Outras farpas.primeira edição

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Informativo Cultural OUTRAS FARPAS Ano I Nº 01 Contato: [email protected] LEITOR DE BOM SENSO, APROXIMA-TE E VÊ Temos um objeto importante em mãos, e com ele podemos rasgar as entranhas da ignorância e iniciar uma nova fase em nossas relações interpessoaisPágina 02 LITERATURA E OUTRAS FARPAS Achega-te, pois, a nós de olhos e ouvidos bem abertos. Seremos para teus olhos lanternas na escuridão; sussurraremos em teus ouvidos gritos do passado e do presente e um dia, de surpresa, perceberás que plantamos uma farpa em tua mente! Página 04 Entre o Sublime e o Abjeto crianças nascidas através de cópulas sobre papelões catavam para seus pais (algozes de suas vidas), novos papéis e jornais para cruzamentos ordinários. Página 03 Os comentários de uma mulher do prazer... Sexual. Hetero. Maior. Página 06 Quando o cinema surgiu, acreditou- se na possibilidade de uma captação fidedigna da realidade[...] o cinema materializaria de forma imparcial o desejo do "congelamento de instantes"Página 08 AINDA NESTA EDIÇÃO... Os relatos de uma pesquisadora ............................................................................................... Página 05. IMPÉRIO DOS SENTIDOS: Uma farpa cinematográfica .................................................... Página 07. SOPA DE FARPA: Nova culinária para um novo milênio .................................................... Página 09.

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Informativo Cultural

OUTRAS FARPAS

Ano I –Nº 01 Contato: [email protected]

LEITOR DE BOM SENSO,

APROXIMA-TE E VÊ “Temos um objeto importante em mãos, e com ele podemos rasgar as entranhas da ignorância e iniciar

uma nova fase em nossas relações interpessoais”

Página 02

LITERATURA E OUTRAS FARPAS

Achega-te, pois, a nós de olhos e ouvidos bem abertos. Seremos para teus olhos lanternas na escuridão; sussurraremos em teus ouvidos gritos do passado e do presente e um dia, de surpresa, perceberás que plantamos uma farpa em tua mente!

Página 04

Entre o Sublime e o Abjeto “crianças nascidas através de cópulas sobre papelões catavam para seus pais (algozes de suas

vidas), novos papéis e jornais para cruzamentos ordinários.”

Página 03

Os comentários de uma mulher do prazer...

Sexual. Hetero. Maior. Página 06

“Quando o cinema surgiu, acreditou-

se na possibilidade de uma captação

fidedigna da realidade[...]

o cinema materializaria de forma

imparcial o desejo do "congelamento

de instantes"”

Página 08

AINDA NESTA EDIÇÃO...

Os relatos de uma pesquisadora ............................................................................................... Página 05.

IMPÉRIO DOS SENTIDOS: Uma farpa cinematográfica .................................................... Página 07.

SOPA DE FARPA: Nova culinária para um novo milênio .................................................... Página 09.

Page 2: Outras farpas.primeira edição

Leitor de bom senso, que

folheia este pequeno

material, aproxima-te e vê.

Por: Manoel das Neves*

Chega mais perto, não há o que

temer. Aproxima o papel do teu

rosto e nota que a xérox ainda

está quente. São as Outras

Farpas, feitas por aqueles

mesmos jovens de outrora - hoje

mais pesados e menos cabeludos

-, que vêm buscar mais uma vez a

tua atenção, pois, indignados

escrevem e escrevem. Jovens que

ainda não perderam de todo a

energia surgida nas revoluções

hormonais, a energia que

propulsiona a típica vontade louca

e burra de mudar o mundo por se

sentirem incomodados com as

coisas tal como estão.

Acobertam-se desta vez sob o

manto inspirador do escritor Eça

de Queiroz, esperando deste a

sua benção, e o fazem ao ousar

denominar de farpas o resultado

deste trabalho.

Para que todos saibam, As Farpas

foi o nome dado por Eça,

juntamente com o seu amigo

Ramalho Ortigão à publicação

lançada pela dupla em Portugal a

partir do ano de 1871, onde a

ironia e o riso desleixado não

encontravam fronteiras nem

respeitavam autoridades e

costumavam incomodar muita

gente, como incomodam as

farpas, tendo seus arranhões

alcançado até o Brasil. Uma parte

destes textos pode ser facilmente

encontrada no site

www.dominiopublico.gov.br,

compilada sob o título Uma

Campanha Alegre, uma espécie

de resgate dos textos de Eça de

Queiroz. O restante vai requerer

do leitor uma busca um pouco

mais apurada.

Porém, as farpas que o leitor

agora possui são outras, assim

como outros são os nossos

tempos. Não que uma

considerada parte daqueles

magistrais comentários não

possam ser aplicados aos nossos

dias e que a língua não coce para

que saiamos às ruas a gritar que

o país perdeu a inteligência e a

consciência moral e que a prática

da vida tem por única convicção a

conveniência, atestando todo o

brilhantismo do autores

portugueses e os escolhendo

como nossos profetas.

Poderíamos sim, e ainda

estaríamos causando os nossos

arranhões. Mas a vida

contemporânea nos presenteou

também com outros espaços,

onde podemos introduzir o nosso

arame e por lá deixar a nossa

marca.

Já não nos basta “bater de frente”

como fizemos anteriormente

através dos meios virtuais, em

textos retirados dos mares do

sarcasmo – alguém ainda se

lembra de um certo site?. Hoje

existe a necessidade de re-

construir e acrescentar,

aproveitando a existência de

espaços vazios para lançar as

nossas discussões. Talvez nem o

mais pessimista pudesse afirmar

que viria a ser uma farpa o

simples fato de se comentar

despretensiosamente sobre

literatura, cinema, música,

comportamento e outros assuntos

no promissor ambiente

universitário, mas olhamos

espantados a nossa volta e a falta

de iniciativa, de diálogo, do bom

e velho álcool, da influência

maligna do próprio satã é

chocante.

O pragmatismo exacerbado, que

por vezes sem que saibamos

penetra nossos poros e toma de

assalto o nosso ser, não deve

transformar esta etapa de nossas

vidas num frio corredor onde

cada um de nós leva certo tempo

para atravessar, sem sequer olhar

para os lados, sem escutar o que

o outro tem a dizer e a

acrescentar em nossas vidas. Eis o

motivo e eis também o veículo.

Perde esse medo, caro leitor, vem

nos conhecer e permite que te

conheçamos também.

Temos um objeto importante em

mãos, e com ele podemos rasgar

as entranhas da ignorância e

iniciar uma nova fase em nossas

relações interpessoais,

principalmente nós estudantes.

Que ao virar a última página deste

protótipo, leitor de bom senso,

paire em teu ser algum tipo de

excitação, e que te sintas

motivado a caminhar junto

conosco, buscando meios de

efetivar esta idéia, criando uma

ferramenta de informação e

transformação.

Um forte abraço.

___________________________

*Manoel das Neves – Durrel -

Graduando do curso de Direito da

Universidade do Estado da Bahia –

UNEB – CAMPUS XV – Valença.

(e-mail: [email protected])

Page 3: Outras farpas.primeira edição

ENTRE O SUBLIME E O

ABJETO

Por: Acton Lobo*

Caminhava silenciosamente,

atento aos meus pensamentos e a

lenta chegada do crepúsculo. O

céu diante dos meus olhos impôs

uma hipnótica transição de cores

ao Centro da Cidade. Mais um dia

chegara ao fim, e, todos que

transitavam naquele momento,

em um ir e vir quase que infinito,

desejavam somente encontrar os

seus lares, as suas novelas

preferidas ou, na melhor das

hipóteses, algumas horas de

sadio entorpecimento em um bar.

Inconscientemente, a sensação de

missão cumprida pulsava em cada

um, pois, estava findando mais

um ciclo: Acordar, trabalhar e ir

para casa descansar.

A medida que avançada pela

Avenida Sete, diálogos alheios

tomavam as minhas reflexões de

assalto: Uns queixavam-se da

situação econômica do país,

outros, mostravam-se perplexos

com a crescente onda de

violência, culpando o governo, a

televisão e a falta da união

familiar por tais situações. Entre

as várias conversas “içadas” pelo

meu silêncio, unânime somente

era a solução para tais

infortúnios. Ao “onisciente,

onipresente e onipotente” restava

o desafio de corrigir todas as

mazelas humanas existentes e

que muitos, aqui entre nós, se

divertiam em dar formas, cores e

contornos.

Cada vez mais sereno, encontrava

no ar frio os elementos furtivos

de uma indolente existência,

enquanto a encantadora cidade

ganhava novas tonalidades,

personagens e diálogos, assistia a

transformação de antigos casarios

- outrora imponentes mansões -,

em um desprezível registro de

uma fase áurea, esquecida

atualmente por todos.

Testemunhava o vagaroso e

pestilento caminhar de fantasmas

anônimos, estes, por sua vez,

resignados pela fome e por

incontáveis desgraças que os seus

respectivos espíritos carregavam.

A noite trazia consigo uma nova e

indesejada dinâmica ao olhar

comum.

Criaturas subumanas surgiam

com seus trapos chamados de

vestes, enquanto, crianças

nascidas através de cópulas sobre

papelões catavam para seus pais

(algozes de suas vidas), novos

papéis e jornais para cruzamentos

ordinários. O sublime dava

passagem ao abjeto, enquanto o

Sol era engolido pelo horizonte. O

degradante de nossa sociedade

estava ali: correndo, catando lixo,

carregando suas proles

indesejadas, multiplicando-se

como ratos e incomodando a

metafísica serenidade das pacatas

e gélidas vidas de quem circulava

por aquela avenida.

O lento precipitar de uma chuva

fina enriqueceu a paisagem do

Centro, escondendo os passantes

sob incômodos guarda-chuvas.

Indivíduos, pensamentos, anseios,

preocupações, ódios, frustrações

amorosas, projetos de vida

indefinidos, objetivos cancelados

e perversões inomináveis

caminhavam agora encolhidos e a

passos largos, negando e

repudiando o que estava

nascendo em cores disformes,

mas com vida e forte pulsação.

Uma nova Salvador surgia das

ruas transversais e becos

imundos, sob o vento frio e da

calma garoa que iniciava o seu

efusivo espetáculo.

O queimar do filtro do cigarro

despertou-me daquela reflexão

atordoante e subitamente o

“transe” chegou ao fim. Diante da

melancólica chuva que se iniciava,

um único desejo começou a

explodir em meu coração: Pegar

um táxi e ir ao encontro do meu

tranqüilo refúgio, descansar e

encerrar sob os afagos de meu

amor, ao som da voz “etérea,

flexível e levemente rouca” de

Billie Holiday, mais um ciclo.

E assim, esquecia-me do Abjeto...

___________________________

*Acton Lobo é licenciado em

Geografia pela Universidade do

Estado da Bahia – UNEB – Campus

V. Atualmente reside em Salvador.

(e-mail: [email protected])

Page 4: Outras farpas.primeira edição

LITERATURA E “OUTRAS

FARPAS”!

Por: Jean Michel F. Santos*

Já faz algum tempo que a

literatura tem servido de fonte

privilegiada para análise do social.

Muitos pensadores das ciências

humanas e sociais têm se debruçado

nos documentos literários em busca

de respostas para suas indagações,

pois, com o surgimento de novas

metodologias de abordagem, fica cada

dia mais claro que os relatos deixados

por literatos têm muito mais a nos

dizer sobre a sociedade em que estes

viveram do que se supunha. A

literatura apresenta-se então, sob

essa nova perspectiva, como produto

de uma realidade social, por

conseqüência passível de

decodificação.

A ciência histórica talvez seja

a área em que o texto literário venha

sendo abordado de forma mais

frutífera nas últimas décadas.

Principalmente a partir da década de

70 do século XX muitos historiadores

têm lançado mão do documento

literário como fonte principal de seus

trabalhos. Nomes como os de Pierry

Bourdieu, Robert Darnton, Roger

Chartier são representativos no que

diz respeito aos diálogos que história

e literatura vêem travando. No Brasil

esse processo deu-se de forma mais

significativa a partir da década de

1990, tendo nomes como os de

Sandra Jatahy Pesavento, Nicolau

Sevcenko, Roberto Schwarz, Sidney

Chalhub, dentre outros, entre os

defensores da literatura como fonte

para trabalhos historiográficos.

Paciência. Essa nota

introdutória sobre a importância que a

literatura vem galgando como fonte

ante as ciências que analisam o

passado é apenas um estratagema

retórico para dar vazão à reflexão

chave do presente artigo: Ora, se a

literatura tem tanto a nos dizer sobre

o passado, não teria, pois, muito a

nos dizer também sobre o presente e

conseqüentemente sobre nossas

expectativas futuras? Creio que sim! E

antes que algum polvo metafísico

venha tentar repousar seus tentáculos

sobre meu discurso, deixo de

antemão claro que à minha crença ele

nada tem a dizer. Já o vejo fugir,

deixando para trás apenas a mancha

negra da sua vergonha e desespero.

Não vos assusteis, portanto,

apressado leitor, desse tão novo e já

fugidio século XXI, pois não

perturbarei vosso atribulado e

rendoso dia com informações sobre

algo deveras enfadonho e

desnecessário com é nossa história.

Procedendo dessa maneira estaria tão

desajustado ao nosso tempo, como

estavam desajustados o poeta e seu

halo no lodaçal de macadame.

É, porém, no desajuste que

reside o cerne da questão: a farpa que

se acomodou tão desagradavelmente

entre a unha indolor da ilusão

federativa e a carne mestiça e dolorida

do povo da nação. E quem percebeu a

farpa e seu incômodo antes dos

literatos? Ninguém poderia tê-la

percebido antes deles, já que foram

eles próprios que a introduziram ao

notarem a distância gritante das

ideologias para a realidade. E quando

se tornou tácito que a ideologia, que

aqui chamamos unha, fora de forma

tão estanque selada à realidade que

aparentemente passou a compor

também essa realidade, veio a mente

livre dos literatos e cravou entre

ideologia e realidade a farpa da

dúvida, que é a centelha de toda nova

criação! A farpa é, pois, um incômodo

na suposta paz entre unha e carne; a

farpa é um aviso; a farpa é uma

tomada de consciência e um presságio

para o novo!

No entanto, a farpa que, uma

vez introduzida produz muito

incômodo, pode, todavia, com o

passar do tempo e a regeneração

lenta das carnes machucadas,

principalmente em organismos fortes

(e nós sabemos o quão, fortes e

adaptáveis, são as hipócritas e

mesquinhas ideologias que sustentam

o “desajuste” nacional),

paulatinamente perder seu caráter

incomodativo e passar despercebida,

apenas como uma lembrança vaga e

desbotada do passado.

Talvez seja isso que tenha

acontecido com os avisos de Gregório

de Matos, Lima Barreto, Pedro

Kilkerry, Chavier Marques, Graciliano

Ramos e tantos outros literatos mais

atentos às realidades contraditórias

que às ideologias apaziguadoras. Hoje

muitos se voltam para esses

“farpadores” e tentam ouvir nas

emaranhadas teias da [re]constituição

historiográfica os ecos dos gritos que

suas farpas provocaram. Porém, fica o

alerta para que estejamos atentos a

outras farpas que virão. Achega-te,

pois, a nós de olhos e ouvidos bem

abertos. Seremos para teus olhos

lanternas na escuridão; sussurraremos

em teus ouvidos gritos do passado e

do presente e um dia, de surpresa,

perceberás que plantamos uma farpa

em tua mente!

____________________________

*Jean Michel F. Santos é licenciado em

História pela Universidade do Estado

da Bahia – UNEB – Campus V,

Mestrando em Cultura, Memória e

Desenvolvimento Regional também

pela UNEB – Campus V e Graduando

do curso de Direito da UNEB – Campus

XV. Atualmente reside entre Valença e

Santo Antonio de Jesus.

(e-mail: [email protected])

Page 5: Outras farpas.primeira edição

Relatos de uma pesquisadora

Por: Andréa Barreto Borges de Souza *

Há quase dois anos, estou vivendo um

relacionamento intenso. Sim, quase

um casamento e, como tal, com suas

crises, momentos de amor, brigas,

conflitos, insônias... Ah! Estou me

referindo a esse momento louco de

produção da dissertação de Mestrado.

É louco mesmo e assim deve ser: já

ouvi professores doutores na coisa

dizendo que na seleção de Mestrado

deveria haver teste psicológico...

porque os certos não deveriam entrar.

E eu concordo. Mas nem adianta

tentar explicar demais, quem viver

essa situação, verá.

O meu tema de pesquisa já me rendeu

até um apelido carinhoso, ou talvez

irônico, dos meus colegas: Menina de

rua. Não que eu trabalhe diretamente

com esses sujeitos. Meu interesse,

na verdade, são os sujeitos, hoje

adultos, que viveram parte de sua

infância e adolescência nas ruas de

Santo Antonio de Jesus. Digamos,

minha pesquisa está voltada para (ex)

meninos de rua. Interessa-me as suas

memórias sobre a rua e como estas

influenciam na construção das

identidades.

A inquietação diante desta temática

surgiu, caro leitor, enquanto eu fazia

parte do Conselho Tutelar de Santo

Antônio de Jesus. Lá, comecei a ver

que, na tentativa de cumprir o que

rege o ECA _ Estatuto da Criança e do

Adolescente, eram criados muitos

projetos voltados para crianças e

adolescentes. Mas uma angústia

sempre permanecia: o que acontece

com os sujeitos que completam a

maioridade? Se o ECA não mais exige

atenção e proteção depois dos 18

anos completos, para onde vão, o que

sentem o que pensam os sujeitos,

especialmente aqueles que passaram

um tempo nas ruas e depois foram

atendidos nas instituições?

O nosso desafio não foi apenas

localizar os (ex) meninos de rua, ouvir

suas memórias, compreendê-las...

Isso porque nós buscamos

compreender a realidade pesquisada

por meio dos discursos dos sujeitos

da pesquisa. O discurso não é uma

trilha plana, reta e onde se vislumbra

um fim previsível e transparente; ao

contrário, os caminhos serão

tortuosos e deslizantes, pois são

múltiplos os seus territórios. Os

dizeres não são tramas pré-

estabelecidas. São possíveis pelos

movimentos da história e das

condições de produção. As palavras

não são transparentes...

Eu vos confesso que compreender os

discursos daqueles que já viveram nas

ruas tem sido um desafio. Os sentidos

são múltiplos. Há memórias

discursivas que derivam do contato

com a polícia, com a família, com

igrejas (a maioria das instituições são

mantidas por igrejas católicas ou

protestantes), centros de

ressocialização para adolescente

infrator, dentre outras instituições.

Nessas memórias, há a idéia de que

“menino de rua” é o “trombadinha”, o

“pivete”, o “malandro”, é um sujeito

que incomoda, atrapalha, suja a

cidade. Por isso, nos discursos

produzidos, os entrevistados já não

querem identificar-se com a vida de

“menino de rua”. Querem ser

“cidadãos de bem”, aqueles que

trabalham, contribuem de maneira

produtiva e não mais incomodam as

“autoridades da cidade”.

Pelo menos por um motivo eu me

sinto realizada até agora: se esses

sujeitos que eu entrevisto eram

silenciados até agora, eles estão tendo

a chance de falar. Muitos poderão

dizer que se tratam apenas de

pessoas que repetem um discurso

burguês, já que consideram que

precisam trabalhar e ser homens de

bem. Mas há no discurso as formas de

resistência, outros sentidos que

precisam ser compreendidos. Os

inconformismos diante da exclusão,

dos preconceitos sofridos, dos

estereótipos... Mas eu não vou contar

tudo agora, até mesmo porque eu

ainda estou trilhando os caminhos

desta pesquisa, estou tentando

descobrir os silêncios e as vozes

sobre a rua...

Enquanto isso, eu continuo aqui com

meus conflitos, certezas e incertezas.

E estas são bem melhores.

___________________________

*Andréa Barreto Borges de Souza é

Mestranda do Programa de Pós-

Graduação em Cultura, Memória e

Desenvolvimento Regional da

Universidade do Estado da Bahia –

UNEB.

(e-mail: [email protected])

Page 6: Outras farpas.primeira edição

Mulher rodada,

experimentada e

vivida comenta.

Nada científico.

Por: Patrícia So

Pensei, repensei, procurei,

fiquei doida e não encontrei

jeito de começar isso. Vai

do jeito que deu mesmo.

Fui convidada a falar do

que significa uma primeira

vez para uma mulher. Aqui

vai a minha.

Na verdade, sou cheia de

primeiras vezes. A primeira

transa, a primeira estria

visível, a primeira lingerie

sexy, o primeiro homem de

barriga verde, enfim,

muitas primeiras vezes a

contar. Ah, se começo aqui

a falar de todas elas, logo

meus queridos leitores

largariam esta folha. Seria

realidade demais, demais.

Atentar-me-ei então ao

primeiro encontro. Sexual.

Hetero. Maior.

Na condição de mulher

livre, desinibida e um

pouco acima do peso,

sempre fui irresistível aos

olhares masculino-

selvagens. Eles adoravam

minha inteligência, meu

olhar de cobra-coral (assim

me apelidou um amigo-

com-toque) e minha

deliciosa voz de nordestina

boa de cama. Eu era um

sucesso.

Só tinha um problema: eu

era virgem. Uma virgem

sexy, tudo bem, mas uma

virgem. Esse detalhe me

impediu de usufruir de

tantos homens

maravilhosos que conheci

nessa época, que só de

lembrar hoje, dá dor no

coração (e um arrepio no

meio das coxas).

Como toda boa virgem, eu

era louca pra me perder. Só

que ainda tinha essas

bobagens de cara certo,

amor, relação estável, etc.,

esses detalhes bestas que a

gente cria pra adiar os

prazeres. Porque sexo, hoje

eu sei, é pura felicidade.

Eu até tinha um namorado,

bonitinho e com uma

bundinha deliciosa, mas

tesão que é bom, nada.

Acabei tendo minha

primeira vez com o amigo

que me apelidou de coral.

Foi bom, diferente do

esperado, meio doloroso e

viciante. Nunca mais

larguei. O sexo né, porque

o cara já era.

E é exatamente isso que

uma primeira vez é para

mim. Sempre diferente, um

convite ao novo, ao nunca

experimentado, ao prazer,

se bem que às vezes pode

levar a algo ruim (como o

primeiro empréstimo

bancário para quitação da

casa onde vai morar com

um marido que depois de

um tempo não irá comê-la

mais e ainda a trairá com

sua prima gostosa). Eu

recomendo as primeiras

vezes, mas com cuidado.

Permita-se conhecê-las,

lambuze-se delas, mas não

seja burro. A pressa é

inimiga da ereção.

Então, já que dei todas as

dicas de primeira, você já

pode começar planejar a

segunda, que sempre é

melhor, a terceira, nem se

fala, e por aí vai. Quando

perceber, já vai ter virado

uma pessoa rodada,

experimentada e vivida,

assim como eu.

Risos.

Page 7: Outras farpas.primeira edição

O IMPÉRIO DOS

SENTIDOS

Direção: Nagisa Oshima.

Ano: 1976.

País: França, Japão.

Por: Caio Dimitri,

Visceral e revolucionário, o

Império dos Sentidos é

constantemente citado como

uma das mais importantes

obras eróticas do cinema

mundial. A história de Sada,

uma ex-prostituta que ao ser

contratada por Tikisan, senhor

de uma propriedade, inicia

uma viagem pela busca

incessante e insaciável do

prazer, vai muito além das

cenas de sexo predominantes

no filme.

Ambientado na década de 30

e lançado nos anos 70, é um

filme que rompe com o

conservadorismo milenar da

sociedade japonesa,

introduzindo no cinema

oriental uma nova perspectiva

de análise das relações

humanas, sobretudo as

paixões que permeiam e

sobrepujam todo o decoro

moralista, não só da sociedade

nipônica, mas também do

mundo ocidental.

O diretor, Nagisa Oshima,

fugindo de qualquer

linearidade, utiliza-se do sexo

para dissecar e expor,

incisivamente, as relações

humanas naquilo que mais se

aproximam do estado natural,

das loucuras, quando da busca

ilimitada pela realização dos

desejos mais escusos e

condenáveis pela sociedade

hipócrita.

A aparente relação de amor

entre os protagonistas

desmancha-se na necessidade

quase que vital do sexo, e

Tikisan se vê cada vez mais

envolvido pela insaciabilidade

de Sada. O sexo é tratado sem

nenhum pudor, como deve

ser, diga-se de passagem. As

cenas mostram desde um

defloramento grupal até a

introdução de um ovo na

vagina que logo depois é

ingerido. De tão incansáveis, a

relação desgasta-se e nada

mais parece satisfazê-los a

não ser a dor, inclusive nas

várias tentativas de

enforcamento durante o coito,

culminando na cena final do

filme, em que Sada castra

Tikisan.

Enfim, longe dos clichês do

gênero, “O Império dos

Sentidos” mescla elementos do

drama e do romance para

romper com um falso

moralismo e expor as relações

interpessoais de maneira crua,

visceral.

____________________________

*Caio Dimitri é graduando do

curso de Direito da

Universidade do Estado da

Bahia – UNEB – Campus XV.

Atualmente reside em Valença.

Page 8: Outras farpas.primeira edição

O OLHO DA FARPA

Um cisco no olho, uma "farpa na mente"

Por: Leandro Santos Bulhões de Jesus

O ser que contempla uma paisagem a torna possível pelo enquadramento do olho. Não existe um olhar puro que possa traduzir uma dita realidade, por isso, as impressões que se têm a partir das visibilidades estarão sempre relacionadas ao universo cultural sob o qual o espectador está inserido.

Quando o cinema surgiu, acreditou-se na possibilidade de uma captação fidedigna da realidade. Numa cadência histórica de tentativas de representação do real, que vem desde os desenhos das cavernas, esculturas, teatro de sombras, pinturas, xilogravuras, iluminuras, fotografia, o cinema materializaria de forma imparcial o desejo do "congelamento de instantes".

No entanto, o processo de popularização deste engenho é também explicado pelo fascínio que os seres humanos têm pela ilusão (captação, manipulação, representação) da realidade. Logo, ele vai se tornar um dos maiores símbolos da modernidade e do lazer e, da mesma forma, um poderoso instrumento de veiculação e propagação ideológica daqueles que o produzem, financiam e distribuem.

Tendo como marco sua primeira exibição no ano de 1895 num porão, em Paris, pelos Irmãos Lumière, a história do século XX se confunde com a sua. Este invento passou a permitir às futuras gerações um poder até então atribuído aos deuses, pois, depois da câmera, as pessoas podem ver projetados acontecimentos, representações, personagens, destacados ou anônimos da história, num teatro de conveniências.

Hoje, mais de cem anos depois de seu lançamento, as fábricas de ilusões multiplicaram-se, potencializaram-se, e o próprio cinema traz estas questões. A trilogia Matrix, por exemplo, levanta problemas acerca do poderio da manipulação da realidade por meio da construção de uma sociedade

programada e controlada por inteligências artificiais.

Em Matrix, há um mundo projetado diante dos olhos das pessoas de modo que não possam constatar suas condições de escravos, nascidos num cativeiro, encarcerados num tipo de prisão que não se consegue sentir ou tocar: a prisão da mente.

Mesmo lançado há quase dez anos, as idéias propostas em Matrix atualizam as discussões que se referem às concepções do real, à ordem, aos referenciais que constituem o universo material e simbólico que estamos envolvidos.

Fazendo-nos pensar sobre o estado das coisas que nos rodeiam e sobre os limites de nossa autonomia, é possível estabelecer uma ponte também sobre o poder que o cinema exerce na sociedade, esta hoje, considerada por diversos campos do conhecimento, como marcada por uma cultura audio-imagética. Não basta afirmar que o cinema, ou que as imagens, como a fotografia, as charges, as pinturas, os outdoors, as campanhas publicitárias, dentre outras, têm influenciado a sociedade, que ditam regras, modas, mudam costumes, vícios, tradições. Faz-se necessário refletir de que forma isso se torna possível.

Ao longo do século XX, as sociedades industrializadas investem no desenvolvimento de uma cultura de massas e os novos meios de comunicação, como o cinema e o rádio, serão utilizados como armas políticas tão poderosas quanto qualquer outro instrumento bélico. Quando o cinema se desenvolve e se desenvolvem também as técnicas, sobretudo tendo como pano de fundo as possibilidades lucrativas do invento, a sedução às massas se dá a partir da inserção de temas populares que teriam uma rápida identificação com o espectador através das representações. Nesta perspectiva, o sistema propagandístico terá seu pilar calcado na extensão de interesses ligada à magia, graça e fascínio reelaborados agora pela arte cinematográfica. Hitler, por exemplo, utilizou-se bastante dessa estratégia no processo de hegemonia nazista na Alemanha na década de trinta, o que pode ser percebido a partir

da análise das obras financiadas em seu governo, onde se destaca a documentarista oficial do partido nazista Leni Riefenstahl.

Hoje, mesmo cercados por todos os lados de materiais visuais, ainda são escassas as formas de leitura dessas linguagens, até mesmo porque, durante muito tempo, teóricos de diversas áreas do conhecimento, negligenciaram as possibilidades de interpretação da sociedade por meio de "fontes para além do papel", algo que já está mudando.

Estarmos atentos às questões ideológicas presentes nos discursos que emanam dos materiais visuais é um dos desafios de nossa época que já constatou o poderio dessas linguagens, sem, no entanto, ter desenvolvido instrumentalizações sofisticadas de interpretações, afinal, quando e como ler as imagens e utilizá-las de forma cognitiva, sobretudo para além do ambiente acadêmico?

A utilização do cinema na sala de aula e a incorporação de diferentes linguagens no processo ensino/aprendizagem, bem como a existência de cineclubes permite avanços destas questões.

Não tomar como verdadeiro as proposições apresentadas pelo mundo dado, significa estar com uma "farpa na mente", tal como Morpheu diagnostica o mal-estar de Neo frente às incompreensões do mundo instituído da Matrix. Não podemos esquecer que as formas de questionamentos da sociedade que fazemos parte perpassam também pelas representações visuais das quais produzimos e consumimos cotidianamente, e que os exercícios de desconstrução e dessacralização do potencial discursivo das imagens, funciona tal qual um cisco em nossos olhos, quebrando a calmaria engendrada por um caleidoscópio, que, a priori, apresenta-se como ideal, verdadeiro e conformador.

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* Leandro Santos Bulhões de Jesus é graduado em História e mestrando em Cultura, memória e desenvolvimento regional - UNEB Campus V.

(e-mail: [email protected])

Page 9: Outras farpas.primeira edição

SOPA DE FARPA

Cocina española casera

Por: Las Loras.

Aconteceu de repente:

“Vamos comer amanhã, aí!”

Que almoço agradável! As

coisas e as idéias se fundiram

com mágica. Entradas com

Josefina, farofa, tomates.

Éramos cinco, em volta de

uma mesa no quintal de casa.

Cigarros, cervejas, e

Mercedez Soza criaram um

cenário propício para nossas

conversas, atualizações e

risos. Em cima da mesa:

“Cocina española casera”.

Uma deliciosa Carne de

Cerdo (carne de porco). Nos

fez recordar uma cena do

filme VOLVER de Amodóvar.

Na cena, Raimunda cozinha

para um grupo de 30 pessoas

que estavam rodando uma

“película”. Éramos cinco, entre

estudantes e amantes da boa

cozinha, da música e de

filmes que nos inspiram até na

hora de cozinhar. Pensava na

boa cena que ali tínhamos,

nos enquadramentos, em

nossos instantes mais

dramáticos do nosso bate-

papo, no melodrama de

alguns... A arte imitava nossa

vida.

Santo Antonio de Jesus como

todos sabem, é uma cidade

repleta de restaurantes ou de

apenas lugares que se paga

para comer, o que nos obriga

a transformar a casa dos

amigos em espaços de

bebedeira, boemia,

intelectuais e simpatizantes,

adoradores de Baco e

degustadores insaciáveis (o

que é de fácil aceitação por

parte dos donos da casa).

E ai, coitada de mim que sem

grana tenho que alimentar

periodicamente essas mentes

incapazes de desfrutar e até

reconhecer o talento

gastronômico dos emergentes

moradores dessa cidade.

Enfim, sinto-me na obrigação

de passar para os leitores

desse jornal, uma receita

saboreada, lambida,

mastigada e aprovada por

esse grupo tão seleto. Esse

grupo, que são os meus

amigos, esse bando de

insensíveis.

Ai vai a fantástica receita.

Observações valiosas: A

carne de suíno está na moda,

é mais barata que a carne

bovina e, além disso, é

sofisticado saborear bisteca

de porco com ervas finas.

1 kg de costela de porco

1/2 kg de batatas

3 cebolas grandes

3 dentes de alho

Azeite extra virgem ou azeite

de oliva simples

Pitadas generosas de alecrim,

tomilho e pimenta calabresa

(o alecrim é o carro chefe da

receita. As demais ervas são

substituíveis ou dispensáveis)

Preparo: Tempere a carne

com tempero pronto pra

carnes. Descasque as batatas

e corte-as em quatro, faça o

mesmo com as cebolas, os

dentes de alho descasque-os

simplesmente. Coloque tudo

em uma assadeira, salpique

as ervas e regue com prazer o

azeite. Asse em forno alto até

que a carne fique dourada, em

um tempo aproximado de 40

minutos. Esta delícia pode ser

acompanhada de arroz e

farofa, muito prático!

Dica: saboreiem prazerosamente

depois de um sexo, monogâmico,

à dois ou grupal, de acordo a sua

preferência.