tpica da vida no deserto. Era um hbito muito freqente dos anacoretas: no abrir aos visitantes nem aos discpulos, mas deix-los bater o mximo de tempo possvel, para experimentar sua perseverncia. Alguns textos falam de discpulos batendo dois ou trs dias seguidos!)

Eu disse em meu corao: "Talvez no haja nenhum irmo neste lugar". Entrei na caverna gritando: "Abenoa-me, meu pai!" Quando entrei, olhei ao meu redor: vi um irmo sentado, guardando silncio. Estendi a mo imediatamente, peguei seu brao. Ele se esfarelou em minha mo. Apalpei todo o seu corpo e vi que ele permanecera assim desde que morrera. Olhei ao meu redor, vi um manto. Quando o apanhei, ele tambm se desfez em p. Eu ento103

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milagrosamente transportada para o corao das areias, com seus tanques, seus bosques, seus outeiros e seus lavradores. Muito diferentes, porm, eram aqueles famosos desertos da Tebaida, que os jansenistas transformaram num osis de paz e de meditao. No sentido estrito do termo, a Tebaida era a regio circunvizinha de Tebas no Alto Egito (a mesma em que se estabeleceram os primeiros mosteiros pacomianos), mas, de fato, todos os autores do sculo IV e os viajantes posteriores chamaram de Tebaida as soledades que beiram o Nilo desde Mnfis at Siena, isto , todo o Mdio e o Alto Egito. Para no confundir ainda mais uma geografia j demasiado incerta, este sentido amplo que conservaremos. Que eram, pois, esses desertos do Mdio e do Alto Egito nos quais tantos anacoretas se instalaro a panir do sculo IV? Extenses de pedra, onde s brotavam algumas palmeiras e um pouco de grama, onde os pontos de gua eram raros; extenses entrecortadas de outeiros ou de colinas a cujos ps os ascetas eclificaro cabanas com galhos, cavaro simples buracos para se abrigarem do sol l onde no existiam tmulos subterrneos abandonados. Os que se estabelecero perto do Nilo vivero como trogloditas nos grandes rochedos e escarpas que pendem sobre o rio, em grutas que o viajante pode ver ainda hoje. Escreve Maillet, um viajante do sculo XVIII: A comear do castelo do Cairo e at o Alto Egito, milhares e milhares de celas

talhadas na pedra se vem nos lugares mais inacessveis. Os santos anacoretas s chegavam a estas grutas por trilhas muito estreitas, freqentemente interrompidas por precipcios que eles atravessam com pequenas pontes de madeira que, retiradas de seu lado, tornavam inacessvel a abordagem de seu refgio. Ali est o que se chama a Tebaida, outrora famosa pelo nmero prodigioso de eremitas que ela abrigou. Avistam-se muitas dessas grutas e cavernas a partir dos barcos que navegam pelo Nilo. Havia algumas de onde, com longas cordas, se hauria gua do mesmo Nilo, quando ele estava em sua altura, vindo o rio ento flutuar ao p dos rochedos escarpados... Alis, estas grutas no so unicamente o que se tem chamado Tebaida. H tambm aquelas montanhas desertas e incultas que se estendem rumo ao mar Vermelho com trs ou quatro jornadas de marcha e que so, propriamente, os desertos da Tebaida. to clebres na histria eclesistica dos primeiros sculos. l que, entre107

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com uma esponja e da lavagem das panelas"1. Episdio bastante freqente navida dos santos a partir do sculo IV, sobretudo na Sria. H a uma espcie de ascese ltima no sentido de que, ao castigar seu prprio corpo, visa-se de fato a castigar seu ser social, a excluir-se da sociedade, permanecendo no seio da sociedade mesma, o que o anacoreta. evidentemente, no pode fazer. Eis por que, nos sculos seguintes, quando este tema atingir sua preciso, ele situar os "santos simuladores", como poderamos cham-los, no mais no deserto nem mesmo nos mosteiros, mas em plena cidade (como Marcos o Louco, em Alexandria, ou Simeo Slos, em Antioquia) ou mesmo no seio da prpria famlia (como santo Aleixo).

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Os anacoretas disseminados nas grutas situadas ao longo do Nilo permaneceram annimos por mais tempo. Em razo primeiramente de seu afastamento alguns se retiravam em locais inacessveis ou em tmulos subterrneos e porque, no mais das vezes, esses anacoretas preferiam fugir dos visitantes a ter de receb-los. um fenmeno bastante lgico, e os maiores anacoretas no so necessariamente os mais conhecidos. E mesmo certo que em meio quela multido de ascetas dos desertos do Egito tenha havido alguns que atingiram uma perfeio suficiente para, de certa forma, "fechar o crculo", isto , renunciar prpria santidade2. Quanto aos outros, ou seja, aqueles cujo nome e cujas proezas ascticas chegaram at ns, bvio que os mais famosos no foram necessariamente os mais santos. O clima espiritual bem particular do Oriente cristo no sculo IV conduziu certos anacoretas a uma espcie de exagero asctico, a uma ostentao desconsiderada de mortificaes e de maceraes, onde o rigor e a sinceridade nem sempre estavam no comando. Mas, por outro lado, h que se dizer que muito difcil julgar, a vinte sculos de distncia, a experincia de homens que viveram quarenta ou cinqenta anos na solido. Assim, que o leitor no se engane. Em todos os exemplos que

1. No tentei repetir essa experincia. 2. Faremos uma descrio dessas anacoreses um pouco mais adiante, a propsito da vida de Macrio o Antigo.1 You have either reached a page thatis unavailable forviewing or reached yourviewing limitforthis 1 1 book.

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nos campos egpcios, j que Ruino fala, em torno de Hermpolis Magna, de

nove ou dez burgos cheios de pagos onde os demnios eram adorados com supersties mpias e uma paixo estranha [trata-se decerto de um culto de Doniso-Osris], pois tinham um templo de maravilhosas dimenses, no meio do qual havia um dolo que os sacerdotes acompanhados de todo o povo apanhavam e levavam em torno destes burgos maneira das bacantes e celebravam cerimnias sacrlegas para obter a chuva do cu.De fato, o "milagre" realizado por Apoio s um episdio da luta cada vez mais violenta que opor, na segunda metade do sculo IV, os cristos aos pagos. Uma gerao mais tarde quando o paganismo for oficialmente proibido em todo o Imprio , veremos monges cristos, comandados por Cancio ou Macrio de Thu, pilhar os templos pagos, incendi-los, quebrar os dolos e, s vezes, massacrar na mesma ocasio o pessoal do templo. No tempo de Apoio, na falta de poder usar de tais violncias, os cristos se contentam em massacrar os pagos ou "neutraliz-los" simbolicamente, mas o "milagre" aqui parece-se demais com o que ser, em seguida, a histria real, para no ser pura e simplesmente seno a expresso literria dos desejos inconscientes dos cristos. Sem forar demais a anlise desse "milagre" aretolgico, ressaltemos que se trata nitidamente de um milagre "solar" (multides de pagos imobilizados e queimados pelo sol) que foi talvez atribudo a santo Apoio em razo de sua homonmia com o antigo deus solar dos gregos. Um pouco mais ao norte, perto de Heraclepolis, vivia certo Pafncio cuja vida era to santa, escreve Rufino, "que olhavam para ele menos como um homem que como um anjo". Mas... ateno! Aqui de novo as aparncias enganam. Um anjo, Pafncio? Pode at ser. Aps anos de permanncia no deserto, ele mal havia se elevado na