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Controle da Administração Públ ica 999 A Lei nº 1 1.4 17, de 19. 12.2006, que regulamentou o art. 103-A da CF, introdu- ziu algumas alterações no sistema de recursos previsto na Lei nº 9.784/1999 . Primei- ramente, acrescentou o § 3º ao art. 56, estabelecendo que, se o recorrente alegar que a decisão administrativa contraria enunciado de súmula vinculante, deve a autoridade decisória, no caso de não a reconsiderar, consignar, de forma explícita, antes da remes- sa do recurso à autoridade superior, os motivos da aplicabilidade ou inaplicabi lidade da súmula, conforme a hipótese. Significa, assim, que o administrador tem a obrigação de cumprir esse requisito de ordem material (a explicação de sua conduta) e de ordem formal (a exigência da justif icativa formalizada no ato de reapreciação do recurso) . Outra alteração diz respeito à atuação do órgão competente para a decisão do recurso: a ele também compete explicitar os motivos da aplicabilidade ou inaplicabi li- dade do que consta no enunciado da súmula vinculante, se o recorrente tiver alegado esse tipo de ofensa. Caso acolhida a reclamação proposta pelo interessado, o STF dará ciência ao órgão prolator da decisão e ao órgão competente para julgar o recurso, para que as futuras decisões sobre o assunto guardem adequação ao que dispõe a súmula vinculante desrespeitada pela decisão administrativa, pena de responsabi lização pes- soal no âmbito cível, administrativo e penal (arts. 64-A e 64-B, Lei nº 9. 784/1999, introduzidos pela citada Lei nº 1 1 .417/2006) . 7. 7 Processo Administrativo-Disciplinar SENTIDO E FUNDAMENTO - Processo administrativo-disciplinar é o instru- mento formal através do qual a Administração apura a existência de infrações pratica- das por seus servidores e, se for o caso, aplica as sanções adequadas.120 Quando uma infração é praticada no âmbito da Administração, é absolutamente necessário apurá-la, como garantia para o servidor e também da Administração. O procedimento tem que ser formal para permitir ao autor do fato o exercício do direito de ampla defesa, procurando eximir-se da acusação a ele oferecida. O fundamento do processo em foco está abrigado no sistema disciplinar que vigo- ra na relação entre o Estado e seus servidores. Cabe à Administração zelar pela corre- ção e legitimidade da atuação de seus agentes, de modo que quando se noticia conduta incorreta ou ilegítima tem a Administração o poder jurídico de restaurar a legalidade e de punir os infratores. A hierarquia administrativa, que comporta vários escalões funcionais, permite esse controle funcional com vistas à regularidade no exercício da função administrativa. A necessidade de formalizar a apuração através de processo administrativo é exatamente para que a Administração conclua a apuração dentro dos padrões da maior veracidade. BASE NORMATIVA - O processo disciplinar se regula por bases normativas diversas. Incide para esse tipo de processo o princípio da disciplina reguladora difusa, e 1 20 O Estatuto Federal dos Servidores, no art. 148, registra sentido idêntico, estabelecendo que "é o ins- trumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atri- buições ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido".

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Controle da Administração Pública 999

A Lei nº 1 1 .4 1 7, de 19 . 12 .2006, que regulamentou o art. 1 03-A da CF, introdu­ziu algumas alterações no sistema de recursos previsto na Lei nº 9 .784/1999. Primei­ramente, acrescentou o § 3º ao art. 56, estabelecendo que, se o recorrente alegar que a decisão administrativa contraria enunciado de súmula vinculante, deve a autoridade decisória, no caso de não a reconsiderar, consignar, de forma explícita, antes da remes­sa do recurso à autoridade superior, os motivos da aplicabilidade ou inaplicabilidade da súmula, conforme a hipótese. Significa, assim, que o administrador tem a obrigação de cumprir esse requisito de ordem material (a explicação de sua conduta) e de ordem formal

(a exigência da justificativa formalizada no ato de reapreciação do recurso) .

Outra alteração diz respeito à atuação do órgão competente para a decisão do recurso: a ele também compete explicitar os motivos da aplicabilidade ou inaplicabili­dade do que consta no enunciado da súmula vinculante, se o recorrente tiver alegado esse tipo de ofensa. Caso acolhida a reclamação proposta pelo interessado, o STF dará ciência ao órgão prolator da decisão e ao órgão competente para julgar o recurso, para que as futuras decisões sobre o assunto guardem adequação ao que dispõe a súmula vinculante desrespeitada pela decisão administrativa, pena de responsabilização pes­soal no âmbito cível, administrativo e penal (arts. 64-A e 64-B, Lei nº 9. 784/1999, introduzidos pela citada Lei nº 1 1 .417 /2006) .

7. 7 Processo Administrativo-Disciplinar

SENTIDO E FUNDAMENTO - Processo administrativo-disciplinar é o instru­mento formal através do qual a Administração apura a existência de infrações pratica­das por seus servidores e, se for o caso, aplica as sanções adequadas. 120

Quando uma infração é praticada no âmbito da Administração, é absolutamente necessário apurá-la, como garantia para o servidor e também da Administração. O procedimento tem que ser formal para permitir ao autor do fato o exercício do direito de ampla defesa, procurando eximir-se da acusação a ele oferecida.

O fundamento do processo em foco está abrigado no sistema disciplinar que vigo­ra na relação entre o Estado e seus servidores. Cabe à Administração zelar pela corre­ção e legitimidade da atuação de seus agentes, de modo que quando se noticia conduta incorreta ou ilegítima tem a Administração o poder jurídico de restaurar a legalidade e de punir os infratores. A hierarquia administrativa, que comporta vários escalões funcionais, permite esse controle funcional com vistas à regularidade no exercício da função administrativa. A necessidade de formalizar a apuração através de processo administrativo é exatamente para que a Administração conclua a apuração dentro dos padrões da maior veracidade.

BASE NORMATIVA - O processo disciplinar se regula por bases normativas diversas. Incide para esse tipo de processo o princípio da disciplina reguladora difusa, e

120 O Estatuto Federal dos Servidores, no art. 1 48, registra sentido idêntico, estabelecendo que "é o ins­trumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atri­buições ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido".

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1000 Manual de Direito Administrativo • Carvalho Filho

isso porque suas regras, a tramitação, a competência, os prazos e as sanções se en­contram nos estatutos funcionais das diversas pessoas federativas. Contrariamente sucede nos processos judiciais, sujeitos à disciplina reguladora concentrada, porque todo o sistema básico se situa num só diploma legal e apenas os ritos especiais se alojam em leis especiais.

Cada pessoa federativa tem autonomia, como já vimos, para instituir o seu es­tatuto funcional. A liberdade para a instituição das regras do processo disciplinar só esbarra nos mandamentos constitucionais. Fora daí, a União, os Estados, o Distrito Fe­deral e os Municípios estabelecem suas próprias regras para esse tipo de processo. Por essa razão, quando se quiser verificar alguma questão sobre tramitação de processos disciplinares, necessária será a consulta ao estatuto da pessoa federativa que tenha ins­taurado o respectivo processo disciplinar. Registramos aqui esse fato porque é comum a consulta à Lei nº 8 . 1 12/1 990, o Estatuto dos Servidores Civis da União. Esse diplo­ma, porém, só se aplica aos processos disciplinares relativos aos servidores federais.

OBJETO - O objeto do processo administrativo-disciplinar é a averiguação da existência de alguma infração funcional por parte dos servidores públicos, qualquer que seja o nível de gravidade.

Não nos parece correta a afirmação segundo a qual o processo administrativo "é o meio de apuração e punição de faltas graves dos servidores públicos". 121 O processo serve tanto para as faltas graves como para as leves, pois que é preciso considerar que a apu­ração é que vai levar à conclusão sobre a maior ou menor gravidade da falta. Por esse motivo é que entendemos que o art. 41 , § 1 º, I e li, da CF, que dispõe que o servidor estável só perderá o cargo por força de sentença judicial ou processo administrativo com ampla defesa, apenas se refere ao processo administrativo para sinalizar um meio alternativo de apuração no que concerne à sentença judicial. O dispositivo, contudo, há de ser interpretado em consonância com o art. 5º, LV, da CF, que contempla o prin­cípio da ampla defesa e contraditório, de modo que não apenas a perda do cargo mas qualquer infração e punição pressupõem a instauração de processo administrativo. 122

Em última instância, nem precisaria haver menção ao processo administrativo no art. 4 1 , § 1 º; mesmo sem ela, o processo seria imprescindível para gerar eventual punição ao servidor. 123

A averiguação de faltas funcionais constitui um poder-dever da Administração. Não se pode conceber qualquer discricionariedade nessa atuação, porquanto o princí­pio da legalidade é de observância obrigatória para todos os órgãos administrativos. E, como é óbvio, não se observa esse princípio se não for apurado desempenho funcional revestido de irregularidade ou de ilegalidade. É tão importante a apuração que a Admi­nistração normalmente instaura ex officio o processo disciplinar.

121 HELY LOPES MEIRELLES, Direito administrativo brasileiro, cit., p. 594. 122 DIÓGENES GASPARINI, Direito administrativo, cit., p. 589. 123 CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO refere-se à sindicância como meio de aplicação de penali­dade (Curso de direito administrativo, cit., 20. ed., 2006, p. 299). A despeito da denominação, contudo, esse tipo de sindicância retrata processo administrativo disciplinar, com a garantia da ampla defesa e contraditório.

Controle da Administração Pública 1001

A apuração é o objeto precípuo do processo disciplinar. Mas o resultado do pro­cesso pode levar a duas condutas administrativas. Uma delas é a aplicação da sanção ao servidor que tiver cometido a falta funcional. A outra é o arquivamento do feito, no caso de ficar demonstrada a ausência da infração.

SINDICÂNCIA - Na correta visão de CRETELLA ]R., sindicância "é o meio

sumário de que se utiliza a Administração Pública, no Brasil, para, sigilosa ou publicamente,

com indiciados ou não, proceder à apuração de ocorrências anômalas no serviço público, as quais,

confirmadas, fornecerão elementos concretos para a imediata abertura de processo administrativo

contra o funcionário público responsável". 124

Essa é a clássica e precisa noção de sindicância. Trata-se da denominação usual­mente dispensada ao procedimento administrativo que visa a permitir uma apuração

preliminar sobre a existência de ilícito funcional. É através da sindicância que se colhem os indícios sobre:

a) a existência da infração funcional;

b) sua autoria; e

c) o elemento subjetivo com que se conduziu o responsável.

Reveste-se de caráter inquisitório, porque é processo não litigioso; como conse­quência, não incide o princípio da ampla defesa e do contraditório. 125 Caracteriza-se por ser procedimento preparatório, porque objetiva a instauração de um processo principal, quando for o caso, obviamente. Por esse motivo, o princípio da publicidade é aqui ate­nuado, porque o papel da Administração é o de proceder a mera apuração preliminar, sem fazer qualquer acusação a ninguém. Decorre daí que a autoridade que presidir ao procedimento não tem poderes para intimar terceiros a prestar depoimento, porque tais poderes são próprios das autoridades judiciais ou policiais, por força de lei. 126

Outro aspecto que, desde já, merece observação, principalmente em virtude da funda confusão que costuma ser feita, é o de que a sindicância também é um processo ad­

ministrativo, como tantos outros que tramitam pela Administração. Desse modo, pode haver dois processos administrativos interligados - a sindicância e o processo disci­plinar principal. A despeito de terem a mesma natureza, é simples apontar a distinção fundamental: enquanto a sindicância é processo administrativo preparatório, inqui­sitório e tem por objeto uma apuração preliminar, o processo disciplinar principal é

124 Dicionário, cit., p. 494. 1 25 STF (MS 23.261 -Rj, Rel. Min. ELLEN GRACIE, julg. em 1 8.2.2002; vide Informativo STF n• 257, fev. 2002) . Nesse writ, o Tribunal rejeitou a pretensão do impetrante, que pleiteava a anulação de sua punição por falta do contraditório na sindicância, muito embora o princípio tivesse sido observado no processo disciplinar. 126 Com essa visão, o Tj-AC já averbou acertadamente, com lastro em lição de IVAN BARBOSA RIGO­LIN, que "a sindicância é procedimento meramente administrativo, daí por que o seu presidente não pode, à falta de previsão legal, exigir o comparecimento coercitivo de quem nela deva depor" (Rec. Sent. Est. n2 98.000747-0-Capital, Câm. Criminal, unânime, Rel. Des. ARQUILAU DE CASTRO MELO, julg. em 23. 1 0. 1998, apud ADCOAS 8 1 72478) .

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definitivo, contraditório e tem por objeto a apuração principal e, quando for o caso, a aplicação de sanção.

Por essa razão, pode o órgão administrativo instaurar diretamente o processo administrativo principal sem que se tenha instaurado previamente a sindicância; para tanto, basta que já estejam presentes os elementos probatórios que lhe sirvam de su­porte para a acusação. 1 27 É o mesmo que ocorre em relação à ação penal, que também pode ser promovida pelo Ministério Público sem o prévio inquérito policial.

Outro ponto a sublinhar é o relativo à questão da nomenclatura. O termo sindi­

cância indica apenas a denominação usualmente dada a esse tipo especial de processo preparatório. Lamentavelmente, para aumentar a confusão, nem sempre os processos preliminares e preparatórios são nominados de sindicância, e, o que é pior, há alguns casos em que processos denominados de sindicância não têm a natureza clássica des­se procedimento preparatório. Como enfrentar essa dúvida? Do modo mais simples possível, ou seja, dando maior relevo ao aspecto da natureza do processo, e não ao de sua denominação. Quer dizer: mesmo que o processo seja denominado de sindicância,

deverá ser tratado como processo disciplinar principal no caso de ter o mesmo objeto atribuído a esta categoria de processos.

O Estatuto federal contém um bom exemplo do que consideramos. Dispõe, pri­meiramente, que a apuração de irregularidade no serviço público se formaliza median­te sindicância ou processo administrativo disciplinar (art. 143 ) . Mais adiante, consigna que da sindicância poderá resultar aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de

até 30 dias (art. 145, 11) . Ora, só por esse texto se pode verificar que essa sindicância só tem o nome de sindicância, mas sua natureza é a de processo disciplinar principal, porque somente dessa categoria pode resultar aplicação de penalidades. Assim, nesse tipo de sindicância, que tem caráter acusatório, há repercussão do princípio da ampla defesa e do contraditório, sendo inconstitucionais quaisquer dispositivos estatutários que dispensarem essa exigência.128 Repita-se, contudo, que esse processo não corresponde à

noção clássica da sindicância.

A jurisprudência tem diferenciado os dois tipos de sindicância. Quando se trata da verdadeira sindicância, como processo preliminar, tem sido dispensado o princípio da ampla defesa e do contraditório. 129 Ao contrário, quando o nome é de sindicância, mas a natureza é a de processo disciplinar principal, a exigência tem sido considerada impostergável e sua dispensa decidida como nula. 1 30

INQUÉRITO ADMINISTRATIVO - Essa é outra expressão que, por sua im­precisão, tem provocado diversos sentidos.

127 STJ, MS 8.030-DF, 3' Seção, Rei. Min. LAURITA VAZ, em 13 .6.2007 (Informativo ST] n° 323, jun. 2007). 1 28 Foi também a observação de SPIRIDON NICOFOTIS ANYFANTIS, Servidor público - questões polêmi­cas (obra coletiva) , Ed. Fórum, 2006, p. 321 . 1 29 Com esse sentido, decisão do ST] (RMS n• 28 1 , 1 ª Turma, Rei. Min. DEMÓCRITO REINALDO, 1 993, RDA 1 93/138). 13° Foi o que decidiu, fundado no cerceamento de defesa, o Tj-DF (ApCív n• 34.570, 5ª Turma, Rei. Des. ROMÃO DE OLIVEIRA, publ. D] 21 .6 . 1995).

Controle da Administração Pública 1003

Em primeiro lugar, devemos atentar para o fato de que a expressão inquérito ad­

ministrativo (ao contrário da sindicância) deve indicar a natureza jurídica de um processo

administrativo, e não sua denominação. Isso é que desde logo precisa ser observado.

Mas nem sempre tem sido assim.

Parece-nos que se possam encontrar três sentidos para a expressão inquérito ad­

ministrativo.

O primeiro é o que traduz a natureza jurídica da sindicância. Em outras pala­vras: pode dizer-se que a sindicância, em sua concepção tradicional e técnica, tem a na­

tureza jurídica de um inquérito administrativo. O sentido aqui leva em conta a noção

de inquérito, de inquirição, interrogatório. 13 1 Ou seja: considera o aspecto inquisitivo,

próprio da sindicância, que é, como vimos, processo administrativo preparatório. 1 32

O inquérito administrativo tem ainda sido empregado como indicativo do pro­

cesso disciplinar principal, o que já retrata uma distorção de seu sentido técnico. É

nesse sentido que comumente se ouve a afirmação de que fulano ou beltrano estão

respondendo a um inquérito administrativo. Só que nesse inquérito há contraditório,

ampla defesa, produção de provas e aplicação de pena. Obviamente não é inquérito,

mas sim processo administrativo principal.

E finalmente pode o inquérito administrativo significar uma das fases do pro­

cesso disciplinar principal, ou seja, aquela em que a prova é produzida. É exatamente esse o sentido adotado pela Lei nº 8 . 1 12/1 990, o Estatuto federal, ao dispor que o

processo disciplinar se desenvolve em três fases:

a) instauração;

b) inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório; e

c) julgamento. 1 33

Por tudo o que procuramos diferenciar, para evitar dúvidas, repetimos o que

nos parece mais aconselhável em relação ao múltiplo sentido da expressão inquérito

administrativo: o exame do contexto em que é empregada. Tanto serve como natureza

jurídica da sindicância; ou como processo disciplinar principal; ou finalmente como a

fase de instrução do processo disciplinar principal.

PROCESSO DISCIPLINAR PRINCIPAL - Depois de tudo o que foi dito a res­

peito de sindicância e de inquérito administrativo, não parece difícil identificar o que é o processo disciplinar principal.

13 1 CALDAS AULETE, v. III, p. 2.747. Aliás, no verbete o dicionário insere a sindicância como sinônimo. 132 Nesse aspecto, a sindicância, como inquérito administrativo, guarda semelhança com o inquérito po­licial e com o inquérito civil, ambos também inquisitórios e preparatórios, respectivamente, da ação penal e da ação civil pública. 133 O sentido ora enfocado já havia sido bem captado por CRETELLA JR., que, mostrando a diversidade de significados, acentuava: Para outros, a expressão inquérito administrativo é apenas uma das fases do processo

administrativo, sendo sinônimo de instrução (Dicionário, cit., p. 304) .

1004 Manual de Direito Administrativo • Carvalho Filho

Processo disciplinar principal, ou simplesmente processo disciplinar, é todo aquele que tenha por objeto a apuração de ilícito funcional e, quando for o caso, a aplicação da respectiva sanção, seja qual for a expressão adotada para denominá-lo.

É este o processo administrativo litigioso, acusatório e definitivo que exige a in­cidência do princípio da ampla defesa e do contraditório, e o do devido processo legal. Este, e somente este, é que, ao seu final, permite ao administrador aplicar a penalidade adequada quando tiver sido efetivamente verificada a ocorrência de infração funcional.

Uma vez instaurado o processo disciplinar principal, a sindicância preliminar fica superada, de modo que nada mais há a impugnar nesse procedimento, sabido que o interessado terá o direito ao contraditório e ampla defesa no feito principal. Por isso, já se decidiu que, "instaurado o processo administrativo disciplinar, não há que se alegar mácula na fase de sindicância, porque esta apura as irregularidades funcionais para depois funda­mentar a instauração do processo punitivo, dispensando-se a defesa do investigado nessa fase de mero expediente investigatório". 134

O processo disciplinar principal é autônomo e terá inteira legitimidade se ob­servar as regras reguladoras. Por isso, não depende do processamento de sindicância prévia como condição para sua instauração. Tal condição só se afigura admissível se a lei disciplinadora do processo expressamente o exigir, o que é raro de ocorrer. Caso a autoridade já tenha elementos suficientes para realizar o processo principal, dispensá­vel, no silêncio da lei, será a instauração de prévia sindicância. O ST], aliás, já firmou o correto entendimento de que, "contando com os elementos concretos mais do que suficientespara a instauração do processo administrativo, dispensável era a utilização da sindicância".135

A deflagração do processo, em linha de princípio, não deve dar-se em virtude de denúncia anônima, o que se funda no art. 5º, IV, da CF, que veda o anonimato. Por conseguinte, o denunciante deve qualificar-se e formular a denúncia por escrito; cor­reta, pois, a exigência contida no art. 144, caput, da Lei nº 8 . 1 1 2/1990. Entretanto, tal exigência vem sendo mitigada para o fim de examinar-se caso a caso a hipótese, sendo lícito à Administração, em situações excepcionais e ante denúncia relatada com aceitá­vel grau de seriedade, proceder ex officio para apuração do ilícito. 136

Como regra, os estatutos submetem a direção e a condução do processo a uma comissão disciplinar, cuja composição e atuação se sujeitam a determinadas condições, também previstas na lei estatutária. A Administração está obrigada a observar apenas as restrições legais . Assim, por exemplo, se não há previsão legal, pode a comissão ser integrada por servidor lotado em unidade federativa diversa daquela em que atua o servidor processado. 137

PROCEDIMENTO - Já deixamos anotado que o processo administrativo dis­ciplinar não tem uma regra única de tramitação. Como figuram nos estatutos funcio­nais, e estes são resultado do poder de auto-organização das pessoas federativas, o

1 34 STJ, RMS n• 10.472-ES, s• Turma, Rei. Min. FELIX FISCHER, julg., em 1 7.8 .2000 (vide Informativojurisprudência ST] n" 66, ago. 2000) . 1 35 RMS n• 8 .280, 1ª Turma, Rei. Min. GARCIA VIEIRA, julg. em 12.4. 1992 (BOA, set. 1 992, p. 540) . 136 A respeito, veja-se SPIRIDON NICOFOTIS ANYFANTIS, Servidor público, cit., p. 3 1 2-3 14. 1 37 STJ, MS 14.827, Rei. Min. MARCO AURÉLIO BELIZZE, em 24. 10.2012.

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procedimento sofre algumas variações, embora não lhes seja lícito afrontar qualquer mandamento constitucional ou legal. É preciso lembrar que o agente atua na via ad­ministrativa, motivo suficiente para que seus atos, nos processos disciplinares, sejam corrigidos pelo Poder Judiciário se inquinados de abuso de poder. 1 38

Mesmo com tais possíveis variações, é possível delinear a tramitação comum dos processos disciplinares, apontando certa sequência lógica das fases que os compõem.

A deflagração do processo se dá com a instauração. Embora normalmente forma­lizada por portaria, esse ato administrativo pode receber denominação diversa. O que interessa, na verdade, é verificar seu conteúdo indicativo da intenção de deflagrar o pro­cesso. O ato de instauração deve conter todos os elementos relativos à infração funcio­nal, como o servidor acusado, a época em que ocorreu e tudo o que possa permitir o direito de ampla defesa por parte do acusado. Conquanto os fatos devam ser relatados com a maior fidelidade possível, à semelhança do que ocorre com a denúncia oferecida pelo Ministério Público no processo penal, 139 revela-se possível que, após a instrução, seja complementada a situação fática que dá suporte à acusação.140 O que não se pode é descartar a oportunidade de conferir-se ao acusado o direito ao contraditório e à ampla defesa. Ademais, o processo disciplinar pode ser instaurado e não precisa ser suspenso mesmo diante de ação penal já proposta, incidindo aqui o princípio da independência de instâncias. 141

Segue-se a fase da instrução, na qual a Administração colige todos os elementos probatórios que possam respaldar a indicação de que a infração foi cometida pelo servidor. Para essa fase, deve a comissão responsável pela condução do processo pro­videnciar a citação do servidor para acompanhar a prova, porque somente assim estará observando o princípio do contraditório e da ampla defesa. Havendo prova testemu­nhal, tem o servidor o direito de formular indagações às testemunhas. Como já anota­mos, pode ser recusado o depoimento de testemunhas arroladas única e exclusivamen­te com o propósito de procrastinar a tramitação do processo; tal conduta configura-se como condenável desvio de finalidade. 142 A intimação das testemunhas deve ser feita com três dias de antecedência, aplicando-se aqui, subsidiariamente aos estatutos, o art. 4 1 da Lei nº 9 . 784/1999. 143

Em outro giro, a jurisprudência tem admitido - a nosso juízo, corretamente - o uso de prova emprestada legalmente produzida em processo criminal, ainda que não te­nha ocorrido a coisa julgada. 144 Admite-se, inclusive, o empréstimo dos dados oriundos

1 38 Sobre esse importante tipo de controle, consulte-se O controle jurisdicional do processo disciplinar, de JOSÉ RAIMUNDO GOMES DA CRUZ (Malheiros, SP, 1996). 139 É a opinião de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, ob. cit., p. 362, que, inclusive, cita o art. 41, do Código de Processo Penal. 140 Vide STJ, RMS 26.206-MG, 2" Turma, Rei. Min. HUMBERTO MARTINS, em 15 .5.2008 (Informativo ST]

355, maio 2008). 14 1 ST], MS 18 .090, Min. HUMBERTO MARTINS, em 8.5.2013. 142 STJ, MS 8.290-DF, Rei. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, D] de 30.6.2008. 143 Também: STJ, MS 12.895-DF, Rei. Min. OG FERNANDES, em 1 1 . 1 1 .2009 (Informativo nº 415, nov. 2009). 144 STJ, RMS 33.628, Min. HUMBERTO MARTINS, em 2.4.2013 .

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de interceptação telefônica produzida na ação penal, desde que autorizada pelo juiz. 145 No caso, deve considerar-se a idoneidade da prova e a irradiação de seus efeitos: se o fato foi provado regularmente no processo criminal, nada impedirá seja provado, da mesma forma, no processo administrativo. O que prevalece, então, é a busca da verdade real.

Como não há o formalismo dos processos judiciais, pode o servidor compare­cer sozinho ou ser representado por advogado munido do necessário instrumento de procuração. Essa fase de instrução, apesar de estar mais a cargo da Administração, há de exigir a presença do servidor acusado. Em razão da amplitude da fase instrutória, é legítimo, por outro lado, que a Administração se socorra da prova emprestada, desde que obtida licitamente, como é o caso da interceptação telefônica autorizada judicialmente em processo criminal. 146 Aliás, convém anotar que as exigências probatórias da Admi­nistração devem ser o menos possível onerosas para o administrado. 147 Na verdade, o intuito do processo reside, como já se salientou, na busca da verdade material. Quanto à admissibilidade de provas ilícitas, veja-se o que observamos anteriormente no tópico relativo ao princípio da verdade material.

Ultimada a instrução, é o momento de abrir a fase da defesa do servidor, fase essa em que poderá apresentar razões escritas e requerer novas provas, se as da instrução não tiverem sido suficientes para dar sustento a suas razões. 148 O que lhe é vedado é tentar subverter a ordem do processo ou usar de artifícios ilícitos para tumultuá-lo ou procrastiná-lo. Não sendo verificada essa intenção, deve a comissão funcional permitir a produção de prova da forma mais ampla possível, porque é essa a exigência do prin­cípio do contraditório e do devido processo legal.

Neste passo, reafirmamos o que já foi dito anteriormente. A defesa e o acom­panhamento do processo podem ficar a cargo do próprio acusado, não sendo exigível que se faça representar por advogado; a representação, por conseguinte, retrata uma faculdade conferida ao acusado. 149 Aliás, tal faculdade está expressa no art. 3 Q, IV, da Lei nº 9. 784/1999, que regula o processo administrativo federal. Exigível é apenas a presença de defensor dativo, no caso de o acusado estar em lugar incerto e não sabido, ou se houver revelia. 1 50 Assim, parece dissonante a doutrina que considera obrigatória a constituição de advogado. 15 1 Da mesma forma, causa estranheza a posição do STJ que considera obrigatória, genericamente, a presença de advogado no processo administrati-

145 STJ, MS 1 6. 1 46, Min. ELIANA CALMON, em 22.5.2013. 146 STF, QO-lnq. 2.424, em 27.6.2007, e STJ, MS 14.405, j. 26.5.2010. 147 É a correta observação de CRISTIANA FORTINI, MARIA FERNANDA P. DE CARVALHO PEREIRA e TATIANA MARTINS DA COSTA CAMARÃO, em Processo administrativo. Comentários à Lei n2 9 .784/1999, Ed. Fórum, 2008, p. 136 . 1 48 Como bem consigna, e com razão, MARIA SYLVIA DI PIETRO, o direito de defesa já se iniciara com a citação do servidor para conhecer os termos da portaria e para acompanhar a produção da prova. Essa fase, denominada de defesa, indica apenas que agora o servidor vai poder oferecer razões escritas e pro­duzir sua própria prova (ob. cit., p. 352) . 149 Em abono de nossa opinião: MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, Direito administrativo, cit., 19 . ed., 2006, p. 608, e DIÓGENES GASPARINI, Direito administrativo, cit., 1 1 . ed., 2006, p. 934. 15o É como dispõe o art. 1 64, § 2°, da Lei n2 8 . 1 12/1990 (Estatuto dos Servidores Federais) . 1 5 1 ODETE MEDAUAR, Direito administrativo moderno, cit., 8. ed., p. 365.

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vo. 152 Trata-se de orientação que contraria a consagrada e, a nosso ver, acertada posição da doutrina, pela qual é lícito que o interessado assuma a sua própria defesa ou, até mesmo, que renuncie ao processo administrativo para posterior recurso à via judicial.

O Supremo Tribunal Federal, entretanto, adotando posição que se nos afigura inteiramente correta, recompôs o bom direito ao deixar sumulado, de forma vinculan­te, que "a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende

a Constituição". 1 53 Diante de tal entendimento, a defesa de acusado por advogado (capa­

cidade postulatória) somente se torna exigível no processo judicial, foro, aliás, em que a presença do causídico se revela de fundamental importância. 1 54 Diga-se, ainda, que, se o acusado não tiver qualquer interesse em defender-se no processo administrativo, sejapor si , seja por meio de advogado, terá sempre a garantia de fazê-lo no processo judicial, porque é nesse sentido que dispõe o art. 5º, XXXV, da CF, que consagra o princípio do acesso à ] ustiça.

Concluída essa fase, segue-se a do relatório, peça formal elaborada pela comis­são processante, na qual deve ficar descrito tudo o que ocorreu no processo, tal como ocorre na sentença judicial. Descritos todos os elementos do processo, a comissão os analisará e firmará os fundamentos que levem à conclusão opinativa. Em outras pa­lavras, a comissão apenas opina, mas para tanto deverá expor detalhadamente os fun­damentos de seu opinamento. Esses fundamentos são de suma importância, porque a autoridade decisória, como hábito, limita-se a acolher esses fundamentos e utilizá-los como motivo de sua decisão, seja para aplicar a sanção ao servidor, seja para concluir que a hipótese não é a de apenação.

A última fase é a da decisão, em que a autoridade que tenha essa competência vai julgar o processo à luz dos elementos do relatório e dos contidos no próprio processo. Referido ato decisório, contudo, merece alguns comentários. Em primeiro lugar, trata-se de ato administrativo, que, para ser válido e eficaz, precisa estar dotado de todos os seus requisitos de validade (a competência, a forma, a finalidade, o objeto e o motivo) . De­pois, é preciso considerar duas hipóteses distintas. Na primeira, a autoridade julgadora aceita todos os fundamentos e o opinamento da comissão processante, inclusive quanto à penalidade a ser aplicada. Nesse caso, quando o julgador acolhe o relatório em todos os seus termos e, para evitar a repetição de tudo o que dele consta, decide no sentido da aplicação da sanção ao servidor, ou de sua absolvição, o ato decisório terá como motivo os fundamentos do relatório e como objeto a punição nele sugerida. Portanto, o ato tem motivo e tem objeto; o motivo, porém, é encontrado nos fundamentos do relatório, inteiramente acolhidos pelo julgador. Se o servidor quiser impugnar a validade desse ato, por alguma razão de legalidade, deverá identificar alguns aspectos do ato dentro do próprio relatório.

1 52 Súmula 343, STJ: "É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar". 1 53 Súmula Vinculante nº 5 (texto ao final do Capítulo). Vide também RE 434.059-DF, Rei. Min. GILMAR MENDES, em 7.5.2008. 154 Contra, entendendo violado o princípio do devido processo legal, vide MARCO ANTÔNIO PRAXEDES DE MORAES FILHO, em Súmula vinculante nº 5 do STF e o Sistema Processual Administrativo, na obra coletiva Processo administrativo. Temas Polêmicos da Lei nº 9 .784/1999, Atlas, 201 1 , p. 1 8 1- 182.

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Pode ocorrer, entretanto, que o julgador discorde dos termos do relatório da comissão processante. Essa discordância pode traduzir:

a) a aplicação da sanção, quando o relatório indicou a absolvição;

b) a absolvição, quando o relatório opinou pela apenação; e

c) a aplicação de sanção diversa (mais grave ou mais leve) daquela sugeridapela comissão.

No que se refere à apenação mais grave (reformatio in pejus) , é importante assina­lar que a autoridade decisória não está vinculada, como visto, à apreciação opinativa da comissão processante, por isso que nada impede que aplique penalidade mais severa. O ST], a nosso ver acertadamente, já decidiu que "é lícito à autoridade administrativa com­

petente divergir e aplicar penalidade mais grave que a sugerida no relatório da comissão disciplinar.

A autoridade não se vincula à capitulação proposta, mas sim aos fatos". 1 55 O STF, a seu turno, já abonou esse entendimento. 156

Seja qual for a hipótese, no entanto, o ato decisório, como é cristalino, precisará ter seus próprios fundamentos, os quais terão linhas diferentes dos fundamentos ex­pendidos pela comissão. Em outras palavras, o motivo do ato decisório é diverso do motivo do opinamento da comissão, e, desse modo, é necessário que o julgador exponha detalha­damente seu motivo no ato para que o servidor possa identificar, com precisão, o que vai impugnar em eventual recurso administrativo ou ação judicial. 157

É preciso registrar que o eventual agravamento da sanção proposta pela comis­são de inquérito é corolário natural do caráter decisório do julgamento a ser proferido pela autoridade superior. Não poderia esta ficar sempre à mercê do opinamento da comissão quando a prova dos autos o contrariasse de modo insofismável. O que não se pode dispensar - insista-se - é a transparência dos fundamentos da decisão, por isso que eles é que constituem o foco de defesa do acusado. O próprio estatuto federal con­signa a possibilidade. Reza o art. 1 68, parágrafo único, da Lei nº 8 . 1 1 2/1 990: "Quando o relatório da comissão contrariar as provas dos autos, a autoridade julgadora poderá, motivadamen­te, agravar a penalidade proposta, abrandá-la ou isentar o servidor de responsabilidade." Em que pese situar-se no estatuto federal, a norma aplica-se aos estatutos de todas as pessoas federativas, ainda que não haja norma expressa em idêntico sentido. 158

Neste passo, convém salientar que, a despeito de uma minoria divergente, pre­domina o entendimento de que a penalidade de demissão pode ser aplicada pela Admi-

155 MS 8 . 1 84-DF, 3' Seção, Rei. Min. PAULO MEDINA, julg. em 10.3 .2004 (Informativo jurisprudência ST] nº 201, mar. 2004) . 156 RMS 25.736-DF, Rei. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, em 1 1 .3 .2008 (Informativo STF nº 498, mar. 2008) . 157 O art. 1 68, parágrafo único, da Lei nº 8 . 1 12/90 (Estatuto federal) , dispõe sobre a matéria. 1 58 Apenas como exemplo, o STF considerou legítima a aplicação da pena de suspensão por 90 dias pela autoridade decisória, quando a proposta pela comissão fora a de advertência, tudo considerando a prova dos autos (RMS 24.561 , 1 • Turma, Rei. Min. JOAQUIM BARBOSA, em 2 1 . 1 0.2003; vide Informativo STF nº 326, out. 2003) .

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nistração com fundamento em ato de improbidade administrativa praticado pelo ser­vidor acusado. Assim, não se torna compulsória a ação judicial. A Lei nº 8 .429/1992, que regula a improbidade administrativa, não revogou a Lei nº 8 . 1 12/1990, subsistin­do, portanto, os dispositivos desta última que disciplinam a matéria.159

Outro ponto importante a ser observado reside na necessária obediência da Ad­ministração ao princípio da proporcionalidade (ou da adequação punitiva) , atualmente inegá­vel garantia do administrado ou servidor contra abusos de autoridade. Significa que a aplicação desproporcional de penalidade mais grave do que exigiria a infração funcional constitui ato ilegal, suscetível de anulação na via administrativa ou judicial, sem pre­juízo, é claro, da possibilidade de ser aplicada a sanção adequada à conduta ilícita. 160

Uma das formas de ofensa ao princípio é exatamente o agravamento da sanção, sem a fundamentação necessária, a despeito de ter sido sugerida punição menos grave. 1 6 1

Cumpre anotar, no entanto, que não incide, no processo disciplinar, o princípio da

insignificância, acolhido na esfera penal, quando o servidor obtém proveito econômico indevido; ou seja: é irrelevante o quantum da vantagem ilícita. 162 Em outra vertente, sempre é bom lembrar que a ofensa à proporcionalidade, por constituir matéria de mé­rito, deve ser apurada em procedimento processual ordinário, sendo incabível fazê-lo em mandado de segurança, em razão da sumariedade do rito. 1 63

De outro lado, havendo o reconhecimento de que as condutas têm gradação diversa quanto à gravidade, não podem seus autores, como regra, receber idêntica sanção, a menos que o aplicador mencione expressamente os motivos adicionais que conduziram à punição. Aplicar sanções idênticas para comportamentos de gravidade diversa ofende o princípio da proporcionalidade, porque de duas uma: ou um dos punidos mereceu sanção menos grave do que devia, ou o outro recebeu sanção mais grave do que merecia. Claro que tal sistema punitivo vulnera a equidade e qualquer regra lógica de direito.

Quanto ao prazo para a ultimação do processo disciplinar, alguns estatutos fun­cionais mais detalhados o estabelecem e ainda preveem prazos para as diversas fases do procedimento. O desejável é que a Administração observe o que neles está defi­nido, evitando-se os vários efeitos que a inércia pode provocar. Contudo, a eventual inobservância do prazo conclusivo, desde que não seja desarrazoada, não encerra ne­cessariamente ilegalidade, mas mera irregularidade, e não pode ter causado prejuízo ao acusado. 1 64

O ST] decidiu interessante questão sobre tal matéria. Em processo disciplinar para apuração de irregularidades cometidas por servidores do INSS, o relatório da comissão recomendou a pena de demissão para o servidor responsável, por seu ele-

159 Com acerto, decidiu o STJ nesse sentido (MS 12.735, Min. OG FERNANDES, em 9.6.2010) . 160 Vide STJ, MS 10. 826, j . 25.4.2007, e MS 1 4.993, j . 8 .6.20 1 1 . 16 1 Como exemplo, veja-se ST], MS 1 7.490, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, em 14 . 12.20 1 1 . 162 STJ, MS 1 8 .090, Min. HUMBERTO MARTINS, em 8.5.2013 . 163 STJ, MS 1 7.479, Min. HERMAN BENJAMIN, em 28. 1 1 .2012. 164 STJ, RMS 33.628, Min. HUMBERTO MARTINS, em 2.4.2013 . Também: STJ, MS 1 5 . 8 1 0, em 19 . 12 .2012 .

1010 Manual d e Direito Administrativo • Carvalho Filho

vado grau de culpa, e a sanção de advertência para os demais implicados. Todavia,

todos acabaram sendo demitidos. Em mandado de segurança, o Tribunal, entendendo

ter havido ofensa aos princípios da individualização e da proporcionalidade, proferiu decisão - de técnica jurídica digna de aplausos, diga-se de passagem - no sentido de conceder a ordem para o fim de anular o ato demissório e determinar a reintegração dos servidores, sem prejuízo de lhes ser aplicada a sanção adequada. Como se vê, os impetrantes não ficaram imunes ao poder sancionatório, mas sim à punição despro­

porcional que sofreram. 165

De tudo o que demonstramos, parece claro que tais cuidados são exigíveis para permitir, de forma clara, o exercício de um dos mais importantes direitos fundamen­tais, qual seja, o de recorrer ao Judiciário para controle da legalidade dos atos adrni­

nistrativos. 166

Na verdade, esse controle é essencial para garantir a observância do princípio da

legalidade, porquanto ninguém desconhece que alguns efeitos oriundos de decisão do

processo disciplinar são extremamente gravosos. O arbítrio de alguns administradores

pode acarretar irreversíveis prejuízos ao servidor. Essa é a razão por que, atualmente,

cresce a tendência de reduzir o espaço impenetrável de averiguação dos elementos

fáticos e jurídicos exercida pelo Poder Judiciário, sobretudo porque nos feitos admi­nistrativos não é exigida a imparcialidade própria dos julgadores de litígios. Ampliar

a perscrutação do juiz no processo administrativo é assegurar maior garantia de lega­

lidade aos acusados, e é nesse sentido que se encontra o sentimento atual de controle

judicial. 167 Nessa investigação - como acentuam os estudiosos - devem ser apreciados

todos os elementos do ato punitivo, especialmente a motivação conducente ao desfecho sancionatório. 1 68

O controle de legalidade, todavia, deve observar a sequência normal das ins­tâncias do Judiciário, não sendo permitida a supressão de nenhum grau de jurisdição. Desse modo, é incabível a interposição de recurso extraordinário contra qualquer deci­são de caráter administrativo, uma vez que inexiste causa decidida em última ou única

instância por órgão do Poder Judiciário no exercício da função jurisdicional, o que, de

resto, é exigido no art. 1 02, III, da CF. 169

O controle, entretanto, não chega ao extremo de permitir a majoração ou alte­ração da sanção administrativa imposta a servidor, já que, como deixou corretamente assentado o STJ, "deve o judiciário levar em conta o princípio da legalidade, sem esquecer que a

165 MS n• 6 .663-DF, 3' Seção, Rei. Min. FERNANDO GONÇALVES, julg. em 1 3.9.2000 (vide Informativo jurisprudência do ST], n• 70, set. 2000) . 166 Essas são também as linhas consignadas por HELY LOPES MEIRELLES, ob. cir., p. 595. 167 Vide a respeito JOSÉ RAIMUNDO GOMES DA CRUZ, O controle jurisdicional do processo disciplinar, Ma­lheiros, 1 996, p. 375-382. 168 Sobre o tema, consulte-se FLÁVIO HENRIQUE UNES PEREIRA, Sanções disciplinares. O Alcance do Controle jurisdicional, Fórum, 2007, p. 1 12-1 15 . 169 Foi como julgou o STF no AG (AgRg) 31 6.458-SP, 2ª Turma, Rei. Min. CELSO DE MELLO, julg. em 19.3 .2002 (vide Informativo STF n• 261 , mar. 2002) .

Controle da Administração Pública 1 O 1 1

mensuração da sanção administrativa é feita pelo juízo competente - o administrador público -,

sendo defeso ao judiciário adentrar no mérito administrativo". 170

PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE - Questão que tem suscitado funda con­

trovérsia diz respeito à interrupção da prescrição da pretensão punitiva, quando ins­

taurada a sindicância ou o processo disciplinar, sendo que a interrupção perdura até

a decisão final proferida pela autoridade administrativa, conforme figura em alguns estatutos funcionais . 1 71

A norma, tal como é apresentada, parece permitir que a interrupção se prolon­

gue até o infinito, bastando, para tanto, que não seja proferida decisão no respectivo processo administrativo. Se assim fosse, seria imperioso reconhecer a total inexis­

tência de proteção do servidor público, sujeito a uma prescrição que dependeria da

conclusão do processo. 172

Entretanto, quando o processo disciplinar é sujeito a prazos fixados na lei, e nesse caso está o Estatuto federal, 173 o prazo prescricional volta a correr após o período

conferido à Administração para concluir o processo. Ocorre, no caso, a prescrição inter­

corrente. Nesse sentido se têm orientado os Tribunais174 e a doutrina. 1 75

MEIOS SUMÁRIOS - Tradicionalmente os autores, na matéria pertinente ao

poder disciplinar do Estado, têm feito referência aos chamados meios sumários, que se­

riam instrumentos céleres e informais para a apuração de infrações funcionais e para

a aplicação de sanções. É clássico, por exemplo, o ensinamento de HELY LOPES MEI­RELLES de que haveria três meios sumários de penalização: a sindicância, a verdade

sabida e o termo de declarações . Pela sindicância, haveria rápida apuração e apenação.

A verdade sabida é a hipótese em que a autoridade toma conhecimento pessoal da in­

fração (como a insubordinação do servidor) , ou quando a infração é de conhecimento

público (por exemplo, a notícia na imprensa) . E o termo de declarações se traduz pelo

depoimento do servidor, que, confessando a prática da infração, se sujeita à aplicação

da sanção. 1 76

Essas formas sumárias de apuração, contudo, não mais se compatibilizam com

as linhas atuais da vigente Constituição. As normas constantes de estatutos funcionais

que as preveem não foram recepcionadas pela Carta de 1 988, que foi peremptória em

assegurar a ampla defesa e o contraditório em processos administrativos onde houves­

se litígio, bem como naqueles em que alguém estivesse na situação de acusado.

170 MS 7.966-DF, 3• Seção, Rei. Min. GILSON DIPP, julg. em 8 . 10.2003 (vide Informativo jurisprudência do

ST] nº 1 87, our. 2003) . 171 É o caso do art. 142, § 3º, Lei nº 8 . 1 1 2/1 990 (Estatuto dos Servidores Federais) . 172 ROMEU FELIPE BACELLAR FILHO, Processo administrativo disciplinar, Max Limonad, 2003, p. 388. 173 A interpretação conjugada dos arts. 1 52, caput, e 1 69, § 2º, da Lei nº 8 . 1 1 2/1990, evidencia que o pro­cesso deve terminar em 140 dias. 174 STF, RMS 23.436, j. em 24.8 . 1999, e MS 22.728, j. em 22.4. 1998. 1 75 MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS, Lei nº 8. 1 12/1990, cit., p . 730-734. 1 76 HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit., p . 596-597.

1012 Manual de Direito Administrativo • Carvalho Filho

Quanto à sindicância sumária, já vimos exaustivamente que tal processo não pode gerar punição, e se vai gerar não é sindicância, mas sim processo disciplinar prin­cipal. Não mais serve como meio sumário de punição. A verdade sabida e o termo de

declarações, a seu turno, também não dão ensejo a que o servidor exerça seu amplo direito de defesa. Não há guarida, portanto, para tais mecanismos de apuração em face da atual Constituição. Aliás, nem se precisa ir muito longe. A cada momento em que um servidor é tido como merecedor de sanção, é lógico que a Administração o está

acusando da prática de uma infração. Se é acusado, tem o direito à ampla defesa e ao contraditório. Mesmo que a infração seja leve e possa dar causa a uma mera advertên­cia, deve instaurar-se o processo disciplinar e proporcionar o regular contraditório. 177

Esse entendimento, já aceito entre os modernos doutrinadores, tem sido abo­nado por decisões judiciais, sensíveis ao quadro normativo constitucional e ao novo delineamento que vigora sobre a matéria. 178

8 Arbitragem

Arbitragem é o instrumento alternativo por meio do qual as pessoas dirimem

seus conflitos de interesses fora do âmbito judicial. Em virtude do anacrônico sis­

tema judicial, marcado pela morosidade e inefetividade, é cada vez maior o número de interessados que recorrem à arbitragem para a solução de suas divergências. A verdade é que "nem sempre se pode esperar da decisão judicial a verdadeira e efetiva pacificação

dos conjZi tos". 1 79

É a Lei nº 9 .307, de 23.9 . 1 996, que regula a arbitragem. Segundo a lei, as pes­

soas capazes de contratar podem socorrer-se do juízo arbitral para dirimir litígios re­

lativos a direitos patrimoniais disponíveis (art. 1 º) . Para tanto, devem ajustar convenção

de arbitragem através da cláusula compromissória e do compromisso arbitral. Aquela

retrata o ajuste firmado em cláusula contratual com a previsão de serem submetidos à arbitragem litígios supervenientes à celebração do contrato. O compromisso arbitral é a convenção pela qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, comportando ser judicial ou extrajudicial. Cuida-se, pois, de instrumentos

colocados à disposição daqueles interessados em evitar a intervenção estatal no campo da realização da justiça. 180

Questão que tem desafiado a argúcia dos estudiosos, em dias atuais, consiste em saber se pode a Administração valer-se da arbitragem para a solução de alguns

1 77 Perfilham também esse entendimento DIÓGENES GASPARINI, ob. cit., p. 601 e MARIA SYLVIA DI PIETRO, ob. cit., p. 354. 178 O STF - na ADI 2 . 120-AM, Rei. Min. CELSO DE MELLO, em 16 . 10.2008 - declarou a inconstitucio­nalidade de lei estadual que previa a aplicação sumária das penas de repreensão e suspensão até cinco dias. 179 HUMBERTO THEODORO JUNIOR, A arbitragem como meio de solução de controvérsias (RF n2 97/109, 2001 ) . 1 80 JOEL DIAS FIGUEIRA JUNIOR, Manual de arbitragem, Revista dos Tribunais, 1 997, p. 62.

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