Pacificação de Índios

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  Naçã o e civ iliz açã o no Bras il: os índios Botocudos *  FRANCIELI APARECIDA MARINATO Universidade Federal do Espírito Santo R ESUMO indígena do Primeiro Reinado brasileiro (1822-1831), com recomendações Botocudos era o principal objetivo da Diretoria, que deveria reuni-los em aldeamentos e integrá-los à colonização do rio Doce. Demonstramos como Diretoria improdutivo desde seu início, devido à obstinada resistência dos Botocudos. PALAVRAS-CHAVE:  ABSTRACT - enous politics of the Brazilian First Kingdom (1822-1831), with recom- mendations of tenderness and good treatment to the “brave natives” under Regulation of 1824 that created the Diretoria do Rio Doce of Espírito Santo. that should reunite and join them to the colonization of the Doce River.

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Pacificação de Índios

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  • Nao e civilizao no Brasil: os ndios Botocudos !"!#$%&'(%"!# !)*&$+&*,-"!."!/($0 $("!1 $.*#"*

    FRANCIELI APARECIDA MARINATO

    Universidade Federal do Esprito Santo

    RESUMO

    !"#$%$&'$!(#')*+!(&(,)%(!+!-)%./#%+!-$!"(.)0.(12+!)&%$#)-+!&(!"+,3').(!indgena do Primeiro Reinado brasileiro (1822-1831), com recomendaes -$!4#(&-/#(!$!4+5!'#('(5$&'+!(+%!63&-)+%!4#(7+%8!%+4!(!)&9/:&.)(!-$!;+%?.)+@! !-)%./#%+!-$!"(.)0.(12+!+#)$&'+/!+!A$*/,(5$&'+!-$!BCDEF!G/$!.#)+/!(!H)#$'+#)(!-+!A)+!H+.$!&+!I%"3#)'+!J(&'+@!K!"(.)0.(12+!-+%!3&-)+%!Botocudos era o principal objetivo da Diretoria, que deveria reuni-los em aldeamentos e integr-los colonizao do rio Doce. Demonstramos como +!-)%./#%+!-$!"(.)0.(12+!5+%'#+/L%$!)&%/%'$&'?7$,!$!+!>/&.)+&(5$&'+!-(!Diretoria improdutivo desde seu incio, devido obstinada resistncia dos Botocudos.PALAVRAS-CHAVE:!M&-)+%!=+'+./-+%N!O(.)0.(12+N!A$%)%':&.)(!P&-3*$&(@

    ABSTRACT

    QR$!"#$%$&'!(#').,$!(&(,S%$%!'R$!-)%.+/#%$!+>!"(.)0.(')+&!T)'R)&!'R$!)&-)*-enous politics of the Brazilian First Kingdom (1822-1831), with recom-mendations of tenderness and good treatment to the brave natives under 'R$!)&9/$&.$!+>!;+%?.)+@!QR$!-)%.+/#%$!+>!"(.)0.(')+&!)&%'#/.'$-!-$!Regulation of 1824 that created the Diretoria do Rio Doce of Esprito Santo. QR$!"(.)0.(')+&!+>!'R$!=+'+./-+%!T(%!'R$!"#)&.)"(,!()5!+>!'R$!H)#$'+#)(!that should reunite and join them to the colonization of the Doce River.

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    U$!-$5+&%'#('$-!R+T!'R$!-)%.+/#%$!+>!"(.)0.(')+&!%R+T$-!/&%/%'()&(4,$!and the working of the Diretoria unfruitful since its beginning, because the obstinate resistance of the Botocudos.KEYWORDS: =+'+./-+%N!O(.)0.(')+&N!V(')7$!A$%)%'(&.$@

    A poltica indigenista do Primeiro Reinado

    C+5!(!)&%'(,(12+!-(!.+#'$!"+#'/*/$%(!&+!=#(%),F!)&'$&%)0.+/L%$!o movimento de organizao dos aparelhos burocrticos do Estado, bem como de criao de instituies voltadas para o desenvolvimento do ensino e cultura. Este movimento, que buscava dar suporte Monarquia e corte instalada no Rio de Janeiro, acabou por conceder uma autonomia irreversvel s elites poltico-econmicas bra-sileiras, centralizando suas decises e intenes. A separao de Portugal $5!BCDD!%)*&)0.+/F!(%%)5F!(!)5"+%)12+!-$!/5!"#+W$'+!"+,3').+!-+!.$&'#+Lsul, representado principalmente pelo Rio de Janeiro, que ambicionava a manuteno da autonomia e da Monarquia no Brasil.

    Ao lado da construo das bases do Estado brasileiro, iniciou-se a -)%./%%2+!-(!0%)+&+5)(!-(!&+7(!&(.)+&(,)-(-$!$!-(!#$>+#5(!-(!%+.)$-(-$F!que era profundamente marcada pela diversidade econmica, cultural e tnica. O processo de construo da nacionalidade brasileira alcanou o pice no Segundo Reinado, quando idias e discusses fervilharam, sobre-'/-+!&+!.3#./,+!)&'$,$.'/(,!#$/&)-+!"$,+!P&%')'/'+!X)%'Y#).+!$!Z$+*#?0.+!Brasileiro (IHGB), criado em 1838 e incentivado de perto pelo monarca D. Pedro II. Contudo, j no governo de D. Joo VI e no Primeiro Reinado (,*/5(%! )-+#(5!("#$%$&'(-(%!"(#(!%$!"$&%(#!&+!$,+!/&)0.(-+#!-$!uma sociedade que era formada por uma minoria branca e proprietria, considerada portadora da civilizao, e por uma maioria de pobres, livres ou escravos, mestios, africanos e ndios. Inclui-se nesse processo a atuao de polticos intelectuais, como o ministro D. Rodrigo de Souza Coutinho (Conde de Linhares), que preconizou a reforma, a modernizao e a internalizao do Imprio Portugus no Brasil.

    J nas primeiras dcadas do sculo XIX, os reformadores falavam em incorporao, assimilao e homogeneizao social, objetivando no s o exerccio estatal do controle sobre a populao, como tambm a produo de um ideal do trabalhador livre, tornando ocupados os desocu-

  • 43DIMENSES . Vol. 21 - 2008pados (Azevedo, 1987:48). O alvo do discurso destes reformadores eram principalmente os escravos africanos, mas sempre se referiam igualmente aos ndios, apontando a necessidade de incorpor-los sociedade como trabalhadores livres em substituio mo-de-obra cativa. Na tentativa de forjar uma sociedade homognea e uma imagem positiva do trabalho, estava implcito o problema da escravido, grande contradio social de uma nao que se pretendia civilizada.

    Em 1810 o paulista Antonio Vellozo de Oliveira ofereceu a D. Joo VI sua 2 03($*!%"4( !"%!2 56"(*0 .7"%!#*!/("89.&$*!# !:;!/*'5" /'#+!)&'$,$.'/(,!G/$!'(54/&-(5$&'$!#$9$')/!%+4#$!(!integrao das populaes nativas, especialmente os ndios bravos, foi ;+%?.)+!-$!K&-#(-(!$!J),7(@!H$!%/(%!#$9$\]$%!%+4#$!(!$%.#(7)-2+F!a equivocada poltica indigenista e a intensa ignorncia de brancos e ne-

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    gros, ricos e pobres, resultaram sugestes para um Brasil civilizado, com base na mestiagem, que formaria uma nova raa e que nos levaria homogeneidade cultural (Dolhnikoff, 1998:23). Em 1823 ele apresentou Assemblia Constituinte os Apontamentos para civilizao dos ndios bravos do Imprio do Brasil, expostos em 1822 s Cortes Gerais portu-guesas com outros cinco projetos de deputados brasileiros. As sugestes do ento deputado constituinte2 foram aprovadas e decidiu-se que seriam publicadas para maior discusso na Assemblia e para instruo da Nao, alm de serem enviadas s Provncias para obter-se delas opinies sobre os meios de colocar o projeto em prtica (Cunha, 1992:9).

    O projeto de Bonifcio era bastante criterioso, contendo explicaes -$'(,R(-(%!-+%!"#)&.3")+%!$!5$)+%!"(#(!(!0&(,)-(-$!-$!.)7),)^(#!+!)&-3*$&(@!Em linhas gerais, pressupunha a sujeio das populaes nativas ao trabalho atravs de sua reunio em aldeamentos conduzidos por missionrios religio-sos, mas que contariam com foras militares destacadas a certa distncia. Bonifcio pregou a brandura como tratamento fundamental para alcanar (!"(.)0.(12+F!(,

  • 45DIMENSES . Vol. 21 - 2008A discusso fundamental que perpassa suas idias o estgio de

    R/5(&)-(-$8! -+%! -)'+%! 63&-)+%! 4#(7+%8@!K%%)5F!=+&)>?.)+! -$0&)/! $\-plicitamente o estado selvtico em que se encontravam, sendo que os Botocudos foram mencionados algumas vezes, tomados como prottipo. Foram concebidos como populaes que, sem interesses e necessidades, no tinham razo apurada e o nico exerccio que os movia e satisfazia suas necessidades fsicas era a guerra (Silva [1823], 1998:92-93).

    Nesse sentido, Bonifcio foi um interlocutor do debate sobre raa, .+,+.(-+! $5!0&%!-+! %$')7(!-$!-$0&)#!%+,/1]$%!"(#(!+%!"#+4,$5(%!)&-3*$&(%@!

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    necessrio esclarecer que as diretrizes do indigenismo no Primeiro Reinado, ainda que limitadas, tinham como fundamento a desinfestao de territrios nativos ambicionados para o franqueamento da expanso .+,+&)(,F!.+5+!%$!"#$'$&-)(!&(!#$*)2+!-+!H+.$!-$%-$!0&%!-+!%(*+%8!por todos os que com eles tiveram contato desde o sculo XVI, em funo da forte resistncia e belicosidade demonstrada. Assim, construiu-se uma 7)%2+!G/$!%+4#$7)7$/!0#5$5$&'$!(+!,+&*+!-(!.+,+&)^(12+!$!(.+5"(&R+/!+%!R+5$&%!G/$!.+&'#(!$,$%!(7(&1(#(5!-$0&)')7(5$&'$!&+!%

  • 47DIMENSES . Vol. 21 - 2008regra largos de peito e espadados, mas sempre bem proporcionados; mos e ps delicados (1989 [1823]:285), descrio que d sentido s imagens que ele produziu, aproximando-os de feies idealizadas pela concepo de beleza europia.

    Os Botocudos compreendiam povos organizados em subgrupos extremamente divididos e, muitos deles, rivais entre si. Cada grupo era comandado por um chefe, sem carter hereditrio, com escolha norteada pela bravura demonstrada. Cabia-lhes orientaes e decises quantos disputas internas, migraes do grupo e momentos de guerra (Paraso, 1992:424). Eram grupos semi-nmades, mas que tinham seus espaos ,)5)'(-+%!&(%!9+#$%'(%!$5!#$,(12+!(+%!-$!+/'#+%!%/4*#/"+%F!"#)&.)"(,5$&'$!no que diz respeito s reas de caa (Wied-Neuwied, 1989 [1823]:272). Ao procurarem respostas para o fator incgnito das sucessivas divises e multiplicidade de etnnimos dos grupos Botocudos, Emmerich e Montser-rat (1975) levantaram a hiptese de que a causa seria o faccionalismo tradicional das sociedades Macro-J, da qual faziam parte, e a secular situao de afugentamento, capaz de descaracterizar suas formas no espao (apud Mattos, 2004:44).

    Apesar das divises e rivalidades grupais, caracterizavam-se pelo compartilhamento da lngua, embora esta possusse variaes dialetais. Tambm partilhavam o mesmo sistema scio-cosmolgico, que permitia %/(!)-$&')0.(12+F!$\"#$%%2+!$!.+5/&).(12+!&+!W+*+!-$!(,)(&1(%!$!#)7(,)-dades que se fez e refez ao longo do processo de contato e elaborao de estratgias de resistncia e sobrevivncia nos intercursos da fronteira colonial. Os grupos possuam uma rgida diviso social do trabalho, na qual cabia aos homens as atividades da guerra e caa e s mulheres tudo o mais que no dizia respeito a isso (Wied-Neuwied [1823], 1989: 293).

    V+!%

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    &(#(5!.+5!+!-)%./#%+!"(.)0.(-+#!)&(/*/#(-+!"$,+!P5"

  • 49DIMENSES . Vol. 21 - 2008[...] dirigir seus trabalhos, zelar seus interesses, e aplic-los [os ndios] cultura das terras e navegao do rio; fazendo cumprir os ajustes feitos com os ndios pelos lavradores que os empregarem em suas culturas; mantendo o socego entre os ndios e os colonos e dando parte ao governo da provncia de qualquer acontecimento [...] (cf. em Oliveira, 1856:222).

    preciso ter em mente que a guerra ofensiva contra os Botocudos, -$9(*#(-(!"+#!H@!;+2+!$5!Ba!-$!5()+!-$!BClCF!"$#5(&$.)(!,$*(,)^(-(!$!encontrava-se em prtica a pleno vapor no Primeiro Reinado. A guerra +>$&%)7(!%Y!>+)! #$7+*(-(!+0.)(,5$&'$!&+!A$*)5$!A$*$&.)(,F!$5!Dg!-$!outubro de 1831. No entanto, aps a instituio da guerra justa aos Boto-cudos, a Coroa Portuguesa reconheceu atravs de outra Carta Rgia, a 2 de dezembro de 1808, que entre os mesmos selvagens Botocudos ex-)%')(5!*#/"+%!G/$!"#+./#(7(5!+!.+&737)+!"(.30.+F!("#$%$&'(&-+L%$!&+%!quartis e povoados para viverem ao lado da sociedade luso-brasileira. Esta Carta sinalizava a necessidade da formao de aldeamentos para tais ndios, embora privilegiasse sua distribuio entre fazendeiros e colonos, permitindo-lhes a explorao de sua mo-de-obra, s aldeando-os caso somassem grande nmero, capazes de formar uma grande povoao.

    O Regulamento imperial de 1824, em linhas gerais, segue estas indicaes, priorizando um maior empenho para a reunio dos ndios e centralizando esta obrigao na autoridade do diretor. Nas explicaes -+!j(#G/:%! -$!m/$,/^F! W/%')0.(7(5! (! )&%')'/)12+! -+!A$*/,(5$&'+! +!considervel

    [...] nmero de ndios que tm concorrido, e todos os dias vem concorrendo s margens do rio Doce, os quais de suma necessidade contentar, e aprovei-tar j, aldeando-os, e dispondo-os para a civilizao no que tanto ganham a humanidade, a religio e o estado (cf. em Oliveira, 1856:221).

    Esta legislao substituiu as rpidas orientaes imperiais que vin-ham sendo dadas para o Esprito Santo desde a Independncia, no sentido de formar aldeamentos indgenas. Assim, por exemplo, a Deciso no. 22, de 20 de fevereiro de 1823, determinava a reunio dos ndios junto aos destacamentos militares, mencionando o quartel do Porto de Souza, na divisa com Minas, onde deveria-se estocar vveres e instrumentos agrnomos destinados aos aldeados. Outra Deciso, de 24 de maio de 1823, recomendou o emprego dos ndios em favor do Estado com todos os meios de moderao e brandura , como forma de amenizar as despesas do seu sustento (cf. em Cunha, 1992:103 e 106).

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    O cerne do Regulamento de 1824 encontrava-se com os discursos reformistas da poca, que se antecipavam necessidade de transformar em trabalhadores as camadas populacionais que causavam o desequilbrio social. Nesse sentido, o Regulamento dava crdito a dois meios propostos por Bonifcio para alcanar a civilizao dos ndios e incentiv-los ao trabalho, ou seja, a prtica do comrcio e da agricultura. Previa o emprego dos ndios domesticados, e os que se fossem domesticando, no trabalho da guarda militar e no servio da lavoura como jornaleiros. Depreende-se que a sujeio ao trabalho, pela forma natural como foi colocada no A$*/,(5$&'+F!/&-(5$&'(,!-+!(,-$(5$&'+@!K!"#)&.3")+F!+!sustento e o provimento de utenslios seria garantido, at que os ndios pudessem alcan-los por conta prpria:

    Aos ndios que se forem reunindo e aplicando ao servio das roas e nave-gao do rio, dar-se-o ferramentas, sustento, e vesturio de pano de algodo no primeiro ano, ou enquanto eles no obtiverem estes gneros do seu prprio trabalho (cf. em Oliveira, 1856:223).

    As atividades que deveriam ser promovidas pela Diretoria do Rio Doce, inclusive os aldeamentos, demonstram que seu desgnio era via-bilizar e incrementar o empreendimento colonial. Assim, estavam sob sua responsabilidade o auxlio navegao e o controle da barra do rio Doce, onde empregava-se um patro-mor; a guarda militar destacada no territrio e os antigos quartis da Diviso Militar do Rio Doce; e o hospital da regio com o cirurgio-mor que nele trabalhava. Portanto, 5$-)-(!G/$!+%!3&-)+%!>+%%$5!6"(.)0.(-+%8F!'#(&%>+#5(7(5L%$!$5!'#(4(,-hadores da prpria Diretoria, dos particulares da regio, ou tornavam-se colonizadores.

    O Regulamento contm claras explicaes sobre a apropriao do territrio desocupado a partir da localizao dos ndios em aldeamentos. s trs aldeias a serem formadas, garantia-se uma poro territorial de uma lgua de frente (nas margens do rio) e trs de fundo. Deveriam ser medidas e demarcadas judicialmente e poderiam ser escolhidas pelo dire-tor em qualquer lugar, porm respeitando as sesmarias j concedidas. Ao mesmo tempo, o Governo Imperial incentivava a distribuio de sesmarias a particulares, autorizao exclusiva para a regio do Doce, como esclareceu o Decreto de 05 de maio de 1824 (Cunha, 1992:116).

    A apropriao das terras indgenas ou a colonizao dos sertes, segundo o discurso governamental, era escopo fundamental da legislao dirigida aos Botocudos, como percebemos ao tom-la em conjunto. Os

  • 51DIMENSES . Vol. 21 - 2008soldados dos quartis, por exemplo, eram contemplados com datas de terras nos sertes que patrulhavam (Deciso de 20 de fevereiro de 1823. Cf. Cunha, 1992:103), medida que tambm visava a garantir apego ao destacamento.

    O Regulamento de 1824 se afastava das recomendaes de Bonifcio quanto existncia de missionrios nos aldeamentos para a catequizao dos ndios. Essa legislao no mencionou a presena de religiosos nem (!&$.$%%)-(-$!-$!.('$G/$%$F!.+&%)-$#(&-+!$%%$&.)(,!"(#(!(!"(.)0.(12+!+!contato com colonos, [...] pois que de sua vizinhana, trato e comunicao resultam grandes benefcios civilizao dos selvagens (cf. Oliveira, 1856: 221). Deste modo, o cargo de diretor era leigo e foi exclusivamente ocupado por um militar.

    O Regulamento de 1824 imprimia certas mudanas no tratamento aos Botocudos, que estavam sendo alvo de um ininterrupto e violento processo de contato desde 1800, quando o Doce foi aberto para navegao e colonizao pelo Governo colonial. No entanto, a Diretoria utilizava-se da mesma estrutura militar arquitetada para fazer frente aos Botocudos &$%%(!+.(%)2+!$!#$>+#1(-(!.+5!(!-$9(*#(12+!-(!*/$##(!+>$&%)7(!_BClChF!formada por quartis militares instalados em diferentes pontos do territrio.

    Nesse sentido, cabia ao diretor de ndios importantes e pesadas responsabilidades, mas tambm largos poderes e domnio a nvel local. Ocupou o cargo no incio do funcionamento da Diretoria o coronel Julio Fernandes Leo, designado diretamente pelo Governo Imperial atravs da "+#'(#)(!G/$!(.+5"(&R+/!+!A$*/,(5$&'+!-$!BCDE@! !.(#*+!,R$!>+)!.+&0(-+!pela experincia de longa data em Minas Gerais e no Esprito Santo como comandante militar e no tratamento com os ndios Botocudos.3

    !"#$%&$#'()!*)+!,-*%)+!.)/)$0*)+1!$)-2%/)+!3!43+%+/5-$%#!-)!6+",4%/)!

    Santo

    A Diretoria do Rio Doce foi estabelecida entre maro e abril de 1824 com a formao do aldeamento de So Pedro de Alcntara na barra do Doce. Contudo, o incio do seu funcionamento no representou a ces-%(12+!-+%!.+&9)'+%!$&'#$!3&-)+%!$!.+,+&+%F!&$5!'2+!"+/.+!/5!(,37)+!"(#(!o Governo Provincial no que concerne a tais problemas.

    Entre 1824 e 1825 o Conselho do Governo manteve-se em alerta espreita de um perigo real e incontrolvel: a disperso e o recrudescimento dos focos de resistncia dos Botocudos por todo o territrio capixaba. Os

  • 52 Programa de Ps-Graduao em Histria - UFES

    ndios espalhados pelos sertes da Provncia promoviam assaltos, corre-#)(%!$!('(G/$%!(+%!R(4)'(&'$%!-$!>(^$&-(%!$!"+7+(-+%@!I5!0&%!-$!BCDE!/5!grupo de Botocudos se apresentou em Vitria, causando grande sobressalto entre a populao local e as autoridades. O grupo permaneceu na Capital durante quatro meses sob a vigilncia e sustento do Governo, mas no sem espalhar temor e preocupao nas autoridades sobre a possibilidade de um levante de maiores propores. O fato provocou discusses e ques-')+&(5$&'+%!"+,3').+%!%+4#$!+%!"#+.$-)5$&'+%!$5!./#%+!"(#(!(!"(.)0.(12+!e civilizao dos nativos.

    n+5!(!.+,+&)^(12+!-$0&)')7(!-+!#)+!H+.$!&+!%

  • 53DIMENSES . Vol. 21 - 2008nas margens do rio Santa Maria serviriam aqueles brbaros para exercerem crueldades, vitimando alguns lavradores, e caminhando sempre avante, foram bater quase s portas da vila da Vitria.

    O primeiro aldeamento formado pela Diretoria do Rio Doce foi o de So Pedro de Alcntara, localizado margem direita do rio prximo sua foz. J em maio de 1824 o aldeamento reunia 47 Botocudos, mas os trabalhos mostravam-se muito maiores diante dos grupos espalhados pela Provncia que recusavam a vida sedentria e as promessas de sustento apresentadas pela Diretoria.

    Em 10 de maio de 1824 o diretor Julio Fernandes Leo recebeu ordens para reunir, no aldeamento recm-criado, os Botocudos que agi-'(7(5!+!-)%'#)'+!-$!j/#)4$.(F!&+!P'("$5)#)5!_KOILIJF!,)7#+!alF!9@!BoF!23/05/1824).4 Em obedincia, Leo disps militares e um ndio para servir de intrprete na conduo dos Botocudos, mas foi contundente ao apontar a -$4),)-(-$!0&(&.$)#(!-(!H)#$'+#)(!$!(%!&$.$%%)-(-$%!"(#(!5(&'$#!'2+!*#(&-$!nmero de aldeados, parecendo antever uma situao de calamidade:

    `@@@b!5$!"(#$.$!%$#$5!4(,-(-(%!'+-(%!(%!-$%"$%(%!G/$!%$!0^$#$5!&(!.+&-/12+!de ndios Botocudos para esta Diretoria enquanto nela no houverem as necessrias e prprias plantaes para manuteno dos mesmos ndios. Por isso que, achando-se esta colnia deserta e na maior parte carestia de viveres, sentindo eles esta falta, voltaro prontamente para as suas matas, o que j tem acontecido algumas famlias habitantes nas margens deste rio, os quais tendo sido recebidas e tratadas a proporo dos socorros que me tem vindo dessa capital vo voltando por no poderem aqui existir [...] (APE-ES, livro alF!9@!lpF!lCqlrqBCDEh@

    Na mesma correspondncia com o Governo Provincial, Leo rec-lamou do alargamento de suas responsabilidades sobre os Botocudos espalhados por todo Esprito Santo, alegando que sua [...] jurisdio e cuidados se sentiro dentro das trs aldeias dos ndios Botocudos do rio Doce e no com os que habitam toda a extenso desta Provncia [...] (Idem). De certa maneira os seus reclames tinham razo, pois o Regula-mento de 1824 mencionava apenas as urgentes necessidades no Doce. No ocorria aos legisladores do Imprio que estes ndios praticavam constantes migraes desde os avanos iniciais da sociedade luso-brasileira sobre o seu territrio, alcanando territrios muito alm de suas fronteiras naturais. Mas se, por outro lado, considerarmos que ao diretor do rio Doce cabia a tutela sobre os Botocudos habitantes no territrio do Esprito Santo nica etnia mencionada no Regulamento o coronel Leo deveria sim dirigir esforos outras localidades da Provncia por onde estes se espalhavam.

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    Nos diferentes locais que os Botocudos haviam alcanado, eclodiram .+&9)'+%! .+5!+%! .+,+&+%F! .+5+! (.+&'$.)(! &(! #$*)2+! -$!j/#)4$.(@!K+!G/$!'/-+!)&-).(F!+%!)&'$&%+%!.+&9)'+%!&$%%$!"+7+(-+!>+#(5!.(/%(-+%!"+#!violncias de todo o tipo contra os ndios, como escravizaes, raptos de crianas, as atitudes traioeiras e chacinas e a proliferao do mal das bexigas 5, com o conseqente morticnio de muitos nativos. Em razo disso, desde incios de 1824 a regio do Itapemirim foi assolada por motins dos Botocudos, causando reclamaes de colonos e fazendeiros, como a de j(&+$,!O$#$)#(!-(!J),7(F!G/$!(0#5+/!'$#!%+>#)-+!R+%'),)-(-$%!$!-(&+%!-+%!quais esperava ser restitudo. Em resposta, o Governo Provincial responsa-bilizou o diretor Leo. A reao do diretor foi expressa da seguinte forma:

    No me posso acomodar com a inteligncia dada por V. E. [...] quando diz G/$F!$5!.+&%$Gs:&.)(!0.+!#$%"+&%?7$,!"$,+%!$%'#(*+%!-(!-)'(!>(^$&-(F!+/!-$!qualquer outra [...] nem eu aceitaria uma tal comisso, que de aldear no mo-5$&'+!%$,7(*$&%F!.)7),)^?L,+%!$!0.(#!()&-(!#$%"+&%?7$,!"$,+%!%$/%!-$,)'+%F!$!'/-+!)%'+!.+5!+%!5$)+%!G/$!d@!I@!&2+!)*&+#(!_KOILIJF!,)7#+!alF!9@!DEF!DCqlgqBCDEh@

    %!.+&9)'+%!$&'#$!+%!=+'+./-+%!$!.+,+&)^(-+#$%!.R$*(#(5!(+!"+&'+!mximo no decorrer de 1824 em funo da ao decisiva da Diretoria -+!A)+!H+.$!"(#(!0\?L,+%!$5!(,-$(5$&'+%@!K,$%'(#(5!(!%+4#$-)'(!fazenda da Muribeca no se retiram dela enquanto no lhes forem restitudos +%!0,R+%!$!/5(!"(#'$!-+%!5$%5+%!=+'+./-+%!,$7(-+%!.+5!7)+,:&.)(!$!'#()12+![...]. Esta a verdadeira origem dos estragos que sofre aquele fazendeiro, e segundo o que me dizem os Botocudos da mesma famlia, que se acham nesta K,-$)(F!(%!%(/-(-$%!G/$!+%!"()%!'$5!-+%!0,R+%!$!(!,$54#(&1(!-(!'#()12+!.+5!eles praticada pelo dito fazendeiro que os move a fazerem-lhe o estrago G/$!"+-$5F!&+!G/$!.+&')&/(#2+!$&G/(&'+!+%!%$/%!0,R+%!$!"(#$&'$%!$%')7$#$5!(/%$&'$%!_KOILIJF!,)7#+!alF!9@!DEF!DCqlgqBCDEh@

    No menos comum no Esprito Santo que a prtica dos fazendeiros de aprisionar ndios para realizarem trabalhos particulares eram as chaci-nas cometidas pelos militares. Entre diversos casos, podemos citar o do major Pascoal, comandante do quartel e do povoado indgena da Lagoa do Aguiar, na regio do rio Doce. Ele foi acusado pelo diretor Leo de

  • 55DIMENSES . Vol. 21 - 2008ser odiado pelos Botocudos por causa das injustias e monoplios que praticava com eles, [...] dos quais mandou por ltimo matar a catorze com a maior tinncia[...]. O diretor lembrou ainda dos procedimentos brutais [...] do alferes Leite em So Miguel [e] o de Manoel das Linhas na Muribeca, acontecimentos traioeiros de [...] um povo que se diz .)7),)^(-+uuu8!_KOILIJF!,)7#+F!alF!9@!aCF!lgqlpqBCDEh@

    Os Botocudos do Itapemirim reunidos no rio Doce foram estabel-ecidos no povoado do Aguiar, em funo da falta de meios de subsistncia no aldeamento de So Pedro de Alcntara. Acontece que um verdadeiro estado de calamidade tomou conta do local, em razo da infestao de var-ola entre os ndios e da brutalidade do comandante do quartel do Aguiar. Atravs das informaes de correspondncias com o Governo Provincial, .+&0#5(-(%! &+! #$,('+! -$!H($5+&! _BCgp[DrphF! %(4$5+%! G/$! (! -+$&1(!foi trazida da Muribeca pelos ndios e se espalhou na regio do Doce. A vacina oferecida pelo Governo no pde evitar a contaminao e a morte de muitos, alm da fuga de outros tantos do aldeamento.

    Os Botocudos do Itapemirim reunidos no Doce no permaneceram no aldeamento como queriam as autoridades. Muito pelo contrrio! No "$#3+-+!$5!G/$!$%')7$#(5!(,)F!5+%'#(#(5L%$!)&-Y.$)%!f!"(.)0.(12+F!>$#-)#(5!5),)'(#$%!$!(5$(1(#(5!-$!5+#'$!+!-)#$'+#!_KOILIJF!,)7#+!alF!9@!EEF!DEqlpqBCDEh@!O+#!05F!-$.)-)#(5!(4(&-+&(#!+!(,-$(5$&'+!"(#(!%$!$&.+&'#(-rem com o restante do grupo que permanecera no Itapemirim. Na marcha em direo ao sul passariam por povoados e vilas da regio central da Provncia, inclusive a capital Vitria. Os relatos sobre este acontecimento oferecem claros indcios de uma ao planejada conjuntamente pelos Boto-cudos perambulantes pelo Esprito Santo, do que podemos depreender sua capacidade de articulao e movimentao pelos sertes no controlados pelas autoridades.

    Percebendo-se incapaz de impedir as aes do grande nmero de ndios insubordinados, Julio Fernandes Leo informou o Presidente da Provncia sobre o que estava sendo planejado, passando-lhe as responsa-bilidades sobre o grupo que se dirigia para Vitria:

    I%>+#.$)L5$!$5!+%!"(.)0.(#!$!"/-$!.+&%$*/)#!-$%(#5(L,+%N!5(%!&2+!.+&%$*/)!despersuadi-los da viagem. No me sendo permitido violent-los, nem tendo para isto foras, me conformei dando as providncias para evitar a continuao dos insultos que poderiam praticar na viagem. A vista do referido, pode-se presumir que no deixaro de continuar nas atitudes que costumam praticar no distrito do Itapemirim, e para evit-las seria muito conveniente que V. Exa. os

  • 56 Programa de Ps-Graduao em Histria - UFES

    pudesse entreter nessa cidade, pois que da comunicao de povos civilizados se tornaro menos ferozes, e talvez se sujeitem, ento, a viverem nesta Diretoria _KOILIJF!,)7#+F!alF!9@!EEF!DEqlpqBCDEh@

    As informaes sobre este acontecimento nas fontes consultadas so bastante fragmentadas, mas oferecem indicaes que nos permitem perce-ber uma ao conjunta e de bastante impacto para o Governo Provincial. Em H($5+&!_BCgp[Dglh!0.+/!#$*)%'#(-+!G/$!&+%!5$%$%!-$!%$'$54#+!$!+/'/4#+!houve sublevaes e combates entre ndios e colonos no Itapemirim e Doce, com [...] grandes distrbios e algumas mortes e ferimentos, obrigando os fazendeiros a quase abandonarem suas fazendas. Segundo o autor, enquanto os Botocudos que estavam reunidos no Doce chegaram at as autoridades em Vitria, outro grupo permaneceu amotinado em Itapemirim, ao que tudo indica, com intenes de se unir aos que estavam na capital.

    Nas correspondncias do Presidente Accioli de Vasconcelos com o Governo Imperial entre julho e agosto de 1824, h referncias aos prob-lemas que atingiam os ndios, como a epidemia de varola que causara grande mortandade, mas nada mencionado sobre sua presena e possveis reivindicaes em Vitria. O historiador Marco Morel, em artigo que menciona este mesmo acontecimento, notou que no h qualquer aluso presena dos Botocudos na capital nas correspondncias da Presidncia da Provncia com o Ministrio do Imprio entre 1824-1826, guardadas no Arquivo Nacional: H uma lacuna na seqncia cronolgica do acervo, como se tais papis tivessem sido retirados (Morel, 2002:113). Haveria a intencionalidade da administrao imperial em no guardar tais cor-respondncias que registravam feito to audacioso dos Botocudos, ou, de fato, o Governo Provincial deixou de relatar a presena deles em Vitria com a inteno de no transparecer a falta de controle sobre a situao?

    De qualquer forma, o Conselho do Governo registrou o fato em suas atas, que foram depois reunidas por Jos Joaquim Machado de Oliveira em relatos bem esparsos publicados em 1856 na Revista do IHGB. Apesar das informaes sucintas, depreende-se que a situao era completamente inusitada para as autoridades e provocou acirradas discusses em vista de uma soluo imediata e para decidir o destino dos ndios em meio ao "#+.$%%+!-$!"(.)0.(12+!(!$,$%!)5"+%'+@!

    K!5(#.R(!-+%!=+'+./-+%!"(#')&-+!-+!H+.$!.+&.#$')^+/L%$!$5!0&%!de setembro e, chegando capital em 1o. de outubro, foram recebidos e alojados como sugeriu o diretor Leo. Consta nas atas do Conselho do Governo que:

    [...] havendo-se apresentado na capital o gentio do Rio Doce, e outra tribo

  • 57DIMENSES . Vol. 21 - 2008em Itapemirim, procurando aquele dirigir-se a Moribeca e ajuntar-se a esta, que se achava hostilizando o lugar, assentou o conselho que se conservasse o gentio na ilha do Prncipe, fornecendo-se-lhe alimento, at que reunida a este a tribo [do Itapemirim] pudessem ambos regressar para o rio Doce [...] (cf. em Oliveira, 1856:239).

    K!%+,/12+!-+!Z+7$#&+!"(#$.)(!.,(#(!$!-$0&)-([!#$'+#&(#!+!*#/"+!"(#(!o aldeamento do Doce, onde deveriam ser reunidos tambm os que per-maneciam arredios no Itapemirim. No entanto, a contrapartida dos ndios foi incisiva: os do Itapemirim se opuseram frontalmente partida para o Doce e os que foram alojados na ilha do Prncipe6 permaneceram no local por quatro longos meses. Um grande impasse se instalou entre os ndios $!(%!(/'+#)-(-$%F!G/$!0^$#(5!-$!'/-+!"(#(!)5"$-)#!%/(%!5+7)5$&'(1]$%!pela capital, isolando-os na ilha. Mesmo com despesas extraordinrias e grande vigilncia do Governo, o grupo tentou evadir-se do local por trs vezes.

    Dentre as razes para a longa permanncia dos ndios na ilha do Prncipe, certamente estava o empecilho nas negociaes, j que os ndios 4/%.(7(5!+!#$'+#&+!"(#(!+!%/,F!+"+&-+L%$!0#5$5$&'$!f!0\(12+!&+!H+.$!.+5+!G/$#)(5!+%!6"(.)0.(-+#$%8!G/$!-)%./')(5!%$/!-$%')&+@!K!,Y*).(!-$%'$!.+&9)'+!

  • 58 Programa de Ps-Graduao em Histria - UFES

    e a aproximao das vilas mais populosas e centrais da Provncia expem comportamentos que no estavam pautados apenas em ataques ofensivos, mas tambm por intenes de estabelecer dilogo e alianas que muitas 7$^$%!&2+!>+#(5!)&'$#"#$'(-+%!+/!(.$)'+%!"$,(%!(/'+#)-(-$%@!O(#(!0.(#5+%!com mais um exemplo, em uma correspondncia com o Governo Impe-rial, em 1822, h uma referncia, sem maiores consideraes, ida de =+'+./-+%!6"(.)0.(-+%8!(!d)'Y#)([!

    [...] o obstculo que havia a vencer-se na Povoao de Linhares cita no rio H+.$!$#(!+!*$&')+!(&'#+"Y>(*+!G/$!%$!(.R(!"(.30.+!$!(,*/&%!W?!7)$#(5!f!.(")-tal desta provncia, onde este governo se tem desvelado para que de uma vez 0G/$!(G/$,$!"+&'+!)%$&'+!-(%!)&7(%]$%!-$%'$%!4?#4(#+%F!G/$!%Y!"#+./#(7(5!(!sua total runa, cometendo freqentes hostilidades e por esse motivo se achava estagnada a Cultura e Comrcio [...] (apud Morel, 2002: 94).

    Em Minas Gerais, Mattos (2004: 109) se referiu s no espordi-cas viagens de grupos Botocudos, vindos at mesmo da Bahia, capital provincial e ao Rio de Janeiro: A movimentao de grupos indgenas rumo aos centros urbanos, [...] parece, de fato, constituir um tendncia da mobilizao indgena em todo o perodo provincial. Alm desse explcito meio de reivindicao de direitos e negociao, a autora apontou estratgias dos Botocudos para burlar o controle sobre seu comportamento, como o trnsito entre as diferentes jurisdies administrativas (Minas e Esprito Santo), em busca de autonomia (idem: 218-19).

    Conforme a indicao de Mattos (2004) e o evento aqui analisado da longa presena de um grupo Botocudo em Vitria, podemos concluir que havia uma disposio dos ndios para a mobilizao por seus interesses. Fica explcito que os Botocudos sabiam bem quem, ou quais instncias, de-veriam procurar para expor suas reclamaes e reivindicaes. Recusavam obstinadamente a integrao e submisso colonial oferecida por meio dos (,-$(5$&'+%F!)&%')'/)12+!>/&-(5$&'(,!-+!"#+W$'+!)5"$#)(,!-$!6"(.)0.(12+8!$!civilizao a eles destinado. Mas, em contrapartida, interagiam e conhe-ciam bem a sociedade e a estrutura poltico-administrativa que os rodeava.

    7)-+%*34#'83+!&-#%+

    As resistncias e manifestaes ofensivas dos Botocudos, assim como sua inusitada presena em Vitria entre 1824-1825, aqui tratadas, no cessaram nos anos seguintes no Esprito Santo. Relatos de viajantes e

  • 59DIMENSES . Vol. 21 - 2008cronistas do perodo e, principalmente, a documentao do Governo, ap-resentam vrias referncias sobre a presena dos Botocudos em Vitria e sua recepo pelo Governo. Estes apresentavam sua situao s autoridades e buscavam a negociao de suas perdas, interessados, at certo ponto, nos presentes, ou quinquilharias, que foi comum distribuir entre eles nesse perodo. August-Franois Biard, por exemplo, anotou uma dessas delegaes dos Botocudos junto ao Presidente da Provncia em 1858: [...] receberam camisas e calas, bem como fuzis, plvora e chumbo, ouviram 4$,(%!"(,(7#(%!$!"#+5$%%(%!5(*&30.(%F!G/$!&2+!$#(5!"+#
  • 60 Programa de Ps-Graduao em Histria - UFES

    2 Jos Bonifcio foi convidado por d. Pedro para compor seu ministrio em janeiro de

    1822, tornando-se o mais importante ministro e articulador da Independncia. No entanto,

    pela sua inacreditvel capacidade de colecionar inimigos se indisps com o Impera-

    dor e pediu demisso em julho de 1823, assumindo cadeira de deputado na Assemblia

    Constituinte. Com a dissoluo desta, Bonifcio foi preso e deportado, instalando-se em

    Bordeaux, na Frana (Dolhnikoff, 1998: 16-18).

    3 Dono de longa carreira militar, Julio Fernandes Leo atuou em Minas Gerais como

    alferes do Regimento de Cavalaria e comandante da 7a. Diviso Militar do Rio Doce

    _HjHAhF!,+.(,)^(-(!&+!;$G/)')&R+&R(@!J$*/&-+!Q$Y0,+! '+&)!_`BCoCbF!DllD[!pBhF!w$2+!

    tornou-se comandante geral das DMRD no lado mineiro, liderando ferrenha guerra

    contra os Botocudos. Certamente foi nesse perodo que recebeu a patente de Coronel do

    Exrcito. No Esprito Santo foi nomeado Inspetor do Corpo de Pedestres em 1821 e em

    15 de abril de 1822 assumiu o Comando das Armas da Provncia. Em 1825 foi demitido

    do cargo de diretor no rio Doce aps responder a Conselho de Guerra no Rio de Janeiro.

    4 Todas as informaes que se seguem foram encontradas em documentos manuscritos,

    por ns transcritos, do Livro 30 (Correspondncia recebida pelo Presidente da Provncia

    de diversos quartis, 1815-1832), localizado no Arquivo Pblico Estadual (APE-ES) e

    catalogado no Fundo Governadoria/Srie Acioly.

    5 Mal das bexigas era a denominao comum para as doenas mais mortferas que

    assolaram as populaes indgenas em toda a Amrica, ou seja, a varicela, a rubola e,

    principalmente, a varola. As epidemias da varola cruzaram os oceanos no sculo XVI,

    vindas, sobretudo, da frica. uma doena exclusiva dos humanos, que no tem outros

    vetores, da que sua transmisso e epidemias so causados pelo contato entre diferentes

    elementos humanos (Alencastro, 2000: 120 e 123).

    6 A ilha localizava-se defronte regio central de Vitria. Atualmente, aps a realizao de

    aterros, a antiga ilha est ligada s terras da cidade de Vitria e forma um bairro prximo

    ao centro, cujo nome Ilha do Prncipe .

    Referncias

    Fontes Primrias

    Arquivo Pblico Estadual do Esprito Santo (APE-ES). Fundo Governa-doria/ Srie Acioly. Livro 30: Correspondncia recebida pelo Presidente

  • 61DIMENSES . Vol. 21 - 2008da Provncia de diversos quartis. 1815-1832.

    Biard, Auguste-Franois. =$*> 0!?!/("89.&$*!#"!@%)9($7"!:*.7". 2a. ed. Vitria: Secretria Municipal de Cultura, 2002.

    Deciso Imperial No. 22 de 20/02/1823 (providncias para a civilizao dos ndios na Provncia do Esprito Santo). In: Cunha, Manuela Carneiro da. Legislao Indigenista no sculo XIX: uma compilao (1808-1889). So Paulo: Edusp, 1992, p. 103.

    Deciso Imperial No. 85 de 24/05/1823 (providncias para o tratamento dos ndios na Provncia do Esprito Santo). In: Cunha, Manuela Carneiro da. Legislao Indigenista no sculo XIX: uma compilao (1808-1889). So Paulo: Edusp, 1992, p. 106.

    Decreto Imperial No. 102 de 05/05/1824 (declara que a concesso de ses-marias devem ser feitas somente nas margens do rio Doce). In: Cunha, Manuela Carneiro da. Legislao Indigenista no sculo XIX: uma compi-lao (1808-1889). So Paulo: Edusp, 1992, p. 116.

    Notcias sobre os diversos objectos encontrados nas actas das sesses do Conselho do Governo. In: Oliveira, Jos Joaquim Machado de (org.). Notas, apontamentos e notcias para a histria da Provncia do Esprito Santo. Revista do IHGB, tomo XIX. Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert, 1856, p. 239-244.

    '+&)F!Q$Y0,+@!V+'3.)(!%+4#$!+%!%$,7(*$&%!-+!j/./#)!$5!/5(!.(#'(!-)#)*)-(!"$,+!J#@!Q$Y0,+!=$&-)'+! '+&)!(+!J#@!H#@!;+(G/)5!j(&/$,!-$!j(.$-+!$5!31 de maro de 1858. In: Duarte, Regina Horta (org.). Notcia sobre os selvagens do Mucuri. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 39-94.

    Regulamento para a civilizao dos ndios Botocudos nas margens do rio Doce de 28/01/1824. In: Oliveira, Jos Joaquim Machado de (org.). Notas, apontamentos e notcias para a histria da Provncia do Esprito Santo. Revista do IHGB, tomo XIX. Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert, 1856, p. 222-224.

    Saint-Hilaire, Auguste de. Viagem ao Esprito Santo e rio Doce. Belo Horizonte/So Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1974.

    Silva, Jos Bonifcio de Andrada e. Apontamentos para a civilizao dos ndios bravos do Imprio do Brasil (1823). In: Dolhnikoff, Miriam (org.).

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    AZEVEDO, Clia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginrio das elites sculo XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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    ______. Antropologia do Brasil: mito, histria, etnicidade. So Paulo: Brasiliense, 1978.

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    PARASO, Maria Hilda B. Os Botocudos e sua trajetria histrica. In: Cunha, Manuela Carneiro (Org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP, 1992, p. 413-430.

    RUBIM, Braz da Costa. Memrias histricas e documentadas da Provncia do Esprito Santo. In: Revista do IHGB, Typ. de D. Luiz dos Santos, Rio de Janeiro, tomo XXIV, p. 171-351, 1861.

    SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil (1870-1930). So Paulo: Companhia das Letras, 1993.