os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

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MANUEL JOSÉ LOPES OS UTENTES E OS ENFERMEIROS: CONSTRUÇÃO DE UMA RELAÇÃO INSTITUTO DE CIÊNCIAS BIOMÉDICAS DE ABEL SALAZAR UNIVERSIDADE DO PORTO PORTO, 2005

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MANUEL JOSÉ LOPES

OS UTENTES E OS ENFERMEIROS: CONSTRUÇÃO DE UMA RELAÇÃO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS BIOMÉDICAS DE ABEL SALAZAR UNIVERSIDADE DO PORTO

PORTO, 2005

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

MANUEL JOSÉ LOPES

OS UTENTES E OS ENFERMEIROS: CONSTRUÇÃO DE UMA RELAÇÃO

Dissertação de Candidatura ao grau de Doutor em Ciências de Enfermagem, submetida ao Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar Orientadora - Professora Doutora Marta Lima Basto Co-orientadora - Professora Doutora Zaida Azeredo

Dissertação de Doutoramento

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Construção de uma relação

0 olhar, O sorriso,

A escuta, As palavras,

As mãos, Os gestos.

O olhar atento, perscruta, indaga, penetra, esquadrinha, inquire, ...

O olhar sereno, é terno, apaziguador, compassivo,...

O sorriso, acolhe, acalma, alegra, ... Complementa o olhar. Converte-se em referência no tumulto do sofrimento. Metamorfoseia-se em esperança no redemoinho do desespero.

A escuta amplia o espaço e o tempo. Dá lugar ao outro. Valoriza o indizível.

As palavras, todas as palavras, tantas palavras ... Indagam o sofrimento,

a dor. Expressam a alegria,

o prazer do reencontro improvável. Explicam o inexplicável,

o indecifrável.

As mãos são de fada, de rigor, de precisão ...

Os gestos são de uma serena harmonia. Quase perfeita.

Os gestos são de partilha, de humana comunhão.

O todo é um concerto de jazz numa noite de verão. (Manuel Lopes, 2005)

Dissertação de Doutoramento

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Os utenlcs c os enfermeiros: Construção de uma relação

À Carmo e ao David,

presenças constantes, indefectíveis fãs,

porto seguro das minhas angústias.

Em memória de meus pais,

marcas indeléveis em mim.

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

AGRADECIMENTOS

Às Professoras Doutoras Marta Lima Basto e Zaida Azeredo, faróis per­

manentes neste meu percurso.

À Doutora Rosemary Crow pelas suas sábias palavras e perspicaz ajuda

e incentivo.

Aos colegas da Academia Europeia de Ciências de Enfermagem, pelos

seus comentários e pelo rasgar de horizontes.

Aos colegas e amigos da UI&DE, companheiros deste percurso, pela

desinteressada e honesta partilha de ideias.

Aos meus amigos e colegas, Professores Gabriela Calado e João Mendes

pelo apoio e incentivo e por partilharem as minhas angústias.

Aos Mestres Fátima Marques, Dulce Cabral, Céu Pinto e João Mendes,

pela sua colaboração no tratamento dos dados.

Á enfermeira Anjos Bento, pelas oportunidades que me proporcionou e

pela arte, humanismo e profissionalismo que, graciosamente, distribui por

todos os que a rodeiam.

Às enfermeiras que participaram neste estudo, pela demonstração diária

e sistemática da sublime arte de cuidar.

A todos os restantes profissionais do serviço onde decorreu o estudo,

co-participantes na arte de cuidar dos outros.

Aos doentes e respectivos familiares os quais, apesar do seu sofrimento,

aceitaram partilhar comigo alguns dos seus sentimentos, experiências e

esperanças.

A todos aqueles que, de uma forma ou outra, contribuíram para a reali­

zação deste trabalho ou me ajudaram, incentivando-me, ao longo deste per­

curso.

Dissertação de Doutoramento = 5

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

RESUMO

Considerando, as características da vivência do diagnóstico de cancro e do

processo de quimioterapia; que os enfermeiros são os profissionais que mais

perto e mais tempo estão com estes doentes durante aquele processo,' que a

enfermagem enquanto ciência humana prática (Strasser, 1985; Carper, 1978),

está em (re)construção constante a partir do modo criativo como os seus pro­

fissionais vão respondendo às solicitações sempre novas de uma realidade

complexa, (e.g., Benner, 2001; Chinn, & Kramer 1999; Schõn, 1998); e o facto

de as teorizações acerca da intervenção relacional dos enfermeiros (e.g.,

Peplau, 1990), não responderem à especificidade da situação atrás apresenta­

da, entendi que tal justificava o desenvolvimento de um estudo que permitis­

se perceber, qual é a natureza da relação entre os enfermeiros e os doentes

oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia.

Face à natureza do problema, optei por uma abordagem de natureza qua­

litativa e indutiva - grounded theory. As técnicas de colheita de dados usadas

foram a entrevista narrativa a todas as enfermeiras (5) e a 10 doentes e res­

pectivos familiares; o focus-grupo ao grupo das enfermeiras; a gravação das

entrevistas de admissão efectuadas pelas enfermeiras; e a observação durante

60 dias, ao longo de cinco meses. Os dados foram analisados de acordo com a

metodologia da análise comparativa constante (grounded theory), daí resul­

tando uma teoria de médio alcance constituída por dois componentes, com­

plementares e interrelacionadas: a natureza da relação e o processo de rela­

ção. O primeiro compreende o "Processo de avaliação diagnostica" e o "Proces­

so de intervenção terapêutica de enfermagem". O segundo (i.e., o processo de

relação), compreende três fases sequenciais: Princípio da relação, Corpo da

relação e Fim da relação. O primeiro, tem o seu momento por excelência

durante a entrevista de admissão, onde a enfermeira desenvolve predomi­

nantemente o "Processo de avaliação diagnostica". O Corpo da relação é

constituído pelo essencial do "Processo de intervenção terapêutica de enfer­

magem". O Fim da relação é a fase de fronteira inicial mais indefinida, mas

é a fase de fronteira final mais definida, correspondendo esta ao fim da rela­

ção, imposto pelo fim do tratamento ou pela morte do doente.

Dissertação de Doutoramento

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Os ulcntcs c os enfermeiros: Construção de uma relação

ABSTRACT

Taking into consideration the characteristics of the way the cancer diag­

nosis and all the chemotherapy processes are faced, that nurses are the pro­

fessionals that accompany closer and longer the patients during the whole

process, tha t nursing as practical human science (Strasser, 1985; Carper,

1978) is under a constant (re)building process due to the creative way the

nursing professionals answer to the new challenges of this complex reality

(e.g., Benner, 2001; Chinn & Kramer, 1999; Schõn, 1998); and the fact that

theorizations regarding the relational nurses intervention (e.g., Peplau, 1990)

do not respond to the specificity of the situation presented, allowed me to un­

derstand the importance to develop a survey to allow the comprehension of

which is the nature of the relationship between the nurses and the cancer

patients under chemotherapy in a day hospital.

Due to the nature of the problem, I opted by a qualitative and inductive

analysis - grounded theory. The data were obtained through narrative inter­

views to all the nurses (5) and to 10 patients and their families; the focus-

group to the group of the nurses! the recording of the admission interviews

made by the nurses; and the observation during 60 days, throughout five

months. The data were analysed according to the constant comparative

method of qualitative analysis {grounded theory), resulting in a middle range

theory constituted by two complementary and interconnected components^

the nature and the process of the relationship. The first component comprises

the "Diagnosis evaluation process" and the "Nursing therapeutic intervention

process". The second (i.e., the relationship process), comprises three sequen­

tial phases: Relationship beginning, Relationship development and the Rela­

tionship conclusion. The first is more important during the admission inter­

view, when the nurse is mainly working in the "Diagnosis evaluation proc­

ess". The Relationship development is predominantly constituted by the

"Nursing therapeutic intervention process". The Relationship end is the

phase with the more undefined beginning border, however, it is the one with

the final border better defined, corresponding to the end of the relationship

caused by the end of the treatment or the patient's death.

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Dissertação de Doutoramento

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Os ulcntes c os enfermeiros: Construção de uma relação

RÉSUMÉ

En considérant, les caractéristiques de l'existence du diagnostique du cancer

et du procès de chimiothérapie; que les infirmiers sont les professionnels qui de

plus près et le plus de temps sont avec ces malades pendant ce procès; que le

métier d'infirmier entant que science humaine pratique (Strasser, 1985; Carper,

1978), est en (re)construction constante à partir du mode créatif comme leurs

professionnels vont répondre aux sollicitations toujours nouvelles d'une réahté

complexe, (e.g., Benner, 2001; Chinn, & Kramer 1999; Schõn, 1998); et le fait des

théorisations concernant l'intervention relationnelle des infirmiers (e.g., Peplau,

1990), n'ont pas répondu à la spécifié de la situation derrière présentée, j'ai en­

tendu que cela justifiait le développement d'une étude qui permettait de com­

prendre, quelle est la nature de la relation entre les infirmiers et les malades

oncologiques soumis à la chimiothérapie dans un hôpital de jour.

Face à la nature du problème, j 'ai opté par un abordage de nature quali­

tative et inductive - grounded theory. Les techniques de récolte des données

usées ont été à l'entrevue narrative à toutes les infirmières (5) et à 10 mala­

des et aux familles respectives; le focus-groupe au groupe des infirmières;

l 'enregistrement des entrevues d'admission effectuées par les infirmières! et

l'observation pendant 60 jours, au long de cinq mois. Les données ont été

analysées en accord à la méthodologie de l'analyse comparative constante

{grounded theory), à partir de là résultant une théorie de moyenne portée

constituée par deux composantes, complémentaires et interrelationées-' la

nature de la relation et le procès de relation. Le premier comprend le "Pro­

cès d'évaluation diagnostique" et le "Procès d'intervention thérapeutique du

métier d'infirmier". Le deuxième (i.e., le procès de relation), comprend trois

phases séquentiels^ Principe de la relation, Corps de la relation et Fin de la

relation. Le premier, a son moment par excellence pendant l'entrevue

d'admission, où l'infirmière développe majoritairement le "Procès

d'évaluation diagnostique". Le corps de la relation est constitué par

l'essentiel du "Procès d'intervention thérapeutique du métier d'infirmier".

La Fin de la relation est la phase de frontière initiale plus indéfinie, mais

c'est la phase de frontière finale plus définie, correspondant celle-ci à la fin

de la relation, imposée par la fin du traitement ou par le décès du malade.

_ - - _ - - _ - - - - - - - - - — - - _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ y Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

SUMÁRIO

0 - INTRODUÇÃO 14

I PARTE: REFERÊNCIAS CONCEPTUAIS 26

1 - JUSTIFICAÇÃO DO ESTUDO 28

1.1-RAZÕES PESSOAIS/PROFISSIONAIS 28

1.2 - RAZÕES CLÍNICAS 32

2 - ENQUADRAMENTO CONCEPTUAL 48

2.1 - ENQUADRAMENTO EPISTEMOLÓGICO 48

2.1.1 — Critérios de desenvolvimento do conhecimento : revolução,

evolução ou integração 48

2.1.2 - Critérios de percepção: da "visão recebida" à "visão percebida". 55

2.1.3 - Critérios de verdade: da correspondência à verdade múltipla...58

2.1.3.1 -A verdade múltipla na enfermagem 63

2.1 .4-Resumindo 64

2.2 - A ENFERMAGEM ENQUANTO DISCIPLINA/PROFISSÃO 65

2.2.1 — Da natureza da enfermagem: padrões de conhecimento 66

2.2.1.1 — Saber Empírico ou a ciência de enfermagem 68

2.2.1.2 — Saber Ético ou a componente moral do saber na enfermagem 69

2.2.1.3 - Saber Pessoal na enfermagem 70

2.2.1.4 - Saber Estético ou a arte na enfermagem 70

2.2.1.5 — Processos para o desenvolvimento do conhecimento em

enfermagem 71

2.2.2 - Resumindo 79

2.3 - ESBOÇO DA ESTRUTURA ESSENCIAL DA DISCIPLINA DE

ENFERMAGEM 79

2 .3 .1-Resumindo 91

3 - PROBLEMÁTICA E QUESTÕES DE INVESTIGAÇÃO 94

II PARTE: INVESTIGAÇÃO REALIZADA 98

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Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

4 - OPÇÕES METODOLÓGICAS 100

4.1 - FASE DO DESENVOLVIMENTO DO DESENHO DE

INVESTIGAÇÃO 112

4.2 - FASE DE RECOLHA DE DADOS 115

4 . 2 . 1 - A entrevista 116

4.2.2 - A observação 122

4.2.3 - Critérios de rigor na recolha de dados 131

4.3 - FASE DE ORDENAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS 133

4.3.1 - Critérios de rigor na ordenação e análise dos dados 141

5 - A NATUREZA DA RELAÇÃO ENFERMEIRO DOENTE NO

CONTEXTO DE UM SERVIÇO DE QUIMIOTERAPIA EM REGIME DE

HOSPITAL DE DIA 144

5 . 1 - 0 CONTEXTO DA INTERACÇÃO: O ESPAÇO FÍSICO 145

5.2 - O CONTEXTO DA INTERACÇÃO: A COMPLEXIDADE DO

CONTEXTO RELACIONAL 149

5.3 - A NATUREZA DA RELAÇÃO ENFERMEIRO-DOENTE: O

"PROCESSO DE AVALIAÇÃO DIAGNOSTICA" 157

5.3.1 - O "Processo de Avaliação Diagnostica" a partir das entrevistas

de admissão 157

5.3.2 - O "Processo de Avaliação Diagnostica" a partir da observação 165

4.3.3 - O "Processo de Avaliação Diagnostica" a partir das entrevistas

às enfermeiras 173

5.3.4 - O "Processo de Avaliação Diagnostica": Perspectiva global 180

5.4 - A NATUREZA DA RELAÇÃO ENFERMEIRO-DOENTE: O

"PROCESSO DE INTERVENÇÃO TERAPÊUTICA DE ENFERMAGEM" 191

5.4.1 — 0 "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" a

partir das entrevistas de admissão 192

5.4.1.1-A "gestão de sentimentos" 192

5.4.1.2-A "gestão de informação" 206

5.4.2 - O "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" a

partir dos dados da observação 213

9 = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = „ _ _ = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Dissertação de Doutoramento

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Os ulciilcs c os enfermeiros: Construção de unia relação

5.4.3 ­ "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem": Outros

olhares 241

5.4.3.1 ­ "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem":

Perspectiva das enfermeiras 242

5.4.3.2­ Consciência do processo relacional das enfermeiras 253

5.3.3.3­ "Relação com a enfermeira":Perspectiva dos doentes 259

5.4.3.4 — Necessidades expressas pelos doentes: Perspectivas cruzadas270 5.4.4 ­ O "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem":

Perspectiva global 285

6 ­ 0 PROCESSO DE RELAÇÃO ENFERMEIRO­DOENTE NO

CONTEXTO DE UM SERVIÇO DE QUIMIOTERAPIA EM REGIME DE

HOSPITAL DE DIA 314

6.1 ­ O INÍCIO DA RELAÇÃO 315

6.2 ­ O CORPO DA RELAÇÃO 327

6 .3 ­O FIM DA RELAÇÃO 330

7 ­ TEORIA DE MÉDIO ALCANCE EXPLICATIVA DA RELAÇÃO

ENFERMEIRO­DOENTE NO CONTEXTO DE UM SERVIÇO DE

QUIMIOTERAPIA EM REGIME DE HOSPITAL DE DIA 336

8­CONCLUSÃO 348

9 ­ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 358

ANEXOS 382

ANEXO I ■ GUIÃO DE ENTREVISTA ÀS ENFERMEIRAS 384

ANEXO II ■ GUIÃO DE ENTREVISTA AOS DOENTES E

FAMILIARES 385

ANEXO III ­ GUIÃO DE OBSERVAÇÃO 387

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ÍNDICE DE QUADROS

Quadro 1 - Comparação entre os três processos de desenvolvimento de uma

disciplina:Revolução, Evolução e Integração 54

Quadro 2 - Comparação da visão recebida com a visão percebida das

ciências 58

Quadro 3 - Algumas características dos critérios de verdade de acordo com a

correspondência, coerência epragmatismo 61

Quadro 4 - O Processo de construção de uma teoria fundamentada 109

Quadro 5 - Exemplos de extractos de verbatins com o respectivo memo e

nota 136

Quadro 6 - Exemplo do suporte de análise 137

ÍNDICE DE DIAGRAMAS

Diagrama 1 - Categorização do "Processo de Avaliação Diagnostica" com

base nas entrevistas de admissão 158

Diagrama 2 - Categorização do "Processo de Avaliação Diagnostica" com

base na observação 166

Diagrama 3 - Categorização do "Processo de Avaliação Diagnostica" com

base nas entrevistas às enfermeiras 174

Diagrama 4 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" -

Gestão de Sentimentos (entrevistas de admissão) 194

Diagrama 5 - "Intervenção Terapêutica de Enfermagem" — Gestão da

informação (entrevistas de admissão) 207

Diagrama 6 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" —

Intervenção sobre o doente/família (dados da observação). 214

Diagrama 7 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" —

Intervenção na interface doente/organização e no grupo de doentes (dados da

observação) 233

n . _ _ » _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ « _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Diagrama 8 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" —

Perspectiva das enfermeiras 242

Diagrama 9 - "Consciência do processo relacional" - Perspectiva das

enfermeiras 254

Diagrama 10 - "Relação com a Enfermeira"' — Perspectiva dos doentes 261

Diagrama 11-^4 "Vivência do Processo de Doença". 271

Diagrama 12 - "Técnicas de Fuga" usadas pelos doentes durante a

entrevista de admissão 277

Diagrama 13 - "Técnicas de comunicação" usadas pelas enfermeiras durante

a entrevista de admissão 278

Diagrama 14 - "Expressão de Sentimentos"pelos doentes e familiares

durante a entrevista de admissão 279

Diagrama 15 - "Solicitações" dos doentes e familiares durante a entrevista

de admissão 280

Diagrama 16 - Início de interacção por iniciativa dos doentes e/ou familiares

na sala de quimioterapia 282

Diagrama 17 -Actividades terapêuticas na enfermagem 287

Diagrama 18 - Processo de desenvolvimento de uma crise - o efeito dos

factores de equilíbrio 296

ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1 -Padrões de conhecimento em enfermagem 73

Figura 2 -A disciplina de enfermagem em todas as suas vertentes 80

Figura 3 - Tipologia para o conhecimento em enfermagem 85

Figura 4 -Ligações conceptuais entre variáveis na interacção

enfermeiro-cliente 87

Figura 5 - Os conceitos major do domínio de enfermagem e as suas inter-

relações 89

Figura 6 -Ligações entre níveis de desenvolvimento teórico 111

Figura 7 -Fases do desenvolvimento da ciência de enfermagem 111

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Figura 8 - Croquis do piso onde funciona o hospital de dia — unidade de

quimioterapia do Hospital do Espírito Santo 148

Figura 9 - ^ 4 complexidade do contexto relacional da enfermeira 153

Figura 10 - Perspectivas percebidas no "Processo de Avaliação Diagnostica''. 182

Figura 11-0 "Processo de Avaliação Diagnostica"- evolução considerando

as dimensões- temporal e conhecimento do doente 183

Figura 1 2 - 0 "processo de avaliação diagnostica"- Perspectiva global.... 184

Figura 13-0 modelo do processo de enfermagem baseado na teoria geral

dos sistemas 185

Figura 14 - "Processo de Avaliação Diagnostica" versus "Processo de

Intervenção Terapêutica de Enfermagem - evolução considerando a

dimensão temporal. 192

Figura 15 — Croqui do posicionamento da enfermeira e do doente durante a

entrevista de admissão 196

Figura 16 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem"-

Perspectiva da complexidade global 212

Figura 17 - Carácter m ultifocal da actuação da enfermeira 288

Figura 18 - Natureza complexa e dinâmica do "Processo de Intervenção

Terapêutica de Enfermagem". 290

Figura 19 - Perspectiva geral do processo de relação preferencial

enfermeiro-doente — Início da relação 316

Figura 20 - O início da relação enfermeiro-doente no contexto de um serviço

de quimioterapia em regime de hospital de dia 317

Figura 21 — Categorias de resposta em função da experiência e do foco.... 319

Figura 22 — Perspectiva geral do processo de relação preferencial

enfermeiro-doente - Início e Corpo da Relação 328

Figura 23 — Componentes fundamentais da teoria de médio alcance relativa

à relação enfermeiro-doente no contexto onde decorreu o estudo 336

Figura 24 - Perspectiva geral do processo de relação preferencial

enfermeiro-doente 341

13 ============================================ Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

0 - INTRODUÇÃO

O meu interesse pela relação como forma de intervenção terapêutica, em

prol da ajuda ao outro, existe desde há muito tempo. Este interesse radica

em convicções pessoais que, paulatinamente, fui estruturando, não só como

resultado de simples experiências humanas, mas também das profissionais.

Enquanto ser humano, sei o que significa sentir a presença de outrem em

momentos de grande perturbação. Esse outrem pode até ser um estranho,

contudo, se a sua presença é sentida como autêntica, os seus efeitos são

notáveis. Ainda nesta condição e em qualquer dos múltiplos papéis que pos­

sa assumir, reconheço que o outro me é essencial. Aliás, o perfil dos meus

múltiplos papéis é, ele próprio, definido no contexto da interacção com o

outro. Mesmo aquilo que julgamos como intrinsecamente pessoal e intrans-

missível - as nossas ideias - não existiriam sem o outro. Em boa verdade,

nós pensamos com palavras e o acesso à linguagem é feito com os outros.

A presença do outro assume uma importância tal que, mesmo quando

estamos sozinhos, os outros estão connosco. Mesmo depois de mortos conti­

nuam connosco. Ou seja, os outros constituenvnos, tal como nós os consti­

tuímos, principalmente aqueles para quem nós somos significativos.

A presença do outro é-nos tão essencial que, em determinados momentos,

"desdobramo-nos" e falamos connosco próprios como se fossemos um outro.

Trocamos ideias, discordamos, discutimos, zangamo-nos, solidariamente en­

gendramos estratégias, rimo-nos ... e os outros riem-se de nós quando nos

apanham nesta figura.

No contexto profissional, o outro que está perante nós é, neste caso, fre­

quentemente, um doente. Nós perante este, somos o outro que supostamente

está investido do poder e do saber de ditar o seu futuro. Será que também

neste caso poderemos equacionar o encontro entre dois seres humanos em

moldes idênticos aos que acabei de referir? Para tentar responder a esta

questão vou recuar um pouco até ao início da minha carreira profissional.

Dissertação de Doutoramento

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Os uleiites e os enfermeiros: Construção de uma relação

O acesso ao papel de profissional é marcado por um conjunto de rituais

mais ou menos institucionalizados, mas marcantes, ainda que indelevelmen­

te. Assim, lembro-me da primeira vez que vesti uma bata de profissional de

saúde. Recordo agora principalmente o sentimento : um misto de orgulho e

de responsabilidade. Contudo, naquela altura era essencialmente um senti­

mento indefinido, ao qual ia tendo acesso através de pequenos indicadores

vindos dos outros. Certa vez, aluno já com alguma veterania, fui acompa­

nhado até ao meu local de estágio por uma colega mais nova. Antes de ini­

ciar o período de estágio fui-me "fardar". Ao reaparecer, agora (in)vestido de

profissional, a colega assinalou com estupefacção a metamorfose. Dizia que

parecia um profissional, não só pela farda, mas principalmente pela expres­

são. Apesar disto, se então me perguntassem o que era um profissional de

enfermagem, não saberia responder.

As respostas foram-me sendo dadas pelos outros. Basta estar atento e

escutá-los. Basta estarmos atentos e escutarmo-nos. Há muitos anos, ainda

aluno, nos velhinhos Hospitais da Universidade de Coimbra, no contexto de

uma enfermaria surrealista, logo pela manhã, dizem-me que ficaria respon­

sável por um doente que tinha entrado durante a noite. Acrescentam depois

a parte aterrorizadora da questão^ o doente estava em coma e t inha um

prognóstico muito reservado, podendo morrer a qualquer momento. Tive um

acesso de sentimentos indefinidos, que se agudizaram dramaticamente

quando deparei com o doente. Era uma pessoa que eu sabia não ser idosa,

mas que se apresentava muito maltratada pela vida. Era também um corpo

abandonado de si próprio, num turbilhão de lençóis, sujos e malcheirosos. O

que fazer? Optei por me agarrar aquilo que me t inham dado como seguro. E

ao longo de toda a manhã, lavei, mudei a roupa da cama, posicionei, dei a

medicação prescrita ... subitamente ao fim da manhã, o doente morreu,

silenciosamente, como sempre o t inha (des)conhecido. Quando a família che­

gou e iniciou a expressão dos seus sentimentos perante o sucedido, eu não

tinha nada para lhes dizer. Mas curiosamente, também sentia alguma dor.

Que dor seria aquela se eu nem conhecia o doente, nem a família?

15 = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = Dissertação de Doutoramento

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Os utentes c os enfermeiros: Construção tic uma relação

As certezas e as explicações médicas da inevitabilidade da sua morte pare­

ciam não atenuar a dor da perda daquelas pessoas. Essa era incontornável. E

eu, simples aprendiz de feiticeiro, o que é que podia fazer? 0 que é que pensa­

va e sentia? Permaneci ali, simplesmente, nem sei bem porquê e apesar de

sentir bastante incómodo. Tentando à posteriori, perceber as razões de tal

incómodo, pareceu-me que resultavam de uma certa sensação de ao longo da

manhã me ter refugiado nas tarefas que tinha que executar, ou seja, de ter

andado toda a manhã a fugir de mim mesmo e de agora me ver exposto, sem

ter aquilo a que costumamos chamar, "algo de concreto para fazer". Percebi

então que precisava de fazer alguma coisa. Mas o quê?

Só na continuidade do contacto com os doentes, fui encontrando algumas

das respostas para as minhas questões. Aprendi com eles que o que estava

em causa numa situação de doença, não é apenas, nem principalmente um

processo fisiopatológico. É, em primeira análise, uma experiência humana e

enquanto tal, pode ser ou não muito enriquecedora. Porém, esta última face­

ta, à semelhança do que acontece com todas as outras experiências huma­

nas, não depende só de quem a vive, mas também, de com quem a vive.

Aqui, podem assumir papel de destaque os técnicos de saúde. Foi também

através do contacto com estes, principalmente com os enfermeiros, que

aprendi o que não vinha nos livros, ou seja, que a arte da presença pode

fazer a diferença no contexto da experiência humana de doença. Percebi essa

arte em muitos colegas, mas não consegui que me explicassem como o conse­

guiam. Em alguns momentos experimentei a sensação de que a minha pre­

sença tinha feito a diferença na experiência de outra pessoa. Aí, precisei de

parar e reflectir, para tentar perceber o que estaria em causa.

Pareceu-me ter percebido que o que estava em causa era eu enquanto

pessoa, mas principalmente o uso que conseguia fazer do meu eu. Ou seja,

como que voltamos ao início da prosa, o que está em causa é um encontro

entre duas pessoas, sejam quais forem os papéis ou o suposto desnível de

poder entre elas, sendo que uma delas precisa de ajuda para ultrapassar

uma dificuldade, mas que em simultâneo tem muito para oferecer. Quem

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ajuda só se tem a si próprio para oferecer. O seu saber pode fazer a diferen­

ça, mas apenas no contexto de uma presença honesta e solidária.

A este propósito é curiosa a forma como Heron (2001) se refere aos atri­

butos essenciais de um terapeuta. Fá­lo de tal forma que parece que, em

simultâneo, se refere a características intrínsecas ao ser humano. Assim,

aquele autor entende que esses atributos são^

•S Sincera preocupação e aceitação do outro;

S Abertura e harmonização com a realidade experiencial do outro;

■S Uma compreensão do que a outra pessoa precisa para o seu desen­

volvimento e benrestar essenciais;

•/ Uma habilidade para facilitar a realização dessas necessidades da

forma correcta e no tempo correcto;

■S E uma presença autêntica.

Segundo Heron (2001), esta combinação de preocupação, empatia, pré­

­consciência, facilitação e genuinidade é património da espécie humana.

Apesar de assim ser, subsistem as questões^ como fazer emergir este

património? Como pô­lo eficazmente ao serviço do outro? Como profissionali­

zá­lo?

Estas questões ganham particular acuidade no caso da enfermagem,

principalmente por duas ordens de razões: primeiro porque, é o enfermeiro a

pessoa que mais tempo passa junto do doente; segundo porque, dado o está­

dio do desenvolvimento do conhecimento em enfermagem, pode esse patri­

mónio nem estar claramente organizado. A conjugação destas duas razões

transforma aquelas em questões centrais. Por isso, e no contexto dos meus

papéis de docente e de prestador de cuidados, lancei­me na procura de res­

postas. Para o efeito, tentei percorrer três vias: a formação, com o estudo

criterioso das teorias relacionais existentes; o desenvolvimento de competên­

cias relacionais, através da prestação de cuidados; a investigação e reflexão.

Através da formação percebi que, na enfermagem, a relação enquanto

instrumento terapêutico, era objecto de interesse desde há imensos anos.

Porém, foi nos finais da década de 40 do século XX, que este interesse teve

repercussões práticas assinaláveis. Foi nessa data que, nos Estados Unidos

1 7 _ _ _ . „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

da América, se verificaram duas ocorrências marcantes: o inicio de progra­

mas de formação avançada para enfermeiras psiquiátricas em diversas uni­

versidades e o aparecimento de publicações em que o papel relacional da

enfermeira psiquiátrica era expressamente referido e feitas tentativas de o

caracterizar (Lego, 1999). Apesar disso, esse papel aparecia ainda de modo

bastante indefinido. Havia no entanto, já alguns autores que defendiam que

esse papel incluia, t rabalhar com as emoções e o espirito do doente, bem

como com outros aspectos intangíveis e abstractos (Robinson, 1950; Render,

1950). Em simultâneo, outros defendiam que a formação avançada deveria

incluir treino de psicoterapia de modo a permitir a inclusão da enfermeira

na equipa psicoterapêutica (Bennet & Eaton, 1951).

Foi neste contexto de alguma ambiguidade e indefinição que em 1952

surge a obra de Peplau intitulada, "The interpersonal relations in nursing".

Esta obra marcou uma nova e definitiva etapa na medida em que, pela pri­

meira vez, o papel relacional do enfermeiro aparecia caracterizado e definido

sem ambiguidade e numa base científica. Segundo Peplau (1990), aquele

papel consiste em ajudar o cliente a recordar e compreender totalmente o

que lhe está a acontecer, de modo a que essa experiência possa ser integrada

no contexto da sua experiência de vida. Para dar corpo a este papel o enfer­

meiro deve desenvolver relações interpessoais individuais e devidamente

estruturadas através de um processo faseado. Esse processo relacional, no

entender de Peplau (1990), desenvolver-se-á em quatro fases (i.e., Orienta­

ção, Identificação, Exploração e Resolução), durante as quais se tentará aju­

dar o cliente a-

S observar, descrever e analisar o seu comportamento,

S formular as ligações resultantes dessa análise,

S validá-las com outros,

S testar novos comportamentos,

/ integrar estas aprendizagens num comportamento novo e mais

satisfatório e

S usar esses novos comportamentos em diferentes situações (Peplau,

1990).

Dissertação de Doutoramento

Page 21: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Na sequência da obra de Peplau, foram desenvolvidos diversos estudos

acerca da intervenção relacional da enfermeira em contexto psiquiátrico,

com a consequente publicação. Apesar disso, este tema não era pacífico, nem

relativamente às outras profissões de saúde, nem mesmo entre os enfermei­

ros. Contudo, tal não impediu que surgissem novas estruturas conceptuais,

as quais vieram dar força a este movimento. Destas, destaco a proposta por

Orlando (1961). Segundo esta autora, a enfermeira, investida do seu papel

relacional, deve observar as necessidades e as dificuldades do doente, aju­

dá-lo a expressar o significado específico do seu comportamento com o objec­

tivo de melhor compreender as suas dificuldades, e ajudá-lo a explorar as

suas dificuldades no sentido de averiguar a ajuda de que precisa para as ul­

trapassar (Orlando, 1961). Como se pode perceber, não existem diferenças

significativas entre esta proposta e a de Peplau. Existe, porém, uma diferen­

ça assinalável: pela primeira vez se entendia que a intervenção relacional

terapêutica não era um exclusivo dos enfermeiros que trabalhavam em con­

textos psiquiátricos, mas antes um instrumento útil e necessário em qual­

quer contexto.

Apesar deste contributo, as teorias subsequentes, como a de Travelbee,

(1971) e Paterson & Zderad (1988) continuaram a realçar o papel relacional

em contexto psiquiátrico. O conjunto de todos estes contributos teóricos foi

agrupado por Kérouac et ai (1994) sob a designação de "escola da interac­

ção". Segundo aquelas autoras, esta escola foi influenciada por teorias tais

como, a terapia centrada no cliente de Rogers (1974), a teoria sistémica de von

Bertalanffy (Moigne, 1977), a fenomenologia e o existencialismo. Os elementos

caracterizadores desta escola residem no modo como definem a pessoa, a

saúde, o ambiente, os cuidados de enfermagem e o processo de cuidados.

Assim:

•S a pessoa é definida como um sistema aberto, delimitado por fron­

teiras permeáveis face ao ambiente circundante, com o qual man­

tém trocas de matéria, energia e informação. Enquanto sistema,

considera-se que a pessoa é constituída por vários subsistemas,

sendo atribuída atenção especial ao psicológico»'

Dissertação de Doutoramento

Page 22: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

S a saúde é definida de um ponto de vista dinâmico, como a capaci­

dade de ajustamento aos "stressores" do ambiente interno e exter­

no e pela utilização óptima dos recursos, com o objectivo de a pes­

soa aprofundar o seu potencial máximo de vidai

S o ambiente compreende o conjunto das pessoas significativas com

as quais cada um de nós interage. Pode ser definido também como

um supra-sistema com o qual existe uma troca sistemática de

matéria, energia e informação,'

S os cuidados de enfermagem são entendidos como um processo

interactivo entre uma pessoa que tem necessidade de ajuda e uma

outra capaz de lha oferecer. Este último papel é assumido pela

enfermeira que, como forma de se habilitar para ajudar a outra

pessoa, precisa de clarificar os seus próprios valores. Isso permi-

tir-lhe-á usar a sua própria pessoa de modo terapêutico e com-

prometer-se nos cuidados que presta. O fim último dos cuidados de

enfermagem é a criação de condições que permitam o desenvolvi­

mento da personalidade da pessoa carenciada de ajuda,'

S o processo de cuidados desenvolve-se por fases, estas, variáveis em

função de cada um dos autores, contudo sobreponívéis. Durante

todo o processo é essencial a manutenção da integridade da pessoa

e ter em consideração que ela é capaz de reconhecer as suas neces­

sidades e que tende para a actualização. A subjectividade e a

intuição passaram a ser valorizadas em todo o processo de presta­

ção de cuidados (Kérouac et ai, 1994," Lopes, 1999a).

Contudo, e apesar da existência de um conjunto de teorizações especifi­

camente centrada na intervenção relacional terapêutica e da proposta de as

mesmas se agruparem sob a designação de "escola da interacção", pode-se

dizer que a problemática relacional enquanto instrumento terapêutico "con­

taminou" as restantes teorias de enfermagem. Efectivamente, constata-se

que paralelamente ao desenvolvimento das teorias integradas na "escola da

interacção", se desenvolviam outras, integradas em escolas com designações

diversas (e.g., "escola das necessidades", "escola dos efeitos desejados", "esco-

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Dissertação de Doutoramento

Page 23: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção tie uma relação

la do ser humano unitário", "escola do cuidar"). Porém, mesmo nessas

outras, constata-se uma presença crescente dos aspectos relacionados com a

intervenção relacional terapêutica. Essa presença é particularmente eviden­

te na teoria proposta por Watson (1981, 1985), mas também o é na teoria de

Orem (1987), de Parse (1992), entre outras.

Nos anos mais recentes, apareceram algumas teorizações, sobretudo

francófonas (Lazure, 1994; Chalifour, 1989), as quais, sendo especificamente

sobre a intervenção relacional terapêutica, não estão limitadas aos contextos

psiquiátricos. Estas obras têm tido uma razoável divulgação no nosso país.

Esta referência ajuda, de algum modo a caracterizar a situação em Portugal,

no que diz respeito à intervenção relacional terapêutica em enfermagem.

Durante muitos anos, esta componente dos cuidados foi deixada à boa von­

tade e à "bondade" dos enfermeiros. No contexto da formação inicial, era

usada uma expressão amplamente conhecida pelos alunos, que era o "apoio

psicológico". Porém, esta expressão era vazia de conteúdo, pois à mesma não

correspondia qualquer competência concreta. No meu entender, a situação

sofreu alterações apreciáveis com o advento das especializações em enfer­

magem, primeiro, e com a formação avançada (i.e., mestrados e doutoramen­

tos), mais tarde. No que concerne às especializações, começou por verifr

car-se a adopção da perspectiva clássica, com a área relacional a ser apaná­

gio da especialização em enfermagem psiquiátrica. Porém, mais tarde, prin­

cipalmente após a autonomização pedagógica e científica das escolas, decor­

rente da integração da formação em enfermagem no ensino superior (Deere-

to-Lei 480/88), diversas outras especializações integraram a intervenção

relacional terapêutica como conteúdo programático e como competência a

desenvolver. A formação avançada, inicialmente procurada principalmente

por docentes das escolas, completou este entendimento da intervenção rela­

cional terapêutica, bem como a necessidade de se constituir como competên­

cia na formação inicial e como indicador da qualidade dos cuidados.

Este encadeamento de alterações gerou repercussões na formação inicial,

mas também na prestação de cuidados e nas publicações de enfermagem. Na

formação inicial a oca expressão "apoio psicológico" está sendo substituída

Dissertação de Doutoramento

Page 24: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uin;i relação

por conteúdos programáticos específicos e por treino de atitudes. Na presta­

ção de cuidados, os enfermeiros especialistas que beneficiaram de formação

nessa área, t ransportaram para o seu exercício um conjunto de atitudes

diferenciadoras que, muitas vezes, se constituem como referencial. Final­

mente, as publicações são um pouco o espelho de todas estas alterações.

Efectivamente, se consultarmos as bases de dados de algumas das bibliote­

cas das escolas superiores de enfermagem nacionais, constatamos uma pro­

fusão assinalável de artigos, relativos aos mais diversos contextos de cuida­

dos e distribuídos entre revisões bibliográficas, trabalhos de investigação e

outros (e.g., Moreira, et ai, 2003; Coelho, et ai, 2003; Costa et ai, 2003; Cou­

tinho, et ai, 2002; Araújo, 2002; Santos, 2000; Queiroz, 1999; Cruz et ai

1999).

Paralelamente à formação no contexto destas realidades teóricas, entendi

desenvolver um projecto através do qual pudesse desenvolver competências

relacionais. Foi nesse sentido que, inicialmente no contexto de uma forma­

ção especializada e mais tarde de modo autónomo, desenvolvi um projecto de

intervenção relacional, dirigido aos doentes oncológicos sujeitos a cirurgia

mutilante. Dadas as características daquele, contactei de perto e durante

um tempo razoável, com outros colegas que já prestavam cuidados a doentes

oncológicos há mais tempo que eu.

A reflexão e análise sobre a minha experiência concreta de prestação de

cuidados, bem como sobre a de outros colegas, permitiu-me constatar alguns

factos curiosos :

S A minha intervenção, porque, inicialmente, estritamente relacio­

nal, era incompleta. Os doentes, necessitando claramente de inter­

venção relacional terapêutica, solicitavam-me mais do que isso.

Enquanto intervenção relacional, na fase inicial do projecto, tinha

muitas semelhanças com qualquer outra, desenvolvida por outros

profissionais. Esta característica forse perdendo à medida que ia

dando outras respostas, solicitadas pelos doentes e que iam para

além da interacção verbal.

========= ============================== . _ _ _ « 22 Dissertação de Doutoramento

Page 25: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

S Como ficou evidente pelo que acabei de dizer, os doentes expressa­

vam necessidades de cuidados. Eram necessidades particularmen­

te evidentes a nível relacional. Ou seja, tratava-se de dificuldades

vivenciais, as quais resultavam da situação de doença oncológica.

Essas necessidades assemelhavam-se às descritas na literatura

existente (e.g., Benner & Wrubel, 1989; Barraclough, 1999; Corner

& Bailey, 2001) e podem caracterizarse genericamente como uma

vivência de transição (Chick & Meleis, 1986; Meleis & Trangens-

tein, 1994; Meleis, 1997). Também podem ser entendidas a partir

da teoria da crise (Lazarus, 1979; Aguilera, 1998), tendo contudo

algumas características particulares. Efectivamente, esta crise não

se caracteriza por uma vivência isolada, mas antes repetida e,

algumas vezes, com desfecho previsivelmente fatal. Mesmo quando

este desfecho não faz parte do prognóstico, a representação da

doença oncológica impõe a sua presença ao doente.

S Pela observação da intervenção de alguns colegas constatava que

usavam estratégias de natureza diversa, que pareciam ser de ele­

vada eficácia. Quando os interrogava acerca desse assunto, nem

sempre era muito bem sucedido nas repostas que obtinha.

Com base nesta reflexão instalaram-se algumas dúvidas^ será que, no

contexto da acção desenvolvemos competências de que não temos uma cons­

ciência plena? Como consciencializar esse processo?

Estas dúvidas conduziranrme a procurar literatura, quer de enferma­

gem, quer de profissões com características semelhantes, que me ajudassem

a compreender tal fenómeno. Como resultado desta procura encontrei um

conjunto diversificado de autores que, em áreas diversas, se têm dedicado ao

estudo das competências desenvolvidas no contexto da acção. Destes começo

por destacar Benner (2001) e o seu marcante trabalho de identificação e

caracterização das fases de desenvolvimento em relação à perícia e ainda

das competências de perícia dos enfermeiros. Do conjunto deste trabalho

evidencio dois aspectos: o primeiro, o facto de tal trabalho ser feito com base

nas competências desenvolvidas em contexto; o segundo, o facto de, entre

2 3 _ _ _ _ _ » _ _ _ _ . _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ „ _ „ _ _ _ _ „ — — _ — _ — _ = _ _ _ _

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

essas competências, se perceberem competências relacionais (i.e., Função de

ajuda) e competências da área da (in)formação (i.e., Função de educação,

orientação). Diversos outros trabalhos (e.g., Alligood, 1991; Rebelo, 1996;

Basto, 1998; Basto et ai, 2000; Beckstrand, 19781,b; Deeny & McGuigan,

1999; Easter, 2000) forneceram-me elementos que me ajudaram a confirmar,

não só o desenvolvimento de competências inerente ao exercício de uma prá­

tica reflectida, mas também e especificamente de competências relacionais.

Mas também o contributo de outras áreas se tornou essencial neste per­

curso. Destes, destaco os desenvolvidos por Argyris & Schõn (1980), Schon

(1996, 1998), mas também Altet (2000), Bernardou, (1996) Barbier (1996),

Mialaret (1996) e Vergnaud (1996) e Le Boterf (1995), entre outros. Em

todos estes trabalhos se torna patente a defesa de uma epistemologia da

prática. Esta não consiste na defesa do "praticismó\ ou seja, na defesa da

prática enquanto tal, por oposição à teoria, mas antes na defesa de que a

prática é algo sempre diferente e mais complexo do que qualquer teoria pode

captar. Neste contexto, qualquer pessoa que desenvolva a sua actividade

ligado a uma das muitas práticas (e.g., enfermagem, medicina, ensino,...),

precisa da teoria como quem precisa de um mapa para se orientar num local

desconhecido, contudo a realidade com que se depara exigir-lhe-á que desen­

volva competências para lidar com as dificuldades e as surpresas que lhe

estão associadas. Trata-se assim de uma redefinição do conceito aristotélico

de praxis, no sentido em que é proposto por Maclntire (1990), mas também

por Bishop & Scudder (1991), Chinn & Kramer (1999), entre outros.

Com base na análise da minha experiência, pessoal e profissional, do

observado junto dos doentes e de outros colegas pergunto-me:

Será que existem competências relacionais desenvolvidas em contexto

que desconhecemos?

Que competências serão? Que características terão? Como se desenvolve­

rão?

Será que o contexto tem algum tipo de interferência no desenvolvimento

dessas competências?

As competências relacionais serão independentes das restantes?

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Que relação existirá entre os diversos tipos de competências?

Será que existe um modo de intervenção relacional especifico dos enfer­

meiros?

Na tentativa de responder a algumas destas questões propus-me desen­

volver um estudo que me permitisse compreender qual a natureza da rela­

ção entre os enfermeiros e os doentes oncológicos submetidos a quimiotera­

pia num hospital de dia. Este estudo tem como objectivos:

•S Compreender a natureza da interacção entre os enfermeiros e os

doentes oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia.

o Identificar intervenções terapêuticas de enfermagem.

S Compreender o processo de relação entre os enfermeiros e os doentes

oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia.

S Desenvolver uma teoria de médio alcance sobre a relação enfermei-

ro-doente.

25 — — - — - — - - - - - - - - — — — — — Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

t

I PARTE: REFERENCIAS CONCEPTUAIS

Dissertação de Doutoramento 26

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Os ulciitcs c os enfermeiros: Construção de uma relação

27 ======-====================================: Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

1 - JUSTIFICAÇÃO DO ESTUDO

A primeira parte deste trabalho tem como finalidade justificar a realiza­

ção deste estudo e fazer o seu enquadramento conceptual. Um e outro con­

tribuirão para a compreensão da problemática de investigação. Para atingir

tal desiderato utilizarei argumentos de natureza pessoal/profissional e clíni­

ca. Estes argumentos estão profundamente relacionados entre si e têm a

ver, essencialmente, com a enfermagem enquanto profissão. Contudo e dado

considerar a enfermagem uma disciplina/profissão, considero esta uma das

formas privilegiadas de promover o desenvolvimento de ambas. Dito por

outras palavras, investigando a prática clínica dos enfermeiros, promove-se

o desenvolvimento da profissão na medida em que se desvela o seu modus

operandi, permitindo assim que se discuta; contribui-se ainda para o desen­

volvimento da disciplina, na medida em que se fornecem elementos passíveis

de virem a integrar o seu corpo de conhecimentos.

1.1 - RAZÕES PESSOAIS/PROFISSIONAIS

Relativamente às razões pessoais/profissionais que justificam este estu­

do, proponho um recuo até ao início da minha actividade profissional. O meu

gosto pela prestação de cuidados começou cedo. Efectivamente, logo durante

o curso de enfermagem e dada a sua natureza (i.e. com uma componente

teórica e teórico-prática e outra de ensino clínico), tive oportunidade de

experimentar essa sensação. Era então ainda uma sensação talvez mal com­

preendida, mas, apesar disso, t inha já alguma percepção da importância da

acção e da presença do enfermeiro na vida das pessoas a vivenciarem difi­

culdades com o seu processo de saúde. A minha presença junto das pessoas,

associada ao acto da prestação de cuidados, acabava por me dar uma gratifi­

cação pessoal, a qual contribuía para a sensação de realização pessoal e pro­

fissional.

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Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

Contudo, também o sofrimento, as dificuldades, as dúvidas e até algum

desconsolo fizeram parte deste meu início de percurso. O sofrimento e as

dificuldades estiveram associados a vivências de situações de vida marcan­

tes. Assim, ainda hoje recordo o primeiro doente que, estando sob os meus

cuidados, me morreu. Recordo também o sofrimento e as dificuldades ine­

rentes ao contacto com um doente e respectiva família, após um diagnóstico

de cancro.

Mas existiam outras dificuldades, talvez mais prosaicas mas também

bastante presentes, como as que derivavam do facto de não encontrar litera­

tura científica que reflectisse a realidade dos cuidados. Esta dificuldade

esteve presente nos primeiros momentos, pois, mesmo durante a formação

inicial, ela era patente, mas manteve-se ao longo do meu percurso. Sentia

que esta era também a origem de muitas das dúvidas do dia-a-dia, uma vez

que, na ausência dessa literatura, não tinha referência para pautar os meus

cuidados. Tudo isto originava também algum desconsolo, na medida em que

conduzia à invisibilidade social e ao não reconhecimento da importância dos

cuidados de enfermagem. A ausência desta l i teratura conduzia também a

um ensino centrado na enfermagem tal como a idealizavam os professores e,

muitas vezes, baseada em teorias importadas de outras áreas de conheci­

mento. Era também esta uma das razões da existência de uma linguagem

dupla e quantas vezes antagónica, na enfermagem, com todas as consequên­

cias que daí advêm, principalmente para quem está em formação ou em iní­

cio de vida profissional.

Assim, fui desenvolvendo o meu percurso profissional, o qual se pode

dividir em duas partes que, embora possuindo características diferentes, são

complementares. A um período inicial de prestação directa de cuidados de

enfermagem, seguiu-se um outro de dedicação ao seu ensino. J á no contexto

deste último período, realizei uma especialização clínica, na área da enfer­

magem de saúde mental e psiquiátrica. Na sequência desta especialização

desenvolvi um projecto com algumas características inéditas. Este, inicial­

mente, t inha como finalidade a prestação de cuidados, no âmbito da saúde

mental e psiquiatria, a pessoas a quem tivesse sido diagnosticado um cancro

29 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

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Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

e em consequência do qual tivessem sido sujeitas a uma cirurgia mutilante.

Posteriormente, e dadas as solicitações, o âmbito do projecto foi alargado a

todos os doentes oncológicos. Estes doentes apresentavam dificuldades de

natureza diversa, mas o denominador comum seriam as dificuldades asso­

ciadas à vivência de um processo que, para além dos seus aspectos biomédi­

cos, os desafiava de modo radical, dada a conotação da doença.

A medida que ia desenvolvendo esta experiência de prestação de cuida­

dos, foi ficando claro que, independentemente do tipo de cancro, todas as

pessoas a quem tal é diagnosticado iniciam a vivência de um processo

extremamente complexo, indutor de mabestar e que, por vezes, é mais grave

que o próprio cancro (Lopes, 1997). A gravidade pode ser de natureza tal que

desorganiza para sempre a vida da pessoa ou poderá até levar à morte. Ten­

tei compreender este processo através de teorizações oriundas de áreas cien­

tificas diversas e de natureza psicossocial, nomeadamente através da teoria

da crise (Erikson, 1976ab; Caplan, 1980; Cordeiro, 1987), teoria do luto (Wor

den, 1991), entre outras. Porém, ficava sempre com a sensação de que parte

do fenómeno ficava por explicar. Para além disso, verificava que parte da

minha acção não resultava de nenhuma "prescrição" teórica, mas sim de um

saber que ia acumulando, fruto do contacto repetido e reflectido com as

situações referidas. Pela observação da prática dos meus colegas e em con­

versa com eles, ia acentuando esta convicção. Aquele saber parecia-me exis­

tir na confluência das diversas perspectivas teóricas (e.g., psicossocias, bio­

médicas, ...), precisando, porém, de ter necessariamente em consideração a

pessoa na sua totalidade e no seu contexto. Esta experiência foi desenvol­

vendo em mim duas certezas:

S que os cuidados que prestava eram extremamente importantes para

o benres tar das pessoas, e por isso elas me procuravam, uma vez que

eram livres de o fazer ou não;

S que, sendo importantes, são ainda mal compreendidos e pouco teori­

zados.

„ _ _ _ _ _ _ „ _ „ _ _ _ _ . . „ „ „ „ _ _ _ „ _ 3 0

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Esta parca teorização adquiria importância marcante no momento em

que eu pretendia ensinar sobre o que fazia. Nesses momentos, t inha dificul­

dades em explicar a minha intervenção recorrendo às teorias conhecidas.

Esta foi uma experiência extremamente enriquecedora, quer do ponto de

vista pessoal, quer profissional. Para além disso e apesar das limitações teó­

ricas, forneceu­me contributos essenciais para o exercício da minha activi­

dade docente. Ao mesmo tempo, obrigou­me a questionar­me sobre a profis­

são e sobre a disciplina de enfermagem. O questionamento t inha exactamen­

te a ver com a natureza dos cuidados. Ou seja, em que consiste, quais os

elementos concretos que constituem o processo de prestação de cuidados? A

relação enfermeiro/doente é um desses elementos? Qual a sua natureza?

Qual a sua importância? Que relação existe entre estes elementos, tal como

são praticados e a disciplina, tal como é comunicada e ensinada?

E curioso perceber que algumas destas questões agora colocadas são

idênticas às que se me colocavam no início da minha actividade profissional.

Estiveram também presentes no âmbito do mestrado que realizei, em ciên­

cias de enfermagem (Lopes, 1998, 1999a) e traduzem ainda hoje as razões

que me conduziram até ao presente estudo.

Assim e apesar de ao longo da minha actividade profissional ter tentado

desenvolver a dupla componente da enfermagem (i.e., a praxis e a discipli­

na), processo que vou partilhando (Lopes, 1999b, 2000a), muitas continuam

a ser as questões que se me colocam e para as quais ainda não tenho respos­

ta. De todo o modo, tenho também a convicção que são as questões, mais que

as respostas, que me impulsionam. Algumas dessas questões poder­se­ão

formular do seguinte modo:

■S Terão os cuidados de enfermagem a importância para os utentes,

que a minha experiência parece demonstrar?

S Serão os cuidados de enfermagem importantes em todas as situa­

ções de saúde­doença das pessoas ou adquirirão uma importância

particular em algumas delas?

S Quais as razões dessa importância? Ou seja, em quê e como é que

contribuem para o benres tar das pessoas?

3 1 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 34: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

S Que estruturas teóricas explicam este fenómeno?

S Será que existe uma área de conhecimentos pouco desvendada e que

explicará os cuidados prestados pelos enfermeiros?

•S A existir, terá essa área de conhecimentos características próprias?

S Quais serão essas características?

Este percurso, bem como estas dúvidas constituenrse como argumentos

justificativos deste estudo. Ou seja, o estudo insere-se no contexto de um

percurso pessoal e profissional e constitui-se como uma tentativa de respos­

ta a algumas das questões que se me colocam. Estas razões justificativas

para o estudo, entroncam nas de natureza clínica, senão vejamos.

1.2 - RAZÕES CLÍNICAS

Uma das áreas que mais desafios coloca aos prestadores de cuidados é,

no meu entender, a área oncológica. O cancro, doença aparentemente tão

velha quanto o próprio Homem e supostamente comum a muitos seres vivos,

ganhou, na sociedade actual, conotações míticas. Do ponto de vista social,

não se morre de cancro, morre-se de doença de evolução prolongada; não se

tem um cancro, terrrse uma doença ruim. A este propósito é notável uma das

mais conhecidas obras de Sontag (1998) (ela própria doente oncológica), na

qual aborda a problemática da utilização alegórica e muitas vezes culpabili-

zante da doença em geral e do cancro em particular, na nossa cultura. Sobre

o cancro ela diz ser uma "doença incompreensível — numa época em que o

primeiro postulado da medicina é o de que todos os males têm cura" (p. 13).

Do ponto de vista científico, todos os esforços se têm desenvolvido no sen­

tido de combater e vencer o cancro, como se este fosse o último e mais terrí­

vel dos inimigos. Mesmo a linguagem usada é de características puramente

belicista, atribuindo ao cancro uma natureza tal, como se de uma entidade

se tratasse. Somos levados a crer que esta luta imaginária, traduzida em

palavras, é também, muitas vezes, traduzida em comportamentos. Estes,

tanto são das pessoas a quem foi diagnosticado o cancro como dos técnicos de

saúde. Efectivamente pelos estudos efectuados, a representação social de

uns e outros é muito idêntica (Oliveira, 1999; Pereira, 1994). Existem mes-

Dissertação de Doutoramento

Page 35: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulciitcs e os enfermeiros: Construção de uma relação

mo diversos estudos que confirmam que dar informação relacionada com o

diagnóstico de cancro é extremamente angustiante quer para os doentes

(Thorne, 1988; Ramirez et ai, 1994; Costello, 1995; Morton, 1996), como para

os profissionais de saúde (Gilholy et ai, 1988; Jones & Jones, 1990! Brewin,

1991; Fallowfield, 1993; Kent et al, 1994; Rosser, 1994; McCue, 1995). De

modo que, enquanto aos doentes, portadores do mal, cabe o papel de vitimas

do destino, aos técnicos de saúde, enquanto "soldados" detentores de podero­

sas armas, é atribuído o papel de identificarem e aniquilarem esse ser malé­

fico. Assim, usam armas que extirpam, a cirurgia, que bombardeiam, a

radioterapia, que aniquilam quimicamente, a quimioterapia, entre outras.

Mas, apesar de todo este arsenal, prevalece, quer nos doentes, quer nos téc­

nicos, uma representação associada a imagens de morte, sofrimento, ameaça

e desorganização, entre outras.

Neste contexto, não questiono a potencial utilidade de todo este arsenal

terapêutico. Questiono, isso sim, a forma como muitas vezes é usado. Muitas

vezes me pergunto o que é que será pior, se o sofrimento inerente à doença

se o inerente ao tratamento. Questiono ainda o parco investimento que tem

sido feito nos cuidados, em contraponto com o investimento nos tratamentos.

Isto porque, seja qual for o resultado final, do ponto de vista dos objectivos

terapêuticos tradicionais, isto é, consiga-se ou não a "cura", uma doença des­

ta natureza impõe sempre um processo de transição extremamente comple­

xo. Mesmo que o prognóstico médico seja o melhor, os oncologistas rejeitam o

conceito de cura e preferem falar em remissão. Ou seja, na melhor das hipó­

teses, essa pessoa, para além de ter sido questionada no que existe de mais

essencial, a própria vida, passará a viver sob a espada de Damócles. Mas, o

mais comum é ter que se habituar a viver com uma situação que tende para

a cronicidade. Em algumas situações a pessoa terá que aprender a encarar a

morte. Assim, o investimento nos cuidados potencia a acção dos restantes

meios terapêuticos.

Por este conjunto de razões é que denominei este como um processo de

transição. Este conceito (i.e., transição) foi proposto por Chick & Meleis

(1986), mas para o seu desenvolvimento, contribuíram diversos outros auto-

33 — _ — — , - _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ^ „ = = - ^ — — - . . . _ _ _ _ = = = „ - = = = = = _ ^ _ . . _____ Dissertação de Doutoramento

Page 36: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de Uma relação

res com inúmeros trabalhos de investigação (e.g., Bridges, 1986," Brouse,

1988; Catanzaro, 1990; Chiriboga, 1979; Clifford, 1989; Gilmore, 1990). Este

conceito será mais à frente explorado mais em pormenor, contudo pode defi-

nir-se de modo abreviado como, a passagem ou movimento de um estado,

condição ou lugar para outro (Schumacher & Meleis, 1994). Assim, o proces­

so de doença oncológica pode ser entendido como um processo de transição.

Tal justifica-se porque se verifica uma alteração considerável no processo de

saúde-doença, no papel relacional, nas expectativas e/ou nas capacidades.

Tal implica mudanças nas necessidades de todos os sistemas humanos. A

transição requer da pessoa capacidades para incorporar novos conhecimen­

tos, para alterar comportamentos e até para mudar a definição do seu "self

no contexto social (Meleis, 1991). Neste processo o enfermeiro detém já uma

elevada responsabilidade. Efectivamente, de acordo com a minha experiên­

cia enquanto prestador de cuidados e com o meu conhecimento relativo aos

contextos de prestação de cuidados, o enfermeiro assume já um papel fulcral

em todos os momentos deste processo de transição. Porém, um dos períodos

em que me parece que esse papel pode ser relevante, é no período posterior

ao diagnóstico de cancro, quando a pessoa inicia o processo de interiorização

de todas as consequências que daí advêm. Esse período poderá ser coinci­

dente com a fase da quimioterapia.

De facto, incluído em quase todos os protocolos terapêuticos actuais,

independentemente do tipo de cancro, existe a quimioterapia. Esta consiste

na administração de agentes químicos, citotóxicos, normalmente por via

endovenosa.

O principal objectivo da quimioterapia é a destruição das células neopla­

s i a s através do uso de substâncias químicas. Por esta ordem de ideias,

pode-se então dizer que o seu objectivo ideal é a "cura" da doença. Apesar

disso a quimioterapia pode ainda ser usada para, prevenir o aparecimento

de metástases, controlar, tornando mais lento, o crescimento dos tumores e

por último, ser usado com objectivos paliativos, no controlo de sintomas.

De acordo com os protocolos mais recentes, a quimioterapia está nor­

malmente associada a outros tratamentos, como a cirurgia e a radioterapia.

Dissertação de Doutoramento

Page 37: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Assim, a quimioterapia pode anteceder ou suceder a qualquer um dos outros

tratamentos enunciados, dependendo isso da avaliação concreta da situação

de cada doente, a qual entra em linha de conta com o tipo de tumor, a sua

localização inicial, a sua metastização local e sistémica.

A actuação dos agentes quimioterápicos antineoplásicos tem uma estrei­

ta relação com o ciclo de divisão celular. Este é o processo através do qual

uma célula se desenvolve e se divide e é composto por cinco fases (i.e., Go,

Gi, S, G2 e M). Na fase Go, considerada por alguns uma sub-fase de Gi, a

célula é considerada em repouso, ou seja, não está preparada para a divisão

celular. Durante a fase Gi, também denominada como intermitótica, ini-

cia-se a preparação para a divisão celular através da produção de ácido

ribonucleico (ARN) e proteínas. Na fase S, também denominada fase de sín­

tese, as células duplicam o seu ácido desoxirribonucleico (ADN). Este, recor-

de-se, contém toda a informação genética necessária ao desenvolvimento e

divisão celular. Por tal razão, esta é a fase em que actuam muitos dos agen­

tes quimioterápicos antineoplásicos. A sua acção consiste na interferência

na síntese do ADN, levando à alteração da informação genética e à rotura na

sua síntese. A fase G2 ou fase prémitót ica é uma nova fase de síntese de

ARN e proteínas necessárias à mitose. Por último a fase M ou mitótica, é a

fase durante a qual ocorre a mitose, ou seja, a divisão celular da qual resul­

tam duas células filhas com características iguais às da progenitora.

O processo que acabei de descrever é o mesmo, quer a célula seja normal,

quer seja neoplásica. Tal significa que a administração de drogas citotóxicas

interfere com ambos os tipos de células, levando à sua destruição. Contudo,

as células normais parecem ter uma maior capacidade de reparação de

danos, mantendo-se mais viáveis, que as células neoplásicas. Deste modo, a

maior susceptibilidade das células neoplásicas para sofrerem danos irrepa­

ráveis, é utilizada para se obterem os efeitos terapêuticos da quimioterapia

citotóxica. De todo o modo, isto não significa que o efeito sobre as células

normais seja desprezível, como mais à frente veremos.

A diferença entre a célula normal e a neoplásica reside essencialmente

na velocidade com que as segundas se dividem. Efectivamente, constata-se

35 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 38: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enlermeiros: Construção de uma relação

que as células neoplásicas se dividem descontroladamente e a uma velocida­

de muito superior à normal. Portanto, o seu ciclo celular é mais curto. Isto

leva a que, num primeiro momento, o crescimento tumoral seja relativamen­

te lento, dado haver ainda um reduzido número de células neoplásicas viá­

veis, mas que depois acelere rapidamente, à medida que aquelas células pro­

liferam, até atingir um nível mais estacionário. Este nível estacionário pen-

sa-se que seja devido à diminuição de nutrientes e a um certo grau de hipo­

xia, o qual resultou do acentuado crescimento anterior (Dougherty & Bailey,

2001). Pensa-se actualmente que a quimioterapia citotóxica é mais eficaz na

fase de maior crescimento. Este aspecto evidencia a importância de uma

detecção atempada das situações de doença neoplásica.

Do ponto de vista farmacológico, a escolha da droga a usar, bem assim

como da dose a administrar a cada doente, depende de um julgamento crite­

rioso. Este entra em linha de conta com parâmetros tais como, o estadia-

mento do tumor, estado funcional dos rins e fígado e o conhecimento da far-

macodinâmica do medicamento. O estado funcional dos rins e fígado têm a

ver com o facto de estes medicamentos serem excretados por estes órgãos.

Após aquelas decisões é ainda necessário escolher a via de administração

do medicamento. Também esta depende de um conjunto de factores que ten­

tam conjugar a rapidez da disponibilização da droga e as características da

pessoa, nomeadamente o estado geral, o estado das veias, entre outros.

Aquando da administração da quimioterapia citotóxica pode verificar-se

um fenómeno de resistência tumoral. Existem dois tipos básicos de resistên­

cia t umora l Resistência Primária, quando não existe qualquer resposta

após a administração dos citostáticos; Resistência Secundária, quando após

um período inicial de resposta se verifica um reaparecimento do crescimento

tumoral. Ainda que raro, podem também verificar-se fenómenos de mul-

ti-resistência a drogas citotóxicas.

Mais a t rás referi que estas drogas agem indiscriminadamente sobre as

células normais e sobre as neoplásicas. Disse ainda que, quanto maior for a

velocidade de divisão celular, maior será a vulnerabilidade a estes fármacos.

Ora este princípio é válido quer para as células normais quer para as neo-

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Dissertação de Doutoramento

Page 39: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

plásicas. Assim se justifica que os tecidos corporais cujas células sofrem uma

mais rápida divisão sejam os mais susceptíveis aos citostáticos. Tal é o caso

da medula óssea, tracto gastrointestinal, folículos capilares e células germi­

nais testiculares.

Pela combinação do que acabei de dizer, bem assim como do que atrás

referi acerca dos órgãos excretores (i.e., rim e fígado), compreendem­se a

maioria dos efeitos secundários sistémicos destes medicamentos. Assim, os

mais frequentes são, entre outros^

S Anorexia

•/ Náuseas

•/ Vómitos

S Estomatites

S Hematúria

■S Cistite química

S Diarreia

S Queda de cabelo

S Diminuição da contagem de elementos sanguíneos

S Alteração da função hepática

•S Alteração da função renal.

A quimioterapia tem sofrido avanços consideráveis nos últimos anos.

Como consequência desses avanços, o rigor na administração aumentou con­

sideravelmente, quer para protecção do doente, quer dos técnicos de saúde.

Para além disso, como esses protocolos de administração se podem prolongar

por períodos de tempo muito longos, os mesmos tornaranrse problemáticos

na medida em que originavam longos períodos de internamento com todas

as consequências que daí advinham (e. g., de natureza económica, psicosso­

cial, ..). Deu­se assim início à criação de unidades de quimioterapia a fun­

cionarem em regime de hospital de dia. Os doentes deslocam­se a estas uni­

dades com a periodicidade previamente combinada, para fazerem os seus

tratamentos e regressam a suas casas. Nestas unidades são diversas as vias

de administração e as técnicas que se utilizam. Destas, as mais frequentes

são, a intravenosa, a oral, a tópica e a intravesical.

3 7 _ _ ^ „ . _ _ _ _ _ ­ _ ­ _ _ _ ­ ­ _ _ . . „ _ _ _ „ _ „ _ ­ _ _ _ _ _ _ _ . _ _ ­ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Dissertação de Doutoramento

Page 40: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

A via intravenosa é, de todas, a mais frequente e pode assumir algumas

variantes, as quais são determinadas pela situação do doente. Assim, o mais

comum é proceder-se a uma punção venosa periférica de cada vez que o

doente vem cumprir o seu protocolo de quimioterapia. A escolha da veia

para esse efeito deve ser criteriosa, considerando o elevado potencial corro­

sivo de muitos dos medicamentos e a consequente e progressiva degradação

a que as veias vão sendo sujeitas. Dois dos critérios mais usados são a esco­

lha de uma veia de calibre adequado, considerando o volume, a velocidade de

perfusão e o potencial corrosivo do medicamento; e uma progressão dis­

tal-proximal na escolha das veias.

A administração de medicamentos citostáticos por via intravenosa é feita

de acordo com as indicações especificas de cada medicamento. Contudo, e de

forma geral, num primeiro momento procede-se à avaliação da situação do

doente, quer através da análise dos valores analíticos, quer por observação

directa do doente. Tal, tem como objectivo verificar se o doente tem condição

que permita a continuação da quimioterapia. Ou seja, verificar se, como

resultado da progressão da doença e da reacção ao tratamento, o doente

apresenta condições que permitam continuar a administrar um tratamento

tão agressivo. Após, procede-se à punção venosa e colocação de uma infusão

de soro fisiológico. Esta tem diversas funções. A primeira é testar a viabili­

dade da veia. Ou seja, se a punção não foi adequadamente efectuada e se

verificar extravasamento, tal não tem consequências se for com soro fisioló­

gico, mas tê-las-á e graves se for com citostáticos. A segunda é promover

alguma hemodiluição que diminua o efeito directo e imediato dos citostáticos

sobre as células sanguíneas. A terceira é proporcionar o intervalo de tempo

necessário à preparação da perfusão de quimioterapia a administrar, a qual

é normalmente feita no momento e em câmara de fluxo laminar.

Durante todo o período de administração de quimioterapia citostática

exige-se uma vigilância sistemática do doente e do sistema de perfusão. Esta

vigilância tem como principal objectivo a detecção precoce de qualquer reac­

ção imediata, sistémica ou local. As reacções sistémicas imediatas são diver­

sas e podem ir desde a reacção anafilática, aos vómitos, dores de cabeça ou

_ - - — _ _ - _ _ _ _ _ _ - - - - _ _ _ _ _ _ - _ _ _ _ _ _ . _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ 3 8

Dissertação de Doutoramento

Page 41: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros; Construção de uma relação

outras. Das reacções locais, a mais temida é o extravasamento, principal­

mente quando se usam medicamentos vesicantes. 0 extravasamento consis­

te na infiltração dos tecidos limítrofes à punção venosa com medicamento

citostático. Tal ocorrência provoca uma imediata e intensa inflamação local

que pode progredir para necrose e ulceração.

A administração intravenosa pode assumir algumas variantes, sendo a

mais comum a implantação de um cateter numa veia central, com tuneliza-

ção e implantação subcutânea de um "cuff". Este sistema pode manter-se

funcional durante anos, exigindo apenas uma manutenção periódica. T o r

na-se extremamente cómodo para o doente, porque evita a punção sucessiva

de veias periféricas, com a sua consequente degradação. Assume uma eleva­

da eficácia dado que disponibiliza o medicamento directamente numa veia

de grande calibre, aumentando assim a rapidez de acessibilidade ao tumor.

Este sistema permite ainda que se possa acoplar mais facilmente um outro

sistema de infusão ambulatória de quimioterapia. Este consiste num peque­

no balão cheio de medicamentos citostáticos, o qual é ligado ao "cuff" atrás

referido, através de um cateter. O medicamento vai sendo libertado na cor­

rente sanguínea ao longo de um determinado período de tempo, normalmen­

te uma semana. O balão atrás referido pode facilmente ser transportado pelo

doente dentro de uma pequena bolsa de tecido pendurada ao pescoço ou até

dentro do bolso da camisa. Este sistema é de elevada eficácia e comodidade

para o doente.

Pelo que referi, ficou claro que a quimioterapia é um procedimento sem­

pre posterior ao diagnóstico, podendo preceder, ser concomitante ou ulterior

a outros tratamentos. Em qualquer caso, e de acordo com a minha experiên­

cia, corroborada pela opinião de autores como Kubler-Ross (1991), Israel

(1993), Dolto (1998), Hennezel (1997), Hennezel & Leloup (1998) entre

outros, o doente é já conhecedor da problemática que o afecta, quer lhe

tenha sido dito ou não. Neste contexto, aquando da quimioterapia o doente

está em plena vivência do processo de transição. De acordo com O'Connor et

ai (1990), a resposta ao diagnóstico de cancro está associada com a procura

pessoal de significado de ter um cancro. Na análise feita por esta autora às

3 9 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ . . _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _

Dissertação de Doutoramento

Page 42: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

entrevistas efectuadas a doentes oncológicos foram identificados seis temas

major:

S olhar para as consequências do diagnóstico de cancro (que é o mais

importante),'

S procurar um entendimento do significado pessoal do diagnóstico!

S viver com o cancro!

•S esperança,'

•S mudança na forma como se vê!

S revisão da vida (O'Connor, 1990).

Existe uma coincidência assinalável entre estes temas e as característi­

cas do processo de transição, atrás enunciadas (Schumacher & Meleis,

1994). Por sua vez, Morton (1996), identificou diversos sentimentos e reac­

ções em pessoas a quem tinha sido diagnosticado um cancro. Destas destaco,

negação, cólera/vergonha, desespero e depressão e questionamento do com­

portamento protector da família. A vivência deste processo inicia-se nor­

malmente, durante o internamento num hospital de doentes agudos. Mas,

de acordo com May (1993, 1995), a organização dos cuidados neste tipo de

hospitais não é feita de modo que permita continuidade e facilite uma aten­

ção individualizada e a expressão das mais profundas emoções dos doentes.

Torna-se assim, difícil estabelecer uma relação que permita um suporte

emocional, que transmita um sentimento de segurança e que facilite o forne­

cimento da informação adequada, aspectos que, de acordo com Palsson &

Norberg (1995), são de grande importância em doentes com cancro. Ou seja,

os cuidados não são planificados de modo a permitirem o desenvolvimento

de relações com carácter terapêutico.

Contudo, durante a quimioterapia, para além da vivência da problemáti­

ca emocional associada ao diagnóstico, existe também a associada à quimio­

terapia propriamente dita. Esta, num primeiro momento, pode-se caracteri­

zar como um misto de ansiedade, medo e esperança (Barraclough, 1999).

Ansiedade e medo pela representação que têm da quimioterapia, e esperan­

ça de que, apesar disso, aí encontrem a tão almejada cura. Posteriormente, a

problemática emocional associa-se aos efeitos do tratamento, quer os desejá-

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Dissertação de Doutoramento

Page 43: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

veis, quer os indesejáveis. Se os desejáveis prevalecem, parecem funcionar

como lenitivo face aos indesejáveis. Caso contrário, potencianrse mutua­

mente. Em qualquer dos casos, o progressivo cansaço e a variabilidade de

estados de saúde em ciclos muito curtos provocam alguma labilidade emo­

cional (Barraclough, 1999; Dougherty & Bailey, 2001; Cohn, 1982). Esta

pode caracterizar­se por manifestações de tristeza, com choro fácil, isola­

mento, ansiedade acentuada, acessos de medo face a qualquer estímulo,

insegurança, entre outros. Face ao exposto, compreende­se que a relação que

se possa estabelecer entre o enfermeiro e o doente, durante a quimioterapia,

poderá ser muito importante para este.

Pelo que já foi dito, poder­se­á concluir que a importância desta compo­

nente dos cuidados nos doentes oncológicos é evidente. Mas, apesar disso,

continua a ser evidenciada através de diversos trabalhos de investigação.

Assim, de acordo com Muetzel (1988), o determinante crucial para o cuidado

de enfermagem ser terapêutico é a qualidade da relação entre a enfermeira

e o doente. Por sua vez, os resultados de um estudo realizado por Olson

(1995), indicam uma correlação negativa (r= "0,71, p<0,00l) entre um con­

junto de variáveis relacionadas com a empatia e um conjunto de variáveis

relacionadas com a angústia e uma correlação positiva entre a empatia

expressa pelas enfermeira e a empatia percebida pelos doentes (r= 0,37 ­

0,41, p<0,05). Num outro estudo de natureza fenomenológica, cujos partici­

pantes foram utentes submetidos a intervenção cirúrgica, Kralik, Koch &

Wotton (1997), encontraram dois temas dominantes como caracterizadores

da atitude da enfermeira durante os cuidados de enfermagem : comprometi­

mento/engajamento e separação/descomprometimento. A atitude das enfer­

meiras englobadas no primeiro tema era caracterizada da seguinte forma,

no dizer das utentes'■

S nada era demasiado incómodo;

S pergunte­me/consulte­me;

S carinhosa e uso de humor;

•S compassiva e agradável;

S sabia o que eu queria sem perguntar,'

4, ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 44: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

•S sempre disponível;

S Gentil no toque;

S amigável e afectuosa.

A atitude das enfermeiras englobadas no segundo tema era caracterizada

da seguinte forma pelas utentes^

■S t ra tada como um número ou um objecto;

S demasiado eficiente e ocupada,'

S fez sentir como se eu fosse preguiçosa,'

S tem que ir em frente seja o que for que lhe esteja a acontecer!

■S fria/sarcástica na aproximação;

■S rude no cuidado físico,'

■S apenas um emprego­

S as enfermeiras fazem aquilo que lhes foi dito para fazerem (Kralik,

Koch & Wotton, 1997).

Apesar de todos estes dados nos evidenciarem a importância da compo­

nente relacional dos cuidados de enfermagem, algumas dúvidas continuam a

preocupar­me. A primeira reside no facto de, pela teorização da componente

relacional dos cuidados de enfermagem, se criar a sensação de clivagem

entre os cuidados relacionais e os outros. Ora isto não corresponde à prática

dos cuidados uma vez que, é aproveitando a proximidade e o veículo dos cui­

dados no geral, que podemos construir uma relação que pode assumir uma

importância marcante para o utente. Acresce que, as características deste

encontro e deste contacto entre a enfermeira e os seus utentes, é radical­

mente diferente do encontro e do contacto destes com outros técnicos de saú­

de. E é diferente quer pela assiduidade, quer, por vezes, pela imposição, pelo

carácter instrumental, pela grande proximidade e intimidade, entre outros.

E exactamente este conjunto de características que nos conduzem à

segunda grande dúvida que é a seguinte: sendo os modelos teóricos da "Esco­

la da Interacção" construídos tendo como referência os contextos psiquiátri­

cos e frequentemente, a partir da importação de teorias de outras áreas

científicas e profissionais, até que ponto darão resposta às características e à

estrutura da relação entre a enfermeira e o utente neste contexto? A primei­

_ - _ _ _ _ _ _ _ _ = = = „ _ _ „ = = = = = = . _ „ = = = „ _ _ _ = = „ _ _ _ _ „ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 4 2

Dissertação de Doutoramento

Page 45: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ra parte da pergunta anterior justifica-se porque, ainda que possam haver

elementos em comum na relação desenvolvida num e noutro contexto, have­

rá com certeza muitos diferentes. Ou seja, e de acordo com o conceito propos­

to por Meleis (1991, 1997), as características da transição de um doente psi­

quiátrico são necessariamente diferentes das de um doente a quem foi diag­

nosticado cancro. As razões para estas diferenças são muito diversas a

começar pelas características da representação da doença e a acabar no con­

texto. Este conjunto de razões é suficiente para introduzir características

específicas no processo relacional.

A segunda parte da questão atrás colocada (i.e., a importação de teorias a

partir de outras áreas do conhecimento) constitui-se também como dúvida

para alguns outros autores. Assim, Morse et ai (1992) questionam a apro­

priação por "empréstimo" dos modelos de empatia sem serem questionados,

na inter-relação enfermeiro-utente, particularmente na perspectiva das

necessidades da prática clínica. Efectivamente, se atentarmos nas definições

de empatia produzidas por alguns dos seus teóricos (e.g., Mehrabian & Eps­

tein, 1972; Batson, 1992; Eisenberg & Strayer; 1992), percebemos que

naquele conceito coexiste uma dimensão emotiva e uma outra cognitiva. A

primeira dimensão parece estar presente desde momentos muito precoces do

desenvolvimento de qualquer pessoa e pressupõe a capacidade de perceber o

mal-estar alheio e de reagir a ele. Esta capacidade de percepção pode ser

indutora de sofrimento e levar a pessoa a aproximar-se no sentido de meno-

rizar o sofrimento do outro, menorizando assim também o seu,' ou então,

levar a pessoa a afastar-se como forma de menorizar o seu sofrimento.

A segunda (i.e., cognitiva) desenvolve-se à medida que a capacidade cog­

nitiva se vai desenvolvendo e pressupõe a compreensão e representação do

sofrimento do outro.

Nesta acepção todos os seres humanos são dotados de capacidade empá­

tica. Porém, só por si, tal não significa que todas as pessoas sejam capazes

ou queiram ajudar os outros. Isto porque, tal como mais atrás referi, a capa­

cidade empática pode ser geradora de sofrimento e levar ao afastamento.

Todavia, as potencialidades terapêuticas da empatia foram reconhecidas e

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

largamente evidenciadas por diversos psicoterapeutas. Neste sentido,

Rogers (1974, 1995), apresenta a empatia como um conceito central e um

instrumento terapêutico fundamental. Mas, para ser usado como instrumen­

to terapêutico, são evidenciados e ensinados diversos pressupostos que evi­

tem o sobreenvolvimento do terapeuta. Para além disso, este conceito foi

estudado do ponto de vista psicoterapêutico essencialmente em contextos de

relação dual, a decorrerem em espaços físicos próprios.

Face ao exposto é legítimo questionar, tal como o fez Morse et ai (1992), a

aplicabilidade deste conceito às situações clínicas vividas pelos enfermeiros,

considerando basicamente duas dimensões: o contexto dos cuidados, e o

nível de proximidade/intimidade. Efectivamente o contexto dos cuidados de

enfermagem não é comparável ao contexto da interacção psicoterapêutica

dual e em gabinete. Também o nível de intimidade/proximidade é radical­

mente diferente, quer por força da vivência do doente, quer por exigência dos

cuidados que são prestados. Neste sentido e num estudo realizado por Bot-

torff & Varcoe (1995) conclui-se que as actividades desenvolvidas pelos

enfermeiros lhes conferem a permissão de que precisam para entrarem

numa relação de grande proximidade, que lhes dá acesso à intimidade e que

funciona como uma ponte essencial. Os resultados deste estudo suportam

também conceptualizações de enfermagem que reflectem a natureza dinâmi­

ca e transacional da interacção em enfermagem, em contraste com aquelas

outras que descrevem a enfermagem como um processo sequencial e linear.

Por último, os resultados deste trabalho evidenciam ainda que a comunica­

ção enfermeiro-utente é muito mais complexa que aquela que é capturada

pelos modelos comunicacionais emprestados dos campos da psicologia ou

terapia familiar.

Assim, também Alligood (1991) pensa que existem dificuldades em esta­

belecer paralelismo entre a inter-relação enfermeiro-utente e psicoterapeu-

ta-utente. Gould (1990) sugere que estes dois tipos de inter-relação deverão

ter finalidades prometidas muito diferentes, e Egan (1982) declara que o

objectivo do aconselhamento é ajudar os clientes a lidar com as dificuldades

e situações problemáticas e não estabelecer inter-relações próximas. Apesar

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Dissertação de Doutoramento

mài

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

disto, o valor de uma inter-relação próxima entre o doente e o enfermeiro

tenrse vindo a tornar crescentemente aceite, ainda que, particularmente

através de desenvolvimentos tais como a "enfermagem primária". Benner &

Wrubel (1989) ao mesmo tempo que declaram que o sobre-envolvimento

pode ser prejudicial, afirmam que a separação (desprendimento, despreocu­

pação) só é possível se a enfermeira não cuidar. Ou seja, de acordo com

aquelas autoras, o comprometimento e a preocupação são elementos inte­

grantes de uma relação de cuidados.

Face a isto, constata-se que a administração da quimioterapia oncológica

é um procedimento que exige grande rigor e que normalmente se prolonga

por várias horas. É também um procedimento que se pode repetir várias

vezes por semana e ao longo de várias semanas, podendo ser interrompido e

reiniciado várias vezes ou repetido, prolongando-se assim por meses. É por

último, um procedimento do qual podem resultar vários e desagradáveis

efeitos secundários. O enfermeiro tem condições para, em todo este processo,

ser a figura pivot. Efectivamente, é ele quem prepara a terapêutica, prepara

o doente para a sua administração, e administra e vigia os efeitos secundá­

rios. Mas é ele também que está com o doente durante todo o tempo que este

permanece no serviço, ao longo de várias semanas. É com ele que o doente

priva e estabelece uma relação próxima. E a ele que o doente coloca as suas

dúvidas e apresenta as suas angústias. Esta relação é de tal ordem que

mesmo nos dias em que os doentes não fazem tratamento, por vezes telefo­

nam para tirar dúvidas ou aliviar angústias. De acordo com a minha expe­

riência e com os contactos por mim desenvolvidos, posso afirmar que o tipo

de cuidados solicitados pelos doentes a estes enfermeiros é de grande com­

plexidade e exigência. Isto conduz a uma relação que os doentes frequente­

mente referem como essencial para a vivência do seu processo de transição.

Assim e em jeito de resumo, pode-se dizer que os elementos em presença

durante o período de quimioterapia são^

o doente, afectado por uma doença que lhe impôs um processo de

transição radical;

4 5 _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ . _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ » . _

Dissertação de Doutoramento

Page 48: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

o enfermeiro, que pode assumir um papel autónomo essencial para

ajudar o doente no seu processo de transição, mas que assume

também o papel de coadjuvante no tratamento médico, preparando

e administrando a quimioterapia,'

o contexto, entendendo-se este em duplo sentido^ por um lado, o

contexto em que o doente vive a sua situação de saúde-doença e por

outro, o contexto em que ocorre o processo de relação enfermei-

ro-utente, ou seja, o hospital de dia.

De acordo com os trabalhos de investigação já citados e com a minha

experiência, o papel do enfermeiro pode revestir-se de uma importância

determinante. Porém, nenhum dos trabalhos consultados nos diz qual é a

estrutura do processo de relação que se estabelece entre o enfermeiro e o

doente durante este período de tempo. Face a isso e à insuficiência de outras

áreas de conhecimento para descreverem e explicarem este fenómeno,

entendo que se impõe o estudo deste processo.

Dissertação de Doutoramento 46

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Os ulciilcs c os enfermeiros: Construção de uma relação

4 ? _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

2 - ENQUADRAMENTO CONCEPTUAL

Este capítulo tem como objectivo essencial, proceder ao enquadramento

da enfermagem enquanto disciplina e profissão, como forma de clarificar a

minha perspectiva epistemológica e de perceber o porquê das opções metodo­

lógicas assumidas. Assim, neste capítulo considerarei, num primeiro

momento, os critérios epistemológicos relativos ao desenvolvimento do

conhecimento, à percepção da realidade e à verdade. Posteriormente carac­

terizarei a enfermagem enquanto disciplina/profissão, realçando o papel da

prática, nomeadamente através da referência aos padrões de conhecimento.

Por último, farei referência à estrutura essencial da disciplina de enferma­

gem.

2.1 - ENQUADRAMENTO EPISTEMOLÓGICO

2.1.1 - Critérios de desenvolvimento do conhecimento: revolução, evolu­

ção ou integração

Têm sido vários os filósofos e cientistas que, ao longo do tempo, se têm

preocupado com a questão do desenvolvimento do conhecimento, bem como

da sua organização estrutural, os quais dão corpo aos diversos ramos das

ciências. O que está basicamente em causa é saber quais são os critérios de

desenvolvimento e de organização do conhecimento para que uma determi­

nada área se possa considerar ciência. Naturalmente, as respostas encon­

tradas variam de acordo com os padrões de que os analistas se servem. Ao

aplicarem padrões mais congruentes com as ciências ditas positivas (e.g.,

ciências físicas e afins), podem chegar a resultados nem sempre muito lison­

jeiros para as ciências ditas emergentes ou para as incluídas nos grupos das

ciências sociais e humanas. Por sua vez, se se optar por aplicar critérios que

prevejam a especificidade destas últimas, os defensores das primeiras põem

em causa a sua cientificidade, dando assim corpo a uma polémica que se tem

prolongado no tempo. A este propósito veja-se a polémica nacional entre

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Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Santos (1987, 2003) e Baptista (2002), a qual não é mais que uma réplica

tardia de idêntica controvérsia a nível internacional.

Face a isto, enunciarei as características gerais das diversas teorias

explicativas e aprofundarei um pouco mais aquela que, no meu entender,

melhor explica o que se passa na enfermagem. Assim e de acordo com Meleis

(1991, 1997), há três teorias distintas que tentam explicar o desenvolvimen­

to das ciências^ teoria da revolução, teoria da evolução e teoria da integra­

ção.

A Teoria da Revolução. Esta teoria foi desenvolvida por Thomas S. Kuhn

(1970, 1975), um físico norte-americano, durante a segunda metade do sécu­

lo XX. Este pensador apercebeu-se que as explicações tradicionais que eram

dadas para o desenvolvimento da ciência (e.g., indutivismo, o falsificacio-

nismo) não resistiam à evidência histórica. Através da análise por si desen­

volvida, Kuhn defendeu que a ciência não se desenvolve de modo linear, mas

sim através de mudanças repentinas e radicais, durante as quais as teorias

competem entre si até à predominância de uma sobre todas as outras. Este

processo repete-se ciclicamente e a um período de crise, segue-se outro de

tranquilidade, denominado de "ciência normal", durante o qual os membros

de uma dada ciência aceitam a predominância de uma determinada teoria.

O modo como Kuhn entende o progresso científico implica a compreensão de

alguns conceitos fundamentais por si propostos ou redefinidos, nomeada­

mente: "paradigma", "ciência normal", "anomalia",e "revolução".

Assim, a fase que precede a formação de uma ciência, é caracterizada por

uma actividade muito diversa e por uma enorme desorganização. Esta só

cessa mediante a adopção de um paradigma que a estruture. No entender

deste autor (Kuhn, 1970, 1975), o "paradigma" será então, uma estrutura

mental assumida, que serve para classificar o real antes do estudo ou inves­

tigação mais profunda, e que comporta elementos de natureza metodológi-

co-científica, mas também metafísica, psicológica, etc.

Por sua vez a "ciência normal", será o período em que se actua dentro de

um dado paradigma, que é adoptado por uma comunidade científica. Um

"paradigma" será então, segundo Kuhn (1972) o que os membros de uma

4 9 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ „ _ _ _ _ = = = = = = = = „ _ „ _ _ _ . . = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = = =

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

comunidade científica parti lham ou seja, um conjunto de suposições teóricas

gerais, leis e técnicas para a sua aplicação. Por sua vez, uma "comunidade

científica" é constituída por pessoas que compartilham um paradigma.

Assim, durante o período de ciência normal os cientistas evoluem, dentro

dos problemas que o paradigma assumido permite detectar. Todavia, podem

experimentar dificuldades ou problemas que o paradigma não consegue

resolver. Estas são denominadas "anomalias". Quando as anomalias se acu­

mulam ou adquirem uma significado considerável, instakvse uma crise que

só será resolvida pela emergência de um novo paradigma. Este período de

mudança repentina e violenta é denominado "revolução científica". Na

sequência deste, muda-se a forma de olhar o real e criam-se novos paradig­

mas. Curiosamente, Kuhn descreve a adopção individual de um novo para­

digma como uma espécie de "conversão" que envolve todo um possível con­

junto de razões. Após a adopção de um novo paradigma inicia-se um período

de ciência normal até que uma nova crise se instale.

O autor defende que as crises são inevitáveis para o desenvolvimento de

uma ciência, e que o desenvolvimento científico é não-cumulativo. Ou seja,

os aspectos úteis de uma dada teoria não são utilizados por uma outra se a

primeira foi rejeitada. As ideias de Kuhn levam-nos à crença de que as dis­

ciplinas se desenvolvem relativamente a um determinado paradigma aceite

em determinado momento.

Com base na teoria da revolução, a enfermagem e a maioria das ciências

sociais e humanas não poderiam ser consideradas ciências, situando-se ain­

da no estádio pre-paradigmático (ver quadro 1).

Teoria da evolução. As ideias de Kuhn foram muito criticadas por alguns

autores (e.g., Laudan, 1977,' Toulmin, 1981). Curiosamente, Kuhn construiu

a sua teoria com base na análise histórica das ciências e com base em idênti­

ca análise, estes outros autores criticaram a sua posição. A principal crítica

referia que a teoria da revolução não correspondia à realidade histórica do

desenvolvimento de determinadas ciências. Assim, como alternativa à teoria

desenvolvida por Kuhn, foi proposta a "teoria da evolução' (Toulmin, 1972).

==================================================================== 5 0

Dissertação de Doutoramento

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Os utenlcs e os enfermeiros: Construção de uma relação

Toulmin (1972) identificou quatro principios na teoria da evolução das

espécies de Darwin e usou-os para formular a sua teoria do desenvolvimento

do conhecimento. De acordo com o primeiro princípio, cada disciplina tem o

seu corpo de conceitos, áreas de preocupação, metodologias e objectivos pró­

prios, todos eles em processo de mudança. Todavia, este processo de mudan­

ça é dotado de continuidade e caminha no sentido de uma maior coerência.

Ou seja, verificar-se-á uma continuidade e uma mudança na direcção do

mais simples para o mais complexo e no sentido de uma maior coerência (ver

quadro l).

O segundo princípio afirma que as ideias, bem como os conceitos e meto­

dologias, estão em permanente processo de discussão face às novas descober­

tas. Deste processo resulta a retenção de alguns conceitos e a mutação de

outros, numa dinâmica de mudança mas em coerência e estabilidade. Ape­

nas as ideias que se ajustam a este processo de mudança na continuidade,

permanecem ao longo dos tempos, conferindo estabilidade e coerência ao

desenvolvimento de uma disciplina.

O terceiro princípio refere que as alterações substantivas em um deter­

minado campo de conhecimentos são possíveis desde que um determinado

número de condições estejam reunidas. Entre elas, a existência de pessoas

qualificadas que produzam novas ideias e a existência de espaços de discus­

são. Ou seja, mesmo neste caso é pressuposta alguma organização para que

a evolução na continuidade ocorra.

O quarto e último princípio afirma que a escolha das ideias, conceitos e

teorias mais úteis, diz respeito à capacidade para encontrar respostas para

os problemas colocados pela disciplina em determinado momento.

A teoria da evolução do conhecimento pressupõe acordo quanto às áreas

problemáticas e aos critérios de verdade, e ainda quanto à existência de

indicadores de que a disciplina se está a desenvolver cumulativamente.

Com base nesta teoria, as ciências sociais e humanas, onde a enferma­

gem se pode incluir, terão dificuldade em ser consideradas disciplinas, sendo

antes tidas como "pretendentes a disciplinas" (Meleis, 199D.

51 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Teoria da integração. Porém e independentemente do que acabei de

afirmar, existe uma realidade comum a diversas áreas do conhecimento que

não é explicada pelas teorias que referi. Tal é o caso de grande parte das

áreas do conhecimento que emergiram a partir de profissões, como é o caso

das ciências da educação, mas também da enfermagem, entre outras. Assim

e tendo em consideração as características específicas da enfermagem e da

sua evolução, poder-se-á afirmar que ela não obedece aos critérios enuncia­

dos nas teorias atrás referidas porque está marcada, por um lado, pelo facto

de ter evoluído a part ir de um ofício, e pelo outro, por ter estado à margem

da academia durante tempos consideráveis. No conjunto destas razões não

será despiciendo o facto de ser uma profissão essencialmente feminina e

como tal, estar também marcada pela posição que a mulher tem ocupado na

sociedade ao longo dos tempos (Medina, 1999).

Apesar destas vicissitudes, a enfermagem enquanto área de conhecimen­

to tem-se vindo a desenvolver. Todavia, quer por força do que atrás argu­

mentei, quer das especificidades inerentes à enfermagem, bem como a

outras disciplinas análogas, não se poderão usar os padrões atrás referidos

para aferir a sua evolução e desenvolvimento. Aquelas especificidades têm a

ver, entre outras, com a sua natureza prática, de que mais à frente falarei.

Meleis (1991, 1997), afirma que na disciplina de enfermagem não se pode

falar de uma determinada matriz linear de evolução, uma vez que a mesma

progride através de cumes, vales, retrocessos, caminhos circulares e crises.

Deste percurso destaca-se:

S O desenvolvimento de uma teoria não está necessariamente baseado

na investigação, nem esta leva necessariamente a uma teoria.

•f Sempre existiram e existem áreas de acordo a par com áreas de

competição e de desacordo. Por exemplo, existem diferentes metodo­

logias de investigação, diferentes conceitos sobre cuidar, conforto,

etc. Existem também áreas de acordo no que concerne aos conceitos

centrais da disciplina.

•S Numa disciplina que lida com o ser humano, é pouco credível que

uma única teoria explique, descreva e prediga todos os seus fenóme-

Dissertação de Doutoramento - 52

Page 55: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

nos (e.g., interacção, doença, saúde, intervenções de enfermagem,

etc.).

S A enfermagem age num sistema aberto e é influenciada e reage à

sociedade em todo o momento.

S Não se pode dizer que existam na enfermagem comunidades organi­

zadas que suportem uma teoria em competição com outras.

■S Pode dizer­se que existe compromisso entre os antigos e os novos

conceitos na enfermagem.

■S Em situações de mudança, os antigos paradigmas são redefinidos,

mais do que rejeitados.

■S Verifica­se a existência de debate de ideias, quer à volta de conceitos

já estabelecidos, quer na procura de novos caminhos.

Apesar de este percurso não obedecer aos padrões de desenvolvimento

atrás enunciados, constata­se que do mesmo tem resultado um rico e não

desprezível património. Pelo que, qualquer abordagem relativamente à

enfermagem enquanto disciplina terá que o ter em consideração. Terá que

fazer uma valorização cuidadosa dos seus padrões de crescimento e de

desenvolvimento, dos seus marcos, etapas e fenómenos, e terá ainda que

demonstrar a qualidade e significância das questões que colocou e das res­

postas que deu (Meleis, 1991). Uma das respostas dadas pela disciplina de

enfermagem foi a perspectiva multiparadigmática. Ou seja, na tentativa de

compreender a complexidade do seu objecto de estudo, foi desenvolvendo

teorias passíveis de serem integradas em paradigmas diferentes. Esta foi a

razão apontada por muitos pensadores, quer pertencentes à disciplina, quer

externos, para não atribuírem à enfermagem o estatuto de ciência. Com­

preende­se agora que este processo resulta afinal da natureza do objecto de

estudo, bem como da natureza da enfermagem. Ou seja, para dar resposta à

natureza complexa do objecto de estudo, é necessário que esta área de

conhecimento se organize de forma complexa. Aliás, se esta organização

complexa não existir, não conseguiremos desenvolver a perspectiva holística

que dizemos ser característica da profissão e disciplina de enfermagem. Face

a isto, aquilo que aparentemente era uma limitação, é afinal uma virtude.

53 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Quadro 1 - Comparação entre os três processos de desenvolvimento de uma disciplina^ Revolução, Evolução e Integração.

UNIDADE ANALÍTICA REVOLUÇÃO EVOLUÇÃO INTEGRAÇÃO

SENTIMENTO Agressão^ Crises Adaptação Mudança INTERACÇÃO Competição Cumulação Colaboração

OBJECTIVOS Conquista Subversão

Construir Desenvolver

Progredir Compreender

PROCESSO

Substituição Eliminação Descontinuidade

De baixo para cima Selecção Simples para o com­plexo Continuidade

Abertura Flexibilidade Contemporâneo e tradicional Inovação

PADRÃO DE DESENVOL­VIMENTO

Convergência Mutação Lento, de longo alcan­ce

Diversão

RACIOCÍNIO Contraditório Lógico Dialéctico MODO Rejeição Aceitação Compreensão

AVALIAÇÃO Criticar para destruir Analisar para cons­truir

Dialogar para desen­volver

AMBIENTE Crítico Desafio

Restritivo De suporte

OPÇÕES Sem opções durante o período de ciência normal

Opções limitadas Aberto/Opções ilimi­tadas

UNIDADES DE ANÁLISE

Paradigmas Mudanças

Méritos Competições Exigências Sucesso

História Padrões Desenvolvimento dos membros Número de fenómenos únicos identificados Qualidade das ques­tões respondidas Actualização da rela­ção entre investiga­ção, teoria e prática

ENFERMAGEM Pré-paradigmática Pretendente a disci­plina

Disciplina

Fonte: Meleis (1997)

Neste sentido se pronunciam também Monti & Tinge n (1999). No seu

entender, e porque a enfermagem lida com o comportamento humano em

saúde, um único ponto de vista não é suficiente para explicar a variedade de

fenómenos e de relações que se estabelecem neste contexto. A unificação teó­

rica funciona como um microscópio, amplifica a visão de um aspecto muito

específico, porém perde-se a noção do todo. Ao contrário, a multiplicidade de

paradigmas permite a visão de diversas facetas de um mesmo problema.

Para além disso, estimula o debate. De acordo com a teoria da integração

Dissertação de Doutoramento '— 54

Page 57: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulciilcs c os enfermeiros: Construção de uma relação

(Meleis, 1991), é o debate e a competição de teorias que contribui definiti­

vamente para a construção da disciplina de enfermagem.

Ainda de acordo com Monti & Tingen (1999), a existência de múltiplos

paradigmas na ciência de enfermagem indica-nos que estamos perante uma

ciência forte e com potencial de desenvolvimento. A coexistência de para­

digmas múltiplos denota uma comunidade científica "saudável", porque esta

realidade encoraja a criatividade, estimula o debate e a troca de ideias e

proporciona uma maior diversidade de pontos de vista (Kim, 1997; Ramos,

1997), promove a produtividade cientifica e deixa abertas várias vias para a

investigação (Donaldson & Crowley, 1997).

Para que todos os aspectos atrás referidos sejam tidos em consideração,

Meleis (1991) propõe a teoria da integração. Trata-se de uma teoria que não

tem subjacente o padrão tradicional de progresso por convergência para um

paradigma, o que não quer dizer que esta teoria advogue a ausência de um

padrão ou um padrão negativo. Defende antes um padrão de progresso no

qual possam estar representadas as realizações de enfermagem e a sua base

teórica sólida. Do referido padrão fazem ainda parte processos como a aco­

modação (no sentido piagetiano do termo), o refinamento (no sentido de um

requinte progressivo) e a coordenação entre pensamentos, ideias e indiví­

duos. Daqui se pode depreender que esta teoria não subestima a necessidade

de desenvolvimento e de progresso inerente a qualquer ciência. Todavia,

abre a possibilidade de crítica cuidadosa de tudo o que existe e já foi feito,

bem como do que ainda falta realizar (Meleis, 1991). Quando a enfermagem

é analisada nestes termos, a sua aceitação enquanto disciplina parece não

levantar problemas (ver quadro l) .

2.1.2 - Critérios de percepção^ da "visão recebida" à "visão percebida"

Subjacente às três perspectivas de desenvolvimento de uma disciplina,

atrás enunciadas, está a questão da percepção da realidade. Efectivamente,

o modo de perceber a realidade de cada um, determinará, em última análise,

as características do processo de investigação, quer no que concerne à meto­

dologia, quer às técnicas de recolha de dados, e consequentemente, o tipo de

5 5 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ . _ _ _ _ _ _ _ _ « « » « _ _ _ _ Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

teorias que serão desenvolvidas. Fácil será perceber que, se entendermos a

realidade circundante como um mundo objectivo, então só os dados com

estas características serão de considerar, e as teorias tenderão a ser uma

representação fiel daquela. Se, por outro lado, tivermos da realidade uma

visão de realidade vivida e recriada pelo Homem, então a subjectividade ine­

rente a essa vivência terá que ser considerada, tanto no processo de investi­

gação, como nas técnicas de recolha de dados e nas teorias resultantes.

Estas diferentes perspectivas de percepção da realidade poderão agrupar­se

sob duas designações : a visão recebida e a visão percebida (ver quadro 2).

A visão recebida é normalmente a perspectiva atribuída ao movimento do

"positivismo empírico" ou ao "positivismo lógico". Este movimento filosófico

teve o seu início no século XIX e está associado ao célebre círculo de Viena.

De acordo com este movimento, só há duas fontes de conhecimento: o racio­

cínio lógico e a experiência empírica. O conhecimento lógico inclui a mate­

mática, a qual é redutível à lógica formal. O conhecimento empírico inclui a

física, biologia, psicologia, entre outras. A experiência é o único juiz das teo­

rias científicas; contudo, os positivistas lógicos estavam cientes de que o

conhecimento científico não brota exclusivamente da experiência'■ as teorias

científicas são hipóteses genuínas que vão para além da experiência (Murzi,

2001).

Face ao exposto, pode então dizer­se que este círculo advogava uma

amálgama da lógica com os objectivos do empirismo no desenvolvimento das

teorias científicas. Eram os seguintes os princípios doutrinários do empiris­

mo lógico (Ryckman, 2001; Baldwin, 2004)):

1. As declarações que não poderem ser confirmadas por dados sensíveis e por

experiências sensíveis não são consideradas declarações teóricas merecedoras

de serem prosseguidas.

2. Declarações verdadeiras são somente consideradas aquelas que forem a poste­

riori. Ou sejam, são baseadas na experiência e conhecenrse a partir da expe­

riência.

3. Os positivistas olham para a maioria das tradicionais considerações metafísicas

e éticas como sem sentido. Os positivistas olham para essas questões como pos­

suindo significado "emotivo" e como sendo "cognitivamente sem sentido".

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

4. A análise das teorias é baseada na análise de teorias completas e estas são ba­

seadas em dados empíricos. O contexto de justificação - isto é, a verificação e

falsificação das preposições da teoria completa - é o único contexto significante

para consideração para estes cientistas e filósofos. Por outro lado, os contextos

de descoberta, tais como resultados conceptuais, contextos nos quais as teorias

são desenvolvidas, lógica no desenvolvimento teórico, e utilidade, devem estar

dentro do terreno de preocupação dos sociólogos do conhecimento1 os psicólogos

e historiadores.

5. Porque a visão recebida considera que a teoria reflecte representações da reali­

dade à posteriori, documentada por experiências sensíveis, isto então implica

que as proposições das teorias são apresentadas de uma maneira simbólica,

formal e axiomática. Há lugar para análise à priori, ainda que seja somente de

natureza matemática.

6. A ciência é livre de valores, e há apenas um método para a ciência, que é o

método científico (Cf. Meleis, 1991, p. 89).

De acordo com alguns pensadores (e.g., Winstead-Fry, 1980; Watson,

1981), o método científico baseado na visão percebida é sinónimo de "redu-

cionismo, quantificabilidade, objectividade e operacionalização". Como tal, se

este método científico for adoptado de modo exclusivo na enfermagem, então

alguns problemas holísticos significativos serão ignorados porque eles não

são, nem redutíveis, nem quantificáveis ou objectivos. Isto porque este

método científico reduz os problemas à sua unidade mais pequena ou à sua

mais insignificante forma e extirpa-os do rico contexto do qual emanam.

Winstead-Fry (1980) e Watson (1981), entendem ainda que o percurso da

enfermagem em direcção a uma base científica tem sido dificultado pela

insistência dos seus líderes em usarem um método científico baseado na

visão recebida. Apesar disto, é de referir que, de acordo com uma análise de

141 trabalhos de investigação nacionais e internacionais, feita com base nos

itens, Conceitos Centrais, Perspectivas Teóricas, Metodologias e Principais

Resultados, constatei alguma predominância de metodologias qualitativas

(Lopes, 2001). De referir contudo que todos os trabalhos analisados corres­

pondiam a um período de tempo não superior a cinco anos.

A visão percebida contrapõe-se à anterior e tem como correntes filosóficas

de referência a fenomenologia e o existencialismo (Husserl, Heidegger). Os

pensadores pertencentes a esta corrente filosófica tendem a justificar a cog-

5 7 =====================================================================

Dissertação de Doutoramento

Page 60: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

nição (e alguns também a avaliação e acção) como a consciência de algo.

Assim, de acordo com esta perspectiva, não só os objectos do mundo natural

e cultural, mas também os objectos ideais, como os números, e até a vida

consciente, podem tornar-se evidentes e como tal conhecidos.

A visão percebida considera o acontecimento, bem como o contexto em

que ele ocorreu e ainda a vivência dos intervenientes (ver quadro 2). Para

atingir esta visão ampla da realidade usa metodologias de investigação rigo­

rosas, mas que considerem não só os dados ditos objectivos, como também os

subjectivos. As conceptualizações resultantes não pretendem ser uma repre­

sentação objectiva da realidade, pelo que são baseadas, para além dos dados

sensíveis, nas experiências pessoais, incorporando ideias que são subjecti­

vas, intuitivas, humanísticas, integrativas (Meleis, 1991, 1997).

Quadro 2 - Comparação da visão recebida com a visão percebida das ciências

Visão recebida Visão percebida Objectividade Subjectividade

Dedução Indução Uma verdade Verdade múltipla

Validação e replicação Tendências e padrões Justificação Descoberta

Predição e controle Descrição e entendimento Particular Padrões

Reducionismo Holismo Generalização Individuação

Positivismo empírico Historicismo Fonte: Meleis, 1991, 1997

As teorias de enfermagem que nos dão uma visão do fenómeno como uma

totalidade são baseadas nesta segunda perspectiva. O contexto de descober­

ta dessas ideias tem sido o tradicional: estudos de caso, histórias pessoais, e

"insights"'de grupo. A aceitação desta visão tem sido lenta, porque as teorias

resultantes têm sido marcadas por alguns como não científicas, uma vez que

a perspectiva dominante ainda é a positivista.

2.1.3 — Critérios de verdade: da correspondência à verdade múltipla

Na construção e desenvolvimento de uma disciplina precisamos de consi­

derar também os critérios de verdade. Se atentarmos no que atrás foi dito

Dissertação de Doutoramento ========== 58

Page 61: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os uleiites e os enfermeiros: Construção de uma relação

acerca, quer do desenvolvimento das disciplinas, quer da percepção da reali­

dade, fácil será perceber que subjacente às diferentes perspectivas estarão

com certeza critérios de verdade diferentes acerca das descobertas da inves­

tigação. Face a isto, penso que seja pertinente responder à questão^ de que

critérios nos servimos para aceitar ou rejeitar as descobertas desvendadas

pela investigação? Esta é uma questão que é colocada desde a antiguidade,

tendo sido Platão um dos filósofos que primeiro a sistematizou. Desde então

emergiram basicamente três abordagens distintas^ correspondência, coerên­

cia e pragmatismo (ver quadro 3).

Os critérios de verdade segundo a perspectiva da correspondência, estru-

tu ranrse através de um conjunto de regras cuidadosas, as quais apelam aos

dados sensíveis, a um pequeno número de variáveis e a definições operacio­

nais. Durante muito tempo esta visão dominou as ciências, a investigação e

a construção teórica nas ciências físicas e naturais. E o método de verdade

no qual a visão recebida está baseada. De facto, vários filósofos das ciências

consideram a verdade por correspondência e a visão recebida como uma e a

mesma coisa. Porém, a visão recebida e a verdade, representam dois proces­

sos diferentes. O primeiro conduz o processo de investigação, a metodologia

através da qual os dados são recolhidos e as teorias são desenvolvidas,"

enquanto que o último aplica-se ao exame das realidades e os resultados dos

achados. Enquanto que o primeiro pergunta o que fazer para saber, o último

pergunta como saber (Meleis, 1991, 1997).

Os empiricistas e os racionalistas, defendem a verdade através da cor­

respondência, e como tal estabeleceram um conjunto de regras e normas com

base nas quais o desenvolvimento teórico e a investigação se espera que

sejam analisados. Uma das mais significativas é a do truísmo dos factos e a

sua correspondência com as teorias que os cercam (Meleis, 1991, 1997). Ou

seja, os factos são uma verdade que não é necessário demonstrar e como tal

as teorias têm que os reflectir tal como eles são. Com base nisto, natural­

mente que uma das mais significativas normas de correspondência é a total

objectividade, advogando-se a separação do observador do mundo observado.

A validação é baseada na congruência entre as proposições e a realidade

Dissertação de Doutoramento

Page 62: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

existente, e não uma realidade como ela pode parecer a diferentes observa­

dores. O papel dos teóricos é equiparar o mundo com as asserções e equipa­

rar os factos com os conceitos. Os positivistas afirmam que a correspondên­

cia da verdade é adquirida através da corroboração pela verificação. Ou seja,

verificar-se tantas vezes, que seja quase impossível aquela teoria não cor­

responder à realidade. Popper (1959) modificou substancialmente a visão

positivista e desenvolveu o argumento da falsificação. Ele afirmava que o

conceito central na descoberta científica é "demarcação". O critério de

demarcação requer que consideremos a proposição científica apenas se ela

tiver o potencial de ser falsificada. Mas a sua cientificidade só será provada

quando tivermos esgotado todas as tentativas de falsificarmos as proposi­

ções. Ou seja, são tentativas contínuas para falsificar as declarações que tor­

nam o processo científico rigoroso. A verificação da declaração oposta pode

ocorrer após muitos incidentes de falsificação da declaração através da expe­

riência. Desde que a proposição seja contradita por uma simples exemplo de

falsificação, ela deve ser rejeitada.

Apesar de positivista, no seu limite, esta perspectiva de Popper, levanta­

va a possibilidade de nenhuma declaração poder ser declarada científica ad

eternum, uma vez que existe sempre a possibilidade de poder ser falsificada.

Para os teóricos da correspondência, enquanto a verificação ou a falsificação

são o foco, a verdade é alcançada através de dados sensíveis e experiências

controladas. A correspondência da realidade existente, dos factos e das pro­

posições, é a meta. Não existe espaço para a metafísica, para a verdade con­

ceptual, para realidades múltiplas ou para as percepções da realidade.

A perspectiva da verdade através da coerência difere consideravelmente

da anterior (ver quadro 3). A verdade através da coerência é manifestada na

maneira lógica como se relatam as inter-relações e julgamentos. Enquanto

que as normas para a correspondência são a verificação e falsificação com

dados sensíveis, as normas para a coerência são a integração das inter-rela­

ções, simplicidade das apresentações e uma certa beleza das proposições

(Meleis, 1991, 1997).

_ _ _ _ = = = = = _ - _ _ _ _ _ _ „ = = = = = = = = „ „ _ _ „ _ = = = = = = = = = „ . _ „ _ _ _ „ . „ _ „ _ = = _ _ _ _ _ 6 0

Dissertação de Doutoramento

Page 63: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulcnlcs c os enfermeiros: Construção de uma relação

Quadro 3 - Algumas características dos critérios de verdade de acordo com a correspondência, coerência e pragmatismo

PARÂMETROS PERSPECTIVAS PARÂMETROS CORRESPONDÊNCIA COERÊNCIA PRAGMATISMO

NORMAS Corroboração Lógica Experiência

CONTEXTOS Contexto da justifica­ção

Contexto da experiên­cia

Contexto da descoberta e justificação

METAS Aceitação/rejeição Suporte Compreensão REALIDADES Uma Múltipla

PAPEL DOS TEÓRICOS

Aparelhar o mundo com asserções

Viver com o mundo de asserções

Viver com os utilizado­res PAPEL DOS

TEÓRICOS Distância Humanismo

Verificação Simplicidade Utilidade AVALIAÇÃO

Falsificação Beleza Resolução de proble­mas

PROCESSO Fim Processo Processo

VALIDAÇÃO Congruência entre proposições e realidade Tolerância de ideias Consenso dos utiliza­

dores Fonte: Meleis, 1991, 1997

Embora as normas da correspondência e da coerência pareçam contradi-

zerenrse entre si, é no entanto, possível considerá-las como complementa­

res. Enquanto usamos as normas da coerência para julgar e avaliar teorias,

podemos usar as normas da correspondência para julgar as proposições que

resultam da investigação.

Nos anos trinta do século XX, um terceiro tipo de teoria acerca da verda­

de foi avançada por um grupo de filósofos americanos denominados pragma-

tistas (e.g., William James, John Dewey, George Mead). De facto, de acordo

com Armour (1969), há dois tipos de teorias pragmáticas sobre a verdade. De

acordo com a primeira, uma asserção é verdadeira se produz o tipo certo de

influência nos seus seguidores. Por outras palavras, uma proposição é decla­

rada como verdadeira quando a sua utilidade for determinada por quem a

usa. A experiência e a habilidade para resolver problemas são duas normas

consideradas nesta visão da verdade. A segunda diz-nos que uma proposição

ou qualquer inter-relação teorizada, é verdadeira se receber confirmação de

uma pessoa ou pessoas que tenham conduzido a investigação correcta ou que

foram designadas como significativas pela comunidade académica. Neste

contexto e de acordo com esta teoria, um consenso entre os teóricos significa­

tivos ou investigadores é o que constitui a verdade.

6 j _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dissertação de Doutoramento

Page 64: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

Uma teoria pragmática da verdade permite a validação das teorias atra­

vés da reestruturação, uso de novas técnicas, ou mesmo melhor conhecimen­

to e realizações dos significados das velhas inter-relações. O valor desta

nova inter-relação não está tanto nas respostas que possa providenciar mas

nas perguntas que pode colocar e nas consequências que podem resultar do

seu uso.

Contudo, na enfermagem, bem como noutras disciplinas, existem alguns

problemas conceptuais que não são muito bem resolvidos por qualquer das

teorias de verdade referidas. Laudan (1977) identificou três. O primeiro des­

ses problemas é intracientífico, e resulta, por exemplo, da existência de duas

teorias inconsistentes. Um exemplo pode ser a visão de Rogers (1970) do ser

humano unitário como um campo de energia, e a visão de Johnson (1974), do

ser humano como um sistema socio-comportamental, com sete subsistemas e

manifestado em comportamentos observáveis. Por causa da incompatibili­

dade teórica entre as duas visões fundamentais do utente de enfermagem, os

enfermeiros podem tender a aceitar uma em detrimento de outra. A rejeição

da concepção de Rogers levar-nos-ia a criar uma escola de pensamento cien­

tífico em enfermagem, reducionista. É também possível que a novidade da

enfermagem como disciplina, torne fácil rejeitar ambos os pontos de vista

em competição em favor de um outro mais estabelecido (e.g., a pessoa como

um sistema biológico), e em detrimento de resolver o problema central. Nem

o critério da correspondência nem o da coerência podem resolver este assun­

to; apesar de tudo, ele é melhor resolvido através de uma abordagem prag­

mática da verdade.

A segunda dificuldade tem a ver com inconsistências filosóficas resultan­

tes do facto de as filosofias dominantes na enfermagem clínica serem dife­

rentes das que predominam na disciplina a nível académico (Munhall,

1982).

À terceira dificuldade que não pode ser resolvida por nenhuma das teo­

rias, Laudan chamou-lhe "dificuldades da visão do mundo prevalente" (Lau­

dan, 1977, p. 61). Este fenómeno é observado quando os mitos, as crenças, a

história e a prática estão em oposição com as teorias em desenvolvimento. A

Dissertação de Doutoramento — 62

Page 65: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

visão de enfermagem prevalente aplicada pelos clínicos é a de que a enfer­

magem é prática e orientada para a tarefa e que os seus princípios bem

como as suas tarefas são derivadas de outras disciplinas. A enfermagem não

é teórica nem académica, diz esta visão do mundo.

Existe também tensão entre os investigadores que acreditam que as teo­

rias se desenvolvem apenas a partir da investigação e os teóricos que acredi­

tam que as teorias são o culminar da experiência, história e intuição, bem

como dos resultados da investigação. Tem havido muitas visões do mundo

na enfermagem, com muito pouca imputação a um visão teórica do mundo.

Para resolver muitos destes problemas na enfermagem é proposta a verdade

múltipla. Esta perspectiva tenta resolver os diversos problemas que nenhu­

ma das teorias de verdade é capaz de resolver de modo isolado.

2.1.3.1 —A verdade múltipla na enfermagem

Suppe (1979), em alternativa às normas da correspondência e à visão

recebida, sugeriu que o que é preciso é uma perspectiva diferente a partir da

qual as teorias possam ser analisadas. Essa perspectiva deveria ter a capa­

cidade de responder a alguns dos problemas atrás referidos e considerar a

complexidade do ser humano. Na tentativa de encontrar essa nova perspec­

tiva aquele autor sugeriu a expressão alemã Weltanschauung que é definida

como "uma visão compreensiva do mundo, especialmente a partir de um

determinado ponto".

Esta visão compreensiva do mundo, enquanto teoria da verdade aplicada

à enfermagem teórica, incluiria uma integração das normas emanadas a

partir de diferentes teorias da verdade. Combinaria rigor e intuição, dados

sensíveis tais como eles existem e tal como eles aparecem, percepção do

sujeito e do teórico e lógica com dados clínicos observáveis.

E porquê este "fato à medida" para apreciação das teorias de enferma­

gem? Não estaremos a tentar encontrar normas à medida das teorias para

depois podermos afirmar a enfermagem como disciplina científica? É minha

convicção que tal não é verdade. Efectivamente não são as teorias que são

contraditórias e diversas, ou se o são elas simplesmente resultam da tenta -

63 Dissertação de Doutoramento

Page 66: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

tiva de compreensão de um fenómeno de elevada complexidade. Não pode­

mos rejeitar uma teoria simplesmente porque não está de acordo com a nos­

sa perspectiva paradigmática. Deveremos antes interrogar-nos se ela ajuda

a compreender alguma faceta do ser humano. A ser afirmativa a resposta,

então a mesma deve permanecer e como critérios de verdade deverão serem

usados os especificos dessa perspectiva paradigmática.

Alguma investigação em enfermagem tem sido guiada pela visão positi­

vista e pela correspondência. Algumas teorias desenvolvidas também têm

sido guiadas por estas normas. Por exemplo Orlando (1961) e Johnson

(1974) desenvolveram teorias focadas em comportamentos observáveis e

verificáveis. Por sua vez, Rogers (1970), na conceptualização do ser humano

unitário como um campo de energia, falou de experiências para além dos

cinco sentidos. Com base nisso, não poderia usar as normas da correspon­

dência para verificar a sua conceptualização, mas em vez disso usou as nor­

mas da coerência. Muitos outros defenderam a necessidade de considerar­

mos as normas da coerência na conceptualização em enfermagem e sugeri­

ram que a verdade emana da lógica (Batey, 1977; Beckstrand, 1978a, 1978b;

Dickoff, James & Wiedenbach, 1968).

Mais tarde Johnson (1974), introduziu uma perspectiva pragmática e

sustentou que a decisão acerca da adequabilidade do modelo que guia a

enfermagem é social e não exclusiva dos teóricos ou dos investigadores. Isto

porque, se o conhecimento e as acções de enfermagem fazem uma diferença

apreciável na vida das pessoas, então a decisão acerca dos critérios de ver­

dade também lhes deve pertencer.

2.1.4 - Resumindo

Terminado este enquadramento epistemológico e em jeito de resumo,

pode-se afirmar que o desenvolvimento da enfermagem enquanto disciplina,

bem assim como de outras disciplinas com características semelhantes, se

compreende melhor se perspectivado a part ir da teoria da integração

(Meleis, 1991, 1997). Tal significa que o processo de desenvolvimento se

caracteriza pela sua flexibilidade, abertura à contemporaneidade e à inova-

^ $ ?

Dissertação de Doutoramento — 64

Page 67: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ção, ainda que respeitando a tradição. Significa por outro lado que se privi­

legia o raciocinio dialéctico na compreensão dos fenómenos.

Por sua vez e relativamente aos critérios de percepção, preconiza-se a

visão percebida. Com base nesta perspectiva podem ser considerados não só

os fenómenos ditos objectivos, mas também os denominados como subjecti­

vos, bem como o contexto em que se inserem. Por último e no que se refere

aos critérios de verdade, advoga_se o princípio da verdades múltipla, com

base na qual se pode ter uma perspectiva compreensiva do mundo.

Com o enquadramento conferido por estes três parâmetros de natureza

epistemológica (i.e., critérios de desenvolvimento, de percepção e de verda­

de), é possível afirmar a enfermagem enquanto disciplina de conhecimento.

Todavia, tal não é um fim em si próprio, até porque, por força do mesmo

enquadramento, uma disciplina de conhecimento é um processo inacabado.

Uma disciplina de conhecimento será mais um projecto em construção sis­

temática que um produto. Tal é particularmente verdade em disciplinas com

as características da enfermagem. Ou seja, disciplinas que se alimentam e

alimentam uma profissão ou disciplinas práticas (Strasser, 1985). Por força

desta circunstância, os problemas colocados à disciplina serão sempre novos

e diferentes.

Através deste enquadramento epistemológico afirmei também uma

determinada perspectiva, a qual define o modo como entendo a enfermagem

e que condiciona as opções metodológicas que mais à frente apresentarei.

Contudo e apesar deste enquadramento, carecem de ser esclarecidas

outras características da enfermagem, nomeadamente as que dizem respeito

à sua natureza de disciplina/profissão e à estrutura essencial da disciplina.

Só a partir do conjunto destes elementos se poderá problematizar o fenóme­

no em estudo e as opções metodológicas.

2.2 - A ENFERMAGEM ENQUANTO DISCIPLINA-PROFISSÃO

Este capítulo tem como objectivo apresentar e caracterizar a enfermagem

como disciplina/profissão, ou seja, como uma disciplina que, dada a sua

natureza precisa da profissão para se desenvolver e vice-versa. Esta caracte-

65 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 68: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

rística será particularmente evidente na primeira parte, a qual é dedicada à

natureza da enfermagem. Num momento posterior, darei realce à disciplina,

fazendo referência aos principais elementos estruturantes.

2.2.1 - Da natureza da enfermagem^ padrões de conhecimento

Para que se perceba a natureza de uma área de conhecimento, é necessá­

rio definir as suas características mais fundamentais e estruturantes, do

ponto de vista epistemológico. Esta definição é útil para os membros dessa

disciplina mas também para todos os outros. Pelo que, estou convicto, é um

processo de grande utilidade na enfermagem dado o seu estádio de desen­

volvimento. Ou seja, é aceite pelos membros da disciplina de enfermagem

que esta precisa de ser mais desenvolvida e estruturada enquanto discipli­

na. Isto torna-se tanto mais pertinente quanto mais reconhecemos a impor­

tância desta área do saber para o benres tar das pessoas. E torna-se tanto

mais difícil quanto mais conhecemos as dificuldades inerentes ao processo

de desenvolvimento de novas áreas de conhecimento e particularmente, se o

seu desenvolvimento estiver associado a uma história com as características

das da enfermagem.

Mas então, qual é a natureza da enfermagem? Esta é uma questão que

está presente pelo menos desde Nightingale. Efectivamente, na cultura oci­

dental, esta parece ter sido a primeira pessoa a tentar responder a esta

questão. Após ela, e fruto de contingências várias, seguiu-se um longo inter­

regno durante o qual estas questões parecem terem ficado adormecidas ou

esquecidas. Só após os anos cinquenta do século XX se retomou de novo esta

questão. Para além das múltiplas explicações que poderemos encontrar para

este facto, estou convicto que ao mesmo não será estranho a coincidência de

só a part ir desta data haver formação avançada na enfermagem. A favor

desta minha convicção está o facto de as primeiras reflexões sobre esta

temática terem surgido nos Estados Unidos da América, país onde se iniciou

a formação avançada para enfermeiras, exactamente na década de cinquen­

ta do século XX.

Dissertação de Doutoramento

Page 69: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

As tentativas de resposta à questão atrás colocada (i.e., qual é a natureza

da enfermagem?) têm seguido caminhos diversos, porém, têm uma metodo­

logia em comum: observação da realidade da enfermagem. Ou seja, os mais

diversos pensadores tênrse dedicado a observar a realidade da enfermagem

nas suas diversas facetas: na prestação de cuidados, mas também nos traba­

lhos de investigação produzidos, nos artigos de opinião, nos construetos teó­

ricos, no ensino, entre outras. A partir dessa observação tentam tirar ilações

acerca da natureza da enfermagem.

Um dos primeiros e mais importantes trabalhos sobre esta problemática

foi desenvolvido por Carper (1978). Esta autora, com base na análise da lite­

ra tura de enfermagem, entendeu que uma das suas características funda­

mentais era os seus padrões de conhecimento. Como tal, propôs quatro

padrões fundamentais e duradouros de saber que os enfermeiros valorizam e

usam na prática:

S Saber Empírico ou a ciência de enfermagem,'

S Saber Ético ou a componente moral do saber na enfermagem,'

S Saber Pessoal na enfermagem,'

•S Saber Estético ou a arte na enfermagem.

Após esta autora, mas com base nela, várias outras deram contributos

diversos, das quais destaco: Munhall, (1993), Silva, Sorrell & Sorrell, (1995),

White, (1995), Wolfer, (1993) e Chinn & Kramer, (1983, 1987, 1991, 1995,

1999). A continuidade e perenidade destes trabalhos, parece-me consti-

tuir-se como uma referência fundamental e incontornável.

Esta proposta de classificação do saber em enfermagem, assenta no pres­

suposto de que a prática de enfermagem é complexa e exige em cada momento

um leque diversificado de saberes. Ao categorizar os saberes desta forma,

nenhum destes autores pretende transmitir a ideia de fragmentação da práti­

ca da enfermagem. Ou seja, apesar da categorização em quatro padrões de

saber, a ideia do saber e da acção como um todo complexo persiste.

Tenho estado a usar sistematicamente termos como: Saber, Conhecimen­

to e Prática. Independentemente de todas as possíveis explicações futuras

67 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros; Construção de uma relação

entendo ser adequado definidas desde já, para se perceber melhor o discurso

produzido.

Assim, Saber é definido neste contexto como uma forma de se perceber e

entender a si próprio e ao mundo. É portanto, um processo de mudança

ontológico e dinâmico (Chinn & Kramer, 1999). Por sua vez Conhecimento

refere-se ao que pode ser partilhado e comunicado aos outros. Representa

adicionalmente o que é colectivamente tomado como sendo considerado

razoavelmente exacto do mundo actual, como ele é conhecido pelos membros

da disciplina. No caso da enfermagem, o conhecimento será uma representa­

ção do saber que é colectivamente julgada por padrões e critérios partilhados

pela comunidade de enfermagem (Chinn & Kramer, 1999). Assim, que os

padrões de saber atrás referidos, possam também ser entendidos como

padrões de conhecimento. A passagem de padrões de saber a padrões de

conhecimento depende, como adiante se verá, de um processo de nomeação,

de parti lha e de sujeição dos saberes pessoais a critérios aceites pela comu­

nidade de enfermagem. Passo então à explicitação de cada um dos padrões

referidos (ver figura l) .

2.2.1.1 — Saber Empírico ou a ciência de enfermagem

O Empírico enquanto padrão de saber, tem a ver com as ideias tradicio­

nais de ciência, a partir das quais a realidade é vista como algo que pode ser

conhecido pela observação e verificado por outros observadores. O saber

empírico expressa-se na prática através da competência científica dos enfer­

meiros. Ou seja, através do saber encarnado que torna possível uma acção

competente, fundamentada numa teoria científica (Carper, 1978). Portanto,

este saber não tem só a ver com capacidades de investigação, mas também

com a capacidade de resolução de problemas concretos a part ir de conheci­

mentos científicos e com base num raciocínio lógico. Pelo que, pressupõe

competências cognitivas que envolvem capacidade de resolução de proble­

mas e raciocínio lógico.

Dissertação de Doutoramento

Page 71: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulciilcs e os enfermeiros: Construção de uma relação

0 conhecimento empírico é formalmente expresso através de teorias

empíricas e o seu desenvolvimento tem a ver com o uso dos métodos científi­

cos usualmente conhecidos (ver figura l).

2.2.1.2 — Saber Ético ou a componente moral do saber na enfermagem

De acordo com alguns autores (e.g., Watson, 1985, 1988; Bishop & Scud-

der, 1991; Medina, 1999), a ética será sempre a primeira dimensão da

enfermagem. Isto porque a prestação de cuidados de enfermagem ocorre

sempre no contexto de uma interacção e esta deverá sempre ser entendida e

conduzida por princípios ético-morais. Mas, para além disso, e no contexto

dos cuidados de enfermagem, o enfermeiro precisa a cada momento de fazer

julgamentos morais (Chinn & Kramer, 1999) e tomar decisões baseadas nos

princípios da justiça equitativa (Kohlberg, 1981, 1984). Assim, o saber ético,

sendo um pré-requisito para a prestação de cuidados de enfermagem

(Munhall, 1982), não é um dado adquirido e imutável, resultando antes num

desenvolvimento contínuo e sistemático, fruto da actividade interactiva e

reflexiva do sujeito (Lourenço, 1992). Ou seja, o enfermeiro desenvolverá

sistematicamente este saber, desde que preste cuidados e reflicta sobre os

mesmos (Lopes, 1999). Também este saber pressupõe capacidades cogniti­

vas.

O saber ético manifesta-se em comportamentos constatáveis pelos uten­

tes e observáveis pelos pares. Ou seja, os utentes serão os primeiros a cons­

tatar se tal ou tal comportamento se regeu por princípios éticos, uma vez

que, na prestação de cuidados, estes serão o "objecto" dos comportamentos

dos enfermeiros. Mas o comportamento ético dos enfermeiros não é um

assunto da esfera privada da relação enfermeiro/utente. Sendo a enferma­

gem uma profissão autónoma, possui códigos deontológicos (Decreto-Lei

104/98 de 21 Abril - Secção II) que se torna dever de todos cumprir e fazer

cumprir (ver figura 1).

69 Dissertação de Doutoramento

Page 72: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

2.2.1.3 — Saber Pessoal na enfermagem

O saber Pessoal tem a ver com a capacidade que cada enfermeiro tem de

se conhecer a si próprio. Este saber radica, mais uma vez, na característica

de os cuidados de enfermagem ocorrerem no contexto de um encontro entre

duas pessoas. Mas mais do que isso. Se considerarmos que uma das caracte­

rísticas fundamentais dos cuidados de enfermagem é o processo de interac­

ção entre o enfermeiro e o utente, compreendemos melhor a dimensão deste

saber. Ou seja, se na prestação de cuidados usamos o nosso "eu" como ins­

trumento terapêutico, então, para que essa acção seja eficaz, precisamos de

ser detentores de um auto-conhecimento elevado e de possuirmos uma noção

de integração do "eu". Só desta forma conseguiremos expressar o nosso "eu"

genuíno e demonstrarmos comprometimento, o que tornará a nossa acção

terapêutica e eficaz (ver figura l) .

O desenvolvimento do saber pessoal resulta também, em grande parte,

da actividade construtiva do próprio sujeito. Ou seja, resulta das interacções

que estabelecer e da capacidade de reflectir sobre as mesmas, procuran-

do-lhe os significados profundos para si próprio. Este processo poderá ser

facilitado através de reflexões grupais. Uma outra forma de proceder à pro­

cura deste significado profundo das vivências poderá ser através da expres­

são artística.

2.2.1.4 - Saber Estético ou a arte na enfermagem

Entendo este saber numa dupla dimensão. Em primeiro lugar, a que

decorre do que atrás acabei de dizer. Ou seja, como resultado da busca de

significado pessoal das vivências do enfermeiro, pode resultar uma criação

artística de elevado valor estético, quer para os pares quer para as pessoas

em geral. E isto é possível, entre outras razões, porque as situações com que

os enfermeiros se deparam, são experiências humanas extremas, de grande

significado para todos os que nelas participam.

Em segundo lugar, o cuidado de enfermagem é artístico em si mesmo

porque é criativo por natureza. Por outras palavras, a enfermagem não é

uma técnica, mas sim uma ciência humana prática (Strasser, 1985). Portan-

» _ _ _ _ _ _ = = = _ _ _ _ _ „ = = = = „ _ _ _ „ = = = _ _ _ _ _ _ _ = = = = = _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ „ _ _ _ „ „ _ _ _ _ _ 7 0

Dissertação de Doutoramento

Page 73: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

to, não é a aplicação de uma teoria a uma determinada situação, mas antes

a capacidade de reflexão e acção que ocorrem em sincronia e que derivam da

totalidade do Saber e do Conhecimento na prática de enfermagem. Ou seja,

é a capacidade de, perante cada situação, que é diferente da anterior porque

é humana, sermos capazes de dar uma resposta adequada, logo criativa por­

que sistematicamente diferente.

Este saber desenvolve-se estimulando tudo o que existe de mais criativo

no ser humano.

2.2.1.5 — Processos para o desenvolvimento do conhecimento em enfer­

magem

Em função da distinção anteriormente enunciada entre Saber e Conhe­

cimento, torna-se necessário perceber quais os processos que nos permitem

passar do saber ao conhecimento e quais os critérios partilhados pela comu­

nidade de enfermagem que permitem julgar o conhecimento. Dito por outras

palavras, sabemos que o Saber é um processo de mudança ontológico e

dinâmico (Chinn & Kramer, 1999); sabemos também que relativamente à

prática de enfermagem a conhecemos mais do que a conseguimos comunicar

ou justificar como conhecimento; então, precisamos que o Saber individual

passe para o dominio da comunidade de enfermagem, ou seja, que cada

enfermeiro partilhe, comunicando (i.e., tornando comum) o seu saber. Preci­

samos ainda que as expressões não discursivas da prática encontrem a sua

linguagem para, desta forma, podermos construir o Conhecimento em

enfermagem. Estas razões constituem-se como alguns dos principais argu­

mentos justificativos do trabalho por mim desenvolvido. Ou seja, tentar

identificar algum do saber dos enfermeiros e nomear algumas das expres­

sões não discursivas por eles usadas.

Os padrões de Saber, atrás enunciados, passam assim a padrões de

conhecimento. A figura 1 ajuda-nos a compreender como funcionam e como

se desenvolvem estes padrões de conhecimento. Aquela, é uma representa­

ção de como o processo único e expressões de cada padrão contribuem para o

todo do conhecimento. Na figura 1, cada um dos quatro padrões fundamen-

71 Dissertação de Doutoramento

Page 74: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utenlcs c os enfermeiros: Construção de uma relação

tais é representado num quadrante. Na periferia de cada quadrante estão as

questões criticas que cada padrão coloca. Dirigindo-se ao centro de cada qua­

drante, uma seta larga representa as formas de expressão do conhecimento

dentro do padrão. A seta aponta para o centro da esfera, mostrando a práti­

ca ou expressão de acção do saber que está associada com o padrão. A esfera

central é vista como um todo, sem quadrantes nem fronteiras, representan­

do a visão de que na prática de enfermagem, o saber é experimentado como

um todo e não como um padrão discreto. Ao longo dos eixos verticais, repre­

sentados por setas ponteadas, está o processo para o desenvolvimento das

expressões formais de conhecimento. Ao longo do eixo horizontal, represen­

tado por setas ponteadas, está o processo colectivo usado dentro da discipli­

na para validar ou autenticar o que é conhecido (Chinn & Kramer, 1999).

A área exterior, onde as questões críticas aparecem, e a esfera interior,

mostra a expressão da acção do saber, representa a dimensão ontológica do

saber. Os processos vistos ao longo dos eixos verticais e horizontais repre­

sentam a dimensão epistemológica do processo para o desenvolvimento e

autenticação do conhecimento (Chinn & Kramer, 1999).

A partir destes processos, formas discursivas de expressão formal são

criadas e podem ser apresentadas aos membros da disciplina. Na figura 1,

estas são mostradas nas setas largas dirigidas ao centro da esfera. A inves­

tigação empírica conduz ao desenvolvimento de teorias, modelos e outras

expressões formais, tais como declarações de factos e estruturas conceptuais.

A investigação pessoal conduz à criação de histórias autobiográficas e

expressões vividas da forma de estar dos enfermeiros em situação de cuida­

dos. Estas experiências vividas de ser o que somos é o que se denomina o

"eu" genuíno. A investigação ética conduz aos princípios éticos e códigos e a

outras expressões tais como teorias e preceitos que guiam a conduta ética na

prática. A investigação estética conduz ao criticismo estético que revela sig­

nificados profundos incrustados nos actos-arte de enfermagem e trabalhos

de arte que simbolizam a experiência da enfermagem.

Dissertação de Doutoramento

Page 75: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Figura 1 ­Padrões de conhecimento em enfermagem

O que é isto?

Como é que isto funjetema?

EMPÍRICO, A

« t

Replicação

Validação

Diálogo

Justificação -

«U

Explicando 1 Abrindo ^

Estruturando | Centrando

Sei o que estou a fazer? JÉ^^ faÇo o 1 u e sei?

/ IMPESSOAL

^ / \ L^*^~~ ▼

s^^ ; ; ; ;_^^^^ <. Resposta \

competência Uso terapêuticc*x/~~~~~~~^ Reflexão \

científica do Self

Comportamento Actos/arte ético/moral transformativa Apreciação

Inspiração

\ X % \

J > S* /Valorizando! Revendo

>* / Clarificando; Re-ouvindo

ÉTICA Isto está certo?

Isto será responsável?

W^ ESTÉTICA

O que é que isto significa?

Até que ponto é significante?

Fonte: Chinn & Kramer, 1999

Resumindo, podemos dizer que a enfermagem é constituída por uma totalidade de

saberes (empírico, ético, pessoal e estético) que se originam na prática e aí se re­criam

em cada cuidado. Estes saberes têm processos próprios de se desenvolverem e se trans­

formarem em expressões discursivas da prática de enfermagem, assumindo­se assim

como conhecimento em enfermagem.

Relativamente ao conceito de Prática, usá­lo­ei no sentido praxiológico,

ou seja, e tal como mais atrás já referi, reflexão e acção que ocorrem em sin­

cronia e que derivam da totalidade do Saber e do Conhecimento e que se

constituem como actividade construtora do sujeito. O conceito de "prática"

enunciado desta forma, surge desenquadrado face à velha dicotomia teo­

ria/prática (Lopes, 1999), pelo que carece de uma explicação mais detalhada.

73 Dissertação de Doutoramento

Page 76: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulcntcs c os enfermeiros: Conslrução ele uma relação

Para o fazer socorrer-me-ei em primeiro lugar da raiz etimológica da

palavra "prática", bem como do seu significado original. Assim, podendo-se

aceitar origens diversas para esta palavra, adopto a que deriva etimologi­

camente da expressão grega TtpctÇiç (praxis). Esta foi então definida por

Aristóteles como um dos três grupos em que as actividades humanas podiam

ser divididas. As outras duas seriam Theoria e Poiesis, sendo que cada uma

destas actividades implicava formas de conhecimento distintas. Assim, a

Theoria estava relacionada com Sophia, ou conhecimento teórico; a Praxis

estava relacionada com Phronesis ou conhecimento prático, e a Poiesis esta­

va relacionada com Techne ou conhecimento artistico. Também os critérios

de sucesso eram distintos de umas actividades para outras. O fim último da

Theoria era a Verdade, da Praxis a Felicidade, e da Poiesis a Produção de

algo bom (Allmark, 1995).

Neste conceito aristotélico de praxis cabiam actividades como o governo

de comunidades, visto que o seu objectivo era a política e a ética (Allmark,

1995). No entanto, e de acordo com Maclntyre (1990), o conjunto das práti­

cas é mais extenso e inclui as artes, as ciências, os jogos, a política, no senti­

do aristotélico do termo, a composição e o sustento da vida de família, etc. O

termo "prática" foi redefinido por esta autora (Maclntyre, 1990) da seguinte

forma: com a expressão "prática" pretende-se significar qualquer actividade

humana cooperativa, coerente e complexa e socialmente estabelecida. Todas

as actividades humanas com estas características possuem bens internos e

estes são realizados durante a tentativa de se alcançarem os padrões de

excelência que são considerados apropriados, e parcialmente definitivos,

para essa forma de actividade. Como os padrões de excelência considerados

apropriados nunca são definitivos, a ampliação e a busca constante dessa

excelência tem consequências. Ou seja, a ampliação sistemática da capaci­

dade humana para alcançar a excelência e as concepções humanas dos fins e

dos bens envolvidos.

Desta concepção de prática, gostaria de destacar a noção de bem interno

e de excelência que lhe está associada. O bem interno é a meta da competi­

ção para a excelência, e "ao ser alcançado transforma-se num bem para toda

Dissertação de Doutoramento

Page 77: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

a comunidade que participa nessa prática" (Maclntyre, 1990, pp. 190-191).

No entanto, a autora defende que os bens internos só poderão ser alcançados

por aqueles participantes que possuírem virtudes, ou seja, por aqueles que

tiverem adquirido uma qualidade humana cujo exercício os capacite para

alcançar esses bens. Por outras palavras, segundo Maclntyre (1990), "temos

que aceitar como componentes de qualquer prática com bens internos e

padrões de excelência, as virtudes da justiça, da coragem e da honestidade"

(p. 191).

Curiosamente e apesar de esta ser uma redefinição face à original con­

cepção aristotélica, acaba por, de algum modo, lhe dar continuidade na

medida em que, tal como então, também aqui se considera que as virtudes

são inerentes às acções do sujeito e que estas estão sujeitas a avaliação

moral. A prática, enquanto processo de acção/reflexão do sujeito, é assim

imbuída de uma dimensão ético-moral que pode, ao mesmo tempo, ser pro­

motora do desenvolvimento moral do próprio sujeito. Foi também nesta

linha de raciocínio que Kohlberg (1981, 1984) propôs a sua teoria de desen­

volvimento do raciocínio sócio-moral, cujo princípio moral por excelência é a

justiça.

Face a isto, poder-se-á então dizer que uma prática consiste num sistema

completo de significados e não numa habilidade particular envolvida numa

determinada actividade (Bishop & Scudder, 1991). Assim sendo, não será

uma prática dar um pontapé numa bola com perícia ou assentar tijolos

numa parede, plantar batatas ou lavar uma pessoa. Mas será já uma prática

o jogo de futebol ou a arquitectura, a agricultura ou os cuidados de higiene.

Apesar disto, se considerarmos a abordagem clássica mais comum, cons­

tatamos que a teoria é o que pertence à ordem do universal, do abstracto,

das "terras altas", do dedutivo, do aplicável, do transponível para a prática.

Ao contrário a prática é o que pertence à ordem do contingente, do local, do

efémero, do complexo, do incerto, das "terras baixas", do indutivo, do que se

alimenta da teoria (Barbier, 1998).

Pelo que, na senda de Maclntyre (1990), no campo da filosofia, mas tam­

bém de diversos investigadores sociais de diferentes áreas (e.g., Barbier,

75 —-———-—----------—--——————————-—————------—--Dissertação de Doutoramento

Page 78: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

1998; Schõn, 1996, 1998; Argyris & Schõn, 1980; Le Boterf, 1995; Chariot,

1976; Atlet, 2000), há alguns anos a esta parte, começoirse a olhar de forma

diferente para as competências práticas, os saberes escondidos, os saberes

da experiência, os saberes informais, as habilidades adquiridas na acção e

pela acção, os saberes de acção ou os saberes relativos à transformação do

real. Estes saberes estão associados a qualquer actividade humana, embora

no caso presente me interessem os associados ao exercício de uma profissão.

O novo olhar, bem como o seu estudo, deu lugar, cada vez com mais frequên­

cia, especialmente nas suas novas formas de organização, de formação ou de

investigação, à sua enunciação e à formulação, o que tende a consolidados

no seu estatuto de saberes e a aproximados dos saberes teóricos. Estes novos

saberes ao integrarem o corpo de conhecimentos da disciplina associada a

uma determinada profissão, dão corpo e sentido àquilo que alguns designam

como disciplinas-profissão. Este constitui-se como outro importante argu­

mento justificativo do estudo que desenvolvi.

Mas em que consistem exactamente estes saberes? De acordo com Bar­

bier (1998), Schõn (1996, 1998), Argyris & Schõn (1980), Chariot (1976),

Atlet (2000), entre outros, o exercício de uma actividade profissional exige

aos seus actores uma atitude que lhes permita, em cada momento, respon­

der às solicitações, sempre diferentes, que a realidade com que lidam lhes

coloca. Esta atitude tem algumas características interessantes e que têm

merecido a atenção dos pensadores e investigadores. Assim, as situações

com que os profissionais se deparam no seu dia-a-dia são dinâmicas por

natureza e portanto, sempre diferentes, pelo que exigem uma resposta com

idênticas características, a qual não pode ser prescrita por nenhum saber

teórico prévio. Na sua resposta o profissional, precisa de se equacionar

enquanto pessoa e profissional, mas precisa também de considerar e equa­

cionar o contexto em que se insere bem como o objecto da sua acção e as suas

características. A esta capacidade de responder de modo complexo e dinâmi­

co vários autores chamam de competência (Le Boterf, 1995; Schõn, 1998;

Benner, 2000). O que as competências têm de interessante é que, primeiro,

só podem ser conjugadas na prática, portanto em contexto; segundo, são fru-

Disserlação de Doutoramento

Page 79: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

; ' ' Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

to da actividade construtiva do sujeito em interacção consigo próprio e com

os que o rodeiam; terceiro, são constituídas por um conjunto de saberes de

natureza diversa; quarto, os próprios actores podem não ter consciência ple­

na de alguns desses saberes.

Neste contexto, o estudo das competências práticas e dos saberes que

lhes estão associados torna-se um aspecto de grande importância, não só

para os investigadores e para as disciplinas, mas também para os próprios

actores, na medida em que estes, através da acção reflexiva sobre as pró­

prias práticas, tendem a desenvolver-se.

Na enfermagem, Collière (1990), ao referirse ao processo de profissiona­

lização, afirma que "todos os ofícios que têm como base o saber das suas prá­

ticas podenrse profissionalizar sem prejuízo, pois têm as suas raízes" (p. 46).

Isto é, considera que a enfermagem tem por base "o saber das suas práticas",

e que a profissionalização se poderá por isso fazer sem receios. Deste modo, é

colocado em lugar central o papel da prática e do saber prático. Para além

desta, também outros autores e investigadores de enfermagem (e.g., Chinn

& Kramer, 1999; Bishop & Scudder, 1991; Benner, 1984; Benner & Wrubel,

1989) atribuem centralidade à prática, reforçando a sua função primordial

na construção e desenvolvimento do corpo de conhecimentos específicos da

disciplina.

Mas também a definição de prática de Maclntyre (1990) poderá ser apli­

cada à enfermagem. Senão vejamos. Parece-me que ninguém colocará em

dúvida que a enfermagem é uma "actividade humana cooperativa, coerente

e complexa e socialmente estabelecida". E uma actividade humana, quer

porque é executada por seres humanos, quer porque se dirige a outros seres

humanos. É duplamente cooperativa na medida em que carece de um gran­

de sentido de cooperação entre os profissionais, e em que a pessoa necessita­

da dos cuidados é também co-responsável e co-prestadora de cuidados. Por

fim, é socialmente estabelecida, pois que, de acordo com Collière (1989),

"cuidar não pode ser um acto isolado, amputado de toda a inserção social....

Cuidar é um acto social.... e implica uma responsabilidade social" (p. 324).

7 7 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dissertação de Doutoramento

Page 80: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

Se aceitamos estes aspectos como verdadeiros, então também teremos

que aceitar que esta actividade possui bens internos. Afirmamos isto porque,

de acordo com Maclntyre (1990), todas as actividades humanas com aquelas

características possuem bens internos. A corroborar esta afirmação Benner

& Wrubel (1989), assumem que a prática de enfermagem é um todo sistemá­

tico com uma noção de excelência inerente à própria prática: "a excelência

está incorporada na própria prática, e a prática é, por isso, uma arte moral e

não simplesmente uma ciência aplicada ou tecnologia" (Benner & Wrubel,

1989, pp. 19-20). Por sua vez, Watson (1988) define o conceito de "human

care" como um processo entre seres humanos (i.e., enfermeiro e pessoa) que

implica um compromisso moral de protecção da dignidade humana e preser­

vação da própria humanidade. Para este compromisso moral ter verdadeira

expressão, não se pode reduzir a mera retórica. De salientar, aliás, que a

própria autora refere que o "cuidar só pode ser verdadeiramente demonstra­

do e praticado interpessoalmente" (Marriner, 1989, p. 168). Conjugando isto

com o referido por Benner & Wrubel (1989), jamais se conseguirá algo que é

apresentado como "o ideal moral da enfermagem", se nos limitarmos à apli­

cação de um conjunto de técnicas aprendidas. É necessário que o enfermeiro

participe na prática, para que consiga atingir uma excelência que lhe permi­

ta pôr a técnica ao serviço da pessoa de forma criativa, transformando assim

a prestação de cuidados numa arte, e preservando deste modo a dignidade

da pessoa.

Não pretendo que daqui se conclua que defendo uma clivagem entre a

teoria e a prática com valorização de uma face à outra. Pretendo, tão só, afir­

mar a enfermagem como uma prática e chamar a atenção para o facto de

que essa prática vai além de qualquer saber teórico e/ou técnico que possa­

mos considerar, mas não o dispensando. É pressuposto que tais cuidados se

submetam a padrões de natureza ético-moral. Nesta perspectiva, e de acordo

com Benner & Wrubel (1989), a prática é uma constante fonte de novos

dados e de novos saberes que enriquecem de modo progressivo qualquer teo­

ria.

Dissertação de Doutoramento

*£Q3

Page 81: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Assim e em jeito de resumo, direi que a enfermagem é uma prática, ou

seja, reflexão e acção que ocorrem em sincronia e que derivam da totalidade

do Saber e do Conhecimento inerente ao exercício dessa prática.

2.2.2 - Resumindo

Neste capítulo foram caracterizados os diversos padrões de saber em

enfermagem (i.e., Saber Empírico ou a ciência de enfermagem; Saber Ético

ou a componente moral do saber na enfermagem; Saber Pessoal na enferma­

gem; Saber Estético ou a arte na enfermagem). Foi também evidenciado que

todos os padrões se exprimem e se alimentam na prática dos cuidados, não

como entidades autónomas mas como partes de um todo complexo que con­

siste no exercício da prestação de cuidados. Isto conduz-nos à necessidade de

caracterizar a prática, não por oposição à teoria, mas antes como realidade

que carece de um "mapa" teórico para ser percebida, mas que, todavia, é

mais complexa que o referido "mapa", exigindo portanto respostas sempre

inovadoras. Como tal, é sistematicamente geradora de novos saberes. Estes

novos saberes precisam de ganhar formas discursivas que lhes permitam ser

comunicados para, deste modo, enriquecerem o património de conhecimento

da disciplina de enfermagem.

As características da enfermagem enquanto ciência humana prática, bem

assim como a necessidade de conferir forma discursiva a alguns saberes e

poder contribuir para o enriquecimento do património de conhecimento da

enfermagem, constituenrse também como argumentos justificativos deste

trabalho.

2.3 - ESTRUTURA CONCEPTUAL DA DISCIPLINA DE ENFERMA­

GEM

Definidas as problemáticas relativas à natureza do saber em enferma­

gem, bem como as relativas aos critérios de desenvolvimento do conhecimen­

to, de percepção e de verdade, outra não menos fundamental se coloca^ Qual

a estrutura da disciplina? Ou seja, qual o seu objecto de estudo concreto?

7 9 = = _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = = = _ _ „ = = = = = = = = = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = = = _ _ _

Dissertação de Doutoramento

Page 82: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Quais os conceitos major? Quais as metodologias de investigação e de inter­

venção?

Na tentativa de responder às questões atrás colocadas Meleis (1991,

1997), diz-nos que uma disciplina pode ser definida como, uma perspectiva

única, uma forma distinta de olhar os fenómenos, a qual, em última análise,

define os limites e a natureza da sua investigação. Assim, de acordo com

esta autora, a disciplina de enfermagem inclui os conteúdos e os processos

relacionados com todos os papéis que o enfermeiro desenvolve, incluindo a

administração, ensino, política, clínica e consultadoria. A disciplina de

enfermagem inclui ainda, as teorias desenvolvidas para descrever, explicar e

prescrever, bem como os resultados da investigação relacionados com os

fenómenos centrais da disciplina e o conhecimento de disciplinas relaciona­

das (ver figura 2).

Figura 2 —A disciplina de enfermagem em todas as suas vertentes

Tudo isto constitui a disciplina de enfermagem, porém, não é a sua

essência. Isto porque todas as disciplinas são formadas à volta do seu pró­

prio domínio de conhecimento, o qual se constitui como a essência da disci­

plina. Um domínio de conhecimentos é portanto, o ponto central de uma dis­

ciplina. Este constitui-se como um território com limites teóricos e práticos.

= = = = = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ „ „ _ _ „ = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ = = „ _ _ . „ _ . . _ _ „ _ . „ 8 0

Dissertação de Doutoramento

Page 83: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Os limites práticos têm a ver com o actual "estado da arte" e com os interes­

ses de investigação dos investigadores, que emergem das questões que são

significantes para os membros do dominio. Por sua vez, os limites teóricos

dizem respeito às questões visionárias formulados pelos membros da disci­

plina. Estas questões não estão sujeitas aos limites impostos pelos proble­

mas correntes dos membros da disciplina.

De referir ainda que o domínio de enfermagem é uma entidade dinâmica,

pelo que, é sistematicamente revisto e desenvolvido através do saber e da

perícia dos membros da disciplina, da investigação e teoria acumuladas e de

conhecimentos oriundos de outras disciplinas. Todavia, é dotado de determi­

nados elementos de estabilidade os quais, de acordo com Meleis (1991), são:

S os conceitos major e os problemas da sua esfera de actividades;

S o processo de avaliação, diagnóstico e intervenção; e os

S instrumentos para avaliação, diagnóstico e intervenção.

De acordo com Meleis (1991, 1997), os conceitos major são:

O cliente. Este será o conceito mais central do domínio de enfermagem.

Dado ser um conceito comum a outros domínios de outras ciências, a sua

especificidade tem que residir na forma como cada uma o define. Na enfer­

magem este conceito está amplamente definido pelas diversas teóricas, sen­

do um dos que está presente em todos os modelos teóricos e dos que reúne

mais consenso. Apesar disso, notam-se algumas diferenças em função da

escola de pensamento em que cada uma das teorias se insere (Kérouac et ai,

1994; Lopes, 1999, 2000a).

A transição. Este conceito, tal como já referi mais atrás, foi proposto por

Chick & Meleis (1986) e desenvolvido com o contributo dos trabalhos de

investigação de diversos outros autores (e.g., Bridges, 1980, 1992; Brouse,

1988; Catanzaro, 1990; Chiriboga, 1979; Clifford, 1989; Gilmore, 1990). Tal

permitiu a Schumacher & Meleis (1994) desenvolverem um trabalho de

meta-análise em 310 artigos referenciados na Medline, referentes ao período

de 1986 a 1992. Da análise destes artigos concluíram que se poderia falar

em três tipos de transição: de desenvolvimento, situacional e saúde-doença.

Apesar disso, as características presentes em qualquer um deles eram, a

Dissertação de Doutoramento

Page 84: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção! de unia relação

passagem ou movimento de um estado, condição ou lugar para outro (Schu­

macher & Meleis, 1994). Este é um processo que ocorre no tempo, que envol­

ve desenvolvimento, fluir ou movimento e cuja mudança tem uma natureza

que varia em função do tipo de transição. Através deste estudo identificaram

ainda as condições de transição, nomeadamente :

S significados (i.e., qual o significado que as pessoas atribuem à situa­

ção);

S expectativas (i.e., quais as expectativas face à situação);

■S nivel de conhecimento e competências (i.e., quais os conhecimentos

que a pessoa tem acerca da situação e quais as competências que já

tem para lidar com ela);

S ambiente (i.e., em que ambiente físico mas também psicossocial a

pessoa está inserida);

S nível de planificação (i.e., qual a planificação que a pessoa é capaz

de desenvolver face à situação) e

■S benres tar físico e emocional (i.e., qual o nível de bem­estar físico e

emocional conseguido na situação) (Schumacher & Meleis, 1994).

Este é um conceito que não está presente com esta denominação nos

modelos teóricos de enfermagem das diversas escolas de pensamento. Ape­

sar disso, percebe­se a influência de teorias semelhantes (e.g., teoria da crise

e do stress) em algumas teorias de enfermagem (e.g., Neuman, 1982).

A interacção. São vários os teóricos que apresentam a enfermagem essen­

cialmente como um processo de interacção. Efectivamente, esse é o contexto

no qual todos os cuidados acontecem, pelo que, em boa verdade, pode­se

dizer que é um conceito que recolhe unanimidade, estando presente em

todos os modelos teóricos, independentemente da escola de pensamento.

Contudo, recebe particular atenção das teóricas da escola da interacção (e.g.,

Peplau, 1990; Orlando, 1961; King, 1968). Este conceito foi pela primeira vez

introduzido de forma consistente na enfermagem por Peplau (1990). Duran­

te muitos anos foi objecto de preocupação principalmente dos enfermeiros

ligados aos cuidados aos doentes psiquiátricos. Neste âmbito discutiu­se

muito qual a natureza e o papel da relação desenvolvida pelo enfermeiro.

_ = = = = = _ ­ _ _ _ _ = = _ _ _ _ _ _ _ _ „ = = = = = _ _ _ _ _ _ = = = = _ _ _ _ _ _ „ „ = = = « , _ _ _ _ _ . . _ = _ _ _ _ _ „ 8 2

Dissertação de Doutoramento

Page 85: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Esta discussão era dominada não só pelos aspectos relativos à natureza e

papel, mas também pelos relativos às relações com as restantes profissões

na área da saúde (Lego, 1999).

Contudo, e dado que a interacção enfermeiro-doente passou a ser reco­

nhecida como importante e se tornou extensiva aos cuidados de enfermagem

no geral, impôs-se como necessário reequacionar as teorizações existentes,

dado estarmos perante situações de saúde e contextos diferentes. Tal é o

caso de Hartrick (1997), que propôs um modelo interacção enfermeiro-doente

baseado em valores humanísticos e passível de ser utilizado em contextos

diversificados. Também Hagerty et ai (2003) propuseram uma reconceptua-

lização da relação enfermeiro-doente, cujo objectivo principal é torná-la con­

gruente com os actuais contextos de cuidados de saúde. É ainda de referir o

trabalho de identificação descritiva dos conhecimentos clínicos, desenvolvido

por Benner (2000). Com base nesse trabalho a autora identificou diversos

domínios de cuidados de enfermagem, sendo que um deles denominou-o,

"Função de ajuda". Também nos processos de cuidar, identificados por

Swanson (1991, 1998) é perceptível a presença da componente relacional em

quase todos eles. Por último, de referir a presença da componente relacional

de modo expresso ou implícito em diversos dos actuais modelos teóricos de

enfermagem. Tal é o caso de Watson (1988) que propõe a relação de cuidar

como um dos dez factores de cuidado da sua teoria. No entanto, percebe-se a

dimensão relacional em diversos outros.

O processo de enfermagem. Muitas vezes apresentado como um instru­

mento, é aqui apresentado como um conceito essencial no domínio de enfer­

magem. Tal justifica-se se entendermos que o processo de enfermagem se

constitui como o processo de raciocínio clínico do enfermeiro. Neste caso

compreende-se a sua inclusão como conceito integrante do foco da disciplina

e reconhece-se o seu elevado potencial para gerar teorias (Meleis, 1991,

1997).

As intervenções terapêuticas. São o conjunto de intervenções específicas

de enfermagem e com potencialidades terapêuticas demonstradas. Como

exemplos podemos referir o toque, a suplementação de papéis, a protecção, a

83 Dissertação de Doutoramento

Page 86: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

manipulação focal, o conforto, o uso do "self com fins terapêuticos, etc.

(Meleis, 1991, 1997). Enquanto que esta autora propõe o conceito de inter­

venção terapêutica como um dos que integra o domínio da disciplina, McMa-

hon & Pearson (1991), vão mais longe e sugerem o conceito de "enfermagem

terapêutica". Neste conceito incluíram todas as actividades de enfermagem

promotoras de saúde e bem-estar.

O ambiente. Este é um conceito que está presente nas teorizações de

enfermagem desde Nightingale. Também este recolhe a unanimidade de

todas os modelos teóricos, independentemente da escola a que pertençam

(Kérouac et ai, 1994; Lopes, 1999). Apesar disso, no contexto dos cuidados

parece muitas vezes ser relegado para plano secundário. Tal poderá dever-se

à prevalência do paradigma curativo, contudo isso não pode significar que

este conceito não seja importante. Considero aliás que se torna urgente vol­

tar a reponderar este conceito independentemente do local onde os cuidados

sejam prestados. Parece ser nesse sentido que a Classificação Internacional

para a Prática de Enfermagem (ICN, 2000) aponta ao propor um grupo de

"fenómenos de enfermagem" pertencentes ao ambiente. Estes fenómenos

incluem dois subgrupos^ a natureza, que inclui o ambiente físico e biológico,'

e o ambiente artificial que inclui, entre outros, as infra-estruturas criadas

pelo homem, de natureza tangível (e.g., sistemas de abastecimento), ou de

natureza intangível (e.g., normas e atitudes).

A saúde. Apesar de referido em último lugar, este é outro dos conceitos

de maior centralidade na disciplina de enfermagem. Contudo e à semelhan­

ça de outros conceitos já referidos, também este é central para outras disci­

plinas da área da saúde. Por tal razão, a sua especificidade residirá no modo

como é definido. Para além da unanimidade da presença em todos os mode­

los teóricos, são ainda unânimes alguns aspectos do conceito, nomeadamente

os que dizem respeito à importância do conforto e bem-estar, mais do que a

ausência de doença

Outros autores se preocuparam com a clarificação daquilo que entendem

ser a essência da disciplina de enfermagem. Contudo, a terminologia usada

nem sempre é coincidente. Assim, Kim (1983, 1997) propôs o conceito de

_ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ „ „ = = = = „ _ _ _ _ _ _ _ „ = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 8 4

Dissertação de Doutoramento

Page 87: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

domínio da disciplina, para designar o conjunto de elementos que ela enten­

de constituírem a essência da enfermagem. Segundo esta autora, o domínio

de enfermagem deve estar não só clarificado, mas também dotado de uma

estrutura conceptual que facilite a sua compreensão, e o seu desenvolvimen­

to. A autora considera que uma estrutura conceptual organizada é um pre­

requisite necessário para o desenvolvimento de teorias e modelos concep­

tuais (Kim, 1983).

Neste sentido, Kim (1983), começou por propor uma estrutura composta

por três domínios (i.e., cliente, ambiente e acção de enfermagem). Mais tarde

reconsiderou e propôs uma estrutura com quatro domínios'■

■S O domínio do clienteI

■S O domínio do cliente­enfermeiro,'

■S O domínio da praticai

S O domínio do ambiente (ver figura 3).

A principal diferença face à anterior, reside no facto de o domínio "acção

de enfermagem" ter sido subdividido em dois. Segundo a autora, apesar des­

ta divisão em quatro domínios, poderão, mesmo assim, existir problemas que

exijam a combinação de mais que um domínio ou mesmo a consideração do

domínio de enfermagem como um todo.

Figura 3 — Tipologia para o conhecimento em enfermagem O DOMÍNIO DE ENFERMAGEM

1 ' i ' 0 domínio do

cliente 0 domínio do cliente­enfermeiro

0 domínio da práti­ca

0 domínio do cliente

0 domínio do cliente­enfermeiro

0 domínio da práti­ca

nte: Kim, (1997) 0 domínio do ambiente

O domínio do cliente. Embora com uma denominação diferente, também

neste caso o conceito de cliente é proposto como central para o domínio da

disciplina de enfermagem. É definido como a área de interesse epistemológi­

85 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 88: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

co relacionada com o cliente, sendo a ênfase colocada em desenvolver conhe­

cimento acerca do fenómeno humano numa perspectiva de enfermagem

(Kim, 1983).

O domínio do cliente-enfermeiro. Este domínio é definido como a área de

estudo em enfermagem relacionada com fenómenos resultantes do encontro

entre o enfermeiro e o cliente. Tendo semelhanças com o anterior conceito de

interacção (Meleis, 1991, 1997), também tem diferenças, na medida em que

este diz respeito a qualquer tipo de encontro e não apenas às interacções

intencionais e terapêuticas. Apesar disso, a interacção enfermeiroxliente é o

aspecto major do domínio cliente-enfermeiro e tem ramificações para variá­

veis dependentes e independentes na explicação de muitos fenómenos de

enfermagem (Kim, 1997). No entender desta autora, a interacção é uma das

perspectivas que requer mais atenção neste domínio porque, sendo através

ou no seu contexto que os cuidados são prestados, é necessário compreender

qual o seu contributo para os resultados terapêuticos. Isto porque, os contac­

tos entre o enfermeiro e o cliente são ocasiões durante os quais transferên­

cias e/ou trocas de informação, energia e afecto/humanidade ocorrem. Estes

contactos são o meio de prestar cuidados de enfermagem e de ajudar os

clientes. Neste sentido, entender a natureza da interacção enfermei-

ro-cliente, aumentará e aperfeiçoará a eficiência e a eficácia das interven­

ções de enfermagem, as quais, como consequência, afectarão o estado do

cliente (e.g., o benres tar geral, o estado dos sentimentos e a satisfação).

Ainda segundo Kim (1997), o conhecimento nas áreas da interacção

humana e social, sugere que há pelo menos quatro conjuntos de variáveis

aplicáveis e a ter em consideração quando equacionamos a interacção

enfermeiro-cliente (ver figura 4)-'

•S Actores individuais (cliente e enfermeiro);

S Contexto social da interacção;

S Natureza da interacção - processo e propriedades;

S Metas de saúde do cliente.

Dissertação de Doutoramento 86

Page 89: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulciites e os enfermeiros: Construção de uma relação

Figura 4 — Ligações conceptuais entre variáveis na interacção enfermei-ro -cliente. DOENTE ENFERMEIRO

Características físicas; Características físicas; Elementos psicológicos Elementos psicológicos (Motivação, personalidade, (Motivação, personalidade, características..) características..) Elementos cognitivos; Elementos cognitivos; Elementos sociais; Elementos sociais; Atitudes e valores; Atitudes e valores; Elementos comunicativ os. Elementos comunicativos.

Contexto i r i r

INTERACÇÃO ENFERMEIRO-CLIENTE social Processo

Propr iedades

i r

COMPORTAMENTOS E SAÚDE DO CLIENTE Exemplos:

Probabilidade de recuperação Estado dos sentimentos Adesão terapêutica Aprendizagem Experiência de dor Satisfação Stress Saúde

Fonte: Rim, (1997)

O primeiro grupo de variáveis (i.e., actores individuais) está relacionado

com os actores participantes na interacção (i.e., enfermeiro e cliente). Estes

actores levam consigo as características físicas, psicológicas, cognitivas,

sociais e éticas, bem como, atitudes e habilidades e padrões interactivos

desenvolvidos através de experiências sociais passadas. Tais atributos

devem ser considerados os factores predisponentes, capacitantes e/ou impe­

ditivos para o processo e propriedades da interacção. Os encontros interacti­

vos entre o enfermeiro e o cliente podem ser iniciados, desenvolvidos ou ter­

minados de várias formas, de acordo com as orientações que os participantes

trazem consigo para esses encontros (Kim, 1997).

O segundo grupo de variáveis está relacionado com o contexto social da

interacção, as quais têm sido estudadas pela sociologia. Contudo, estas

variáveis podem assumir um papel de grande relevo no contexto da interac-

8 7 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dissertação de Doutoramento

Page 90: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os eníermeiros: Construção de uma relação

ção enferme iro-cliente, influenciando decisivamente o seu processo e interfe­

rindo na comunicação terapêutica.

O terceiro grupo de variáveis (i.e., Natureza da interacção - processo e

propriedades) diz respeito à interacção propriamente dita. A interacção

enfermeiro-cliente é considerada ao longo de duas dimensões : o processo de

interacção e as propriedades (qualidades) da interacção. O processo de inte­

racção refere-se à sequência, trajectórias, progressão e padrões interaccio-

nais. Por seu lado, as propriedades da interacção refererrrse à qualidade da

interacção em termos dos elementos de troca (e.g., a informação, afectos,

suporte, energia e recursos) e tipos de comunicação. Ambas, enquanto variá­

veis independentes, influenciam os objectivos de saúde do cliente e enquanto

variáveis dependentes, são influenciadas pelos dois primeiros grupos de

variáveis. Ainda que a interacção cliente-enfermeiro possa ter uma influên­

cia significativa no benres tar do enfermeiro, o foco de interesse principal é o

bem-estar do cliente (Kim, 1997).

O quarto conjunto de variáveis (i.e., Metas de saúde do cliente) diz res­

peito ao bem-estar do cliente. De acordo com Kim (1983, 1997), este é um

conjunto de variáveis com o qual qualquer modelo preditivo ou explicativo do

conhecimento em enfermagem tem que lidar. Isto porque o bem-estar do

cliente assume-se como a variável dependente mais importante, uma vez

que a mesma pode ser considerada como a finalidade dos cuidados de enfer­

magem.

O domínio da prática. Este domínio inclui fenómenos específicos ao enfer­

meiro enquanto prestador de cuidados de enfermagem. O conceito de prática

refere-se aos aspectos cognitivos, comportamentais e sociais das acções pro­

fissionais levadas a cabo pelo enfermeiro em resposta aos problemas do

doente (Kim, 1997). Para que se possa compreender a prática de enferma­

gem é necessário compreender-se como os enfermeiros pensam, tomam deci­

sões, transferem conhecimento para a acção ou usam o conhecimento dispo­

nível (universal e pessoal) na sua prática. Assim, os fenómenos importantes

que requerem explicação e compreensão no domínio da prática incluem, o

estilo e processo da tomada de decisão em enfermagem, modos de transfe-

_ _ _ „ . _ _ „ . _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ = = = _ _ _ _ „ _ _ „ = = _ _ _ _ _ _ _ 8 8

Dissertação de Doutoramento

Page 91: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

rência de conhecimento para a prática, desenvolvimento de competências,

uso e desenvolvimento de pericia na prática de enfermagem e o modo como

os enfermeiros resolvem problemas éticos (Kim, 1997).

O domínio do ambiente. Também neste caso existe semelhança com a

proposta de Meleis (1991, 1997), bem como com as teorizações das diversas

escolas de pensamento em enfermagem. Contudo, a proposta de Kim (1983,

1997) tem algumas especificidades. Assim, no entender desta autora, o

ambiente inclui três variações: tempo, espaço e qualidade. Apenas o conjun­

to destes três elementos nos permite compreender o ambiente do doente. Ou

seja, Kim (1997) tem do domínio do ambiente uma concepção centrada no

cliente e no modo como este vivência o tempo e o espaço.

Mas um domínio de conhecimentos não se define apenas pela enunciação

dos seus conceitos major. De acordo com alguns dos autores que tenho vindo

a citar, é necessário mais do que isso. E necessário, por exemplo, estabelecer

uma relação entre os conceitos e desta forma, construir os pressupostos da

disciplina (ver figura 5).

Figura 5 — Os conceitos major do domínio de enfermagem e as suas inter-

É necessário ainda definir um conceito metaparadigmático. Neste con­

texto, Meleis (1991) propõe a seguinte articulação entre os conceitos major:

O enfermeiro interage (interacção) com um ser humano numa situação de

saúde/doença (cliente de enfermagem), o qual é uma parte integrante do seu

contexto sockrcultural (ambiente) e o qual está em alguma espécie de tran­

sição ou antecipando essa mesma transição (transição)', a interacção enfer-

8 9 = = = = = = = = = = = = = = _ = = „ = = = = = = = = = „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = _ _ _ _

Dissertação de Doutoramento

Page 92: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

meiro-cliente está organizada à volta de algum propósito {processo de

enfermagem, resolução de problemas, intervenção holística) e os enfermeiros

usam algumas acções {intervenções terapêuticas) para aumentar ou facilitar

a saúde e o benrestar .

Apesar desta proposta de Meleis, permanece por resolver a definição da

enfermagem de modo sucinto. Ou seja, continuamos sem sermos capazes de

responder de uma forma concisa e precisa à pergunta, o que é a enferma­

gem?

Três outras reputadas autoras de enfermagem (Newman, Sime & Corço-

ran-Perry, 1991) tentaram responder a esta questão. Para isso estabelece­

ram a analogia com outras ciências, como por exemplo a fisiologia cuja defi­

nição sucinta pode ser, o estudo da função dos sistemas vivos! ou da sociolo­

gia, que pode ser definida como, o estudo dos princípios e processos que

governam a sociedade humana. Estas são definições genéricas mas facil­

mente entendívéis por todos e que limitam em absoluto o objecto de estudo.

Será que somos capazes de apresentar uma definição da enfermagem com

estas características?

Estas autoras utilizaram o conceito de "foco da disciplina" que é parcial­

mente sobreponível aos conceitos anteriores de Meleis (1991) e Kim (1997).

No entender de Newman, Sime & Corcoran-Perry (1991), o foco de uma dis­

ciplina deriva de um sistema de crenças e valores acerca do compromisso

social da profissão, natureza do seu serviço e área de responsabilidade para

o desenvolvimento do conhecimento. Assim, o foco da disciplina de enferma­

gem será o estudo do cuidar (dos cuidados) no contexto da experiência

humana de saúde. Este foco integra, numa declaração simples, conceitos

comummente identificados como sendo da enfermagem a um nível metapa-

radigmático. Este foco implica um mandato social e uma identidade de ser­

viço e especifica um domínio para o desenvolvimento do conhecimento

(Newman, Sime & Corcoran-Perry, 1991).

O mandato social e a identidade de serviço são conduzidos pelo compro­

metimento de cuidar como imperativo moral. O domínio de investigação é o

estudo do cuidar (dos cuidados) no contexto da experiência humana de saú-

Dissertação de Doutoramento

Page 93: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os uleiites e os enfermeiros: Construção de uma relação

de. A investigação deverá ter como finalidades, examinar e explicar o signi­

ficado de cuidar no contexto da experiência humana de saúde, para averi­

guar e confirmar a adequabilidade deste foco para a disciplina, e para exa­

minar as questões científicas e filosóficas provocadas pela declaração do foco.

Este foco determina que o corpo de conhecimentos da disciplina de enfer­

magem inclui o cuidar (os cuidados) e a experiência humana de saúde. Se

incluir apenas uma destas vertentes já não é conhecimento específico de

enfermagem. Porque, conhecimento sobre saúde são muitas as disciplinas

que o desenvolvem, sobre o comportamento humano também e até sobre o

comportamento humano na saúde. Porém, a conjunção dos cuidados e do

comportamento de saúde é específico da enfermagem.

Contudo, alguns autores (Meleis & Trangenstein, 1994) consideram que

este foco da disciplina tem limitações que importa questionar. Assim, ques­

tionam :

■S Se o cuidar é universal e não limitado a uma disciplina, quais os

seus aspectos que são unicamente da enfermagem?

•S Quais os aspectos da experiência humana de saúde que requerem

apenas contribuições da enfermagem?

S Será possível estudar o cuidar numa base empírica?

Com base nas respostas dadas a estas questões entendem que o foco da

enfermagem deve ser definido da seguinte forma: Enfermagem consiste na

facilitação dos processos de transição, no sentido de se alcançar uma maior

sensação de benres tar (Meleis & Trangenstein, 1994). Neste foco assume

centralidade o conceito de transição que já atrás foi referido como um dos

conceitos major do domínio de enfermagem (Meleis, 1991, 1997).

2.3.1 ­ Resumindo

Relativamente à problemática da estrutura da disciplina de enfermagem,

destaco, por um lado, a definição de enfermagem a qual, segundo Meleis &

Trangenstein (1994), consiste na facilitação dos processos de transição, no

sentido de se alcançar uma maior sensação de benrestar . Nesta definição

9 1 = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = _ _ „ = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = =

Dissertação de Doutoramento

Page 94: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de um;i relação

sobressai a centralidade do conceito de transição (Meleis, 1991, 1997), mas

também o papel de ajuda e do benres tar como finalidade dessa ajuda.

Por outro lado e de entre os conceitos major, destaco ainda o processo de

enfermagem, como o encadear lógico das acções destinadas a responder às

necessidades, e as intervenções terapêuticas, como o conjunto dos actos

específicos com potencialidade terapêutica.

Por último e dadas as características deste trabalho, destaco o conceito

de interacção. No entender de Meleis (1991, 1997), este conceito é simulta­

neamente, detentor de potencial terapêutico e contexto no qual todos os cui­

dados acontecem. De assinalar o contributo de Kim (1983, 1997) para a com­

preensão do domínio de enfermagem. Desta contribuição destaca principal­

mente os domínios do cliente-enfermeiro e da prática. O primeiro compreen­

de a interacção enfermeiro-cliente. Nesta interacção a autora reconhece a

existência de quatro conjuntos de variáveis a ter em conta^ Actores indivi­

duais (cliente e enfermeiro); Contexto social da interacção; Natureza da

interacção - processo e propriedades; Metas de saúde do cliente.

Dissertação de Doutoramento ™ 92

Page 95: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação

i

9 3 — Disseartação de Douloramento

Page 96: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

3 - PROBLEMÁTICA E QUESTÕES DE INVESTIGAÇÃO

Tal como referi no início, esta primeira parte do trabalho tinha como

finalidade principal, por um lado, a justificação do estudo que pretendo

desenvolver, e por outro, a delimitação epistemológica e conceptual do mes­

mo. Assim, impõe-se agora, tendo como referência tudo o que atrás disse,

que proceda à delimitação da problemática, bem assim como à definição das

perguntas de investigação. Este exercício consistirá num resumo integrador

dos diversos argumentos que invoquei ao longo dos capítulos anteriores, o

que permitirá uma leitura mais incisiva sobre o trabalho de investigação

que me proponho desenvolver.

Assim e com base na minha experiência pessoal e profissional, nomea­

damente a decorrente do projecto de intervenção relacional já atrás referido,

constato, por um lado, a elevada solicitação daquele tipo de intervenção (i.e.,

intervenção relacional), e por outro, a sua parca teorização.

A elevada solicitação radica essencialmente na natureza clínica da situa­

ção e na vivência da mesma. A natureza clínica é variável em função do tipo

de cancro diagnosticado, sendo também variáveis os procedimentos técnicos

a adoptar. Todavia, a sua vivência começa logo por ser marcada pela repre­

sentação da doença oncológica. Efectivamente e tal como já referi mais

atrás, todas as pessoas a quem é diagnosticado um cancro, iniciam a vivên­

cia de um processo extremamente complexo, indutor de mahestar e que, por

vezes, é mais grave que o próprio cancro (Lopes, 1997; Sontag, 1998). Para

todos os efeitos e independentemente da natureza do diagnóstico, a repre­

sentação desta doença funciona como uma confrontação da pessoa com a sua

própria finitude. Ou seja, a pessoa precisa de aprender a viver com a ideia

de morte, precisa de iniciar uma procura pessoal do significado de ter um

cancro (O'Connor et ai, 1990). Esta inquietude gera um conjunto de senti­

mentos reactivos e extremamente perturbadores, dos quais destaco, nega­

ção, cólera/vergonha, desespero e depressão e questionamento do comporta-

Dissertação de Doutoramento

Page 97: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

mento protector da família (Morton, 1996). 0 conjunto destes elementos con­

figura a vivência de um processo de transição (Chick & Meleis, 1986).

Este quadro torna_se particularmente evidente no momento em que se

inicia o processo de quimioterapia. Isto porque, nesse momento, o doente é já

conhecedor da problemática que o afecta, quer lhe tenha sido dito ou não

(Kubler-Ross, 1991; Israel, 1993; Dolto, 1998; Hennezel, 1997; Hennezel &

Leloup, 1998). Para além disso, a quimioterapia é, ela própria e à partida,

geradora de ansiedade, medo e esperança (Barraclough, 1999). Este quadro

é, de algum modo, modificado à medida que o processo de quimioterapia

decorre, pois este impõe também um progressivo cansaço e uma variabilida­

de polar de estados de saúde, em ciclos muito curtos, o que provoca alguma

labilidade emocional (Barraclough, 1999; Dougherty & Bailey, 2001; Cohn,

1982). Esta pode caracterizar-se por manifestações de tristeza, com choro

fácil, isolamento, ansiedade acentuada, acessos de medo face a qualquer

estímulo, insegurança, entre outros.

Face ao exposto, compreende-se a importância que os cuidados no geral

podem assumir. Todavia, as características da vivência atrás descritas legi­

timam que se evidencie a componente relacional dos cuidados. Aliás de

acordo com Palsson & Norberg (1995), neste contexto os doentes precisam de

um suporte emocional que lhes transmitida um sentimento de segurança e

que facilite o fornecimento da informação adequada. Face a isto, o realce

dado à componente relacional da intervenção justifica-se, principalmente,

pela importância que a relação que se possa estabelecer entre o enfermeiro e

o doente, durante a quimioterapia, poderá ter para aquele. Essa importância

radica no carácter terapêutico da intervenção de enfermagem e, dentro des­

ta, e de acordo com Muetzel (1988), o determinante crucial para o cuidado de

enfermagem ser terapêutico é a qualidade da relação entre o enfermeiro e o

doente. O resultado daquela intervenção traduzir-se-á no incremento do

nível de benrestar e da qualidade de vida do doente.

A natureza das razões expostas até ao momento justificaria, só por si,

que se investigasse a relação enfermeiro-doente. Todavia, essa justificação

sairá reforçada se atentarmos na natureza da enfermagem enquanto área de

95 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 98: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

conhecimento, bem assim como no seu estádio de desenvolvimento. Assim e

relativamente à sua natureza, constatámos ao longo dos capítulos anteriores

que a enfermagem enquanto ciência humana prática (Strasser, 1985), se

desenvolve a partir do conhecimento gerado na própria prática (e.g., Carper,

1978; Bishop & Scudder, 1991). Ora, assim sendo, esta precisa de ser siste­

maticamente investigada, dado que a mesma, coloca sempre novos desafios

que exigem novas respostas. Esta sistemática exigência de novas respostas

colocada aos profissionais, leva­os a desenvolverem novas estratégias (e.g.,

Argyris & Schõn, 1980; Schõn, 1996, 1998; Altet, 2000; Bernardou, 1996;

Barbier, 1996; Mialaret, 1996; Vergnaud, 1996; Le Boterf, 1995). Contudo,

este processo poderá não ser totalmente consciente, precisando portanto de

um esforço deliberado para o tornar consciente, o qual pode decorrer da exi­

gência colocada por um processo de investigação. Este processo conduzirá,

primeiro, à nomeação das estratégias desenvolvidas pelos profissionais e

depois, deverá ser completado com a comunicação (i.e. tornar comum) dessas

estratégias. Tal permitirá que as mesmas se transformem em património do

corpo de conhecimento da disciplina de enfermagem, podendo assim ser

usadas, quer no ensino, quer em novas investigações e ainda contribuir para

o desenvolvimento da qualidade dos cuidados. Paralelamente, promoverá o

desenvolvimento dos profissionais que participarem neste estudo, ao contri­

buir para o processo de consciencialização das estratégias usadas.

Ora o desenvolvimento de todo este processo é particularmente impor­

tante e até urgente no caso da enfermagem dado o seu carácter emergente,

enquanto área de conhecimento. No caso da intervenção relacional, estas

razões ganham particular relevância porque, as teorizações existentes não

respondem especificamente à intervenção sobre pessoas a vivenciarem uma

situação de doença oncológica.

Conjugam­se assim um conjunto de razões de natureza pessoal, discipli­

nar, profissional e clínica que me levam a interrogar­me '■

S Que elementos concretos integrarão o processo de prestação de cui­

dados a doentes oncológicos sujeitos a quimioterapia em regime de

hospital de dia?

Dissertação de Doutoramento

Page 99: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulealcs e os enfermeiros: Construção de uma relação

S As competências relacionais serão parte integrante desse processo

de cuidados?

S Que competências serão?

S Que características terão essas competências?

•S Como se desenvolverão?

^ Será que existem competências relacionais desenvolvidas em con­

texto que desconhecemos?

•S Serão estas competências independentes das restantes?

S Que relação existirá entre os diversos tipos de competências?

S Como se estruturará a relação enfermeiro­doente ao longo do pro­

cesso de quimioterapia no contexto atrás referido?

S Qual será a natureza dessa relação?

S Será que existe um modo de intervenção relacional específico dos

enfermeiros?

■S Será que o contexto tem algum tipo de interferência no desenvol­

vimento dessas competências?

Na tentativa de responder a algumas destas questões formulei o proble­

ma de investigação seguinte'■

Qual é a natureza da relação entre os enfermeiros e os doentes oncológi­

cos submetidos a quimioterapia num hospital de dia.

Este estudo teve como objectivos:

•S Compreender a natureza da interacção entre os enfermeiros e os

doentes oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia.

o Identificar intervenções terapêuticas de enfermagem.

■S Compreender o processo de relação entre os enfermeiros e os doentes

oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia.

S Desenvolver uma teoria de médio alcance sobre a relação enfermei­

ro­doente.

97 Dissertação de Doutoramento

Page 100: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação

II PARTE: INVESTIGAÇÃO REALIZADA

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

99 Dissertação de Doutoramento

Page 102: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

4 - OPÇÕES METODOLÓGICAS

Equacionadas que foram as razões que me conduziram ao presente estu­

do, bem como os referenciais epistemológicos e disciplinares, subsistem por

justificar as minhas opções metodológicas em concreto. Estas hão-de resul­

tar, da natureza do problema e dos referenciais epistemológicos e disciplina­

res, a trás equacionados.

Para sistematizar as razões justificativas de algumas das opções, optei

por responder a um conjunto de questões propostas por Miguélez (1999). O

objectivo essencial destas questões é ajudarem a decidir, de forma geral,

qual a abordagem mais adequada para estudar um determinado problema

de investigação. A primeira questão é a seguinte : procura-se a magnitude ou

a natureza do fenómeno? Sobre esta questão diz o autor (Miguélez, 1999)

que existem problemas ou áreas de estudo que não se podem desligar do seu

contexto sem as desnaturalizar. Tal será o caso de muitos objectos de estudo

da área das ciências sociais e humanas. Neste caso a opção é por estudos

sobre a natureza do fenómeno, pelo que a abordagem mais adequada é a

qualitativa (Miguélez, 1999). No mesmo sentido se pronunciam diversos

outros autores, nomeadamente Morse et ai (2001), Lessard-Hérbert et ai

(1990), Olabuénaga (1999), Streubert et ai (1995) e Denzin et ai (1994).

No caso do presente estudo e considerando a forma como o problema está

enunciado (i.e. qual a natureza da relação entre os enfermeiros e os doentes

oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia), fácil se torna

perceber qual a abordagem pela qual optei. Efectivamente, no enunciado do

problema, é referido, não só, que se pretende estudar a natureza da relação,

mas também, que se pretende fazê-lo em contexto. A fundamentação desta

opção, quer do ponto de vista clínico, quer epistemológico, já atrás foi produ­

zida.

A segunda questão proposta por Miguélez (1999) é'- deseja-se conhecer

uma média ou uma estrutura dinâmica? A decisão deve levar em linha de

_ „ = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ = = = _ = = = = = = = = , „ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ „ „ = = „ . _ _ _ _ _ . . _ „ „ , 0 0

Dissertação de Doutoramento

Page 103: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

conta se pretendemos trabalhar com um pequeno número de variáveis e per­

ceber o seu comportamento num elevado número de sujeitos. Ou pelo con­

trário, se desejamos descobrir a estrutura complexa ou o sistema de relações

que dão forma a uma realidade psíquica, social ou humana. É claramente

este último o objectivo deste estudo. Pelo que, esta é mais uma razão que me

conduziu no sentido da opção pela abordagem qualitativa. Também por uma

questão de coerência com a resposta anterior, a opção não poderia ser outra.

Mas a razão fundamental desta opção reside na natureza do problema. Ou

seja, o problema questiona a natureza de um processo complexo e dinâmico,

pelo que, e em congruência com isso, a opção terá que ser por uma aborda­

gem qualitativa.

A terceira questão proposta é a seguinte: pretende-se a extensão nomoté-

tica ou a compreensão idiográfical Também neste caso está em causa a dico­

tomia extensão-compreensão. Ou seja, é preciso decidir se o estudo tem como

finalidade estudar um elevado número de indivíduos e a partir daí elaborar

leis>' ou então, estudar um número mais reduzido, mas compreendê-lo em

profundidade. Naturalmente a minha opção foi esta última, pelas razões já

atrás referidas. Apesar de um dos objectivos deste estudo ser a elaboração

de uma teoria de médio alcance, tal não significa uma opção pela extensão

nomotética. As teorias de médio alcance, tal como mais à frente explicitarei,

têm como objectivo fundamental a compreensão em profundidade de um

fenómeno no seu contexto (Walker & Avant, 1995). É neste sentido que se

deve compreender este trabalho.

Miguélez (1999) pergunta ainda se pretendemos descobrir "leis" ou com­

preender fenómenos humanos. Ele próprio acaba por responder, referindo

que, principalmente nas ciências humanas, para que um saber não fique

despojado das suas próprias raízes, quer dizer, sem sentido, deverá ser to­

mado a partir do seu contexto humano pleno, com valores, interesses, cren­

ças, propósitos, sentimentos e outras variantes que determinam a sua exis­

tência real e empírica nos seres humanos (Miguélez, 1999). Neste mesmo

sentido se pronunciaram Weber (1979) e Dilthey (1951) os quais propuseram

o termo Verstehen, que significa compreender o humano, como o mais ade-

101 Dissertação de Doutoramento

Page 104: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

quado para a investigação em ciências humanas, por oposição a Erklàren

(i.e., explicar reduzindo a leis) o qual é mais adequado para as ciências

naturais . Pode­se entender este posicionamento como sinónimo de com­

preensão hermenêutica. Aliás, foi Dilthey quem propôs a extensão do concei­

to de hermenêutica a todas as ciências sociais o humanas. Mais tarde,

Gadamer (1977) retomou este assunto e argumentou que a própria história

do investigador deve ser considerada quando se pretende compreender a

interpretação de um determinado acontecimento. Eis a razão pela qual me

preocupei em introduzir algumas referências de natureza pessoal quando

apresentei a argumentação justificativa deste trabalho.

Deste modo, a resposta à pergunta de Miguélez (1999) orienta­se no sen­

tido da investigação qualitativa, porque tem como objectivo a compreensão

de fenómenos humanos.

Uma outra preocupação que deve estar presente no momento de escolher

qual a opção metodológica, diz respeito ao nivel de adequação entre o modelo

conceptual e a estrutura da realidade (Miguélez, 1999). Dito por outras pala­

vras, a conceptualização imposta por uma abordagem quantitativa ade­

q u a t e ao fenómeno que pretendemos estudar? Esta adequa­se preferen­

cialmente a "substâncias fixas", ou seja, o objecto de estudo é o mais possivel

"fixado" no tempo e no espaço e o número de variáveis restringido ao máxi­

mo. Simultaneamente usa um raciocínio dedutivo. Todavia o que pretendo

estudar é de natureza processual, contendo portanto uma dimensão tempo­

ral, tornando difícil o seu estudo através da lógica dedutiva.

Uma outra questão é a seguinte'■ o objectivo é a generalização? Na

sequência das respostas dadas às questões anteriores, a esta só poderei res­

ponder, não. Perante um estudo de natureza processual, em profundidade,

compreensivo, não poderei falar em generalização. Tal conceito é mais con­

gruente com abordagens de natureza quantitativa. No caso presente poder­

se­á falar, em transferibilidade (Miguélez, 1999), ou seja, na aplicação dos

resultados deste estudo a uma outra situação que apresente semelhanças

com as que encontrei no contexto onde realizei o estudo.

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Dissertação de Doutoramento

Page 105: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

0 autor termina a sua série de questões com uma sugestão. Esta faz refe­

rência à complexidade dos fenómenos humanos, como forma de justificar a

necessidade de uma abordagem integrada para melhor os percebermos

(Miguélez, 1999). Com esta proposta, o autor faz apelo ao uso de uma ferra­

menta heurística a qual, de algum modo, integre aspectos das duas aborda­

gens anteriormente referidas (i.e., qualitativa e quantitativa), melhorando

claramente os resultados da investigação. Para atingir tal desiderato é pro­

posta a triangulação, a qual consiste na combinação de diferentes formas,

técnicas ou procedimentos de investigação qualitativa e quantitativa.

Dependendo das combinações assim a triangulação assumirá diferentes

designações (i.e., triangulação de métodos, de dados, de investigadores, de

teorias e interdisciplinar). No caso do presente estudo interessou-me sobre­

tudo a triangulação de dados. Esta consiste na utilização de uma variedade

de dados, provenientes de diferentes fontes de informação. De acordo com

alguns autores, a referência à diversidade de dados diz respeito à sua natu­

reza (i.e., qualitativa ou quantitativa). Contudo, no presente estudo, estamos

predominantemente perante uma diversidade de proveniência dos dados,

relativos ao objecto de análise. Efectivamente, sobre o objecto em estudo

(i.e., a relação enfermeiro/doente), utilizei dados provenientes dos doentes e

familiares (através de entrevista), das enfermeiras, quer através de entre­

vistas individuais quer de entrevistas por elas realizadas aos doentes,

enquanto instrumento de intervenção e dados resultantes da observação da

interacção. Assim, poderei afirmar que existiu triangulação de dados relati­

vamente à sua origem.

Com base neste conjunto de argumentos, bem como no conjunto de razões

aduzidas anteriormente, fica justificada a decisão da minha opção pela abor­

dagem qualitativa, do ponto de vista metodológico, adoptada nesta investi­

gação. A adopção desta perspectiva não é um alinhamento ideológico, enten-

dível à luz das polémicas entre os defensores de cada uma das abordagens

possíveis. Trata-se isso sim, de uma decisão racional, fundamentada na

natureza do fenómeno em estudo, bem como da área de conhecimento em

que se insere.

103=™=================—========================================= Dissertação de Doutoramento

Page 106: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Decidida a natureza do estudo, torna-se ainda necessário justificar qual,

de entre as diversas abordagens qualitativas, aquela por que optei. Também

neste caso a decisão radicou nas características do problema em estudo. Ou

seja, a pergunta que me coloquei foi: qual o melhor caminho para responder

à questão que pretendo investigar?

Considerando que a área em estudo está pouco investigada, na perspecti­

va em que o pretendo fazer, que é uma área com intrincados detalhes acerca

de fenómenos tais como os sentimentos, processo de pensamento e emoções,

que são difíceis de extrair ou compreender através dos métodos de investiga­

ção mais convencionais (Strauss & Corbin, 1998); considerando ainda que a

grounded theory partilha estas finalidades, mas torna-se particularmente

útil em situações de natureza psicossocial, organizacional, entre outras, que

carecem de teorização, sobre as quais é necessário desenvolver o conheci­

mento, particularmente no que diz respeito ao seu processo e estrutura

(Lopes, 2003); então a decisão foi pela grounded theory (Strauss & Corbin,

1998). Esta abordagem metodológica tem como finalidade a teorização a par­

tir dos dados sistematicamente recolhidos e analisados e comparados atra­

vés do processo de investigação (Strauss & Corbin, 1998). As teorias cons­

truídas desta forma e porque foram desenhadas a part ir dos dados, aumen­

tarão o entendimento e providenciarão um guia com maior significado para

a acção (Lopes, 2003).

Para compreendermos esta metodologia é necessário ter presente a evo­

lução do pensamento das ciências sociais e humanas, nomeadamente duran­

te o final do século XIX e século XX. Aquelas afirmaram-se paulatinamente

ao longo deste período de tempo. Apesar disso, até cerca do fim da primeira

metade deste último século, o paradigma dominante ainda foi o positivista,

com base no qual a investigação se construía, predominantemente a partir

de uma perspectiva hipotético-dedutivo e suportada pelos "grandes homens"

das teorias tais como, Weber, Durkheim, Cooley, Mead, entre outros e o tra­

balho dos investigadores de então consistia em os testar (Kinach, 1995).

Contudo, paralelamente ia-se construindo um paradigma alternativo. Para

este contribuíam diversos pensadores, desde a área da filosofia (e.g., Hus-

Dissertação de Doutoramento — 104

Page 107: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os iilcntcs e os enfermeiros: Construção de uma relação

serl, Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre, Gadamer), à área das ciências (e.g.,

Dewey, Thomas, Blumer, Freud, Rogers).

A nível das teorias sociais, o interaccionismo simbólico foi a expressão

mais marcante deste novo paradigma. Esta teoria foi desenvolvido por Her­

bert Blumer, embora as suas raízes se possam encontrar em Weber e Mead.

Esta corrente de pensamento teve um profundo efeito na teoria social e na

metodologia. Esta perspectiva repousa em três princípios centrais^ significa­

do, linguagem e pensamento. Estes três princípios deram origem às três pre­

missas fundamentais da teoria. A Primeira, diz-nos que os seres humanos

agem em relação às coisas com base no significado que aquelas têm para

eles. A segunda defende que esses significados resultam da interacção dos

indivíduos uns com os outros. Ou seja, os significados são construídos por

negociação, através da linguagem. Por último, a terceira premissa sustenta

que um processo interpretativo (pensamento) é usado pelas pessoas em cada

situação na qual elas têm de lidar com as coisas no seu ambiente (Blumer,

1969). Ou seja, o pensamento modifica cada interpretação individual dos

símbolos. O pensamento, baseado na linguagem, é um diálogo mental que

requer "role taking" ou imaginar diferentes pontos de vista.

O interaccionismo simbólico veio centrar a atenção sobre os aspectos sub­

jectivos da vida social, mais do que sobre os objectivos e macro-estruturais

dos sistemas sociais. Segundo esta corrente de pensamento, os seres huma­

nos são actores pragmáticos que ajustam sistematicamente o seu comporta­

mento às acções dos outros actores. Este ajustamento só ocorre porque cada

ser humano é capaz de interpretar as acções dos outros. Este processo de

ajustamento é ajudado pela capacidade das pessoas de ensaiarem imagina­

riamente linhas de acção alternativas antes de agir. Assim, o interaccionis­

mo simbólico vê os seres humanos como participantes activos e criativos na

construção do seu mundo social.

Deste modo, para os interaccionistas a sociedade consiste em padrões

organizados de interacção entre indivíduos. Consequentemente, a investiga­

ção, de acordo com esta perspectiva, centra-se nas interacções face-a-face, as

quais são facilmente observáveis. Os interaccionistas tendem a estudar a

105 Dissertação de Doutoramento

Page 108: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

interacção social através da observação participante, argumentando que a

imersão e o contacto próximo na vida do dia-a-dia dos participantes é neces­

sária para compreender o significado das acções, a definição da situação e o

processo através do qual os actores constroem a situação através da interac­

ção. Para além disso, esta focalização na interacção e nos significados dos

acontecimentos para os seus participantes, desloca a atenção dos interacckr

nistas das normas e valores mais estáveis para processos sociais menos

estáveis e em reajustamento sistemático. Para os interaccionistas a negocia­

ção entre os membros de uma sociedade cria relações sociais construídas e

temporárias que permanecem em constante fluxo, apesar da relativa estabi­

lidade no constructo básico que as governa. Esta ênfase na realidade nego­

ciada, nos símbolos e na construção social da sociedade conduz-nos a um

interesse nos papéis que as pessoas desempenham.

Este foi um dos contributos mais importantes para a construção de uma

perspectiva diferente a nível da investigação. A partir desta outra perspecti­

va, as metodologias indutivas passaram a ser as preferidas, numa tentativa

de construir teorias a part ir da realidade social concreta e nas quais os acto­

res sociais se sentissem reflectidos e que pudessem elas próprias ser uma

resposta para os problemas que estudavam (Lopes, 2003).

Neste mesmo período de tempo, a enfermagem, principalmente no mun­

do angkrsaxónico, encontrava-se numa encruzilhada que resultava essen­

cialmente da necessidade de se afirmar como área de conhecimento, tendo

para isso que se libertar do secular jugo da medicina. No início dos anos 50

t inham começado nos Estados Unidos da América os primeiros programas

de doutoramento para enfermeiros. Estes caracterizavanrse por serem

grandemente influenciados pelas áreas das ciências sociais e humanas.

Davam-se assim os primeiros passos na abertura da enfermagem a outras

áreas de conhecimento que não só o médico, o que lhe permitiu também ace­

der aos paradigmas aí emergentes (Lopes, 2003).

Poder-se-á dizer, em traços gerais, que foi esta confluência de factores

que contribuiu para que a Universidade da Califórnia, então Centro Médico

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Dissertação de Doutoramento

Page 109: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

de São Francisco, contratasse Glaser e Strauss para ajudar os estudantes de

enfermagem nas suas pesquisas.

Barney G. Glaser era sociólogo, doutorado pela Universidade de Colum­

bia, da qual era originário. Glaser foi fortemente influenciado pela metodo­

logia indutiva (qualitativa e quantitativa) que foi descoberta por Paul F.

Lazarsfeld (1901-1976), e os colegas dele (Herbert H. Hyman, Allen Barton,

Bruce McPhee, Bernard Bereldson, et al.). A sua metodologia indutiva gera­

dora de teoria foi também influenciada pelo seu conselheiro Robert K. Mer-

ton (1979) (um estudante de Talcott Parsons) e os colegas dele Hans Zet te r

berg (1956), Seymour Lipset, Alvin Gouldner, entre outros.

Por sua vez, Anselm L. Strauss, também sociólogo, era doutorado em

sociologia pela Universidade de Chicago. Esta Universidade tem uma forte

tradição em pesquisa qualitativa. Strauss foi influenciado pelo interaccio-

nismo simbólico e pelo pragmatismo de Robert E. Park, W.I. Thomas, John

Dewey, G.H. Mead, Everett Hughes, e Herbert Blumer.

Um dos primeiros trabalhos de Glaser e Strauss na Universidade da

Califórnia foi desenvolvido com doentes em fase terminal. Com este estudo

descobriram as categorias centrais de consciência agonizante, assim como a

trajectória agonizante (Glaser & Strauss, 1965). O método de pesquisa foi

denominado como "Metodologia da grounded theory. Assim, de acordo com

estes autores, a grounded theory foi descoberta, não inventada.

Em "A Descoberta da Grounded Theory- Estratégias para Investigação

Qualitativa', Glaser e Strauss confrontaram esta metodologia com a pers­

pectiva lógico-dedutiva. Argumentaram que a ênfase prevalecente em testar

a teoria, negligencia o seu processo de geração. Outro défice da investigação

em ciências sociais neste período era as conexões de teoria-prática. As teo­

rias t inhanrse desenvolvido numa perspectiva positivista e tornaranrse

mais afastadas dos fenómenos sociais que era suposto explicarem (Glaser &

Strauss, 1967).

Dadas as características da metodologia proposta por estes autores, esta

também pode ser denominada por "método da análise comparativa constan­

te". Strauss & Corbin (1990) sugeriram que a metodologia da grounded

107 Dissertação de Doutoramento

Page 110: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

theory é uma técnica que pode ser usada para desenvolver uma teoria a par­

tir dos dados sistematicamente recolhidos e analisados. A relação entre os

dados e a teoria, torna_se evidente, com aqueles a suportarem a sua existên­

cia e esta a explicá-los. E um método qualitativo bastante diferente dos

métodos quasi-dedutivos qualitativos sugeridos por Miles & Huberman

(1994). A metodologia da grounded theory não começa com hipóteses ou per­

guntas de pesquisa como nos métodos dedutivos. De facto, começa com um

fenómeno que o investigador acha que está inadequadamente explicado do

ponto de vista teórico, e com um problema de investigação bem definido. A

metodologia da grounded theory é frequentemente usada em estudos para a

investigação de conceitos novos e criação de teoria.

Mais tarde Glaser e Strauss divergiram quer nos percursos, quer no

entendimento acerca da grounded theory. Assim, podemos dizer que, apa­

rentemente, há pelo menos duas versões de grounded theory (i.e., a de Gla­

ser e a de Strauss). Contudo e apesar da troca de críticas entre os dois auto­

res, não fica claro que existam diferenças profundamente significativas.

Assim, motivos de natureza pragmática e que tiveram a ver com a facilidade

de acesso à informação, mas também de natureza identitária, conduzi-

ram-me até à perspectiva da grounded theory desenvolvida por Strauss &

Corbin (1998).

De acordo com Pandit (1996) as principais fases e passos desta metodolo­

gia são as apresentadas no quadro 4. Sobre cada uma delas, darei adiante

explicações mais pormenorizadas.

Contudo e antes dessas explicações pormenorizadas, torna-se necessário

clarificar principalmente um dos objectivos que me proponho alcançar com

este estudo (i.e., Desenvolver uma teoria de médio alcance sobre a relação

enfermeiro-doente). Os outros (i.e., Compreender a natureza da interacção

entre os enfermeiros e os doentes oncológicos submetidos a quimioterapia

num hospital de dia e Contribuir para a construção da disciplina de enfer­

magem) são justificados pelas razões explicativas do presente estudo (ver I

Parte do trabalho).

Dissertação de Doutoramento

Page 111: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulciites c os enfermeiros: Construção de uma relação

Quadro 4-0Processo de construção de uma teoria fundamentada FASE PASSOS ACTIVIDADES RAZÕES

FASE DO DESE­NHO DE INVES­TIGAÇÃO

PASSO 1 Revisão da litera­tura técnica.

Definição da pergunta de investigação. Focalizar os esforços.

FASE DO DESE­NHO DE INVES­TIGAÇÃO

PASSO 1 Revisão da litera­tura técnica. Definição dos construetos à

priori.

Dificultar a variação irrele­vante e aumentar a valida­de externa.

FASE DO DESE­NHO DE INVES­TIGAÇÃO

PASSO 2 Selecção de casos. Amostragem teórica, não estatística.

Focalizar os esforços em casos teoricamente úteis.

FASE DA RECO­LHA DE DADOS

PASSO 3

Desenvolver uni protocolo rigoroso de recolha de dados.

Criar uma base de dados de estudos de caso.

Aumentar a fiabilidade e validade de construeto.

FASE DA RECO­LHA DE DADOS

PASSO 3

Desenvolver uni protocolo rigoroso de recolha de dados.

Empregar métodos múlti­plos de recolha de dados.

Fortalecer a fundamenta­ção da teoria pela triangu­lação da evidência. Aumen­tar a validade interna.

FASE DA RECO­LHA DE DADOS

PASSO 3

Desenvolver uni protocolo rigoroso de recolha de dados.

Dados qualitativos e quanti­tativos.

Visão sinérgica da evidên­cia.

FASE DA RECO­LHA DE DADOS

PASSO 4 Entrando no cam­po.

Sobrepor recolha e análise de dados.

Acelerar a análise e forne­cer ajustamentos úteis para a recolha de dados.

FASE DA RECO­LHA DE DADOS

PASSO 4 Entrando no cam­po.

Métodos de recolha de dados flexíveis e oportunistas.

Permitir ao investigador tirar proveito dos temas emergentes e das caracte­rísticas únicas dos casos.

FASE DA ORDENAÇÃO DOS DADOS

PASSOS Ordenação dos dados.

Ordenar os eventos cronolo­gicamente.

Tornar a análise dos dados mais fácil.

FASE DA ANÃ-LISEDEDADOS

PASSO 6 Analisar e relacio­nar com o 1° caso.

Usar codificação aberta. Desenvolver conceitos, categorias e suas proprie­dades.

FASE DA ANÃ-LISEDEDADOS

PASSO 6 Analisar e relacio­nar com o 1° caso.

Usar codificação axial. Desenvolver as conexões entre as categorias e as suas subcategorias.

FASE DA ANÃ-LISEDEDADOS

PASSO 6 Analisar e relacio­nar com o 1° caso.

Usar codificação selectiva.

Integrar categorias para construir estruturas teóri­cas. Todas as formas de codifi­cação aumentam a validade interna.

FASE DA ANÃ-LISEDEDADOS

PASSO 7 Amostragem teóri­ca.

Replicação literal e teórica ao longo dos casos. Voltar ao Passo 2 até à saturação teórica.

Confirmar, estender e aprimorar a estrutura teórica.

FASE DA ANÃ-LISEDEDADOS

PASSO 8 Alcançar o encer­ramento.

Saturação teórica quando possível.

Terminar o processo quan­do as melhorias marginais se tornarem pequenas.

FASE DA COM­PARAÇÃO COM A LITERATURA

PASSO 9

Comparar a teoria emergente com a extensa literatura existente.

Comparar com estruturas teóricas conflituantes.

Aumentar a definição do construeto e da validade interna. FASE DA COM­

PARAÇÃO COM A LITERATURA

PASSO 9

Comparar a teoria emergente com a extensa literatura existente. Comparar com estruturas

teóricas similares.

Aumentar a validade externa pelo estabelecimento do domínio para o qual os acha­dos do estudo podem ser generalizados.

Fonte: Pandit, N. R. (1996)

Assim, as minhas opções metodológicas relativamente à concretização

desse objectivo, são enquadráveis numa das três estratégias de desenvolvi­

mento teórico propostas por Walker & Avant (1995). As estratégias propos­

tas são^ Derivação, Análise e Síntese.

109 Dissertação de Doutoramento

Page 112: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

A derivação é uma estratégia em que se emprega a analogia ou a metáfo­

ra na transposição e redefinição de um conceito, declaração ou teoria de um

contexto para outro (Walker & Avant, 1995). Esta estratégia foi fortemente

influenciada pelo trabalho de Maccia & Maccia (1966). Na enfermagem, um

dos exemplos desta estratégia é a proposta por Condon (1986), a qual, a par­

tir da teoria do desenvolvimento sócio-moral de Kohlberg (1981, 1984), deri­

vou a teoria do desenvolvimento para o cuidar.

Na análise clarificanrse ou refinam-se conceitos ou teorias. A análise é

especialmente útil em áreas nas quais existe l i teratura teórica. Nesta apro­

ximação, o teorizador disseca o todo nas suas partes, para que possam ser

melhor entendidas. Adicionalmente, examina a relação de cada uma das

partes entre si e com o todo (Walker & Avant, 1995). Se, por exemplo, hou­

ver pontos de vistas rivais ou inconsistentes sobre a empatia, então uma

análise deste conceito pode ajudar a clarificar o seu uso, natureza e proprie­

dades.

Por último, a síntese, contrasta com a anterior na medida em que combi­

na peças isoladas de informação que ainda estão teoricamente desligadas.

Na síntese, informação baseada na observação é usada para construir um

novo conceito, uma nova declaração, ou uma nova teoria. A síntese funciona

melhor quando o teorizador está a recolher dados ou a tentar interpretá-los

sem uma estrutura teórica explícita. Muitas investigações clínicas descriti­

vas consistem na recolha de largas quantidades de dados, na esperança de

que se destaquem factores e inter-relações importantes. A síntese pode aju­

dar neste processo de separação (Walker & Avant, 1995). E neste contexto

que o presente trabalho pode ser entendido.

Apesar disso, o contributo deste trabalho para a teorização em enferma­

gem é limitado pela natureza da teoria que me proponho desenvolver^ uma

teoria de médio alcance. Efectivamente, as teorias de médio alcance são

limitadas no número de variáveis e no alcance, tal como a sua designação

indica. Todavia, estas teorias são suficientemente genéricas para serem

cientificamente interessantes e parti lham alguma da economia de conceitos

das grandes teorias mas também providenciam a especificidade necessária

Dissertação de Doutoramento

Page 113: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

para ser usada na prática de investigação (Walker & Avant, 1995). São por

último um contributo no encadeado dos diversos níveis de desenvolvimento

teórico (ver figura 6).

Figura 6 -Ligações entre níveis de desenvolvimento teórico

NÍVEL META-TEÓRICO

NÍVEL DE GRANDES TEO­RIAS

NÍVEL DE TEORIA DE MÉDIO ALCANCE

NÍVEL DE TEORIA PRATICA

Providencia material para

Testa na prática

Fonte: Adaptado de Walker & Avant (1995)

Dito por outras palavras, as teorias de médio alcance posicionanrse como

um nível necessário no conjunto dos diversos níveis que constituem o uni­

verso teórico de qualquer disciplina, mas principalmente daquelas cuja

natureza é idêntica à da enfermagem. As teorias de médio alcance, bem

como as teorias práticas, reconhecenrse como importantes no contexto das

respostas concretas que os profissionais precisam de dar no seu dia_a_dia.

Apesar do que acabei de dizer, penso que seja útil reforçar a ideia de que

este é apenas um elo na cadeia faseada do desenvolvimento do conhecimento

em enfermagem (ver figura 7).

Figura 7 - Fases do desenvolvimento da ciência de enfermagem

Desenvolvimento do conceito -*•

Desenvolvimento da declaração

Desenvolvimento da teoria

Teste da teoria

Ciência de Enferma­gem

Testes adicionais da teoria

Fonte: Adaptado de Walker & Avant (1995)

111 Dissertação de Doutoramento

Revisão do conceito

Revisão da declaração

Revisão da teoria

Page 114: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Ou seja, tal como é indicado pelo último objectivo deste trabalho (i.e.,

Contribuir para a construção da disciplina de enfermagem), pretende-se

contribuir para o desenvolvimento do conhecimento em enfermagem.

4.1 - FASE DO DESENVOLVIMENTO DO DESENHO DE INVESTI­

GAÇÃO

O processo de definição do desenho de investigação alicerçou-se na refle­

xão pessoal acerca das minhas experiências enquanto prestador de cuidados,

professor e investigador,' em leituras diversas, quer de natureza clinica, quer

metodológica; e em discussão com colegas, pares de profissão e de percurso

académico. Destas últimas destaco as ocorridas no contexto dos seminários

para doutorandos, promovidas pela Unidade de Investigação Enfermagem e

Desenvolvimento. Do conjunto destas actividades resultou a definição do

problema, dos objectivos, bem como o desenho metodológico, ainda que gené­

rico.

Após isto, a primeira questão que se me colocava e que exigia uma deci­

são rápida, t inha a ver com a escolha do local para a realização do meu

estudo. Esta não era, de todo, uma questão de somenos importância. Efecti­

vamente, se queria estudar a relação enfermeiro-doente, poderia part ir do

pressuposto de que, desde que duas pessoas estejam em presença existe

relação, logo, qualquer local de prestação de cuidados seria adequado. Toda­

via, não era esta a ideia subjacente ao estudo. Se o que pretendo estudar é a

relação enquanto instrumento terapêutico, torna-se necessário conjugar dois

factores importantes: por um lado, um contexto onde exista continuidade

temporal de contacto entre os enfermeiros e os doentes,' por outro, uma

situação de saúde que se constitua como um processo de transição (Meleis,

1997).

Optei assim por escolher um serviço de quimioterapia a funcionar em

regime de hospital de dia. Efectivamente, a administração da quimioterapia

oncológica é um procedimento que exige grande rigor e que normalmente se

prolonga por várias horas. E também um procedimento que se repete várias

vezes por semana e ao longo de várias semanas, podendo ser interrompido e

Dissertação de Doutoramento

Page 115: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulentcs e os enfermeiros; Construção de uma relação

reiniciado várias vezes ou repetido, prolongando­se assim por meses. É um

procedimento que ocorre quando a pessoa já iniciou o processo de interiori­

zação da sua situação de doença oncológica e de todas as consequências que

dai advêm. Afirmo tal porque a quimioterapia é um procedimento sempre

posterior ao diagnóstico, muitas vezes posterior a outras intervenções e que

decorre num serviço com representação associada à doença oncológica. E,

por último, um procedimento do qual podem resultar vários e desagradáveis

efeitos secundários. O enfermeiro é em todo este processo a figura central. É

ele quem prepara a terapêutica, quem prepara o doente para a sua adminis­

tração, e quem administra e vigia os seus efeitos secundários. Mas é ele tam­

bém que está com o doente durante todo o tempo que este permanece no ser­

viço, ao longo de várias semanas.

Falta ainda justificar a escolha do local concreto onde realizei o estudo. O

primeiro pressuposto para escolher este serviço radicou no seguinte'• se um

dos objectivos do estudo é o desenvolvimento de uma teoria de médio alcance

acerca da relação enfermeiro­doente, considero que seja adequado escolher

um serviço que reúna um conjunto de pré­requisitos, dos quais destaco, ter

reputação de prestar bons cuidados de enfermagem. O ideal seria socor­

rer­me de um conjunto de dados resultantes da avaliação da qualidade dos

cuidados de diversos unidades de quimioterapia. Dada a inexistência de tais

elementos, utilizei medidas reputacionais junto de profissionais de saúde

diversos, de alguns utentes e de colegas professores de escolas superiores de

enfermagem, nomeadamente no que diz respeito à utilização enquanto local

de estágio para a formação de novos profissionais. Nas medidas reputacio­

nais estavam incluídos elementos tais como:

S a qualidade do espaço físico;

■S a qualidade percebida da relação da equipa com os doentes e famílias!

S a qualidade percebida da relação dos enfermeiros com os doentes e

famílias!

S a qualidade percebida da relação entre os diversos elementos da equi­

pa!

113 Dissertação de Doutoramento

Page 116: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

Na região sul do país, local onde moro, vários foram os serviços possíveis.

Acabei por optar pelo que mais facilidades de acesso me colocava face ao

meu local de residência, uma vez que o contacto e a permanência iriam ser

longos.

Chegado a esta fase procedi ao pedido de autorização ao Conselho de

Administração do hospital, o qual, após ter recolhido os pareceres julgados

convenientes das diversas entidades e órgãos, me autorizou a realização do

estudo.

Dei então início a um período de contactos informais com os diversos

actores do serviço, nomeadamente, Director de Serviço, Enfermeira Chefe,

restantes médicos e enfermeiras e auxiliares de acção médica. Estes contac­

tos tiveram como objectivos, informar os diversos intervenientes da minha

presença, bem como do trabalho que pretendia desenvolver e ainda criar as

melhores condições possíveis para o desenvolvimento do mesmo.

Passado este período, desenvolvi um estudo piloto cujo objectivo foi, reco­

lher os elementos necessários à tomada de decisões e delineamento de estra­

tégias de investigação. Aquele estudo prolongou-se por dois meses e consis­

tiu na observação do contexto, observação livre das interacções que se pro­

cessavam nesse local, dando preferência às interacções entre os doentes e as

enfermeiras. Desta observação foram elaboradas notas de campo, transcri­

tas no final de cada período de observação para um diário, ao qual eram ain­

da acrescentadas as minhas impressões e vivências. Foram também efec­

tuadas entrevistas a algumas enfermeiras, a alguns doentes (quer umas

quer outras gravadas em suporte magnético), e ainda feita observação e gra­

vação, em idêntico suporte, das entrevistas de admissão efectuadas pelas

enfermeiras aos doentes. De entre as decisões tomadas com base neste estu­

do piloto destaco^

S englobar todas as enfermeiras no estudo, sendo que lhes seria solici­

tado, pelo menos, um relato relacional; ser-lhes-ia ainda solicitada a

gravação das entrevistas de admissão por elas realizadas;

S escolher doentes para entrevistar de acordo com diversidade de ida­

des e de experiências;

Dissertação de Doutoramento

Page 117: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros; Construção de uma relação

■S na observação, dar preferência sucessivamente, às salas de adminis­

tração de quimioterapia, sala de espera dos doentes e restantes

espaços,'

•S estar atento à continuidade dos relacionamentos, quer durante a

sessão de quimioterapia, quer de uma sessões para outras.

S também na observação, dar preferência aos períodos de maior

afluência de doentes.

Para cumprir algumas destas decisões de forma sistemática, foram ela­

borados guiões para as entrevistas efectuadas às enfermeiras (anexo I), aos

doentes (anexo II) e um guião de observação (anexo III), dos quais falarei

mais à frente.

4.2 ­ FASE DE RECOLHA DE DADOS

Após isso, e com base nas decisões então tomadas, iniciei o processo de

recolha de dados para o trabalho de investigação. O primeiro período de

recolha de dados decorreu entre Junho e Agosto de 2002. A este seguhrse

um período de análise de dados que se prolongou até Abril de 2003. Entre

Maio e Agosto de 2003 decorreu o segundo período de colheita de dados.

Na colheita de dados utilizei duas técnicas­ a entrevista e a observação.

Segundo alguns autores (e.g., Denzin et ai, 1994; Olabuénaga, 1999; Les­

sard­Hérbert et ai, 1990; Streubert et ai, 1995), estas são as duas técnicas

fundamentais de recolha de dados em investigação qualitativa. Contudo e

dada a diversidade de técnicas de entrevista e de observação, alguns outros

propõem que se fale em técnicas de recolhas de dados verbais e de dados

visuais (Flick, 1998). A primeira destas denominações (i.e., técnicas de reco­

lha de dados verbais) parece­me particularmente adequada. Todavia, a

segunda parece­me padecer de alguma limitação, uma vez que na observa­

ção não se recolhem apenas dados visuais mas também verbais, olfactivos,

tácteis, entre outros. Por tal razão, servir­me­ei de elementos provenientes

de autores diversos para caracterizar e fundamentar as opções assumidas

neste trabalho.

115 Dissertação de Doutoramento

Page 118: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

4.2.1 - A entrevista

A entrevista é considerada uma das duas principais técnicas de investi­

gação qualitativa (Denzin et ai 1994). Esta técnica, ao serviço da investiga­

ção, pode ser entendida como um modo de obter informação através de uma

conversa profissional com uma ou várias pessoas e consiste basicamente na

arte de formular perguntas e escutar as respostas (Olabuénaga, 1999). Defi­

nida deste modo, a entrevista pode ser vista como um processo de interacção

social entre duas pessoas. Pelo que, esta técnica de colheita de dados coloca

questões relacionadas com esse processo e que não devem ser esquecidas.

Assim, é importante considerar os aspectos contextuais relacionados com a

entrevista, tais como, o espaço onde a entrevista vai decorrer, o modo como o

mesmo está mobilado, o modo como os intervenientes na entrevista se posi­

cionam e a representação que aquele espaço tem para os intervenientes.

As entrevistas por mim efectuadas para este estudo, decorreram todas no

gabinete atribuído à enfermeira chefe do serviço para a prossecução das

suas funções. Contudo e dado a enfermeira chefe privilegiar as funções clíni­

cas, este gabinete era frequentemente usado para conversas privadas com

doentes. Portanto, estava conotado com o desenvolvimento de interacções

privadas, o que motivava algum cuidado das pessoas em procederem a qual­

quer interrupção desde que a porta estivesse fechada. Em todas as entrevis­

tas tive a liberdade de dispor do espaço e do mobiliário como me pareceu

mais conveniente. Assim, pude escolher sempre uma disposição que me per­

mitisse ver a pessoa, sem contudo impor a minha presença. Paralelamente,

o usufruto do espaço em condições de privacidade foi um elemento de grande

importância. Por último e em termos de representação, posso dizer que para

as enfermeiras, aquele era um espaço delas, no qual se sentiam "em casa".

Por sua vez, para os doentes, era um espaço com uma conotação de privaci­

dade e onde alguns já t inham estado em interacção com alguma das enfer­

meiras.

Este último elemento faz a ponte para o segundo conjunto de elementos

relativos à interacção social e associados à entrevista^ os elementos relacio­

nais. Estes e até porque uma das referências conceptuais importantes desta

Dissertação de Doutoramento

Page 119: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

abordagem metodológica é o interaccionismo simbólico, devem considerar a

representação mútua que os intervenientes na entrevista possuem; mas

devem considerar também os elementos associados à interacção propriamen­

te dita, como sejam a confiança, a simpatia, a civilidade, o respeito, entre

outros (Olabuénaga, 1999).

Relativamente à representação mútua e no que às enfermeiras diz res­

peito, há dois grupos de factores a referir. O primeiro tem a ver com o facto

de já nos conhecermos mutuamente. Deste conhecimento resulta a imagem

que eu tenho do grupo e a imagem que julgo que o grupo tem de mim. Sobre

a primeira posso referir que as respeito enquanto profissionais, considero­as

detentoras de uma elevada experiência e voluntarismo. Posiciono­me face a

elas com humildade e como alguém que está a uma enorme distância da sua

experiência de prestação de cuidados. A imagem que julgo terem de mim

penso caracterizar­se pelo respeito por alguém que consideram desenvolver

a sua actividade profissional (i.e., o ensino) com rigor e exigência. Penso

também que me consideram alguém detentor de aprofundados conhecimen­

tos. Estes elementos poderiam à partida gerar algumas dificuldades, as

quais se poderiam manifestar por uma actuação e/ou verbalização, de algum

modo encenada. Por tais razões prolonguei o período de convívio inicial.

Durante este período, que correspondeu aos contactos iniciais bem como ao

tempo em que decorreu o estudo piloto, permaneci no serviço, tentando esta­

belecer uma relação de confiança e de respeito. Penso ainda que o facto de

ter desenvolvido entrevistas durante esse período, serviu para ajudar a

ultrapassar alguns constrangimentos. Julgo contudo que a minha atitude de

respeito, de ausência de crítica e de uma distância parcimoniosa, contribuiu

para deixarem de se preocuparem comigo. Digamos que passei a "fazer parte

da mobília".

Relativamente aos doentes, não havia qualquer conhecimento prévio,

pelo que a representação foi sendo construída com base na informação que

iam recolhendo, principalmente junto das enfermeiras. Da imagem que

foram construindo pareceu­me sobressair um elemento importante'■ alguém

que estava ali a desenvolver um estudo que poderia ser útil aos futuros pro­

117 Dissertação de Doutoramento

Page 120: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

fissionais e consequentemente aos doentes. Isto predispunha os doentes a

colaborarem de boa vontade.

Relativamente à entrevista enquanto técnica de colheita de dados, a

questão que a seguir se coloca é: qual dos diversos tipos usar? No meu

entender, esta decisão depende essencialmente dos objectivos do estudo. Ora

recordo que com este estudo se pretende, "compreender a natureza da inte­

racção entre as enfermeiras e os doentes oncológicos submetidos a quimiote­

rapia num hospital de dia e "desenvolver uma teoria de médio alcance sobre

a relação enfermeiro-doente". Está portanto subjacente uma perspectiva pro­

cessual e, para este efeito, propus-me obter dados a partir dos diversos inter­

venientes. Deste modo, justifica-se que o objectivo central da entrevista seja

a obtenção de um relato de um processo relacional. Ora analisando as carac­

terísticas deste, verifica-se que estamos perante um processo relacional vivi­

do pelo entrevistado, significando tal que o mesmo se tornou parte integran­

te da biografia de cada um. Pelo que, a solicitação de um relato de uma expe­

riência de vida com estas características corresponde ao que Flick (1994)

define como "entrevista narrativa". Efectivamente, de acordo com Her­

manns, citado por Flick (1994), na entrevista narrativa o informante é solici­

tado a apresentar a história de uma área de interesse, na qual o mesmo

tenha participado. Ainda de acordo com os autores citados, o papel do entre­

vistador consiste em fazer com que o informante conte a história em questão

de uma forma consistente e com todos os pormenores relevantes, desde o

princípio ao fim. Normalmente uma entrevista desta natureza começa com

uma questão que gera a narrativa. Ou seja, uma questão centrada no tópico

a investigar e que estimule a narrativa.

No caso do presente estudo, solicitou-se às enfermeiras que recordassem

um processo de interacção que, do seu ponto de vista, tivesse sido terapeuti-

camente positivo para o doente. Aos doentes fez-se idêntica solicitação com

um critério variante do anterior (i.e. "considerarem que o processo relacional

foi importante para eles próprios"). Após isso, solicitou-se o relato da histó­

ria dessa interacção (ver anexo I). Por sua vez aos doentes era solicitado que

recordassem a sua experiência no serviço de quimioterapia e que relatassem

- - _ - - - _ - _ _ = = = = = - _ _ _ _ - _ = = = = = = _ _ = = = = = „ _ _ = = „ _ _ _ = = = = = „ _ _ _ = = = „ „ „ . „ , . , , 8

Dissertação de Doutoramento

£5¾¾

Page 121: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

a história da relação com a enfermeira com a qual tivessem mantido uma

relação que considerassem que foi importante para eles. Dado ter constatado

nas entrevistas efectuadas aos doentes durante o estudo piloto, alguma relu­

tância no assumir de relações preferenciais, tornava-se necessário, por

vezes, solicitar o relato da relação com as enfermeiras e não com uma em

particular (ver anexo II). Esta dificuldade, a que mais à frente voltarei a

fazer referência, pareceu-me radicar num misto de alguma protecção às

enfermeiras, com algum medo de ferir susceptibilidades. Apesar disso, no

decorrer do relato sobressaia a preferência relacional.

Todas as entrevistas narrativas foram gravadas em suporte magnético.

Aquelas decorreram em sala própria e apenas com a minha presença e dos

informantes. Previamente ao início da gravação, eram explicados os objecti­

vos do trabalho, o tratamento a que os dados iriam ser sujeitos e garantida a

confidencialidade. No caso dos doentes e familiares e com base na experiên­

cia das entrevistas realizadas no estudo piloto, entendeu-se por bem dar a

garantia adicional de que não se pretendia fazer qualquer avaliação do tra­

balho das enfermeiras, mas, tão só, perceber o processo de relação.

Na sequência disto, era solicitada autorização para a realização da entre­

vista e para a sua gravação em suporte magnético. Após se dar início à gra­

vação, solicitava-se aos informantes que declarassem o seu conhecimento

das condições de realização da entrevista e a sua concordância, com o intuito

de ficar registo da sua autorização.

No início do relato e tal como é proposto por Flick (1998), era sugerida

uma sequência cronológica como forma de organizar o raciocínio. Durante o

relato a minha interferência era praticamente nula, dando no entanto sinais

de que estava atento e a compreender o relato. Eventuais interferências

eram no sentido de tentar compreender o encadeamento dos factos e nor­

malmente ocorriam na parte final do relato. Após o relato ser dado por con­

cluído, facto que dependia de sinais fornecidos pelos informantes, dava-se

início a uma segunda parte da entrevista, apelidada de fase de balanço

(Flick, 1998). Esta consistiu basicamente em perguntas com "como" e "por­

quê" e teve como objectivos principais, compreender as razões porque esco-

j j 9 _______________=======„__________„___„_____________„_____=======_

Dissertação de Doutoramento

Page 122: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

lheram aquela história e pelas quais consideraram que o processo t inha sido

positivo (Schõn, 1998). No caso das enfermeiras, tentou­se ainda aferir o

grau de consciência dos processos descritos, bem como o grau de intenciona­

lidade das acções desenvolvidas.

As entrevistas narrativas tiveram uma duração variável entre os 25

minutos e os 70 minutos. Todas as enfermeiras fizeram o relato de um pro­

cesso, excepto uma que fez de dois e deu contributos para um terceiro. Rela­

tivamente aos doentes a entrevistar, foram escolhidos tendo em considera­

ção as seguintes características'■

S aparentarem ter capacidade de reflexão sobre o processo que estavam

a vivenciar ou t inham vivenciado (esta capacidade era confirmada

com as enfermeiras);

S estarem em momentos diferentes do processo de quimioterapia,'

■f pertencer a diferentes grupos etários;

S pertencerem a géneros diferentes,'

S terem diferentes tipos de experiências (longa experiência de doença

oncológica versus experiência única, conhecer diferentes tipos de ser­

viço versus conhecer apenas este, ...)

Foram assim entrevistados 10 doentes e respectivo(s) familiar(es). Estes,

em regra, acompanhavam os doentes, pelo que a entrevista era em simultâ­

neo, excepto em dois casos em que a entrevista aos doentes e respectivos

familiares ocorreu em momentos diferentes. As entrevistas foram poste­

riormente, por mim, passadas a papel. Neste processo, optou­se pela trans­

crição integral de tudo o que foi dito e ainda pela anotação de algumas

expressões não verbais usadas.

Entendi recorrer ainda a uma outra técnica de recolha de dados verbais:

o focus­grupo. Esta técnica consiste basicamente no uso explícito da interac­

ção do grupo para produzir dados e "insight^ que dificilmente poderiam ser

acessíveis sem o recurso a essa interacção (Morgan, 1988). O focus­grupo

pode ser usado como técnica autónoma ou em associação com outras como a

observação ou as entrevistas. No entender de Morgan (1988) e Flick (1998),

esta técnica é muito útil em situações como:

_ « _ . _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ^ 1 _ _ _ _ _ — _ _ _ _ _ _ _ _ _ — _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ , 2 0

Dissertação de Doutoramento

Page 123: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

•S orientação num novo campo!

•S geração de hipóteses baseadas em "insight^ dos informantes;

•/ avaliação de diferentes sítios de investigação ou populações de estu­

do!

S desenvolvimento de grelhas de entrevista e questionários!

•/ procurar a interpretação dos participantes dos resultados de estudos

prévios.

No presente estudo, o focus-grupo foi usado em estreita associação com

as entrevistas narrativas efectuadas às enfermeiras e com o objectivo de

procurar a sua interpretação dos resultados já alcançados. Por tal razão o

focus-grupo ocorreu no ano de 2003, após ter procedido à análise das entre­

vistas narrativas efectuadas às enfermeiras. Decorreu em espaço próprio,

teve a duração de cerca de duas horas, do mesmo foi feito registo em suporte

magnético e nele estiveram presentes todas as enfermeiras (5). O procedi­

mento iniciou-se com as explicações sobre o funcionamento do mesmo.

Assim, foram explicados os aspectos relativos à necessidade de gravação em

suporte magnético, o tratamento que seria dado à informação, as garantias

de confidencialidade e terminei solicitando autorização para desenvolver tal

procedimento. De seguida foi explicado o procedimento relativo à introdução

dos assuntos-estímulo. Este consistia na apresentação de cada um dos prin­

cipais achados na análise das entrevistas narrativas. Após a apresentação

de cada um desses achados, aguardaria que cada uma das enfermeiras pre­

sentes fizesse o comentário que lhe aprouvesse. A ordem era indiferente, não

havendo também qualquer obrigatoriedade de participação. Solicitava-se

apenas que não houvesse sobreposição de depoimentos por razões técnicas.

Dado que todos os elementos deste grupo se conheciam, entendi dispen­

sar os habituais procedimentos iniciais que têm como objectivo principal

"aquecer" o grupo (Flick, 1998). Todas as enfermeiras participaram, sendo

elas que se estimulavam mutuamente no sentido de fazer com que as mais

caladas também dessem a sua opinião.

121 Dissertação de Doutoramento

Page 124: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

4.2.2 - A observação

A observação é uma actividade de que o ser humano sempre se serviu no

contexto das suas interacções. Aliás e no contexto do interaccionismo simbó­

lico, a interacção em contexto social depende da capacidade de observação e

de interpretação de cada sujeito (Blumer, 1969). Pode-se então dizer que a

capacidade de observação é intrínseca ao ser humano. Talvez seja essa uma

das razões pela qual a observação é das mais antigas e das mais universais

técnicas de recolha de dados usadas na investigação. Efectivamente se ana­

lisarmos os métodos usados pelos cientistas, constatamos que a observação é

talvez a técnica mais comum a todos eles, independentemente da orientação

metodológica. Isto é verdade quer pensemos em cientistas da actualidade,

quer da antiguidade. Assim se nos recordarmos das observações dos primei­

ros astrónomos, como Galileu Galilei, constatamos que seguiam estritas

normas de observação e registo do observado. Mas também Darwin, bem

como tantos outros recorreram à observação e registo pormenorizado dos

seus objectos, como forma de acederem à sua compreensão. Portanto, falar

da observação enquanto técnica de recolha de dados não se constitui pro­

priamente como uma novidade. Pensar-se-á então que é desnecessário pro­

ceder a grandes explicações. Contudo a controvérsia surge quando se começa

a usar a observação como técnica de recolha de dados de natureza qualitati­

va. Principalmente quando o cientista faz parte do mundo social que estuda,

como acontece nas ciências sociais (Strasser, 1985). Neste caso colocanrse

problemas de rigor científico que é preciso acautelar. Apesar disso esta téc­

nica tem sido sistematicamente usada por todos os grandes cientistas das

ciências sociais, a começar em Durkheim.

Pelas razões expostas, se a pretendo usar enquanto instrumento de

investigação, num estudo desta natureza preciso de a definir e de a entender

nas suas diversas dimensões. Assim, a definição geral adoptada é a proposta

por Olabuénaga (1999) e consiste no seguinte: a observação é o processo de

contemplação sistemática e sucessiva da vida social, sem a manipular nem a

modificar. De realçar que nesta definição estão presentes duas característi­

cas que Denzin & Lincoln (1994) entendem ser as que mais distinguem as

_ _ _ = = - - _ - _ _ - = = = ~ « - - - _ _ _ _ _ = = = _ ™ _ _ _ _ _ _ = = „ _ _ _ = „ = _ _ _ „ _ = = = = _ „ „ _ _ = 1 2 2

Dissertação de Doutoramento

Page 125: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

observações científicas das restantes: é o seu carácter intencional e sistemá­

tico. Contudo, interessa realçar outras características, nomeadamente a não

manipulação e não modificação do observado. O realce justifica-se porque

estas características são simultaneamente, as que melhor caracterizam o

uso da observação enquanto instrumento de colheita de dados numa investi­

gação qualitativa, mas também aquelas que são mais difíceis de almejar.

Pode-se então dizer que a observação usada neste contexto, tenta evitar a

distorção artificial da experimentação e os constrangimentos da entrevista.

Uma vez que, quer uma quer outra, acabam por ser situações criadas artifi­

cialmente. Por outro lado e se respeitar o princípio da não intrusão, ou seja,

se não intervier nem manipular os objectos de observação, então, através

desta técnica, podemos ter acesso aos acontecimentos tal como espontanea­

mente se desenrolam (Olabuénaga, 1999). Para isso o investigador precisa

de se munir de um conjunto de instrumentos acessórios, os quais ajudam a

desenvolver a observação e lhe conferem rigor. Começo por fazer referência a

duas características pessoais que o cientista precisa de desenvolver- a obsti­

nação e a não intrusão. A obstinação justifica-se porque se t ra ta de uma téc­

nica de colheita de dados que exige muito tempo e paciência. A não intrusão

já atrás foi referida, mas reafirmo-a como característica pessoal a desenvol­

ver dada a necessidade de estar atento, principalmente em situações em que

os acontecimentos não sejam do nosso agrado.

Porém, para que a observação possa ser usada como instrumento de

investigação precisa de ser definida ainda com mais precisão. Assim e

segundo Olabuénaga (1999), à partida, é preciso que a observação seja-'

S Orientada - Ou seja, focalizada sobre um objectivo concreto de

investigação previamente determinado

S Planificada - Isto é, obedecer a um plano sistemático que determine

as fases, os aspectos, os lugares e as pessoas a observar.

•S Controlada — Ou seja, relacionada com proposições e teorias sociais.

•S Rigorosa - Quer dizer, submetida a controlos de veracidade, de

objectividade e de fiabilidade.

123 Dissertação de Doutoramento

Page 126: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Outros autores (e.g., Lessard-Hérbert, 1990; Denzin & Lincoln, 1994;

Flick, 1998; Quivy, 1998), fazem referência a critérios semelhantes.

No presente estudo, a observação foi focalizada sobre o processo de rela­

ção enfermeira-doente no contexto do hospital de dia seleccionado para o

desenvolvimento deste estudo. Esta foi uma decisão que decorreu da defini­

ção do problema de investigação e que ganhou dimensão e sentido na

sequência do estudo piloto desenvolvido. Através desse estudo tornou-se

mais fácil perceber como é que a relação ocorria naquele contexto, o que me

permitiu também dar corpo à planificação (ver anexo III).

Considero que a planificação da observação tem importância nuclear no

seu desenvolvimento. Por tal razão, aludo de novo à importância de ter

desenvolvido um estudo piloto. Este estudo permitiu-me perceber que a sala

de estar dos doentes era o local preferencial de interacção entre doentes e

familiares. Mas era também o espaço onde decorria frequentemente o pri­

meiro encontro entre a enfermeira e os doentes e familiares. Ou então, onde

decorria o reencontro diário entre aqueles actores. Por outro lado, percebi

também que a primeira das duas salas de quimioterapia sistémica, era ver­

dadeiramente o coração do serviço. Era a primeira a ser ocupada e a última

a vagar. Era também para ali que convergiam as enfermeiras, bem como os

mais diversos actores daquele serviço. Por último e em termos de espaços,

permitiu-me compreender a importância dos diversos corredores. Estes fun­

cionavam muitas vezes como espaços de privacidade entre doentes e/ou

familiares e enfermeiras. Funcionavam também como espaços de negociação

com outros técnicos, nomeadamente médicos. Percebi ainda que as interac­

ções entre as enfermeiras e os doentes eram pautadas por elementos diver­

sos. Estes iam desde a coexistência de vários doentes na sala de quimiotera­

pia, até à diversidade da sua situação médica e vivencial, a qual exigia res­

postas específicas e adaptadas à sua evolução.

Com base nestas e noutras constatações planifiquei a minha observação.

Assim, estando já decidido qual era o foco de atenção (i.e., a interacção

enfermeiro-doente), era necessário decidir como me iria posicionar enquanto

observador e que tipo de observação iria adoptar. Também neste caso enten-

_ _ _ = _ = = = - - - _ „ = = = „ _ _ „ _ = = = = _ _ „ = „ „ „ _ . „ „ = = _ _ „ _ „ . _ _ _ _ _ _ _ _ . . _ „ „ _ 1 2 4

Dissertação de Doutoramento

Page 127: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

do que a decisão deve decorrer em coerência com a natureza do problema e

dos objectivos, bem como das opções metodológicas já assumidas. É necessá­

rio então recordar que me proponho compreender a relação enfermei-

ro-doente no contexto já referido, sendo que, com base nesta compreensão

pretendo desenvolver uma teoria de médio alcance. Por outras palavras, pre­

tendo ter acesso à realidade tal como ela ocorre, interferindo com ela o

menos possível. Consequentemente a minha opção é por uma abordagem

não participante. Contudo, dentro desta e em coerência quer com o interac-

cionismo simbólico, quer com a metodologia da grounded theory, optei pelo

posicionamento proposto pela escola dramatúrgica. Um dos seus autores

mais destacados foi Goffman (1999, 1990), mas também Berne (1971) e

Wythe (1984), entre outros deram contributos importantes. De acordo com

esta escola e na senda do interaccionismo simbólico, a interacção social é

entendida como uma representação teatral na qual é possível perceber um

guião, protagonistas, cenários, papéis, etc. Deste modo, cada pessoa que

esteja presente no contexto de interacção acaba por assumir um papel e

interferir na mesma. Por tal razão, entendem que o investigador deve assu­

mir um papel de marginalidade face à situação. Ou seja, destacar-se o mais

possível da situação, de modo a interferir o menos possível.

Este posicionamento não é algo que se transporte e se imponha ao grupo

social que pretendemos observar. Trata-se antes de um posicionamento que

precisa de ser construído. Ou seja, precisamos de ter presente que, para que

haja observação, o observador tem de estar presente de algum modo. Estan­

do presente participa no processo de interacção social. Este processo tem os

seus ritmos e as suas fases que não podem ser ignorados. No entender de

Olabuénaga (1999), essas fases são diversas e devem ser respeitadas. No

entender daquele autor as duas primeiras fases são^ o recénrehegado e o

membro provisório. Entendo que no presente estudo estas fases correspon­

deram ao período de tempo que decorreu entre os meus primeiros contactos

e o fim do estudo piloto. Durante este período desenvolvi contactos com todos

os actores do serviço, quer viessem a participar no estudo, quer não. O prin­

cipal objectivo subjacente foi dar-me a conhecer e ao trabalho que pretendia

125 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 128: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação '

desenvolver. Sobre este, tentei dar uma explicação plausível e demonstrar

que o meu interesse era em compreender e não em avaliar. Penso que nestas

fases iniciais assumiram importante papel, quer as observações levadas a

cabo, quer as entrevistas. Nem umas nem outras tiveram outra utilidade

científica para além da demonstrada no estudo piloto. Todavia, preencheram

importante função neste processo de construção do meu papel e estatuto

neste contexto social.

Durante este período combinei ainda com as enfermeiras qual a melhor

forma de me apresentar, do ponto de vista de imagem, bem como ao meu

trabalho, tendo principalmente em conta os doentes que vão chegando de

novo. Foi então decidido que usaria a minha roupa habitual, como forma de

não ser confundido com um elemento do serviço. Foi decidido também que no

decorrer dos períodos de observação, os quais seriam por mim fixados, ocu­

paria um lugar fixo na sala e que adoptaria uma atitude de concentração

sobre as interacções em curso, evitando a todo o custo a interacção verbal.

Combinámos por último, que poderia deslocar-me para outros contextos na

tentativa de perceber uma sequência de interacção, sendo isso decidido em

cada momento.

Este período de tempo, a minha atitude durante a mesma, bem como as

negociações desenvolvidas, penso que me deram acesso ao que Olabuénaga

(1999) designa como, o membro categórico. Este caracteriza-se por alguma

opacidade. Ou seja, passa a ser um membro a que se habituaram e que não

provoca nem curiosidade nem receios e que desenvolve uma presença dis­

tante. Dito por outras palavras, tem um papel social legitimado pelos mem­

bros daquele grupo. Nesta fase é essencial o recurso ao pacto com os mem­

bros do grupo para que estes lhe permitam o máximo de presença com o

mínimo de ostentação e ruído. E a fase ideal para aceder aos melhores locais

e informantes. Contudo, para que tal aconteça devem ter-se em conta algu­

mas normas de comportamento, tais como:

S A concentração do observador - deve ser máxima para captar o

transparente, os sons, o silêncio, o dado por adquirido, o sentido

comum, o quotidiano, as chaves cifradas.

= = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ = = = = = = = = = , _ _ „ „ . . = = = „ _ _ = = = = „ _ _ _ _ _ „ = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ „ . , 1 2 6

Dissertação de Doutoramento

Page 129: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

S A oportunidade ­ para saber estar no momento certo na hora certa.

S A marginalidade ­ que lhe garanta a suficiente distância para man­

ter a independência.

S A agressividade controlada que recomenda a observação com medi­

das menos intrusivas e evoluir depois.

■S A sindérese ­ ou seja o cuidado reflectido, o bom senso, a discrição e

circunspecção. Digamos que é uma atitude que é uma mescla de

ingenuidade e astúcia, de segurança e dúvida, de clareza e ambigui­

dade, numa táctica que sabe manter uma visão do conjunto e sope­

sar as consequências de cada acção ou iniciativa do observador em

cada momento (Olabuénaga, 1999).

Neste contexto, é necessário tomar também decisões acerca do sistema de

registo dos dados. A este propósito e em consonância com as decisões já

tomadas, entendi que o sistema mais adequado é o que Evertson & Green

(1986) denominam como narrativo. Este sistema caracteriza­se por:

•S não ter categorias predeterminadas,'

•S se centrar sobre o comportamento e sobre o seu significado em con­

texto;

S se centrar sobre os comportamentos tal como eles ocorrem;

S se plasmar em diários ou notas de trabalho de campo, as quais des­

crevem incidentes críticos ou anedóticos ocorridos num dado período!

■S ter como objectivos a descrição pormenorizada dos fenómenos e a

evolução dos processos.

Para cumprir este conjunto de metas, procedi à observação de todos os

processos de interacção ocorridos no serviço, dando especial atenção aos que

ocorriam entre a enfermeira e o doente. A atenção ao todo justifica­se pela

necessidade de contextualizar e assim conferir significado aos comportamen­

tos associados ao foco da minha atenção. Com base nisto, posso afirmar que

a amostra foi constituída por todas as enfermeiras, doentes e familiares que

desenvolveram interacções no espaço onde decorria a observação. Esse espa­

ço foi preferencialmente a primeira sala de quimioterapia sistémica, mas

também a segunda, bem como os corredores e a sala de espera dos doentes.

Dissertação de Doutoramento

Page 130: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

A observação decorreu entre os meses de Junho e Agosto de 2002 e Maio e

Agosto de 2003. Em média, fazia observação durante três dias por semana

(não necessariamente os mesmos) e num período entre as 8h45m e as l l h 3 0

aproximadamente. Os dias da semana eram escolhidos de modo a poder per­

ceber a continuidade das interacções e considerando que os doentes costu­

mam fazer os tratamentos com uma periodicidade certa. Contudo esta regra

teve excepções. O período de tempo diário dedicado à observação resultou de

uma opção deliberada, por corresponder às horas em que a afluência de

doentes é maior, e devido às minhas limitações; isto é, dificilmente conse­

guia fazer uma observação minuciosa por um período de tempo superior a

2h30m - 3h. Isto perfaz um total de 60 dias de observação, distribuídos ao

longo de cinco meses.

A opção por uma ou outra das salas, para proceder à observação, era

ditada pela ocupação das mesmas ou pela presença de enfermeiras e/ou de

doentes que pretendia observar em interacção. Quando um par de interacção

condicionava a minha opção por um local de observação, o que estava subja­

cente era a observação da sequência de uma interacção iniciada na sala de

espera ou na sessão anterior. Desta forma, a sequência das interacções

adquiriu uma importância considerável. Tal justifica-se pela natureza do

estudo. Ou seja, se pretendo compreender a natureza da relação, preciso de

observar diversas interacções em continuidade. Por "interacção em continui­

dade" entendo a ocorrência de duas ou mais interacções em dias diferentes,

entre um doente e uma enfermeira. Assim, o número total de interacções

enfermeira-doente observadas em continuidade foi 55. Destas interacções,

27 foram com doentes do sexo feminino e 28 com doentes do sexo masculino.

Durante o processo de observação eram elaboradas pequenas anotações

que me permitiam, à posteriori, fazer um registo fidedigno, em diário, do

observado. Nesses registos de observação foi dada preferência aos processos

de interacção observados entre as enfermeiras e os doentes. Tentava-se, não

só, registar a causa desencadeante da interacção, mas também o seu con­

teúdo, ou seja, diálogo verificado e expressões não verbais observadas em

cada um dos intervenientes (ver anexo III). Os registos relativos aos diálogos

- - - _ _ _ _ _ - _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ „ „ , 2 8

Dissertação de Doutoramento

Page 131: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

e expressões não verbais foram condicionados pelas situações. Explicando

melhor. Nem sempre foi possivel ter acesso directo ao conteúdo dos diálogos,

dado que estes, por vezes, ocorriam em processos de interacção privados,

inaudíveis aos restantes presentes na sala. Sobre estes foi, frequentemente,

pedido, à posteriori, à enfermeira envolvida que me fizesse um relato do

ocorrido. Algo de semelhante se passou com a observação e registo das

expressões não verbais. Ou seja, dado que não era oportuno interferir com o

processo de interacção em curso, só era registado aquilo que era visível a

partir do local onde me encontrava.

O diário de observação foi feito sempre no mesmo dia da observação, com

o intuito de não permitir que a passagem do tempo levasse ao esquecimento.

No processo de registo fez­se a distinção entre o observado, o relatado pelos

actores e as vivências do investigador.

Integrado na observação, procedeu­se ainda à gravação, em suporte mag­

nético, das entrevistas efectuadas pelas enfermeiras aos doentes, no momen­

to em que estes iniciavam o seu processo de quimioterapia. Estas entrevis­

tas ocorrem por rotina neste serviço. Assim, cada doente que se prepara

para iniciar o seu processo de quimioterapia é previamente sujeito a uma

entrevista realizada por uma enfermeira. Cada enfermeira é responsável por

fazer entrevistas a determinados doentes, agrupados em função das patolo­

gias oncológicas médicas mais frequentes. Esta entrevista decorre em gabi­

nete próprio, com a presença da enfermeira, do doente, muito frequentemen­

te, de um familiar de referência do doente e ocasionalmente, de um aluno.

Na sequência das conclusões do estudo piloto, pareceu­me que este era um

procedimento de grande importância no contexto dos cuidados que se desen­

volvem neste serviço. Mas, acima de tudo, pareceu­me de importância cru­

cial no processo de relação enfermeira­doente. Por tal razão, decidi recolher

informação sobre esse procedimento. Contudo, confrontava­me com uma difi­

culdade '■ uma vez que essas entrevistas ocorriam em tempo coincidente com

o meu período de observação, não poderia estar em ambos os sítios em

simultâneo. Por essa razão, solicitei a colaboração das enfermeiras no senti­

do de procederem à gravação em suporte magnético das entrevistas de

129 Dissertação de Doutoramento

Page 132: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

admissão. Este é um procedimento previsto por Olabuénaga (1999). Apesar

disso, a solicitação foi ponderada, sopesando a interferência de tal procedi­

mento no decurso normal das entrevistas. Todavia, durante o estudo piloto,

já t inha assistido e gravado algumas. Para além disso, pareceu-me interferir

menos a presença de um gravador transportado pela enfermeira que habi­

tualmente efectua a entrevista, do que interferiria a minha presença. Assim,

as enfermeiras foram devidamente instruídas no que diz respeito ao funcio­

namento do gravador, mas principalmente no que concerne aos procedimen­

tos necessários ao consentimento informado.

Foram assim gravadas 10 entrevistas de admissão, as quais tiveram uma

duração média de 20 minutos. Essas entrevistas foram posteriormente por

mim passadas a papel.

No decurso da observação deparei-me com algumas dificuldades. A pri­

meira e talvez mais importante de todas, residia em mim próprio e t inha a

ver com o risco de o meu referencial teórico-cultural distorcer a observação.

Este é aliás um dos riscos a que todos os teóricos da investigação citados

neste trabalho se referem. No caso presente por maioria de razão porque,

relembro aquilo que mais atrás afirmei, as questões relacionais, quer práti­

cas, quer teóricas, ocupanrme há uns largos anos a esta parte. Para ultra­

passar esta dificuldade tentei desenvolver várias estratégias. A primeira já

foi parcialmente descrita e consistiu na permanência no serviço durante um

período de tempo anterior à recolha de dados válidos para a investigação que

aqui se apresenta. Durante esse período de tempo recolhi dados de observa­

ção que analisei. Durante essa recolha e análise de dados interroguei-me

sistematicamente se os resultados t inham a ver com o meu referencial ou

com o observado. Com base nisso e com vista à recolha de dados de observa­

ção, decidi treinar uma atitude que era um misto de ingenuidade e de

conhecedor. Dito por outras palavras, estou convicto que o facto de conhecer

os meandros dos cuidados de saúde e de não ser um principiante nas ques­

tões relacionais pode ser uma mais valia. Isto porque, deste modo consigo

perceber pormenores que passarão despercebidos a quem não tiver estes

conhecimentos. Recordo que se t ra ta de uma observação não estruturada

_____________=_=====____„_„_==_„„„=________„_„=„___.,_.„___„ 13 0

Dissertação de Doutoramento

Page 133: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

sobre categorias previamente definidas. Contudo, para evitar a distorção

que estes conhecimentos podem introduzir, é necessário ao mesmo tempo

cultivar uma atitude de ingenuidade. Esta permite-me interrogar-me a mim

e aos dados para além do acessivel pelos "óculos" do conhecimento adquirido.

Esta atitude manteve-se mais tarde durante a análise, sendo reforçada com

a obrigatoriedade que me impunha de transportar comigo o extracto de texto

que conferia sentido às unidades de significação.

A postura de marginalidade, já atrás referida, foi outra das que me aju­

dou a ultrapassar esta dificuldade. Durante a colheita de dados esta consis­

tia basicamente no esforço de me posicionar como se estivesse a assistir "de

camarote" a uma peça de teatro.

Uma segunda dificuldade teve a ver com o facto de, nem todos os aconte­

cimentos ocorrerem nas salas por mim eleitas como locais preferenciais de

observação. Aliás, algumas das interacções com maior proximidade ocorriam

fora daquele espaço. Para ultrapassar esta dificuldade vi-me forçado a

desenvolver duas estratégias. A primeira, foi combinar com as enfermeiras

que as seguiria, sempre que constatasse a ocorrência duma situação daquela

natureza. A segunda, foi a necessidade de passar a estar atento aos sinais,

muitas vezes não verbais, de doentes e/ou familiares dirigidos à enfermeira,

no sentido de ela lhes conceder a possibilidade de uma interacção fora

daquele local.

Outras dificuldades existem associadas à observação. Contudo, penso que

no caso do presente estudo algumas delas foram superadas pelo facto de se

usar mais do que uma técnica de colheita de dados e mais do que uma fonte.

4.2.3 - Critérios de rigor na recolha de dados

Para terminar o sub-capítulo relativo à recolha de dados, resta equacio­

nar algumas questões relativas aos critérios de rigor usados. Alguns destes

foram já enunciados no momento em que apresentei e justifiquei cada uma

das técnicas de colheita de dados usadas. Todavia, subsistem algumas per­

guntas, como por exemplo: Porque é que parei a recolha de dados em deter­

minado momento?

131 Dissertação de Doutoramento

Page 134: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

Para responder a esta questão servir-me-ei do critério da adequação, pro­

posto por Morse (1994). Este é um dos critérios de rigor em investigação

qualitativa, propostos por esta autora e refere-se à quantidade de dados

recolhidos, mais do que ao número de sujeitos. A adequação é obtida quando

forem recolhidos dados suficientes, de modo a que se atinja a saturação.

Considerando cada uma das fontes per se, mas principalmente o conjunto

dos dados, entendo que deixou de se verificar a ocorrência de novos e rele­

vantes dados para o problema em estudo. Apesar disso, estou convicto do

carácter contingente de tal conclusão, uma vez que, até pela natureza da

própria prática, é sempre possível aparecerem novos e relevantes dados.

O critério anterior é completado por este outro designado por "apropria­

ção" (Morse, 1994). Este critério refere-se à selecção dos informantes de

acordo com as necessidades teóricas do estudo e do modelo emergente. Estou

convicto que a amostra intencional seleccionada e já atrás explicada, foi a

adequada face aos objectivos que me proponho.

Todavia, relativamente aos critérios de rigor na recolha de dados, consi­

dero que, neste estudo, os fundamentais foram:

S a procura de fontes múltiplas face ao problema em estudo;

S o uso de diferentes técnicas de colheita de dados.

Relativamente à multiplicidade de fontes, recordo que me socorri das

enfermeiras, dos doentes e ainda da minha observação. Tal providenciou

dados concorrentes que contribuíram decisivamente para assegurar a satu­

ração. Mas e mais importante que isso, permitiu a confirmação cruzada de

alguns conceitos, tal como mais à frente explicarei. Por tais razões entendo

que este critério é sobreponível com o proposto por Upshur (2001). Esta

autora propõe um modelo taxonómico de evidência, dividido em quadrantes.

A investigação que aqui apresento insere-se no quadrante Qualitati­

va/Pessoal. Neste quadrante a evidência caracteriza-se por emergir da natu­

reza particular e histórica das percepções, crenças e atitudes das pessoas.

Segundo aquela autora, esta forma de evidência está muito próxima da con­

cepção de evidência legal. Nesta sobressai como importante a diversidade de

fontes de informação.

Dissertação de Doutoramento

Page 135: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Por sua vez, o uso de diferentes técnicas de recolha de dados completou o

critério anterior. Mas, acima de tudo, colmatou as naturais insuficiências de

cada uma das técnicas per se (Denzin et ai, 1994; Olabuénaga, 1999). Tam­

bém Meadows & Morse (2001) entendem que esta é uma estratégia adequa­

da de construir a evidência.

Assim, estou convicto que o conjunto de estratégias de rigor adoptadas

aos mais diversos niveis, garantem a fiabilidade dos dados, mas também a

sua riqueza.

4.3 - FASE DE ORDENAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS

Ao mesmo tempo que decorria a recolha de dados, processava-se também

a sua ordenação e análise. Esta sobreposição de processos é própria da meto­

dologia adoptada (i.e., grounded theory) e é essencial porque confere sentido

à recolha de dados subsequente (Streubert et ai, 1995! Denzin et ai, 1994;

Strauss & Corbin, 1998). A ordenação já atrás foi parcialmente referida e

consistiu basicamente na redução a texto de todos os dados recolhidos. Ou

seja, na passagem das entrevistas de suporte magnético para texto e elabo­

ração dos diários de campo. Decidi assumir a responsabilidade deste proce­

dimento uma vez que, na impossibilidade de analisar detalhadamente todos

os dados à medida que iam sendo recolhidos, ao passá-los a texto desenvol­

via uma percepção da globalidade que se revelou muito útil na continuidade

da recolha de dados. Todavia, estava ciente que era necessário mais tempo

para desenvolver uma análise mais pormenorizada. Por essa razão e após

um período de recolha de dados de alguns meses (i.e., de Junho a Agosto de

2002), com o trabalho de ordenação e primeira análise a decorrer em simul­

tâneo, decidi interromper para proceder a uma análise mais pormenorizada

e congruente com o proposto pela metodologia adoptada. Foi o que aconteceu

entre Setembro de 2002 e Abril de 2003. Em Maio de 2003 retomei a recolha

de dados, que decorreu até Agosto. Também durante este período procedi à

ordenação e análise, tal como atrás descrevi, seguindo-se um período de aná­

lise mais detalhada.

133 Dissertação de Doutoramento

Page 136: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

A análise de dados segundo a metodologia da grounded theory, é o pro­

cesso através do qual vamos descobrir as categorias e as suas característi­

cas, a relação daquelas com as subcategorias e com a categoria central, a

necessidade de recolha de novos dados e deste modo, construir uma estrutu­

ra conceptual coerente (Pandit, 1996; Strauss & Corbin, 1998; Flick, 1998;

Lopes, 2003). A análise de dados pode também entender-se como, a operação

através da qual os dados são quebrados, conceptualizados, e repostos juntos

de modos novos. E o processo central através do qual são construídas teorias

(Strauss & Corbin, 1998).

Do ponto de vista formal, a análise de dados, de acordo com a grounded

theory, inicia-se com a codificação aberta. Esta entende-se como o processo

analítico através do qual os conceitos são identificados e as suas proprieda­

des e dimensões são descobertas nos dados. Durante a codificação aberta os

dados são partidos em partes discretas, examinados de perto e comparados

entre si, à procura de similaridades e diferenças (Strauss & Corbin, 1998;

Flick, 1998). Eventos, acontecimentos, objectos e acções/interacções que se

descubra que são conceptualmente semelhantes em natureza ou relaciona­

dos no significado são agrupados sob conceitos (Pandit, 1996; Lopes, 2003).

Com o objectivo de proceder à codificação aberta, comecei por 1er atenta­

mente o corpus de cada um dos grupos de dados que detinha. Esta leitura

incidiu sobre um determinado conjunto de dados (e.g. dados resultantes da

observação, das entrevistas), só passando ao conjunto seguinte quando com­

pletada a análise do anterior. Tal decisão justifica-se porque, considerando

que possuo dados de fontes diversas, sobre o mesmo fenómeno, está subja­

cente a ideia de proceder à confrontação dos resultados das diversas fontes.

Deste modo, e para evitar ao máximo que haja sistemática contaminação na

análise, só iniciava a análise do conjunto de dados seguinte quando a ante­

rior atingia um determinado estádio. Poder-se-á argumentar que a estrutu­

ra conceptual (provisória) entretanto criada, como resultado da análise de

um determinado conjunto de dados, passava a estar presente e a condicionar

o processo de análise do conjunto seguinte. Contudo, e de acordo com a

minha experiência, o processo de análise, tal como foi desenvolvido, exige

_ ™ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ „ _ _ _ „ „ _ „ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ „ _ „ , 3 4

Dissertação de Doutoramento

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Os ulciites c os enfermeiros: Construção de uma relação

uma lógica e coerência internas imanente dos próprios dados e que não se

coaduna com a tentativa de "imposição" de qualquer estrutura de análise

preexistente.

A leitura dos diversos verbatins foi feita directamente no texto em com­

putador (processador de texto Word®). A análise incidia sobre as sentenças

(períodos) ou parágrafos. Para codificar uma sentença ou parágrafo questkr

nava-me acerca da ideia major que a mesma continha (Strauss & Corbin,

1998; Lopes, 2003). Desse questionamento resultava a elaboração de um

memo, em nota de rodapé, ao mesmo tempo que era assinalado a negrito o

texto a que essa nota correspondia. Aquele memo continha a ideia ou ideias

major de uma determinada sentença ou parágrafo, tal como já referi, poden­

do ainda conter comentários meus acerca dessa ideia. Um e outro destes

elementos são distintos e têm tratamento distinto. Com base nos primeiros

estruturar-se-á a restante análise, os segundos constituenrse como reflexões

pessoais e/ou teóricas que se poderão vir a revelar úteis em momentos poste­

riores da análise (ver Quadro 5).

Considerando que o processo de análise atrás referido, relativo a um

determinado conjunto de dados, pode levar vários dias ou semanas, encarei

como provável que a minha lógica de análise sofresse alterações durante

esse período de tempo. Estaria assim, perante um conjunto de memos pro­

duzidos em momentos diferentes e com hipotética diversidade de lógicas de

produção. Tal constituiu-se como uma preocupação, na medida em que estes

memos são aquilo a que poderei chamar os "tijolos" com os quais me propo­

nho construir a teoria de médio alcance. Para obviar a esta dificuldade, ter­

minado o primeiro processo de análise minuciosa de um determinado con­

junto de dados, procedia a uma leitura sequencial daquele corpus de análise,

em conjunto com os respectivos memos. Tal procedimento tinha que ocorrer

no mais curto espaço de tempo e ser feito de modo sequencial, isto é, sem

qualquer outra actividade ligada ao processo de investigação pelo meio. Isto

permitiu-me aferir e estabilizar os critérios de análise.

135 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

Quadro 5 - Exemplos de extractos de verba tins com o respectivo memo e nota Exemplo l : (DO — 080702) "... Tratavase de uma doente com aspecto bem nutrido mas com ar de

cansada, denotando algum esforço até para falar. Aliás, falava com uma rouquidão acen­tuada, com frases entrecortadas por uma respiração ofegante. Precisava de fazer colheita de sangue para análises, o que foi feito pela enfermeira. Esta, ao mesmo tempo que fazia a colheita, ia falando com ela sobre os seus sintomas (nomeadamente as dores e os edemas nos membros inferiores), que parecia já conhecer, mas sobre os quais iam fazendo mais perguntas. A doente ia respondendo e valorizando as melhoras, ainda que ligeiras... "

Memo: Interacção verbal œnduzida pela enfermeira, enquanto presta cuidados técniœ-instrumentais (colheita de sangue para análise), centrada nos sintomas e avaliação da sua evolução.

Nota: Parece estar presente uma atitude de avaliação diagnostica, mas ao mesmo tempo nota-se o interesse e empenho da enfermeira na situação da doente.

Exemplo 2-(EEA - 180702) "Eu não posso pensar que tenho ali aquela pessoa e há muitos que eu sei

que tenho e que vou tê-los cá muitos mais anos, mas há muitos que eu sei que não vão estar, e portanto se eu estou ali com eles a pensar que ... nós já temos tanta experiência nisto, nestes tratamentos e nos tempos de vida, o tempo de vida que o medicamento dá e o tempo de vida que nós achamos que a pessoa vai ter, quase que conseguimos apontar a data em que eles vão morrer, porque é assim que a gente já funciona, e portanto se eu começo a pensar nisso, ou começo, porque eu já me conheço, ou começo a afastar-me das pessoas, no sentido de não as procurar e de não ir ter com elas ou começo a ser agressiva com elas. "

Memo: A experiência e os conhecimentos científicos permitenrlhes antecipar a perda. 0 conhecimento de si própria permite-lhe antecipar a reacção à perda. Face a isto adopta-se a estratégia a t rás referida como forma de evitar o afastamento defensivo.

Nota: Trata-se de uma defesa que não gera afastamento e permite a continuidade da relação.

Terminada esta primeira fase, procedi à criação do suporte de informação

que me permitisse os seguintes passos de análise. Assim, copiei todos os

extractos de texto assinalados a negrito e os respectivos memos (i.e., notas

de rodapé) para um novo suporte dividido em três colunas. Na primeira colu­

na era colocado o extracto de texto, na segunda o respectivo memo e a tercei­

ra era deixada livre, pois seria aí que iria colocar o resultado do segundo

momento de análise (ver exemplo no quadro 6).

Este procedimento permithrme, ao realizar este segundo momento de

análise, não perder de vista o texto original e o contexto em que determina­

da afirmação t inha sido produzida. Este segundo momento de análise con­

sistiu, essencialmente, na criação de unidades de significação com uma úni­

ca ideia. Ao mesmo tempo e em alguns casos, introduzia-se um grau de abs­

tracção ligeiramente mais elevado.

Dissertação de Doutoramento

Page 139: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Quadro 6 — Exemplo do suporte de análise. Extractos de texto Memos Análise - unidades de sig­

nificação (DO - 08-07-02) "... Tratava-se de uma doente com aspecto bem nutrido mas com ar de cansada, denotando algum esforço até para falar. Aliás, falava com uma rouquidão acentuada, com frases entrecortadas por uma respiração ofegante. Precisava de fazer colheita de sangue para análises, o que foi feito pela enfermeira. Esta, ao mesmo tempo que fazia a colheita, ia falando com ela sobre os seus sintomas (nomea­damente as dores e os edemas nos membros inferiores), que parecia já conhecer, mas sobre os quais iam fazendo mais per­guntas. A doente ia respondendo e valorizando as melhoras, ainda que ligeiras...

Memo: Interacção verbal conduzida pela enfermeira, enquanto presta cuidados técni-co-instrumentais (colheita de sangue para análise), centrada nos sintomas e avaliação da sua evolução.

Nota: Parece estar presente uma atitude de avaliação diag­nostica, mas ao mesmo tempo nota-se o interesse e empenho da enfermeira na situação da doen­te.

Interacção verbal específica, conduzida pela enfermeira, enquanto presta cuidados técni-co-instrumentais.

Interacção verbal centrada na avaliação da evolução dos sin­tomas.

(Avaliação diagnostica e manifestação de interesse)

O passo seguinte integra ainda a codificação aberta e consistiu na criação

de novo suporte de informação para onde foram copiadas todas as unidades

de significação de cada um dos verbatins. Por outras palavras, copiararrrse

as unidades de significação relativas, por exemplo, a cada uma das entrevis­

tas, para novo suporte. Procedeu-se então a uma análise que consistiu na

comparação entre as unidades de significação, na tentativa de encontrar

semelhanças entre elas. Este procedimento deu origem à aglutinação das

unidades de significação em função dessas semelhanças, o que corresponde à

criação dos primeiros conceitos.

Seguidamente juntei todas e cada uma das unidades de significação de

cada uma das entrevistas (ou diário de observação) que pertencessem a um

mesmo conceito. Submetia_as então a uma análise comparativa mais fina, a

qual me permitia aferir a estabilidade e os limites do conceito, mas também,

eventualmente, descobrir possibilidades de sub-agrupar as unidades de sig­

nificação em sub-conceitos.

Findo este processo, fiquei na posse de um conjunto imenso de conceitos e

sub-conceitos, os quais, tendo emanado directamente dos dados, ainda não

explicavam o fenómeno, na medida em que ainda não t inham sido estabele­

cidas as respectivas inter-relações.

137 Dissertação de Doutoramento

Page 140: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Terminava aqui a codificação aberta, processo através do qual, recordo,

os conceitos foram identificados e as suas propriedades e dimensões desco­

bertas nos dados (Strauss & Corbin, 1998).

Deu­se então início à codificação axial. Este é um processo que consiste

em relacionar categorias entre si e com as suas subcategorias. E denomina­

da "axial" porque a codificação ocorre à volta dos eixos de uma categoria.

Estes são constituídos pelas suas propriedades e dimensões e é através deles

que as categorias se relacionam entre si e com as suas subcategorias

(Strauss & Corbin, 1998). Se da codificação aberta se diz que consiste na

fractura dos dados, esta outra consiste em colocá­los de novo juntos, estabe­

lecendo conexões entre eles e dando­lhes novos sentidos (Pandit, 1996).

A codificação axial envolve algumas tarefas básicas como:

S pôr em evidência as propriedades de uma categoria e as suas dimen­

sões, uma tarefa que começa durante a codificação aberta»'

■S identificar a variedade de condições, acções/interacções e consequên­

cias associadas ao fenómeno;

S relacionar uma categoria com a sua subcategoria através de afirma­

ções que demonstrem como é que estão relacionadas umas com as

outras!

S olhar para as deixas nos dados que denotam como é que as catego­

rias major podem relacionar­se umas com as outras.

Quando o analista procede à codificação axial procura respostas para

questões tais como, porquê, como, quando, ... e fazendo tal, descobre inter­

relações entre as categorias. A resposta a essas questões ajuda­nos a contex­

tualizar o fenómeno, isto é, a localizá­lo numa estrutura condicional e a

identificar o "como" ou os meios através dos quais uma categoria se manifes­

ta. Por outras palavras, respondendo aquelas questões o analista fica habili­

tado a relacionar a estrutura com o processo.

Após estes procedimentos dei início à denominada codificação selectiva.

Esta consiste na integração de categorias para construir estruturas teóricas

(Pandit, 1996) ou seja, na elaboração da categoria central à volta da qual as

outras categorias podem ser agrupadas e pelas quais são integradas

= = = = _ _ ­ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = = _ _ _ „ = = = _ _ _ _ _ = = = = _ _ _ _ „ = = = _ = _ . _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = _ _ _ _ , 3 8

Dissertação de Doutoramento

Page 141: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

(Strauss & Corbin, 1990; Flick, 1998). A categoria central deve possuir

algumas características e responder a alguns critérios. De entre estes desta­

co:

S possuir poder analítico. Este poder é­lhe conferido pela capacidade

de aglutinar as outras categorias, de modo a formar um todo com

capacidade explicativa;

■S possuir centralidade, isto é, ter relação com todas as outras cate­

gorias major;

•S aparecer frequentemente nos dados. Isto significa que em todos ou

quase todos os casos, existem indicadores que apontam para este

conceito;

•S a explicação que evolui pela relação das categorias é lógica e con­

sistente. Não há dados forçados'•

S o conceito central é capaz de explicar a variação bem como o ponto

principal produzido pelos dados; isto é, quando as condições

variam, a explicação permanece segura, ainda que o modo como o

fenómeno é expresso possa parecer de algum modo diferente.

Também deve ser capaz de explicar casos contraditórios ou alter­

nativos em relação à ideia central;

■S a categoria central pode evoluir fora da lista das categorias exis­

tentes (Strauss & Corbin, 1998).

Não foi fácil chegar à categoria central. Como ajuda nesse processo socor­

r r m e de um conjunto de estratégias sugeridas por Strauss & Corbin (1998) e

que se revelaram muito úteis. Uma das primeiramente usadas, digamos que

quase de modo intuitivo, foram os diagramas. Estes foram construídos no

sentido do concreto para o abstracto. Ou seja, de acordo com a lógica que

tenho vindo a expor. Constituíram­se como árvores de conceitos e

sub­conceitos, com identificação das suas inter­relações. Estes foram de

grande utilidade porque me permitiram ganhar distância face aos dados, ter

a percepção da globalidade e forçaram­me a t rabalhar com conceitos. Puse­

ram ainda à prova a lógica das inter­relações.

139 Dissertação de Doutoramento

Page 142: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Após a construção dos diagramas, estava então em condições de usar

uma outra estratégia denominada, movimento da descrição para a concei­

tualização. Ou seja, a paulatina construção dos diagramas permitiu-me a

compreensão progressiva da essência da investigação. Isto possibilitou-me a

nomeação da ideia central e a definição da sua relação com os outros concei­

tos.

Por último, desenvolvi uma outra estratégia, que se revelou de enorme

importância e que consistiu na escrita do enredo. Ou seja, a partir dos con­

ceitos identificados e das inter-relações estabelecidas, tentei escrever o enre­

do relativo ao processo que tinha estudado, no contexto já referido. O resul­

tado final assemelha-se de algum modo a um guião, o qual ajuda a com­

preender a convergência dos conceitos para determinado fim, logo contribui

para a codificação selectiva. A escrita do enredo precisa de resistir a dois

testes cruciais. O teste da capacidade explicativa e o da lógica e coerência. A

capacidade explicativa afere-se pela comparação entre o enredo e a realida­

de," a coerência e a lógica pela apreciação geral do enredo nas suas diversas

facetas. Considero que esta estratégia foi das mais decisivas no desenvolvi­

mento do processo de codificação selectiva.

Concluída a codificação selectiva, estava na posse de uma estrutura teó­

rica explicativa do processo em estudo. Tornava-se agora necessário aprimo­

rar essa estrutura, pelo que se procedeu à releitura dos dados a partir da

mesma. Através deste procedimento percebenrse as insuficiências e as debi­

lidades da estrutura, bem como a eventual necessidade de proceder à reco­

lha de mais dados. Este é um dos procedimentos através do qual se concreti­

za a saturação teórica, pelo que me foi particularmente útil no final do pri­

meiro período de colheita de dados.

Repeti este procedimento no final da análise dos dados resultantes do

segundo período de colheita de dados. Considerei então que tinha atingido a

saturação teórica e que a estrutura conceptual explicava o processo em aná­

lise. Por tal razão, dei por encerrado o processo de análise dos dados.

Dissertação de Doutoramento

Page 143: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

4.3.1 - Critérios de rigor na ordenação e análise dos dados

Também durante esta fase do processo de investigação desenvolvi outras

estratégias de rigor, para além daquelas já atrás referidas. A primeira des­

sas estratégias, infere-se de tudo o que disse sobre o modo como desenvolvi a

ordenação e análise dos dados e denomina-se "pista da auditoria" (Morse,

1986). Este critério consiste na criação de suportes de informação adequa­

dos, bem como da demonstração dos procedimentos desenvolvidos e das

opções assumidas. Tal, tem como objectivo deixar uma adequada evidência

que permita às partes interessadas, reconstruir o processo a partir do qual

obtive as minhas conclusões. A pista da auditoria consiste em seis tipos de

documentos^ dados não trabalhados, dados reduzidos e produto da análise,

dados reconstruídos e produto de síntese, processo de notas, material relati­

vo às intenções e disposições e desenvolvimento de instrumentos e informa­

ção (Lincoln & Guba, 1985). Foram dadas provas de todos eles ao longo do

texto produzido.

Um outro critério usado durante este processo denomina-se "verificação

do estudo com informantes secundários" (Glasser, 1978). Consiste na sub­

missão do modelo explicativo à apreciação de novos informantes. Tal tem

vindo a ser feito, principalmente junto de enfermeiros de outras unidades de

quimioterapia e/ou com experiência na prestação de cuidados a doentes

oncológicos. Este procedimento tem sido desenvolvido através da apresenta­

ção pública do modelo explicativo, no contexto de congressos e outros eventos

do género. Dos diversos comentários, o mais frequentemente produzido pelos

enfermeiros tem sido o de que se sentem reflectidas na estrutura conceptual

apresentada.

O último critério de rigor denomina-se "uso de classificadores múltiplos".

Consiste na utilização de um painel de classificadores que ajuíze acerca da

categorização por mim realizada. É discutível o uso deste critério, uma vez

que se pode argumentar que este procedimento viola o processo de indução,

dado que o primeiro investigador tem uma base de conhecimentos, resultan­

te de ter conduzido outras entrevistas e observações, que os outros classifi­

cadores não têm. Efectivamente, o processo indutivo na investigação quali-

j 4 j ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 144: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação

tativa depende frequentemente de um "insight", o qual pode radicar no pro­

cesso de t rabalhar os dados e de perceber a ligação entre categorias e com as

teorias estabelecidas. Torna-se assim irrealista esperar que outro investiga­

dor tenha o mesmo "insight", a partir de uma base de dados limitada e sem

ter passado por aquele processo. Para além disso, limitar cada passo da aná­

lise a pequenos pedaços de dados, pode mesmo impedir a investigação e

truncar o desenvolvimento do modelo.

Apesar destas limitações, formei um grupo constituído por quatro inves­

tigadores, que têm seguido de perto os passos dados neste processo, conhe­

cem o contexto onde decorreu o estudo e têm conhecimento teóricos e práti­

cos na área relacional e/ou oncológica. Para tentar obviar às limitações atrás

referidas, solicitei a estes investigadores que procedessem à análise da cate­

gorização por mim produzida, com os seguintes objectivos:

S Aferirem as categorizações por mim desenvolvidas, considerando:

o a lógica interna de cada categoria;

o a relação entre as categorias e destas com as subcategorias;

o a relação entre as categorias, considerando as diversas fontes.

Do trabalho produzido por este grupo resultaram dois comentários que

considero de grande utilidade. O primeiro refere-se à necessidade de recon­

siderar a proximidade/sobreposição conceptual de duas categorias. Analisa­

da de novo a situação e dado que vários elementos do grupo fizeram essa

referência, decidi acatar a recomendação e aglutinar essas duas categorias

numa só. O segundo comentário diz respeito à repetição de categorias em

função das diversas fontes. Este comentário tomei-o como prova da evidência

de confirmação cruzada da validade dos dados e das categorizações produzi­

das.

Findos estes procedimentos, seguirse-á aquela que é considerada, por

Pandit (1996) a última fase do processo de investigação segundo esta meto­

dologia e que aquele autor designa como, "fase da comparação com a litera­

tura". Essa fase concretizar-se-á nos próximos capítulos, onde será apresen­

tado o resultado da análise efectuada bem como a referida comparação e dis­

cussão.

Dissertação de Doutoramento

Page 145: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulciilcs e os enfermeiros: Construção de uma relação

! 43 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 146: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

5 - A NATUREZA DA RELAÇÃO ENFERMEIRODOENTE NO CON­

TEXTO DE UM SERVIÇO DE QUIMIOTERAPIA EM REGIME DE

HOSPITAL DE DIA.

Neste capítulo descreverei as características percebidas na interacção entre

as enfermeiras e os doentes e familiares, durante o processo de quimioterapia.

O conjunto destas características constituir-se-á como um padrão que corres­

ponderá à "natureza da relação" neste contexto. Para este efeito, procederei,

num primeiro momento, à caracterização do contexto e posteriormente, à

caracterização da natureza da interacção propriamente dita. Esta última, não

pode ser desligada do contexto onde ocorre, ainda que este seja também resul­

tante, na sua vertente psicossocial, de um determinado padrão interaccional.

Verifica-se portanto uma certa circularidade de influências mútuas.

Relativamente à natureza da relação, constata-se, após a análise dos

dados oriundos das diversas fontes de informação (i.e., enfermeiras, doentes

e observação), que existem construetos que se repetem numa dimensão dia-

crónica, mas também numa perspectiva inter-testemunhal. Por exemplo, o

construeto "Processo de Avaliação Diagnostica" está presente nas categori­

zações resultantes dos dados das entrevistas às enfermeiras, das entrevistas

de admissão e da observação. Ou seja, está presente em dois momentos

sequenciais da relação (i.e., admissão e tratamentos de quimioterapia) e ao

mesmo tempo é referido a partir de mais que uma testemunha deste proces­

so (i.e., as enfermeiras e o investigador).

Face a isto, cada construeto será caracterizado primeiro, com base nos

dados oriundos de uma determinada fonte e depois nas outras, dando-se

realce ao contexto, bem como às semelhanças e diferenças entre eles. Por

último, procederei a uma definição integradora de cada construeto, desta­

cando as suas características principais, nomeadamente a relação entre as

suas categorias e subcategorias, e concluirei, perspectivando a sua evolução

ao longo do processo de relação.

_ _ „ « „ „ = = = „ _ _ _ „ _ _ = = = M _ _ _ „ = = _ _ _ _ „ = = _ _ = _ „ _ „ = = = = = = = „ _ _ _ = = = M , 4 4

Dissertação de Doutoramento

Page 147: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

0 contexto da interacção será descrito considerando as suas característi­

cas físicas, mas também as psicossociais. Ou seja, as características que

resultam do modo como circulam e se articulam entre si os diversos actores

presentes naquele espaço.

5 . 1 - 0 CONTEXTO DA INTERACÇÃO: O ESPAÇO FÍSICO

O serviço de Quimioterapia do Hospital do Espírito Santo é uma unidade

de saúde a funcionar em regime de hospital de dia, integrada no recém-cria-

do Serviço de Oncologia Médica do mesmo Hospital. Localiza-se na cave do

edifício do Hospital do Patrocínio, tem acesso próprio e independente e é

dotado de instalações físicas com aspecto novo, acolhedor e espaçoso. O

mobiliário é moderno e confortável. Todo o espaço deste serviço está equipa­

do com ar condicionado. Apesar de estar localizado na cave, dado o desnível

do terreno, todo o serviço tem janelas, tendo portanto, muita luz natural.

Esta unidade é dotada de um espaço amplo à entrada (ver figura 8), que

é a sala de espera dos doentes e onde funciona a recepção, local de perma­

nência da secretária de unidade. Contíguo a este espaço e com acesso livre,

funcionam dois gabinetes de consulta, usados, de acordo com as disponibili­

dades, por médicos e enfermeiras. Após, existem duas portas. Por uma delas

(à esquerda) acede-se a um corredor de apoio a todo o piso. Neste corredor

localiza-se a sala de tratamentos (e.g., pensos e injectáveis), os gabinetes do

médico chefe de serviço, das enfermeiras, sala de reuniões e casas de banho,

entre outros. Pela outra porta (frontal) tenvse acesso às salas de adminis­

tração de quimioterapia. Estas são servidas por um pequeno corredor, atra­

vés do qual também se acede ao corredor principal, já atrás referido e ao

qual é paralelo. A zona de tratamentos de quimioterapia é constituída por

quatro espaços distintos.

O primeiro é uma sala com cerca de 15m2, com orientação Norte-Sul. Do

lado Norte localiza-se a porta e do lado Sul tem janelas a toda a largura da

parede, mas elevadas, entrando luz em quantidade mas não se vendo o exte­

rior. Está mobilada com cinco cadeirões articulados e electrificados, com

comando ao alcance dos doentes. Existe uma divisória amovível entre cada

145 Dissertação de Doutoramento

Page 148: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

cadeirão, para ser accionada em caso de se desejar maior privacidade. À

entrada, do lado esquerdo, existe uma bancada de trabalho com material cli­

nico diverso. Ao fundo, ao centro, está uma secretária, onde são depositados

os processos dos doentes. Na parede da esquerda, a três quartos de distância

da porta e à altura dos olhos, está localizado um postigo com dupla porta envi­

draçada, que estabelece a comunicação com a sala de preparação de citostáti-

cos, que é contígua. No canto sul à esquerda e à altura de cerca de 2 metros,

está uma televisão, a qual apenas é vista pelos doentes do lado oposto.

O segundo espaço corresponde à sala de preparação de citostáticos. Esta

sala está equipada com todo o material clínico necessário para a preparação

de citostáticos e é dotado de câmara de fluxo laminar. Está localizada entre

as duas salas de administração com as quais tem comunicação através de

um postigo com dupla porta envidraçada. Esta sala permanece com a porta

fechada e é restri ta à enfermeira que esteja escalada para a preparação de

citostáticos, a qual se equipa adequadamente com bata, luvas, máscara e

óculos, para lá permanecer.

O terceiro espaço é em tudo idêntico ao primeiro e simétrico. Este último

espaço, ocupa a parte terminal do corredor, tem uma área maior e está ocu­

pado por cinco camas. Também este está equipado com bancada de trabalho

e televisor. Este espaço destina-se a doentes cujo tratamento obrigue à per­

manência na cama (e.g., instilações vesicais de citostáticos) ou cuja condição

física a isso os obrigue.

Toda a zona de tratamentos de quimioterapia é de acesso livre a profis­

sionais, doentes agendados para quimioterapia e respectivos familiares. A

estes últimos é-lhes solicitado que não permaneçam em simultâneo e por

muito tempo junto dos doentes. Ao corredor de apoio ao piso (paralelo ao cor­

redor da zona de tratamentos de quimioterapia), têm acesso livre, todos os

doentes, visto ser lá que se localizam as casas de banho, bem como todos os

profissionais. Apesar disso é um espaço mais reservado e silencioso.

A última referência vai para um pequeno espaço localizado marginal­

mente a todos os anteriores e que é designado como "Sítio do Pica-Pau Ama­

relo". Trata-se de um local reservado aos profissionais (e.g., enfermeiros,

Dissertação de Doutoramento

Page 149: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

médicos, auxiliares de acção médica) e onde se desenvolve algum convívio de

natureza social entre eles. Este espaço está equipado com máquina de café e

frigorífico, algum mobiliário (e.g., mesa, cadeiras e um pequeno sofá) e nor­

malmente está sempre apetrechado de bolos, oferecidos por doentes e fami­

liares. E aqui que todos os profissionais se juntam pela manhã, antes de ini­

ciarem o dia de trabalho. É também aqui que se deslocam ao longo do turno,

em pequenos grupos, para pequenas refeições.

Sobre esta unidade resta fazer uma menção ao modo como se processam as

movimentações dos diversos actores. Assim, começo por me referir ao primeiro

momento de cada dia de trabalho. Constata_se que, enquanto os doentes vão

chegando à sala de espera, as enfermeiras vão-se juntando no denominado "Sítio

do Pica-Pau Amarelo". Após um primeiro momento de convívio que pode incluir

conversa social, mas também troca de informações de natureza clínica, as

enfermeiras saem e dirigenrse para as salas de quimioterapia, fazendo o percur­

so definido na figura 8 com a linha de cor amarela. Ou seja, atravessam toda a

sala de espera, percurso durante o qual cumprimentam os doentes e familiares,

constatam, genericamente, o seu estado e tomam algumas decisões, como mais à

frente explicarei. Dirigem-se depois para a sala de quimioterapia, assinalada

com uma oval azul. Esta sala é a primeira a ser preenchida pelos doentes e a

última a vagar e assume-se como o espaço central do serviço. É também a partir

desta sala que se projectam as movimentações para os outros espaços. Assim, os

principais espaços onde ocorre interacção enfermeira-doente neste serviço são os

assinalados com ovais. Se tivesse que os hierarquizar em termos de importância,

considerando a frequência de interacções, colocaria em primeiro lugar o espaço

assinalado com a oval azul, seguido do vermelho, do verde e do amarelo. De assi­

nalar que o espaço assinalado a verde corresponde a um corredor. Apesar disso,

constata-se que o mesmo é muito utilizado para interacções com doentes, mas

principalmente com familiares de doentes que estejam a fazer quimioterapia e

como forma de aquela ocorrer fora do olhar destes.

147 Dissertação de Doutoramento

Page 150: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Figura 8 - Croquis do piso onde funciona o hospital de dia - unidade de quimioterapia do Hospital do Espírito Santo

148 Dissertação de Doutoramento

Page 151: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

5.2 - O CONTEXTO DA INTERACÇÃO: A COMPLEXIDADE DO CON­

TEXTO RELACIONAL

Para caracterizar o contexto relacional, começo por fazer referência aos

diversos actores que circulam no espaço que atrás caracterizei. Dadas as

características deste trabalho, inicio essa caracterização pela equipa de

enfermagem.

A equipa de enfermagem é constituída por:

uma enfermeira com 39 anos de idade, 18 anos de experiência pro­

fissional, seis dos quais como especialista na área da oncologia, sen­

do que estes correspondem ao seu tempo de permanência neste ser­

viço. Desempenha as funções enfermeira-chefe. De entre estas privi­

legia as clínicas, continuando a ser responsável por doentes e a

assumir a liderança dos processos clínicos mais delicados e oferecen-

do-se como referência de acção.

uma enfermeira generalista com 38 anos de idade, 17 de experiência pro­

fissional, 5 dos quais neste serviço. No período em que decorreu a colheita

de dados estava a desenvolver o seu Curso de Complemento de Formação,

uma enfermeira generalista com 29 anos de serviço, 1 ano de expe­

riência profissional e recénrehegada ao serviço.

uma enfermeira generalista com 54 anos de idade, 31 anos de expe­

riência profissional, 6 dos quais nesta unidade. Esta enfermeira

transitou da anterior unidade de quimioterapia deste hospital,

uma enfermeira generalista com 56 anos de idade, 21 anos de expe­

riência profissional 3 dos quais neste serviço.

O serviço de oncologia dispõe de 3 oncologistas (uma essencialmente

dedicada à patologia oncológica do intestino e mama, outra, à patologia da

mama e por último o chefe de serviço que recebe todo o tipo de doentes).

Para além disso, conta ainda com a colaboração de uma hematologista que

se dedica aos tumores líquidos; de uma pneumologista que se dedica aos

tumores do pulmão, e pela equipa da urologia que se dedica aos tumores

urológicos. Existe ainda um internista. A intervenção dos médicos neste ser­

viço, ocorre quase exclusivamente nos gabinetes de consulta.

==================================================================== ,49 Dissertação de Doutoramento

Page 152: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Existem também duas Auxiliares de Acção Médica a tempo inteiro que,

pela natureza da sua função, mas essencialmente pelas características do

serviço, têm um contacto e uma interacção frequentes com os doentes e fami­

liares.

Na sala de espera dos doentes está presente uma secretária de unidade,

a qual funciona quase sempre como o primeiro contacto dos doentes com este

serviço. E ainda responsável pela marcação de exames complementares de

diagnóstico, de consultas médicas, deslocações a outros hospitais, entre

outros. As voluntárias da Liga Portuguesa Contra o Cancro marcam a sua

presença, principalmente na sala de espera, onde oferecem pequenas refei­

ções, para além de companhia.

O horário praticado neste serviço é das 8 às 18 horas de segunda a sex-

ta-feira. Nos feriados que coincidam com dias de semana são efectuados os

tratamentos que não possam ser adiados ou antecipados.

O número de doentes e de tratamentos tem sofrido um incremento pro­

gressivo ao longo dos anos, tal como se pode constatar pela análise do qua­

dro 1. Assim, verifica-se que no ano (2001) se efectuaram um total de 3.741

tratamentos a 1.702 doentes. Considerando o total de tratamentos e de dias

úteis do ano, verifica-se que a média de tratamentos diários é aproximada­

mente 14. Um outro dado curioso revelado pelo referido quadro, tem a ver

com a diminuição progressiva do número de tratamentos nas enfermarias e

o respectivo aumento na unidade de quimioterapia.

Os doentes chegam a este serviço referenciados por um médico, que pode

ser o médico de família, o internista o cirurgião ou qualquer outro. Diri-

genrse à secretária de unidade que marca uma consulta para um dos médi­

cos do serviço, de acordo com a patologia do doente, as patologias predomi­

nantes a que os médicos se dedicam e a disponibilidade de tempo destes.

Na consulta médica é decidido o tratamento que pode ou não incluir a

quimioterapia. Esta, pode ser anterior ou posterior a outros tratamentos

(e.g., cirurgia, radioterapia). Se for decidida a quimioterapia, é prescrito um

dos protocolos aceite nacional e internacionalmente e que tem a ver com o

estadiamento do tumor, feito de acordo com o sistema Tumor, Nodes and

= _ = - = = - _ _ _ - _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = „ _ _ _ _ = = = = „ _ _ _ „ = „ = „ . _ _ „ _ _ _ « , _ „ „ . „ „ _ _ _ _ , 5 0

Dissertação de Doutoramento

Page 153: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção ele uma relação

Metastasis (TNM), e com a condição física do doente, nomeadamente, peso,

altura bem como alguns parâmetros hematológicos.

Quadro 1 ­ Mapa do movimento de doentes e do número de tratamentos da unidade de Quimioterapia do Hospital do Espírito Santo

Serviços

1998 1999 2000 2001

Serviços

N° Trata­

mentos N° Doen

tes

N° Trata­

mentos N° Doen

tes

N° Trata­

mentos N° Doen

tes

N° Trata­

mentos N° Doen­

tes

Serviços

E.V. Uro­

logia

N° Doen

tes E.V. Uro­

logia

N° Doen

tes E.V Uro lo­

gía

N° Doen

tes E.V. Uro­

logia

N° Doen­

tes

Cardiologia Cirurgia I 1 1 1 1 3 1 Cirurgia II 4 1 Cuidados Intensivos 1 1

Especial. Cirúrgicas 1 1 6 1

1 1

Especial. Médicas 35 11 Oftalmologia O.R.L. Ginecologia 1 1 3 2 1 1 1 1 Medicina 122 39 117 46 126 1 49 7 2 Medicina II Homens 12 1 2 1

1 1

Medicina II Mulheres 12 1 3 2

Neonatologia Obstetrícia Ortopedia Pediatria Recém ­Nascidos Depart. Psiquiatria

Sub­Total 140 1 133 50 138 2 55 45 3 ■trj

Consulta Externa C.U.C.S. Externos S.O. Unidade Hemodiálise Unidade Quimioterapia 1591 418 1022 2 098 382 1225 2552 447 350 3.280 413 1.685

Urgência Sub­Total 1591 418 1022 2 098 382 1225 2552 447 350 3.280 413 1.685

TOTAL 1.731 419 1.066 2 231 382 1275 2690 449 405 3.325 416 1.702 Fonte­' Serviço de Estatística do HESE

Quando o doente chega junto da enfermeira, normalmente traz consigo a

prescrição de um determinado protocolo e uma requisição de análises para

fazer imediatamente antes de iniciar o tratamento. Traz também muitas

dúvidas, angústias e medos. A enfermeira recebe­o fazendo­lhe uma primei­

ra entrevista. Para essas primeiras entrevistas e tendo em consideração que

151 Dissertação de Doutoramento

Page 154: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

os protocolos variam essencialmente em função do tipo de tumor, sendo

necessário conhecê-los muito bem para os poder explicar, as enfermeiras

escalonaranrse de acordo com isso. Assim, uma enfermeira entrevista todos

os doentes com tumores do pulmão e tumores líquidos, outra os doentes com

tumores da mama, outra ainda os doentes com tumores do intestino e, por

último, outra os doentes com tumores urológicos.

A interacção entre estes diversos actores decorre no contexto físico atrás

descrito. Dada a natureza deste trabalho limitar-me-ei a descrever a com­

plexidade do contexto relacional tendo a enfermeira, o doente e respectivo

familiar como referência (ver figura 9). Esta interacção ocorre predominan­

temente em espaços onde estão presentes diversos outros actores, para além

dos atrás referidos. Ou seja, uma das características da interacção entre a

enfermeira e o doente e respectivo familiar, é ocorrer frequentemente, em

contexto público. Assim, os espaços físicos onde ela é mais frequente e onde

foi mais sistematicamente observada, foram na sala de espera dos doentes e

nas salas de quimioterapia.

A característica que mais se destaca quando se observa a t rama relacio­

nal vivida nas salas de quimioterapia é a sua complexidade. Assim, estando

a sala em pleno funcionamento, estão naquele espaço, cinco doentes e pelo

menos uma enfermeira. Os doentes, ao entrarem na sala, são livres de esco­

lherem o cadeirão que quiserem, de acordo com as disponibilidades. Perma­

necem na sala de quimioterapia aproximadamente três horas e saem à

medida que os seus tratamentos se vão completando. Portanto, ao longo do

dia de trabalho poderão passar por uma sala 10 a 15 doentes e respectivos

familiares, com quadros fisiopatológicas e vivenciais diferentes. Durante

esse período de tempo constatanrse um diversificado número de interacções

entre os presentes na sala. Na interacção entre os doentes, normalmente

verifica-se algum grau de familiaridade. Tal parece resultar de conhecimen­

to prévio ou então de relação desenvolvida neste contexto, como consequên­

cia do facto de haver alguma tendência para simultaneidade de cronogramas

entre os doentes.

= = = = = = m = = " " " " = " " " " ^ = ' " " " " " — — 152 Dissertação de Doutoramento

Page 155: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Para além destes actores, a qualquer momento podem entrar outras

enfermeiras. Estas deslocanrse à sala, entre outras razões, para ajudar a

colega, pedir ou dar uma informação ou cumprimentar um doente. Podem

ainda entrar as auxiliares de acção médica, no desempenho das suas activi­

dades, familiares dos doentes, médicos, entre outros.

Na interacção da enfermeira com os doentes, verifica­se que, por norma,

aquela conhece e t ra ta todos os doentes pelo nome. Apesar disso, cada enfer­

meira terá diferentes tipos de relação com cada um dos doentes presentes na

sala e em cada momento. As diferenças principais terão a ver com o grau de

proximidade e o estádio da relação. Assim e relativamente ao grau de pro­

ximidade, verifica­se que com alguns doentes, a enfermeira tem uma relação

mais próxima e até preferencial, enquanto que com outros não é assim e

essa relação preferencial existirá com outras enfermeiras.

Figura 9 ­ A complexidade do contexto relacional da enfermeira

Legenda^ « »■ Interacção preferencial da enfermeira com doente/familiar. 4 ► Outras interacções entre actores diversos.

► Supervisão da enfermeira sobre as interacções de actores diversos com doente/familiar.

153 Dissertação de Doutoramento

Page 156: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

A existência deste tipo de relação pode estar ligada ao facto de ter sido

aquela enfermeira a realizar a entrevista de admissão. Independentemente

disso, conhece o suficiente de cada doente de modo a permitir-lhe a presta­

ção de cuidados de modo personalizado.

Existirão também diferenças relativamente ao estádio da relação com

cada um dos doentes com os quais uma determinada enfermeira tem relação

preferencial. Estas diferenças radicam no tempo de relação, mas também

nas características das vivências da enfermeira, mas principalmente do

doente. Assim, numa mesma sala a enfermeira tem perante si um conjunto

de doentes com os quais poderá ter diversos tipos de relação (i.e., preferen­

cial ou não), com diferentes tipos de situações e a vivenciarenrnas em dife­

rentes estádios. Para além disso, desenvolve interacções ainda a dois níveis

distintos, um de natureza pública e grupai e outra de natureza pessoal e

privado. No primeiro nível, mantém conversas abertas à participação de

todos, sobre temas de interesse comum, estejam ou não relacionados com a

doença. Normalmente esta interacção decorre em simultâneo com o desen­

volvimento de procedimentos técnico-instrumentais da mais diversa ordem.

No segundo nível, desenvolve interacções de natureza privada, com tom de

voz baixo, existindo proximidade física e contacto frequente. Esta interacção

pode ou não ser simultânea com a prestação de cuidados técni­

co-instrumentais ao doente em causa, mas normalmente, possui objectivos

terapêuticos específicos.

Assim, a enfermeira pode deslocar-se junto de um doente com a principal

finalidade de prestar cuidados técnico-instrumentais. O oposto também pode

acontecer, ou seja deslocar-se junto de um doente com o intuito de desenvol­

ver uma interacção terapêutica. Todavia, em qualquer dos casos, acaba por

estar sempre em causa, a globalidade dos cuidados. Esta perspectiva global

justifica-se por razões de ordem vária, das quais destaco, o facto de o doente

estar a fazer um tratamento que exige uma elevada atenção e rigor técnico e

o facto de o processo de doença exigir cuidados específicos. Porém, quer num

caso quer no outro a reacção do doente depende também do modo como está

a vivenciar a situação. Logo os cuidados têm que ter todos estes elementos

£síb

Dissertação de Doutoramento 154

Page 157: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de um;i relação

em atenção para poderem ser adequados. Assim, quando a enfermeira chega

junto de um doente, a sua resposta em termos de cuidados tem uma nature­

za específica, porque ainda que aquele tratamento seja igual ao de todos os

outros, as condições em que é administrado é diferente de todos os outros,

quer pelo estado das veias, pela reacção pessoal ou outro factor desta natu­

reza. Mas também a sua resposta em termos relacionais tem uma natureza

específica, na medida em que as situações vivenciais são todas de natureza

diferente, ainda que as situações do ponto de vista médico sejam semelhan­

tes. Isto obriga a que a enfermeira, no desenvolvimento das suas interac­

ções, tenha que mudar de registo cada vez que muda de doente. Contudo,

ainda que a enfermeira esteja a desenvolver uma interacção de natureza

mais pessoal com um doente, não poderá estar alheada ao que se passa com

os restantes, já que mais não seja, pela natureza do tratamento que estão a

fazer e pelos riscos que lhe são inerentes. Apesar disso, são vários os

momentos em que ocorrem interacções próximas, quer por iniciativa da

enfermeira, quer por solicitação do doente, no âmbito das quais são desen­

volvidas acções de que mais à frente falarei em detalhe.

Para além da interacção pessoal, a enfermeira por vezes, desenvolve uma

interacção com um carácter mais grupai. Neste caso, a enfermeira precisa de

se manter atenta ao processo de tratamento de cada um dos doentes e ao

mesmo tempo conhecê-los o suficiente para que a mensagem para o grupo

atinja os objectivos pretendidos.

Todavia, as interacções que ocorrem naquele espaço envolvem outras

pessoas para além das enfermeiras. É frequente a interacção entre doentes,

tal como mais à frente falarei. Mas quando tal acontece, exige a atenção da

enfermeira, na medida em que, frequentemente, nessa interacção são troca­

das informações de grande importância para a enfermeira, quer pelo valor

das mesmas, quer porque poderão carecer de algum tipo de intervenção.

Explicando melhor, os doentes ao relatarem uns aos outros a sua situação

poderão fornecer algum dado que seja importante para o processo de cuida­

dos. Ou então, ao trocarem entre si estratégias para lidar com as situações

poderão incutir informações erradas nos seus pares que careçam de correc-

155 Dissertação de Doutoramento

Page 158: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ção imediata. Pode também ocorrer o oposto, a informação ser de tal modo

adequada e oportuna que a enfermeira se sirva da mesma para a reforçar e

sublinhar. A enfermeira também precisa de estar atenta às interacções que

ocorrem entre os doentes e as auxiliares de acção médica e aqueles e os fami­

liares, por razões idênticas às anteriormente referidas.

Uma outra interacção que ocorre com alguma raridade neste contexto é

entre o doente e o médico. Porém, quando a mesma acontece, a enfermeira

está atenta, não só para recolher informação útil, mas também para a dar.

Acontece com alguma frequência que o grau de inibição dos doentes perante

os médicos é maior que perante as enfermeiras. Acontece também que a visi­

ta dos médicos é normalmente bastante apressada. Conjugando estes dois

factores pode acontecer que o doente não chegue a fornecer ao médico a

informação considerada relevante. Neste caso a enfermeira interfere no sen­

tido de repor a "normalidade".

Em suma, é neste contexto que a enfermeira desenvolve as suas activi­

dades, as quais caracterizarei mais tarde. Ou seja, um contexto complexo a

exigir respostas complexas da enfermeira e uma atenção elevada, não só

para tentar adequar a resposta a cada pessoa que tem perante si, mas tam­

bém porque está a decorrer um tratamento que exige um elevado rigor téc­

nico, dada a perigosidade do mesmo. Este segundo aspecto não é despiciendo

no contexto desta relação, não só pelas razões que já atrás apresentei (i.e., a

impossibilidade de separar as duas facetas uma da outra), mas também,

porque, neste caso a confiança se constrói com base em elementos como a

competência técnica reconhecida, entre outros.

O termo "complexidade" é aqui usado com intencionalidade, uma vez que

neste contexto se combinam o elevado número de variáveis, com um elevado

e imprevisível número de interacções entre essas variáveis (Morin, 1990).

Neste contexto, a própria acção da enfermeira, a qual é uma tentativa de

resposta, entra como variável aleatória, contribuindo para aumentar a

imponderabilidade e a incerteza.

: = _ _ - - . _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ , 5 6

Dissertação de Doutoramento

Page 159: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

5.3 - A NATUREZA DA RELAÇÃO ENFERMEIRODOENTE: O "PRO­

CESSO DE AVALIAÇÃO DIAGNOSTICA"

Terminada a caracterização do contexto, bem como dos actores do proces­

so de interacção, dou agora início à caracterização dos seus construetos fun­

damentais, os quais definem a sua natureza. O primeiro a considerar é o

"Processo de Avaliação Diagnostica". É um construeto que emergiu das

entrevistas realizadas às enfermeiras, bem como das entrevistas de admis­

são e das observações por mim realizadas. Começarei por o caracterizar a

partir dos dados resultantes das entrevistas de admissão.

5.3.1 - O "Processo de Avaliação Diagnostica" a partir das entrevistas de

admissão

A entrevista de admissão é um procedimento adoptado neste serviço e

desenvolvido de modo sistemático, por sugestão da enfermeira que desem­

penhava funções de chefia, a qual é detentora de formação especializada, tal

como atrás já referi. De acordo com o que me foi relatado por diversas

enfermeiras, o processo de implementação de tal procedimento foi prolonga­

do no tempo e implicou um processo de auto-formação desenvolvido pelo

grupo. Este consistiu no desenvolvimento de entrevistas de admissão pela

enfermeira atrás referida, assistidas sucessivamente por cada uma das cole­

gas. Após e em grupo, procedia-se à sua análise e discussão, tentando evi­

denciar e compreender os objectivos subjacentes, bem como algumas das

técnicas usadas. O momento seguinte consistiu na execução da entrevista de

admissão pelas enfermeiras, agora assistida pela enfermeira coordenadora.

Ainda tive oportunidade de presenciar parcialmente este processo, porque

quando iniciei o meu trabalho de campo, uma das enfermeiras deste grupo

era recém-chegada, estando, portanto em fase de integração. Esta incluía

este treino que acabei de descrever.

Pelas razões que acabei de referir, entre outras, a entrevista de admissão

assumiu-se como o momento de avaliação diagnostica por excelência, pelo

que é expectável que tenha características muito específicas e diferentes das

encontradas noutros contextos. Recordo que esta entrevista, normalmente,

157 Dissertação de Doutoramento

Page 160: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

corresponde ao primeiro encontro entre a enfermeira e o doente e respectivo

familiar. Tendo isto presente, a avaliação diagnostica orienta­se em três

sentidos diferentes mas complementares, a saber:

S o que o doente sabe;

/ o que preocupa o doente;

S estratégias/capacidades do doente.

Cada um destes diferentes sentidos constitui­se também como conceitos

que passarei a caracterizar (ver diagrama l) . Assim, o conceito "O que o

doente sabe" é o mais importante deste construeto e caracteriza­se pela ten­

tativa de identificar o que o doente sabe, a partir de que fontes e como inter­

preta o que sabe. Nestes objectivos podem perceber­se finalidades simulta­

neamente diagnosticas e terapêuticas. Do ponto de vista diagnóstico, a

enfermeira precisa de ter aquela informação para poder desenvolver a sua

actividade com base no que o doente sabe e não no que ela supõe que ele

sabe. Ainda do ponto de vista diagnóstico, mas simultaneamente terapêuti­

co, a enfermeira sabe à priori, qual a representação comum da doença, do

serviço e do tratamento. Detentora deste conhecimento, pretende saber

exactamente em que estádio o doente se encontra e ao mesmo tempo, pela

disponibilização de um espaço/tempo, permitir­lhe a verbalização das suas

preocupações.

Diagrama 1 ­ Categorização do "Processo de Avaliação Diagnostica" com base nas entrevistas de admissão.

)o serviço de quimioterapia

Compreender a /sfò° tratamento de quimioterapia muto­interpretação

^o processo de doença / O que o doente sabe ( V»« „;„„;„ „ „;„+„„,„„

n \ lie sinais e sintomas

Processo de ava­ / Identificar as fontes de informação fiação diagnostica

^O que preocupa o doente ►Identificação das preocupações Identificação das estraté­

J* gias do doente/família estratégias/capacidades /

Compreensão do contexto do doente

158 Dissertação de Doutoramento

Page 161: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Este conceito é, por sua vez, constituída por duas categorias, "Compreen­

der a auto-interpretação" e "Identificar as fontes de informação" (ver dia­

grama 1). Para tentar "Compreender a auto-interpretação" do doente, a

enfermeira tenta compreender a auto-justificação do encaminhamento para

aquele serviço (i.e., quimioterapia), bem como a auto-interpretação do servi­

ço. Tenta, por outro lado, compreender a representação que tem do trata­

mento, quer de modo directo, quer indirecto, através da tentativa de com­

preensão das razões do tratamento prescrito. Veja-se, a título de exemplo, os

extractos de duas entrevistas de admissão, abaixo apresentados.

...Enf - Quanto anos é que a Sra tem, D. L.? D. L . - 6 3 . Enf* — 63. Então conte-me lá o que é que se passa consigo, o que é que está aqui a fazer?... D. L. - Quer dizer, fui operada aos intestinos .... E n f - Sim, foi operada aos intestinos, já há muito tempo? D. L. - Foi há um mês e duas semanas. E n f - Correu tudo bem com a operação? D. L. - Sim, correu. Ainda me dói muito mas ... E n f - Ainda tem dores? D. L - Sim, ainda tenho. E n f - Então e foi operada porquê? O que é que se passava consigo para ser ope­rada aos intestinos? D. L - Ahhhh ... Quer dizer, eu adoeci com dores de cabeça. Uma grande dor de cabeça e aqui assim, .... aqui assim de lado {apontava para o flanco), mas a dor de cabeça é que .... pronto era dor de cabeça, era dor nos olhos, era dor no pesco­ço e houve um dia que até me desmaiei. Depois fui à médica, a médica mandou-me fazer exames e então eu fui fazer os exames e lá num dos exames .... fiz exame à barriga e a Sra Dra mandou-me logo vir de urgência com aquela carta à Dra A.. Depois da Dra A. fui para a Dra M. e pronto fiquei logo cá no hospital, para ser operada. Tinha .... acho que eram as tripas, assim inflamadas ou ... tinha qualquer problema na tripa. Tanto que me tiraram um bocado, tiram-me um rim e tornaram-mo a pôr ... e pronto. E n f — Ficou com algum saquinho ou não? D. L. - Não, não. Graças a Deus, não. E n f - Então foi operada por quem?... (EAL - 150702)

...Enf - E que tratamento é este que o Sr. vem fazer, sabe?... Sr. V. - É o coiso, é Ai não sou capaz de me lembrar o nome.... E n f - Quimioterapia... Sr. V. - Sim, é isso mesmo... (EAV - 220402)

Outro modo, também patente no extracto anterior, é através da tentativa

de compreensão da auto-interpretação do processo de doença. Este pode ser-

vir-se de caminhos diversos que vão desde a solicitação do relato da história

da doença, até à auto-justificação dos tratamentos cirúrgicos e outros e dos

159 Dissertação de Doutoramento

Page 162: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

exames complementares de diagnóstico. Outra forma de tentar "Compreen­

der a auto-interpretação" do doente e complementar da anterior, é pela ten­

tativa de compreensão da auto-interpretação dos sinais e sintomas. Esta

tentativa é feita principalmente com os sinais e sintomas mais paradigmáti­

cos e que, do ponto de vista de representação, normalmente, estão associa­

dos ao cancro (e.g., emagrecimento brusco, perda de sangue nas fezes, "caro­

ço" na mama), tal como é patente no exemplo abaixo.

...EnF — Foi sempre assim, magrinho, magrinho? Sr. M — Sempre, sempre... Filha — Está um bocado mais magro, mas sempre foi magrinho. Sr. M. — A minha mãe é que dizia que eu que era gordo quando era pequenito, mas eu não sei porquê ainda não consegui. EnF — Então e o que é que o sr. acha que se passa, pronto, o que é que o sr. acha de tudo isto? Sr. M. - Do quê? EnF - Da sua situação, do motivo que o traz aqui, porque é que virá aqui ... Sr. M — Pois, eu queria era ficar bom ... EnF - E tem muita falta de ar, é? Sr. M — Tenho sim. Tenho um bocadinho. EnF - E de há muito tempo ou só agora? Sr. M. - Não, já há mais tempo. Agora, há coisa de quê, cinco meses é que eu me tenho sentido mais ... EnF - Mais para baixo... (EAM - 050802)

Como forma de complementar a informação anterior a enfermeira tenta

ainda perceber quais foram as fontes de informação do doente e que infor­

mação foi veiculada por essas fontes. Esta estratégia é usada com duplo

objectivo. Por um lado, como forma de aceder à auto-interpretação do pro­

cesso. Para o efeito, a enfermeira solicita ao doente que relate por palavras

suas o que é que lhe foi dito e o que é que pensa acerca disso, tal como se

verifica no extracto apresentado abaixo. Por outro, como forma de com­

preender a fidedignidade das fontes e da interpretação que foi dada à infor­

mação. Com base nisto pode estruturar a sua estratégia de informação e

esclarecimento.

...EnF — Quando veio aqui para este serviço, aqui para a de nós, o médico dis-se-lhe alguma coisa? Porque é que tinha que vir para aqui? Porque é que tinha que continuar a fazer tratamento?..._(EAV - 220402)

Pela associação deste conjunto de abordagens à auto-interpretação do

doente a enfermeira normalmente consegue compreender o que o doente

— _ — _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ , , - = = = = = _ = _ _ _ _ _ „ = = = = = , _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ = _ _ | 6 0

Dissertação de Doutoramento

Page 163: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

sabe, mas também qual o seu estádio relativamente à vivência do processo.

Estes dois elementos são de importância crucial para o desenvolvimento das

estratégias de intervenção das enfermeiras. Pelas razões enunciadas, este

conceito tem relação próxima com o seguinte (i.e., "O que preocupa o doen­

te"), na medida em que, identificando-se o que o doente sabe e o modo como o

interpreta, bem como o estádio de vivência do processo, identificam-se tam­

bém algumas das suas preocupações.

Ainda que, no futuro, esta auto-interpretação esteja sempre em reavalia­

ção, uma vez que a mesma vai evoluindo, este é o único momento em que a

enfermeira desenvolve de uma forma tão sistemática esta tentativa de com­

preensão. Assim, esta é uma categoria diferenciadora e especifica desta fase

do processo e que não se repetirá noutros momentos.

No "Processo de Avaliação Diagnostica" desenvolvido durante a entrevis­

ta de admissão, a enfermeira tenta também compreender "O que preocupa o

doente". A identificação das preocupações do doente faz-se à volta da pro­

blemática do bem-estar (ver extractos EAF - 150702 e EAM - 050802). Ou

seja, a enfermeira tenta compreender o que é que interfere mais com o

bem-estar daquele doente, na perspectiva dele.

...Enf - Mas sintomas e isso não tem? Sente-se bem? Mulher — Tem a tosse. Sr. F. - Tenho a tosse, e estas feridas, não é. E n f - Pois, a gente agora já vê. J á vemos o que é que está aí por baixo. Tem pontos ainda ou não? Sr. F. - Não, não. J á não tenho nada. E n f - Se calhar já não há necessidade de andar com isso. A gente agora já vê.... (EAF - 150702)

...Enf - Então e o sr. como é que se sente, com dores? Sr. M.- Não, dores não tenho.... (EAM - 050802)

Ficam patentes, através desta abordagem, quais as intenções diagnosti­

cas da enfermeira, mas é também de assinalar a complementar faceta tera­

pêutica. Ou seja, a verbalização das preocupações perante alguém que se

manifesta interessado e preocupado tem potencialidades terapêuticas

enquanto tal, sendo este aliás um dos principios fundamentais de algumas

das correntes psicoterapêuticas tais como a psicanalítica, terapia centrada

na pessoa, cognitivista ou a existencial, entre outras (Mitchell & Black,

161 Dissertação de Doutoramento

Page 164: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

1996; Freud, 1989, 1995, 1999.; Rogers, 1974, 1995; Bandura, 1986; May,

1985, 1994).

O último conceito do "Processo de Avaliação Diagnostica" tal como ele

ocorre durante a entrevista de admissão, é o que denominei como "Estraté­

gias do doente". Este conceito compreende duas categorias, "Identificação

das estratégias do doente/família" e "Compreensão do contexto do doente".

A categoria "Identificação das estratégias do doente/família", tal como o

seu nome indica, tem a ver com as estratégias que, quer o doente, quer a

família, utilizam para lidar com a situação. Tal justifica-se porque normal­

mente o doente está acompanhado por um familiar, mas também porque

quase nunca está sozinho a lidar com a doença. Apesar disso, existe uma

particular preocupação com o doente, pelo que a atenção começa por estar

centrada nas suas estratégias pessoais, no que diz respeito à experiência em

lidar com situações semelhantes à actual (ver extracto EAL - 100702).

Outra preocupação tem a ver com a autonomia face ao auto-cuidado. Este

segundo aspecto, de algum modo, faz apelo para os recursos familiares, uma

vez que, não havendo essa capacidade ou prevendo-se a evolução nesse sen­

tido, é necessário equacionar quem o irá ajudar. São ainda exploradas as

estratégias familiares de natureza pragmática e que têm a ver com as impli­

cações da doença e do tratamento.

...Enf3 - Olhe, D. L., então e veio sozinha? D. L. - Não, com o meu marido graças a Deus, está ali. E tenho 3 filhos e 7 netos. Enf* - Sim Sra. E vivem lá todos em Estremoz? D. L. - Não. O meu filho vive em Lisboa, com a mulher e dois filhos e as minhas filhas é que vivem em Estremoz. Uma é ajudante de farmácia e a outra está em casa, tem três filhos, dois homens e tem uma filha pequenina com 7 anos e então essa não está empregada. Enf3 - Olhe D. L., então diga-me lá uma coisa, já por acaso alguém na família t inha tido um problema assim?... (EAL - 100702)

Esta categoria é complementada pela que denominei como "Compreensão

do contexto do doente". Nesta outra a enfermeira tenta perceber os elemen­

tos do contexto que lhe pareçam necessários à compreensão da situação do

doente, o que também é patente no extracto anterior. Normalmente a sua

atenção centra-se no enquadramento e dinâmica de relacionamento familiar.

= = = = = - _ _ _ _ _ _ _ = = = - _ _ _ _ _ _ = = _ _ _ _ _ = = = _ _ _ _ „ = = = = = _ _ „ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ „ , 6 2

Dissertação de Doutoramento

Page 165: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

Aliás, uma das primeiras coisas que a enfermeira faz quando o doente entra

no gabinete para a entrevista de admissão e caso venha sozinho, é perguntar

quem é que o acompanha, como no exemplo atrás apresentado. Por vezes

justifica a questão com o desejo de ter naquela entrevista a pessoa que o

acompanha, porém, da resposta começa a tirar também ilações acerca do

enquadramento familiar.

...Enf - Tem aqui uma mulher cheia de força ah!!! Aqui ao seu lado. Esposa — O meu marido tem muito mais força do que eu. Eu tive força para aguentar a porta do café aberta porque ele pedhrme para a não fechar. Mas ele estava sozinho em casa. Atendia os clientes, ia a correr ao quarto, vinha.... ele quando tinha um bocadinho levantava-se e ia logo para o café... E n f - Não têm filhos?... Esposa — Temos uma filha. Mas a minha filha está empregada. Tenho dois netos. Depois ele estava habituado a ir levar os netos à escola, ir buscar os netos à escola e isso tudo... Enf* — Então e agora como é que estão as coisas? J á voltaram ao normal? Sr. C. - Sim, sim já voltaram ao normal.... (EAC - 220402)

...Enf* — É a mesma coisa, está bem? Quem é que vive... o Sr. vive com a sua esposa em casa? Sr. V. — Sim, sim... E n f - Vivem só os dois? Sr. V . - E o m e u f i l h o . . . E n f - A i e um filho... Sr. V. - Às vezes só vai no finrde-semana. Ele está a estudar. E n f - Está a estudar onde? Sr. V. - Em Montemor. E n f - Ainda tem um filho novo? Sr. V. - Tem 17 anos. E n f — Ainda é novo! Só ao fim-de-semana é que está com vocês, é? S r . V . - É , é. E n f - E a sua Sra também está a par de tudo aquilo que lhe aconteceu? Sabe tudo o que lhe aconteceu? Sr. V. — Sabe sim. Sabe mais do que eu. O médico explicouThe tudo. Eu depois esqueço-me.... (EAV-220402)

Tal como já disse, as informações relativas a esta categoria complemen­

tam a anterior, ajudando a perceber melhor não só quais as estratégias, mas

também quais as potencialidades que o doente e família encerram para lidar

com as dificuldades actuais e com as que se avizinham. Todavia, estes dados

de enquadramento acabam por contextualizar toda a restante informação

das outras categorias.

Com base na análise feita às entrevistas de admissão desenvolvidas

pelas enfermeiras, não foi encontrada qualquer referência à avaliação de

natureza biomédica. Tal poderá parecer estranho, dada a natureza do tra-

163 Dissertação de Doutoramento

Page 166: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

tamento que se vai iniciar. Porém, a enfermeira tem acesso prévio ao proces­

so clínico e por vezes, fala com o seu médico antes de receber o doente. Tam­

bém pode acontecer que já conheça a situação do doente, do ponto de vista

médico, da consulta de senologia, a qual se realiza e é acompanhada pelas

enfermeiras deste serviço. Portanto, é já detentora de um razoável conjunto

de dados de natureza médica. Mas, para além disto, existe informação de

natureza médica subjacente a algumas das categorias atrás referidas. Por

exemplo, quando a enfermeira tenta perceber "o que o doente sabe" ou "o que

preocupa o doente", muitas das vezes este acaba por centrar o seu discurso

sobre aspectos de natureza médica os quais podem exigir a recolha de dados

clínicos complementares.

Olhando para o "Processo de Avaliação Diagnostica" como um todo e tal

como ele ocorre durante as entrevistas de admissão, destaco'■

■S a preocupação em compreender o que o doente sabe, mas também

qual o seu estádio relativamente à vivência do processo. Assinalan­

do, neste caso, a especificidade desta indagação para este momento

do processo,'

•f a preocupação em identificar as preocupações do doente!

S a preocupação em conhecer as estratégias do doente e família, mas

também as suas potencialidades;

■S o carácter terapêutico intrínseco a todo este processo de avaliação

diagnostica.

Relativamente ao modo como o mesmo é desenvolvido pelos diversos

intervenientes (i.e., enfermeiras), são patentes algumas diferenças. Algumas

destas poderão ser imputadas à interpretação individual da técnica de

entrevista. Algumas outras, nomeadamente as que têm a ver com a flexibili­

dade na condução do processo, a acuidade clínica na percepção dos fenóme­

nos e a consciência do processo, parecem ter alguma relação com uma conju­

gação da formação com a experiência clínica das enfermeiras. Para afirmar

tal basekrme não só nas diferenças existentes no grupo no que diz respeito a

estas variáveis, mas também no facto de, durante o período de trabalho de

__­___________====_========._________===_====____.__.._______________. | 6 4

Dissertação de Doutoramento

Page 167: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

campo ter assistido ao processo de integração de uma jovem enfermeira, mas

também de uma outra estar em processo de formação complementar.

5.3.2 - O "Processo de Avaliação Diagnostica" a partir da observação

De seguida, por uma questão de lógica sequencial e porque, tal como já

referi, o "Processo de Avaliação Diagnostica" está sempre presente ao longo

de toda a relação, procederei à sua apresentação a partir dos dados recolhi­

dos através da observação. Para que melhor se compreenda é necessário ter

presente que as informações recolhidas durante a entrevista de admissão

são partilhadas com as restantes enfermeiras, facto do qual o doente é

informado pela enfermeira que faz a entrevista. É também necessário não

esquecer que se t rata de um processo, o que, neste caso, significa que a

informação que é recolhida após, funciona como avaliação face à que se reco­

lheu anteriormente e portanto, é entendida neste contexto de continuidade

circular.

O "Processo de Avaliação Diagnostica" caracteriza-se agora por se reini­

ciar a cada retorno do doente, de acordo com o seu cronograma. O processo

reinicia-se no momento em que doente e enfermeira se reencontram, ainda

que tal ocorra na sala de espera e prolonga-se durante todo o tempo da pre­

sença do doente no serviço. Embora se possa perceber que num primeiro

momento existe uma maior preocupação em detectar alguma alteração que

careça de um intervenção imediata, é, contudo, extremamente difícil falar de

um espaço/tempo destinado por excelência a este processo. Ou seja, a avalia­

ção diagnostica acontece em simultâneo com a intervenção, conduzindo,

eventualmente, à alteração desta. Aliás, em alguns momentos torna-se difí­

cil perceber se se t ra ta de avaliação diagnostica ou de intervenção terapêuti­

ca, não só devido à simultaneidade das ocorrências mas também ao carácter

terapêutico intrínseco a este "Processo de Avaliação Diagnostica" o qual já

atrás referi.

O "Processo de Avaliação Diagnostica" direcciona-se em três vectores dis­

tintos, mas complementares e que se constituem como conceitos (ver dia­

grama 2)'

165 Dissertação de Doutoramento

Page 168: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

S Avaliação genérica da situação de saúde,'

S Avaliação especifica dos sintomas somáticos!

S Avaliação especifica dos sintomas vivenciais.

Diagrama 2 ­ Categorização do "Processo de Avaliação Diagnostica" com base na observação.

^Associada ao cumpri­

. ,. ­ , . / mento inicial Avaliação genérica /

(ida situação de saúda*" Associada aos procedimen­\ tos técnico­instrumentais

Outros

Avaliação de continuidade dos sintomas, situação de saúde e dimensão do incómodo

Avaliação especív>­^ Avaliação dos valores analíticos ­►fica dos sintomas Processo de avalia­

ção diagnostica \ ' ' ^ m â t í c o T ' " ' ° \ Avaliação das alterações detectadas.

Avaliação contínua do proces­

so de t ratamento ■é Avaliação da vivência do processo

wAvaliação específi­ f ca dos sintomas V* Avaliação dos sentimentos vivenciais Avaliação das necessidades de ajuda

A "Avaliação genérica da situação de saúde" inicia­se no momento do

reencontro do doente e enfermeira, o qual ocorre frequentemente na sala de

espera dos doentes. Aí, a enfermeira, ao mesmo tempo que cumprimenta o

doente e família, habitualmente, de forma afável e com carácter de grande

familiaridade, vai recolhendo a informação necessária a uma primeira rea­

valiação da situação desde a última visita (ver DO ­ 080702 e DO ­ 250702).

O carácter da indagação feita neste contexto é genérica, relembro que decor­

re em público, mas não é despicienda. Tal deve­se ao facto de, associada à

indagação, ser feita uma observação do todo (diria que, na linha da percep­

ção gestáltica).

... Entretanto chegou a enfermeira L, vinda do interior, munida da agenda das marcações e deambulou pela sala de espera cumprimentando diversos doentes pelo nome, fazendo algumas perguntas ocasionais e genéricas sobre a saúde, mas em jeito de cumprimento (e.g., "então como está?" "então como tem passa­

Dissertação de Doutoramento ­ 166

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

do?", "então como vai isso?"). Ao mesmo tempo ia dizendo a uns e outros que podiam entrar para as salas de quimioterapia... (DO - 080702)

... Cerca das 9 horas as enfermeiras A. e I. entraram na sala de espera, vindas do "Sítio do Pica-Pau Amarelo". Iam cumprimentando os doentes à medida que evoluíam na sala. Ao mesmo tempo que cumprimentavam iam perguntando sobre o estado e o sentir de cada um. Iam também dando ordem àqueles que tinham sessão de quimioterapia, marcada, para se dirigirem para a respectiva sala de tratamento... (DO - 250702)

Por vezes, na sequência desta avaliação, as enfermeiras comentam entre

si "há qualquer coisa que não está bem!"; ou então, "não gostei do ar dele".

Os dados recolhidos por estas duas vias e lidos no contexto do conhecimento

que a enfermeira tem do doente, permitem uma primeira avaliação, que ser­

vem de base a algumas decisões, nomeadamente as relativas a eventuais

medidas urgentes ou à necessidade de avaliar mais em profundidade.

Mais uma vez assinalo o potencial terapêutico desta forma de estar que,

tendo como objectivo imediato a recolha de informação, é ao mesmo tempo,

uma demonstração de simpatia, afabilidade, interesse e preocupação.

Todavia, a apreciação genérica continua mesmo após a entrada dos doen­

tes na sala de quimioterapia. Quer porque a enfermeira não teve oportuni­

dade de contactar com todos os doentes na sala de espera ou porque não

pôde fazer as perguntas que pretendia, a avaliação genérica prolonga-se e

sobrepõe-se com os primeiros procedimentos técnico-instrumentais inerentes

à quimioterapia. Existem porém, algumas diferenças face à anterior situa­

ção. Agora podem ser feitas perguntas mais pessoais, primeiro porque se

está só entre pares, a maioria dos quais se conhece, segundo porque se pode

passar facilmente para um nível de conversa ainda mais privada se for

necessário (ver DO - 080702 e DO - 040702). De qualquer modo, as caracte­

rísticas das perguntas continuam a ser de carácter bastante genérico. Ou

seja, nada é perguntado especificamente sobre o sintoma A ou B, mas antes

sobre a saúde e o benres tar de uma forma geral.

... Todos os doentes receberam um cumprimento mais personalizado de uma ou outra enfermeira ou de mais do que uma. Este cumprimento consiste em dirigi-renrse directamente ao doente pelo nome perguntando-lhe como se sente e como tem passado desde a última sessão.... (DO - 080702)

...A enfermeira J. e a aluna começaram por preparar a medicação não citostática na bancada de trabalho. As enfermeiras J. e A. e enquanto esta não foi para a 2a

167 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

sala, iam falando individualmente com cada doente acerca do seu estado ou da sua vida...._(DO ­ 040702)

Também neste caso existem dois factores que têm valor terapêutico. O

primeiro tem a ver com a já referida manifestação de interesse! o segundo

com o uso desta inquirição para distrair o doente dos procedimentos técni­

co­instrumentais inerentes à quimioterapia, principalmente quando estes

são incómodos.

Não se consegue prever cronologicamente o momento a partir do qual a

enfermeira abandona a "Avaliação genérica de saúde" e inicia uma das ava­

liações mais especificas. Contudo, parecem existir um conjunto de factores

que resultaram da "Avaliação genérica de saúde" e que conduzem a uma

avaliação mais específica. Assim, se na avaliação genérica foram detectados

indicadores, verbalizados ou expressos de qualquer forma pelo doente ou

inferidos pela enfermeira, e que levem esta a concluir que algo não está bem,

passa a uma avaliação mais específica. Esta pode ou não ser diferida no

tempo, consoante a avaliação que a enfermeira faça do seu grau de urgência

e a sua definição de prioridades. Mas acaba por acontecer ao longo da per­

manência do doente na sala de quimioterapia.

As características da referida avaliação específica estão categorizadas em

dois conceitos diferentes. Contudo, tal tem essencialmente objectivos didác­

ticos, uma vez que na prática o que se pode dizer é que em alguns doentes

prevalece mais uma avaliação que outra, mas jamais se pode afirmar que

existe uma sem a outra. Assim, a avaliação específica foi categorizada em:

■S Avaliação específica dos sintomas somáticos!

S Avaliação específica dos sintomas vivenciais.

A "Avaliação específica dos sintomas somáticos", pode ser desencadeada

por algo expresso pelo doente ou inferido pela enfermeira a partir da avalia­

ção genérica, mas também resultar da detecção de alguma alteração, seja

nos valores analíticos ou outra. Esta avaliação integra as seguintes catego­

rias :

S Avaliação de continuidade dos sintomas, situação de saúde e

dimensão do incómodo;

„ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ^ _ _ _ _ _ _ . _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ „ „ _ _ „ „ . . ] 6 8

Dissertação de Doutoramento

Page 171: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

■S Avaliação das alterações detectadas;

S Avaliação dos valores analíticos;

S Avaliação contínua do processo de tratamento;

A "Avaliação de continuidade dos sintomas, situação de saúde e dimen­

são do incómodo" adquire uma importância central no "Processo de Avalia­

ção Diagnostica" que decorre na sala de quimioterapia. Esta avaliação pode

não corresponder a um momento autónomo e bem delimitado do tempo. Ou

seja, pode ser feita ao mesmo tempo que decorrem outros cuidados e ser

interrompida e retomada várias vezes. Normalmente, esta avaliação começa

por se dirigir aos sintomas que mais incomodam o doente, caso a enfermeira

já os conheça (ver extractos DO ­ 020603 e DO ­ 160603). Se não for esse o

caso e porque a enfermeira procede também a uma avaliação do estado de

saúde, o doente acaba por ter espaço para expressar o que mais o incomoda.

É então feita uma avaliação mais minuciosa na tentativa de perceber as

características clínicas do sintoma e a dimensão do incómodo.

...A enfermeira L. dirigiirse a uma doente bastante emagrecida e com um ar triste e começou a fazer os preparativos para lhes colocar o soro em curso. Ao mesmo tempo, tentou perceber, agora de forma mais precisa, como é que estava a situação desde o último tratamento. Esta conversa decorre agora num tom bastante mais baixo, quase intimista, com a doente a contar à enfermeira quais os sintomas que teve com mais frequência e os incómodos que representaram. (DO ­ 020603)

...Quase de imediato chega o sr. B., doente já referido em relatórios anteriores. Foi igualmente cumprimentado pelas enfermeiras presentes. Contudo, como este doente, das últimas vezes que esteve presente, apresentava um estado geral bastante debilitado e referia muitas queixas, as enfermeiras dirigiram­se a ele de imediato no sentido de tentar perceber que evolução t inha ocorrido entre­

tanto. Este procedimento foi desencadeado de imediato mal o doente se assomou à porta, mas foi depois repetido com mais atenção pela enfermeira M. depois de o doente se ter instalado na cadeira. Esta parecia ser a enfermeira que mais sabia acerca da situação do sr. B., tanto que lhe fez perguntas muito específicas que tinham a ver com o que t inha acontecido na sequência da implementação de determinadas medidas terapêuticas que t inham sido adoptadas. Também o doente parecia manifestar predilecção por esta enfermeira, chamando­a e tra­

tando­a pelo nome com uma certa familiaridade. (DO — 160603)

A par com esta subcategoria estão as duas imediatamente a seguir (i.e.,

"Avaliação das alterações detectadas" e "Avaliação dos valores analíticos"),

as quais complementam a anterior e entre si. A "Avaliação das alterações

detectadas" radica numa atitude clínica mais proactiva da enfermeira. Ou

169 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

seja, ainda que o doente não refira qualquer queixa, desde que a enfermeira

detecte alguma alteração, investigada, indagando o doente e/ou avaliando-a

directamente, o que também é patente nos extractos atrás apresentados.

Esta atitude é relevante por, entre outras, duas razões principais. Primeiro,

porque detentora do conhecimento relativo à situação clínica do doente bem

como da sua previsível evolução, sabe valorizar sinais e sintomas que passa­

rão despercebidos a um leigo (ver extracto DO - 160702 e DO - 250702).

Segundo, porque ultrapassa a eventual inibição por menos à-vontade de

algum doente.

...Findo este procedimento, A. inicia o processo de mudança de "bomba" a H2. Enquanto isso, vai falando com ele acerca do processo de tratamento, nomeada­mente no que tem a ver com cronograma e efeitos.... (DO - 160702)

... A enfermeira A. coloca a quimioterapia a SI e H l . enquanto a coloca a S i interroga-a sobre se tem apanhado muito sol uma vez que a acha muito morena. Aquela refere que não. Apesar disso a enfermeira recomenda algumas precau­ções e explica que um dos medicamentos induz o escurecimento da pele e o apa­recimento de manchas, quando a pessoa se expõe em demasia durante o trata­mento.... (DO - 250702)

Os valores analíticos são apreciados por rotina pois é através deles que

as enfermeiras decidem da exequibilidade do tratamento. Contudo, a sua

apreciação pode ir mais além, na tentativa de perceberem ou enquadrarem

as queixas do doente ou as alterações detectadas.

.... As enfermeiras A. e I. discutem os valores analíticos de um doente e decidem que não está em condições de efectuar o tratamento.... (DO - 250702)

Ao conjunto destas três subcategorias deve acrescentar-se uma quarta,

que ocorre em simultâneo com as anteriores, que está mais centrada no pro­

cesso em curso naquele momento e a qual denominei "Avaliação contínua do

processo de tratamento". A administração de agentes quimioterápicos de

natureza citostática é um procedimento que exige um elevado rigor técnico e

uma vigilância apertada, dado o risco de reacções adversas ou de incidentes

de natureza diversa. Por tais razões, a enfermeira desenvolve uma vigilân­

cia contínua e próxima com observação e inquirição frequentes acerca da

evolução do processo.

==================================================================== 170 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

.... A enfermeira J. chega à sala, vigia as perfusões e posiciona­se junta à porta da sala. H. desencosta­se do cadeirão e assim permanece. J. pergunta­lhe se está mal disposto. Aquele nega e explica que tem que mudar de posição por causa da sua coluna.... (DO ­ 250702)

O conjunto destas quatro subcategorias permite à enfermeira ter uma

percepção clara do modo como evolui o nivel de benres tar dos doentes no

que diz respeito aos sinais e sintomas. Todavia, vai mais além porque ao

tomar como centro da sua atenção as preocupações do doente, esta forma de

desenvolver os procedimentos diagnósticos assume, mais uma vez, caracte­

rísticas terapêuticas. Também por aquela razão, estabelece a ponte com a

categoria seguinte (i.e., "Avaliação específica dos sintomas vivenciais"), a

qual complementa a anterior, não existindo, na prática, uma sem a outra.

Passo assim a caracterizar a categoria "Avaliação Específica dos Sinto­

mas Vivenciais". Como complemento da categoria anterior, esta outra carac­

teriza­se por tentar perceber o modo como o doente vive todo o processo a

que está sujeito, quais os sentimentos que lhe estão associados e ainda, de

que ajudas concretas precisa. Estas características resultam das subcatego­

rias encontradas que são^

■S Avaliação da vivência do processo»'

•S Avaliação dos sentimentos!

■S Avaliação das necessidades de ajuda.

A "Avaliação da vivência do processo" tem a ver com os significados que o

doente atribui ao processo como um todo ou a qualquer um dos seus consti­

tuintes (e.g., sinais, sintomas, exames complementares de diagnóstico). É de

grande importância tal avaliação, pela natural especificidade das reacções

individuais, mas também porque existe uma distância abissal entre os signi­

ficados atribuídos pelos profissionais e os atribuídos por quem vive as situa­

ções no papel de doente.

... Uma das doentes estava um pouco inquieta e tinha um fácies aparentemente angustiado, pelo que a enfermeira perguntou­lhe se se estava a sentir mal. A doente respondeu que não se estava a sentir pior... (DO ­ 150702)

... A enfermeira A. fez uma pergunta a Si no sentido de perceber se aquela manifestação de enfado com o tratamento tinha a ver com a emergência de efei­

tos secundários do tratamento. A doente referiu que não era esse o caso... (DO ­

300702)

171 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

Naturalmente que, intrinsecamente associada à subcategoria anterior,

surge esta outra denominada "Avaliação dos sentimentos". Só mesmo por

razões de natureza didáctica pode aparecer separada, porque na prática

quando o doente expõe a sua vivência do processo, concomitantemente expõe

os sentimentos que lhe estão associados. Apesar disso, justifica-se a separa­

ção por duas razões principais. Primeiro, porque pode acontecer que um sen­

timento enquanto tal se torne objecto de avaliação, dada a sua importância

no contexto da vivência. Segundo, porque a avaliação pode construir-se toda

ela à volta dos sentimentos expressos, dada a preponderância que eles assu­

mem num determinado doente.

... A enfermeira A. iniciou as punções. A primeira doente foi a D. SI . A enfer­meira aproveitou para comentar o seu ar triste dizendo-lhe, "A D. SI tem sem­pre um ar tão triste. O que é que se passa?" A doente respondeu atribuindo cul­pas à sua doença e ao tratamento, quer no que ele tem de incómodo pelas sinto­mas que desencadeia, mas também no que ele representa enquanto recordação imposta da sua situação. Lamentou-se dizendo "isto nunca mais acaba!" Sobre os sintomas a enfermeira tentou perceber a sua severidade, fazendo mais per­guntas. Pelas respostas da doente pareceram todos concluir que os sintomas não eram demasiado severos e que a principal preocupação residia no modo como a doente estava a encarar a situação. (DO - 250702)

... A doente explicou que as razões eram essencialmente de natureza vivencial, mas fez questão de sublinhar que essas razões nada tinham a ver com as pes­soas mas sim com a sua cabeça. Explicou ainda que anda muito triste, que se afasta das pessoas e não quer ver ninguém e cada vez que vem ao tratamento é um sofrimento muito grande... (DO - 060802)

Por último, uma referência para a "Avaliação das necessidades de ajuda".

De algum modo, esta subcategoria está subjacente a todas as anteriores, na

medida em que, esta avaliação pode ser apontada como uma das finalidades

de todo o "Processo de Avaliação Diagnostica". Apesar disso existem atitudes

específicas destinadas a tentar perceber em que aspectos concretos é que o

doente mais precisa de ajuda. Tal compreende-se no contexto de uma preo­

cupação latente em diversas categorias, em dar resposta ao que preocupa o

doente e destinar-se-á exactamente a responder aos seus problemas imedia­

tos.

Fica assim completa a caracterização do "Processo de Avaliação Diagnos­

tica", construída a part ir dos dados resultantes da observação. É, contudo,

adequado proceder à evidenciação dos aspectos que considero mais relevan-

Dissertação de Doutoramento 172

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

tes, de modo a poder compará­los com as categorizações de idêntico processo,

construídas a partir de outras fontes e também como forma de perspectivar

a sua integração num todo que nos ajude a compreender o referido processo

enquanto tal e numa perspectiva diacrónica.

Assim, o "Processo de Avaliação Diagnostica" que se desenvolve nas salas

de quimioterapia caracteriza­se genericamente por:

S Avaliar de modo genérico e específico a situação de saúde dos doen­

tes conjugando um tríptico composto por:

o uma perspectiva biomédica,

o uma vivencial, e

o uma de ajuda dos doentes;

S Avaliar de modo sistemático e diacrónico.

Comparando este com idêntico processo ocorrido durante a entrevista de

admissão, são de realçar:

S a continuidade entre eles. Ou seja, este segundo é construído com

base na informação anterior.

S uma focalização, a partir de uma tripla perspectiva, sobre a situa­

ção de saúde e o modo como o doente a vive, a qual é moldada com

base nos dados recolhidos durante a entrevista de admissão e

actualizados em cada reencontro.

■S uma reavaliação sistemática de todo o processo.

4.3.3 ­ O "Processo de Avaliação Diagnostica" a partir das entrevistas às

enfermeiras

Apresento por último o "Processo de Avaliação Diagnostica" tal como foi

categorizado a partir dos dados oriundos das entrevistas às enfermeiras.

Com base nestes dados, o "Processo de Avaliação Diagnostica", engloba dois

conceitos de natureza diferente: o "Modo" e o "Fim". Com o primeiro conceito

(i.e., "Modo") pretende­se caracterizar o modo como o processo de avaliação

diagnostica é construído (ver diagrama 3). Assim, as duas características

fundamentais são o carácter dinâmico e a perspectiva diacrónica. O carácter

173 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação

construção (i.e., nunca acabado), com diversidade de fontes e de meios de

recolha da informação. Isto significa que, existe uma simultaneidade entre a

recolha de informação e a prestação de cuidados. Dito de outra forma, não

existe separação entre um determinado momento de diagnóstico e um outro

subsequente de acção. Também não existe separação entre a recolha de

informação para efeitos diagnósticos e a avaliação dos cuidados prestados.

Ou seja, os dados recolhidos para responder ao primeiro destes objectivos

servem também o segundo. Por estas razões a acção de recolha de informa­

ção está sempre a acontecer e está sempre inacabada.

Diagrama 3 ­ Categorização do "Processo de Avaliação Diagnostica" com base nas entrevistas às enfermeiras.

4 Modo (Como?)—►Dinâmico e diacrónico Processo de ava­ / —avaliação do enquadramento liação diagnosticai

^ /^­rAvaliação das dificuldades Fim (o quê?XC^^

N/rAvaliação dos sentimentos

Avaliação médica

Através do extracto abaixo apresentado percebe­se que o processo de

diagnóstico é lento e continuado no tempo. Exige paciência e atenção aos

pormenores mais subtis, para os quais só se vai ganhando sensibilidade à

medida que se vai conhecendo a pessoa.

... Passados uns dias, quando ela volta outra vez, eu comecei a notar que além da preocupação da filha e da doença, que havia outra preocupação qualquer, que ali não era só aquilo, t inha que haver outra coisa. Pela maneira de estar e como ela reagia assim a determinadas conversas. Porque é normal, às vezes na sala fala­se de maridos, fala_se da vida, do dia­a­dia,... e ali havia qualquer coisa. Mesmo em relação aos pais e isso tudo, ... havia qualquer coisa que não estava bem... (EEL­040702)

Também pelas razões atrás apresentadas se pode dizer que são diversos

os meios e as fontes de informação. Ao mesmo tempo que a enfermeira reco­

lhe informação de natureza objectiva, através dos seus sentidos e relativa ao

cuidado que está a prestar (e.g., punção venosa), pode, em simultâneo, estar

a desenvolver uma interacção verbal com intuito de recolher informação,

Dissertação de Doutoramento

C:k

Page 177: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulcntes c os enfermeiros: Construção de uma relação

relativa ao cuidado que está a prestar ou a outro assunto de natureza dife­

rente (e.g., vivência do processo). Se a recolha de informação for relativa ao

cuidado que está a desenvolver, está a cruzar informação com o objectivo de

ter uma perspectiva global do que está a avaliar. Se a recolha de informação

for relativa a outro assunto, está a desenvolver um processo mais complexo,

na medida em que, sem deixar de dar atenção ao que está a fazer, está tam­

bém a prestar atenção à interacção verbal, centrada noutro assunto (ver

extracto abaixo). Sendo que, este último pode também ter como objectivo a

distracção do doente do cuidado que está a desenvolver.

... eu estive a falar com ela, estive assim um bocadinho, estive fazendo as coisas, pondo os soros e entretanto consegui puxar a conversa para a filha,... (EEL -040702)

Mas a diversidade de meios e de fontes estende-se a outros dominios e

inclui, entre outros, a familia do doente, os amigos e conhecidos (ver extracto

abaixo), o médico, a documentação clinica já organizada em processo e os

exames complementares de diagnóstico.

... Mais tarde apareceu lá assim uma prima dela e eu tentei saber um bocado mais através da prima qual a maneira porque a gente a podia ajudar... (EEL -040702)

O cruzamento de dados, através da diversificação de fontes, é importante,

porém, tal não significa que não se acredite na versão do doente, mas antes

que cada situação tem tantas versões quantas as pessoas envolvidas.

A outra característica do "Processo de Avaliação Diagnostica" prende-se

com o seu carácter diacrónico. Parece quase redundante destacar esta carac­

terística, pois se já foi dito que é um processo inacabado, este outro depreen-

de-se. Contudo, esta característica pretende sublinhar que a informação

recolhida num determinado momento (excepto o primeiro), ganha sentido

num contexto diacrónico. Ou seja, ganha sentido face à informação já detida

e resultante de recolhas anteriores. Assim, o "Processo de Avaliação Diag­

nostica" é simultaneamente um modo de perceber o presente, avaliando o

que se passou entretanto. Isto é, ao mesmo tempo que se diagnostica o pre­

sente, avalia-se a evolução do benres tar do doente nas suas diversas verten-

175 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

tes. Deste modo, cada acção de avaliação da enfermeira constitui-se como

um elo numa cadeia, o qual, para ter sentido precisa de considerar os já

existentes. Esta é a razão pela qual este foi considerado um processo e lhe

foi atribuída a denominação de "avaliação diagnostica". Toda esta informa­

ção é cruzada e o resultado é uma perspectiva simultânea do processo de

saúde e da sua vivência.

O segundo conceito deste processo e que designei por "Fim" (ver diagra­

ma 3), refere-se à categorização da informação recolhida pela enfermeira. Ou

seja, pretende responder à pergunta- que informação recolhe a enfermeira?

É constituída por quatro categorias^

S Avaliação do enquadramento,'

S Avaliação das dificuldades!

S Avaliação dos sentimentos,'

S Avaliação biomédica.

A "Avaliação do enquadramento" compreende a tentativa de contextuali­

zação da informação, desenvolvida pela enfermeira. Ou seja, a par com a

recolha de um determinado dado, a enfermeira tenta compreender o enqua­

dramento do mesmo. Os exemplos possíveis são imensos e vão desde os mais

evidentes, até aos clinicamente mais subtis. Assim, uma manifestação de

dor, enquanto tal, não tem significado. Adquiri-lo-á à medida que a enfer­

meira for recolhendo outros dados que lhe permitam compreender o enqua­

dramento e caracterizá-la devidamente. A mesma coisa se pode dizer relati­

vamente à manifestação de tristeza, de raiva ou de qualquer outro senti­

mento. Os elementos de contextualização percebidos foram, o momento do

ciclo de vida do doente e o contexto pessoal (o qual inclui a doença e a sua

vivência) versus contexto sócio-familiar.

O que acabei de referir é ilustrado pelos extractos abaixo apresentados.

Em qualquer um deles é patente a tentativa de compreender a situação da

pessoa no seu próprio contexto. Ou seja, o significado encontra-se pela con­

jugação das diversas variáveis presentes em cada situação, as quais são

diferentes de pessoa para pessoa.

_ _ _ - _ _ _ _ _ = = _ _ _ _ „ _ _ = = „ _ _ _ _ _ _ „ _ = = = = = „ „ _ _ _ _ _ _ „ = = = = „ = _ _ . . _ „ „ „ „ . 1 7 6

Dissertação de Doutoramento

Page 179: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção cie uma relação

....ele estava muito isolado e muito sozinho, nesta fase. Esteve sempre muito sozi­nho. Nem sequer dos pais. Eu lembro-me perfeitamente que havia assim umas his­tórias incríveis e portanto a única pessoa que o acompanhou sempre foi a mulher... ... toda a gente se afastou, toda a gente. Eram mesmo só um e outro, eram só mes­mo eles, um com o outro. Foi muito duro... (EEA1 - 180702)

... E aquilo que aconteceu com a A. também, teve a ver um pouco com isto, porque era perfeitamente natural, .... ela com 30 anos, acho que ainda não tinha 30 anos, grávida de gémeos, é-lhe diagnosticado um tumor da mama, de uma forma, ainda por cima ... depois toda a revolta, era a revolta por esse diagnóstico e era a revolta por toda a situação, porque ela tinha aquele nódulo há não sei quanto tempo atrás, e o médico que não queria saber daquilo, mandava pôr pomadinhas e não sei quê ... Toda a revolta dela essencialmente baseava-se nisso, baseava-se no facto de o diag­nóstico não ter sido feito e de ela até ser uma pessoa de fazer os exames todos e até ir ao médico e não sei quê e ter-lhe acontecido uma coisa destas. E depois mais que razão tinha ela para estar assim. Por uma lado isso, e por outro lado na idade, por outro lado o estar grávida e tudo isso... (EEA2 - 180702)

....Foi uma senhora que nos apareceu pela Ia vez, (...) e a senhora era uma senhora dos seus 30 e tal anos e na altura, tinha uma miúda com 8. A senhora apareceu, com carcinoma da mama e vinha um bocadinho, vinha muito depri­mida, como é normal... (EEL - 040702)

Em conclusão, poder-se-á dizer que esta categoria está subjacente a todas

as outras deste conceito. Ou seja, de algum modo, serve-lhes de suporte e

dá-lhes significado. Para além disso, percebenrse semelhanças entre esta

categoria e o constatado nos dados resultantes das entrevistas de admissão e

da observação. Em qualquer um dos casos existe a preocupação de contex­

tualizar sistematicamente os dados.

A categoria "Avaliação das dificuldades" compreende o esforço desenvol­

vido pelas enfermeiras na tentativa de identificarem as principais dificulda­

des do doente e familia. Esta categoria caracteriza-se por dois elementos

complementares entre si, mas distintos. O primeiro desses elementos tem a

ver com a avaliação das dificuldades pessoais que exijam uma interacção

próxima. Para tal e como se exemplifica nos extractos abaixo apresentados,

a enfermeira tenta compreender como o doente vive a sua situação e está

atenta a sinais indicativos de necessidade de interacção, resultantes de difi­

culdades vivenciais da mais diversa ordem.

... mas quase nunca falava e eu tentei ajudar, mas não sei até que ponto, porque é muito delicada a situação. (EEJ - 160702)

... Estivemos a falar,.... as condições não eram muito boas em relação,... na altu­ra que havia no serviço, mas conseguiu-se um espaçozinho para falar com ela, porque ela de facto estava.... Eu quando o médico me disse "olhe tem aqui esta

177 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

senhora, vai começar pela primeira vez, veja lá o que a L. pode fazer". E eu vi que a senhora realmente estava apavorada e ... estive fazendo a Ia entrevista, estive falando com ela e a preocupação maior na entrevista foi tentar perceber o que é que ela sabia e qual era o principal pavor que ela tinha... (EEL - 040702)

... Porque ela, quando eu chegava para a picar ou para mudar soros ou qualquer coisa, ela t inha sempre uma chamada de atenção, não referente ao que estava mas ela tentava entrar na intimidade dela, mais. E eu vi que ela estava a preci­sar de falar com alguém... (EEL - 040702)

O segundo elemento, refere-se à compreensão de dificuldades concretas

da relação do doente com a sua circunstância. São disso exemplo as dificul­

dades em continuar a assumir os seus papéis familiares e/ou sociais da mais

diversa ordem, tal como é expresso no extracto seguinte.

... na altura vi que ela estava muito preocupada com o que tinha, mas em para­lelo com a filha. Porque a filha tinha 8 anos e porque as experiências e as coisas que tinha ouvido é que eram pessoas que duravam pouco tempo, tinham um tempo de vida muito curto e ela tinha aquela preocupação com a filha. Isso foi uma coisa na altura que eu fiquei. Fiquei a perceber... (EEL - 040702)

Também neste caso existe sobreposição com o já referido em idêntico con­

ceito, categorizado a partir de outros dados. Ou seja, a avaliação das dificul­

dades está presente quer nas entrevistas de admissão, quer no dia-a-dia da

sala de quimioterapia.

Relacionada de muito próximo com a categoria anterior surge esta outra,

denominada "Avaliação dos sentimentos". Em boa verdade não é possível

compreender as dificuldades dos doentes sem conhecer e compreender os

sentimentos que lhe estão associados, tal como ficou claro nos exemplos

a t rás apresentados. É assim natural que, à semelhança do que aconteceu na

categoria anterior, os sentimentos estejam organizados de acordo com o

doente na relação consigo próprio e com a sua circunstância. A enfermeira

diz assim, avaliar os sentimentos do doente relativos ao modo como vive a

situação, sendo aí patentes os sentimentos de revolta e agressividade, ansie­

dade e tristeza (ver extractos abaixo). Mas também está atenta aos senti­

mentos associados à relação do doente com os outros, nomeadamente os que

decorrem dos seus papéis sócio-familiares.

... falámos muito disso e a preocupação dela era, por um lado, .... ela nessa altu­ra já não falava muito do facto de estar doente e de pensar como é que vai ser o futuro por estar doente, era mais o estar doente e não conseguir dar resposta

Dissertação de Doutoramento 178

Page 181: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

aquilo que os bebés precisavam. Dar resposta àquelas coisas de mães, do que é ter duas crianças pequenas, às higienes, a alimentação,.... (EEA2 - 180702)

... Aí eu percebi qual era o drama dela, aí eu percebi logo que era o drama de, a miúda nem tinha o apoio do pai, que lhe fazia falta naquela altura, uma miúda com 8 anos e que faz bastante falta... (EEL - 040702)

De destacar como característica comum a estas duas últimas categorias,

o seu carácter simultaneamente terapêutico. Ou seja, o facto de a enfermeira

manifestar preocupação com as dificuldades do doente, é terapêutico só por

si, tal como mais à frente se verificará. O mesmo se pode dizer relativamen­

te à avaliação dos sentimentos do doente. Tal permite muitas vezes ao doen­

te a sua expressão e esta é também terapêutica.

Por último, uma referência para a "Avaliação biomédica". Esta engloba

toda a informação relativa ao processo fisiopatológico, bem como ao respecti­

vo tratamento. De algum modo, pode-se dizer desta categoria algo de seme­

lhante ao que se disse da "Avaliação do enquadramento". Isto é, a informa­

ção de natureza biomédica é essencial para contextualizar toda a outra. Ou

seja, as dificuldades e os sentimentos atrás falados precisam de ser contex­

tualizados nesta outra informação para poderem ser compreendidos na sua

totalidade e na especificidade daquele doente. Tal é o caso do exemplo abai­

xo apresentado (EEA1 - 180702).

....Ele tinha um tumor no intestino, foi operado a um tumor e não bastava isso senão ainda depois no pós-operatório ter feito um AVC. Fez um AVC e ficou hemiplégico. (...) mas depois quando se vê hemiplégico, aí é que as coisas fica­ram muito mais complicadas... (EEA1 - 180702)

Todavia, a "Avaliação biomédica" engloba outras vertentes igualmente

importantes. Estou a referir-me à informação necessária ao desenvolvimento

de alguns cuidados de enfermagem, os quais exigem elevado rigor, conheci­

mento preciso e vigilância apertada. A "Avaliação biomédica" é feita direc­

tamente, junto do doente, mas também indirectamente. Neste último caso a

enfermeira serve-se dos dados recolhidos por outros profissionais, nomea­

damente os médicos, mas também dos resultados dos exames complementa­

res de diagnóstico.

Olhando para o "Processo de Avaliação Diagnostica" como um todo, e tal

como foi categorizado a partir dos dados resultantes das entrevistas às

Dissertação de Doutoramento

Page 182: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

enfermeiras, penso que seja oportuno destacar alguns aspectos marcantes.

Primeiro e relativamente ao modo:

S a simultaneidade entre a recolha de informação e a prestação de

cuidados;

S o dinamismo e diacronia do processo!

S a avaliação e re­avaliação sistemática do processo.

Segundo e relativamente ao fim:

■f a centração sobre as dificuldades e os sentimentos do doente;

■S a compreensão de ambos no contexto individual, sócio­familiar e

biomédico do doente.

Constata­se assim, por comparação com idênticos conceitos categorizados

a partir de dados oriundos de outras fontes, que existem sobreposições

diversas. Estas sobreposições não só validam o que foi dito pelas enfermei­

ras, mas validam principalmente a estratégia diagnostica da enfermeira,

enquanto tal.

5.3.4 ­ O "Processo de Avaliação Diagnostica": Perspectiva global

Para concluir a caracterização do "Processo de Avaliação Diagnostica",

falta proceder à sua perspectivação global, assinalando as diferenças e as

semelhanças, bem como as suas características mais marcantes.

Assim, comparando o referido processo a partir das categorizações com

base nos dados oriundos das entrevistas de admissão e da observação, cons­

tata­se que o primeiro tem alguns elementos específicos, os quais se devem

ao facto de aquele ser o primeiro encontro entre a enfermeira e o doente.

Todavia, e para além disso, constata­se que existe continuidade entre eles.

Ou seja, o "Processo de Avaliação Diagnostica" que decorre na sala de qui­

mioterapia é inicialmente construído com base na informação anterior.

Sendo construído em continuidade, o processo que decorre na sala de

quimioterapia diferencia­se pela focalização no doente, a partir de uma tri­

pla perspectiva: a situação de saúde, o modo como o doente a vive e a neces­

sidade de ajuda. Esta perspectiva, sendo moldada com base nos dados reco­

====================——=====================—================== l 8° Dissertação de Doutoramento

Page 183: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

lhidos durante a entrevista de admissão, é actualizada em cada reencontro.

Ou seja, existe uma reavaliação sistemática de todo o processo.

0 "Processo de Avaliação Diagnostica" tal como foi categorizado a partir

das entrevistas feitas às enfermeiras, merece outras considerações uma vez

que o mesmo nos dá uma perspectiva global. Assim e no essencial, posso

afirmar que se verifica uma sobreposição assinalável entre o verbalizado

pelas enfermeiras e o concluído a partir das entrevistas de admissão e do

observado.

Para além disso, pode também afirmar-se que se trata, regra geral, de

um processo desenvolvido intencionalmente pelas enfermeiras, razão pela

qual elas lhe fazem referência nas entrevistas. É também um processo que

resiste ao cruzamento de duas testemunhas, as enfermeiras e o investiga­

dor. Sendo que as enfermeiras o referem nas entrevistas que me concede­

ram, o manifestam nas entrevistas por elas realizadas na minha ausência e

na acção por elas desenvolvida na minha presença. Existem ainda outras

provas importantes da consistência deste constructo, nomeadamente, o facto

de os doentes me terem verbalizado determinado tipo de sentimentos, os

quais são coincidentes com os identificados pelas enfermeiras.

Perspectivando agora o "Processo de Avaliação Diagnostica" como um

todo, diria que este consiste na avaliação/reavaliação da situação do doen­

te/família, na conjugação variável das perspectivas vivencial, biomédica, e

de ajuda, feita de modo contínuo, sistemático, dinâmico e integrado nos cui­

dados. É patente nesta definição, que o foco do processo é o doente e a famí­

lia. E adequado contudo esclarecer que o foco principal é o doente. A família

é foco por intermédio deste, mas, neste contexto, acumula também um papel

de co-responsável pelos cuidados, principalmente durante a semana,

enquanto o doente está em casa.

É também evidente na definição que, no "Processo de Avaliação Diagnos­

tica" se percebe a presença de três perspectivas : vivencial, biomédica, e de

ajuda (ver figura 10). Ou seja, a enfermeira preocupa-se em perceber a evo­

lução da situação do ponto de vista vivencial, do ponto de vista biomédico, as

quais podem estar profundamente interrelacionadas, e do ponto de vista da

181 Dissertação cie Doutoramento

Page 184: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ajuda que a enfermeira pode dar, a qual tem a ver com as necessidades con­

cretas impostas pela condição biomédica e vivencial.

Figura 10 - Perspectivas percebidas no "Processo de Avaliação Diagnos­tica".

Porém, a característica fundamental destas perspectivas é a variabilida­

de da preponderância de cada um dos vectores em função da situação do

doente. Ou seja, é a situação do doente que determina qual ou quais dos vec­

tores de avaliação é que são mais importantes em cada momento. Assim,

estas perspectivas, para além de serem três olhares diferentes sobre um

determinado fenómeno, são sobretudo uma paleta de nuances, na medida

em que a perspectiva biomédica é contextualizada na vivencial e vice-versa e

por sua vez a perspectiva de ajuda é contextualizada nas duas anteriores.

Deste modo, a perspectiva presente no "Processo de Avaliação Diagnostica",

resulta de uma conjugação de perspectivas de geometria variável. Ou seja,

uma conjugação em que, uma ou outra das perspectivas poderá ou não

ganhar maior preponderância, mas não existindo umas sem as outras.

Sobre a natureza do processo, é de realçar o seu carácter contínuo, siste­

mático e dinâmico. Isto é, após a entrevista de admissão, não se pode dizer

que exista um momento específico dedicado à avaliação da situação e outro à

- ~ _ ™ _ - ™ „ _ _ _ _ _ _ ™ _ „ _ _ „ _ _ „ _ „ „ „ „ _ „ _ „ _ „ . | 8 2

Dissertação de Doutoramento

Page 185: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

intervenção. A avaliação faz_se sistematicamente, mas sempre a partir do

que já se sabe. Isto permite um sistemático aprofundamento do conhecimen­

to e uma sistemática reavaliação da situação (ver figura 11). Assim, este

processo é sobreponível com o "Processo de Intervenção Terapêutica de

Enfermagem", mais à frente definido. Ou seja, o "Processo de Avaliação

Diagnostica" está diluido na acção que a enfermeira vai desenvolvendo junto

do doente e da família.

S W O p o p o

H i—i O w o o o

Figura 1 1 - 0 "Processo de Avaliação Diagnostica" - evolução conside­rando as dimensões: temporal e conhecimento do doente.

O que o ctòente sabe

O que preocupa o doente Avaliação genérica da

situação de saúde

Avaliação específica dos \sintomas vivenciais

Avaliação específica dos sintomas somáticos

Estratégias/capacidades do doente

Io Encontro Reencontros Sucessivos

DIMENSÃO TEMPORAL

Faz ainda parte da natureza deste processo o seu carácter terapêutico.

Este é intrínseco ao facto de o "Processo de Avaliação Diagnostica" ser uma

manifestação de interesse e preocupação pela pessoa e ao mesmo tempo, se

traduzir numa concessão de espaço/tempo para a verbalização das preocupa­

ções dos doentes e famílias.

Neste contexto, e em resumo, o "Processo de Avaliação Diagnostica" ini-

cia-se antes de o doente e a enfermeira se conhecerem formalmente, com a

183 Dissertação de Doutoramento

Page 186: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

recolha de informação biomédica e outra, feita pela enfermeira; tem um

momento de especial importância na entrevista de admissão, na qual se ten­

ta perceber o que o doente sabe, o que o preocupa e quais as suas capacida­

des e estratégias, por comparação com o que a enfermeira já sabe; e é actua­

lizado em cada reencontro, tentando perceber a evolução do ponto de vista

médico e vivencial, na perspectiva de ajuda e coincidindo com a "Processo de

Intervenção Terapêutica de Enfermagem" (ver figura 12).

A grande finalidade do "Processo de Avaliação Diagnostica" é compreen­

der a forma como é vivida a doença, pelo que precisa de compreender os seus

sinais e sintomas, e a ajuda que a pessoa precisa para tentar ultrapassar as

dificuldades colocadas pela situação. Na prossecução desta finalidade a

enfermeira usa a sua capacidade de compreensão na tripla perspectiva atrás

enunciada, e a sua capacidade de avaliação contínua, sistemática e dinâmi­

ca.

Figura 12-0 "processo de avaliação diagnostica"- Perspectiva global

0 que o doente sabe o lÒj o 1 II 03 O

-O a)

M | 8 1

/

0 que o doente sabe o lÒj o 1 II 03 O

-O a)

M | 8 1

0 que preocupa o doente

o lÒj o 1 II 03 O

-O a)

M | 8 1

N Estraté­gias/capacidades do

doente

Estraté­gias/capacidades do

doente

(Re)avaliação específica dos sintomas vivenciais

(Rp)ávaliaçâo especifica íós sintomas somáticos

Entrevista de Admissão Sucessivos Reencontros

Na sequência desta definição do "Processo de Avaliação Diagnostica",

torna-se necessário compará-la com o que diz a l i teratura sobre tal processo.

As razões pelas quais optei pela presente designação já atrás foram apresen­

tadas. Tenho porém, consciência de que se t ra ta de uma designação nova,

uma vez que não encontrei designação semelhante. Apesar disso, tem seme-

- 184 Dissertação de Doutoramento

Page 187: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

lhanças com o encontrado na literatura. Senão vejamos. Desde a década de

60 do século passado que foi introduzida na li teratura de enfermagem, pro­

posto pela primeira vez por Orlando (1961), a expressão "processo de enfer­

magem". Aquela autora propôs tal expressão no contexto da relação enfer­

meiro/doente. Entendia que uma situação de enfermagem compreende três

elementos básicos: o comportamento do doente; a reacção da enfermeira; e as

acções da enfermeira que foram planeadas para beneficio do doente. A inte­

racção mútua destes elementos, constituem o que Orlando (1961) designou

como o "processo de enfermagem".

Contudo, esta conotação inicial com a relação foi-se perdendo à medida

que o conceito evoluía (Varcoe, 1996). Mais tarde, o conceito foi trabalhado

por um grupo de teóricas da Universidade Católica da América, as quais

delinearam as suas diversas fases. De acordo com Mason & Attree, (1997),

quer a proposta inicial de Orlando (1961), quer este trabalho posterior, for-

necerrrnos indicadores que sugerem que o processo de enfermagem tem as

suas raízes na teoria geral dos sistemas de Von Bertalanffy. Por esta ordem

de ideias, o processo de enfermagem seria um sistema, constituído por diver­

sos subsistemas, os quais seriam os seus diversos componentes ou fases (ver

figura 13).

Figura 1 3 - 0 modelo do processo de enfermagem baseado na teoria geral dos sistemas

Fonte: Mason & Attree, 1997

Apesar da identificação desta raiz teórica, na enfermagem nunca foi

desenvolvido um trabalho sistemático de definição dos limites do sistema ou

das relações clínicas entre os seus subsistemas (Mason & Attree, 1997). O

185 Dissertação de Doutoramento

Page 188: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

processo de enfermagem tem sido usado essencialmente como um instru­

mento para a prática dos cuidados. Ou seja, trata-se de um conceito pensado

pelos teóricos, que, podendo ter múltiplas utilidades, nomeadamente na

investigação, acaba por ser proposto como orientador da prática.

Talvez por essa razão ou pela forma como foi implementado, o processo

de enfermagem teve alguma dificuldade em ser aceite. Tal foi o que aconte­

ceu em Inglaterra durante os anos 70 do século XX, onde, apesar dos líderes

fazerem a apologia deste modelo para a prática dos cuidados (MacFarlane,

1976, 1977), se constatou uma dificuldade enorme na sua implementação

(Mason & Attree, 1997). Também em Portugal se verificou idêntico fenóme­

no, ainda que mais tarde.

Concomitantemente, têm-se desenvolvido algumas críticas ao processo de

enfermagem, tendo estas, no entanto alguma polarização. Ou seja, tanto

pode receber uma determinada crítica como a oposta. Contudo, as mais con­

tundentes atribuem-lhe epítetos como, reducionista, dedutivista, burocrático

e ainda de criar uma barreira entre o enfermeiro e o doente (McHugh, 1986;

Hagey & McDonough, 1984, Barnum, 1987, Henderson, 1987, Fonteyn &

Cooper, 1994).

Benner (1984) produziu uma crítica de natureza um pouco diferente ao

processo de enfermagem, realçando nomeadamente que o mesmo pode

reprimir a criatividade, o raciocínio intuitivo e o desenvolvimento de com­

portamentos de perícia. Como que a dar força a estes argumentos Field

(1987) e Fonteyn & Cooper (1994), assinalaram que é menos provável que os

enfermeiros peritos usem o processo de enfermagem como um sistema com­

pleto, baseando-se mais na intuição e/ou nos julgamentos clínicos alicerça­

dos na experiência.

Apesar destes posicionamentos Meleis (1987, 1991, 1997), ao definir os

conceitos fundamentais do domínio de enfermagem propõe o "processo de

enfermagem" como um dos constituintes desse núcleo. Ao atribuir-lhe esta

centralidade, confere-lhe uma elevada importância. Apesar disso, reconhece,

por um lado, que existe muita falta de investigação, e por outro, alguma con­

trovérsia acerca deste conceito. Assim, esta autora entende que se devem

_ = _ _ = - _ _ _ _ _ = = = _ _ _ _ _ = = = = = = = = = _ _ = = = = = _ „ _ _ „ = = = _ _ _ „ „ „ = _ _ _ _ . _ „ _ _ _ _ . . , 8 6

Dissertação de Doutoramento

Page 189: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

desenvolver estratégias no sentido de ultrapassar as criticas polarizadas que

se têm produzido. Propõe que haja uma maior concentração no dominio

especifico de enfermagem, com investigação sobre questões concretas como

por exemplo, o processo de enfermagem no cuidado aos idosos ou no cuidado

a pessoas submetidas a quimioterapia. Deste modo, desenvolver-se-iam

diversas teorias relacionadas com o processo de enfermagem, fundamentan­

do de modo substantivo este conceito e contribuindo para a melhor caracte­

rização do domínio de enfermagem. Meleis (1987, 1991, 1997) entende ainda

que o movimento dos diagnósticos de enfermagem pode ser encarado sobre

este ponto de vista. Ou seja, como uma forma de investigar e teorizar um dos

componentes do processo de enfermagem. Este movimento teve a sua origem

nos Estados Unidos da América, sendo muito impulsionado pela North Ame­

rican Nursing Diagnoses Association (NANDA), a qual define diagnóstico de

enfermagem como, um julgamento clínico sobre a resposta da pessoa, famí­

lia ou comunidade a um problema de saúde actual ou potencial e o qual pro­

videncia a base para a intervenção terapêutica e para o alcançar dos objecti­

vos pelos quais os enfermeiros são responsáveis (Carpenito, 1991). De acordo

com esta definição percebe-se que o quadro conceptual que lhe está subja­

cente é o denominado "padrões de resposta humana". Este quadro concep­

tual divide o estado de saúde da pessoa em nove padrões de resposta huma­

na (i.e., trocas, comunicação, relação, valorização, escolhas, percepção,

conhecimentos e sentimentos), com base nos quais, um grupo de trabalho,

estruturou uma taxionomia de diagnósticos de enfermagem (Carpenito,

1991; Sorensen & Luckmann, 1998). Essa taxionomia foi proposta e aceite

na 7a conferência da NANDA, tendo sido revista várias vezes desde então.

Como alternativa a esta taxionomia diagnostica, nos anos 80, foi propos­

ta uma outra por Gordon (1987), a qual radicava no conceito de "padrões de

saúde funcionais". Com base nesta perspectiva, a construção do diagnóstico

de enfermagem pressupõe a recolha de informação acerca das 11 categorias

funcionais (i.e., percepção de saúde-gestão de saúde! nutrição-metabolismo!

eliminação; actividade-exercício; sono-repouso,' cognição-percepção! auto-

percepção,' papéis e relações sociais,' sexualidade-reprodução; coping-

187 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

tolerância ao stress; valores-crenças). A grande diferença face ao anterior

sistema taxionómico é que, com base neste, se está atento a um determinado

padrão de funcionamento e não a um momento. Torna-se assim possível, não

só perceber os padrões disfuncionais ou diagnósticos de enfermagem, mas

também os padrões funcionais ou pontos fortes da pessoa.

Entretanto o Conselho Internacional das Enfermeiras {International

Council of Nursing - ICN) tem vindo a desenvolver, há alguns anos a esta

parte, uma taxionomia diagnostica designada, Classificação Internacional

para a Prática de Enfermagem (CIPE). Esta taxionomia pretende ser uma

classificação de fenómenos, acções e resultados de enfermagem que descre­

vam a prática (CIE, 2000). São múltiplos os projectos que têm sido levados a

cabo em diversos países com base nesta taxionomia. Também em Portugal

se processa idêntico fenómeno com diversos projectos em curso em diferentes

serviços, algumas vezes suportados em trabalhos de investigação, como é o

caso de Silva (2001).

Face a isto, como se pode compreender o "Processo de Avaliação Diagnos­

tica"? De acordo com a definição atrás produzida, é indubitavelmente, o

modo encontrado pelas enfermeiras para perceberem a situação dos doentes,

na conjugação das perspectivas, vivencial, biomédica, e de ajuda, de modo a

poderem prestar os cuidados respectivos. Ou seja, é um processo de raciocí­

nio clínico utilizado pelas enfermeiras, que culmina num diagnóstico descri­

tivo sistematicamente actualizado, tal como é expresso nos "sucessivos reen­

contros". Nesta acepção, o "Processo de Avaliação Diagnostica" é um elemen­

to de um processo mais amplo que será o processo de cuidados ou processo

de enfermagem.

Assim sendo, o "Processo de Avaliação Diagnostica" compreende clara­

mente uma componente diagnostica. Contudo, e de acordo com os dados, não

se pode dizer que esta componente diagnostica seja conduzida sempre de

modo absolutamente consciente e no sentido de atribuir um rótulo diagnós­

tico a uma determinada situação. Vem, de algum modo, ao encontro da pro­

posta de Benner (2001), quando descreve o modo de agir das enfermeiras

peritas. Diz aquela autora que "a perita, que tem uma enorme experiência,

Dissertação de Doutoramento

Page 191: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

compreende, (...) de maneira intuitiva cada situação e apreende directamen­

te o problema sem se perder num largo leque de soluções e diagnósticos esté­

reis" (Benner, 2001, p. 58). Isto parece ser o que acontece com algumas das

enfermeiras. Principalmente o observado na prática das enfermeiras, parece

orientar-se neste sentido. Recordo que atrás, quando procedi à análise dos

dados, fiz referência a uma certa capacidade de apreensão gestáltica que as

enfermeiras parecem manifestar e que as leva a dirigirem-se a um doente e

não a outro, a fazerem uma determinada pergunta e não outra qualquer.

Será que esta capacidade resulta dessa perícia acumulada, mesclada por um

elevado conhecimento de cada doente? As diferenças verificadas entre as

enfermeiras e já referidas noutros momentos, reforçam o que acabei de

dizer. Ou seja, no grupo que participou neste estudo, as enfermeiras que

conjugam uma certa experiência, com uma determinada atitude reflexiva,

com a formação, parecem demonstrar de modo mais evidente esta capacida­

de.

Relativamente ao rótulo diagnóstico, entendido este no sentido abreviado

em que é usado por quase todas as taxionomias vigentes, parece não existir.

Efectivamente o que parece existir é um rótulo descritivo o qual evidencia de

modo variável, em função da situação, as características essenciais da mes­

ma. Este traduz a leitura que a enfermeira faz da situação e engloba ele­

mentos da tripla perspectiva que a enfermeira usa ao olhar para a mesma,

ou seja, vivencial, biomédica e de ajuda. Esta perspectiva é perceptível

essencialmente nas interacções entre as enfermeiras, quando trocam infor­

mações entre si acerca dos doentes e respectivas famílias ou quando são

questionadas acerca de um doente.

Uma outra característica específica do "Processo de Avaliação Diagnosti­

ca" e que se enquadra na perspectiva de Benner (2001), atrás referida, é a

sua utilização como um instrumento imbuído na acção e dificilmente des-

trinçável da mesma. Ou seja, tal como já foi referido e excepto num primeiro

momento, não existe separação entre um momento de avaliação diagnostica

e um posterior de planeamento e de acção. A avaliação diagnostica está

imbuída nos cuidados, numa relação de tal modo próxima que se torna difícil

189===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 192: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

perceber onde começa e onde acaba. Contudo, está presente porque se perce­

be que a acção não obedece a uma rotina, sendo antes alterável constante­

mente em função da situação que a enfermeira tem perante si. Por outro

lado e excepto no primeiro encontro, este instrumento é ao mesmo tempo de

avaliação e re-avaliação da situação da pessoa ou da família ao longo do

tempo.

Ao evidenciar estas características, pretendo insinuar que o processo de

enfermagem não é utilizado na prática dos cuidados? Não, de todo. Entendo

tão só, na linha de pensamento de Meleis (1991, 1997), Benner (2001) e

Chenitz & Swanson (1984), que o processo de enfermagem é, em primeira

análise, o processo de raciocínio clínico do enfermeiro e que as característi­

cas do mesmo poderão estar relacionadas com o contexto onde aquele desen­

volve a sua prática de cuidados. Por esta ordem de ideias, entendo ainda que

o mesmo carece de ser investigado, desvendando-se não só as características

do processo, mas também as características do diagnóstico propriamente

dito. É também nesse sentido que Chenitz & Swanson (1984), propuseram

um sistema que denominaram como "trazendo à superfície o processo de

enfermagem". Este consiste basicamente no desenvolvimento de um traba­

lho indutivo que permita identificar sistematicamente, descrever e analisar

a dimensão processual de enfermagem inerente e enraizada na prática quo­

tidiana.

Por último, uma referência para um outro aspecto que reputo de grande

importância. Recordo que o desiderato deste trabalho é compreender a natu­

reza da relação enfermeiro/doente num determinado contexto. Dado que

estou a falar da acção de profissionais de saúde, considero razoável dizer que

é expectável que a mesma tenha características terapêuticas. Contudo, tal

só se verificará se assentar num processo de avaliação diagnostica dinâmico

que lhe permita 1er de igual modo a realidade e responder de acordo com

isso. Penso que o "Processo de Avaliação Diagnostica" tal como aqui foi apre­

sentado, reúne essas características e adquire, assim, uma importância cen­

tral no processo de relação enfermeiro/doente. Ou seja, o "Processo de Ava-

_ = = = = = = = - _ _ _ = = = = = = = = = = - - _ _ _ „ = = = = = = = - _ _ _ = = = = = = = = = = = _ „ _ _ _ „ _ _ _ _ „ _ „ | 9 0

Dissertação de Doutoramento

Page 193: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

liação Diagnostica" torna-se assim num elo fundamental na intervenção

relacional terapêutica desenvolvida pela enfermeira.

Recordo a propósito o conceito de processo de enfermagem de Orlando

(1961), o qual entrava em linha de conta com, o comportamento do doente, a

reacção da enfermeira e as acções da enfermeira planeadas para benefício do

doente. O "Processo de Avaliação Diagnostica", compreendido neste contex­

to, seria como que o catalizador que permitiria a inter-relação entre aqueles

elementos.

Ou seja, e para concluir, a intervenção relacional terapêutica pressupõe

um processo de enfermagem (Smith, 1991) e este não pode existir sem uma

qualquer forma de avaliação diagnostica.

5.4 - A NATUREZA DA RELAÇÃO ENFERMEIRO-DOENTE: O "PRO­

CESSO DE INTERVENÇÃO TERAPÊUTICA DE ENFERMAGEM"

Na caracterização do "Processo de Intervenção Terapêutica de Enferma­

gem", procederei de modo semelhante ao anterior. Ou seja, apresentarei o

constructo tal como foi categorizado a partir dos dados resultantes das

diversas fontes (i.e., entrevistas às enfermeiras, entrevistas de admissão,

observação e entrevistas aos doentes), realçando as semelhanças e diferen­

ças. Terminarei identificando as características fundamentais do constructo,

e a sua evolução ao longo do processo de relação.

Sobre o "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" começo

por salientar que se t ra ta de um constructo que congrega o essencial da

intervenção da enfermeira junto do doente. Sendo assim, e se tivéssemos

como referência uma perspectiva linear da acção do enfermeiro, seria pres­

suposto que a mesma ocorresse após o "Processo de Avaliação Diagnóstico".

Contudo e por força de algumas das características que atrás atribuí aquele

processo, existe claramente uma sobreposição no tempo entre a ocorrência

da avaliação diagnostica e da intervenção (ver figura 14). Assim, pode-se

dizer que o "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" se inicia

durante a entrevista de admissão, momento do primeiro encontro entre a

enfermeira e o doente, e se prolonga no tempo até ao final da relação.

191 Dissertação de Doutoramento

Page 194: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Figura 14 ­ "Processo de Avaliação Diagnostica" versus "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem ­ evolução consi­

derando a dimensão temporal.

Legenda: "Intervenção Terapêutica de Enfermagem" —► "Processo de Avaliação Diagnostica" ►

De algum modo, pode­se afirmar que o início é discreto, pois não se conse­

gue estabelecer com precisão, qual é o momento durante a entrevista de admis­

são, em que a enfermeira, paralelamente à avaliação diagnostica, inicia um

registo diferente vocacionado para a intervenção. Pode­se contudo perceber que

a partir de um determinado momento, aquela começa a utilizar elementos que

lhe foram fornecidos pelo doente para dar início a um processo diferente.

5.4.1 ­ O "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" a partir

das entrevistas de admissão

Considerando o carácter evolutivo desta intervenção, começarei por a carac­

terizar com base nos dados recolhidos a partir das entrevistas de admissão.

Assim, e como primeiro elemento desta caracterização, destacam­se os dois con­

ceitos principais deste constructo, "Gestão de sentimentos" e "Gestão da infor­

mação". Na prática clínica, um e outro estão intrinsecamente interligadas e

complementam­se. Pode contudo, acontecer que em determinados momentos,

um ou outro ganhe alguma preponderância na acção.

5.4.1.1 ­A "gestão de sentimentos"

Começo por caracterizar a "Gestão de sentimentos", justificando a sua

designação. A l i teratura consultada não é unânime relativamente à designa­

ção mais adequada, parecendo prevalecer, por vezes, uma certa confusão

­ — ­ _ _ ™ _ _ ^ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ ^ _ _ _ _ _ _ _ . _ _ _ _ « _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ » _ _ _ , 9 2

Dissertação de Doutoramento

Page 195: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

conceptual entre sentimento e emoção (Strongman, 1998). A falta de unani­

midade é ainda mais evidente no que se refere à taxionomia das emoções ou

dos sentimentos. Face a isto, decidi optar pela proposta de Damásio (1995,

2000). Este autor diz que uma emoção pode sempre gerar um sentimento se

desenvolvermos o necessário mecanismo de consciencialização da relação

entre o objecto e o estado emocional do corpo (Damásio, 1995). Ou seja, o

sentimento é um outro patamar especificamente humano, uma vez que

envolve a consciência. Este outro patamar dá-nos "flexibilidade de resposta

com base na história específica das nossas interacções com o meio ambiente"

(Damásio, 1995, p. 148). Assim, e de acordo com este autor, podem existir

emoções sem sentimentos, emoções com o correspondente sentimento, mas

também sentimentos sem a emoção respectiva. Estes últimos são o que

Damásio (1995, 2000) chama os sentimentos de fundo, os quais têm um

carácter mais persistente (mais estável) e dão tonalidade à nossa forma de

estar no mundo, tendo uma relação directa com a motivação e com o estado

de humor.

Face ao exposto entendo que a intervenção das enfermeiras é dirigida à

gestão dos sentimentos por duas ordens de razões. Primeiro porque se dirige

aos sentimentos expressos pelos doentes. Pelo que, se os expressam é porque

têm consciência deles. Segundo, porque se dirige também ao estado de humor

percebido dos doentes, correspondendo este a um sentimento de fundo.

A justificação para começar a caracterização pelo conceito "Gestão dos

Sentimentos", é-me dada pelos doentes. São eles que dizem que quando che­

gam a este serviço estão cheios de medo, ansiedade, abatimento e fragilida­

de. Ou seja, o que predomina são os sentimentos, muitos deles "à flor da

pele". Para além disso, no momento em que a enfermeira e o doente se

encontram pela primeira vez, aquela pode não saber mais nada sobre o

doente, para além dos dados de natureza biomédica. Apesar disso, e porque

os sentimentos são demasiado evidentes, sendo que a enfermeira também os

intui pela experiência clínica que detém, ela pode de imediato começar a

geri-los. Relativamente aos modos como o faz, separei-os em duas categorias

(ver diagrama 4)'

193 Dissertação de Doutoramento

Page 196: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

S Gestão da expressão de sentimentos;

S Gestão dos sentimentos expressos.

Diagrama 4 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" Gestão de Sentimentos (entrevistas de admissão).

^Concessão de espaço e apoio na áGestão da exprès- / expressão de sentimentos são de sentimentos i |„ , _ , ..

rautar expressão de sentimentos ^Racionalização áDesmitificação llNão generalização f Explicação dos sintomas Transmissão de segurança

\ Antecipação e proposta de soluções Outros

Oferta de disponibili­dade

Gestão dos senti-/ mentos expressos

Jncentiva/enqu-' adra a esperança

Disponibiliza contacto personalizado )isponibiliza espaço para

/colocação de dúvidas )isponibiliza ajuda para

resolver problemas Disponibiliza cronograma

, personalizado Disponibilidades diversas

jlncentivo genérico da esperança

Incentivo específico da esperan­ç a (com base em dados clínicos) 'Incentivo da esperança de con­trolo dos efeitos secundários Define os limites da esperança

Incentiva esperança de retorno à vida normal

icentiva capacidade de luta

A primeira categoria (i.e., "Gestão da expressão de sentimentos") justifr

ca-se porque, a enfermeira é detentora da experiência clinica que lhe permi­

te saber que os doentes chegam "cheios" de sentimentos. Apesar disso, acon­

tece muitas vezes uma de duas situações^ ou a inibição perante uma pessoa

estranha (i.e., a enfermeira) se impõe e impossibilita a expressão de senti"

194 Dissertação de Doutoramento

Page 197: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

mentos pelo doente; ou então este "descarrega" uma avalanche de sentimen­

tos sobre a enfermeira. Por tais razões, frequentemente a enfermeira precisa

de gerir a expressão de sentimentos utilizando uma de duas estratégias,

respectivamente: ou concede espaço e apoia a expressão de sentimentos; ou

então pauta a expressão de sentimentos, tentando que os mesmos sejam

expressos, mas paulatinamente.

Nos dois exemplos abaixo apresentados, constatanrse duas formas dis­

tintas de conceder espaço à expressão de sentimentos. No primeiro caso

estamos perante um incentivo não verbal e de natureza compreensivo e

compassivo da expressão de sentimentos. No segundo, trata­se de uma con­

cessão verbal de espaço para expressão de sentimentos.

...D.A.— Ninguém me t inha dito isso. E ele disse­me .... mostrou assim uma maneira, como quem diz "olha a franqueza dela, a foiteza". Pronto eu estou aqui para aquilo que Deus quiser. Não me importo e não tenho prazer nenhum da vida {aqui emocionouse e a sua voz embargouse), já não vale a pena {a enfer­

meira agarrou­lhe as mãos com as suas). Enfrento a vida .... enfrento a morte como enfrento a vida. E depois disse­lhe "Sr. Dr°, eu o que tenho é um cancro". E lá em casa todos sabiam, mas ninguém me queria dizer nada.... (EAA ­ 070502)

...Esposa ­ A doença .... o cancro. É assim que a Sra enfermeira quer que eu lhe diga não é? O meu marido também sabe porque o Dr. já lhe disse. A gente tam­

bém tem que t ra tar as coisas como elas são {emocionouse e ficou chorosa). Sr. C. ­ Eu t inha era dores de barriga .... E n f ­ Pode chorar {dirigindo­se à esposa), pode chorar à vontade.... (EAC ­

220402)

O exemplo que se segue é demonstrativo de um certo modo de pautar a

expressão de sentimentos. De facto constata­se um tom, utilizado pelo doen­

te, que é um misto de desânimo com uma certa agressividade. Em determi­

nado momento, a enfermeira, parece introduzir um elemento estranho no

diálogo, com o objectivo de interromper este tom. Para o efeito focaliza a

atenção num elemento concreto, ainda não valorizado pelo doente'■ o penso.

Deste modo, interrompeu e desviou o curso do diálogo.

...Enf ­ Queria que me contasse um bocadinho o que é que se passa consigo. Sr. F. ­ Ah, o que é que se passa comigo... Enf ­ Sim. Sr. F. ­ O que é que a Sra quer que lhe diga do que é que se passa comigo? E n f ­ Quero que o sr. me diga o que é que se sabe do que é que se passa consigo, o que é que lhe disseram .... Sr. F. ­ O que se passa comigo é que há 2 meses ou 3 que ando nesta vida e ... pronto não há meio. Vim para aqui para o hospital há 2 meses.

195===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 198: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os entermeiros: Construção de uma relação

E n f ­ Aqui p a r a es te hospi ta l? Sr. F. ­ Sim. Acho que começaram por retirar aqui um gânglio, daí para a frente começaram a fazer análises ... Enf1 ­ Ainda tem aí o penso para fazer, não é? Sr. F. ­ .... e o gânglio .... não o penso já foi depois ... tinha aqui uns coisinhos para tirar.... Enf ­ Então e ainda usa aí o penso?... (EAF ­ 150702)

Esta última estratégia pode ser entendida de dois modos diferentes e não

necessariamente mutuamente exclusivos. Como forma de defesa do doente.

Isto é evitando que o doente se exponha demais perante um desconhecido o

que poderá conduzir a bloqueamentos futuros. Ou então evitando sentimen­

tos com os quais tem dificuldade em lidar. Pode ainda ser utilizada como

forma de a enfermeira se defender de uma avalanche de sentimentos que

não conseguirá gerir.

A concessão de espaço e apoio à verbalização é porém, a situação mais

frequente. Caracteriza­se pela concessão de espaço físico concreto e de tem­

po, uma vez que as entrevistas de admissão decorrem em gabinete próprio,

em ambiente de privacidade e sem limite de tempo muito rígido. Para além

disso, a enfermeira adopta uma atitude de apoio não verbal à expressão de

sentimentos. Esta passa pelo modo como se coloca no espaço face ao doente

(ver figura 15), mas também pelo modo como o toca, principalmente em

determinados momentos ou como guarda silêncio em alguns outros, tal como

ficou patente no exemplo atrás apresentado. E ainda por mensagens verbais

de reconhecimento da dificuldade da vivência do doente, valorização do sofri­

mento e estimulação da sua manifestação, manifestação de compreensão

pelo desânimo do doente, entre outras.

Figura 15 ­ Croqui do posicionamento da enfermeira e do doente durante a entrevista de admissão

■̂ Cadeira da enfermeira

Cadeira da doente

familiar

Dissertação de Doutoramento

Page 199: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Todavia, a maioria do esforço no que diz respeito à "Gestão de sentimen­

tos" é dirigida para a "Gestão dos sentimentos expressos". Como oportuna­

mente mostrarei, os sentimentos dos doentes são expressos em quase tudo o

que diz e faz. Ou seja, o medo, a ansiedade, a angústia, entre outros, podem

não ser expressos de forma linear, escondendo-se antes atrás de cada olhar,

de cada pergunta ou de cada silêncio.

Deste modo, a gestão dos sentimentos expressos serve-se de um conjunto

muito diversificado de instrumentos, muitos dos quais se confundem com a

"Gestão de informação" ou se diluem em atitudes e gestos extremamente

difíceis de captar. Os principais instrumentos categorizados com base nos

dados resultantes das entrevistas de admissão podem distribuir-se por dois

grupos e são^

•/ Promoção da confiança

o Racionalização,'

o DesmitificaçãO)'

o Não generalização;

o Explicação dos sintomas;

o Transmissão de segurança,'

o Antecipação e proposta de soluções

o Oferta de disponibilidade!

•S Incentivo da esperança e perseverança

o Incentivo/enquadramento da esperançai

o Incentivo da capacidade de luta.

A "Promoção da confiança" visa dar resposta a um conjunto de sentimen­

tos (e.g., medo, insegurança, angústia, ansiedade) frequentemente expressos

pelos doentes e normalmente associados à doença oncológica e a esta fase

específica do processo (i.e., início de tratamento quimioterápico). A "Promo­

ção da confiança" consubstancia-se através dos vários instrumentos que a

integram e que passarei a caracterizar.

A "racionalização" consiste na atitude da enfermeira de explicar as

razões da existência de determinado sentimento, servindo-se para o efeito de

argumentos que têm a ver com a natureza médica e/ou psicossocial da situa-

197 Dissertação de Doutoramento

Page 200: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros; Construção de um;i relação

ção. É um instrumento normalmente usado perante a manifestação de

determinado tipo de sentimentos reactivos do doente, tais como tristeza,

desalento, ansiedade, entre outros. Digamos que pretende transmitir uma

mensagem de normalidade da existência e da manifestação daqueles senti­

mentos, tal como é patente nos exemplos seguintes.

...Sr. F. - A minha cabeça não dá mesmo para nada, isto está numa situação que não ... E n f — É perfeitamente natural.... (...) Sr. F. - Muitos, muitos. É a vida,... isto pode resultar não é, isto tem pessoas que .... mas ... Enf1 - É perfeitamente natural que o sr. se sinta assim.... (...) Sr. F. - Eu cheguei a ver pessoas que detestam. Não podia ver pessoas a conversar que ficava tão ... Enf" - E perfeitamente natural Sr. F.. Sr. F. - ...abalava para o quarto .... E n f - As pessoas não fazem isso por mal, porque querem saber, mas quem está dentro da doença, é muito complicado.... (EAF - 150702)

D. L. - (...) Fora isso eu estou nervosa claro. E n f - Pois isso é natural, e é o primeiro dia e não sabe o que é e isso tudo, não é? (EAL3 - 100702)

A "desmitificação" insere-se na mesma linha de raciocínio do anterior,

contudo, neste caso centra-se sobre situações concretas, normalmente mitifi­

cadas pelo doente e às quais está associado um ou vários sentimentos (e.g.,

medo das repercussões de um hipotético atraso no início do tratamento,

mitificação da quimioterapia, incompreensão e mitificação do jargão técnico

ou dos resultados analíticos). Face a isto a enfermeira desenvolve uma

intervenção de explicação e/ou demonstração desmitificadora da situação,

numa atitude de calma mas com convicção no que está a dizer. Para acen­

tuar esta convicção serve-se muitas vezes da sua experiência e de exemplos

de outros doentes. O exemplo abaixo apresentado, refere-se à desmitificação

dos possíveis efeitos prejudiciais do atraso no início da quimioterapia.

...Enf - Por isso este tempo todo .... Porque o que é normal, quando a pessoa é ope­rada, mais ou menos no prazo de um mês, deve começar a fazer os tratamentos. Por isso é que ele já está atrasado. Mas também no caso dele é um bocadinho diferente, porque é assim, porque ele teve um penso que se manteve durante quase um mês, não é? Também foi por causa disso. E enquanto tem ainda a ferida aberta não pode fazer quimioterapia. Está bem? Por isso, muito atrasado não, não pen­se nisso, porque, por ele ter esse penso assim, mesmo que tivesse vindo cá à con-

Disscrtação de Doutoramento

Page 201: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

sulta não podia iniciar os tratamentos. Portanto se calhar estamos na altura certa de começar.... (EAC ­ 220402)

A desmitificação pode ainda servirse de um outro instrumento que é a

"Não generalização" (ver extracto abaixo). Porque a enfermeira conhece a

representação da doença, do serviço e do tratamento, frequentemente, tenta

desmitificar as situações fazendo apelo para a não comparabilidade das

situações entre as pessoas. Também porque sabe que, na sala de espera, os

doentes parti lham experiências e que tal pode ser devastador para quem

está a chegar.

...Enf* ■ E assim, o t ratamento que o Sr. vai fazer é uma coisa simples, não é daqueles tratamentos ... também porque isto, como sabe, o cancro é diferente, consoante o sítio onde está implementado, consoante está numa fase inicial ou numa fase mais avançada, ... estas coisas não são iguais para todas as pessoas. Cada pessoa, tem o seu problema e a sua situação que não é igual à de outra pessoa. Está perceber? Isto cada pessoa .... e mesmo os medicamentos estão adaptados a cada situação (EAC ­ 220402)

A "Explicação dos sintomas" é outra forma de desmitificação e justifica­se

porque estes doentes desenvolvem uma tendência de sobrevalorização de

qualquer sintoma, relacionando­o de imediato com a doença oncológica. Esta

situação exige gestos muito específicos para a gestão dos sentimentos que

lhe estão associados. Ou seja, perante o relato de um determinado sintoma a

enfermeira procede à sua exploração, quer através da colocação de pergun­

tas concretas que lhe permitam uma caracterização precisa ou então pela

observação e inspecção directa. A explicação subsequente resulta dessa inda­

gação, ganhando assim a força de assentar numa apreciação clínica in loco.

Este é um exemplo, entre muitos outros, em que se conjuga, à volta de

um determinado fenómeno presente pelo doente, a avaliação diagnostica

com a intervenção terapêutica de enfermagem, nesta última está envolvida

a gestão de sentimentos e de informação, tendo como objectivo terapêutico a

diminuição da ansiedade e do sofrimento. Responde­se assim a um fenómeno

complexo (i.e., com perspectivas diversas), com uma intervenção complexa.

Para conseguir tal desiderato é necessário ser detentor de saberes específi­

cos. O extracto abaixo apresentado é disso um bom exemplo.

1 9 9 = = = = „ = = , _ _ _ _ _ _ . _ — — _ =

Dissertação de Doutoramento

Page 202: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

...D. J. — Eu andava cheia de medo se por causa da inflamação não poderia fazer os tratamentos. E n f - A Sra tem tido febre? D. J. - Não, não tenho tido. E n f - As análises estão boas. D. J - Estão boas. A Sra terrrnas aí. EnfH - (Ao mesmo tempo vê as análises) Estão boas, estão....(EAJ - 090502)

Um outro instrumento que reputo de grande importância é o que deno­

minei "Transmissão de segurança". De algum modo está subjacente a diver­

sos outros (e.g., "desmitificação", "explicação dos sintomas") e consiste na

utilização de mensagens estruturadas com convicção e que sejam geradoras

de um sentimento de segurança. Esta intervenção da enfermeira dirige-se a

uma insegurança e intranquilidade que por vezes se sobrepõe a tudo o resto

e que se relaciona com o tratamento de quimioterapia e respectivos efeitos

secundários. Para o fazer a enfermeira socorre-se dos seus conhecimentos,

da sua experiência, de argumentação racional construída a partir de dados

clínicos do doente e exemplos de outros doentes, como é patente no extracto

que se segue. Neste caso só uma forte convicção na mensagem da enfermeira

poderá gerar alguma segurança. Contudo, e porque a enfermeira sabe que o

grau de insegurança e intranquilidade são elevados e que tal interfere com a

percepção e a compreensão cognitiva, sabe também que precisa de repetir

esta intervenção diversas vezes e conjugá-la com outras, das quais mais

abaixo falarei, mas sempre com uma atitude de abertura e aceitação.

...Filha - Pois já lhe t inham dito que o cabelo caía. Enf8 - Não, não. O tratamento que ela vai fazer, com estes medicamentos que ela vai fazer,(...) com este tratamento que agora vai fazer não vai cair o cabelo. Por isso pode estar tranquila em relação a isso. Em relação a outro tipo de sin­tomas, em princípio também não vai ter assim nada de especial. Nem náuseas, nem vómitos nem nada. Porque é um tratamento, ... digamos assim, são medi­camentos que não têm muito esses efeitos. Porque isto aqui há muito tipo de medicamentos, dezenas de medicamentos. Há uns que são mais agressivos que outros. Aqueles que a sra vai fazer são realmente dos mais ... dos mais fracos, entre aspas. São aqueles que não provocam muito esses efeitos, está bem. Por­tanto já fica mais tranquila em relação a isso. Pelo menos isso não a preocupa assim tanto. Filha - Porque disseram logo que aqui não sei quê ... Enf8 - Não, não. Quem é que lhe disse isso? Filha - ...(hesita na resposta, dando sinais de que não quer revelar a fonte). E n f - Bem não interessa. D. L — A dra disse que talvez caísse. E n f - Qual dra? Esta daqui? D. L — Sim. Talvez caísse.

Dissertação de Doutoramento

Page 203: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Enf3 - É assim, é provável que note o cabelo assim mais fraquinho, mas cair não. Com estes tratamentos não. Com estes medicamentos não provoca a queda. É natural que sinta o cabelo assim um bocadinho mais molinho, que caiam assim alguns cabelos mais que o habitual, .... D. L. — Oh, agora já ele me anda a cair, veja lá. E n f - Mas assim cair ... D. L.- Ainda não comecei a fazer o tratamento já ele anda a cair. E n f - Mas cair para ter que comprar uma cabeleira ou para ter que pôr um len­ço ou outra coisa qualquer, não. Não precisa de contar com isso porque isso não vai acontecer. Nós temos tanta gente a fazer só estes dois medicamentos e nun­ca aconteceu nada disso. Portanto também não vai acontecer consigo. D. L. - Está certo.... (EAL1 - 150702)

Outro instrumento que também complementa os anteriores é a "Anteci­

pação e proposta de soluções". Ou seja, ao mesmo tempo que são descartadas

as ocorrências improváveis é feita a antecipação das prováveis para aquela

pessoa e aquela situação clínica específica (i.e., com o diagnóstico médico X e

a fazer o tratamento Y), mas conjugada com as soluções de que se dispõe

para as controlar. Antecipa assim a vivência dos problemas reais, mas em

ambiente controlado e ao mesmo tempo que aponta soluções. É o que se veri­

fica no exemplo abaixo relativamente à possibilidade de ocorrência de dois

efeitos secundários prováveis.

...Enf - E se algum dia estiver assim com os valores (analíticos) um bocadinho mais para baixo, o que também é normal isso acontecer, não tem problema, depois há coisas que a gente dá para as coisas crescerem. São os factores de crescimento, que é para poder aguentar o tratamento. Aquilo que às vezes acon­tece que os doentes se queixam um bocadinho é nos dias a seguir ao tratamento, amanhã, depois de amanhã, uma certa dor, uma dor torácica, porque isso tem a ver com ... desde que não seja muito intensa, porque se for muito intensa recorra logo cá à da gente. Não está cá a Dra T. mas há aí outros médicos da oncologia... (EAF-150702)

Um dos instrumentos a que atribuo maior importância na gestão dos

sentimentos é a "Oferta de disponibilidade". Esta pode também ser entendi­

da como uma forma de presença e de compromisso e caracteriza-se por uma

razoável gama de actividades que a materializam. Assim, uma das formas

de oferecer disponibilidade é através da disponibilização de um contacto per­

sonalizado para o doente. Ou seja, é facultado a cada doente um cartão com

o nome da enfermeira, o número do telefone do serviço e o do telemóvel pes­

soal, tal como se constata no extracto abaixo. E ainda dada a indicação de

que podem usá-lo quando quiserem, a qualquer hora do dia ou da noite.

201 Dissertação de Doutoramento

Page 204: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

...Enf1 - (...) A Sra liga para cá ou vem aqui ou passa aqui, eu dou-lhe o meu n° de telemóvel, se for preciso alguma coisa, está o n° aqui do telefone da unidade. Se eu não estiver, está outra das minhas colegas que sabe informar tal e qual, ... o Dr. agora está de férias mas a gente temos que ir resolvendo ou com outro médico. Não vale a pena é estar lá a passar mal e a gente podendo ....(EAL1 -100702)

É também disponibilizado um espaço para colocação de dúvidas, sejam

elas de que natureza forem. Este espaço é essencialmente de natureza tem­

poral e afectiva. Ou seja, de algum modo, é dada a garantia de que disporá

sempre do seu tempo para responder às dúvidas do doente e de que tal será

feito como boa vontade.

...Enf - Não quer fazer mais pergunta nenhuma?... (EAJM - 050802)

...Enf - Queria fazer alguma pergunta Sr. M.? Tem assim dúvidas, algumas dúvidas ou alguma coisa?... (EAM - 050802)

Outra forma de manifestar disponibilidade é através da disponibilização

de ajuda para a resolução de problemas diversos. Alguns destes problemas

têm a ver com os procedimentos clinico-burocráticos os quais, podendo pare­

cer muito fáceis a quem trabalha num hospital, são um verdadeiro que-

bra-cabeças para o público em geral. Acresce a isto o facto de a capacidade

destes doentes e famílias para lidarem com problemas, aparentemente ele­

mentares, poder estar diminuída. Face a esta conjugação de factores, as

enfermeiras criaram mecanismos organizacionais de facilitação dos circui­

tos. Mas ainda acrescentam a estes a disponibilidade para ajudar a resolver

outros, como se verifica no exemplo abaixo.

...Mulher - Outra pergunta. O atestado que ele tem só dá até sexta-feira. Agora onde é que vamos, como é que isto funciona para ele ... Enf* - Quer continuar à mesma de atestado, é? Mulher - Pois, que ele não está em condições de trabalho. E n f - Pois, então eu falo já ... (EAF - 150702)

Também é manifestada a disponibilidade de personalizar o cronograma

dos tratamentos. É conhecido o enorme impacto da doença e dos tratamentos

subsequentes na vida do doente e da família. Sendo muito deste impacto

inultrapassável, algum não o é. Tal é o caso do cronograma dos tratamentos.

É então feita uma gestão em que se tenta, por negociação, conjugar a vida do

doente com as exigências de rigor do tratamento, mas utilizando as margens

Dissertação de Doutoramento

Page 205: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

de manobra que existem, tal como se exemplifica no extracto abaixo apre­

sentado. Assim, sempre que possível, dá-se prioridade à vida pessoal e fami­

liar. Atribui-se grande importância à presença do doente num acontecimento

familiar (e.g., casamento, baptizado, férias), se for essa a importância que o

doente lhe atribui.

...Esposa - Tinha vontade em que nós fossemos para umas termas onde descan­sássemos, .... Enf3 - Mas isso podem ir à mesma que a gente organiza a quimioterapia con­soante isso, está bem? Mas se quiserem combinar isso podem combinar que nós aqui podemos antecipar três ou quatro dias o que permite estar mais uns dias fora. Não convém é expor-se muito, ir para a praia e ficar ali horas, ... (EAC -220402)

Para além das disponibilidades referidas, a enfermeira disponibiliza-se

ainda para ajudar a ultrapassar outras dificuldades colocadas pelo doente e

que passam pela facilitação do contacto com o médico, com outras enfermei­

ras, etc.

O "Incentivo da esperança e perseverança" é, digamos assim, a "outra

face da moeda" na gestão dos sentimentos. Ou seja, ao mesmo tempo que se

apazigua a insegurança tentando desmontar os diversos sentimentos

expressos, é necessário também dar ao doente algo a que se possa agarrar.

Esse algo está dentro dele e é para aí que a enfermeira o vai tentar encami­

nhar. Os dois instrumentos que irei caracterizar a seguir inserenrse nesta

linha de actuação.

O primeiro deles é de grande importância na gestão dos sentimentos no

geral e na prossecução deste último objectivo em particular e é denominado

"Incentivo/enquadramento da esperança". Como característica geral deste

instrumento posso destacar o seu duplo sentido, aliás subjacente na própria

denominação. Ou seja, poder-se-á dizer que todos os doentes precisam sentir

que existe alguma esperança (de salientar que não estou a falar de esperan­

ça de cura); contudo, muitos doentes precisam enquadrar a sua esperança.

Sendo mais preciso. Se a enfermeira depara com um doente em desespero,

ela desenvolve um conjunto de actividades tendentes a incentivar a esperan­

ça. Este não comporta o incentivo da esperança vã. Poder-se-á então pensar

que quando o prognóstico médico é mau, não há esperança que resista. Con-

203 Dissertação de Doutoramento

Page 206: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

tudo tal não corresponde à realidade na medida em que, mesmo nesses

doentes é possível ter a esperança de não ter dores, ter um razoável grau de

conforto e bem-estar ou então e de modo mais pragmático, a esperança de

viver o suficiente para alcançar um determinado objectivo ou para resolver

um dado problema. No primeiro dos dois exemplos abaixo apresentados é

patente a veiculação da esperança de controlo dos efeitos secundários. No

segundo exemplo percebe-se a valorização de dados clínicos sugestivos de

uma elevada hipótese de remissão, sendo então a quimioterapia apresenta­

da como a forma de evitar futuras ocorrências.

... E n f - (...) É verdade que também dá essas náuseas, essa indisposição, mas nós temos medicamentos, a Dra prescreveu já aqui medicamentos que a gente lhe há_de dar, a Sra não vai abalar sem levar, se a gente por algum lapso se esquecer a Sra diz, "olhe, faltam os meus medicamentos por causa dos vómitos". Se houver alguma coisa, se vir que aquilo não faz efeito, vamos lhe dar umas ampolas e uns comprimidos e isso, a Sra diz-nos alguma coisa. Diz sempre, sem­pre que haja algum problema de diarreias ou .... de alguma coisa, a Sra telefona-nos.... ( E A L 3 - 100702)

E n f A. - Não havia gânglios positivos? Não falou em número de gânglios positi­vos, nem nada disso. Sr. C. - Ele disse que tinha tirado uns 7 ou 8 e não viu mais nada. Ele até disse, "faço de si um homem novo". Enf3 A. - Isso é muito bom sinal, porque é sinal que agora este tratamento é mais um tratamento preventivo... (EAC - 220402)

Existem contudo, alguns doentes que apresentam uma elevada renitên­

cia em aceitar qualquer possibilidade de esperança. Nesses é então necessá­

rio proceder a uma contextualização e enquadramento, servindo-se a enfer­

meira para o efeito, quer dos dados clínicos do próprio doente, quer de

exemplos de outros doentes. Também se encontram doentes com uma espe­

rança desmesurada. Neste caso a enfermeira procede a uma definição pro­

gressiva dos limites da esperança, a qual acaba por estar presente de forma

sub-reptícia, em mensagens da mais diversa ordem. O primeiro dos exem­

plos que apresento de seguida, enquadra-se no contexto de um diálogo mais

longo, em que o doente expôs alguns dos seus projectos de futuro. Face a isso

a enfermeira sentiu necessidade de relembrar a incurabilidade da situação.

...Sr. F. - (...) E a vida. Isto pode resultar não é, isto tem pessoas que .... mas ... Enf* - É perfeitamente natural que o sr. se sinta assim. Mas também tem que acreditar que isto é mesmo assim, que hoje em dia já há tratamentos que ...

Dissertação de Doutoramento 204

Page 207: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Sr. F. - É isso, é isso que eu penso. Enf3 - Estes tratamentos, ... pronto, curar, curar, em princípio não ... Sr. F . - É difícil. Mulher - Isso ele sabe.... (EAF - 150702)

Neste outro exemplo verifica-se que a doente vem convencida que o seu

problema está definitivamente resolvido e por isso, está animada de uma

esperança desmedida, a qual a enfermeira sentiu necessidade de pautar.

D. L. - A Dra M. disse-me, "a sra ia ter aí um grandessíssimo problema, mas ago­ra acabou-se o problema". E n f - Pronto, então está a ver? D. L. - E então eu não sei... Enf1 — Se calhar foi isso mesmo que aconteceu. E assim D. L., se a sra está aqui connosco, sabe que serviço é este? Sabe que isto é um serviço onde se fazem tra­tamentos de quimioterapia? D. L. - Sim. E n f — Pronto. E os tratamentos de quimioterapia são tratamentos que são feitos quando as pessoas têm ou tiveram, tumores. Foram operadas a tumores e tumo­res que são malignos, porque é assim mesmo, a quimioterapia só é feita para esse tipo de situações. Agora, aquilo que me está a parecer que o Dr. A. lhe dis­se, foi que a sra foi operada e parece que correu tudo bem, e que ... só que é assim, se calhar isso não era assim tão bom como isso tudo e por isso é que tem que vir aqui fazer este tratamento. Estes tratamentos é para ajudar a operação. É para evitar que o mal volte a aparecer ou se porventura andar por aí alguma celulazinha ou alguma coisinha assim menos boa, isto vá tentar destruir. Está bem? A Dra M. não lhe explicou isto assim, não lhe falou mais ou menos? D. L. - Sim, mais ou menos. (EAL1 - 150702)

O outro dos instrumentos inseridos nesta subcategoria (i.e., "Incentivo da

esperança e perseverança") e também o último da "Gestão dos sentimentos"

é o "Incentivo da capacidade de luta". Sendo esta atitude muitas vezes con­

siderada problemática, uma vez que se pode, através dela, culpabilizar a

vítima (i.e., o doente pode sentir-se culpabilizado por não ter capacidade de

luta), considero que tal não é provável neste caso. Efectivamente este ins­

trumento é materializado através de um conjunto de actividades que pas­

sam pelo aproveitamento das manifestações de capacidade de luta e/ou de

perseverança do doente. Ou seja, o doente, mesmo aquele sujeito ao maior

desespero, tem momentos em que manifesta alguma positividade ou capaci­

dade de luta. E nesses momentos que a enfermeira aproveita para intervir e

estimular. Muitas das vezes essa estimulação é feita através da valorização

da importância de ter atitudes positivas e vontade de lutar, como se verifica

no exemplo abaixo apresentado. Outras vezes utiliza o raciocínio do doente

Dissertação de Doutoramento

Page 208: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

desmontandero e demonstrando através disso a sua importância e o seu

impacto positivo.

. . . E n f - V a m o s lutar, não é, vamos lutar para ver se isto ... Sr. M. — Exactamente Enf8 - ... para ver se isto consegue destruir o que está e para ver se fica bem. Sr. M. - Exactamente. Eu nunca fui desmorecido, também não herde ser agora. Já fui operado também várias vezes e nunca fui desmorecido.... (EAM - 050802)

Para concluir, é adequado sublinhar mais uma vez, que a divisão apre­

sentada é de natureza didáctica, pois na prática clínica esta gestão é feita

usando diversos instrumentos em simultâneo e misturando a avaliação

diagnostica com a intervenção, mistura esta que é gerida de acordo com a

situação presente.

Face a isto e de modo geral, são de realçar na "Gestão de sentimentos" a

"Gestão dos sentimentos expressos", uma vez que é esta que ocupa a maior

parte do tempo da enfermeira e também a que tem mais impacto junto do

doente. Dentro desta são de destacar duas orientações com características

próprias:

V Uma dirigida à promoção da confiança através da explica­

ção/desmistificação e onde pontificam instrumentos diversos (e.g.,

racionalização, transmissão de segurança,...), mas nos quais destaco

a oferta de disponibilidade, por a considerar essencial em termos de

transmissão de segurança;

S Outra dirigida ao incentivo da esperança e da capacidade de luta e

caracterizada predominantemente por uma postura proactiva mas

assente nas expressões do doente.

5.4.1.2 —A "gestão de informação"

O outro conceito chave da "Intervenção Terapêutica de Enfermagem" é a

"Gestão de informação". Correndo o risco de ser repetitivo, sublinho de novo

que a intervenção da enfermeira só se compreende pelo conjunto dos dois

conceitos e não apenas de um. Por tal razão, ao explicitar este conceito, farei

diversas referências ao anterior (i.e., "Gestão de sentimentos"). Assim, este

= _ _ _ _ « = = = _ _ _ _ _ „ = = = = = = „ . _ _ _ _ = = = = = = _ _ _ _ . „ _ = = „ _ _ _ „ _ „ _ _ „ „ _ _ _ _ _ _ 2 0 6

Dissertação de Doutoramento

Page 209: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

conceito compreende apenas a categoria, "Explicação do processo de doen­

ça/tratamento" (ver diagrama 5).

Diagrama 5 "Intervenção Terapêutica de Enfermagem" informação (entrevistas de admissão).

Gestão da

a be cS

a u

"a H o

-¾ <(D P, cd O)

o 1C3 O

a cu (D

o o ri S

-d o iS œ CD O

jíxplicação do processo de doen­ça/tratamento

Descodificação da informação ,4 dada por outros técnicos

Como? C Explica a part ir dos conhe­cimentos do doente

«O processo de doença

O quê? ^O tempo pre­sente e futuro

Explicação do cro­nograma

( O processo de tra­tamento no tempo

A execução de ECD.

O processo de/ ^ A administração tratamento \ de quimioterapia.

jQ que são? ^Explicação dos efeitos/ secundários \ i

* Como lidar?

Ë patente a preocupação de desenvolver este processo de explicação com

base no que o doente sabe. Relembro que a enfermeira se preocupou em

recolher essa informação durante o "Processo de Avaliação Diagnostica".

Durante este processo, a enfermeira recolheu ainda informação acerca da

informação dada por outros técnicos. Acontece que, algumas vezes, o doente

não tem noção do verdadeiro significado da informação que possui. Por tal

razão a enfermeira desenvolve um processo de descodificação dessa informa­

ção. Para esse efeito usa uma linguagem adequada ao doente, considerando

não só elementos de natureza cognitiva e cultural mas também relativos ao

estádio de aceitação da situação. Face a isto, as explicações acerca do pro­

cesso de doença são estruturadas de modo sempre variável, em função do

doente, parecendo ter como objectivos, não só a compreensão do processo,

mas também a adesão às medidas propostas.

No exemplo abaixo apresentado, é justificada a razão da tosse e ao mesmo

tempo, é sugerido que a quimioterapia vai contribuir para o controlo desse

sintoma, favorecendo assim a adesão ao tratamento.

207 Dissertação de Doutoramento

Page 210: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

...Enf - Porque a tosse já sabe do que é. Primeiro tem que tentar resolver o pro­blema, tentar que ele desapareça daí, que diminua, diminua o mais possí­vel.. .(EAF -150702)

A explicação do processo de tratamento é feita com base em três aspectos

distintos. No primeiro tenrse em consideração uma dimensão temporal e

explica-se o processo de tratamento no contexto presente mas também a sua

projecção no futuro. É então explicado o cronograma ao doente e feito um

esforço de adequação daquele às especificidades deste. Esta explicação por

vezes é reincidente ao longo da entrevista, quer pelas dificuldades de con­

centração dos doentes, quer porque estes se vão lembrando de alguns aspec­

tos que levam à alteração do cronograma, no já referido esforço de adequação.

...Enf3 — Dia 14 tem análises. Tem análises e tratamento. Eu só vou acrescentar aqui, análises mais tratamento, que é a única coisa que falta. E depois no dia 31 tem consulta e Rx. (...) D. A. - Tenho consulta,.... E n f - Sim e Rx. D. A. - Consulta e Rx. E n f - Sim. É assim, hoje é tratamento, hoje é dia 7, de hoje a oito, dia 14, tem análises e tem outra vez tratamento. Mas é menos tempo do que hoje, está bem? Hoje é um dia grande, vai ser um dia grande, só vai estar despachada lá para as quatro da tarde, mais ou menos. Hoje é um dia em que o tratamento é grande, a gente já fala sobre isso, está bem? ... (EAA - 070502)

Todavia, a explicação não se limita a meras questões de calendário. A par

com isso, também o processo de tratamento ao longo do tempo é explicado.

Ou seja, com base nos conhecimentos e na experiência da enfermeira e tal

como se constata no exemplo abaixo, é dada uma perspectiva da totalidade

do processo de tratamento para situações idênticas e quer ele decorra neste

serviço ou não. É contudo de realçar e porque estas explicações se baseiam

no conhecimento e na experiência das enfermeiras, que esta capacidade é

tanto mais evidente quanto mais desenvolvidas estiveram aquelas duas

variáveis.

D. A. — Quantos tratamentos é que vão ser? E n f - Olhe é assim, aquilo que é habitual em situações como a sua, não costu­mam ser assim muitos. Costumam ser 5, 6 tratamentos. Cada tratamento são dois dias. É hoje. Hoje é o dia mais comprido, hoje é o dia em que a Sra vai estar cá mais tempo connosco, e volta de hoje a oito dias, está bem? De hoje a oito dias é muito rápido, é mais ou menos meia hora, três quartos de hora. D. A. - A Sra en f escreva-me aí num papelinho se faz favor.. (EAA - 070502)

Dissertação de Doutoramento

Page 211: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulcnles c os enfermeiros; Construção de uma relação

É desenvolvida também uma explicação acerca da necessidade de execu­

ção periódica de exames complementares de diagnóstico. A enfermeira expli­

ca a periodicidade e o tipo de exames a executar e dá orientações precisas

sobre os procedimentos burocrático-administrativos associados a marcações

e afins, como se pode verificar nos extractos que apresento a seguir. Explica

também as razões para a execução dos exames complementares de diagnós­

tico, contextualizando-os na necessidade de controlo da eficácia do trata­

mento. Esta última perspectiva é mais notória no segundo extracto apresen­

tado como exemplo. Contudo, e porque a enfermeira sabe que existe uma

elevada ansiedade associada à execução destes exames, é dada especial

atenção à sua desmitificação e é colocado ênfase na disponibilidade para

apoio, se for caso disso.

E n f - Depois com este Rx que vai fazer no dia 23, porque já no dia 23 vai fazer um Rx ... Sr. F. — Isso é aonde? E n f - É cá. É tudo cá em Évora. Sr. F. - Ela depois aponta que eu ... E n f - É tudo aqui, neste hospital ou ali no outro...(EAF - 150702)

E n f - P r o n t o . Estes são exames que o Sr. vai fazer mas não é com pressa, está bem? É quando calhar, porque isto não é nada urgente. São exames que fazem parte das rotinas daqui. Todos os doentes que vêm fazer quimioterapia devem ter estes exames feitos. Normalmente as pessoas fazenrnos antes. Ora o Sr. fê-los mas não estão cá no hospital. Mas são coisas simples. E um Rx do tórax.... Sr. O - Mas eu, .... antes ... Enf8 — Sim. Mas agora vai fazer outro que é para ficar cá, está a perceber? Sr. C. - Sim .... E n f - É um Rx e é outra "eco". Uma "eco" aí ao seu fígado. E para ver se está tudo bem com o fígado, está bem? E isso que está aqui pedido. Mas isto dá ali à L. (secretária de unidade) ,... a sua Senhora agora fica com isto. Ela vai ali fora e depois a L. t ra ta destas marcações todas. Está bem? ...(EAC - 220402)

Subjacente a todas estas explicações está uma chamada de atenção para

a longevidade do tratamento, para as implicações que, por isso, terá na sua

vida e para a necessidade de perseverança. Porém e paralelamente, é forne­

cido a informação relativa aos apoios durante esse periodo de tempo.

O segundo aspecto considerado na explicação acerca do processo de tra­

tamento, é o que diz respeito à administração de quimioterapia. É dada

atenção detalhada a todos os pormenores, explicando de modo adequado a

cada doente e por vezes, fazendo concomitantemente uma inspecção do esta-

Dissertação de Doutoramento

Page 212: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

do das veias. Caso o doente seja portador de cateter e porque a enfermeira

conhece a representação que o mesmo tem, é feita uma explicação cuidada

com sublinhado especial para as suas vantagens e tentativa de desmitifica-

ção, como se pode verificar no exemplo que de seguida apresento. É por fim

pedida a colaboração do doente durante o tratamento, tentando assim, tor­

nado num elemento activo e vigilante. Esta solicitação não é apenas retóri­

ca, na medida em que efectivamente o doente pode ser de primordial impor­

tância na detecção de qualquer incidente durante a administração. Para isso

a enfermeira solicita o relato de qualquer alteração detectada, seja ela de

que natureza for.

...Enf - (...) O tratamento é feito como? E feito numa veia,... é feito através do sangue. A gente tem que picar uma veia, para depois através dessa veia o medi­camento ir a todo o lado, não vai só à barriga, vai a todo o lado. Se houver por aí algumas coisinhas onde quer que seja, o medicamento vai tentar destruí-las. Mas depois, o tipo de tratamento que o Sr. vai fazer, é um tratamento que tem que ficar a fazê-lo durante dois dias. E para evitar o internamento, esses catete­res, chamanrse cateteres isso que lhe puseram aí, é como se fosse um .... é uma borrachinha que o Sr. tem aí dentro e que está dentro de um dos seus vasos do coração está a perceber? Portanto nós quando picamos isso,.... isso é para evitar o quê? É para evitar que o Sr. fique internado, porque antigamente com esses tratamentos o Sr. t inha que ficar cá internado, com um soro aqui na veia (ao mesmo tempo tocava-lhe no braço) durante dois ou três dias, está a perceber, para fazer o tratamento completo. Agora, pondo esses cateteres, que é assim que isso se chama, evita isso. O Sr. vai com uma seringazinha.... mas logo depois mostramos-lhe,... vai com uma seringa, uma coisa assim pequenina e gordinha (exemplificava o tamanho com as mãos), vai com isso aí dentro do bolso, dentro do bolso da camisa, ou dentro do bolso das calças ou aí dentro (junto ao corpo)... a gente logo depois explica-lhe. Vai com isso preso com um alfinete e o Sr. fica com aquela bombinha, como a gente lhe chama, durante 48 horas, está bem? Que é até amanhã, amanhã tem que cá voltar outra vez à da gente, a dra expli-cou-lhe como é que era?... (EAV-220402)

O terceiro e último aspecto é o relativo à explicação dos efeitos secundá­

rios. Esta é feita com base no que foi referido quando falei do "Processo de

Avaliação Diagnostica". Expliquei então que uma das dimensões desse pro­

cesso era desenvolvida no sentido de tentar perceber o que o doente sabe.

Pois é exactamente a partir do que o doente sabe que os efeitos secundários

são explicados, tal como é notório no primeiro dos dois exemplos abaixo

apresentados. E ao fazê-lo a enfermeira tenta, em simultâneo, explicar o que

são e como lidar com eles. Deste modo estabelece também uma ligação com o

que atrás disse sobre a gestão de sentimentos. Ou seja, o desvendar de algo

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Dissertação de Doutoramento

Page 213: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

pode ser ainda mais ameaçador do que a sua ignorância. Então a enfermeira

avança de imediato com uma proposta de solução possível para lidar com as

eventuais dificuldades. Quando a enfermeira explica a forma de lidar com os

efeitos secundários incide especialmente nas suas manifestações sobre

algumas das actividades de vida que mais poderão preocupar o doente (e.g.,

a alimentação, a eliminação - ver segundo extracto abaixo apresentado),

mas também sobre as possibilidades farmacológicas de controlo.

... Enf3 - ( . . . ) Agora vamos conversar uma coisa. Em relação aos efeitos secundá­rios. O que é que são os efeitos secundários? São os efeitos que quando se fazem estes medicamentos ... o medicamento é feito pela veia, não é, e vai tentar des­truir o que há por aí assim de menos bom. Mas não vai só destruir isso, vai des­truir o sangue, vai destruir os glóbulos vermelhos, vai destruir tudo isso, porque isto são medicamentos assim um bocadinho agressivos. Agora, em princípio, aqueles efeitos todos que a sra já tem ouvido falar de certeza, que pessoas que fazem estes tratamentos que vomitam muito, que passam muito mal, que o cabelo cai .... é assim, as coisas são diferentes de pessoa para pessoa, em relação a si aquilo que vai acontecer, o cabelo não vai cair de certeza, está bem. Por isso pode estar tranquila, não sei se alguém já lhe tinha falado acerca disto, já lhe tinham dito .... (EAL1 - 150702)

.. .Enf- (...) Em relação à alimentação, a Sra pode fazer a sua alimentação nor­mal. No dia em que a Sra vai daqui, que faz os medicamentos, era melhor a Sra

não comer certos e determinados alimentos muito fortes, porque este medica­mento geralmente faz os enjoos, a pessoa enjoa, .... não ir muito à cozinha, por­que a pessoa enjoa com o cheiro. Pode haver um cheiro que a Sra enjoe, às vezes até perfume, sem ser comida. É para a Sra estar já preparada. Eu gosto sempre de dizer uma coisa. É o seguinte, as pessoas às vezes ficam muito chocadas quando chegam cá ao serviço e enjoam uma da gente. Mas isso é normal ... (EAJ - 090502)

Assim, sobre a "Gestão de informação", e em termos conclusivos, é de des­

tacar a preocupação em explicar quer o processo de doença, quer o de trata­

mento. Para o efeito têm em consideração os conhecimentos que o doente já

possui. É dada particular relevância ao processo de tratamento, relativamen­

te ao qual é considerada uma perspectiva temporal, mas acima de tudo o aqui

e agora, incidindo sobre a administração de quimioterapia e os efeitos secun­

dários da mesma. Subjacente a toda a explicação está uma atitude solícita e

disponível, que se cruza com o já referido na "Gestão dos sentimentos".

A análise do "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" que

ocorre durante a entrevista de admissão termina com uma apreciação de

natureza geral, realçando os aspectos mais relevantes. Assim e pelo que ficou

dito relativamente à gestão de sentimentos, entendo que sejam de realçar os

Dissertação de Doutoramento

Page 214: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

aspectos que têm a ver com a promoção da confiança e o incentivo da esperan­

ça e perseverança. Estes dois aspectos são complementares entre si, tal como

já foi dito. Ou seja, ao mesmo tempo que se tenta apaziguar a ansiedade e a

insegurança, tenta-se também que o doente descubra meios que lhe permitam

encontrar um sentido. De todas as atitudes referidas como contribuindo para

a prossecução destes objectivos, entendo que seja de destacar a disponibilida­

de, pelo seu carácter transversal e pela sua presença sistemática.

A gestão dos sentimentos é completada fazendo uso da "Gestão da infor­

mação". Nesta sobressai o cuidado nos meios utilizados para proceder à expli­

cação, tentando-se fazêdo a partir dos conhecimentos do doente e com uma

linguagem descodificada do ponto de vista do jargão técnico. Com base nisto,

procede-se a uma explicação cuidadosa e repetida do processo de doença e tra­

tamento. Quer num caso como noutro existe a preocupação de incidir sobre o

aqui e agora e de apresentar soluções para as dificuldades que vão surgindo.

A característica mais relevante do "Processo de Intervenção Terapêutica

de Enfermagem" como um todo, é a sua natureza complexa. Esta resulta da

utilização de uma mistura de cada um dos elementos atrás referidos, de

modo sistematicamente variável em função de cada situação, a qual é cons-

tatável na prática clínica (ver figura 16).

Figura 16 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" -Perspectiva da complexidade global

212 Dissertação de Doutoramento

Page 215: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Nesta mistura complexa os papéis de gestão de informação e dos senti­

mentos são intermutáveis. Ou seja, tanto se pode explicar para gerir senti­

mentos, como se pode gerir sentimentos para que a pessoa perceba. Em

qualquer dos casos, a finalidade parece ser, aprender a viver com a situação

para alcançar algum benrestar .

5.4.2 - O "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" a partir

dos dados da observação

Caracterizarei de seguida o "Processo de Intervenção Terapêutica de

Enfermagem" tal como foi categorizada a partir dos dados recolhidos através

da observação. Tal como aconteceu relativamente ao "Processo de Avaliação

Diagnostica", também neste caso serão assinaladas as diferenças face a

idêntico construeto, mas categorizado em contexto diferente. Assim e como

primeira grande diferença há que assinalar o facto de ser neste contexto

(i.e., sala de administração de quimioterapia) que ocorrem todos os cuidados

durante o resto de tempo do tratamento. De referir também que no espaço

onde tal acontece estão presentes, em simultâneo, diversos doentes, enfer­

meiras, familiares, auxiliares de acção médica e ocasionalmente, médicos.

Um último elemento que considero relevante diz respeito a uma indicação

que é dada aos doentes na entrevista de admissão, no sentido de este serviço

passar a ser a porta de entrada do hospital para estes doentes. Estes acatam

esta indicação e passam a considerar este serviço uma plataforma de acesso

a todo o hospital.

Neste contexto a enfermeira tem perante si.:

S o doente/família, com toda a problemática individual que lhe está

inerente;

S o doente/família em interacção com a organização;

S o grupo de doentes presentes na sala, variável ao longo do período

de trabalho e sujeito às interferências de outros elementos.

Face a isto, a enfermeira acaba por organizar a sua intervenção à volta

destes vectores. Assim e obedecendo à ordem enunciada, começo por caracte­

rizar a intervenção dirigida ao doente e família. As categorias que integram

213 Dissertação de Doutoramento

Page 216: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

este grupo são­ promoção da autonomia, promoção do respeito, promoção do

conforto, gestão da informação e gestão dos sentimentos (ver diagrama 6).

Diagrama 6 ­ "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" ­

Intervenção sobre o doente/família (dados da observação).

a CD ca

u

'a CD

Tá ctí o % «D

u CD

O ici o a CD

CD

Promoção da íutonomia

Promoção do ^respeito

► No Doente/Família . Promoção de conforto

Gestão da informação

autonomia no con­

' trolo farmacológico

4Autonomia na gestão dos efeitos secundários

Autonomia na gestão do pro­

* cesso clínico­burocrático

Autonomia na decisão relativa aos cuidados

'Autonomia na mobilização

Outras

(Pelo direito à informação

• Pela pessoa em sofrimento

Pela privacidade

Preocupação pelo incómodo causado pelos cuidados

► Proposta de medidas de conforto

Negociação de cuidados de conforto

Uso de meios auxiliares

Solicitação testemunhal

Modo Confronto com explicação

*■ alternativa

V Fim

1

Adequação de linguagem

Informar sobre procedi­

mentos e processo

nformar sobre cronocrama

Gestão dos sentimentos reactivos

^Promoção da^ ' segurança

Gestão dos sentimentos!

.Antecipação

« Disponibilidade

1 Compromisso

Distracção

Afabilidade 'Promoção da esperança e v ^ Promoção da confiança/esperança perseverança >(_, ,. , _ . .

^Estimulação para a vida

— 214 Dissertação de Doutoramento

Page 217: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

A "Promoção da autonomia" adquire uma importância assinalável pelo

facto de se t ra tar de um hospital de dia, ao qual os doentes vêm, no máximo,

apenas algumas horas de um dia por semana.

Isto significa que, a maior parte do tempo, o doente e família estão entre­

gues a si próprios e são eles que têm que lidar com as intercorrências mais

diversas. A "Promoção da autonomia" é concretizada através da:

■S autonomia do controlo farmacológico»'

S autonomia na gestão dos efeitos secundários;

S autonomia na gestão do processo clínico­burocrático;

S autonomia na decisão relativa aos cuidados;

■S autonomia na mobilização;

S outras.

Como fio condutor a tudo isto pode­se dizer que a enfermeira fornece os

instrumentos e se mantém na retaguarda disponível para qualquer apoio,

mas o espaço é deixado ao doente e família.

Assim, e relativamente à "autonomia do controlo farmacológico", a

enfermeira fornece os medicamentos e explica como se tomam (ver extracto

abaixo). Porém, ajusta com os doentes e famílias os melhores horários para

os tomar, de acordo com os seus estilos de vida. Como alguma da terapêutica

é para ser ajustada em função da reacção dos doentes e da ocorrência ou não

de determinado tipo de fenómenos, é dada a informação e os meios de ava­

liação da necessidade de a tomar ou não.

... A doente respondeu que ainda tinha dores e que o opióide transdérmico apli­

cado no dia anterior, já t inha caído. De imediato a enfermeira alertou a doente que nesse caso é necessário recolá­lo ou aplicar um novo. Neste último caso tem que se refazer o esquema de aplicação. De imediato também, a enfermeira foi buscar um novo e aplicou­o, alertando a doente para a necessidade de alterar o referido esquema...(DO ­ 080702)

Procedimentos semelhantes são adoptados relativamente à "autonomia

na gestão dos efeitos secundários". A grande diferença entre uma e outra é

que, por vezes, os doentes e famílias desenvolvem estratégias para lidar com

esses efeitos que são eficazes. Essas estratégias podem não ter nada daquilo

que é hábito chamar­se "cientificamente válido", contudo se o doente se sen­

tir bem e a enfermeira avaliar a sua não malignidade para o processo, incen­

215 Dissertação de Doutoramento

Page 218: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

tiva o seu uso. No exemplo a seguir apresentado, a enfermeira tenta fornecer

ao doente os meios (cognitivos e outros) para tentarem controlar os efeitos

secundários. Todavia, aceita a participação e sugestão de um doente relati­

vamente ao uso de uma determinada estratégia.

...O doente apresenta um ar algo apreensivo e a enfermeira explica-lhe as carac­terísticas deste tratamento, os potenciais efeitos secundários e as medidas a adoptar. Fornece-lhe ainda um conjunto de medicamentos destinados a contro­lar os efeitos secundários e explica-lhe como os tomar. Nesta conversa participou também o Sr. A. porque um dos medicamentos que tem que ser ingerido, tem um sabor desagradável e aquele doente encontrou uma maneira de contornar esse sabor que foi dilui-lo em sumo de tangerina, estratégia que partilhou com os presentes. (DO - 010703)

Os doentes adoptam também outro tipo de estratégias na gestão dos efei­

tos secundários como as alimentares. Nestes casos há duas variantes que

considero importante destacar. Uma diz respeito a uma atitude pouco orto­

doxa no que diz respeito ao suposto principio da alimentação saudável. Ou

seja, pode acontecer os doentes manifestarem apetites pouco ortodoxos rela­

tivamente ao que se considera ser uma alimentação saudável. Apesar disso

a enfermeira poderá não tentar contrariar, dado que em muitas situações o

apetite está tão seriamente afectado que se opta pelo principio de o doente

comer alguma coisa do que pelo de se alimentar correctamente.

A outra variante diz respeito às situações de doentes cujo prognóstico

médico é reservado. Nestes casos, aplica-se tudo o que atrás se disse não

como excepção mas como regra.

Relativamente à "autonomia na gestão do processo clínico-burocrático",

são dados os elementos que a facilitem. Todavia, é deixada ao doente a ini­

ciativa da sua gestão. Ou seja, são dadas as explicações consideradas neces­

sárias e as alternativas, quando existem, mas a decisão é deixado ao doente.

Algumas doentes manifestam um grau de autonomia na condução do proces­

so clinico-burocrático maior que outros. Tal é caso do doente referido no

exemplo abaixo apresentado. O maior grau de autonomia parece acontecer

preferencialmente em pessoas com processos e vivências longas e com dife­

renciação cognitiva. Noutros casos o grau de autonomia manifestado é

menor, contudo o mesmo é incentivado.

Dissertação de Doutoramento

Page 219: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

...Trocam algumas palavras de cumprimento e alguns comentários acerca do facto de o doente estar atrasado relativamente ao previsto no cronograma do tratamento. Estes comentários não eram recriminatórios. Aliás o doente mani­festava uma atitude demonstrativa de que geria o seu cronograma e que tinha consciência que tinha algum atraso. A enfermeira perguntou ao doente qual seria o tratamento que hoje viria fazer, demonstrando assim um elevado grau de confiança no discernimento deste. Aliás a enfermeira comentou isso mesmo dizendo: "Isto é que é! Aqui é o doente que diz qual é o tratamento!." O doente instalou-se no cadeirão, deu indicações de qual o braço e o local de punção, ao mesmo tempo que ia desenvolvendo conversa sobre o tratamento, fazendo refe­rência à sua longa experiência e falando das informações que tinha relativamen­te a novos medicamentos que iam entrar no mercado e que ele não se importa de os testar de imediato. (DO - 270503)

A "autonomia na decisão relativa aos cuidados" consiste na solicitação ao

doente de colaboração na decisão relativa aos cuidados. Tal verifica-se com

uma frequência muito elevada, sendo mais patente nas decisões relativas

aos cuidados relacionados com o conforto. Em muitas outras situações a

decisão acaba por ser partilhada. Tal é o caso das decisões relativas ao local

de punção, como se verifica no exemplo abaixo. Em algumas outras de carác­

ter mais técnico ou que estejam em causa situações que exijam uma decisão

e acção rápidas, prevalece a opinião da enfermeira.

...explicou a um dos doentes que tinha prescrito um ansiolítico, qual o objectivo a que se destinava e perguntou-lhe se o queria tomar. O doente acedeu...(DO -110702)

... Punciona H l e H3. Com este último combina o local mais adequado para efec­tuar a punção... (300702)

As enfermeiras tentam, tanto quanto possível, preservar também a

"autonomia na mobilização", quer seja a relativa ao desempenho nas activi­

dades de vida diária, como a relativa às deslocações. Mesmo durante a

administração da quimioterapia são criadas condições para que o doente se

possa mobilizar, nomeadamente para se alimentar e para ir à casa de

banho, tal como se verifica no extracto abaixo apresentado. Relativamente à

autonomia nas deslocações para o tratamento, são enunciadas as possibili­

dades que o doente tem (e.g., transportes públicos, ambulância, táxi), bem

como os apoios que existem para cada um deles e é deixada a opção ao doente.

...Entretanto a D. L. pediu para ir à casa de banho à enfermeira (...). Esta pre­parou a perfusão para este efeito, ajudou a doente a levantar-se, explicou-lhe como se deslocar com o soro, perguntou-lhe se precisava de ir acompanhada, ao que a doente respondeu que não, mas acompanhou-a até à porta, a partir da

217 = Dissertação de Doutoramento

Page 220: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enlermeiros: Construção de uma relação

qual era visível a porta da casa de banho e indicou­lhe qual o local. Apesar disso avisou uma auxiliar de acção médica no sentido de a acompanhar.... (DO ­

070703)

A "Promoção do respeito" é uma das formas de intervenção que considero

mais relevantes no contexto deste grupo, essencialmente pela dimensão de

dignidade que confere à pessoa. Sendo algo fácil de verbalizar, mas difícil de

concretizar, é pertinente explicar detalhadamente como se concretiza neste

caso. Assim, promove­se o respeito com base em três vectores diferentes mas

complementares entre si que são:

•S O reconhecimento do direito à informação/justificação.'

■f O respeito pela pessoa em sofrimento.'

S O respeito pela privacidade.

A enfermeira reconhece que o doente tem direito a toda a informação e às

justificações relativas aos actos que lhe digam respeito. Pelo que, tanto se

sente no dever de justificar um atraso seu, como uma eventual demora ou

alteração no t ratamento ou alteração de procedimentos (ver primeiro dos

extractos abaixo apresentado). Por esta ordem de ideias, naturalmente que

informar o doente de todos os cuidados e da razão de ser das opções tomadas

é também um dever assumido pela enfermeira e consequentemente, um

direito reconhecido aos doentes. Normalmente associada ao direito à infor­

mação está implícita a autodeterminação do doente, pelo que, após informar

o doente, a enfermeira solicita autorização para a realização de alguns cui­

dados, como se constata no exemplo a seguir apresentado (ver segundo ex­

tracto).

... Entretanto um soro acabou. Era o último. O doente chamou a enfermeira no sen­

tido de o retirar. A enfermeira olhou e preparava­se para o retirar mas entretanto foi solicitada para um doente na sala de urologia e explicou ao 1" o adiamento da retirada do soro e pediu desculpa...(DO ­ 150702)

... Assim, heparinizou o cateter de H l . Para o efeito preparou previamente todo o material e dirighrse para o doente com tudo o necessário. Explicou ao doente o que ia fazer, pediu licença e iniciou o procedimento...(DO ­ 160702)

O "respeito pela pessoa em sofrimento" manifesta­se através da adopção

de uma atitude compassiva perante os doentes que o expressam. Mas tam­

bém se manifesta no facto de a enfermeira assumir que muitos dos cuidados

=========================================== 2 J g Dissertação de Doutoramento

Page 221: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

técnico-instrumentais que desenvolve induzem sofrimento. Então, tenta

desenvolvê-los com o máximo de perícia, no intuito de minimizar o sofrimen­

to induzido. Mesmo assim, pede desculpa pelo incómodo causado. Este pedi­

do de desculpas é particularmente veemente quando se desenvolvem tenta­

tivas falhadas (e.g., punção venosa). Como forma de obviar a isto as enfer­

meiras desenvolveram estratégias que consistem na-

S solicitação de substituição feito pela enfermeira que faz duas tenta­

tivas falhadas (ver primeiro extracto, abaixo apresentado); e

S aceitação tácita da preferência dos doentes pelas enfermeiras com

as quais têm relações preferenciais. A confiança dos doentes nos

gestos técnicos da enfermeira aumenta e o sofrimento parece ser

menor.

...Entretanto a enfermeira (..) tentou puncionar a D. F., tendo falhado duas ten­tativas consecutivas. Face a isso pediu desculpa à doente e solicitou a colabora­ção da enfermeira (...) para ser ela a tentar. Esta enfermeira conseguiu à pri­meira tentativa. (DO - 230603)

... (a enfermeira) muda finalmente local de punção de S2 explicando quais as razões e pedindo desculpa pela dor causada...(DO - 300702)

Outra forma de manifestação de respeito é através da "preservação da

privacidade". Esta tanto pode ser relativa à exposição de uma parte do cor­

po, como de uma interacção verbal privada, tal como se constata no primeiro

dos exemplos abaixo apresentados. Assim, é frequente observar a enfermei­

ra a pedir autorização para tocar no corpo do doente para realizar determi­

nados procedimentos, principalmente quando estes implicam a exposição de

alguma das suas partes (ver extracto DO - 160702, atrás apresentado).

Outra forma de preservar a privacidade é através do uso dos cortinados

amovíveis. Outra ainda é através do uso do próprio corpo da enfermeira,

como barreira que se interpõe entre o doente e as restantes pessoas presen­

tes na sala.

...A enfermeira, logo que teve uma oportunidade foi junto da doente, criou algu­mas condições de privacidade, nomeadamente, falando num tom de voz mais baixo e colocando a mão ligeiramente em concha ao lado da boca,... (DO — 050603)

219 Dissertação de Doutoramento

Page 222: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

...A enfermeira (..) dirigiirse para S2 com todo o material necessário à heparini-zação. Puxou muito ligeiramente a divisória entre os cadeirões. (DO — 250702)

A "Promoção do conforto" está relacionada com a "Promoção da autono­

mia", mas também com a do respeito, principalmente no que tem a ver com o

"respeito pela pessoa em sofrimento". O principal objectivo é, tal como o seu

nome indica, o desenvolvimento de estratégias que visam promover o confor­

to do doente. Assim, as estratégias de promoção do conforto incluem:

S Preocupação com o incómodo causado pelos cuidados!

S Proposta de medidas de conforto!

/ Negociação de cuidados de conforto.

A "preocupação com o incómodo causado pelos cuidados", principalmente

quando aqueles são indutores de desconforto, já anteriormente tinha sido

demonstrada. Contudo, aqui inclui outras medidas tendentes a minimizar

ao máximo o desconforto. Assim, a par com a manifestação de preocupação,

a enfermeira pede a sua substituição ou a ajuda de uma colega no sentido de

tentar alternativas menos incómodas. Também a sua atitude, quando prevê

que o cuidado é doloroso, é conduzida de modo a minimizar o sofrimento.

Normalmente começa por avisar o doente que o cuidado é doloroso. Ao mes­

mo tempo vai desenvolvendo uma interacção que tem por objectivo, entre

outros, distrair o doente, como se pode verificar no exemplo que a seguir

apresento. Ou então adopta uma atitude de cariz sobreponível ao de uma

mãe perante o filho que acabou de se magoar.

... Esta doente mostrou-se bastante queixosa com tal procedimento {hepariniza-ção do "implantofix'). A enfermeira questionou-a se as queixas tinham só a ver com a punção ou também com o facto de ter que vir àquele serviço e que se con­frontar com as situações que lá estão e que lhe farão recordar a sua. A doente negou tal explicação e diz que é mesmo o desconforto que a preocupa. A enfer­meira foi sempre falando e tentando distrair a doente ao mesmo tempo que desenvolvia os procedimentos necessários. (DO — 220503)

A preocupação com o conforto é ainda extensível a outras situações tais

como as resultantes da doença ou do tratamento (e.g., inerentes ao efeitos

secundários). Aí, sempre que a enfermeira se apercebe de sinais de descon­

forto e após os investigar, normalmente faz propostas de medidas que no seu

entender, irão minimizar o desconforto. No exemplo que a seguir apresento

_ ^ _ _ _ _ _ ^ _ „ , _ 220 Dissertação de Doutoramento

Page 223: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

constata-se a acção da enfermeira perante uma doente com uma situação

dolorosa muito intensa. Neste caso, a enfermeira, numa das suas incursões à

sala de espera, ao aperceber-se do estado doloroso da doente, desencadeou

um conjunto de medidas tendentes a resolver o problema. Transportou-a

para uma cama, deitou-a o mais comodamente possível e deixou de lhe dar

orientações ou de lhe fazer perguntas, para além das estritamente necessá­

rias, colocando-as em alternativa ao familiar que se deslocou juntamente

com a doente. Ao mesmo tempo, apresentava uma solução para o problema

imediato e a longo prazo e acerca da qual ia incentivando a confiança.

...De seguida dirigiirse à outra doente e ao mesmo tempo que ia conversando com ela e com o familiar presente sobre detalhes do processo que estava a atra­vessar, ia desenvolvendo medidas tendentes a aumentar o conforto físico da doente (a doente tinha a cabeça apoiada no colar de Zimmens que, entretanto tinha retirado, a enfermeira pediu à auxiliar de acção médica que lhe trouxesse um resguardo. Com ele dobrado fez uma pequena almofada e colocou-a sob a cabeça da doente. Tapou-a unicamente com o lençol e tentou que se posicionasse comodamente). Entretanto informou-a do que se ia fazer para aliviar a dor no imediato e do que se ia fazer para aliviar a dor de modo consistente no dia-a-dia. . . . (DO- 040702)

Em casos mais complexos as medidas de conforto são negociadas com o

doente, no sentido de se adequarem às suas exigências.

A "Gestão da informação" é um modo de intervenção fundamental aos

cuidados em geral e à relação enfermeira/doente em particular. Como tal,

compreende-se que se considere como estando subjacente a muitos outros.

Neste modo de intervenção, penso que seja de realçar a atitude das enfer­

meiras de informar sistematicamente os doentes de todos os procedimentos,

bem como da evolução do processo de saúde e de tratamento. Para esse efei­

to servem-se de um conjunto de técnicas de comunicação que têm como

objectivo a facilitação do processo e a que mais abaixo farei referência. Este

modo de intervenção está no seguimento do que já se verificou na entrevista

de admissão, mas adquire aqui uma expressão muito maior, na medida em

que os procedimentos são sistemáticos e as alterações no processo frequen­

tes. A informação contribui para a compreensão das atitudes e dos procedi­

mentos das enfermeiras, logo contribui também para uma facilitação do

221 Dissertação de Doutoramento

Page 224: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

relacionamento. A informação facilita ainda a adesão às medidas ou às pro­

postas terapêuticas.

Relativamente às técnicas de comunicação de que as enfermeiras se ser­

vem e agrupadas sobre a designação de "Modo", começarei por fazer referên­

cia ao "Uso de meios auxiliares". Caracteriza-se pelo uso de literatura,

quando tal é adequado, para auxiliar na explicação de determinados assun­

tos. Não é uma técnica de uso indiscriminado, até porque alguns dos doentes

não sabem 1er, mas é usado em determinadas circunstâncias julgadas opor­

tunas pela enfermeira e quando existe material disponível para esse efeito,

como é o caso dos protocolos analgésicos.

A "Solicitação testemunhal" é mais frequente e é usada preferencialmen­

te nas interacções que ocorrem na sala e em grupo. Pressupõe um bom

conhecimento dos doentes, do estádio de vivência da doença e das suas capa­

cidades de compreensão. Consiste na solicitação para que um determinado

doente, normalmente num estádio mais avançado de vivência do processo de

doença/tratamento, dê o seu testemunho perante um outro recém-admitido

ou a vivenciar uma determinada dificuldade, pela qual o primeiro já passou,

normalmente de forma positiva.

A "Confrontação com explicação alternativa" é usada normalmente em

situações em que o doente expressa a sua compreensão de um determinado

facto, a sua vivência ou representação. Nestes casos a enfermeira não impõe

a sua explicação como sendo a mais válida. Avança, isso sim, com uma outra

possível explicação, no sentido de o doente a considerar também como hipó­

tese. Algumas das situações em que constatei a sua utilização mais frequen­

te foi associado à auto-interpretação de sinais e sintomas.

A "Adequação da linguagem" é talvez das técnicas mais usadas e comum

a qualquer das categorias anteriores. Foi frequente verificar-se uma interac­

ção entre enfermeiras no espaço da sala de quimioterapia com uso de lin­

guagem técnica. Contudo, no momento em que eram interrompidas por um

doente, essa linguagem mudava em função do conhecimento que tinham

desse doente, mas deixando de lado, quase invariavelmente, a linguagem

técnica. O que acabei de dizer não é sinónimo do uso sistemático de calão

= = = = _ _ _ _ _ _ _ — = = = = = = = = = = = = = _ _ _ _ _ . „ = = = _ _ _ _ _ _ _ = = = = = „ . . _ _ _ _ _ _ . . _ _ = = = = „ _ 2 2 2

Dissertação de Doutoramento

Page 225: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

popular, embora não o exclua, porque também se verificavam situações em

que a linguagem tinha que ser adequada a pessoas com graus de diferencia­

ção superior. Em qualquer dos casos, essa revelava-se uma técnica muito

eficaz na descodificação da hermética linguagem técnica da saúde.

Relativamente ao "Fim" e tal como já foi dito atrás, bem como pelos

exemplos que a seguir apresento, a informação não pode ser entendida no

sentido mais restrito do termo. Isto porque, neste caso, com a informação

visam-se sempre mais objectivos que a simples troca de dados relativos a

uma situação. Portanto, não se informa só para que a pessoa saiba, mas

também para que ela possa decidir, para diminuir a angústia, a ansiedade e

o medo, entre outros. Assim e apesar de as unidades de significação estarem

agrupadas em duas subcategorias (i.e., "Informar sobre procedimentos e

processo" e "Informar sobre o cronograma"), poderse-á dizer que o fim é

sempre múltiplo, tal como aliás é patente nos exemplos a seguir apresenta­

dos. No primeiro desses exemplos paradigmáticos constata-se que, ao mesmo

tempo que se informa, insufla-se esperança no tratamento e tenta-se ade­

quar o cronograma à vida da pessoa. Já no segundo caso se usa a informação

para tentar debelar um acesso de medo intenso por parte da doente. No

último dos exemplos, ao mesmo tempo que se cumpre um direito do doente,

tenta-se também gerir os seus sentimentos de apreensão e desconfiança e

construir a confiança.

...A enfermeira tentou ainda insuflar esperança no tratamento e explicar como o mesmo se iria processar e como é que poderiam organizar a vida, de modo a que o mesmo interferisse o menos possível. (DO - 120503)

...Nova doente deu entrada, a qual se foi sentar no cadeirão onde estava a D. R. A enfermeira preparou o material para a punção e dirighrse para junto da doen­te, ao mesmo tempo que ia falando com ela. A doente, sendo afável, expressava alguma apreensão. A enfermeira após ter procedido à punção e à colocação da perfusão em curso, procedeu à manobra de sifão para confirmar a funcionalida­de da punção. Tal desencadeou uma expressão de pânico da doente que preocu­pou a enfermeira e a levou a explicar o porquê de tal procedimento e a tentar perceber o porquê de tal reacção. Para o efeito ficou a falar com ela durante algum tempo. (DO - 050603)

... A enfermeira preparou o material para a punção e puncionou, ao mesmo tem­po que procedia a explicações sobre o que estava a fazer. Quando a sua quimio­terapia chegou, após ter sido preparada na câmara de fluxo laminar, a enfer­meira foi buscá-la e, antes de a colocar, mostrou-a ao doente dizendo-lhe que o tratamento era só aquilo, findo o qual se podia ir embora. O doente fez um tro"

223===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 226: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

cadilho com a pequena dimensão do frasco e a grande dimensão do efeito. A enfermeira explicou­lhe que não era assim e pediu­lhe que se lembrasse do que ela lhe tinha dito durante a entrevista...(DO ­ 050802)

Outro aspecto que carece de informação e explicação sistemática é o refe­

rente ao cronograma. Efectivamente, este, apesar de ter sido combinado logo

na entrevista de admissão, pode sofrer alterações pelas mais diversas

razões, que vão desde as decorrentes da evolução da situação clinica, até às

resultantes das necessidades pessoais do próprio doente e/ou familia.

A semelhança da anterior, também a "Gestão de sentimentos" está sis­

tematicamente presente e subjacente a todas as outras subcategorias. A

"Gestão de sentimentos" é um modo de intervenção de grande importância e

que, como tal, adquire centralidade face aos diversos modos de intervenção

da enfermeira. A semelhança do que se verificou na categorização construí­

da a partir dos dados resultantes das entrevistas de admissão, também aqui

a gestão de sentimentos concretiza­se através da promoção da confiança e da

esperança e perseverança. Assim a "Gestão dos sentimentos" inclui os

seguintes elementos^

v' Promoção da confiança:

o Gestão de sentimentos reactivos,'

o Antecipação;

o Compromisso

o Distracção

o Afabilidade

o Disponibilidade;

S Promoção esperança e perseverança'■

o Promoção da esperança;

o Estimulação para a vida

Pode­se dizer que a promoção da confiança se inicia com a "gestão dos

sentimentos reactivos" (ver diagrama 6). Esta está direccionada para a ges­

tão dos sentimentos resultantes do modo como o doente e família estão a

lidar com o processo de doença e tratamento. Para tal e sempre que a enfer­

meira detecta sinais indicadores da presença de algum desses sentimentos,

pode interpelar directamente o doente. Esta interpelação tem o significado

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Dissertação de Doutoramento

Page 227: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

de ser feita agora, por alguém que o doente e familiar já conhecem e em

quem aprenderam paulatinamente a confiar e que manifesta preocupação

com o seu benrestar . Tem também o potencial terapêutico inerente ao facto

de se conceder um espaço/tempo para verbalização das dificuldades. Aliás

esta concessão de espaço/tempo é usada de modo sistemático e intencional

pelas enfermeiras e é coadjuvado por uma escuta atenta dos conteúdos ver­

balizados e pela sua exploração. Penso que seja oportuno relembrar que

durante a vivência do processo, ocorrem situações em que o doente projecta

a sua raiva sobre alguém ou alguma organização. Nessas situações, a con­

cessão de espaço/tempo para verbalização e catarse, a ausência de sentido de

crítico da enfermeira e a atitude de escuta, contribuem para o doente e fami­

liar gerirem os sentimentos. Todavia, esta é uma área em que algumas

enfermeiras manifestaram dificuldades, principalmente se aquela raiva se

vira contra elas.

Para além disso, a enfermeira serve-se ainda dos seus conhecimentos e

do seu carisma para desmitificar, seja o tratamento, um determinado sinto­

ma, uma fase do processo ou um valor analítico. Naturalmente, no grupo das

enfermeiras existem diferentes níveis de conhecimento, experiência e caris­

ma. Todavia, estas diferenças parecem tornar-se irrelevantes se existir uma

relação preferencial entre um doente e uma determinada enfermeira. Neste

contexto, esta desmitificação é feita com um misto de explicação de natureza

cognitiva, com uma atitude de compreensão do sentimento expresso e de

autoridade detentora de um saber conferido pela formação e experiência, tal

como se exemplifica com o extracto seguinte.

... Entretanto iniciou-se uma conversa sobre o medo que ele (o doente) tinha dos efeitos secundários. A enfermeira interrompeu o que estava a fazer e virou-se para ele, dando-lhe atenção. Reafirmou o que já lhe tinha dito antes e sublinhou o medo e a desconfiança que ele tinha. Tentou responder à ansiedade, acalman-do-o. Pedhrlhe para aguardar algum tempo e logo lhe daria razão. O doente começou então a contar a história da sua doença, de acordo com o modo como ele a interpreta (....). A enfermeira permanecia atenta e pedia um ou outro esclare­cimento sobre a história... (DO — 050802)

Também pode acontecer que a desmitificação seja feita por antecipação.

Tal é o caso relativo à implantação de cateter, entre outros. A enfermeira

sabe à priori que a implantação de cateter para administração de quimiote-

225 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

rapia, é lida pelos doentes e familiares como sinónimo de agravamento da

situação e de entrada na fase terminal da doença. De posse destes elemen­

tos, a enfermeira inicia a desmitificação de tal procedimento desde os pri­

meiros momentos, desmontando esta representação e apresentando as

razões e as vantagens do cateter. Este é um procedimento frequente relati­

vamente a outros factores, tais como, a possível ocorrência de alguns efeitos

secundários mais paradigmáticos (e.g., alopecia) ou da administração de

alguns fármacos cuja conotação entre os doentes é terrível (e.g., o "verme­

lho"), como se constata no exemplo seguinte.

...Chegou a enfermeira à porta acompanhada da doente que tinha estado a entrevistar e do respectivo filho. Foi apresentando a doente a todas as pessoas que ia encontrando. Quando chegou à porta da sala explicou-lhe o que se estava ali a passar e disse-lhe, "está a ver?! Está a ver aqui alguém mal disposto ou a vomitar?" Explicou depois publicamente que a D. G., (...) estava apavorado com o tratamento que ia fazer, pelo que lhe tinham dito no exterior. Isto suscitou reacção dos doentes e das enfermeiras presentes no sentido de lhe demonstra­rem que não era assim e que não tinha nada a temer. Quem se aprontou para a puncionar (...) desenvolveu este procedimento com especial cuidado, explicando tudo o que estava a fazer, se ia ou não doer e quais as consequências. Mos-trou-lhe os frascos que continham o tratamento para que ela visse que nenhum deles era o "vermelho" {epirrubicina), do qual lhe tinham dito particularmente mal. Garantiu-lhe ainda que não haveria efeitos secundários e se houvesse algum que seria facilmente controlável. A doente parece ter ultrapassado o medo inicial e começou a falar com toda a gente, mesmo com os outros doentes presentes, com bastante à vontade.... (DO - 160703)

A gestão dos sentimentos reactivos é uma preocupação permanente da

enfermeira. Desde que um determinado sentimento seja detectado a enfer­

meira vai, ao longo do período de tratamento, desenvolvendo as mais diver­

sas acções tendentes a ultrapassar a situação. Para tal vai-se servindo dos

diversos meios que tem ao seu alcance, alguns dos quais falarei mais adian­

te, como por exemplo as actividades dirigidas ao grupo. Mas penso que seja

também de realçar o facto de, para além de haver uma enfermeira que, de

forma mais sistemática, conduz a interacção com aquele doente, diversas

outras enfermeiras e até auxiliares de acção médica, manifestarem preocu­

pação e interesse.

Outra forma encontrada pela enfermeira para transmitir confiança e

segurança ao doente e família é através da "antecipação". Considero que

esta é uma das formas de intervir que confere um elevado profissionalismo à

Dissertação de Doutoramento 226

Page 229: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulcntes e os enfermeiros: Construção de unia relação

actuação da enfermeira. Este modo de intervenção caracteriza-se pela capa­

cidade que a enfermeira tem de, a partir dos seus conhecimentos dos proces­

sos fisiopatológicos e vivenciais, resultantes da formação e da experiência

profissional, ser capaz de antecipar os acontecimentos e a part ir daí desen­

volver medidas para os atenuar ou evitar. São diversos os exemplos dados,

mesmo noutras subcategorias, que ilustram o que estou a dizer. Nesta, pode

servir de exemplo, a antecipação que a enfermeira faz relativamente aos

efeitos secundários (ver extracto abaixo), realçando as garantias que dá,

resultantes da sua experiência profissional. Estas garantias ao darem con­

sistência à sua atitude contribuem para aumentar a confiança dos doentes.

Também é um bom exemplo a antecipação das reacções dos doentes, por

conhecer as representações, quer do serviço, quer da doença e dos tratamen­

tos.

Este doente (...) permanecia calado e à margem das discussões que se passavam na sala. A enfermeira dirigiu-se a ele com questões directas e concretas. Ou seja, dirigidas especificamente à sua situação. Para o efeito dirigiu-se a ele e sentou-se no cadeirão próximo (que estava desocupado), ligeiramente inclinada para ele e a falar em tom de voz baixa. As perguntas que fez pressupunham um conhe­cimento anterior da situação e do doente. O doente abriu um sorriso e incli-nou-se também ligeiramente para a enfermeira quando esta se lhe dirigiu e res­pondeu às questões colocadas de forma aberta, isto é, dando pormenores e acres­centando o que entendia como útil. As perguntas da enfermeira tinham a ver com os sentimentos do doente sobre o que estava a viver e sobre a evolução do tratamento e os possíveis efeitos secundários. O doente respondeu manifestando boa disposição e optimismo. A enfermeira alertou para a possibilidade de apare­cimento de alguns efeitos secundários com o evoluir do tratamento.... (DO — 230603)

Mas também do ponto de vista biomédico, é patente esta capacidade de

antecipação. E manifesto o conhecimento que a enfermeira detém acerca dos

diversos tratamentos e dos efeitos esperados e indesejados. Pelo que, a par­

tir do momento em que se inicia o tratamento, passa a fazer monitorização

em função desse conhecimento. Se em alguns casos esta atitude é discreta,

noutros é notória. Tal é o caso, por exemplo, da medicação analgésica. A par­

tir do momento em que se inicia um determinado protocolo analgésico, é

desencadeado um sistema de monitorização em continuidade, para avaliar a

sua eficácia e eventualmente adoptar outras medidas. Sendo certo que isto

decorre da função da enfermeira e aparentemente, nada tendo a ver com a

227 Dissertação de Doutoramento

Page 230: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

componente relacional, constata-se que não é assim, pois o modo como é feito

denota preocupação e interesse e existência de soluções, contribuindo, por­

tanto, para o aumento da confiança e da esperança dos doentes e familiares.

Na sequência natural deste modo de intervenção surge-nos um outro

denominado "compromisso". Este caracteriza-se pela capacidade da enfer­

meira de assumir compromissos perante o doente. Estes compromissos são

da mais diversa ordem, e vão desde solicitações de ajuda dos doentes, que a

enfermeira se compromete a resolver (ver primeiro extracto), até aspectos

mais subtis e que são aparentemente compromissos implícitos e que têm a

ver com a continuidade da relação. Ou seja, com o facto de dar continuidade

à relação que se iniciou, através da continuidade na semana seguinte de

uma conversa, de uma manifestação de preocupação, de que não se esqueceu

do nome ou de um determinado pormenor, tal como se constata no segundo e

terceiro exemplos abaixo apresentados.

... Enquanto (...) procede à punção, H3 discute com a enfermeira forma de arran­jar uma receita de um medicamento a que o doente atribui muita importância porque, segundo ele, foi o que lhe restituiu o apetite. A enfermeira compromete-se a resolver o problema.... (DO — 250702)

...O Sr. B. já estava sentado na cadeira que tinha escolhido. A enfermeira diri-ghrse a ele e cumprimentou-o com afabilidade e alegria e pergunta-lhe como tem passado, em continuidade do que se tinha passado na semana anterior. O doente respondeu que se tem sentido bem, mas que está preocupado com as veias... (DO - 140703)

... A recepção aos doentes, que já tinha começado na sala de espera, continuava agora de modo mais personalizado. Assim, a enfermeira dirighrse a SI {com quem já tinha estado a falar na sala de espera) com quem falou durante alguns minutos sobre alguns sintomas que a doente apresentava, resultantes dos efei­tos secundários da quimioterapia. Tratava-se da hipersensibilidade ao sol. A enfermeira ouviu, explicou as causas e aconselhou medidas.... (DO - 160702)

Atribuo à capacidade de assumir e cumprir compromissos (ou de justifi­

car porque não se cumpriram) uma importância determinante na construção

da confiança, elemento essencial no processo de relação. Esta capacidade

ganha ainda mais importância porque, de algum modo e em termos de

representação, os serviços públicos parecem ter a imagem de desresponsabi­

lização individual.

Dissertação de Doutoramento

Page 231: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

A "distracção" é um modo de intervenção que se caracteriza essencial­

mente pelo uso de estratégias que desviem a atenção do doente durante a

execução de procedimentos menos agradáveis ou até incómodos. Assim, por

exemplo pode-se iniciar uma conversa sobre um assunto que a enfermeira

sabe que dá grande alegria ao doente, no exacto momento em que se inicia

uma punção, tal como se verifica no primeiro dos exemplos abaixo. Ou então

iniciar uma interacção verbal que exija concentração ao doente, distraindo-o

assim do procedimento que está a ser desenvolvido, como se constata no

segundo exemplo apresentado. Ou ainda, ser particularmente afável e caute­

loso ou envolver o grupo numa conversa mais alargada. Este conjunto de

acções desenvolvidas pelas enfermeiras parecem ser algo perfeitamente

natural e desenvolver-se a um nível quase subconsciente. Apesar disso, assi­

nalo a sua eficácia. Efectivamente presenciei o desenvolvimento de procedi­

mentos acerca dos quais os doentes manifestavam pavor e que, fruto destas

estratégia, o mesmo decorria com o doente em alegre cavaqueira com as

enfermeiras e sem referir qualquer queixa.

...A enfermeira começa de imediato a t ra tar do material necessário à heparmi-zação, dirigindo-se de seguida para junto da doente. Enquanto procedia à referi­da heparinização ia conversando com a doente sobre assuntos de natureza fami­liar, nomeadamente sobre os netos, ao que a doente respondia com manifesto agrado... (DO-010703)

...A enfermeira questionou-a se as queixas t inham só a ver com a punção ou também com o facto de ter que vir àquele serviço e que se confrontar com as situações que lá estão e que lhe farão recordar a sua. A doente negou tal expli­cação e diz que é mesmo o desconforto que a preocupa. A enfermeira foi sempre falando e tentando distrair a doente ao mesmo tempo que desenvolvia os proce­dimentos necessários. A partir de determinado momento a conversa entre a enfermeira e a doente passou para um tom de voz apenas audível às duas e assim se manteve durante algum tempo.... (DO - 220503)

Esta última asserção faz a ponte para o modo de intervenção seguinte

que denominei de "afabilidade". Poderá parecer estranha a introdução desta

subcategoria. Contudo, tal não me deixou a mínima dúvida em momento

algum. A afabilidade é parte integrante do modo de estar deste grupo de

enfermeiras e fiquei convicto que tem um papel importante no contexto da

relação com os doentes e familiares. A afabilidade está presente no contacto

inicial, bem como nos subsequentes. Ela é patente no modo como as enfer-

229==================-================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 232: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

meiras cumprimentam personalizadamente os doentes, tratando-os pelo

nome, expressando carinho, mas também no modo como os vão chamar à

sala para início da quimioterapia, como se mostram disponíveis, como rece­

bem as pessoas (com um sorriso), como respondem às questões colocadas,

entre outros. Torna-se, digamos assim, num pano de fundo e num padrão de

grupo que contextualiza os cuidados e que gera um ambiente muito agradá­

vel, contribuindo para o alcançar dos objectivos terapêuticos. Daí o facto de

lhe atribuir esta importância. O extracto abaixo apresentado parece para­

digmático na medida em que se percebe o efeito benéfico da afabilidade em

alguém em profundo sofrimento.

...Entre as doentes que nesse dia tinham tratamento previsto, uma das primei­ras a chegar foi a D. I. Deslocava-se em cadeira de rodas, ajudada por um fami­liar. Quando chegou junto à porta da sala de tratamento foi cumprimentada de modo muito afável pelas pessoas presentes, nomeadamente pela enfermeira (...). Este cumprimento incluiu parar o que estavam a fazer e dar-lhe atenção. Logo ali lhe perguntaram como se sentia e como tinha evoluído a situação. A sra t inha um ar bastante debilitado e até um fácies doloroso, mas manifestava boa dispo­sição e alguma alegria, através de um sorriso, carregado de alguma tristeza.... (DO - 260503)

Por fim referência para a "disponibilidade". Também este modo de inter­

venção constitui como que uma presença constante que, de algum modo,

acaba por contextualizar outros. Concretiza-se através da disponibilidade

para ir adequando o cronograma à vida da pessoa ou da disponibilidade para

resolver os mais diversos tipos de problemas colocados pelos doentes e fami­

liares, mesmo via telefone. Tal é o caso de alterar um outro procedimento

burocrático-clínico no sentido de facilitar a vida das pessoas, ou de atender

chamadas telefónicas, quer no telefone da rede fixa (do hospital) quer nos

telemóveis pessoais, a qualquer hora, estando ou não de serviço. Este modo

de intervenção compreende também uma disponibilidade de natureza mais

imediatista e que se manifesta perante as solicitações dos doentes durante

os tratamentos. Ou seja, se um doente solicita algo (e.g., um soro que aca­

bou, um injectável que precisa de ser administrado, uma tensão arterial que

o doente gostaria que fosse verificada), de imediato a enfermeira se disponi­

biliza para o fazer. Quando esta disponibilidade imediata não é possível,

" " " " " " — " — — — — — — — " ~ ~ " _ — - — 230 Dissertação de Doutoramento

Page 233: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

assume o compromisso de que será dada uma resposta no mais curto espaço

de tempo.

No primeiro dos exemplos que abaixo apresento, manifesta-se disponibi­

lidade para alterar o cronograma de um doente, fazendo-o coincidir de novo

com o dos amigos. Tal não foi solicitado pelo doente, contudo, mesmo assim é

sugerido, deixando ao doente a possibilidade de decisão. Também no segun­

do exemplo é manifesta a preocupação com a adequação do cronograma à

vida do doente. O último é demonstrativo de uma disponibilidade imediata

mesmo para doentes e situações não agendadas.

... As enfermeiras informaram-no que um seu amigo e companheiro de trata­mento tinha mudado de dia e que se ele quisesse mudar também, podia fazê-lo. O Sr. referiu que não porque o seu dia ideal era a quinta-feira...(DO - 040702)

... Ao combinar com um doente a próxima vinda dele, tentou fazê-lo de modo a colidir o menos possível com a vida do doente...(DO - 150702)

... A enfermeira saiu da câmara de fluxo laminar e dirigiu-se para a Ia sala. Ao pas­sar pelo corredor foi interceptada por um doente (Sr. A.) que já se tinha assomado à porta da sala numa atitude de quem procura alguém. Tratava-se de um doente do serviço que procurava uma enfermeira para lhe administrar uma intramuscular. A enfermeira prontificou-se a fazê-lo, tendo pedido ao doente que se sentasse num dos cadeirões livres...(DO - 060802)

A "Promoção da esperança e perseverança", que engloba "Promoção da

esperança" e "Estimulação para a vida", complementa a anterior. Esta com­

plementaridade é patente logo na primeira subcategoria (i.e., "Promoção da

esperança") na medida em que, por exemplo, nas situações atrás referidas,

em que a enfermeira conhece por antecipação a representação negativa de

determinado procedimento ou tratamento, passa a actuar evidenciando os

aspectos positivos do fenómeno em causa e incentivando sistematicamente a

confiança do doente. Mas também se pode dizer que esta atitude da enfer­

meira se verifica face aos tratamentos de forma geral. Ou seja, existe um

reforço sistemático na confiança do tratamento, o que ao mesmo tempo

aumenta a esperança do doente. Tal não significa que a enfermeira dê

garantias de cura ou outras dessa natureza, mas mesmo em situações avan­

çadas da doença é possível controlar determinado tipo de sintomas e aumen­

tar o benrestar . Passa então a ser essa a esperança a incentivar, como aliás

se constata no exemplo que a seguir transcrevo.

231 Dissertação de Doutoramento

Page 234: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

... Como a doente estava bastante incomodada com a dor e não podia dar muita atenção, a conversa continuou com o familiar presente. Junto deste, a enfermei­ra tentou perceber o que é que já estava a ser feito para a dor. De seguida e com base nisso explicou como era o tratamento que se ia iniciar e qual o momento em que deviam parar a medicação que estava a fazer. Reafirmou que com aquele novo tratamento a dor iria diminuir muito ou mesmo desaparecer. Explicou ain­da que se mesmo assim persistissem as dores se devia dirigir ao serviço ou tele­fonar para se puderem adoptar outras medidas...(DO - 040702)

Relativamente ainda a esta subcategoria existem duas reflexões que me

parecem pertinentes. Uma, diz directamente respeito ao doente e tem a ver

com o contributo para o benres tar do viver com alguma esperança, seja ela

de que natureza for. Aliás o adágio popular diz que "enquanto há vida há

esperança", contudo, neste caso, atrevo-me a propor uma inversão do mesmo

e enunciá-lo da seguinte forma: "enquanto há esperança, há vida". A segun­

da tem a ver com uma curiosidade científica. Seria interessante verificar a

eficácia farmacológica com e sem incentivo da confiança no tratamento.

Outro modo de intervenção que complementa de modo directo o anterior,

é a que denominei "Estimulação para a vida". De modo geral, poderei dizer

que a grande finalidade subjacente a este modo de intervenção é a valoriza­

ção dos aspectos saudáveis da vida da pessoa. Para atingir esta finalidade, a

enfermeira valoriza os ditos "pequenos acontecimentos"do dia-a-dia e que

dão sentido à vida de cada um. Assim, alegra-se e valoriza o facto de a doen­

te referir que voltou a ter apetite, o facto de a doente ter tomado uma inicia­

tiva tendente a estimular a sua auto-imagem (e.g., ir ao cabeleireiro, como

no caso do exemplo abaixo apresentado) ou o facto de se ter vencido mais

uma etapa no tratamento. Ou então, preocupa-se com a intensa centração do

doente na doença e desenvolve medidas no sentido de alterar esse registo.

Essas são complementares das referidas na subcategoria anterior, e passam

pela chamada de atenção para a necessidade de manter uma atitude positi­

va. A esta última atitude poderá ser atribuída a crítica de ser culpabilizante

para a vítima, ou seja, de, apesar de o doente estar a sofrer com a situação

que está a vivenciar, ainda lhe ser atribuída a culpa por não ter uma atitude

positiva. Contudo, considerando o contexto em que isto é feito, penso que

este risco é desprezível.

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Dissertação de Doutoramento

Page 235: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

... Entretanto chegou de novo a enfermeira (...) e a doente aproveitou para dizer às duas enfermeiras que no próximo Sábado tem um casamento e precisa de ir arranjada e perguntou se faria mal ir ao cabeleireiro, uma vez que elas lhe tinham dito para não apanhar calor por causa do tratamento e no cabeleireiro tinha que estar com a cabeça no secador. As enfermeiras referiram que não tinha qualquer mal, explicando que o que fazia mal era a incidência de luz solar. Aproveitaram para a incentivar a ir e aproveitar os bons momentos e para se arranjar bem...(DO ­ 060802)

Terminado o grupo das categorias direccionadas ao doente numa pers­

pectiva individual, inicia­se um outro grupo em que a actuação está centra­

da na interface do doente com a organização e com os restantes profissio­

nais. Esta categoria dénommera "Intermediação centrada" (ver diagrama

7). A denominação deriva do facto de as acções desenvolvidas terem essen­

cialmente, um carácter de intermediação de processos e de relações e porque

apesar de a actuação não ser directamente sobre o doente, ela é centrada nos

seus interesses.

Diagrama 7 ­ "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" ­

Intervenção na interface doente/organização e no grupo de doentes (dados da observação).

a CS

No Doente/Família em Interac­ Intermediação, *De retaguarda

1 ç ã o com a Organização "► Centrada \ ­► Directa

•8 / * Outra

1 /

\ in

\ jGeslão de prioridades i d

\ Gestão do /^ VVigilância clínica grupo V^­­.

^Supervisão do ambiente relacional grupo V^­­.

^Supervisão do ambiente relacional d

\jestão de sentimentos

Supervisão do aluno

A intermediação pode ser de "retaguarda" quando a acção da enfermeira

se desenvolve fora do olhar dos doentes e familiares e se desdobra em con­

tactos no sentido de facilitar os procedimentos burocrático­administrativos e

os mais diversos processos. Destas acções não existe história nem registo. O

doente, a maior parte das vezes, fica apenas a saber quais os passos que ele

Dissertação de Doutoramento

Page 236: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

precisa de dar, ignorando completamente o trabalho feito para que aquele

caminho existisse. Este trabalho é de natureza informal e colmata, de algum

modo, as lacunas ditas normais duma organização deste tipo, tornando mais

eficaz e eficiente a resposta dada ao doente.

No exemplo que a seguir se apresenta, a enfermeira ao identificar uma

determinada situação para cuja solução era necessária a participação de

outros técnicos (e.g., o médico), desenvolveu os esforços necessários para

obter a sua presença. Porém, normalmente esta diligência da enfermeira

envolve outros pormenores curiosos, dos quais destaco a necessidade de

apresentar a situação clínica ao médico com argumentos que o convençam a

deslocar-se.

... naquele momento a enfermeira saiu da sala e foi ter com a médica no sentido de resolver aquele problema. Voltou passados alguns minutos acompanhada da médica. Esta fez algumas perguntas e deu algumas orientações à doente e pediu à enfermeira para fazer um analgésico endovenoso no final da quimioterapia.... (DO - 150702)

A intermediação pode também ser "directa". Esta pode ser posterior à de

"retaguarda", caracterizar-se por ocorrer aos olhos do doente e pode consistir

na simples apresentação do médico ou de outro técnico ao doente e

vice-versa ou então por algo mais elaborado. Quando é este o caso, normal­

mente é previsto pela enfermeira. Um dos exemplos ocorre quando o doente

ou familiar não verbalizam, perante o médico, toda a informação considera­

da necessária à compreensão da situação. Neste caso, a acção da enfermeira

centra-se no fornecimento da informação considerada indispensável à deci­

são. Outro exemplo é quando o médico ou outro técnico adoptam uma atitu­

de de visita rápida e saída apressada. Aí a enfermeira provoca a retenção do

técnico por mais algum tempo, com fornecimento da informação julgada per­

tinente.

O exemplo que a seguir apresento, à semelhança de muitos outros, tem

características complexas. Efectivamente constata-se uma atenção a vários

elementos da situação em simultâneo, com respostas diferenciadas para

cada um deles. Está em causa, não só, um elevado sentido de oportunidade,

que a levou a aproveitar a presença da médica para resolver um problema

Dissertação de Doutoramento

Page 237: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

de um doente, mas também, a capacidade de intermediação directa atrás

referida, uma percepção clara da capacidade de compreensão da doente e de

"tradução" da linguagem médica para uma linguagem acessível à doente.

...Ao mesmo tempo a enfermeira (...) estava junto da D. L., sendo que esta come­

çou a referir queixas nos membros inferiores, dizendo que sentia um prurido intenso. A enfermeira valorizou as queixas e aproveitou a entrada da médica assistente para lhe colocar de imediato o problema. A médica fez­lhe algumas perguntas e ponderou a hipótese de não iniciar a quimioterapia. Contudo, aca­

bou por medicar a doente e dar­lhe um conjunto de orientações no sentido de resolver o problema referido pela doente. No momento de dar essas orientações constatou­se que a doente tinha dificuldade em compreender algumas das orien­

tações tão simples como "um comprimido três vezes ao dia". Face a isto a enfer­

meira apercebeu­se e tentou dar essas mesmas orientações numa linguagem diferente. A doente pareceu perceber.... (DO ­ 140703)

O último vector relativo ao "Processo de Intervenção Terapêutica de

Enfermagem" é direccionado ao grupo de doentes presentes na sala e deno­

minei­o "Gestão do grupo" (ver diagrama 7). Engloba todas as acções que

tenham como destinatários o conjunto dos doentes, e que tenham uma fina­

lidade considerada terapêutica. Esta categoria engloba as seguintes subca­

tegorias :

■S Gestão de prioridades;

S Vigilância clínica!

S Supervisão do ambiente relacional;

S Gestão de sentimentos;

■S Supervisão do aluno.

A "gestão de prioridades" decorre naturalmente do facto de num deter­

minado espaço (i.e., sala de quimioterapia) estarem presentes diversas pes­

soas a aguardarem um serviço que não pode ser gerido em função da hora de

chegada. Efectivamente, esta gestão precisa de ter em linha de conta facto­

res como, o tipo de tratamento, a disponibilidade dos produtos, a disponibili­

dade dos valores analíticos, mas também o estado clínico do doente e até fac­

tores da vida privada. Ora gerindo as prioridades com base em tão diversifi­

cado grupo de factores, fácil será perceber o potencial de conflito que lhe está

subjacente. Para o evitar a enfermeira serve­se de uma estratégia de expli­

cação detalhada, ao grupo, das razões das suas decisões.

Dissertação de Doutoramento

Page 238: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

No exemplo abaixo percebe-se a gestão de prioridades quando a enfer­

meira interrompe uma interacção em função de uma outra situação clínica

que exigia uma intervenção urgente. Nesta situação percebe-se também que

na decisão foram tidos em consideração não só os interesses do doente, mas

também os do grupo. Por último realço as explicações dadas ao doente acer­

ca das decisões tomadas.

... Eínquanto decorria esta conversa a enfermeira estava de costas para os cadei­rões do lado oposto, onde estava sentado um doente (Sr. V.). A este doente tinha sido perguntado quando entrou na sala como estava e como se sentia. O doente t inha respondido que bem e que não tinha queixas. Passados alguns minutos e enquanto a conversa atrás referida decorria, o Sr. Iniciou um episódio de vómi­tos. A enfermeira de imediato interrompeu a conversa com a D. E. para ir em seu socorro, fornecendo_lhe guardanapos de papel e tentando perceber o que se passava. O episódio foi de curta duração, mas apesar disso as enfermeiras (...) decidiram mudar o doente para a 2a sala, onde ainda não estava ninguém, expli­cando ao doente quais as razões. Estas prendianrse com a possibilidade de um episódio daquela natureza poder desencadear uma reacção em cadeia, de carac­terísticas semelhantes nos outros doentes. Posteriormente o doente agradeceu muito à enfermeira porque ele também não se sentia bem em estar assim peran­te os outros doentes...(DO - 060802)

A "Vigilância clínica" caracteriza-se por uma atitude clínica de atenção

ao grupo e ao conjunto dos tratamentos que estão em curso em simultâneo,

bem como às respectivas possíveis reacções. Penso que seja oportuno lem­

brar que se t ra ta de um grupo de doentes com diferentes tratamentos em

curso, começados em momentos diferentes, com ritmos e formas de adminis­

tração diferentes e diferentes possíveis reacções. Sendo que, a juntar a isto

ainda temos a considerar, entre outros aspectos, o facto de cada doente ter

mais ou menos cuidado com o tratamento em curso, precisar de se deslocar à

casa de banho e/ou comer, enquanto decorre o tratamento. Neste contexto, a

atenção da enfermeira precisa de ser constantemente elevada. Esta vigilân­

cia contribui também para aumentar os níveis de segurança e confiança dos

doentes, não só porque implica uma presença constante, mas também por­

que redunda numa mensagem de eficácia e eficiência. Por esta razão rela-

ciona-se com as categorias promoção da confiança e segurança atrás referi­

das.

Em qualquer dos exemplos escolhidos para ilustrar este modo de inter­

venção da enfermeira existem, entre outros, três elementos a destacar: a

Dissertação de Doutoramento

Page 239: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

atenção constante à evolução das perfusões do conjunto dos doentes, a aten­

ção concomitante às reacções e ao estar dos doentes, o desenvolvimento

simultâneo de outras actividades.

.... A enfermeira (...) chega à sala, vigia as perfusões e posiciona­se junta à porta da sala. H3 desencosta­se do cadeirão e assim permanece. (A enfermeira) per­

gunta­lhe se está mal disposto. Aquele nega e explica que tem que mudar de posição por causa da sua coluna....(DO ­ 250702)

...Entretanto a enfermeira senta­se à secretária a preencher processos dos doen­

tes. Contudo, mantém uma vigilância constante sobre os doentes presentes na sala. Esta vigilância tem a ver com a evolução de cada uma das perfusões mas também tem a ver com o conforto e com o estar de cada um. Assim, varse levan­

tando de vez em quando para mudar, acelerar e lentificar as diversas perfusões, mas também vai metendo conversa com alguns doentes no sentido de perceber se estão comodamente instalados e se sobreveio algum sintoma associado ao tra­

tamento, ou então mete­se com o estado de humor principalmente dos mais calados ou daqueles que estão anormalmente calados. Algumas destas interven­

ções são feitas em tom brincalhão... (DO ­ 210503)

A "supervisão do ambiente relacional" congrega também um conjunto de

actividades dirigidas ao grupo e que têm como finalidades básicas, gerir os

sentimentos do grupo ou utilizar o grupo para gerir os sentimentos de um ou

outro doente. Isto é feito muitas vezes a partir daquilo que emerge esponta­

neamente do grupo. Ou seja, constata­se que entre os doentes presentes na

sala e enquanto decorre o tratamento, ocorrem processos de interacção da

mais variada natureza, mas que podem ser agrupados em dois grandes blo­

cos '■ "interacção social" e "interacção centrada no processo de saúde". A "inte­

racção social" é bastante frequente, aborda os temas mais diversos, nomea­

damente os da actualidade, e nela participam todas as pessoas que vão cir­

culando pela sala. A "interacção centrada no processo de saúde", é um tipo

de interacção em que os doentes expõem, uns perante os outros, as suas

preocupações e os seus medos, as suas vitórias ... em suma a sua vivência do

processo, como é o caso do exemplo abaixo apresentado. Nessas circunstân­

cias, a enfermeira avalia a situação e decide ou não interferir em função do

conhecimento que tem dos doentes presentes, do que foi dito e da resposta

que foi dada pelos outros doentes. A sua intervenção pode ser no sentido de

sublinhar pela positiva alguma informação que foi veiculada, de demonstrar

a inexactidão de alguma outra ou de se aproveitar da ambiente para atingir

determinado objectivo com um doente. Assim, por exemplo, se um doente

237 Dissertação de Doutoramento

Page 240: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

expõe em público os seus sentimentos aos pares e estes lhes respondem que

em fase correspondente também sentiram o mesmo, mas que afinal tal sen­

timento é injustificado, a enfermeira pode aproveitar para reforçar a sua

mensagem e a seguir servir­se dos outros doentes para ajudarem aquele a

ultrapassar a dificuldade.

... Esta era uma senhora muito alegre, que falava de forma que toda a sala a ouvisse e em tom alegre. Frequentemente brincava com qualquer tema e metia­

■se com os outros doentes. As conversas incluíram temas de natureza familiar, como por exemplo os netos, mas também temas relacionados com a sua situação de saúde, como por exemplo o facto de ter estado na praia e a forma que adoptou para que a mesma não interferisse negativamente com o seu processo. A D. M. valorizava essencialmente os aspectos positivos na sua vida...(DO ­ 040702)

A "Gestão de sentimentos" do grupo é um modo de intervenção da enfer­

meira que se reveste de grande importância neste contexto, que exige um

profundo conhecimento do conjunto dos doentes presentes na sala em cada

momento e que pressupõe capacidade de liderança. Por tais razões, parece

ser um modo de intervenção assumido de forma mais explícita, por umas

enfermeiras que por outras. A "Gestão de sentimentos" consiste na assunção

de que a sala de quimioterapia é um espaço relacional onde coexistem doen­

tes em diferentes estádios de vivência e de humor e cuja expressão se pre­

tende que seja benéfica para todos. Para atingir tal desiderato a enfermeira

conta com as suas capacidades mas também com as dos doentes. Ou seja,

assenta no pressuposto que a vivência de uma situação por uma determina­

da pessoa pode ser útil a outra, se partilhada. Todavia, este processo é mais

complexo, na medida em que a utilidade atrás referida tem potencialidades

especiais, uma vez que a ajuda vem de um par, a vivenciar uma situação

idêntica,' para além disso é ainda benéfico para quem dá essa ajuda na

medida em que se sente útil e valorizado, apesar de doente.

No exemplo que escolhi para ilustrar este modo de intervenção e que

abaixo apresento, a enfermeira tenta utilizar o grupo para exorcizar os

medos de uma doente.

...Foi então comentado quer pela doente como pela enfermeira que t inha um medo horroroso das punções. Esta confissão mereceu reparos das restantes doentes que faziam apelo a uma certa profissionalização que lhes permitia não ter medo de tal coisa. A D. R. respondeu que no caso dela a passagem do tempo

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Dissertação de Doutoramento

Page 241: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

só servia para ter cada vez mais medo. Aí a enfermeira relatou para todo o gru­po que quando tinha ido à sala de espera dos doentes tinha reparado que a D. R. estava com cara de preocupada o que a levou a dirigir-se-lhe e perguntar-lhe o que se passava. Aí, a doente terá respondido que não era nada, mas apenas aquela "agastura" no estômago que lhe dá cada vez que se dirige a este serviço. Isto foi motivo de risada geral na qual a doente também participou.... (DO -160703)

Existem ainda outras interacções que ocorrem na sala e que precisam

também de ser supervisadas e eventualmente geridas pela enfermeira. Tal é

o caso da supervisão da interacção das auxiliares de acção médica com os

doentes e familiares. Neste serviço, aquelas auxiliares têm um contacto mui­

to próximo e interagem frequentemente com estes. Contudo, a sua interac­

ção é essencialmente de natureza social. Apesar disso, pode acontecer que

façam passar mensagens que não sejam as mais adequadas ou que os doen­

tes emitam informações no contexto dessas interacções que seja de grande

utilidade. Por tais razões, normalmente a enfermeira está atenta a essas

interacções.

Outra interacção que também ocorre com alguma frequência é entre os

doentes e os familiares. Também esta precisa da atenção da enfermeira,

embora agora por razões de natureza diferente. É que, neste caso, o familiar

também se constitui como utente e portanto, passível de necessitar de cui­

dados. Assim, a enfermeira precisa de estar atenta a eventuais solicitações

subliminares. Aconteceu com alguma frequência o familiar enviar algum

tipo de sinalética para a enfermeira no sentido de lhe solicitar uma interac­

ção privada. Também precisa de estar atenta a esta interacção porque se

constitui como uma fonte de informação.

Por último, uma referência para uma outra interacção que ocorre neste

espaço com uma frequência razoável e que é protagonizado por alunos de

enfermagem e doentes. Neste caso a supervisão da enfermeira ganha outras

características, uma vez que precisa de se investir de um papel pedagógico

de formadora.

A "Gestão do grupo" é uma actividade que exige um grande conhecimento

dos doentes, bem como dos restantes actores que circulam nesta sala e uma

boa aceitação por parte deles. Considero ainda que do ponto de vista tera­

pêutico é de grande utilidade, uma vez que é privilegiada enquanto fonte de

239===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 242: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

informação e enquanto instrumento terapêutico porque congrega e potencia

a opinião vivida dos pares e a opinião técnica da enfermeira.

Perspectivando agora o "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfer­

magem" tal como foi categorizada com base nos dados recolhidos através de

observação na sala de quimioterapia, destaco os elementos essenciais.

O primeiro a destacar e que marca uma diferença face aquilo que tinha

acontecido na entrevista de admissão, é o carácter multifocal da actuação da

enfermeira. Ou seja, a enfermeira, continuando a centrar a sua atenção

sobre o doente/familia, alarga-a à interface do doente com a organização e

outros profissionais, bem como ao grupo de doentes na sala de quimioterapia

e à sua interface com cada doente em particular e com a organização. Isto

confere mais uma característica específica aos cuidados de enfermagem nes­

te contexto

O segundo elemento a destacar diz respeito à continuidade de algumas

das actividades que se t inham iniciado na entrevista de admissão, como

sejam a "Gestão de sentimentos", nas vertentes de promoção da confiança e

da esperança e perseverança. A mesma coisa se pode afirmar relativamente

à "Gestão da Informação". Isto é, também neste caso existe uma continuida­

de relativamente à entrevista de admissão. Quer num caso como noutro,

apesar desta continuidade, é-lhe introduzido um novo factor que lhe dá

carácter próprio. Agora a gestão da informação e dos sentimentos é feita em

contexto. Ou seja, a informação deixou de ser abstracta, passou a ser sobre

algo concreto, sobre o que está a acontecer. A gestão dos sentimentos é tam­

bém feita no imediato.

O terceiro elemento a destacar tem a ver com o surgimento de outros

modos de intervenção, os quais resultam das necessidades dos doentes e que

dão corpo à relação. Estou a referir-me à "Promoção da autonomia", "Promo­

ção do respeito" e "Promoção do conforto". Relativamente a qualquer um

deles pode-se dizer que os mesmos foram iniciados na entrevista de admis­

são, contudo, é aqui que ganham a sua verdadeira dimensão.

========================================== 240 Dissertação de Doutoramento

Page 243: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

O quarto e último elemento a destacar é o carácter de complementarida­

de entre as diversas subcategorias e categorias, resultando numa acção de

natureza complexa e multifacetada.

Chegados a este ponto, é de realçar a continuidade na intervenção da

enfermeira entre um momento inicial, na entrevista de admissão e os

momentos posteriores, na sala de administração de quimioterapia. É de

realçar também a adequação da intervenção às circunstâncias. Tal é notório

não só na passagem atrás referida, mas ainda à medida que a relação com

um determinado doente vai evoluindo. Isto remete-nos para a relação do

"Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" com o "Processo de

Avaliação Diagnostica" e que posteriormente será explorada. De todo o

modo, pode-se assinalar desde já que é da sistemática recolha de informação,

contextualizada na que já detinha, que se constrói esta perspectiva evolutiva

e sistematicamente contextualizada da intervenção.

5.4.3 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem": Outros

olhares

Entendo que o construeto "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfer­

magem" ganha consistência através da continuidade que acabei de referir.

Contudo, e para que essa consistência saia reforçada, penso que seja ade­

quado cruzar esta informação com a recolhida através das entrevistas efec­

tuadas às enfermeiras e aos doentes. As questões que se colocam são:

As enfermeiras têm consciência da intervenção que desenvolvem junto

dos doentes?

Se sim, quais as características dessa intervenção, na sua perspectiva?

Essas características são sobreponívéis às aqui apresentadas?

E os doentes têm consciência das intervenções desenvolvidas pelas

enfermeiras?

Identificam as suas características?

São essas características sobreponívéis às aqui apresentadas?

E a esta conjunto de questões que irei responder. Para tal procederei à

apresentação de algumas das categorizações construídas a partir da análise

Dissertação de Doutoramento

Page 244: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros! Construção de uma relação

das transcrições das entrevistas feitas às enfermeiras e aos doentes. Come­

çarei pelas enfermeiras.

5.4.3.1 — "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem": Pers­

pectiva das enfermeiras

A partir das entrevistas efectuadas às enfermeiras também se encontra­

ram elementos que me conduziram à categorização de um construeto deno­

minado, "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem". Este cons­

trueto é constituido por três conceitos, dois dos quais sobreponívéis aos

encontrados a part ir de outras fontes (i.e., entrevistas de admissão e obser­

vação).

O primeiro conceito denominei-o, "Gestão de sentimentos" (ver diagrama

8). Este tem como centro de atenção o doente, de um ponto de vista indivi­

dual e ocupa um lugar central no discurso das enfermeiras. Subjacentes a

este conceito podem-se enunciar duas características gerais.

Diagrama 8 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" Perspectiva das enfermeiras.

<'riar espaço relacional nteragir verbalmente

íspombilidade Promoção da

«Confiança ^ - P r e s e n ç a

<Dos sentimentos reactivos

Afectiva profunda

( Incentivo da espe- ̂ Esperança Jncentivo de projectos ;i; rança e perseve- / /

® rança Potenciar as capaci- /^Valorização de recursos e dades do doente \ capacidades

vDutros

tolaçáo de cumpliciuaue

_ 'artilha de luto Potenciar as capa­cidades da família ^ P a r t i l h a de sentimentos e

dificuldades

'artilha de informação

Mediar relações

Outros

242 Dissertação de Doutoramento

Page 245: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Por um lado, uma preocupação com a garantia de um sentimento de con­

fiança e segurança para o doente. Esta preocupação tem essencialmente a

ver com a resposta às solicitações dos doentes, os quais, como resultado do

processo que estão a vivenciar, manifestam elevados níveis de ansiedade,

insegurança, medo, entre outros. Trata-se assim, de transmitir uma confian­

ça e uma segurança que é também uma espécie de aconchego.

Por outro lado, uma preocupação com o incentivo da esperança e das

capacidades do doente. Este duplo incentivo constiturse como um todo com­

plexo em que as partes se potenciam mutuamente. Assim, ao mesmo tempo

que se incentiva a esperança, evidencianrse as capacidades que a pessoa

possui e que pode usar em seu benefício e dos que o rodeiam.

Neste contexto, são duas as categorias que integram este conceito^ a

"promoção da confiança" e o "incentivo da esperança e perseverança" (ver

diagrama 8).

A "Promoção da confiança" concretiza-se em primeira análise através da

promoção da relação, pelo que a primeira subcategoria foi designada "pro­

mover a relação". Ou seja, há que criar condições para que a relação possa

ocorrer. Para isso é necessário criar um espaço de relação. Este pode corres­

ponder simultaneamente a um espaço físico e a um espaço-tempo. Contudo é

este último que assume maior importância. O espaço-tempo tem relação

próxima com a disponibilidade de que falarei mais à frente e que é patente

nos dois exemplos que apresento de seguida.

... Estivemos falando, falámos sobre o que é que poderia acontecer, ... pronto, ela a falar do que podia acontecer em relação aos bebés, em relação a ela ... eu, a única coisa que fiz foi tentar-lhe dar um confortozinho, não me meti muito no dizer que vai acontecer isto ou que vai acontecer aquilo, (...) mas foi principal­mente isso,...(EEI - 080702)

(...) quando ela volta outra vez, eu comecei a notar que além da preocupação da filha e da doença, que havia outra preocupação qualquer, que ali não era só aquilo, t inha que haver outra coisa (...) a sala não tinha muitas condições e eu também me apercebia que ela falar assim, (...) e então eu arranjei uma maneira de tentar ficar com ela sozinha (...) combinei com a colega que estava comigo que da próxima que ela viesse, nós íamos preencher aqueles cadeirões e ela seria a última para eu a conseguir pôr na outra sala que t inha camas e ela ficar sozinha (...) eu estive a falar com ela, estive assim um bocadinho, estive fazendo as coi­sas, pondo os soros e entretanto consegui puxar a conversa para a filha, (...) E ela, nessa altura começou então a falar (...) contou-me que de facto tinha vários problemas (....) e então, ela lá esteve, ela desabafou, chorou ... (EEL-040702)

Dissertação de Doutoramento

Page 246: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

O espaço físico também existe, tal como se vê nos exemplos atrás apre­

sentados, porém, pode não corresponder a um espaço delimitado por quatro

paredes onde apenas estejam a enfermeira e o doente. O que é mais frequen­

te é um espaço onde coexistem diversas pessoas, mas dentro do qual a

enfermeira e o doente poderão desenvolver um microcosmo de privacidade.

Para o efeito a enfermeira poderá servir-se dos cortinados amovíveis, mas

mais frequentemente serve-se do seu próprio corpo como barreira. Concomi­

tantemente, baixa o tom de voz e aproxima-se o suficiente para a conversa

ser inaudível aos restantes. São deste modo, criadas condições de privacida­

de e disponibilidade que permitem a verbalização de sentimentos e preocu­

pações. De referir que o potencial terapêutico está subjacente aos dois com­

ponentes (i.e., criação de condições e verbalização).

Como corolário natural da subcategoria anterior surge esta outra que

denominei de "interacção verbal". A interacção verbal é o instrumento psico-

terapêutico por excelência. Talvez por isso seja sistematicamente usado,

quer incentivando a verbalização do doente, quer sendo usado pela enfer­

meira para fazer chegar a sua mensagem. É esta dupla vertente que a sub­

categoria assume. Quer numa quer noutra das vertentes os temas podem ser

os mais diversos indo desde anódinas conversas sociais até à expressão de

sentimentos pelo doente ou às explicações mais diversas dadas pela enfer­

meira. O exemplo que a seguir apresento parece-me ser paradigmático rela­

tivamente ao assumir da interacção verbal como instrumento terapêutico.

Efectivamente é assumido que a doente está a vivenciar uma crise e que o

instrumento preferencial foi a interacção verbal.

.... eu tentei ajudar, não sei até que ponto, mas.... A superar aquela crise (....) Só falar (....) Muitas vezes ela só falava mais em particular. Falava ali ou tentava cooperar com os doentes mas não .... mas falar só mais particularmente... (EEJ -160702)

Como complemento já atrás referido surge-nos a "disponibilidade". A dis­

ponibilidade é uma atitude sempre presente e de grande importância no

contexto da relação desenvolvida pela enfermeira, porque se constitui como

uma das formas de concretizar o espaço relacional a que atrás fiz referência.

Pode também ser entendida pelo doente como uma atitude de acolhimento e

- _ = = = = = _ _ - _ - _ „ _ _ _ „ = = _ _ _ ™ _ _ = = _ _ „ „ „ „ _ „ _ = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = _ _ _ 2 4 4

Dissertação de Doutoramento

Page 247: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulculcs c os enfermeiros: Construção de uma relação

aceitação e por essa razão, securizante. A disponibilidade é antes de tudo

uma atitude interior, tal como é patente no primeiro dos dois exemplos abai­

xo apresentados. Ou seja, neste caso, resultou de uma sensibilidade compas­

siva relativamente à situação de uma pessoa.

.... sei que houve um dia em que ela estava sozinha na segunda sala e eu nunca tinha conversado com ela, nunca me tinha assim dirigido a ela, mas tive disponibi­

lidade, e porquê? Por um lado isso (o estar isolada), e por outro lado, por ela ter tido gémeos, como também tenho ... (EEA2 ­ 180702)

... Telefonou­me um dia a pedir se podia vir cá conversar comigo. Eu disse, "está bem". Estivemos aqui horas a conversar... (EEA3 ­ 010802)

A par com a "disponibilidade" surge­nos a "presença", que aliás também é

patente nos exemplos atrás apresentados. A presença é uma forma de estar

próximo e disponível, mas também um modo de ser solidário, forma de

manifestar preocupação e garantia de não abandono, tal como se pode cons­

tatar no exemplo seguinte. A presença exige muitas vezes uma postura

paciente e tolerante por parte da enfermeira e acima de tudo muita persis­

tência.

... ela, cá em Évora, nunca teve a certeza de aquilo ser uma recidiva, nunca teve essa certeza... portanto eu não estou com ela quando ela sabe que aquilo é uma recidiva.... ela própria não estava preparada para aquilo, porque nenhum médico .... Ela depois teve a notícia lá (no Brasil) e eu soube por telefone porque eu depois tele­

fonerlhe, telefoneHhe para lá na véspera de ela ser operada... (EEA3 ­ 010802)

O "respeito" outra das subcategorias da "Gestão de sentimentos", assume

três formas distintas^

S Respeitar o tempo da doente!

S Preservar a intimidade da expressão dos sentimentos!

■S Respeitar a confidencialidade na relação.

O respeito pelos tempos do doente já, de algum modo, atrás t inha sido

enunciado ao realçar­se a paciência como inerente à presença. Contudo, este

conceito de respeito vai mais além, assumindo centralidade numa relação,

na medida em que a gestão de sentimentos só é eficaz se respeitar os tempos

do doente. O exemplo a seguir apresentado parece­me paradigmático a esse

nível. Numa atitude de grande paciência e disponibilidade foi concedido

245 Dissertação de Doutoramento

Page 248: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

tempo à doente para poder gerir o seu processo. A gestão de informação pre­

cisa igualmente de ser feita no estrito respeito dos tempos do doente.

... Isto passou um dois ciclos, sempre naquela cadeirinha, ... fazia questão.... ela não entrava na sala de espera, ela vinha por este lado {referência ao corredor interior) aqui por fora, por esta entrada aqui deste lado e sentava-se nestas cadeiras aqui {no corredor interior). Para depois entrar no gabinete da doutora que é ali em frente e ninguém a ver. Ela fazia questão que fosse assim. Isto foi 2 ou 3 ciclos (...) Para aí ao fim do 4o ciclo, talvez, ela começou a ficar mais aberta a falar connosco,...(EEI - 080702)

Por seu lado, a reserva da intimidade e da confidencialidade são pilares

básicos da confiança na relação. Todavia, aqui têm um reforço considerável

da importância na medida em que, para além de estar em causa a intimida­

de e confidencialidade resultante de uma interacção verbal, está também a

resultante de uma interacção que tem uma componente física que leva à

exposição das partes do corpo consideradas íntimas. No exemplo que apre­

sento está apenas patente a confidencialidade inerente à interacção verbal.

Apesar disso parece-me significativo, considerando o contexto de cuidados

em análise, acerca do qual referi mais atrás que havia troca de informação

entre as enfermeiras relativamente aos doentes.

... Não sei se às outras colegas falaria de mesma maneira, também nunca falei.... como as coisas são ditas assim muito em particular eu acho que, pronto, temos que respeitar. Nem falei com as colegas acerca disso. Só assim aquelas que nos falam na sala que nos dizem na sala na frente de outras pessoas. Isso é diferen­te, não é. Se houver alguém que está a dizer "oh sra enfermeira eu tentei isto ou aquilo..." fica entre nós, é evidente. Se fosse eu a ter uma certa confiança na pessoa e ser capaz de lhe dizer, também não gostaria de ouvir depois um qual­quer comentário e pensar "afinal, eu tentei...."... (EEJ - 160702)

A "compreensão" é a última das subcategorias deste grupo, não signifi­

cando tal menor importância que as outras. Aliás, seria quase impossível

promover a confiança do doente se não existisse uma atitude de compreen­

são por parte da enfermeira. A "compreensão" tem duas variantes, comple­

mentares entre si. A primeira tem a ver com a compreensão dos sentimentos

reactivos. Ou seja, os sentimentos expressos pelo doente como resultado da

vivência dos processos de doença e tratamento. Se não existisse esta com­

preensão dificilmente se compreenderiam algumas das formas de gerir os

sentimentos observadas na prática clínica e já atrás referidas (e.g., "raciona-

Dissertação de Doutoramento

Page 249: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

lização", "desmitificação"). Com esta atitude a enfermeira não se limita a

compreender os sentimentos numa perspectiva vivencial. Compreende-os

também numa perspectiva biomédica. Ou seja, sabe quais os processos fisio-

patológicos e psicopatológicos que estão por detrás dos fenómenos. Isto facili-

tadhe o processo de intervenção. O extracto escolhido para ilustrar a com­

preensão nestas duas variantes, é referente a uma situação de recidiva de

cancro após uma primeira intervenção cirúrgica e um período de quimiote­

rapia, ao qual se seguiu algum tempo de aparente normalidade, numa

mulher muito jovem. Estes elementos são compreensíveis por qualquer pes­

soa que conhecesse a doente, sendo particularmente relevantes para alguém

com quem exista uma relação preferencial. Mas, se este alguém compreen­

der também a fisiopatologia daquelas metástases em concreto, com tudo o

que isso implica, então tem uma compreensão mais abrangente e global

... E portanto, por isso é que foi um grande balde de água fria agora quando tudo aconteceu, passados estes meses, não é? Passados estes meses que ela faz exa­mes e pronto, houve aquele reacender outra vez de toda aquela situação ... foi muito complicado para ela... (EEA3 - 010802)

Porém, a "compreensão" integra ainda uma outra perspectiva que deno­

minei como "compreensão afectiva profunda". Pela forma como as enfermei­

ras verbalizam os seus relatos, o que se torna patente é que para além da

compreensão já atrás descrita existe um patamar diferente através do qual

se consegue uma compreensão profunda da dor e das dificuldades de outrem,

quase como se fosse em si própria. Este diferente grau de compreensão pare­

ce ser alcançado apenas com doentes com quem existe uma relação muito

próxima. É uma compreensão que não se refere a um sentimento específico

mas antes à globalidade da situação, parecendo ter mais a ver com o desafio

radical com que a pessoa se confronta. É por fim uma compreensão que,

gerando uma grande proximidade, parece acarretar também um elevado

risco de sofrimento para a enfermeira, como mais à frente se verá. Suspeito

que os extractos de texto abaixo apresentados não traduzam com fidelidade

esta outra dimensão da compreensão. Tal acontece porque se perde uma

quantidade considerável de informação, quando se passa o relato a cores e

ao vivo de alguém, para o preto e branco estático do papel. Mas eu, que pre-

247 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 250: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

senciei o relato, vi a emoção expressa nos gestos e no fácies com os olhos

marejados de lágrimas.

... Assim que ela me viu começámos a chorar as duas e estivemos montes de tempo agarradas uma à outra a chorar, porque não queríamos que aquilo vol­tasse a acontecer... (EEA3 - 010802)

... Há uma descrição dela quando se sente sem cabelo que é (...) marcou-me bas­tante a descrição de quando ela está no banho e sente todo o cabelo a cair. Fica com medo, ela diz que foi muito rápido. O que aconteceu e como sentiu. E como sair da casa de banho?... (EEJ - 160702)

A "Gestão dos sentimentos" engloba ainda uma outra subcategoria deno­

minada, "Incentivo da esperança e perseverança". Naturalmente funciona

como complemento da anterior. Ou seja, a par com a promoção da confiança

e da segurança através de atitudes de aconchego, as enfermeiras estimulam

a esperança e a perseverança como forma de o doente encontrar em si pró­

prio e não nos outros, motivação para a vida. Assim a estimulação da espe­

rança está sistematicamente presente na intervenção da enfermeira. Tal

como já foi referido em outro momento, a esperança vã não faz parte do car­

dápio da enfermeira. Contudo, é sempre possivel ter esperança em algo, e é

esta perspectiva que está presente.

Paralelamente, estimulam-se as capacidades do doente, quer seja pela

estimulação dos seus projectos, quer pela valorização das suas capacidades.

Os projectos podem ser os aparentemente mais comezinhos, como conseguir

ir ao casamento de um familiar, tal como no primeiro exemplo abaixo apre­

sentado! ou os aparentemente mais elevados, como desenvolver um grupo de

auto-ajuda, à semelhança do segundo exemplo que apresento. Em qualquer

dos casos a enfermeira participa e estimula.

... eu lembro-me na altura que ela tinha um casamento, foi quase na fase termi­nal dela, em que ela já nem fazia quimioterapia, mas ia lá passar os dias com a gente e ela um dia disse-me que havia um casamento e que ela gostava muito de ir àquele casamento, mas não sabia se conseguia. E que o pai não estava a que­rer que ela fosse, nem a mãe,... mas ela gostava de ir, gostava da pessoa que ia casar e gostava de a acompanhar e que sabia que era o último casamento que ia, disse isso explicitamente, e gostava de ir. E mesmo para a miúda. A miúda esta­va ali, sempre com os avós, nunca saía, com ela doente! E eu disse-lhe, "então e não vai porquê?... ( E E L - 040702)

.... porque isso surgiu também de uma conversa que eu tive com ela, que eu gos­tava que as coisas fossem diferentes aqui, gostava de dar muito mais apoio aos

. — _ _ _ - - - _ _ — — . - . _ . 248 Dissertação de Doutoramento

Page 251: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

doentes, tudo isso. Depois entre nós esse tipo de conversas, fez com que ela sugerisse isso, esse trabalho de grupo com as pessoas... (EEA3-010802)

Outra forma de estimulação é através da valorização das capacidades e

dos recursos dos doentes. Por vezes, estes até passam despercebidos ao doen­

te. Tal é o caso, por exemplo, de o doente ter um familiar que o ajude e se

preocupe com ele. Muitas vezes a enfermeira evidencia este facto junto do

doente, como forma de realçar a sua importância enquanto recurso e parale­

lamente, promover a coesão familiar. Outras vezes o doente não atribui um

significado particular a alguns dos recurso que detém. Como acontece, por

exemplo, quando conseguiram desenvolver uma determinada estratégia para

ultrapassar uma dificuldade. Neste caso a enfermeira realça a importância de

tal facto, mas principalmente a capacidade que lhe está subjacente.

Como última referência deste grupo, uma chamada de atenção para a

estimulação da capacidade de decisão do doente e para a sua preservação, o

que aliás é patente no exemplo que apresento.

... Evidentemente que eu não lhe dava as opiniões, tentava que ela resolvesse as coisas e tentava ser ela a,... porque dar opiniões,... a vida era dela e ela é que tinha que decidir fosse aquilo que fosse. E tentei sempre que fosse ela a decidir as coisas. (EEL - 040702)

Em jeito de resumo e sobre a "Gestão de sentimentos", é de realçar, a

preocupação em criar um espaço/tempo de relação, para o qual contribuem

de forma marcada as atitudes de "disponibilidade", de "presença", "respeito"

e "compreensão". O conjunto destes elementos é de grande importância na

promoção do sentimento de confiança e segurança do doente. O segundo fac­

tor de realce na "Gestão de sentimentos" é o "Incentivo da esperança e per­

severança". Neste destaco o "potenciar das capacidades dos doentes",

nomeadamente através do incentivo de projectos pessoais e da valorização

de recursos.

A categoria seguinte é, "Potenciar as capacidades da família". É conve­

niente justificar desde já a separação entre a família e o doente. De acordo

com os dados expressos nas entrevistas pelas enfermeiras, a relação com a

família tem características diferentes daquela que se verifica com o doente.

É que, a família, para além de utente, é também parceira nos cuidados ao

249 Dissertação de Doutoramento

Page 252: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

doente. Por tal razão, a relação com a mesma é um misto de parceria e uten­

te dos cuidados. Isso mesmo se reflectirá na caracterização que se segue.

O primeiro elemento a destacar designei-o, "relação de cumplicidade".

Neste, o que está principalmente em causa é a cumplicidade entre dois cui­

dadores, pelo que se evidencia a complementaridade de papéis. Esta cumpli­

cidade parece-me evidente no extracto que a seguir apresento. Em alguns

momentos e com alguns familiares, a troca de informações parece ter seme­

lhanças com uma passagem de turno entre profissionais de enfermagem, a

qual consiste na transmissão de informação relativa à situação dos doentes e

dos cuidados de forma a permitir a sua continuidade.

...ele vinha sempre com os bombeiros e ela {a mulher) vinha sempre à minha procu­ra, sempre, sempre. Vinha-me sempre dizer, "O L. já cá está" (...) eu sabia o que é que aquilo queria dizer, ela queria que eu fosse e era sempre eu que ia porque depois ficou logo estabelecido que assim seria... (EEA1 - 180702)

Já a "partilha de luto" evidencia principalmente a vertente do familiar

enquanto utente dos cuidados. Neste caso é, frequentemente, partilhado um

luto por antecipação, embora também possa acontecer que o familiar se des­

loque propositadamente ao serviço, após a morte do doente, para parti lhar o

seu luto, como no caso abaixo apresentado. Apesar desta predominância,

pode, porém, acontecer que a partilha do luto seja mútua e que se ajudem

mutuamente nessa verdadeira partilha, como também é patente no exemplo

que apresento.

... uma vez apareceu-me cá com uma coisa incrível que eu chorei que me desalmei naquela sala de espera, (...) porque me veio com um quadro enorme, um quadro dele, com a história de vida dele, é impressionante.... fez um quadro enorme, que era para pôr lá no quarto da filha e depois veio-me mostrar que era para ver se eu achava que tinha ficado bonito, quer dizer!.... depois fez questão de me vir cá mostrar aquilo. Que ela dizia que agora agarrava-se .... t inha gostado muito de fazer aquilo, aquele quadro e que se agarrava muito aquilo. Pronto, era o quadro que ela ia pôr lá no quarto da filha...(EEA1 - 180702)

Algo de semelhante ao anteriormente descrito acontece com a partilha de

sentimentos e dificuldades. Todavia, neste caso é ainda mais notória a posi­

ção de utente dos cuidados assumida pela família. Neste caso, normalmente,

a família solicita um tempo e um espaço que lhe permitam verbalizar as

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = _ = = = „ „ _ _ _ _ _ „ = = = _ _ _ . . _ „ „ _ _ _ _ _ „ „ = = = „ „ „ _ _ . . _ _ „ „ 2 5 0

Dissertação de Doutoramento

Page 253: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

suas dificuldades e expressar os seus sentimentos, tal como é ilustrado no

exemplo que apresento.

... E então através da prima, a mãe foi lá. Foi lá com a neta. Um dia que ela estava a fazer o tratamento, depois apareceu lá, (....) Depois a Sra esteve a falar comigo e a Sra quis falar comigo sozinha, sem ser diante da filha nem da neta. Lá consigo ali outra artimanha, outro canto que para ali descobri, lá fui com ela e lá estivemos a falar... (EEL-040702)

Por último, uma referência para a "partilha de informação". Assumiu

esta designação porque a familia também canaliza alguma informação para

a enfermeira. Contudo, o sentido predominante é o inverso. Portanto, será

predominantemente uma intervenção de natureza informativa da enfermei­

ra para a família e ao mesmo tempo de mobilização de recursos.

... Lá estive a falar, quer dizer o que fiz com a filha tive que estar a fazer com a mãe, a falar com ela a explicar-lhe, pronto a alertá-la que a filha precisava mui­to de ajuda, ela precisava, a gente compreendia porque não era uma situação muito fácil, mas que a filha no momento precisava de muita ajuda... (EEL -040702)

A última categoria deste conceito foi denominada "mediar relações". Nes­

te caso é mais notório o papel assumido pela enfermeira na intermediação

das relações do doente com os que lhe são próximos. Acontece por vezes que,

fruto das dificuldades de vivência do processo de doença, o doente enclausu-

ra-se de uma forma e os que lhe estão próximos de outra. Este processo tor­

na difícil a comunicação e pode conduzir a um afastamento progressivo com

culpabilizações mútuas. Neste caso, a enfermeira pode interferir ou ajudan­

do a compreender o porquê deste processo a um ou a ambos dos intervenien­

tes,' ou interferindo directamente sobre um dos intervenientes, evidenciando

a necessidade de ultrapassar esse constrangimento à comunicação, como

forma de ajudar o doente. No extracto que se segue, a enfermeira explica ao

doente as razões do afastamento e do silêncio dos amigos.

... depois tentava explicar-lhe o porquê .... tentar que ele percebesse que as pes­soas não faziam isso de maneira nenhuma por mal, mas era porque muitas vezes, as pessoas não sabem o que é que hão-de dizer, não sabem ... e não perce­bem esse sofrimento, não percebem que não indo ter com as pessoas e não falando com elas que é muito pior do que tentando aproximar-se...(EEAl -180702)

251 =========================================== Dissertação de Doutoramento

Page 254: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Do conjunto das categorias que constituem este conceito sobressai como

mais relevante a "Gestão de sentimentos" do doente. Nesta, as subcategorias

que as constituem são sobreponívéis às referidas em idêntico conceito mas

categorizado a partir de outras fontes. Por sua vez, a caracterização ou é

sobreponível ou complementar daquelas outras. É sobreponivel quando se

fala de disponibilidade ou de respeito, uma vez que a caracterização é idên­

tica. É complementar quando se fala de compreensão, por exemplo. Isto por­

que se, enquanto observador, constatei formas de gestão de sentimentos

reactivos, era expectável que a protagonista da intervenção (i.e., a enfermei­

ra) verbalizasse alguns dos instrumentos dessa gestão. Ora a compreensão,

surge-nos numa das suas vertentes, como dos sentimentos reactivos, portan­

to, com características que complementam as da gestão dos sentimentos

reactivos.

A categoria seguinte (i.e., "Potenciar as capacidades da família), merece

realce porque aparece claramente diferenciada no discurso das enfermeiras.

Ou seja, entendem a família como utente e que a sua intervenção junto

daquela tem características próprias. Tal não colide com o observado noutros

contextos, contudo, aí pareceu não ter tanta relevância. Tal justificar-se-á

porque alguns dos contactos entre a enfermeira e a família ocorrerão fora do

contexto da sala de quimioterapia.

Por último, surge-nos a categoria "mediar relações" que serve de ponte

entre as duas anteriores. Ou seja, assumindo a enfermeira papéis de desta­

que na gestão dos sentimentos do doente e da família, é natural que se sinta

investida também do papel de mediadora das relações entre ambos. Este

papel nada tem a ver com a "intermediação centrada" referida em idêntico

conceito, mas com base nos dados da observação.

Também por comparação com os conceitos atrás referidos, verifica-se a

não referência, de modo relevante, a actividades ligadas à gestão da infor­

mação. Isto não significa que as mesmas não existam subjacentes ao modo

como a enfermeira gere os sentimentos. Porém, a informação clínica que é

necessário trabalhar todos os dias com os doentes parece não ganhar realce.

Tal poderá ter duas leituras distintas. A primeira será a de que a enfermei-

_ _ _ _ _ _ — - _ _ _ _ _ — = = = = = = - - _ _ _ = = = = = _ „ = = = = = „ _ „ „ = _ = = = = _ _ . . _ _ _ _ _ _ . = = = = = = 2 5 2

Dissertação de Doutoramento

Page 255: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ra não lhe atribui valor ou que a fará por simples rotina. Considerando o

modo como é feita e que atrás expliquei, parece-me pouco plausivel esta

explicação. A segunda explicação terá a ver com o modo como inquiri as

enfermeiras e com a possível representação que aquelas têm da minha pes­

soa. Ou seja, solicitei o relato de uma história relacional. Face a isto poderá

ter sido dado mais destaque a aspectos considerados estritamente relacio­

nais. A hipotética representação que têm da minha pessoa, como ligado às

questões relacionais, também poderá ter contribuído para tal.

Portanto, em termos conclusivos, no essencial existe sobreposição entre o

referido pelas enfermeiras e o observado na entrevista de admissão e na sala

de quimioterapia.

5.4.3.2 — Consciência do processo relacional das enfermeiras

Existe a necessidade de definir alguns outros conceitos, os quais podendo

não nos dar elementos concretos acerca da intervenção clínica das enfermei­

ras junto dos doentes, ajudar-nos-ão, todavia, a perceber até que ponto a

intervenção das enfermeiras é um processo consciente e intencional. A ser

assim, permitir-nos-á validar a intencionalidade do processo de intervenção

da enfermeira.

Os dados recolhidos através das entrevistas às enfermeiras, sugerem que

a consciência do processo relacional é um pressuposto da intervenção das

enfermeiras, sendo portanto anterior ao seu início. Sugerem ainda que esse

grau de consciência é variável entre os diversos elementos que constituem

este grupo. Assim, factores como a experiência de prestação de cuidados nes­

te contexto, bem como a formação, parecem assumir-se como importantes na

justificação dessa variabilidade. Apesar disso, parece prevalecer um deter­

minado padrão de grupo o qual poderá resultar, entre outros factores, do

modo como foram introduzidas as entrevistas de admissão, já atrás referido,

e das características da liderança clínica. Quer num caso, quer noutro, pare­

ce estar subjacente uma atitude de preocupação com o desenvolvimento de

competências e de supervisão clínica. Assim e de modo geral, pode dizerse

253 Dissertação de Doutoramento

Page 256: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros; Construção de uma relação

que as enfermeiras parecem ter consciência dos factores que facilitam a

aproximação ao doente, os quais, no seu entender, são (ver diagrama 9):

•S Atitude clinica proactiva;

S Aproximação por similitude;

S Aproximação por sensibilidade!

S Outras.

Diagrama 9 - "Consciência do processo relacional" - Perspectiva das enfermeiras.

.^Atitude clínica proactiva

Consciência dos factores de apro-/ ̂ Aproximação por similitude T ximação enfermeira/doente *

\ Aproximação por sensibilidade

1 Consciência dos objectivos Outras 1 /terapêuticos a alcançar

/^Consciência dos objecti-//vos alcançados

//jConsciência de outros

Consciência do X 1/ elementos relacionais

4 Lidar com as perdas

processo relacional > . Dificuldades / ̂ Lidar com sofrimento \ /percebidas \

* Lidar com a proximidade

consciência das / Outros dificuldades \

Víestão das , A Estratégias diversas

dificuldades > Procura de elementos de gratificação

Incluídos na subcategoria "Atitude clínica proactiva", encontramos ele­

mentos tais como, os cuidados e a sua qualidade, ou seja, um cuidado de

qualidade num primeiro contacto pode ser um elemento determinante na

aproximação; a disponibilidade e proximidade! a "sorte", ou seja, conjugação

dos cuidados correrem bem e uma determinada pessoa gostar,' a leitura dos

indicadores de preferência do doente (i.e., compreender que o doente prefere

relacionar-se com a enfermeira A, e aceitar tal com naturalidade); o conhe­

cimento prévio da situação clínica e partilha desse facto com a doente. No

extracto que seleccionei para ilustrar esta subcategoria, percebe-se, por um

lado a atitude proactiva da enfermeira na leitura das mensagens dos doen-

Dissertação de Doutoramento — 254

Page 257: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

tes, e por outro, o acordo tácito entre as enfermeiras no sentido de darem

prioridade às preferências dos doentes.

.... eu acho que se calhar nestas coisas é mais a opção das enfermeiras. Elas estão sentadas na cadeira, não é? As doentes estão sentadas na cadeira e portanto a opção de .... eu acho que ela nunca ... não, ela a mim disse-me, depois daquela história de não terem conseguido picar a veia uma ou duas vezes, ela a mim pediu-me que sempre que cá estivesse, gostava que fosse eu, e a partir daí era sempre eu que me dirigia a ela. Porque a opção de o doente escolher, quer dizer, o doente pode escolher e tem todo o direito de escolher, quantas vezes aqui os doentes nos dizem, ... eles não são capazes de dizer, sentanrse na cadeira e não são capazes de dizer, "olhe eu quero que seja você a picar", isso eles não dizem, mas dizem através dos olhares, dizem através de, antes de entrarmos nas salas tocam-nos no braço e a gente já sabe o que é que isso significa, pronto ... porque depois lá dentro não, lá dentro eles não têm a coragem de dizer, "eu quero que seja a enfermeira fulana tal a picar", isso eles não fazem, nunca ouvi aqui esse comentário. Agora eu sei à partida que há pes­soas que me preferem a mim, como há outras que preferem outras colegas, isso é assumido entre nós e nós sabemos disso .... (EEA3 - 010802)

Por sua vez, na categoria "Aproximação por similitude", os elementos têm

essencialmente a ver com similitude de vivências, em tempo mais ou menos

recente. Esta similitude de vivências não tem que ter necessariamente a ver

com o processo de doença. O mais comum é relacionar-se com acontecimen­

tos da vida comum, tal como se demonstra no exemplo abaixo. Pode também

ter a ver com similitude de idades ou então com identificação com caracterís­

ticas pessoais do doente. Outro factor de aproximação é a partilha da origem

geográfica e de conhecimentos comuns de pessoas.

... nem eu o conheci a ele, no primeiro contacto, nem ele me reconheceu a mim. Pronto, mas nós calculámos, ... quando ele diz que é de Évora, quando eu tam­bém, era natural que a gente ... e depois quando começámos na conversa perce­bemos que até tínhamos amigos e amigas em comum e deu para perceber perfei­tamente que andámos juntos no Liceu e tudo isso...(EEAl - 180702)

A categoria anterior pode conjugar-se com a "Aproximação por sensibili­

dade" na medida em que, o que está em causa nesta última é a sensibilidade

para a situação do doente. Esta sensibilidade resulta, muitas vezes, da com­

preensão das dificuldades do doente, a qual parece ser tanto maior quanto

mais o profissional já tiver experimentado, de alguma forma, aquela vivên­

cia, como se tenta demonstrar com exemplo apresentado. Explicando

melhor. Se o doente manifesta especial preocupação relativa à possível difi­

culdade em cuidar dos filhos, a enfermeira parece ser tanto mais sensível

255 Dissertação de Doutoramento

Page 258: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utcnlcs e os enfermeiros: Construção de uma relação

para esta preocupação quanto mais ela já tiver experimentado essa mesma

dificuldade. Todavia, o factor sensibilidade vai mais além, sendo que a sua

característica mais marcante é a compaixão. Esta deve ser entendida como

sinónimo de sentimento piedoso de simpatia para com a tragédia de outrem,

acompanhada do desejo de a minorar.

... aquilo marcou-me um bocado porque, não sei, porque eu também tinha uma miúda e porque,... é aquelas coisas que marcam a gente. Ver que a pessoa tenta ser ajudada, procura ser ajudada e não tem quem a ajude... (EEL-040702)

Por outro lado, a enfermeira manifesta também consciência dos objecti­

vos terapêuticos que se propõe alcançar e os alcançados. Relativamente aos

que se propõe alcançar, podemos perceber objectivos enquadráveis na gestão

de sentimentos tais como:

S Gerir e ensinar a gerir a revolta e agressividade.

S Consciencializar o doente das razões da sua revolta.

S Promover a catarse de sentimentos.

S Desmistificar os medos.

S Alimentar a esperança.

Para além destes, são enunciados outros enquadráveis noutros grupos,

tais como^

S Intermediar a relação com os demais.

•S Preservar a intimidade familiar.

S Criar cumplicidade e proximidade.

S Incentivar capacidade de ajuda.

Nestes segundos o denominador comum parece ser o aprender a viver

melhor consigo mesmo e com os outros.

Este denominador comum é também partilhado pelos objectivos que as

enfermeiras entendem terem sido alcançados. Destes destaco:

S Permitiu que a doente preparasse a sua morte.

S Estabilidade relacional que permitiu à doente viver melhor consigo

e com os outros.

S Aceitação do tratamento (adesão terapêutica).

S Ajudou-a a gerir a relação com a filha.

= = _ _ _ = = = = _ _ _ _ _ = = = = = _ _ _ = „ = = = = = _ _ _ _ _ _ = = „ _ _ _ 2 5 6

Dissertação de Doutoramento

Page 259: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

S Aceitar a situação, melhorar a relação intra­familiar.

Todavia, a consciência do processo de relação vai mais além e é patente

através de outros elementos tais como, consciência do processo de construção

da relação, das suas capacidades clínicas e da necessidade de preparação

para desenvolver capacidades terapêuticas. O que afirmei mais atrás relati­

vamente à variabilidade do nível de consciência no grupo das enfermeiras,

também se aplica neste caso. Ou seja, a consciência daqueles processos é

mais evidente numas enfermeiras que noutras.

Como último argumento relativo à consciência do processo relacional, fal­

ta fazer referência a um conjunto de categorias que têm a ver com a cons­

ciência das dificuldades associadas à relação com os doentes, bem como às

estratégias para lidar com essas dificuldades. A partir das entrevistas às

enfermeiras consegui identificar o conjunto das suas maiores dificuldades,

que são:

■S Lidar com as perdas,"

S Lidar com a proximidade;

S Lidar com o sofrimento;

S Outros

O "Lidar com as perdas" e "Lidar com a proximidade" são duas categorias

relacionadas entre si e que se inter­influenciam, como aliás é visível no

exemplo que apresento. Efectivamente a dificuldade em lidar com as perdas

é tanto maior quanto maior é a proximidade. Sobre o "Lidar com as perdas",

tanto é referida dificuldade sobre as perdas reais, como sobre a antecipação

das perdas. Ou seja, a dificuldade é assinalada a partir do momento em que

as enfermeiras consideram que o doente entrou em fase terminal. As dificul­

dades em lidar com a antecipação das perdas caracterizam­se pela ambiva­

lência entre o dever humano e profissional de encarar a pessoa e o sofrimen­

to que isso induz. As dificuldades em lidar com as perdas reais têm a ver

com os sentimentos de luto que lhe estão associados e que se estendem para

além do momento da perda e invadem outras esferas da vida que não só a

profissional. Penso que seja curioso assinalar que não foi feita qualquer refe­

rência à perda associada ao fim da relação, em situações em que o prognóstico

257 Dissertação de Doutoramento

Page 260: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

médico é bom. Pelo que constatei enquanto observador e a partir das entrevis­

tas às enfermeiras, o terminus da relação nesses casos, assemelha-se mais a

uma comemoração, com amplas e recíprocas manifestações de júbilo.

... foi uma das relações que me marcou mais aqui, foi essa com o L. Por vários factores, em primeiro lugar pela idade dele que era semelhante à minha, depois porque se criou este elo todo entre nós (...) E foi muito duro e muito complicado e custou-me imenso quando ele morreu...(EEA1 - 180702)

As dificuldades em "Lidar com a proximidade" têm a ver com tudo o que

a t rás foi dito. Efectivamente, quando a proximidade é grande passam com

mais facilidade a viver-se como seus os problemas e as dificuldades que são

do doente e família.

Quer uma quer outra destas categorias colocam a clássica questão das

fronteiras da relação profissional. Apesar disso e da consciência das dificul­

dades, foram estes os relatos que as enfermeiras escolheram como obede­

cendo ao critério "terem sido terapeuticamente positivos para o doente". Por

seu lado, os doentes também reconhecem, como demonstrarei oportunamen­

te, que o modo como as enfermeiras se relacionam com eles, lhes colocará

dificuldades e problemas, associados aos cuidados propriamente ditos e às

perdas.

Detentoras desta consciência, as enfermeiras acabaram por desenvolver

um conjunto de estratégias, tendentes a facilitar-lhes a gestão do processo.

As estratégias são diversas e podem incluir algumas de defesa. Porém, a que

me parece digna de realce é a que consiste em focalizar a atenção sobre o

aqui e agora, não antecipando a perda e vivendo e valorizando, o mais possí­

vel, cada momento. O exemplo seleccionado parece-me ser de uma clareza

total a este respeito. É demonstrada uma consciência plena da evolução pro­

cessual dos doentes, no que diz respeito à esperança de vida em função da

sua condição médica! mas é também demonstrado o nível de

auto-conhecimento e de consciência no uso desta estratégia.

... Acho que é uma defesa que eu tenho, reconheço que é uma defesa, mas tem que ser assim. Para eu continuar a trabalhar neste serviço e para continuar aqui, tem que ser assim (...) Eu não posso pensar que tenho ali aquela pessoa e há muitos que eu sei que tenho e que vou tê-los cá muitos mais anos, mas há muitos que eu sei que não vão estar, e portanto se eu estou ali com eles a pensar

_ = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = _ = = = = = ™ _ _ = = = = = _ _ _ _ = = = = = = = _ _ „ „ = = = = = = = = = = _ „ „ _ = _ = 2 5 8

Dissertação de Doutoramento

Page 261: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

que ... nós já temos tanta experiência nisto, nestes tratamentos e nos tempos de vida, o tempo de vida que o medicamento dá e o tempo de vida que nós achamos que a pessoa vai ter, quase que conseguimos apontar a data em que eles vão morrer, porque é assim que a gente já funciona, e portanto se eu começo a pen­sar nisso, ou começo, porque eu já me conheço, ou começo a afastar-me das pes­soas, no sentido de não as procurar e de não ir ter com elas ou começo a ser agressiva com elas (...) eu não pensava que ele ia morrer. Aliás eu não podia pensar que ele ia morrer, porque se eu pensasse que ele ia morrer, eu acho que não conseguia estar assim tão próxima dele como estive. Portanto, eu limitava-me a viver cada dia que ele aqui estava,.... tentar que ele vivesse aquele dia da melhor maneira possível (...) (EEA1 - 180702)

Penso que seja de assinalar a semelhança entre esta estratégia e a usada

pelos doentes para lidarem com o seu processo de vivência. Ou seja, também

os doentes, umas vezes incentivados pelas enfermeiras, outras de modo pró­

prio, se focalizam sobre o aqui e agora. Aliás, em boa verdade, as enfermei­

ras dizem ter aprendido esta estratégia com os doentes. Para além desta, as

enfermeiras procuram também elementos de gratificação pessoal em cada

relação.

A relação e as suas dificuldades, apesar dos riscos que lhe estão subja­

centes, têm assim potencialidades para serem vividas como factores de

desenvolvimento pessoal.

Assim e em termos conclusivos, parece-me ter ficado claramente demons­

trada a intencionalidade terapêutica da relação desenvolvida com os doentes

e familiares, bem como a consciência dos riscos envolvidos nesse processo

relacional. Por tais razões o processo relacional encerra um elevado poten­

cial de auto-desenvolvimento para os elementos envolvidos.

5.3.3.3 - "Relação com a enfermeira":Perspectiva dos doentes

Resta, por último, caracterizar a intervenção da enfermeira a partir da

perspectiva dos doentes. Para que aquela se compreenda, é bom ter presente

que o que se encontra no centro das preocupações do doente é a sua vivência

do processo de saúde, com tudo o que lhe está associado. Tal é claramente

patente no discurso dos doentes. Mesmo tendo-lhes sido solicitado o relato

da história relacional naquele serviço, à semelhança do que foi solicitado às

enfermeiras, o que, invariavelmente, começou por sobressair foi o relato da

vivência do seu processo de saúde. Neste contexto, a enfermeira era enqua-

259 Dissertação de Doutoramento

Page 262: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de um;i relação

drada, a par com outros profissionais, como recurso que o doente vai gerindo

dinamicamente e em resposta às suas necessidades. Esta forma de "gerir" a

enfermeira e outros profissionais como recursos não é sinónimo de menos­

prezo, muito menos de instrumentalização ou secundarização. Significa, tão

só, que recorre a um determinado profissional (e.g., enfermeira) se nele

encontrar resposta para as suas necessidades. Estas são de natureza diver­

sa, mas quase todas estão "contaminadas" pelos sentimentos do doente,

associados à vivência do processo. Assim, o modo como os profissionais lidam

com esses sentimentos acaba por ter uma importância significativa neste

processo de "gestão", da responsabilidade do doente. A isto está também sub­

jacente a percepção que os doentes têm da intervenção dos profissionais, a

qual inclui a competência percebida, mas também a simpatia, disponibilida­

de, capacidade de resposta, entre muitas outras.

Neste contexto, ganha significado conhecer a perspectiva do doente acer­

ca das características de intervenção da enfermeira. Deste modo, percebe­

remos se aquela intervenção tem ou não significado para o doente e, de entre

as actividades que percepciona, quais as que mais valoriza. Assim, apresen­

tarei e caracterizarei todas as categorias integradas no conceito "Relação

com a enfermeira".

Através do relato dos doentes, percebi que, havia uma certa tendência

imediata para uma apreciação genérica da relação com a enfermeira. Quan­

do era pedido um relato mais detalhado, normalmente começavam por

recordar o primeiro encontro, o qual corresponde à entrevista de admissão.

Desse primeiro encontro recordam a sua importância e dois componentes

concretos que considero significativos: o conteúdo cognitivo e o conteúdo

afectivo (ver diagrama 10).

Relativamente ao primeiro (i.e., conteúdo cognitivo), identificaram gran­

de parte dos assuntos tratados, nomeadamente os que tiveram a ver com as

explicações dadas pela enfermeira relativamente ao processo de tratamento

e efeitos secundários, como se demonstra no exemplo abaixo. Estes conteú­

dos não só eram recordados enquanto temas abordados como também eram

reproduzidos com relativa facilidade.

_ _ - = = _ _ _ - _ _ _ _ _ _ _ - _ = = _ = = = = _ _ _ „ _ = = = „ _ _ _ „ „ _ _ _ „ _ = = _ = = = = = = = „ _ _ „ _ _ 2 6 0

Dissertação de Doutoramento

Page 263: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

.... Foi, foi ela que me atendeu a primeira vez, explicou­me os sintomas que eu ia ter, o que me ia acontecer....(EDJ ­ f 30502)

Diagrama 10 ­ "Relação com a Enfermeira"­ Perspectiva dos doentes.

Recorda I a entrevista

4 I a EntrevistaZ ­^Identifica conteúdo cognitivo

^Identifica conteúdo afectivo

/ Simpatia

/ FacilitadoraséT Carinho

/

, Alegria

A. personalização

pisponibilidade /

, Alegria

A. personalização

pisponibilidade

'Õj / [nteresse/preocupação

.s / |A constância da presença

1 Características / Bsperança

B o o o

ia)

Terapêuticas de \ Enfermagem l

Gestão de i/^ *■ Sentimentos ^ .

D apoio/ajuda

0 respeito es

1 1 Escuta es

1 I

\

\ justiça

\ capacidade de decisão I \

\ justiça

\ capacidade de decisão

1\ ] ^ gestão da informação

H ^Gestão do — Ambiente <CT_

A coesão

Gestão do ambiente

\ \ apreciação geral

1 Característi­ £ /^Relação preferencial

\ cas Gerais O^Carácter informal

uomo se fosse família

Outros

Quanto ao segundo (i.e., conteúdo afectivo), são referidos um conjunto de

elementos que também reputo de grande significado. Assim, os doentes con­

sideram que a entrevista os ajudou a aliviar a angústia, lhes transmitiu

uma sensação de benrestar e de sossego e que sentiram apoio. Para além

disso, consideram ainda que sentiram proximidade e disponibilidade da

261 Dissertação de Doutoramento

Page 264: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

enfermeira. Quer uma quer outra destas vertentes, é patente no extracto

seguinte.

... se eu precisasse de conversar não só sobre o tratamento mas também sobre algum problema que surgisse, ... pôs-me à vontade com toda esta situação (...) Estivemos ainda algum tempo a conversar, ... foi bom. A gente assim fica mais descansada...(EDA - 070502)

Considerando que a entrevista de admissão é o primeiro contacto entre a

enfermeira e o doente, e que a mesma parece assumir uma importância con­

siderável na estratégia de intervenção daquela, é interessante constatar

que, passado algum tempo, existe a capacidade por parte dos doentes de

identificar elementos cognitivos daquela natureza. Porém, considero tam­

bém de grande relevância a indelével marca afectiva referida pelos doentes,

acentuando o contributo que tal teve para o seu benrestar .

Relativamente à intervenção das enfermeiras no seu dia-a-dia, os doen­

tes identificam também um conjunto de "Características Terapêuticas".

Começo por fazer referência às características que aqueles consideram como

"facilitadoras da relação". Dentro destas, principiam por destacar a "simpa­

tia" (ver exemplo abaixo). Esta foi uma característica que reuniu dois con­

sensos: ser "imagem de marca" deste grupo de enfermeiras e ser importante

para os doentes. Destaco a segunda por ser a que considero mais relevante

em termos terapêuticos. Na sua acepção, os doentes consideram que a sim­

patia suaviza a intimidação e a fragilidade, cria bom ambiente, facilita a

relação e estimula a sua auto-estima, por se sentirem respeitados e bem aco­

lhidos.

...Eu acho que é assim, a simpatia, o carinho, aquilo que elas dizem, "olhe se preci­sar de conversar, veja lá se quer conversar", mostram receptividade suficiente para que as pessoas as abordem a dizer, "olhe, hoje não me sinto bem, sinto-me em baixo, precisava de conversar um bocadinho...". E foi isso que me disseram na altura, "se precisar de conversar por alguma razão, porque não se sinta bem, que esteja cha­teada...." (EDA 070502)

Outro instrumento terapêutico identificado pelos doentes, muito próximo

do anterior e também facilitador da relação foi o "carinho". Tal como no caso

anterior, também aqui consideram que o carinho é um linimento importante

no combate à intimidação e fragilidade. Todavia, vão mais além e atri-

Dissertação de Doutoramento - 262

Page 265: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

buem-lhe papel importante como elemento de ajuda, porque reforça a capa­

cidade de luta do doente, chegando a considerado como característica profis­

sional. Também a "alegria" é caracterizada de modo idêntico.

.... {silêncio) Às vezes só um olhar. Sabe, um olhar com carinho às vezes é uma respos­ta que você tem. Às vezes só um olhar, um olhar carinhoso para o modo que você está ... precisando de aconchegar e ... um olhar carinhoso já basta... (EDM - 110702)

"A personalização" é uma característica que adquire especial destaque

porque os doentes lhe atribuem uma importância considerável, como se pode

constatar pelos exemplos escolhidos. Esta compreende não só o facto de as

enfermeiras identificarem os doentes e respectivos familiares pelo nome,

mas também o facto de serem detentoras de conhecimentos particulares

acerca de cada um e de conferirem individualidade a cada relação. Em

alguns dos casos os doentes destacaram a sua possibilidade de escolherem o

local de tratamento, salientando que uma das razões que os levaram a optar

por este foi a forma personalizada como viram que os doentes eram tratados.

... Porque entretanto, também fiz alguns exames no IPO, em Lisboa e pronto, não sei se era de já estar habituada aqui a estas enfermeiras, achei-as assim um bocadinho mais frias, porque afinal acabam por ser muito mais pessoas e elas aqui já nos conhecem, já nos conhecem pelo nome, as vezes que a gente vem, as vezes que a gente não vem, porque é que não vimos...(EDJ - 130502)

... Mas sabe que uma pessoa é reconhecida aqui?!!... (EDA - 070502)

Este conjunto de características que acabei de referir, sendo facilitadoras

da relação, são, ao mesmo tempo e no entender dos doentes, instrumentos

terapêuticos. Por tal razão, têm uma relação muito próxima com alguns dos

instrumentos que referirei a seguir, nomeadamente com a "Gestão de senti­

mentos". Efectivamente, os doentes identificaram um conjunto de interven­

ções terapêuticas de enfermagem com características sobreponívéis àquelas

que foram incluídas em categoria homónima e resultante da categorização

dos dados de observação e das entrevistas de admissão. A primeira de entre

essas características referidas pelos doentes é a "disponibilidade". Esta é

uma característica definida em dois níveis diferentes. A disponibilidade

numa perspectiva mais existencial, enquanto abertura aos outros, como a

exemplificada no primeiro extracto abaixo; e a disponibilidade numa pers-

263 Dissertação de Doutoramento

Page 266: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

pectiva mais pragmática, enquanto manifestação de ter tempo para dar

àquele doente em concreto e para resolver os seus problemas, como aquela

que foi manifestada no segundo exemplo apresentado. Tanto num caso como

noutro é-lhe atribuída importância terapêutica pelos doentes. Recordo que

esta característica tem estado presente em todas as categorizações feitas a

part ir dos dados de qualquer fonte.

... aquilo que elas dizem, "olhe se precisar de conversar, veja lá se quer conversar", mostram receptividade suficiente para que as pessoas as abordem a dizer, "olhe, hoje não me sinto bem, sinto-me em baixo, precisava de conversar um bocadinho...". E foi isso que me disseram na altura, "se precisar de conversar por alguma razão, porque não se sinta bem, que esteja chateada...." Não é só por motivos médicos e de enferma­gem, mas é o apoio psicológico.... (EDA - 070502)

... Portanto, eu numa altura em que fiz uma crise de diarreia a minha mulher telefonou para cá. Foi atendida e foi bem atendida e disseram-lhe o que devia fazer.. .(EDV- 130802)

Também a manifestação de "interesse/preocupação" é relevada pelos

doentes. Assinalam a sua importância como elemento de ajuda, principal­

mente quando a mesma é manifestada em momentos especiais e cruciais

(e.g., momento da notícia de uma recidiva como no exemplo abaixo, conhe­

cimento dos resultados dos exames complementares de diagnóstico de con­

trolo). Destacam também a percepção da preocupação das enfermeiras com

determinado tipo de pormenores, como por exemplo mobilizarem-se para

minimizarem o sofrimento inerente a uma punção ou tentarem esconder a

morte de um par de alguns dos doentes. Porém, a preocupação era também

percebida quando as enfermeiras telefonavam aos doentes a pergunta-

rem-lhes pela evolução ou quando faziam igual pergunta no dia-a-dia, em

cada reencontro.

... Todo o mundo ficou muito preocupado, ligaram para mim e aqui foi ... senti assim que estava todo mundo me apoiando muito e sentiu realmente comigo a ... os mesmos sentimentos que eu estava tendo... (EDM- 110702)

Este elemento (i.e., preocupação), não estando presente com igual deno­

minação nas categorizações resultantes dos dados de outras fontes, está

porém, presente de forma discreta e transversal. Assim, esta preocupação é

patente na vigilância sistemática dos doentes, na antecipação dos proble-

==================================================================== 2 6 4

Dissertação de Doutoramento

Page 267: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

mas, entre outros. Todavia, a subcategoria "presença" construída a partir do

discurso das enfermeiras ou a "preocupação com o incómodo causado pelos

cuidados" observado na sala de quimioterapia, são outras formas de mani­

festar preocupação com doente.

Como complemento da anterior característica, assinalo a "constância da

presença". Ou seja, o que está em causa, não é ter sentido a presença da

enfermeira num determinado momento, mas antes a constância dessa pre­

sença no tempo. A certeza desta presença confere segurança aos doentes,

pois sabem que podem contar com aquela pessoa, tal como se pode verificar

na fala desta doente.

... acompanham-nos, são pessoas que não saem dali, que não nos largam, quer dizer, podem ir a outra sala ver qualquer coisa, mas depois, "deixa-me lá ir ver o que é que se está a passar"...(EDJ1 - 110702)

Também neste caso, à semelhanças de outros anteriores, é feita analogia

com a presença da família. Ou seja, esta, mesmo que não esteja fisicamente

com eles, sabem que podem contar com ela. Ao fazer esta analogia, os doen­

tes acabam por atribuir esta característica à enfermeira.

Também existe referência por parte dos doentes, ao papel de promoção

da "esperança" assumido pela enfermeira. Porém, o modo como se lhe refe­

rem assume algumas particularidades curiosas. A ideia com que se fica é

que os doentes vão "beber" esperança às enfermeiras, quer na forma como as

"usam" para contextualizarem a informação de que dispõem, quer no

ambiente que elas criam. Também neste caso existe coincidência entre a

importância atribuída a este elemento, a partir de diversas fontes.

O elemento seguinte denominei-o "apoio" (ver exemplo abaixo). Esta

denominação resulta da expressão "sentir apoio" utilizada frequentemente

pelos doentes. Alguns referiram que o apoio concedido pelas enfermeiras

tem semelhanças, mais uma vez, com o concedido pela família, outros com o

apoio de um amigo. Em qualquer dos casos, dizem ser um apoio que os faz

sentir amparados, amados, queridos e que dá forças para continuarem a

lutar. Caracterizam-no ainda como um apoio permanente.

265 Dissertação de Doutoramento

Page 268: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação

.... Sentir o apoio, o carinho, saber que a pessoa está ali te dando .... acho que ela depois se sente até com a obrigação de tentar melhorar.... ( E D M - 110702)

A semelhança da "preocupação", o "apoio" é um elemento presente de

forma transversal em diversas categorias e subcategorias de categorizações

construídas a part ir de dados resultantes de outras fontes. Portanto também

neste caso, se pode afirmar que existe sobreposição entre as actividades

desenvolvidas pelas enfermeiras e as percepcionadas pelos doentes.

Também o "respeito" é referido de forma expressa pelos doentes, fazendo

até uma comparação curiosa com a família. Considero significativo o facto de

os doentes se sentirem respeitados tal como se sentem na sua própria famí­

lia. Sobre o respeito existem diversas referências nas categorizações atrás

referidas, pelo que também aqui a sobreposição existe.

.... Em lugar de terem pena de dizerem assim, "coitadinha, está com câncer e vai morrer..." não, t ratam com ... respeito, com carinho, dando aquele apoio mas não é aquela pena, aquele dó, não, é t ra tar com respeito, escutar o paciente, ter alguma paciência de escutar o paciente.... (EDM- 110702)

A "escuta" é também claramente identificada pelos doentes, tal como se

constata no exemplo anterior. É realçada a capacidade de as enfermeiras

darem atenção aos doentes e a importância que tem para eles o sentirem-se

escutados com atenção. É acrescentado ainda pelos doentes que às enfermei­

ras se podem dizer coisas que não se dizem à família para não os magoar.

Com este pormenor é marcada a diferença entre a escuta das enfermeiras e

a da família. Este pormenor é curioso na medida em que, havendo diversas

referências anteriores em que o papel da família e da enfermeira eram

sobreponívéis, aqui acaba por ser marcada uma diferença considerável a

qual atribui características profissionais a uma atitude. Evidencia também a

preocupação do doente, com a sua família, transformando-o assim de pessoa

objecto de cuidados, em prestador de cuidados.

A característica seguinte identificada pelos doentes na actividade de

intervenção das enfermeiras é a "justiça". Este conceito de justiça parece ter

uma natureza equitativa na medida em que, evidenciando-se a não distinção

entre doentes na prestação de cuidados, é ao mesmo tempo evidenciado que

- - _ - _ - — _ _ - - _ _ _ _ _ — _ _ _ _ _ _ ™ ^ _ _ „ ^ _ _ . „ _ _ „ _ _ . . „ _ _ „ _ _ 2 6 6

Dissertação de Doutoramento

Page 269: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulcntcs c os enfermeiros; Construção ele uma relação

havia diferenciação positiva. Ou seja, que era tida particular atenção com

quem mais precisava.

Os doentes destacam também a "capacidade de decisão" das enfermeiras.

Esta foi por eles identificada em diversas situações de cuidados, mas parece

ser particularmente apreciada em situações difíceis que as enfermeiras con­

seguem detectar e ultrapassar. A capacidade de decisão referida pelos doen­

tes em algumas das situações, parece extravasar o conteúdo funcional da

enfermeira, nomeadamente quando esta se substitui ao médico, por ausên­

cia deste. Todavia, é de assinalar a importância do reconhecimento de com­

petência no contexto da relação. Ou seja, não sendo reconhecida competência

dificilmente confiam na pessoa ao ponto de desenvolverem uma relação de

proximidade. Penso aliás que seja exemplo significativo disto o relato feito

por uma enfermeira recénradmitida no serviço. Segundo ela, numa fase ini­

cial, os doentes manifestavam preferência pelos cuidados de outras enfer­

meiras em quem confiavam. Ou seja, de algum modo, ela teve que provar

paulatinamente a sua competência até confiarem nela para aceitarem os

seus cuidados e concomitantemente, o envolvimento relacional.

A última característica identificada pelos doentes nesta categoria (i.e.,

"Gestão de sentimentos") é a "gestão de informação". Sobre esta é dito pelos

doentes que as enfermeiras adoptam uma de duas atitudes^ ou lhes forne­

cem a informação ou o caminho para a alcançar, como se pode verificar no

extracto que seleccionei.

.... Sim. Elas davam ou faziam como eu chegar a essa informação... (EDM — 110702)

Mas também é assinalado o papel de contextualização da informação

reconhecido às enfermeiras. Por outro lado, reconhecem que a enfermeira

faz uma gestão da informação relativa a más notícias no sentido de evitar

magoar os doentes. O último aspecto assinalado diz respeito ao modo tran­

quilizador como a enfermeira, com quem tinham relação preferencial, expli­

cava. Esta forma de definir a gestão da informação acaba por fazer a simbio­

se perfeita entre aquela e a gestão de sentimentos, a qual, aliás, já t inha

2 6 7 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 270: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

sido indiciada quando a defini com base nos dados recolhidos a partir de

outras fontes.

A última categoria inserida no constructo "Características Terapêuticas

de Enfermagem" é a "Gestão do ambiente". Esta compreende duas caracte­

rísticas, uma referente à gestão do ambiente relacional intra-equipa e que

denominei de "coesão"; e a outra relativa ao papel de gestão do ambiente

relacional com os doentes e que denominei "gestão do ambiente".

Relativamente à "coesão", é reconhecido pelos doentes que entre as enfer­

meiras e os diversos profissionais envolvidos existe uma ambiente de coesão

que chegam a comparar ao existente numa família. Esta coesão é considera­

da importante uma vez que melhora a qualidade das respostas dadas ao

doente.

Por seu lado, na "gestão do ambiente" assinalam duas vertentes distintas

e complementares e que acabam por se plasmar no ambiente de benres tar

vivido na sala. Por um lado, a preocupação com o individual, nomeadamen­

te, os mais desanimados, tentando animá-los, mas também tentando capita­

lizar a ajuda dos que têm capacidade para tal, em prol dos outros, como se

pode perceber pelo extracto que se segue; por outro lado, o grupo e a tentati­

va de criar bom ambiente na sala e de organizar convívios entre os doentes.

... E mesmo elas explicaram que há pessoas que são mais bem dispostas que outras e elas por vezes têm que utilizar isso no bom sentido para que aquelas pessoas que estão muito em baixo, com pensamento negativo "estou aqui, estou a sofrer e vou morrer", não sei que mais, sejam colocadas ao pé de pessoas que estejam com o astral mais em cima, para que se animem e absorvam um boca­dinho da força das outras pessoas. E eu acho que isso é um bom ... (EDA -070502)

Do ponto de vista da "Características gerais" da relação são de assinalar

principalmente três elementos relativos à sua natureza. O primeiro tem a

ver com a existência ou não de relação preferencial com uma enfermeira. A

este respeito o discurso é de algum modo ambivalente. Por um lado, é afir­

mado que a relação preferencial é com todas. Mas, noutros momentos aca­

bam por reconhecer que, em caso de necessitarem de algo muito específico se

dirigem a uma enfermeira em concreto. Ou então que preferem as explica-

Dissertação de Doutoramento

Page 271: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ções dadas por uma determinada enfermeira. Este discurso ambivalente

parece ser um esforço deliberado de não ferir susceptibilidades.

O segundo elemento tem a ver com a natureza considerada "informal" da

relação. Ou seja, quando comparam a relação que mantêm com a enfermeira

com a que mantêm com o médico, entendem que a primeira é de natureza

mais informal. Com as enfermeiras fala-se sobre o dia-a-dia, como se fosse

com um amigo, sendo que qualquer assunto pode ser tema de conversa, sem

qualquer tipo de constrangimentos. Às enfermeiras até se fazem visitas de

natureza social e reconhece-se reciprocidade na relação, estabelecendo mais

uma vez o paralelismo com a familia. Esta informalidade gera proximidade e

cumplicidade.

O terceiro elemento diz respeito ao tipo de papel assumido pela enfermei­

ra na relação. Sobre isto dizem os doentes que é como se fosse "a sua famí­

lia". Entendem que a enfermeira representa o papel de alguém (familiar)

muito próximo (e.g., irmã, mãe,...). Isto vem reforçar o que foi referido rela­

tivamente ao segundo elemento desta apreciação geral.

Do ponto de vista global os doentes entendem que a relação com a enfer­

meira é muito positiva e que o relacionamento é bom.

Olhando agora para o conjunto de características identificadas pelos

doentes destaco o que considero serem as mais importantes. Assim, conside­

ro importante o facto de os doentes recordarem e identificarem os conteúdos

da primeira entrevista. Esta importância advém dos factos de a mesma, em

alguns casos, já ter acontecido há um tempo considerável e de serem recor­

dados os seus aspectos cognitivos e afectivos. Estes últimos são particular­

mente relevantes porque o doente normalmente apresenta-se perante a

enfermeira acumulando um elevado grau de ansiedade e angústia, com um

grande desconhecimento relativamente ao tratamento que vai iniciar. Ora

se passado tanto tempo são recordados aqueles dois factores, parece ser

indicador de que a enfermeira lidou de forma adequada quer com os senti­

mentos quer com a informação.

Relativamente aos factores considerados como facilitadores da relação,

mas também como terapêuticos, entendo que se podem agrupar em dois bio-

269 Dissertação de Doutoramento

Page 272: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

cos, naturalmente complementares entre sï- um que inclui a "simpatia",

"carinho" e "alegria" e o outro que inclui a "personalização". Por vezes, a

simpatia é considerada quase o parente pobre da relação terapêutica. Con­

tudo neste caso os doentes atribuem-lhe uma importância significativa, bem

como à alegria e carinho. A importância atribuída à personalização não sur­

preende, vindo apenas reforçar o que parece já claro.

Quanto à "Gestão de sentimentos" sublinharia o facto de os doentes iden­

tificarem de modo tão evidente tantos elementos e de estes serem sobreponí-

véis aos identificados a partir da categorização de dados resultantes de

outras fontes. A gestão de informação não aparecendo aqui com a evidência

que lhe foi atribuída noutros contextos, acaba por estar presente de forma

integrada com a gestão de sentimentos, mas também na forma como a pri­

meira entrevista é recordada e que já atrás foi falado.

De assinalar por fim o reconhecimento da gestão do ambiente desenvol­

vido pela enfermeira, como elemento terapêutico importante.

5.4.3.4 — Necessidades expressas pelos doentes-' Perspectivas cruzadas

Outra forma de conferir a validade e a consistência do processo relacional

entre a enfermeira e o doente é através da comparação dos conceitos e res­

pectivas categorias, relativas ao referido processo e as resultantes da análise

das entrevistas dos doentes, mas no que têm a ver com as necessidades

expressas. Ou seja, trata-se de tentar responder à questão' Existe concor­

dância entre as necessidades expressas pelos doentes e as respostas das

enfermeiras? Os dados que apresentarei a seguir, não são, naturalmente,

uma avaliação exaustiva das necessidades dos doentes. São a avaliação que

resulta, quer do que os doentes expressaram através das entrevistas, quer

do observado em contexto, durante a entrevista de admissão e a administra­

ção da quimioterapia.

Começo pelo expresso pelos doentes nos seus relatos. Quando solicitei

estes relatos, o objectivo era que os mesmos se cingissem ao processo rela­

cional. Contudo verifiquei que, invariavelmente os doentes iniciavam o seu

relato através da sua história pessoal. Ou seja, primeiro relatavam-me a

_ _ _ _ - _ _ _ - _ _ _ _ = = = = = = _ _ _ - _ _ _ „ _ _ _ » „ _ _ _ = „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ „ _ _ _ _ « . . _ 2 7 0

Dissertação de Doutoramento

Page 273: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

história do seu processo de doença e só após, o processo relacional com a

enfermeira. Tal pareceirme inicialmente uma necessidade em termos

humanos, mas um desperdício em termos de investigação. Todavia à poste­

riori, veio­se a revelar de grande utilidade na compreensão e validação do

processo relacional entre o doente e a enfermeira.

Assim, a partir da análise desses relatos compreendi que a "A vivência do

Processo de Doença" tem, para estes doentes, essencialmente três compo­

nentes (ver diagrama 11), "sentimentos", "dificuldades" e "estratégias".

Diagrama 11 ­ A "Vivência do Processo de Doença ".

«Sentimentos

.Dificuldades

' Estratégias

siedade

«do

batimento, fragilidade

luto/perda

ratidão 'ificuldades inerentes à quimioterapia

Ambiguidade do ambiente na sala

arácter oscilante do benrestar Experiências anteriores e doença

Gerir a informação

Gestão do benrestar

Positividade

k Gestão das relações

Ajudar os Pares

titude positiva

iver cada momento

elação com família

elação com voluntárias

elação com AAMs

elação com médico(s) nteracção com pares

Relação com a enfermeira

ercepção da necessidade de ajuda

►Usar­se a si própria

Tganizar actividades

Ficou patente que existe um conjunto de sentimentos que está presente

ao longo de todo o processo, mas que é particularmente intenso no momento

271 Dissertação de Doutoramento

Page 274: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação

em que se inicia a quimioterapia. Uma das possíveis razões para isso radica

no modo como o processo de diagnóstico e t ratamento decorre. Ou seja, a

quimioterapia pode ocorrer como primeira ou segunda medida terapêutica.

Em qualquer um dos casos, a distância temporal relativamente ao momento

do diagnóstico é ainda curta. Acresce a isto que, até então, a relação com os

profissionais de saúde foi essencialmente com o médico, tendo esta, caracte­

rísticas muito próprias, como aliás é referido pelos doentes, ou então com

enfermeiros mas em contextos em que o aprofundamento da relação nor­

malmente não ocorre (e.g., internamento). Neste contexto, o doente apresen-

ta_se perante a enfermeira transportando um conjunto de sentimentos mui­

to intensos e todos eles relacionados com a vivência do diagnóstico de cancro,

da quimioterapia e do que isso representa. Assim, os doentes referem (ver

diagrama 11):

S Ansiedade;

S Medo;

S Abatimento e fragilidade,'

S Luto e perda.

A "ansiedade", tal como se pode constatar no extracto abaixo, está nor­

malmente associada ao início do processo de tratamento, à doença e ao que

ouviu dos outros sobre os tratamentos, bem como à urgência em acabar o

tratamento.

... eu quando iniciei vinha nervosa como penso que toda a gente fica um bocadi­nho nervosa (...) Tinha a ver com a doença, t inha a ver com os tratamentos que, segundo aquilo que nós ouvíamos, eram muito violentos. Eu comecei logo a fazer o "vermelho" e tudo, portanto eu sabia que ia ser um bocado violento... (EDJ -130502)

Por sua vez o "medo" é um pouco mais abrangente e tanto pode ser refe­

rido como um sentimento difuso, mas sempre presente, como pode ter causas

identificáveis como por exemplo, o medo que o tempo de espera pela cirurgia

possa agravar a sua situação de saúde, o medo do que o futuro lhes possa

reservar, nomeadamente, a possibilidade de ficar acamado e dependente, o

medo da doença, entre outros. Por vezes, associada ao medo é também refe­

rida a angústia.

~ ~ " " " = = = = = = = = = " = = = = = = = = = " = = = = = = ~ — — — — — - — 272 Dissertação de Doutoramento

Page 275: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

... às vezes chegam uns assim muito eufóricos e isso tudo, depende do tempera­mento de cada um, mas todos têm a mesma coisa, estão cheios de medo, cheios de carência mesmo, cheios de vontade de sair correndo para o mais longe possí­vel daqui.... (EDM - 110702)

O abatimento e fragilidade caracterizam-se pela sensação de vulnerabili­

dade, mas também de incapacidade e insegurança em lidar com o processo

de doença. Qualquer um destes sentimentos tem subjacente a necessidade

de apoio.

Por sua vez, o "luto e perda" é uma constante desde que lhes foi diagnos­

ticada a doença oncológica. De todo o modo, o luto e perdas que mais se des­

tacam são as dos pares, principalmente daqueles com quem tinham desen­

volvido uma relação mais próxima, como se exemplifica abaixo. Consideran­

do que a relação com estes pares resultou de conhecimentos recentes, tais

sentimentos poderão justificar-se através da projecção da sua situação na

deles.

.... Vários, sim, do meu grupo ... quando nós formámos o grupo, já foi ... vários que ficavam aqui comigo, que eu ficava conversando, que eu queira ajudar, já foram. Costumamos dizer que passou para o andar de cima... (EDM- 110702)

Estes, são o conjunto de sentimentos que os doentes dizem estar presen­

tes no momento em que se encontram pela primeira vez com as enfermeiras

(na entrevista de admissão) para darem início ao processo de quimioterapia.

Relativamente às "dificuldades", começam por assinalar as inerentes à

quimioterapia, nomeadamente, os efeitos secundários. Sobre estes subli­

nham que só quem passa por isso é que poderá compreender, tal como é

afirmado no extracto abaixo apresentado.

... isto, os efeitos destes tratamentos só quem passa por eles é que sabe como é que é. E às vezes, pronto a gente passa muitos fins-de-semana em casa terrí­veis.. . (EDV- 130802)

Uma outra dificuldade tem a ver com a ambiguidade do ambiente vivido

na sala de quimioterapia (ver próximo extracto). Esse espaço é caracterizado

como um ambiente agradável, com diversos elementos de conforto e onde

encontram pares que se tornaram amigos, bem como as enfermeiras, por

quem dizem nutrir um carinho especial. Mas é, ao mesmo tempo, o espaço

273 Dissertação de Doutoramento -

Page 276: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

onde lhes é induzido sofrimento e o qual, por si só, lhes relembra a sua con­

dição e onde até os cheiros são incomodativos. Neste contexto, as referências

àquele espaço são carregadas de ambiguidade, a qual, por vezes, parece

es tenderse às pessoas, ainda que tal seja negado.

...Eu associo sabe o quê? O sofrimento não o associo a elas (...) Houve uma altura que associei quando elas me picaram uma data de vezes (ríuse) (...) Mas, asso­cio ao ambiente, ao espaço, não a elas, o espaço (...) Mais ainda ao cheiro. Então digo assim, "está aqui um cheiro a medicamentos" e elas dizem, "não, não está". E eu digo, "está" (peremptório). O cheiro, as cadeiras, a televisão, a espera, o olhar para os frascos à espera que se esvaziem... (EDA - 070502)

A última dificuldade referida tem muito a ver com as duas anteriores,

visto ser referente ao carácter oscilante do benrestar . Ou seja, o benres tar

destes doentes oscila, no espaço de uma semana, entre niveis que eles consi­

deram muito bons e outros muito maus. Os relatos indicam que normalmen­

te no próprio dia da quimioterapia e nos imediatamente a seguir, se atingem

os níveis mínimos de bem-estar. Após isso, inicia-se uma recuperação que se

prolonga até ao próximo dia de tratamento e durante o qual quase se esque­

cem da sua situação, dizendo que parece não terem nada. Os doentes reco­

nhecem dificuldades de lidar com esta oscilação com ciclos tão curtos.

Por último e sobre as "estratégias" usadas pelos doentes, podemos defi­

ni-las genericamente como os modos como aqueles gerem os recursos à sua

volta para lidarem melhor com a vivência de saúde. Esta gestão parece

orientar-se para si próprios, para os outros enquanto recursos e para os

outros enquanto destinatários da sua ajuda.

No primeiro caso fazem uso de experiências anteriores que os possam

ajudar. Estas têm a ver com situações em que tenham lidado com problemas

de onde possam retirar mais valias para a situação actual. Tal é caso de

experiências com familiares ou amigos portadores de doença oncológica.

Neste caso, normalmente recolhem como exemplo a sua capacidade de luta

ou a sua coragem. A par com isto, tentam também gerir a informação que

lhes vai chegando. Este não é um papel passivo de simples receptores.

Vários são os exemplos em que houve uma procura activa, quer em artigos,

quer na Internet, como se pode constatar na fala desta doente.

_ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = „ _ _ „ = = = = _ _ „ = = = = _ _ _ „ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ „ „ . . _ „ _ „ „ _ _ 2 ? 4

Dissertação de Doutoramento

Page 277: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

... livros, Internet e tudo, eu fiz recolha. Mas depois de 1er tudo isso, para não ficar mal encaminhada, eu, de vez em quando, não sei se as enfermeiras se apercebiam, eu fazia uma perguntinha, para quê? Para ir naquele caminho cer­to.... (EDJ1-110702)

Naturalmente que esta atitude tem uma relação directa com o estádio de

desenvolvimento cognitivo. Ou seja, parece que quanto maior aquele é,

maior será também a proactividade na procura e gestão da informação. Na

gestão da informação, muitas vezes a enfermeira é "usada" como recurso,

quer enquanto fonte, quer como alguém que é capaz de contextualizar a

informação recolhida, tal como aliás já referi noutro momento. A gestão da

informação tem relação directa e próxima com a gestão do benrestar . Ou

seja, o modo como gere a informação pode contribuir para o seu benrestar .

Porém a gestão do benres tar tem a ver essencialmente com actividades

desenvolvidas pelos doentes no sentido de ultrapassarem dificuldades con­

cretas. Por exemplo, sabendo que precisam de manter um bom estado nutri­

cional, como é que atingem tal objectivo quando não têm qualquer apetite?

Como é que lidam com o maPestar acentuado, mas difuso que ocorre nor­

malmente, no próprio dia da quimioterapia, como no caso aqui apresentado?

São os próprios doentes que acabam por desenvolver estratégias que os aju­

dem a ultrapassar estas dificuldades.

... Faço assim, venho fazer o tratamento, dá até aí às três da tarde, e depois vou-me deitar. Vou deitá-la, como se costuma dizer. E então tudo o que altere esse programa que eu tenho estabelecido, incomoda-me. Porque já sei que vou ficar mal... (EDA -070502)

A par com isto ou como complemento, esforçanrse por manter uma atitu­

de de positividade perante a situação (ver extracto abaixo). Para esse objec­

tivo contribuem algumas das estratégias já descritas. Mas também o modo

como se relacionam com as pessoas à sua volta (e.g., enfermeiras, pares), às

quais parece irem "beber" a esperança que às vezes lhes falta. Por outro

lado, esforçanrse por viver e valorizar cada momento e por "viver com a

doença mas não viver a doença".

...Mas também não posso viver a vida inteira com medo e deixar de viver o dia-a-dia, porque vou ficar doente e vai-me acontecer o mesmo e nã, nã nã .... Então essas pessoas têm que se ajudar... ( E D A - 070502)

275 Dissertação de Doutoramento

Page 278: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção tie uma relação

A gestão das "estratégias" orienta-se também para os outros enquanto

recursos, tal como atrás referi. Isto consiste essencialmente na inventaria­

ção das pessoas à sua volta que, de algum modo, poderão ajudar a viver

melhor com esta situação. Entram neste grupo os profissionais de saúde,

mas também a família, bem como os pares. Através do modo como se rela­

ciona com todos eles, conseguem angariar elementos que contribuem para

viver melhor com a sua situação.

Por último, orienta-se também para os outros enquanto destinatários dos

seus cuidados. Neste caso, cuidar dos outros é uma forma de cuidar de si

próprio. Dito por outras palavras, enquanto sentir que é capaz de cuidar dos

outros, sejam eles pares ou familiares, sente-se útil e capaz, como tal, neces­

sário a alguém e isso contribui para o seu benrestar .

Deste conjunto de elementos relativos à vivência do processo de doença,

ressaltam alguns que reputo de grande importância e que validam as estra­

tégias, quer diagnosticas, quer de intervenção das enfermeiras. Assim, quer

os "sentimentos", quer as "dificuldades", encontranvse no centro das preocu­

pações das enfermeiras, as quais ensaiam tentativas de resposta. Mas tam­

bém as "estratégias" validam de algum modo as estratégias de intervenção

das enfermeiras, na medida em que elas se oferecem como recurso a vários

níveis, nomeadamente o relacional, de fonte e de contextualização da infor­

mação, de gestão do grupo de pares com objectivos de promoção da sua capa­

cidade de ajuda, de gestão das relações familiares com o objectivo de poten­

ciação da capacidade de ajuda, de estimulação das estratégias individuais de

gestão do benres tar e de estimulação de projectos pessoais.

Durante a entrevista de admissão e no contexto do processo de interacção

que aí se desenrola, quer o doente, quer a família acabam por expressar

outros sentimentos para além dos já referidos, bem como algumas solicita­

ções dirigidas à enfermeira.

Apesar de tudo, esta expressão de sentimentos e de solicitações que ocor­

re durante a entrevista de admissão não é algo de imediato e espontâneo.

Gostaria de relembrar que, neste momento, são ainda dois estranhos que

estão frente-a-frente, sendo que a enfermeira está a desempenhar um papel

= = = = = _ = - _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = - _ _ _ _ „ = = = = _ _ _ _ _ = = = _ _ _ _ . . _ _ _ „ „ . _ _ _ = = „ _ _ _ „ _ _ _ _ 2 7 6

Dissertação de Doutoramento

Page 279: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

activo, de tentativa de desvendamento do doente e família. Se juntarmos a

isto o estádio da vivência do processo, compreende­se que por vezes o doente

se sirva de um conjunto de "técnicas de fuga" que lhe permitem ir lidando

com a situação. Aquelas técnicas são, portanto, usadas para dar resposta a

duas dificuldades que se inter­influenciam: a dificuldade em lidar com as

perguntas colocadas pela enfermeira (pessoa ainda estranha) e a dificuldade

em lidar com a sua própria vivência. As técnicas mais frequentemente

encontradas são as constantes no diagrama 12.

Diagrama 12 ­ "Técnicas de Fuga" usadas pelos doentes durante a entre­

vista de admissão.

Relato pormenorizado do ^processo de doença

/ Eelato pormenorizado do per­/ * curso médico­hospitalar

Técnicas de fugar—►Respostas inespecíficas e \ marginais

V^Fuga directa à questão colocada

Realce das mensagens positivas

O uso destas técnicas é variável ao longo da entrevista, embora se possa

dizer que é mais notório na parte inicial. Tal, não tem só a ver com o facto já

referido de serem dois desconhecidos, mas também com ser esse o momento

da entrevista em que mais sistematicamente se tenta "Compreender a auto­

interpretação" do doente. Ou seja, se tenta "mexer" em algo muito pessoal e

ao mesmo tempo doloroso.

Perante esta estratégia dos doentes, a enfermeira socorre­se de um con­

junto de técnicas de comunicação que lhe permitam alcançar os seus objecti­

vos que nesta fase, têm a ver com a concretização de uma avaliação diagnos­

tica mínima. Contudo, este não é um fim si próprio, na medida em que, sub­

jacente àquela avaliação está sempre um objectivo terapêutico de ajuda ao

doente. Assim se compreende que estas técnicas sejam usadas para respon­

der às referidas tentativas de fuga do doente e família, mas também com

objectivos terapêuticos. As técnicas que percebi serem usadas são as cons­

277 Dissertação de Doutoramento

Page 280: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

tantes no diagrama 13. Este conjunto de técnicas, usadas pelo doente e pela

enfermeira, é um argumento demonstrativo da intencionalidade e do profis­

sionalismo da intervenção da enfermeira.

Diagrama 13 - "Técnicas de comunicação" usadas pelas enfermeiras durante a entrevista de admissão.

. Concreção e concisão

i Focalização sobre o presente

L Eco

Técnicas de , ^ Linguagem comum comunicação | r Escuta

V Resumo

v Clarificação

Flexibilidade

À medida que a entrevista de admissão decorre, as condições vão-se

modificando. Então verifica-se que o doente e família vão, paulatinamente,

substituindo o uso das técnicas de fuga por outras expressões, dirigidas à

enfermeira, nomeadamente, "expressão de sentimentos" e "solicitações".

A "expressão de sentimentos" no contexto da entrevista de admissão

assume-se como uma categoria relevante na medida em que, muitas vezes,

parece constituir-se como uma urgência. Isto é, o doente e família parecem

ter extrema urgência em encontrar um espaço/tempo para expressarem "o

que lhes vai na alma". Para os doentes e familiares deste estudo, a entrevis­

ta de admissão pareceu ser, muitas das vezes, o primeiro espaço em que tal

lhes foi permitido e até incentivado, como mais abaixo veremos. Os senti­

mentos expressos pelos doentes durante a entrevista de admissão foram

categorizados tal como consta no diagrama 14.

Atrás, quando caracterizei o modo como os doentes chegam à entrevista

de admissão, fiz referência a um conjunto de sentimentos de que os próprios

doentes t inham consciência (i.e., ansiedade, medo, abatimento e fragilidade,

e luto e perda). Todavia, durante a entrevista de admissão o leque de senti­

mentos alarga-se sobremaneira (ver diagrama 14).

_ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = „ _ _ _ _ « = = = = = = „ _ „ = = = = = = „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = „ _ _ _ _ _ _ „ „ . _ _ _ „ 2 7 g

Dissertação de Doutoramento

Page 281: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Diagrama 14 ­ "Expressão de Sentimentos" pelos doentes e familiares durante a entrevista de admissão.

^Tristeza

^Desespero

^Reactivos H ►Angústia

^ Auto■ culpabilização

Outros

/ Antecipatórios, de ^Ansiedade/insegurança ^preocupação \ Preocupação

Expressão de y sentimentos s>

jf De ambiguidade

^ Dificuldades relacionais

A Optimismo/esperança

\\ Abertura à realidade

\LCompreensão da "cortina \ do silêncio"

Gratidão

Os sentimentos agora expressos podem ser entendidos como referentes

ao passado e presente, e ao futuro. Explicando melhor. É expresso um con­

junto de sentimentos, que apelidei de "reactivos", e que têm essencialmente

a ver com o processo que o doente e familia estão a viver (i.e., passado e pre­

sente). Os doentes e famílias expressanrse sobre o que lhes aconteceu e está

a acontecer com sentimentos de tristeza, desespero, angústia e auto­culpabi­

lização, como no caso que se segue.

Errf ­ É uma clínica dos bancários, não é? Mas não havia hipótese de quê? Sr. F. — De operar. E n f ­ Mas disseram­lhe lá isso foi? Sr. F. ­ Disseram­me lá mesmo. Uma pessoa fica logo assim .... Uma pessoa fica logo ... E n f ­ Claro. Fica logo completamente desarmada, não é? Sr. F. ­ E de ficar sem vontade nenhuma mesmo de viver.... (EAF ­ 150702)

Ainda neste grupo, são expressos sentimentos de compreensão da "corti­

na de silêncio" que se criou à sua volta, e de gratidão, essencialmente pela

forma como foram ajudados, seja pela família ou pelos profissionais de saú­

de. Quer um quer outro destes dois últimos têm a ver com sentimentos ine­

rentes à rede de relações e ao modo como esta reagiu à situação.

279 Dissertação de Doutoramento

Page 282: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Por outro lado, é também expresso um conjunto de sentimentos que têm

mais a ver com a projecção no futuro, como bem o expressa a doente abaixo

citada.

D. L. ­ Isto é uma renda que a gente já nunca mais ganha sossego na cabeça iri­

se). A gente já fica sempre preocupada. (EAL2 ­ 100702)

Relativamente a estes sentimentos projectivos, perceberrrse dois subgru­

pos diferentes e de algum modo antagónicos. O primeiro, que engloba senti­

mentos antecipatórios de ansiedade/insegurança e preocupação," e o segundo,

que é constituído essencialmente por sentimentos de optimismo/esperança e

abertura à realidade. A esta divisão dos sentimentos por grupos não corres­

ponde qualquer idêntica divisão dos doentes. O que se constata é que os

doentes podem, em momentos diferentes, expressar sentimentos diferentes,

passíveis de ser incluídos em qualquer dos grupos atrás referidos.

A outra subcategoria denominei­a "solicitações" (ver diagrama 15). A par

e em complemento com a expressão de sentimentos, os doentes e famílias

fazem solicitações concretas à enfermeira.

Diagrama 15 — "Solicitações" dos doentes e familiares durante a entrevista de admissão.

Sobre o processo de 4 tratamento

^Informação L Sobre as consequências j da doença/tratamento

Solicitações f ­►Ajuda concreta

Y De criação de laços relacio­nais com a

Se tivesse que as caracterizar em poucas palavras, diria que o denomina­

dor comum destas solicitações tem a ver com o padrão de sentimentos

expressos. Isto é, de algum modo, buscam através das solicitações, uma

solução para as preocupações, medos e angústias que expressaram. Em boa

verdade, a própria expressão de sentimentos se pode entender como uma

solicitação, na medida em que, muitas das vezes, é claramente um grito de

Dissertação de Doutoramento

Page 283: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

socorro. Assim, categorizei as "solicitações" dos doentes e familias, de acordo

com o que consta no diagrama 15.

A solicitação de informação visa, de modo claro, apaziguar a insegurança

quer sobre o processo de doença quer sobre o tratamento (ver extracto abai­

xo). Dito de outro modo, a solicitação de informação poderá não ter como

motivação fundamental o desconhecimento, mas sim a insegurança. Neste

sentido, é de salientar o modo como os doentes e famílias solicitam informa­

ção sobre as consequências da doença e tratamento. De algum modo, estão

implicitamente a solicitar um prognóstico.

...Mulher - Este não dá para cair o cabelo? E n f - Não, este não, este não é desses que faz cair o cabelo.... (EAJM - 050802)

Outra das solicitações dos doentes é direccionada para questões muito

concretas que podem ir desde a ajuda na obtenção de um documento, à exe­

cução de um cuidado concreto (e.g., penso, injectável), ou à facilitação do con­

tacto com o médico. Apesar deste carácter pragmático, estas ajudas são de

grande utilidade na medida em que, por vezes, pequenos problemas assu­

mem uma grande dimensão no contexto da vivência destes doentes.

A última solicitação tem a ver com a "de criação de laços relacionais".

Regra geral esta solicitação é feita de modo subtil, mas dando sempre a

entender que gostariam de ter, no contexto daquele serviço, alguém identifi­

cável, a quem se pudessem dirigir e com quem pudessem contar, como se

pode verificar no exemplo que apresento. Torna-se curiosa esta solicitação se

conjugada com o que atrás foi dito pelos doentes relativamente à ambigui­

dade face ao assumir a existência de relação preferencial. Ou seja, se ques­

tionados sobre a existência de relação preferencial, a resposta é ambígua,'

porém, no contexto da entrevista de admissão constata-se a solicitação de

relação preferencial.

...Esposa — Eu queria lhe pedir que me deixasse um cartãozinho com o seu nome. E n f - Está bem. Esposa — Porque eu com o que já me passou pela cabeça, posso-me esquecer. Quando estou nervosa .... E n f - Não. A gente dá-lhe ali um ... Esposa - E assim já há um contacto... (EAC - 220402)

281 Dissertação de Doutoramento

Page 284: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

À semelhança do que se passava na entrevista de admissão, também na

sala de quimioterapia a interacção não resulta apenas da iniciativa da

enfermeira. Em muitas das situações essa iniciativa cabe ao doente ou ao

familiar, sendo diversas as razões que a fundamentam. As principais razões

foram categorizadas de acordo com o constante no diagrama 16.

Diagrama 16 ­ Início de interacção por iniciativa dos doentes e/ou familia­

res na sala de quimioterapia.

A Civilidade cortesia / j( Diversa Áf Solicitação de ajuda C

I/ Técnica

Interacção enfermeira/doente Jr ­ Iniciada pelo doente/familiar C.

/ w Solicitação de informação Interacção enfermeira/doente Jr ­ Iniciada pelo doente/familiar C. ►Solicitação de mediação

v \ Partilha do luto

V Expressão de afectos

~ Reclamação

A "civilidade e cortesia" é a forma escolhida pelo doente para responder a

idêntica atitude por parte da enfermeira e já atrás mencionada. A civilidade

e cortesia no trato manifesta­se desde o cumprimento inicial até à despedi­

da. Esta é também uma forma de mútuo respeito.

Existem depois duas categorias que considero nucleares no contexto da

relação estabelecida com a enfermeira. O primeiro diz respeito às solicita­

ções do doente e/ou da família e que se direccionam em três sentidos^ ajuda,

informação e mediação. Penso que seja oportuno recordar que entre as

acções desenvolvidas pelas enfermeiras existem algumas de resposta especí­

fica a estas solicitações. Ou seja, parece haver uma atenção e uma tentativa

de resposta da enfermeira às solicitações do doente e/ou família.

Caracterizando um pouco melhor cada uma destas solicitações, diria que

a "solicitação de ajuda" ainda pode ser categorizada em dois grupos com

características próprias. O primeiro destes grupos tem a ver com solicitações

de natureza diversa que podem ir desde uma interacção verbal particular,

Dissertação de Doutoramento

Page 285: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

até à solicitação de ajuda para problemas concretos, como os sintomas, como

no exemplo que se segue.

...O Sr. A. desencadeou uma conversa particular com a enfermeira, sobre o seu processo de adaptação à quimioterapia e aos sintomas, manifestando as suas preocupações. A enfermeira ouviu atentamente, respondeu às suas questões e combinaram medidas a adoptarem para gerirem os sintomas.... (DO - 040702)

O segundo grupo tem mais a ver com solicitações de ajuda técnica, ou

seja, administração de um injectável, verificação da funcionalidade da per­

fusão, entre outros. Neste último caso, verifica-se, por vezes, que as razões

invocadas para a solicitação não existem, parecendo estar subjacente uma

necessidade de interacção a qual parece ser compreendida e aceite pela

enfermeira.

Por sua vez a "solicitação de informação", abrange todas as áreas possí­

veis, relacionadas ou não com o processo de saúde. Naturalmente que as que

ocupam mais tempo são as relacionados com o processo de saúde e de entre

estas as relativas aos tratamentos (e.g., exemplo abaixo apresentado), exa­

mes complementares de diagnóstico, efeitos secundários, evolução provável

da situação, entre outros. Contudo, também pode acontecer que se pergunte

como ir ao banco X, às finanças, onde comprar roupa, entre outras. A infor­

mação relativa ao processo de saúde é direccionada para a enfermeira,

enquanto que a outra faz parte das conversas que circulam na sala e repon­

de quem for detentor da informação mais apropriada.

... Entretanto, S3 perguntou o que era o medicamento que ia ali fazer. A enfer­meira explicou o que era e para que serviam todos os medicamentos que ia fazer. . .(DO- 160702)

A "solicitação de mediação" é dirigida directamente à enfermeira e pode

ter dois sentidos. Um que tem a ver com a solicitação, normalmente, feita

por uma familiar à enfermeira, para que ela seja veículo de determinada

mensagem para o doente, que este acatará se vier dela, mas rejeitará se vier

de um familiar (ver extracto abaixo). Estas mensagens normalmente têm a

ver com a necessidade de reduzir a ansiedade do doente.

... A entrada estavam as auxiliares de acção médica e uma aluna que estava a chegar à sala. Esta foi interceptada pela mulher do último sr° atrás referido (Sr.

283 Dissertação de Doutoramento

Page 286: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

C) , que lhe pediu, a coberto do olhar do marido, servindo_se para esse efeito do espaço que fica atrás da porta, para verificar a T.A. e o pulso ao marido e para falar com ele pois ter-se-á verificado alguma alteração nestes parâmetros e ele terá ficado muito preocupado pelo que era necessário voltar a verificar, mas acima de tudo, desmitificar a situação. A aluna prometeu que o faria e de facto foi fazê-lo, tendo dedicado algum tempo ao sr....(DO - 110702)

O outro sentido da mediação é sobreponivel ao que já foi referido mais

atrás e tem a ver com a acção da enfermeira na interface da relação do doen­

te com a organização e com os outros profissionais.

A outra das categorias nucleares no que diz respeito à iniciativa do doen­

te e/ou familiar neste processo de interacção, é a que tem a ver com a "parti­

lha de sentimentos". Ou seja, por parte dos doentes e/ou familiares existem

iniciativas de partilha de sentimentos com a enfermeira. Assim, penso que

seja de realçar que, de uma forma geral, existe expressão de sentimentos

como o medo, a tristeza, a angústia, a preocupação, entre outros. Para tal

acontecer é porque sentem que do outro lado existe um interlocutor que

escuta e em quem podem confiar. Dito por outras palavras, é porque se sen­

tem bem com isso.

O sentimento de luto é um dos que é quase sistematicamente partilhado

com a enfermeira e que por isso, penso ser merecedor de destaque. Esta par­

tilha normalmente ocorre em interacções privadas e muitas vezes com a

família. Aliás, é quase uma rotina, os familiares virem pessoalmente comu­

nicar a morte do doente e nesse contexto, desenvolver-se uma interacção de

partilha de luto com expressão de sentimentos de ambas as partes.

Por último, referência para a categoria "reclamação". Como em qualquer

relação, também nesta existe espaço para a discordância e a reclamação.

Penso que o facto de os doentes reclamarem, seja um indicador positivo, por­

que, de algum modo, sentem que o ambiente não é intimidatório. As recla­

mações podem também ser um pedido de ajuda disfarçado. Em qualquer dos

casos, normalmente existe uma resposta assertiva por parte das enfermei­

ras. Esta capacidade assertiva, contudo, parece estar mais desenvolvida

numas que noutras. Algumas de entre elas reconhecem não ter muito essa

capacidade, remetendo a gestão dessas situações para colegas em quem a

reconhecem.

Dissertação de Doutoramento

Page 287: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Da análise conjunta destes diversos contributos cruzados resulta a ideia

de um processo relacional dinâmico, no qual a enfermeira desenvolve um

conjunto de estratégias intencionais, as quais encontram a sua principal jus­

tificação quer no que o doente e/ou familiar expressam, quer no que solici­

tam, um e outro indicadores do estádio de vivência do processo de saúde.

5.4.4 - O "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem": Pers­

pectiva global

Antes de definir este construeto a partir dos diversos conceitos oriundos

de diferentes fontes, parece-me adequado justificar a sua denominação. Esta

designação resultou de um processo de desenvolvimento progressivo do meu

raciocínio, o qual se alicerçou nos dados que emergiram ao longo deste estu­

do, mas também nas diversas leituras a que os mesmos me obrigaram.

Designar a intervenção de enfermagem como terapêutica não é algo que se

constitua como um hábito, quer entre os enfermeiros, na prática dos cuida­

dos ou no ensino, quer na literatura. Tal, talvez se justifique, entre outras

razões, pela história da profissão de enfermagem, a qual, nos seus primór­

dios era entendida, não só como subsidiária da medicina, mas principalmen­

te como isenta de qualquer carácter autónomo e/ou terapêutico. Mesmo na

literatura de enfermagem não é muito comum encontrar o termo "terapêuti­

co" como caracterizador da intervenção dos enfermeiros. Apesar disso,

podemos encontrar uma primeira referência no livro de Peplau (1990),

publicado pela primeira vez em 1952, ao salientar o potencial terapêutico da

relação enfermeiro-doente. Aí, ela afirmava que o processo de enfermagem é

educativo e terapêutico quando a enfermeira e o doente evoluem no conhe­

cimento e no respeito mútuo, como pessoas que sendo iguais, são diferentes

e como pessoas que parti lham a procura de soluções para os problemas.

Mais tarde, Levine (1973), referhrse às intervenções de enfermagem

como terapêuticas, mas numa acepção diferente da autora anterior. Esta

outra faz referência a dois tipos de intervenção de enfermagem: as "inter­

venções de encorajamento", as quais têm como objectivo prevenir uma maior

deterioração no estado de saúde do doente; e as "intervenções terapêuticas",

Dissertação de Doutoramento

Page 288: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utenlcs e os enfermeiros; Construção de u m a relação

as quais visam promover a adaptação e a capacidade de se tornar saudável e

consequentemente contribuir para a restauração da saúde.

Apesar destes contributos, considero que não está suficientemente justi­

ficado o uso da designação atrás referida (i.e., "processo de intervenção tera­

pêutica de enfermagem"). Tal deve-se essencialmente a estas questões^ qual

o significado exacto da expressão "terapêutica de enfermagem"? Se é feita

referência a intervenções terapêuticas, tal significa que existirão outras que

não o são? Hockey, citado por McMahon (1991), colocou e tentou responder a

uma questão análoga à primeira. Definiu então "enfermagem terapêutica"

como as actividades de enfermagem que resultam num movimento em direc­

ção à saúde. Porém, a par com esta definição, é necessário definir também o

conceito de saúde que lhe está implicito. Isto porque, a primeira assumirá

características completamente diferentes, em função do modo como se defi­

nir o segundo. Ou seja, se o conceito de saúde estiver centrado na cura da

doença, a "enfermagem terapêutica" terá uma característica; se porém, o

conceito de saúde tiver uma natureza holística, incluindo o mesmo o de

bem-estar, então a definição de "enfermagem terapêutica" assumirá caracte­

rísticas completamente diferentes das anteriores.

Apesar deste contributo, Hockey não identificou quais as actividades ou

intervenções de enfermagem que t inham um efeito ou uma natureza tera­

pêutica e que contribuíam assim para o processo saudável. Por tal razão

McMahon (1991), em 1986, propôs quatro áreas que podem ser consideradas

terapêuticas, chamando no entanto à atenção para a necessidade de serem

investigadas, nomeadamente: relação enfermeiro-doente,' intervenções de

enfermagem convencionais, as quais incluem, entre outras, intervenções

físicas que ajudam a resolver problemas como úlceras de pressão; interven­

ções de enfermagem não convencionais, que incluem práticas das terapias

alternativas como a aromaterapia, massagem, cinesiologia, entre outras; e

ensino do doente.

Outros autores deram contributos para o enriquecimento do conceito de

"enfermagem terapêutica", nomeadamente, Ersser (1988) com os conceitos

de "ambiente terapêutico" e "promoção do conforto"; e Muetzel (1988) com o

_ _ = _ _ _ _ _ _ _ = _ _ _ „ = = = _ _ _ _ = = = = _ _ _ = = „ _ _ „ = = _ „ _ _ _ „ _ „ _ _ _ „ „ „ _ „ „ _ _ _ 2 8 6

Dissertação de Doutoramento

Page 289: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

seu modelo de relação enfermeiro-doente enquanto processo terapêutico.

McMahon (1991), analisando a sua proposta em conjunto com as contribui­

ções dos outros autores, propôs um construeto constituído por o que ele

designou como os elementos da enfermagem terapêutica (ver diagrama 17,

atrás).

Diagrama 17 - Actividades terapêuticas na enfermagem.

=> DESENVOLVENDO: o PARCERIA o INTIMIDADE o RECIPROCIDADE

NA RELAÇÃO ENFERMEIRO-DOENTE => MANIPULANDO O AMBIENTE =i> ENSINANDO => PROMOVENDO O CONFORTO =s> ADOPTANDO PRÁTICAS DE SAÚDE COMPLEMENTARES => UTILIZANDO INTERVENÇÕES FÍSICAS TESTADAS.

Fonte: McMahon & Pearson (1991)

E no contexto do atrás exposto que proponho a designação de "processo

de intervenção terapêutica de enfermagem", para este construeto. Assim, o

"processo de intervenção terapêutica de enfermagem" engloba a totalidade

da intervenção da enfermeira, dirigida ao doente e família, bem como à

interface destes com o grupo e a organização, no contexto onde realizei o

estudo. É, portanto, de natureza multifocal, ou seja, a enfermeira, conti­

nuando a centrar a sua atenção sobre o doente/família, alarga-a à interface

destes com a organização e outros profissionais, bem como ao grupo de doen­

tes na sala de quimioterapia e à sua interface com cada doente em particu­

lar e com a organização (ver figura 17).

Esta intervenção é de natureza processual e é pautado por uma atitude

terapêutica de natureza complexa, dinâmica e contextual. É de natureza

processual na medida em que se desenvolve no tempo, numa construção

paulatina e sistemática, sendo constituído de modo dinâmico por elementos

de natureza diversa. A intervenção, resultado final em cada momento

daquele processo, traduz-se em actos complexos e não pode ser entendida

senão como um todo. Pelo que, qualquer um dos elementos constituintes da

287 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

intervenção do enfermeiro, de que falarei a seguir, apenas é entendivel no

contexto dessa totalidade. Aquela característica é constatável na prática e

enquadra-se na perspectiva defendida por Carper (1978) e Bishop & Scudder

(1991) quando definem os padrões de conhecimento em enfermagem. Ou

seja, também aquelas autoras referem que o concreto de cada acção está

imbuída dos diferentes padrões de conhecimento, mas apenas pode ser

entendida como um todo. Também Schõn (1998) se refere ao agir como uma

totalidade. A mesma ideia de totalidade complexa está ainda subjacente na

concepção de competência de Le Boterf (1995), bem como no modo como

Benner (2001) entende e define a acção das enfermeiras.

Figura 17 - Carácter multifocal da actuação da enfermeira

Promoção da Autonomia Promoção do Respeito Promoção de Conforto

Gestão dos Sentimentos

Gestão da Informação

Gestão do Grupo

Intermediação Centrada

Ao afirmar que a intervenção é terapêutica estou a fazêdo no contexto do

que atrás afirmei quando defini "enfermagem terapêutica". Ou seja, estou a

dizer que o resultado dessa acção se traduz em benefícios concretos na saúde

das pessoas. Para isso, assento em dois pressupostos. O primeiro tem a ver

Dissertação de Doutoramento

Page 291: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

com o conceito de saúde, o qual terá que ser entendido de uma forma holísti-

ca e dinâmica e compreender o benrestar , à semelhança das definições pro­

postas por algumas das teóricas de enfermagem (e.g., Neuman, 1982;

Rogers, 1970; Parse, 1987, 1992; Watson, 1981, 1985, 1988). Até por força do

contexto em que os cuidados decorrem e da natureza do processo fisiopatolcr

gico, se não se tiver uma acepção de saúde com aquelas características,

raramente existirão intervenções terapêuticas. O segundo pressuposto tem a

ver com o que foi afirmado ao longo da análise dos dados. Ou seja, pela com­

paração entre os dados resultantes das entrevistas às enfermeiras, aos doen­

tes, das entrevistas de admissão e os resultantes da observação, consta-

tou-se que existe, por parte das enfermeiras, uma postura de rigor técnico,

disponibilidade, ajuda e de resposta às necessidades dos doentes, através de

um conjunto de instrumentos já atrás caracterizados; por parte dos doentes,

verificou-se o reconhecimento de algumas dessas características e ainda a

manifestação de reconhecimento e de confiança nas enfermeiras,' com base

na observação, confirmou-se o referido por uns e outros e constatou-se ainda

um recurso sistemático aos cuidados das enfermeiras. Por este conjunto de

razões estou convicto de que a intervenção das enfermeiras tem característi­

cas terapêuticas e que contribui de modo claro para o processo de saúde des­

tes doentes. Naturalmente, que as referidas características terapêuticas

carecem de muito mais investigação, não só para uma mais clara identifica­

ção, mas também para uma inequívoca caracterização dos seus diversos

componentes.

A complexidade do "processo de intervenção terapêutica de enfermagem"

justifica-se como forma de resposta à natureza igualmente complexa das

situações com que se confronta. Mais atrás referi que uma situação é com­

plexa quando se combinam um elevado número de variáveis, com um eleva­

do e imprevisível número de interacções entre as mesmas (Morin, 1990).

Igual afirmação se poderá fazer relativamente à natureza complexa da

intervenção terapêutica de enfermagem. Efectivamente, esta é complexa na

medida em que é constituída por múltiplos elementos de natureza diversa

que vão desde os técnico-instrumentais, como os inerentes à administração

289 Dissertação de Doutoramento

Page 292: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os iilciilcs c os enfermeiros: Construção de uma relação

de quimioterapia, até aos relacionais, como a gestão da informação e dos

sentimentos inerentes à vivência do processo de doença e tratamento. Sendo

que a relação entre estes elementos é o resultado do modo como cada enfer­

meira os vive em cada dia, bem como do doente/familia, com tudo o que lhe

está associado, e do contexto que tem perante si, sendo este sistematicamen­

te diferente. Também por estas razões é dinâmica, na medida em que não

obedece a nenhum protocolo preexistente para cada situação ou para cada

doente, e que resulta de um processo de construção sistemático a que já

atrás fiz referência (figura 18).

Os objectivos do "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem"

são múltiplos. Destes destaco^

/ Promover a confiança e a segurança!

■S Apaziguar a ansiedade e a insegurança!

■S Promover a esperança e a perseverança.

S Promover a autonomia, o respeito e o conforto!

S Preparar e administrar a quimioterapia e outros t ratamentos pres­

critos.

Figura 18 ­ Natureza complexa e dinâmica do "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem".

Dissertação úc Doutoramento

Page 293: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulciilcs c os enfermeiros: Construção tic uma relação

Considerando as características já atrás referidas, cada intervenção da

enfermeira visará em simultâneo diversos objectivos. Assim e a título de

exemplo, uma administração rigorosa da quimioterapia prescrita, pode ser­

vir para aumentar o conforto do doente, quer a curto (e.g., evitando extrava­

samentos), quer a médio prazo (e.g., contribuindo para o controlo da evolu­

ção da doença oncológica e/ou para o controlo da sintomatologia mais inco­

modativa). Mas pode servir também para aumentar a confiança do doente

na enfermeira e no tratamento, aumentar a esperança e, consequentemente,

aumentar a eficácia do tratamento medicamentoso.

Aqueles objectivos são alcançados fazendo uso de uma ampla diversidade

de instrumentos, os quais já foram caracterizados de acordo com os dados

recolhidos. Resta agora caracterizá-los por comparação com a li teratura

existente.

O primeiro grupo a que farei referência denominero "gestão de senti­

mentos". A razão para esta primazia já atrás foi explicada e têm a ver essen­

cialmente com o modo como os doentes se apresentam perante as enfermei­

ras e como manifestam vivenciar a sua situação de doença. Numa tentativa

de compreensão desta vivência, mas também do modo como as enfermeiras

estruturam as suas respostas vou socorrer-me de um conjunto de teorizações

tais como a teoria do stress, da crise e o conceito de transição.

O stress, foi pela primeira vez estudado, sistematizado e proposto como

teoria por Selye (1962, 1965, 1974). Este autor estudou-o principalmente sob

o ponto de vista fisiológico. Mais tarde, Holmes e Rahe (1967) por um lado e

Lazarus (1979) pelo outro, constituíram-se como referências fundamentais

para a extensão deste conceito a outros domínios. Os primeiros autores atrás

referidos (i.e., Holmes e Rahe, 1967), estudaram a relação entre as mudan­

ças de vida e o desenvolvimento de doença. Para o efeito desenvolveram uma

escala graduada de acontecimentos de vida (Social Readjustment Rating

Scale), na qual atribuíram diferente pontuação em função do impacto desse

mesmo acontecimento e do consequente risco para a saúde. Através dos seus

estudos perceberam ainda que havia relação entre as características e a fre­

quência dos acontecimentos num determinado período de tempo. Na referida

2 9 1 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 294: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

escala o traumatismo ou doença do próprio é um item que ocupa o sexto

lugar, sendo-lhe atribuída uma pontuação de 53, sendo que a pontuação

máxima é de 100. Ou seja, tem um elevado peso enquanto acontecimento de

vida gerador de stress e potencial indutor de doença. Contudo, esta escala

não estabelece qualquer diferenciação entre doenças. Ora é sabido que a

representação das mesmas é um factor importante na génese do stress, logo,

no modo como a mesma é vivenciada. A doença oncológica é disso um exem­

plo cabal, magistralmente exemplificado na obra de Sontag (1998).

Na sua teorização Lazarus (1979) apresenta o stress e o coping (i.e., modo

de lidar com) como processos, realçando a sua inter-relação. Privilegia a

perspectiva cognitiva, afirmando que a mesma é essencial para a determina­

ção do que é gerador de stress e do modo como lidar com o mesmo. Com base

nisto propôs um modelo explicativo, através do qual se compreende que o

stress resulta da avaliação que o indivíduo faz das necessidades com que se

confronta e das capacidades que possui para lidar com as mesmas. Esta ava­

liação como já foi referido é de natureza cognitiva e desenvolve-se em dois

níveis distintos. No primeiro nível é avaliada a necessidade, considerando o

significado que a mesma tem na vida da pessoa. No segundo nível são ava­

liados os recursos de que dispõe para responder àquela necessidade. Neste

modelo, as emoções também são consideradas, sendo apresentadas como o

resultado da avaliação de segundo nível. Ou seja, a tonalidade emotiva terá

características positivas, se da avaliação resultar a percepção de que possui

capacidades para lidar com a situação! aquela tonalidade será negativa se a

avaliação chegar a conclusão contrária. Como resultado deste último surgi­

rão a angústia, a raiva, a depressão, a ansiedade, entre outros. Por esta

ordem de ideias, os sentimentos manifestados pelos doentes, quer quando se

encontram pela primeira vez com a enfermeira, quer durante o processo de

tratamento, poderão ser entendidos como resultantes de uma avaliação

negativa das suas próprias capacidades para lidar com a dificuldade com

que se deparam, ou seja, a doença oncológica. A intervenção da enfermeira

poderia então ser entendida como orientando-se, por um lado, no sentido de

ajudar a pessoa a reavaliar as suas capacidades, e por outro, no sentido de

_ _ - _ _ — _ _ _ _ ^ ^ _ _ _ _ - « _ _ _ _ _ » _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ . _ _ _ _ _ „ „ _ „ _ _ ^ 2 9 2

Dissertação de Doutoramento

Page 295: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulcntcs c os enfermeiros: Construção de uma relação

as reforçar. Neste último caso, penso que seja enriquecedor o conceito de

empowerment (Rappaport, 1990). Ou seja, a capacitação das pessoas, aos

mais diversos níveis, para lidarem com a situação com que se confrontam.

Contudo e para uma compreensão cabal deste fenómeno, bem como das

intervenções desenvolvidas pelas enfermeiras, penso que seja adequado

recorrer também às explicações da teoria da crise. Isto porque, não tendo

dúvidas que o processo vivido pelos doentes é gerador de stress, é-me tam­

bém evidente que o mesmo é de uma dimensão tal que desorganiza por com­

pleto a vida de quem o vive. Portanto, prefigura-se como um obstáculo aos

objectivos de vida da pessoa, aparentemente intransponível através dos

métodos que habitualmente usa para resolver os seus problemas. Ora esta

percepção coincide com o conceito de crise acidental ou situacional, tal como

é definida por Caplan (1980).

Erikson (1976a, 1976b), foi um dos primeiros autores a introduzir o con­

ceito de crise, ainda que com numa acepção algo diferente da anterior. Este

autor, ao caracterizar as diferentes fases de desenvolvimento da personali­

dade, afirmou que, na transição entre as mesmas se verificam períodos de

comportamento indiferenciado, que se caracterizam por transtornos cogniti­

vos e afectivos. A estes períodos Erikson chamou crises de desenvolvimento.

Porém, foi Caplan (1980) que sistematizou e desenvolveu a teoria da crise. A

teoria desenvolvida por este autor "baseia-se no pressuposto de que, para

não se tornar mentalmente perturbada, uma pessoa necessita de "suprimen­

tos" contínuos, compatíveis com o seu estádio corrente de crescimento e

desenvolvimento" (p.46). O pressuposto dos suprimentos assenta, por sua

vez, em dois outros que lhe estão subjacentes. O primeiro tem a ver com a

concepção de saúde mental como resultante de um equilíbrio entre as neces­

sidades do indivíduo em cada fase do seu desenvolvimento e a resposta do

meio bio-socio-cultural a essas necessidades. O segundo tem a ver com a

adopção de um modelo de características nutricionais para responder às

necessidades do indivíduo. O autor agrupa os suprimentos em três grupos-

suprimentos físicos, psicossociais, e sócio-culturais.

293 Dissertação de Doutoramento

Page 296: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Os suprimentos físicos incluem factores como a alimentação, a habitação,

o exercício, bem como tudo o contribui para o crescimento e desenvolvimento

do corpo e para a manutenção da sua saúde. Dos suprimentos psicossociais,

fazem parte a estimulação do desenvolvimento das capacidades afectivas e

intelectuais do indivíduo, através da interacção com os seus semelhantes

(e.g., família e outras pessoas significativas). É aqui que entra toda a vida de

relação, a necessidade de amar e ser amado, a participação nas actividades

de grupo e ainda a necessidade de adquirir padrões de afirmação e de con­

trolo face à autoridade. Finalmente, os suprimentos sóckrculturais, incluem

as influências que os valores de cada cultura e a forma como a sociedade

está estruturada, exercem sobre o desenvolvimento e funcionamento da per­

sonalidade do indivíduo. As expectativas dos outros face ao lugar que ocu­

pamos na sociedade, são determinantes do comportamento do sujeito.

Assim e no entender deste autor (Caplan, 1980), surgirá o distúrbio

quando existir escassez quantitativa de suprimentos, ou quando pelo contrá­

rio, eles existirem em excesso. Portanto, quando, na vida de qualquer pes­

soa, ocorrerem períodos em que existe uma perturbação psicológica e conse­

quentemente comportamental, desencadeada por situações de vida que

levam à perda súbita de suprimentos básicos, estaremos perante uma crise

acidental ou situacional. Numa situação de crise o indivíduo sente-se per­

turbado associando a isso "sentimentos subjectivos de desconforto, como

angustia, medo, culpa ou vergonha, segundo a natureza da situação"

(Caplan, 1980, p.54). Há assim uma diminuição dos recursos pessoais ou um

nível exagerado de stress para as capacidades do indivíduo. Tudo é posto em

causa, e o nível habitual de eficiência em lidar com situações problemáticas,

é mais baixo que o usual, resultando daí uma alteração da homeostase psí­

quica. Estes períodos podem a ter a duração de dias ou semanas e são vivi­

das pelo indivíduo no sentido de "desenvolver um esforço de ajustamento e

adaptação face a um problema temporariamente insolúvel" (Caplan, 1980, p

49). O processo de resolução varia de indivíduo para indivíduo, consoante os

mecanismos de coping de que disponha, os quais têm a ver, entre outros,

com a estruturação e maturação da sua personalidade e com as experiências

= = — _ _ _ _ _ _ = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = _ _ _ _ _ „ „ = _ = = _ _ _ _ _ « _ = = _ _ _ _ _ _ _ „ = „ _ _ _ 2 9 4

Dissertação de Doutoramento

Page 297: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

anteriormente vividas; e do suporte situacional disponivel, o qual tem a ver

com a rede relacional, mas também com a institucional. Como resultado do

processo de resolução, o individuo pode sair reforçado, se conseguir reunir as

capacidades necessárias para resolver a crise, o que permite olhar a crise

como algo benéfico; ou contrariamente, pode revelar uma incapacidade para

enfrentar e resolver os problemas da vida, de um modo ajustado, e assim a

crise, será um período prejudicial e negativo (ver diagrama 18). O povo tra­

duz esta perspectiva de vivência de crise através de um dito muito curioso:

"o que não me derruba, fortalece-me".

Esta perspectiva é sem dúvida enriquecedora para a compreensão da

vivência dos doentes e fornece-nos elementos preciosos para o enquadramen­

to e fundamentação da intervenção das enfermeiras como terapêutica. Efec­

tivamente, quer por conta do que foi dito, quer através da análise do dia­

grama 18, torna-se fácil perceber a intervenção das enfermeiras na tentativa

de desenvolver uma percepção realista do acontecimento e de providenciar

um suporte adequado, quer disponibilizando-se a si e ao serviço, quer poten­

ciando a capacidade de intervenção da família.

Contudo, fica por explicar parte do fenómeno. Efectivamente, de acordo

com Caplan (1980), uma crise ocorre num tempo limitado, sendo expectável

a sua resolução num período de 4 a 6 semanas. Ora, a situação em análise

neste trabalho reveste-se de características especiais por, entre outras, duas

ordens de razões. Primeiro porque, associada à crise da doença, a qual só por

si já tem características especiais uma vez que se constitui como uma amea­

ça à vida, surge a crise dos tratamentos de quimioterapia, sobre os quais se

desenvolveu toda uma mitologia. Contudo e para além desta, os mesmos tra­

tamentos traduzem-se na indução cíclica e récidivante dum elevado nível de

stress a todos os níveis.

Segundo, porque a doença propriamente dita pode transformar-se numa

espiral de complicações e dificuldades crescentes, evoluindo em direcção ao

final da vida.

295 Dissertação de Doutoramento

Page 298: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Diagrama 18 - Processo de desenvolvimento de uma crise - o efeito dos factores de equilíbrio.

Organismo Humano

Acontecimento gera­dor de stress Estado de Equilíbrio

Acontecimento gera­dor de stress

Estado de Desequilíbrio

Sentimento de Necessidade de Restabelecer o Equilíbrio

I

Presença de Factores de Equilíbrio

i * Percepção realista do acontecimen­

to

I mais ±

* Suporte situacional adequado

mais ±

* Mecanismos de coping adequados

conduz a _ _ *

Resolução do problema

Equilíbrio restabelecido

Ausência de crise

* Factores de eauilíbrio

Ausência de um ou mais factores de equilíbrio

1 Percepção distorcida do acontecimento

e/ou

Sem suporte situacional adequado

e/ou ±

Sem mecanismos de coping

conduz a

Problema não resolvido

i ' Desequilíbrio mantido

1 ' Crise

Fonte: Aguilera & Messick (1998)

Assim, e do ponto de vista da intervenção das enfermeiras, não se trata

de ajudar resolver uma situação de crise e/ou de stress pontual. Trata-se,

isso sim, de ajudar alguém que passou a viver em situação de stress e/ou de

Dissertação de Doutoramento 296

Page 299: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

crise permanente. Para além disso, ficam por explicar cabalmente algumas

das actividades desenvolvidas pelas enfermeiras, principalmente as que

dizem respeito à gestão de sentimentos.

Por último e relativamente à teoria da crise como um todo, resta-me uma

interrogação que me tem acompanhado e para a qual ainda não encontrei

resposta. A situação com que a pessoa se depara só se torna potencialmente

geradora de uma crise se a pessoa percepcionar que não tem capacidades

para lidar com ela. Naturalmente que podemos questionar a capacidade de

auto-avaliação da pessoa e descobrir que afinal essas capacidades existem.

Todavia, quando de todo não existem torna-se necessário desenvolver novas

capacidades para enfrentar um novo desafio. Aliás a justificação do enrique­

cimento inerente ao ser capaz de lidar com uma crise reside aqui. Ou seja, a

pessoa só sai mais enriquecida se desenvolver novas capacidades e não se

possuir capacidades para lidar com a situação. Neste último caso o enrique­

cimento reside apenas num aumento da sensação de auto-eficácia. Mas, no

caso anterior, permanece por explicar o processo de criatividade que permite

o desenvolvimento dessas novas capacidades para responder a novos desa­

fios.

Por tais razões é necessário recorrer ao contributo de outros autores no

sentido de complementar os anteriormente referidos. Considero que Chick &

Meleis (1986), foram duas das autoras que deram um contributo considerá­

vel na compreensão deste fenómeno. Não se pode dizer que estas autoras

tenham trabalhado o conceito de crise. Contudo, o conceito de transição, por

elas proposta, embora sendo diferente do anteriormente referido, tem com

ele muitas afinidades. Este conceito, já atrás explicado (vide: sub-capitulo

"esboço da estrutura essencial da disciplina de enfermagem"), constitui-se

como um contributo significativo para a compreensão dos resultados deste

trabalho, principalmente se tivermos em consideração o que as autoras

denominam como as "condições de transição". Estas estão muito centradas

na pessoa que está a vivenciar a situação de transição, destacando os seus

significados e expectativas e abrindo a outras variáveis tais como o

benrestar físico e emocional.

297 Dissertação de Doutoramento

Page 300: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Mas, também Morin (1973, 1982, 1996) se refere à crise, destacando a

das sociedades humanas. Apesar disso considero que essas referências

podem ser extrapoladas para as pessoas, consideradas de um ponto de vista

individual. Afirma este autor que uma crise só é concebivel num sistema

aberto que obedeça a três ordens de princípios, o sistémico, o cibernético e o

neguentrópico. O princípio sistémico refere-se a conjuntos organizados, sen­

do que esta organização resulta da inter-relação entre os seus constituintes.

Tal pode dizer-se das sociedades, mas também dos seres humanos a nível

individual e significa que entre os elementos que constituem esse conjunto,

coexistem forças de atracção e de repulsão. Estas forças introduzem o nível

necessário de instabilidade no sistema que lhe permite a reorganização sis­

temática em níveis cada vez mais complexos. Porém, essas forças podem

também conduzir à morte ou à desorganização.

O segundo princípio (i.e., cibernético) ajuda-nos a compreender o ante­

rior, na medida em que a reorganização a que atrás fiz referência, depende

em grande medida de regulações retroactivas inerentes a este princípio. Por

outras palavras, a reorganização acontece quando, quando o sistema volta a

integrar como informação o "output" que ele próprio produziu, ou seja,

desencadeia o sistema de retroalimentação. Assim, se por força da instabili­

dade do sistema se produz um determinado "output" que põe em causa o pró­

prio sistema, este "outpufvai retroalimentar o sistema de informação e con­

duzi-lo a um outro nível de organização que anule aquela instabilidade. Por­

tanto a organização-desorganização inerente a qualquer sistema, permite

que o mesmo se eleve a níveis superiores de organização desde que o princí­

pio cibernético esteja presente.

O terceiro e último princípio (i.e., a neguentropia), é próprio de sistemas

vivos complexos. Neste caso, os sistemas, para além dos princípios atrás

referidos, são ainda eles próprios, consumidores de energia e responsáveis

por trocas de informação constante com o meio. Isto origina sistemáticos

processos de desorganização, mas encerra incríveis oportunidades de reor­

ganização em níveis de complexidade superiores, pela sua integração orga­

nizacional.

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = 2 9 8

Dissertação de Doutoramento

Page 301: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Com base nestes três princípios, mas sobretudo neste último, percebemos

que quanto maior a complexidade de um ser, maior a possibilidade de

desencadear crises, as quais resultam exactamente desta sistemática troca

de informação e energia com o meio. Mas percebemos também que o que ori­

gina a crise encerra também potencialidades para a sua resolução de forma

positiva. Essas potencialidades residem em simultâneo na informação e

energia, mas também na capacidade de a organizar. Pode aqui perceber-se

uma dependência do meio dos seres vivos com estas características. Ou seja,

se não receberem a energia e a informação de que precisam para o seu sis­

temático processo de desorganização/reorganização, tal não se verificará e

cerceará o seu desenvolvimento. Esta dependência é tanto maior quanto

mais complexo for o ser vivo. Nesta cadeia hierárquica o Homem aparece no

topo, como o mais dependente, mas também como aquele que encerra maio­

res capacidades de desenvolvimento.

Deste modo e dada a natureza desta dependência, penso que sejam de

considerar as relações dos seres humanos com os objectos de que dependem.

Tal permitir-nos-á compreender a natureza das crises a que aqueles pare­

cem estar condenados e consequentemente, a forma como se pode desenvol­

ver a partir destas. Ou seja, a forma como podem aproveitar o seu potencial

de desenvolvimento e anular o de desorganização e morte.

Relativamente a estas relações com os objectos começo por fazer referên­

cia à perspectiva da antropologia filosófica, a partir de autores como Misrahi

(1968), Levinas (1980), Buber (1982), e Gevaert (1991). Na perspectiva des­

tes autores deve fazer-se uma clara distinção entre a relação com as coisas e

a relação com o outro (i.e., com o Homem). A primeira caracteriza-se como

experiência. Ou seja, na perspectiva destes autores, as coisas (i.e., a maté­

ria) são inertes e como tal não tomam parte activa na relação com a pessoa.

Pelo que, o resultado da relação da pessoa com as coisas é a experiência, a

qual reside totalmente na pessoa e não no objecto em si. Mesmo os precon­

ceitos que possam existir sobre os objectos residem na pessoa.

A relação com o outro tem características completamente diferentes, na

medida em que, o outro não se submete ao eu e está para além de qualquer

299 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 302: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

preconceito. A presença do outro impõe-se com existência, vida e vontades

próprias. Assim a minha relação com o outro define-se como um encontro.

Este encontro materializa-se num espaço interpessoal, onde predomina a

intersubjectividade constituída pelo eu-tu. No entender de Levinas (1980), o

outro revela-se ou manifesta-se, ou seja, é uma epifania, por oposição aos

objectos que se desvelam, ou seja, o seu conhecimento depende da minha

iniciativa e da minha razão.

A relação com o outro assume assim uma importância central. Esta

mesma importância é reconhecida por outros pensadores de áreas de conhe­

cimento e correntes de pensamento diversas. Assim, podemos perceber essa

importância em autores como Freud (1989, 1995, 1999), mas também nos

contributos de Klein (1980, 1982), Balint (1993, 1998a, 1998b), Winnicott

(1982, 1988), Erikson (1976a, 1976b), Bowlby (1982, 1990, 1993), Rogers

(1974, 1995) ... entre tantos outros. Alguns de entre estes (e.g., Freud, 1989,

1995, 1999; Klein, 1980, 1982; Balint 1993, 1998a, 1998b. Winnicott, 1982,

1988) exploraram a problemática da relação numa perspectiva ontogenética.

Ou seja, tentaram perceber qual a importância da relação com o outro, para

a construção e desenvolvimento do eu. Nesses estudos, principalmente os

autores da corrente analítica, introduziram a expressão "relação de objecto".

Esta expressão transformou-se em teoria, para a qual contribuíram diversos

de entre eles. Porém e para que não haja confusão com a distinção que atrás

operei, as relações de objecto a que estes autores se referem têm a ver com

os vínculos emocionais entre o individuo e outra pessoa, por oposição à rela­

ção do individuo consigo próprio. A expressão foi inicialmente introduzida

por Abraham (1927), porém quem desenvolveu o conceito e o transformou

em teoria foi Klein (1980, 1982). Esta autora via a mãe como o principal

objecto de relação, pelo que construiu uma teoria do desenvolvimento, a qual

se baseia totalmente no vínculo da criança com a sua mãe.

Balint (1993), contribuiu para o desenvolvimento da teoria anterior ques­

tionando a oralidade, nomeadamente no que diz respeito à dependência da

criança em relação à mãe, que a formulação de Klein (1980, 1982) sugeria.

Esta autora colocou a relação mãe/filho no âmbito de uma interdependência

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Dissertação de Doutoramento

Page 303: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

em que nenhum dos dois pode ter, independentemente do outro, nem esta

forma de relação nem esta satisfação particular. Ou seja, apesar de a autora

dizer que nas fases mais precoces da vida ainda existe uma grande diluição

de fronteiras entre o si e o outro, bem como entre os objectos, de algum

modo, a forma como define a relação entre a mãe e a criança vem de encon­

tro ao modo como é definido o encontro entre dois seres humanos pelos auto­

res atrás referidos (Misrahi, 1968; Levinas, 1980; Buber, 1982; Gevaert,

1991). Dito por outras palavras, o outro é já uma revelação que se impõe.

Contudo, de acordo com Balint (1993), quer a relação da criança com a

mãe, quer a referida "diluição" dos objectos, permitem uma harmonia inicial,

muito elevada na vida intra-uterina, mas que se vai perdendo à medida que

os objectos vão ganhando consistência e as fronteiras se vão definindo. A

perda desta harmonia, possibilita porém, que o sujeito se vá construindo

enquanto tal, ao mesmo tempo que constrói uma representação do mundo

exterior. Da relação e da harmonia inicial fica, segundo este autor, uma

espécie de nostalgia que o leva a uma interminável busca. Fica também a

percepção da falta de algo que os objectos nunca conseguirão preencher e

que o autor apelidou de "lacuna básica". Este conceito corresponde também

a uma das três zonas do psiquismo por ele propostas. Ainda segundo Balint

(1993), as relações objectais de qualquer pessoa poderão ser explicadas con­

siderando, por uma lado, a harmonia inicial e por outro, o sofrimento asso­

ciado à descoberta dos objectos que se lhe seguiu.

As relações objectais são geradoras de crises sucessivas pelas rupturas

que lhe estão associadas. Ou seja, as relações objectais são geradoras de

frustrações que, inevitavelmente, conduzem a pessoa a uma retirada do

mundo dos objectos e a procurar dentro de si algo a partir do qual possa

criar qualquer coisa que reproduza a harmonia inicial. Esta procura é feita

numa zona do psiquismo que Balint (1993) designou como "zona da criativi­

dade". É com base nesta teoria que, segundo este autor, se pode compreen­

der qualquer forma de criatividade, bem como a criação artística na genera­

lidade. Mas é também com base nesta teoria que se pode compreender o

modo como os doentes organizam as suas doenças. Dito por outros palavras,

Dissertação de Doutoramento

Page 304: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

de acordo com Balint (1993), a doença constiturse como um reviver do sofri­

mento primário associado à lacuna básica, como tal, também ela exige o

recurso à zona da criatividade no sentido, nem sempre conseguido, de criar

algo de melhor.

Eu diria mais, considerando a relação que temos com o nosso próprio cor­

po, a doença constiturse como um reavivar do sofrimento associado à lacuna

básica por excelência. Efectivamente e segundo Gevaert (1991), nós podemos

afirmar, simultaneamente, que temos um corpo e somos corpo. Ou seja, com

o nosso corpo mantemos sistematicamente uma relação de exterioridade e de

interioridade, de sujeito e de objecto. Nós não somos sem o nosso corpo, mas

em simultâneo, o corpo é algo de objectivável e manuseável. Por outro lado o

nosso corpo é o depositário das nossas memórias relacionais, nomeadamente

as mais precoces. Não nos podemos esquecer que essa relação passa mais

pela comunicação que circula através do contacto corpo-a-corpo que pelas

palavras que a criança ainda não compreende. Destas restará apenas a

paralinguagem e a mensagem que lhe for implícita. Por tais razões, a doen­

ça, qualquer doença, não poderá jamais ser encarada apenas como um pro­

cesso fisiopatologico e/ou psicopatologico, mas sempre e necessariamente

como uma vivência com características absolutamente particulares. Mas e

mais importante do que isso, a doença em geral e a doença oncológica em

particular, pela mitologia que lhe está associada, constituir-se-á sempre

como uma ameaça à integridade do self. A percepção desta problemática

nesta perspectiva levou o autor a evidenciar a importância da manutenção

de uma relação significativa com o seu médico (Balint, 1998). Esta relação

constituir-se-ia como o espaço vital no seio da qual o doente tentaria reen­

contrar a harmonia perdida na sua relação com os objectos.

Pela leitura da obra de Balint (1998) intitulada "O médico, o seu doente e

a doença', o que se torna mais evidente parece ser, por um lado, as caracte­

rísticas particulares de que se reveste a figura do médico, como aquele capaz

de reconhecer o sofrimento inerente à doença; e por outro, a natureza da

relação propriamente dita, que se traduz em atitudes da mais diversa natu­

reza, mas também através dos cuidados que são dispensados e na qual o

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Dissertação de Doutoramento

Page 305: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

doente procura o espaço de segurança que lhe permita organizar-se. Toda­

via, estas características são actualmente extensíveis a diversos outros téc­

nicos de saúde, o que aliás o autor também admite, mas aos enfermeiros em

particular. Entendo que os enfermeiros estão em condições excepcionais

para assumirem esta relação, principalmente os que trabalham em serviços

com características idênticas às daquele em que desenvolvi o presente estu­

do. Aí constata-se, tal como se pode deduzir a partir deste estudo, que a

natureza da relação inclui, entre outros, a proximidade, a confiança, a dis­

ponibilidade, a continuidade e a frequência; mas inclui também uma extensa

gama de cuidados assumidos pelos enfermeiros, os quais se constituem mui­

tas das vezes como respostas pragmáticas para as dificuldades dos doentes.

Na convergência dos diversos contributos teóricos, acabados de expor,

percebe-se melhor, quer a vivência do doente e família, quer a resposta da

enfermeira. Evidencia-se também a intervenção de enfermagem como tera­

pêutica, bem como a sua relevância neste contexto. Contudo, quer sobre as

vivências dos doentes e famílias, quer sobre a intervenção as enfermeiras

penso que seja útil acrescentar mais alguns comentários. Começo pelos pri­

meiros.

Para além das perspectivas teóricas que acabei de referir, existem um

conjunto diversificado de trabalhos de investigação que têm sido desenvolvi­

dos, especificamente com doentes oncológicos. Nessas investigações têm sido

realçadas, por um lado as características da vivência, por outro, a necessi­

dade de intervenção. Sobre as características da vivência, destaco a obra de

Barraclough (2000), a qual nos expõe com clareza a vivência dos doentes nas

diversas fases da doença, bem como a associação entre essas vivências e os

diversos episódios do tratamento médico. Assim, começa por descrever as

emoções associadas ao momento do diagnóstico que, de acordo com aquela

autora, podem variar entre o choque, o medo e a ansiedade, a tristeza e o

desespero, a raiva, a culpa e a vergonha, entre outros. Relativamente aos

tratamentos a autora salienta uma certa ambivalência por parte dos doen­

tes, entre a esperança de cura que a mesma representa e o medo dos efeitos

303============================================-======================== Dissertação de Doutoramento

Page 306: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulciites e os enfermeiros: Construção de uma relação

secundários. Esta última asserção é particularmente relevante no caso da

quimioterapia.

Relativamente às reacções emocionais ao cancro de uma forma geral, não

deixa de ser curiosa a perspectiva da autora ao referir que o cancro pode ser

entendido como uma ameaça, uma perda, mas também uma oportunidade.

Entende ainda que a forma como pode ser entendido tem necessariamente a

ver com cada pessoa, com as características da doença oncológica, mas tam­

bém com a ajuda disponibilizada. A juntar a isto, é de realçar que, de acordo

com estudos citados por Barraclough (2000), cerca de 50% dos doentes onco­

lógicos não apresentam qualquer desordem de natureza emocional, cerca de

30% apresentam apenas uma reacção de ajustamento e apenas 20% apre­

sentam desordens de natureza psiquiátrica. Face a estes dados, a tónica da

intervenção terá que ser colocada, por um lado numa perspectiva preventi­

va, criando um sistema que permita um correcto apoio às situações de reac­

ção de ajustamento e evitar que as restantes situações evoluam para doença

psiquiátrica. Mas também numa perspectiva de detecção e acção precoce

sobre as pessoas que de tal careçam.

Também diversos outros autores caracterizaram esta vivência, vindo de

alguma forma, corroborar o que acabei de referir. Destes destaco Benner &

Wrubel (1989), as quais evidenciam a vivência e perspectivam a ajuda a par­

tir de uma perspectiva fenomenológica. Por sua vez Justo (2001) destaca a

perspectiva psicológica na etiologia da doença oncológica e os benefícios da

intervenção, realçando neste caso a importância da conjugação de perspecti­

vas. Ribeiro (2001), realça a repercussão quer da doença oncológica, quer dos

tratamentos sobre a qualidade de vida das pessoas. Também Wells (2001) e

Plant (2001) evidenciam o impacto do cancro e dos seus tratamentos no

doente e na família aos mais diversos níveis.

Comparando os resultados do presente trabalho, no que se refere às

características da vivência dos doentes, quer na perspectiva destes, quer das

enfermeiras, constata-se que as mesmas são sobreponívéis às características

referidas pelos diversos autores atrás referidos.

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Dissertação de Doutoramento

Page 307: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Relativamente à intervenção das enfermeiros e no que à gestão de senti­

mentos diz respeito, ela é destacada e caracterizada em diversos autores de

enfermagem já referidos (e.g., Benner & Wrubel, 1989; Wells, 2001; Plant,

2001). Contudo queria sublinhar dois aspectos que me parecem particular­

mente importantes.

O primeiro tem a ver com o facto de a intervenção do enfermeiro, tal

como aqui foi apresentada, ter semelhanças com outras intervenções psico-

terapêuticas. Tal é o caso da proposta de intervenção de Barraclough (2000),

a qual realça a importância da detecção precoce dos problemas emocionais,

mas também da sua adequada gestão, através de criação de espaços afecti-

vo-temporais que permitam a sua expressão. Mas também Gil et ai (2001),

propõem uma intervenção direccionada para esses aspectos, entre outros.

Todavia, estes autores (Barraclough, 2000; Gil et ai, 2001), entendem deno­

minar a intervenção de profissionais de saúde não psicoterapeutas (e.g.,

médicos e enfermeiros) como counseling. Embora reconheçam dificuldade em

destrinçar entre psicoterapia e counseling, acabando por os colocar num con­

tinuum, definem o segundo como, um tipo de intervenção cujo objectivo é

centrar-se nos problemas e/ou preocupações da pessoa, no sentido de facili­

tar a sua adaptação ao meio e desde que aqueles problemas não sejam de

natureza psicopatológica. Voltarei a estes assunto mais tarde.

O segundo aspecto que pretendo sublinhar tem a ver com trabalhos de

investigação, desenvolvidos a partir da intervenção clínica dos enfermeiros.

Em muitos deles são realçados aspectos comuns com aqueles que referi mais

atrás como caracterizadores da intervenção das enfermeiras.

Assim, Larsson et ai (1998), desenvolveram um estudo em que, através

do recurso ao Instrumento de Avaliação do Cuidado (Care-Q), tentaram

ordenar a importância dos comportamentos de cuidado, na perspectiva dos

enfermeiros e dos doentes oncológicos. Ambos os grupos perceberam os com­

portamentos antecipatórios e de conforto como estando entre os três mais

importantes. Os doentes atribuíram mais importância à capacidade de

explicação e de facilitação bem como de antecipação do que os enfermeiros.

Estes atribuíram mais importância à acessibilidade e às medidas de conforto

305===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 308: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

que os doentes. Também Benner (2000) entende que a antecipação de crises,

riscos e vulnerabilidades, ou seja, a capacidade de premeditação clínica, é

central.

Por sua vez, percebe-se que a disponibilidade faz parte da categoria

"Estar com" da teoria de médio alcance proposta por Swanson (1991) e cons­

truída a part ir de um estudo através do qual identificou cinco processos do

cuidar (i.e. conhecer, estar com, fazer por, possibilitar e manter a crença). A

mesma autora, numa entrevista concedida em 1998, define a "disponibilida­

de" como uma mensagem verbal e não verbal de que estamos ali para as pes­

soas. Mesmo quando a enfermeira não tem tempo, pode demonstrar disponi­

bilidade, manifestando que entendeu a necessidade da outra pessoa e dispo-

nibilizando-se para voltar mais tarde (Swanson, 1998). Também os concei­

tos, "atender" (Bottorff & Morse, 1994; Bottorff & Varcoe, 1995) e "disponibi­

lidade" (Ersser, 1991) têm semelhanças com o conceito de disponibilidade

proposto no presente estudo.

Considero contudo, particularmente importante um trabalho desenvolvi­

do por este último autor (Ersser, 1991), através do qual pretendeu identifi­

car que perspectiva t inham enfermeiros hospitalares e doentes adultos em

enfermarias médicas, acerca das intervenções terapêuticas e

anti-terapêuticas de enfermagem. Pretendeu ainda caracterizar a natureza

dessas perspectivas, comparar as perspectivas dos doentes e dos enfermeiros

e desenvolver um constructo conceptual explicativo. O estudo foi conduzido a

partir de uma abordagem etnográfica e como instrumentos de recolha de

dados foram usados a observação e a entrevista. Os dados foram analisados

através de análise de conteúdo e do método de comparação constante. Atra­

vés da análise de conteúdo foram identificadas três dimensões:

S A apresentação do enfermeiro - Como o enfermeiro aparece perante

o doente. Para esta dimensão contribuíram muitos dados resultan­

tes da observação, nomeadamente os relativos à comunicação não

verbal.

S A presença do enfermeiro - A proximidade do enfermeiro face ao

doente ou o "estar com" o doente.

_ - _ _ _ = _ _ _ „ = = = = _ _ _ _ _ _ _ „ = = = = _ _ _ = = = = = = = _ „ = = = = _ _ „ = = = = „ _ _ „ = _ _ _ _ . . = „ 3 0 6

Dissertação de Doutoramento

Page 309: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

■S As acções específicas do enfermeiro ­ Os procedimentos­específicos­

tipo do enfermeiro.

Por sua vez, a segunda dimensão (a presença do enfermeiro), engloba qua­

tro temas:

•S Desenvolvendo contacto com o doente!

•S Suporte e cuidado!

S Disponibilidade do enfermeiro!

S Sensibilidade/insensibilidade do enfermeiro.

Com base nestes dados e considerando a importância dos cuidados dp

enfermeiro a nível emocional, Ersser (1991) propôs uma redefinição do con­

ceito de "uso terapêutico do self. Este conceito é importado da psicoterapia e

consiste no uso intencional do nosso self, no contexto de uma relação tera­

pêutica, baseada essencialmente na interacção verbal, com objectivo de aju­

dar o doente a desenvolver comportamentos mais funcionais (Taylor, 1982).

Para atingir tal desiderato é portanto necessário ter um elevado auto­conhe­

cimento, o qual será depois intencionalmente usado. Ersser (1991) não nega

a importância desta perspectiva, contudo entende que: a presença, a dispo­

nibilidade, a tentativa de compreensão do significado da doença, o "estar

com", levados a cabo pelo enfermeiro, também são formas de "uso terapêuti­

co do self, desde que obedeçam ao critério da genuinidade e ainda que o

enfermeiro não tenha consciência plena do processo. Considero esta perspec­

tiva particularmente importante, dadas as sobreposições de dimensões com

as encontradas no presente estudo, mas sobretudo devido à valorização atri­

buída ao trabalho emocional desenvolvido pelo enfermeiro.

Mas também a esperança é valorizada por outros autores, ainda que a

denominem de modo diferente. Swanson (1991), apelida­a de "manter a

crença", o que significa: acreditar e sustentar a estima, manter uma atitude

plena de esperança, oferecer um optimismo realista, não abandonar. A espe­

rança, tal como é definida no presente e pela autora anterior, pode ainda ser

entendida como busca de significado. Foi também essa a conclusão a que

chegaram O'Connor et ai (1990) quando tentaram perceber a resposta dos

307 Dissertação de Doutoramento

Page 310: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

doentes ao diagnóstico de cancro. Através da análise que efectuaram desco­

briu seis temas major:

S Olhar para as consequências do diagnóstico de cancro (o qual era o

mais significante);

•f Procurar um significado pessoal para o diagnóstico;

S Esperança!

S Mudar a perspectiva sobre si mesmo!

S Rever a vida.

Ainda de acordo com o mesmo estudo, os autores entendem que a fé, em

sentido lato, e o suporte social são essenciais para que a pessoa possa procu­

rar o significado do diagnóstico de cancro. Sendo que os enfermeiros e os

familiares são os que se encontram em melhor posição para ajudar nessa

procura.

Num outro estudo Motyka et ai (1997), tentaram identificar os elementos

de suporte psicológico nos cuidados de enfermagem. Numa primeira análise

do material verbal coligido, o objectivo foi, identificar as declarações nas

quais se percebesse expressamente uma clara intenção de intervenção do

enfermeiro. Foram identificadas sete formas básicas de intervenção, as

quais incluíam^

■S animar/encorajar o doente (consolar, reassegurar, dar esperança);

S recolher informação,

S oferecer explicação,

S dar conselhos e sugestões,

S mostrar cordialidade (amabilidade, amizade e aprovação),

S mostrar empatia e compreensão e

S referenciar o doente ao médico.

Do conjunto destas formas de intervir destaca­se como mais relevante e

mais usada, o animar/encorajar o doente.

Vários outros autores fazem referência aos comportamentos de cuidar

dos enfermeiros, com base nos trabalhos de investigação que desenvolveram.

Aqueles comportamentos incluem, demonstrar respeito e benevolência, ten­

tar perceber como os doentes se sentem, oferecer informação, promover o

_ _ — ._»_■■■■­_■■■■_■ = — 3 0 8

Dissertação de Doutoramento

Page 311: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação

encorajamento e alimentar a esperança (Von Essen & Sjoden 1991; Hall-

dorsdottir & Hamrin 1997). Por sua vez Haberman (1988) e Winters et ai.

(1994), destacam a importância da manutenção da esperança, a gestão da

incerteza e a necessidade de suportar e reforçar a capacidade dos doentes

para se adaptarem e lidarem com a ameaça de doenças graves.

A questão da confiança e da segurança inerente à relação é também valo­

rizada em estudos como o de Palsson & Norberg (1995). Estes autores assi­

nalam que o suporte emocional, bem como as mudanças organizacionais nos

cuidados conduzem ao sentimento de segurança/confiança. Ou seja, de acor­

do com aqueles autores, as intervenções dos enfermeiros podem promover a

percepção de controlo nos doentes, o que lhes confere um sentimento de

segurança. O estudo sugere ainda que são necessárias mudanças organiza­

cionais no sentido de ir ao encontro das necessidades psicossociais dos doen­

tes, como por exemplo, informação adequada e reafirmação da relação. Ou

seja, os doentes referem que consideram importante para o seu sentimento

de segurança/confiança, o facto de encontrarem o mesmo enfermeiro durante

o processo de quimioterapia. Tal, reafirma a relação pela continuidade, o que

confere maior segurança, não só por isso, mas também pela confiança que

aprendem a desenvolver nas informações dadas pelo enfermeiro. Estas

informações versam assuntos como a explicação dos cuidados que estão a ser

prestados, a quimioterapia e os seus efeitos, as reacções a esperar, os exercí­

cios a desenvolver, entre outros e são cruciais para o referido sentimento de

segurança e confiança dos doentes.

Pelo conjunto de estudos referidos percebe-se, não só, a repetição de

alguns conceitos, mas também a sobreposição com diversos dos achados do

presente estudo. Tal reforça a validade deste, mas realça também a necessi­

dade de se proceder a trabalhos de meta-investigação, de forma a conferir

estabilidade a alguns conceitos e a permitir integrá-los no património do

conhecimento de enfermagem. Por outro lado, realça a importância da inter­

venção dos enfermeiros e o seu contributo para os ganhos em saúde e para o

berrrestar das pessoas.

309===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 312: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

Contudo, no presente estudo, a resposta da enfermeira, não se limita ao

atrás exposto, sendo complementada ainda com outros instrumentos tais

como a "Gestão de informação". Também este se pode compreender no con­

texto das teorias atrás referidas. Quando foi feita alusão à teoria da crise,

nomeadamente aos contributos de Morin (1973, 1982, 1996) foi dito que, de

acordo com o princípio neguentrópico, os sistemas vivos complexos são gran­

des consumidores de energia e responsáveis por trocas de informação cons­

tantes com o meio. Foi dito ainda que esta energia e informação são respon­

sáveis pelos processos de desorganização, mas são também essenciais aos

processos de reorganização. Ora se considerarmos as características de par­

ticular desorganização associadas ao momento que o doente está viver, com­

preendemos a extrema necessidade de informação e energia de que o mesmo

carece. Todavia, neste caso, o fornecimento de informação não pode ser um

acto mais ou menos mecânico. Disse mais atrás, ao caracterizar a "Gestão da

informação," que este instrumento era utilizado em grande proximidade e

interacção com a "Gestão de sentimentos", sendo que os objectivos se pode­

riam entender como comuns. Por tal razão, naturalmente que a informação

é importante, contudo, é necessário enfatizar o modo como se dá a informa­

ção. Ou seja, é necessário perceber, por um lado, que a enfermeira não é

necessariamente nem a primeira, nem a única fonte de informação; e por

outro, que, para que a informação cumpra o papel de organizador, precisa de

ser contextualizada, repetida, garantida, as vezes consideradas necessárias

pelo doente.

Por estas razões, entendo que a "Gestão da informação" tem muitas

semelhanças com o domínio, "Função de Educação e Guia", proposto por

Benner (2001) na sua abordagem interpretativa da identificação e da descri­

ção dos conhecimentos clínicos. Esta autora (Benner, 2001), apresenta o

domínio atrás referido como, tradicionalmente, fazendo parte integrante da

actuação da enfermeira. Contudo, ao caracterizá-lo a partir dos estudos por

si desenvolvidos na prática clínica, acaba por o fazer acrescentando elemen­

tos pouco tradicionais a este domínio. Assim, a autora entende que este

domínio inclui:

= = = = = = = = = = = ° —-~~"""""-—~~~"""-""~~~~——— 310 Dissertação de Doutoramento

Page 313: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

S "O momento: saber quando o doente está pronto a aprender;

S Ajudar os doentes a interiorizar as implicações da doença e da cura

no seu estilo de vida;

S Saber compreender como o doente interpreta a sua doença;

S Fornecer uma interpretação do estado do doente e dar as razões dos

tratamentos;

S A função de guia: tornar abordáveis e compreensíveis os aspectos

tradicionalmente tabu de uma doença" (Benner, 2001, p. 104).

Acrescenta ainda que no desenvolvimento desta função o enfermeiro não

usa as abordagens tradicionais das intervenções educativas. Ou seja, não

constrói momentos formais para desenvolver esta função. Antes escolhe os

momentos mais adequados, de acordo com o ritmo de cada doente e com o

seu estádio vivencial para o desenvolver. Assim, "sempre que possível, as

enfermeiras avisam os doentes sobre o que devem esperar, corrigem as más

interpretações e fornecem explicações quando se produzem mudanças físi­

cas" (Benner, 2001, p. 103). Para que tal seja possível e eficaz as enfermeiras

"são obrigadas a utilizar todos os seus recursos pessoais: a atitude, o tom de

voz, o humor, a competência, assim como qualquer outro tipo de abordagem

ao doente" (Benner, 2001, p. 103).

Comparando a proposta de Benner (2001) com os resultados alcançados

através deste estudo, percebe-se uma sobreposição assinalável. Nesta desta­

co não só os instrumentos usados na "Gestão da informação" mas também as

estratégias adoptadas pelas enfermeiras. Ou seja e tal como referi mais

atrás, está em causa o que é dito mas essencialmente a forma como é dito e

feito.

Para além desta, diversas outras autoras reconhecem a importância da

função de educação assumida pela enfermeira. Tal é o caso de Orem (1987)

que defende a importância da educação do paciente como forma de este se

poder auto-cuidar. Mas é também a opinião de Roy (Roy & Andrews, 2001)

que entende que, através da educação do doente, se consegue ajudá-lo a

adaptar-se ao stress. Neuman (1982) por sua vez destaca o papel da educa­

ção em qualquer uma das três componentes do plano de cuidados (i.e. pri-

Dissertação de Doutoramento

Page 314: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

mária, orientada para os factores preventivos, secundária, para a capacida­

de de lidar com uma situação aguda de doença e a terciária, orientada para

a ajuda aos doentes a evitarem uma recorrência).

Contudo, penso que a proposta de Watson (1985) é particularmente inte­

ressante, dada a aplicabilidade à perspectiva que tenho defendido neste estu­

do. Aquela autora defende que a educação sobre a saúde é uma das principais

funções do enfermeiro e apresenta_a como a função profissional por excelên­

cia, através da qual se pode distinguir uma intervenção profissional de uma

outra técnica. Todavia Watson (1985) vai mais longe ao propor o "ensi­

no/aprendizagem interpessoal" como um factor major de cuidado. Neste pro­

cesso, quer o doente quer o enfermeiro alternam papéis de aprendizes e pro­

fessores no decurso da interacção. O enfermeiro aprende com o doente a sua

história, a sua perspectiva pessoal, estratégias usadas, entre outras, enquan­

to que o doente recebe do enfermeiro elementos de natureza cognitiva e outros

que lhe facilitam o lidar com a sua situação. Neste processo, ambos desenvol­

vem a sua capacidade de entendimento da situação, bem como os mecanismos

para lidarem com a mesma. É curioso lembrar a propósito que as enfermeiras

que participaram neste estudo referem que aprenderam com os doentes, por

exemplo, a estratégia da centração sobre o presente.

Também Peplau (1990), tal como já referi mais atrás, chamou à atenção

para o potencial de aprendizagem inerente ao processo de relação enfermei-

ro-doente, sendo que aquela é essencial para que o doente consiga lidar com

a crise associada à doença.

Por último, uma outra perspectiva que considero de grande importância

é a que Vaughan (1991) denomina "educação terapêutica". Esta consiste na

atitude do enfermeiro de, a partir de uma relação de proximidade, desenvol­

ver um processo de ensino dirigido especificamente às necessidades do doen­

te. Este não passa pelas abordagens didácticas tradicionais, mas antes por

uma atitude afectivamente envolvida e comprometida e dirigida ao aprovei­

tamento e desenvolvimento das potencialidades do doente. A autora entende

que esta abordagem tem elevado potencial terapêutico, com repercussões na

gestão do stress, na qualidade de vida e no desenvolvimento pessoal.

Dissertação de Doutoramento

Page 315: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Quer a forma como esta autora (Vaughan, 1991) desenvolve este conceito,

quer a proposta de Watson (1985), mais atrás referida, parecenrme particu­

larmente sobreponívéis ao modo como caracterizei a "Gestão da informação",

nomeadamente no que diz respeito à sua relação com a "Gestão de senti­

mentos" e ao modo integrado, continuado, sistemático como é levada a cabo.

313 Dissertação de Doutoramento

Page 316: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

6 - 0 PROCESSO DE RELAÇÃO ENFERMEIRO-DOENTE NO CON­

TEXTO DE UM SERVIÇO DE QUIMIOTERAPIA EM REGIME DE

HOSPITAL DE DIA

Tudo o que atrás disse, caracteriza a natureza do processo de relação

enfermeiro-doente no contexto do serviço de quimioterapia em regime de

hospital de dia, onde realizei o estudo. Contudo, impõe-se como necessária a

sistematização e articulação dos diversos elementos de modo integrado, para

que melhor se compreenda o processo propriamente dito. Como ponto prévio,

torna-se necessário clarificar que o processo de relação enfermeiro-doente

que passarei a descrever, constitui-se como uma relação preferencial infor­

mal. Explicando melhor. Com base nos dados recolhidos e analisados não se

pode afirmar que existe uma relação exclusiva e com carácter formal entre

uma enfermeira e um doente. Efectivamente constata-se que os doentes são

cuidados de acordo com as disponibilidades das enfermeiras. Mas, também

se constata que qualquer doente, em algum momento do seu percurso, se

pode apresentar particularmente vulnerável ou com dificuldades especiais,

sejam elas de que natureza forem. Nesses momentos dirige-se a uma enfer­

meira concreta ou emite sinais de solicitação dessa enfermeira. Este proces­

so é reconhecido e aceite de modo explícito por todas as enfermeiras. Ou

seja, as enfermeiras reconhecem mutuamente a existência de relacionamen­

tos preferenciais e facilitam o contacto, sempre que detectam um sinal de

preferência do doente. Por sua vez os doentes, nas entrevistas que me con­

cederam, se questionados directamente sobre este assunto, neganrno. Toda­

via, se questionados sobre qual a enfermeira a que se dirigiam quando pre­

cisavam de algo em especial, identificanrna. Nos dados resultantes das

entrevistas de admissão, consta-se a solicitação de personalização da relação

por parte dos doentes. Por sua vez, através dos dados resultantes da obser­

vação, verifica-se a frequente solicitação, por parte do doente ou de um fami-

==___-___«===_._______..„.=====„___„===„___====„___„„===„__„.„., 3 , 4

Dissertação de Doutoramento

Page 317: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulcntes e os enfermeiros: Construção de uma relação

liar, da presença de uma enfermeira especifica, usando para o efeito as mais

diversas linguagens.

Pelas razões expostas, entendo que esta relação se prefigura como uma

relação preferencial entre uma determinada enfermeira e um doente, ainda

que esta relação seja marcada pela informalidade. Ou seja, não obedece a

nenhum ritual predefinido que determine que os cuidados ou determinado

tipo de cuidados, sejam sempre prestados por determinada enfermeira, num

horário predeterminado. A gestão das preferências é antes contextual. A

relação preferencial, normalmente está associada à enfermeira que fez a

entrevista de admissão. Contudo, pode ser independente de tal facto. Em

qualquer dos casos, esta relação é de natureza processual.

Assim e de acordo com os dados recolhidos e com a análise a que foram

sujeitos, o processo relacional parece desenvolver-se em três fases sequen­

ciais, com características próprias, ainda que com fronteiras indefinidas.

Essas fases denominei-as: Início da relação, Corpo da relação e Fim da rela­

ção. Caracterizarei e fundamentarei de seguida e do ponto de vista proces­

sual, cada uma delas. Desenvolverei idêntico procedimento para os elemen­

tos integrantes das primeira e última fases (i.e., Início da relação e Fim da

Relação), dado ainda não o terem sido noutro momento deste trabalho.

6 . 1 - 0 INÍCIO DA RELAÇÃO

Começo, naturalmente, por fazer referência ao início da relação. Esta

fase, normalmente, inicia-se antes de a enfermeira e o doente se encontra­

rem, através das actividades de preparação desenvolvidas pela enfermeira, e

conclui-se com o primeiro encontro, o qual se traduz na entrevista de admis­

são. Durante toda esta fase, assume particular importância um conjunto de

factores referidos pelos doentes e pelas enfermeiras como facilitadores da

aproximação, bem como a componente do "Processo de avaliação diagnosti­

ca" que ocorre durante a entrevista de admissão (ver figura 19).

Assim, constata-se que a enfermeira, regra geral, se prepara e recolhe

informação sobre o doente, antes de se encontrar com ele. A enfermeira sabe

previamente, de acordo com um esquema combinado inter-pares (i.e., distri-

Dissertação de Doutoramento

Page 318: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

buição de doentes de acordo com a patologia oncológica diagnosticada), em

que grupo de patologias se inserem os doentes a quem irá fazer a primeira

entrevista. Pelo que, a preparação da enfermeira tem uma componente

implicita, a qual é inerente àquele facto. E tem uma outra componente que

consiste na recolha de alguma informação prévia sobre o doente. Esta é

essencialmente de natureza médica e recolhe­a do processo médico, ao qual

tem acesso prévio, bem como do médico e/ou de alguma colega que conheça o

doente.

Figura 19 ­ Perspectiva geral do processo de relação preferencial enfer­

meiro­doente — Início da relação.

« > '2 a o 2 » a 2 o.

o < (0 (0 S q < a> UJ

o L I

§ /2 Estratégias/capacidades t ==: do doente 8 c o O

UJ DC 1 -

z UJ

0 que preocupa o doente 8 c o O

UJ DC 1 -

z UJ 0 que o doente sabe

Factores de aproximação

■* »

INÍCIO DA RELAÇÃO

Junto destas fontes, pode também recolher outra informação, de nature­

za mais informal, normalmente relativa ao modo como doente e família

estão a vivenciar a situação. Como preparação para este primeiro encontro é

de referir ainda um outro elemento que reputo de grande importância e que

consiste na chamada personalizada do doente e família para a entrevista de

admissão. Ou seja, é a enfermeira que se desloca à sala de espera e chama

de modo personalizado o doente e família. Se o início do processo assumir as

características que acabei de descrever, tem a denominação de formal (ver

figura 20). Todavia, ainda que menos frequente, o início do processo pode

ocorrer à margem da entrevista de admissão, em plena sala de quimiotera­

Dissertação de Doutoramento

Page 319: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

pia. Neste caso e pelas suas características denominero de informal (ver

figura 20). Quando tal acontece, a informação prévia, a existir, normalmente

é veiculada pela enfermeira que fez a entrevista de admissão.

Figura 20 - O início da relação enfermeiro-doente no contexto de um ser­viço de quimioterapia em regime de hospital de dia

Contudo, como o processo mais frequente é o primeiro (i.e. o formal), pas­

so a descrevêdo mais em pormenor. Assim, após os procedimentos prepara­

tórios desenvolvidos pela enfermeira, segue-se a entrevista de admissão.

Esta cumpre dois objectivos: dá início ao "Processo de Avaliação Diagnosti­

ca" do qual falarei mais à frente, e testa os factores de aproximação entre o

enfermeiro e o doente/família. Dedicar-me-ei assim a falar agora dos segun­

dos.

Quer o enfermeiro, quer o doente reconhecem a existência de um conjun­

to de factores que contribuem para a sua aproximação em direcção a uma

relação preferencial informal. Os enunciados pelas enfermeiras caracteri-

zanrse por uma mistura entre factores de natureza clínica e outros de natu­

reza afectiva/vivencial. Os enunciados pelos doentes são essencialmente de

natureza afectiva. Por outras palavras, a enfermeira faz uso de factores que

têm em linha de conta a sua leitura clínica da situação do doente e família,

317 Dissertação de Doutoramento

Page 320: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

mas também a sua sensibilidade afectiva, bem como as eventuais similitu­

des com a situação (ver figura 20).

Nenhum destes factores tem valor enquanto tal, mas sim na inter-

relação do conjunto, o que resulta numa mistura sempre variável. Contudo,

e tal como oportunamente referi, são de destacar alguns elementos pela sua

relevância. Assim, na "atitude clínica proactiva" destaco os cuidados e a sua

qualidade, a disponibilidade e proximidade, a "sorte", ou seja, conjugação

dos cuidados correrem bem e uma determinada pessoa gostar, e a leitura dos

indicadores de preferência do doente. Do conjunto destes elementos, alguns

adquirem um valor inicial elevado, havendo depois alguma tendência para a

estabilização, como no caso da "sorte" e da qualidade dos cuidados. Todavia,

a importância doutros permanece ao longo de todo o processo de relação

como no caso da disponibilidade e proximidade. No presente estudo, consta-

ta-se que aqueles elementos coexistem ao longo de todo o processo de rela­

ção, sendo que a disponibilidade parece funcionar como o facilitador da rela­

ção como um todo e da proximidade em particular. Esta por sua vez, parece

resultar de um processo de construção contínua e funcionar como o contexto

necessário para a prestação de determinados cuidados de enfermagem.

Estes conceitos foram também percebidos em diversos outros estudos.

Assim, sobre a disponibilidade, sendo um conceito já atrás definido e fun­

damentado (Swanson, 1991; Bottorff & Morse, 1994; Bottorff & Varcoe,

1995; Ersser, 1991), resta apenas referir que alguns autores caracteri-

zam-na como abertura ao outro, sendo esta, em primeira análise, de nature­

za pessoal (Kathleen, 1999; Roberts & Snowball, 1999). Também o conceito

de proximidade parece ser de uso frequente, sendo diversos os autores que o

referem em estudos da mais diversa ordem (Morse et ai, 1992; Artinian,

1995; Armstrong & Martin, 1996; Sourial, 1997; Bottorff, et ai 1997; Denny

& McGuigan, 1999; Kathleen, 1999; Roberts & Snowball, 1999; Easter,

2000; Mcqueen, 2000; Wuest, 2000; Miller, 2001). Estes autores consideram

que a proximidade se constrói. Consideram também que este conceito ganha

uma importância considerável no âmbito dos cuidados de enfermagem, por

um lado, por envolver uma dupla proximidade (i.e., física e afectiva) e por

_-__=-____====___„=====_„_„===_____„=_____„=„__„_.=„___„.„__ 3 ! g

Dissertação de Doutoramento

Page 321: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

outro, porque, por essa razão, coloca problemas relativamente aos limites da

relação, difíceis de resolver. Voltarei a esta questão um pouco mais à frente.

De todos os autores atrás referidos destaco Morse et ai (1992), não só

pela abordagem inovadora que apresentam, mas também porque propõem

teorizações construídas a partir da prática clínica. Morse et ai (1992) apre­

sentaram um modelo que descreve a resposta dos enfermeiros perante os

doentes em sofrimento, o qual foi construído a partir da observação da sua

acção clínica. Este modelo tem como conceito central o compromisso, sendo

que o seu nível varia em função de dois parâmetros: foco da acção (i.e., sobre

o doente, com o consequente compromisso e incorporação do seu sofrimento;

sobre si próprio, protegendo-se de experienciar o sofrimento do doente); e a

experiência (i.e., com resposta reflexiva e espontânea, no primeiro nível; e

aprendida, no segundo nível). Estes dois parâmetros e respectivos compo­

nentes dão origem a quatro categorias de resposta, tal como se pode obser­

var na figura 21.

Figura 21 - Categorias de resposta em função da experiência e do foco.

FOCO Focada no doente Focada em si próprio

< O

Primeiro Nível

Resposta Reflexiva

Comprometido

Resposta em conexão

Anti-Comprometido

Resposta reflectida PS

h Segundo Nível

Resposta Apreendida

Pseudo-Comprometido

Resposta profissional

Descomprometido

Resposta descomprometida

Fonte: Adaptado de, Morse et ai (1992)

Neste contexto, a disponibilidade e a proximidade, podem ser entendidas

como a via para o compromisso, conceito central do modelo apresentado por

Morse et ai (1992).

Por sua vez Olson (1997), através de um estudo fenomenológico conduzi­

do com doentes sujeitos a cirurgia, identificou as características e acções da

enfermeira comprometida. Entre essas é também patente, quer de forma

implícita, quer explícita, a disponibilidade.

319 Dissertação de Doutoramento

Page 322: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação ;

Também Wilkes & Wallis (1998), desenvolveram um estudo cujo objecti­

vo era perceber qual a estrutura do cuidar, a partir da experiência dos alu­

nos do curso de enfermagem. Concluíram que a compaixão era a essência do

cuidar. Esta materializa­se e actualiza­se através da comunicação (i.e.,

ouvir, falar, explicar, tocar, educar, expressar sentimentos); prover conforto

(fazer, assistir, ajudar); ser competente (avaliar, estar atento às deixas do

doente, ter conhecimentos e capacidades, ser responsável e ser profissional);

estar comprometido (fazer, amar, não mostrar preconceito, estar presente);

ter consciência (assistir, dar dignidade e respeito à pessoa, fazer, t ra tar

como a si próprio); ser um confidente (saber o que fazer sem hesitações); ser

corajoso (advogar pelas necessidades das pessoas e direito ao tratamento,

intervir pelas e com as pessoas). Também neste caso se constata uma assi­

nalável coincidência entre alguns dos elementos do cuidar deste estudo e

elementos da "atitude clínica proactiva" atrás referida, nomeadamente '■ a

disponibilidade e proximidade, a competência, a capacidade de avaliação,

entre outros.

Na "aproximação por similitude", outra das categorias que engloba ele­

mentos que, no entender das enfermeiras, são facilitadores da relação, des­

taco a similitude de vivências. Estas, como já disse, não têm necessariamen­

te que ser de doença, podendo antes ter a ver com acontecimentos de vida de

forma mais abrangente. Neste caso, parece assumir alguma preponderância

a perspectiva psicossocial de construção de uma relação. Efectivamente, de

acordo com Fischer (2002), a similitude é um dos factores psicossociais a

considerar na construção e desenvolvimento de uma relação. Contudo, pare­

ce­me pertinente recordar que, no caso em análise, se t ra ta de uma relação

que, sendo social, é sobretudo clínica, o que pressupõe objectivos terapêuti­

cos. Assim sendo, torna­se necessário questionar: a utilização desta estraté­

gia na construção da relação é um meio para atingir um fim? A similitude

inicial é benéfica ou prejudicial no processo de relação?

Por último, na "aproximação por sensibilidade" destaco a sensibilidade

para a situação do doente, a qual resulta, muitas vezes, da compreensão das

suas dificuldades. Todavia, a característica mais marcante da "aproximação

_ - - ^ _ « „ _ _ _ _ „ » „ _ _ _ _ _ ^ „ _ _ _ _ _ . ^ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 3 2 0

Dissertação de Doutoramento

Page 323: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os ulcnles e os enfermeiros: Construção de uma relação

por sensibilidade" é a atitude compassiva. Esta pode ser entendida como

sinónimo de sentimento piedoso de simpatia para com a tragédia de outrem,

acompanhada do desejo de a minorar. Também pode ser entendida como

uma emoção e uma virtude em simultâneo, a par com o amor, a benevolência

e a simpatia (de Sousa, 2003). Sendo entendida como uma virtude, Hume,

filósofo inglês do século XVIII, entende que faz parte de um segundo grupo

de virtudes que temperam as virtudes baseadas na auto-estima, estas do

primeiro grupo. Neste caso a compaixão seria definida como um desejo de

fazer bem e de preocupação pelos outros (Homiak, 2003).

No modelo proposto por Morse et ai (1992) e já atrás exposto, a compai­

xão é apresentada como uma estratégia incluída no grupo das respostas de

primeiro nível. Ou seja, caracteriza-se por ser uma resposta reflexiva e com­

prometida e define-se como uma expressão de sensibilidade para reconhecer

o desespero e a dor do outro. Também Wilkes & Wallis (1998), no estudo

atrás citado se referem à compaixão, apresentando-a como a essência do

cuidar e caracterizando-a com elementos tais como, ter e parti lhar senti­

mentos, ter preocupação pelos outros e ser um amigo.

Por sua vez o doente, quando se refere aos factores que contribuíram

para a aproximação, faz apelo a factores de natureza afectiva, percebidos na

acção do enfermeiro, tais como a simpatia, o carinho, a alegria e a personali­

zação.

O conceito de simpatia tem sido objecto de análise de diversos pensadores

de diferentes áreas. Assim e a título de exemplo, este é o conceito central de

uma das obras de Hume (i.e., "Treatise'), o qual a define como um sentimen­

to de humanidade observado em nós e nos outros (Morris, 2001). Por sua

vez, Bergson, filósofo francês de finais do século XIX e princípios do século

XX, entende que a simpatia é um sentimento moral e uma emoção criativa

que nos permite colocarmo-nos no lugar do outro e nos impele a ajudá-lo.

Também a perspectiva ética da filosofia de Schopenhauer (século XVIIPXIX)

é baseada na simpatia, onde a vontade moral, sentindo o sofrer do outro

como seu, faz um esforço para aliviar a dor (Schopenhauer, 2004). Por ú l t r

321 Dissertação de Doutoramento

Page 324: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de um;i relação

mo, a corrente fenomenológica entende que a simpatia, a par com a empatia,

são elementos importantes no cuidar dos outros (Smith, 2003).

A simpatia tem também sido definida pela psicologia, como a solidariza-

ção com o estado mental de alguém, sem que para isso o indivíduo se coloque

no lugar do outro. Sendo entendida assim, é, de algum modo, menosprezada

em termos terapêuticos, face à empatia. Todavia, a simpatia também pode

ser entendida como similitude no sentir e no pensar que aproxima duas pes­

soas.

Por seu lado, no modelo de resposta dos enfermeiros atrás referido (Mor­

se, et ai, 1992), a simpatia é apresentada como uma estratégia também

incluída no grupo de respostas do primeiro nível. Assim sendo, caracteriza-

se por ser uma resposta reflexiva e comprometida e define-se como uma

expressão do nosso pesar perante a situação de dificuldade e de tristeza do

outro (Morse et ai, 1992).

Recordo que os doentes e familiares que participaram neste estudo con­

sideram que a simpatia suaviza a intimidação e a fragilidade, cria bom

ambiente, facilita a relação e estimula a sua auto-estima por se sentirem

respeitados e bem acolhidos. Ou seja, atribuem uma importância central à

simpatia, enquanto facilitador da relação.

Por sua vez e tal como já foi referido, os doentes atribuem ao carinho um

papel importante como elemento de ajuda, porque entendem que reforça a

capacidade de luta do doente. Recordo ainda que chegam a considerá-lo

como característica profissional. Assim e de modo abreviado, podemos defi­

ni-lo como manifestação de cuidado, preocupação e desvelo por outrem. Nos

autores consultados não encontrei conceito algum com idêntica designação,

porém, encontrei alguns com idêntico significado. Tal é o caso do conceito de

consolação proposto por Morse et ai (1992), o qual é também uma estratégia

incluída no grupo de respostas de primeiro nível e que aquelas autoras defi­

nem como o acto de acalmar ou suavizar o desconforto e a dor, mas dan-

do-lhe um sentido idêntico ao do gesto de uma mãe perante o filho que aca­

bou de cair e de se magoar.

- _ _ - _ - — - _ _ - = = = _ _ _ _ _ _ _ _ ™ = = = = = _ _ _ _ = = = = = = = „ _ „ = = = = _ „ _ _ = = = _ . „ _ _ „ _ _ „ 3 2 2

Dissertação de Doutoramento

Page 325: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os uLeiites e os enfermeiros: Construção de uma relação

Relativamente à alegria, recordo que a mesma foi identificada e valori­

zada pelos doentes e não pelas enfermeiras. Sublinho tal porque se poderia

considerar inadequada a manifestação de alegria num contexto desta natu­

reza e perante pessoas em sofrimento. Torna-se por isso necessário tentar

perceber porque é que as enfermeiras a usam e os doentes a valorizam.

Se entendermos a alegria na perspectiva hedonista, como um sentimento

associado ao prazer (Moore, 2004), torna-se forçoso perguntar: qual prazer?

A mesma questão se coloca se a entendermos como uma das oito emoções

humanas primárias, tal como proposto por Plutchik & Kellerman (1980),

uma vez que, também neste caso, se percebe como uma emoção associada ao

prazer.

Os filósofos referem-se à alegria de modo diverso dos autores anterior­

mente referidos. Assim, para Espinosa a alegria é simplesmente o movimen­

to ou a passagem para uma maior capacidade de acção, por oposição à tris­

teza que representa o contrário (LeBuffe, 2001; Nadler, 2001). Poder-se-ia

assim entender que o uso da alegria tem como objectivo despertar a capaci­

dade de acção dos enfermeiros. Bergson (Lawlor et ai, 2004) parece dar con­

tinuidade a esta ideia ao definir a alegria como uma emoção criativa. No seu

entender existem emoções normais, nas quais, primeiro tenho a representa­

ção do que me causa a emoção e depois tenho a emoção (e.g., eu vejo o meu

amigo e sinto-me feliz); e emoções criativas, as quais são anteriores ao acto

criativo. Ou seja, primeiro tenho a emoção, a qual desencadeia a criação. No

entender deste filósofo a alegria inclui-se neste segundo grupo. Assim,

enquanto que no caso anterior a alegria despertava para a acção, neste caso

desperta para a acção criativa. Obtemos assim uma perspectiva que vem de

encontro aos diversos conceitos de cuidar como acto criativo (e.g., Watson,

1985, 1988; Carper, 1978; Chinn & Kramer, 1999).

Sartre oferece-nos uma outra perspectiva dizendo-nos que qualquer com­

portamento emotivo envolve mudanças físicas e aquilo que se poderá cha­

mar uma tentativa quase "mágica" de transformar o mundo, mudando-nos a

nós próprios (Flynn, 2004). A alegria pode assim ser entendida uma tentati­

va de transformar uma situação com a qual temos dificuldade em lidar. Pen-

323===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 326: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

so que seja oportuno referir que nesse caso, e no entender deste filósofo, se

t ra ta de uma emoção falsa. Se aplicarmos esta perspectiva à situação em

análise (i.e., cuidados de enfermagem no contexto de um hospital de dia de

quimioterapia citostática), então a alegria das enfermeiras será entendida

como uma forma de lidarem com uma situação que lhes coloca dificuldades e

que as assusta. Apesar disto penso que seja adequado relembrar que se tra­

ta de uma emoção referida como positiva pelos doentes.

Face a esta diversidade de posições parece-me adequado sublinhar a

capacidade contagiante e criativa da alegria. Ou seja, a razão pela qual as

enfermeiras usam esta emoção e os doentes a apreciam, pode radicar por um

lado, no prazer destes por se sentirem bem acolhidos e por outro, na positi­

vidade intrínseca da mesma. É também neste sentido que se pronunciam

alguns autores ligados ao que se convencionou chamar a "psicologia positi­

va" (Fredrickson, 2000, Oliveira, 2004). Estes autores defendem que a psico­

logia se tem dedicado em excesso aos aspectos negativos da vida e muito

pouco aos positivos. Por tal razão, entendem que se devem começar a estu­

dar e valorizar os segundos, mas principalmente a usá-los enquanto instru­

mento terapêutico (Oliveira, 2004). Curiosamente, ao enunciarem esses ins­

trumentos (e.g., Amor, felicidade, alegria, optimismo, esperança, perdão,

sabedoria, beleza, sentido de vida) percebemos que os mesmos englobam

diversos já referidos neste trabalho como sendo usados pelas enfermeiras.

O último elemento referido pelos doentes (i.e., personalização), de algum

modo, vem reforçar a ideia que acabei de expressar. E digo tal porque uma

das manifestações de personalização é o tratamento nominal. A associação

entre o sentirem-se reconhecidos (i.e., identificados, tratados pelo nome) e a

alegria, resultam num momento prazeiroso e positivo para o doente. Daí a

apreciação positiva que eles fazem de tais gestos.

Em resumo, poder-se-á dizer que, do conjunto dos conceitos referidos

pelas enfermeiras e pelos doentes como facilitadores da relação, resulta uma

paleta diversificada de opções, onde se misturam elementos de natureza

estri tamente clínica (e.g., "atitude clínica proactiva"), com outros de sensibi­

lidade humana (e.g., "aproximação por sensibilidade", "carinho") e outros

Dissertação de Doutoramento

Page 327: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

ainda de civilidade e urbanidade (e.g., "personalização"), resultando numa

acção profissional com um perfil próprio e identificativo.

O inicio da relação engloba também, tal como já referi, a componente do

"Processo de avaliação diagnostica" que ocorre durante a entrevista de

admissão e o qual já foi caracterizado. Este outro componente do início da

relação articula-se com os factores de aproximação, bem como com a prepa­

ração prévia desenvolvida pela enfermeira. Em qualquer um destes outros

factores existem elementos que contribuem para o "Processo de avaliação

diagnostica".

Poder-se-á então dizer que o "Início da relação" é um misto de elementos

de natureza afectiva, com outros de natureza clínica. Os elementos do pri­

meiro grupo, por sua vez, adquirem características sobreponívéis com as

referidas por Fischer (2002) como integrantes de uma relação social. Aquele

autor afirma que os conceitos de Laço social, Filiação e Atracção são funda­

mentais para compreendermos qualquer relação social. Afirma ainda que os

elementos psicossociais de qualquer relação social são a proximidade e a

similitude-complementaridade. Muitos destes conceitos têm semelhanças

assinaláveis com os conceitos que mais atrás defini com base nos dados reco­

lhidos. Entendo, contudo, que os diversos elementos desta fase não podem

ser encarados de modo isolado, mas antes como um todo, tal como já afirmei.

Assim, esta fase da relação deve antes de mais, ser entendida do ponto de

vista clínico, como o primeiro passo na construção de um processo relacional

cujos objectivos são terapêuticos. Tal não significa que este processo esteja

isento ou seja alheio aos mecanismos inerentes a qualquer relação social.

Todavia, esta fase parece-me ter uma maior proximidade conceptual com a

fase de Orientação proposta Chalifour (1989); ou com as fases de Acolhimen­

to e orientação e Apresentação e clarificação do problema, na perspectiva de

Cibanal (1991); com as de Orientação e Identificação sugeridas por Peplau

(1990); ou ainda com as fases de Pré-interacção e Orientação de Travelbee

(1972). Dito por outras palavras, a fase Início da relação, aqui proposta, tem

semelhanças e diferenças com as fases iniciais propostos por diversos auto­

res de enfermagem. A semelhança desta, nas diversas teorizações propostas,

325 Dissertação de Doutoramento

Page 328: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

percebesse que esta fase tem como principal objectivo a criação de um clima

de confiança que permita o desenvolvimento ulterior da relação numa pers­

pectiva terapêutica. Vários dos autores atrás referidos incluem aqui todo o

trabalho prévio desenvolvido pela enfermeira no sentido de se preparar para

a relação que vai encetar. Travelbee (1972), propõe mesmo uma fase deno­

minada de Pré-interacção, anterior à de Orientação, e caracterizada por

ocorrer na ausência do doente e por incluir recolha de informação com ori­

gem nas mais diversas fontes e preparação da enfermeira. A fase de Orien­

tação ou Acolhimento, integra ainda o primeiro encontro com o doente, sen­

do aí valorizados todos os procedimentos tendentes a criar um ambiente

gerador de confiança.

Apesar destes elementos em comum, existem também diferenças face às

diversas teorizações atrás referidas. Algumas dessas diferenças são atribuí­

veis, em grande parte, ao facto de várias dessas teorizações terem sido

desenvolvidas para contextos de cuidados específicos (e.g., psiquiátrico).

Todavia, a diferença mais notória parece-me ser de outra natureza. Grande

parte dos autores atrás referidos diz que a principal característica desta fase

é a clarificação do problema. Ou seja, um processo que conduz enfermeiro e

doente até a um consenso acerca do problema. Esta é uma abordagem cla­

ramente na senda das tradicionais abordagens psicoterapêuticas. Contudo,

no presente estudo, e como resultado desta primeira fase da relação, pode

não resultar qualquer consenso acerca do problema do doente. Ou seja, ape­

sar de a enfermeira desenvolver esforços no sentido de tentar perceber quais

as maiores preocupações do doente e de se poder dizer que, no fim desta

fase, a mesma terá uma ideia bastante clara acerca disso, tal não significa

que esta ideia tenha resultado de uma definição conjunta (i.e., entre a

enfermeira e o doente). Esta limitação é imposta pelas características da

vivência do doente, por um lado, e pela imposição de um determinado proto­

colo médico, pelo outro. Ou seja, a situação de saúde impõe que se aja dentro

de um determinado protocolo. Este tem tempos de evolução que não se com­

padecem com os tempos de vivência do doente. Pode então acontecer que

tenha que se avançar com um tratamento, independentemente do estádio de

- _ _ _ - - _ - _ _ _ = = = = _ _ _ _ _ _ = = = = = = _ _ _ _ = = = = _ _ _ _ „ = . . _ _ _ _ _ = = = = _ _ _ _ „ = = _ _ _ „ „ 3 2 6

Dissertação de Doutoramento

Page 329: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

vivência do doente. Tal pode impor uma disparidade considerável entre o

estádio de vivência e o estádio do tratamento. Por estas razões, nesta pri­

meira fase, a enfermeira poderá deparar-se com um doente num estádio

vivencial caracterizado pela negação, contudo e apesar disso, ver-se cons­

trangida a avançar com o tratamento. Este constitui-se assim como o princi­

pal aspecto em que esta fase diverge das referidas por outros autores.

No caso do presente estudo, esta fase só se concluiu após a enfermeira ter

recolhido a informação considerada necessária para dar inicio à prestação de

cuidados. Esta informação, dada a sua natureza, foi recolhida tendo como

pano de fundo o desenvolvimento progressivo do grau de confiança. Estão

assim criadas as condições para se dar início à fase seguinte.

6.2 - O CORPO DA RELAÇÃO

A fronteira entre esta fase da relação e a anterior é difícil de traçar, por­

que se pode entender que já durante a entrevista de admissão ocorre inter­

venção. Durante essa entrevista verifica-se que, num período inicial, está

patente essencialmente uma atitude diagnostica. Segue-se um outro período

em que a enfermeira, a par com esta atitude, desenvolve uma outra de natu­

reza interventiva e que consiste na explicação dos processos de doença e tra­

tamento. Para além disso, é necessário considerar ainda que o espaço afecti-

vo-temporal correspondente à entrevista de admissão é terapêutico enquan­

to tal. Todavia, o essencial da intervenção terapêutica ocorre após a entre­

vista de admissão. Por tal razão, considerarei que o essencial do Corpo da

relação corresponde ao período de tempo após aquela entrevista (ver figura

22).

Esta fase é constituída essencialmente por dois processos coexistentes e

sobreponívéis: o "Processo de avaliação diagnostica" e o "Processo de inter­

venção terapêutica de enfermagem", já atrás devidamente caracterizados

(ver figura 22). Aqueles dois processos, tal como já afirmei, coexistem em

estreita inter-relação, sendo porém atribuível ao "Processo de avaliação

diagnostica" a função de timoneiro dos cuidados. Efectivamente, este proces­

so parece estar sistematicamente presente e determinar o rumo da interven-

327 Dissertação de Doutoramento

Page 330: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ção, ainda que, por vezes, seja difícil percebê-lo no desenrolar da acção.

Também, como já foi referido, o "Processo de avaliação diagnostica" assume

aqui características algo diferentes das verificadas durante a entrevista de

admissão. Agora prevalece a reavaliação, em contextualização sistemática

com o conhecimento que já se tem do doente. Este processo pode desenvol-

ver-se também no sentido de completar o processo de auto-consciencialização

das dificuldades e problemas do doente. Ou seja, se, como referi mais atrás,

se avançou no tratamento sem se dar tempo ao doente de tomar consciência

das suas dificuldades, é necessário agora conceder esse tempo.

Figura 22 - Perspectiva geral do processo de relação preferencial enfer­meiro-doente - Início e Corpo da Relação.

REENCONTROS SUCESSIVOS

INÍCIO DA RELAÇÃO CORPO DA RELAÇÃO

O "Processo de intervenção terapêutica de enfermagem" atinge aqui a

sua expressão máxima. O progressivo conhecimento da situação do doente,

bem como as exigências e as dificuldades impostas pelo tratamento médico

assim o exigem. Já mais atrás afirmei a relevância da "Gestão de sentimen­

tos" e da "Gestão de informação" no contexto desta intervenção. Todavia,

estes instrumentos caracterizanrse pela acção conjugada entre si bem como

com os Cuidados técnico-instrumentais.

Dissertação de Doutoramento

Page 331: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros! Construção de uma relação

Os diversos autores atrás citados (i.e., Peplau, 1990; Travelbee, 1972;

Chalifour, 1989; Cibanal, 1991) propõem fases com algumas características

semelhantes às encontradas na fase Corpo da relação, aqui proposta. Cons-

tata-se que as semelhanças não são apenas com uma fase, sendo por vezes

necessário englobar duas para se perceberem maiores semelhanças. Assim,

percebenrse semelhanças com as fases de Identificação e de Exploração, pro­

postas por Peplau (1990); mas também com as fases de Emergência de iden­

tidades, proposta por Travelbee (1972) e de Trabalho, por Chalifour (1989).

Embora as denominações variem, percebe-se que esta é a fase central da

relação e corresponde ao espaço de tempo durante o qual se desenvolve o

essencial da intervenção terapêutica. Ou seja, é a fase em que, após se ter

construído um clima de confiança, se procede a um trabalho sistemático à

volta dos problemas identificados, no sentido de os resolver. Este trabalho,

normalmente desenvolve-se no contexto de encontros sistemáticos entre a

enfermeira e o doente.

No presente caso, as diferenças entre as características enunciadas pelos

diversos autores referidos e as encontradas neste estudo, são menores. A

principal característica das fases correspondentes é a emergência de novas

identidades (Peplau, 1990; Travelbee, 1972; Chalifour, 1989). Também no

presente estudo se pode falar de fenómeno idêntico. Efectivamente, com base

essencialmente na gestão de sentimentos e de informação, mas também na

promoção do respeito, entre outros, percebe-se um trabalho sistemático

orientado no sentido de aprender a viver com a nova situação. Ora, seja qual

for a evolução da situação, esta é de tal forma marcante na vida da pessoa

que, para saber viver com ela, requer novas capacidades, uma outra

auto-imagem e auto-conceito, uma outra estrutura relacional, ou seja, novas

identidades. Contudo, o trabalho das enfermeiras, neste caso, vai um pouco

mais além, na medida em que não se limita a uma interacção verbal. O facto

de desenvolverem simultaneamente todos os cuidados necessários ao doente,

permite que sejam dadas respostas pragmáticas para o mais diverso tipo de

problemas do dia-a-dia. Isto constitui-se como ajuda adicional de grande

importância no processo de aprendizagem que o doente está a desenvolver.

329 Dissertação de Doutoramento

Page 332: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

Isto porque, nuns casos a enfermeira ao fazer, oferece-se como modelo, nou­

tros porque ao fazer, dá tempo ao doente para se reorganizar.

6 . 3 - 0 FIM DA RELAÇÃO

O fim da relação assume neste contexto algumas características que con­

sidero de particular relevância. Como primeira e mais saliente característica

destaco o facto de o fim da relação não estar, em momento algum, dependen­

te da vontade da enfermeira nem do doente. Efectivamente a relação termi­

na no momento em que o tratamento quimioterápico terminar ou antes dis­

so, se entretanto ocorrer algum incidente de saúde que a isso obrigue ou a

morte do doente. Apesar desta limitação o fim da relação é previsível. Ou

seja, se o mesmo coincidir com o fim dos tratamentos, tal sabe-se com uma

antecedência razoável, uma vez que os ciclos de quimioterapia estão estan­

dardizados. Mas também é previsível se o fim da relação for imposto pela

morte do doente. O actual estádio do conhecimento biomédico permite fazer

prognósticos de remissibilidade com um rigor bastante elevado, aos quais as

enfermeiras têm acesso. Mas também o estádio do conhecimento de enfer­

magem, a perícia desenvolvida pelas enfermeiras neste serviço, bem como o

conhecimento que vão adquirindo acerca de cada um dos doentes, permi-

te-lhes prever com um elevado grau de probabilidade, qual a evolução da

situação.

Por esta ordem de ideias pode-se dizer que o fim da relação está presente

desde o início e marca todo o processo. Explicando um pouco melhor. Tal

como já disse mais atrás, ainda antes de se verificar o primeiro contacto

entre a enfermeira e o doente, aquela recolhe um conjunto de informações,

entre as quais sobressai a informação biomédica. Um dos elementos siste­

maticamente integrantes dessa informação é o estadiamento do tumor, o

qual dá a perspectiva prognóstica em termos de probabilidade de remissão.

Assim, quando a enfermeira se encontra com o doente pela primeira vez,

transporta consigo uma condicionante que dará uma determinada tonalida­

de a toda a relação. Esta tonalidade terá determinadas características se a

probabilidade de remissão for real e terá outras se aquela probabilidade não

— _ . _ _ . . = = „ . — . — _ . 330 Dissertação de Doutoramento

Page 333: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

existir ou for remota. Não pretendo insinuar que percebi qualquer género de

desinvestimento na relação em função desta variável. Mas tão só que percebi

características diferentes em função da mesma, as quais me levam a afirmar

que o tipo de fim previsível da relação, em função dos dados disponíveis,

condiciona toda a relação.

Face ao exposto, embora muitos dos reflexos do fim da relação apenas

sejam visíveis muito próximo do mesmo, eles estão patentes ao longo de toda

a relação, pelo que se torna mais uma vez difícil estabelecer com precisão em

que momento começa esta fase. Assim, as enfermeiras referem como dificul­

dades sentidas ao longo da relação essencialmente três grupos de elementos:

■S Lidar com as perdas»'

S Lidar com o sofrimento;

S Lidar com a proximidade.

O lidar com as perdas é sempre uma dificuldade em qualquer circunstân­

cia. Contudo, é também claro que existe uma hierarquização de perdas e

consequentemente, uma hierarquização das dificuldades em lidar com as

mesmas. No caso em análise, o fim da relação será sempre uma perda,

porém, esta terá características completamente diferentes em função das

características do fim da relação. Se este ocorreu num contexto em que o

prognóstico médico era optimista, parece ser vivida, quase, como um prazer,

com ausência de sinais visíveis de luto. Se, pelo contrário, ocorreu num con­

texto de prognóstico pessimista, o fim da relação é um pouco ambivalente

entre algum sentimento de alívio, mas também de tristeza. De alívio porque

a enfermeira não terá que estar presente durante o período final da vida do

doente, normalmente o mais dramático. De tristeza, pelo luto associado ao

fim da relação nestas circunstâncias e à antecipação da morte. Esta tristeza

é actualizada quando a morte efectivamente se verifica, dado que as enfer­

meiras, regra geral, são disso informadas pessoalmente pelos familiares dos

doentes. Por último, se o fim da relação ocorrer por morte, durante o ciclo de

quimioterapia, parece prevalecer o luto com o correspondente sentimento de

tristeza.

331===================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 334: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de um;i relação

De acordo com o verbalizado pelas enfermeiras, de entre as suas dificul­

dades, a perda por morte é aquela com a qual continuam a ter mais dificul­

dade em lidar e condiciona todas as outras. Por exemplo, o lidar com o

sofrimento assume características diferentes em função do tipo de perda

previsível. As enfermeiras assumem ser mais difícil lidar com o sofrimento

quando o mesmo parece inútil, dado o desenlace que se advinha. A mesma

influência se nota relativamente ao lidar com a proximidade. Isto porque se

percebe uma relação directa entre o grau de proximidade e o grau de sofri­

mento por perda.

Porém, o lidar com a proximidade coloca outras dificuldades que extrava­

sam as referidas. Constata-se pela análise dos diversos elementos da natu­

reza e do processo de relação que esta assume, em muitos momentos, carac­

terísticas de grande proximidade e até intimidade. Em circunstâncias como

estas coloca-se um dilema difícil de resolver. Por um lado, estarão em causa

os objectivos terapêuticos da relação. Ou seja, em algumas situações, para se

atingirem determinados objectivos, parece ser necessário um elevado grau

de proximidade. Tal é o caso de determinado tipo de cuidados técni-

co-instrumentais, os quais exigem uma elevada proximidade física. Mas é

particularmente o caso da gestão de sentimentos num contexto de crescente

envolvimento relacional. Este envolvimento é assumido pelas enfermeiras e

pelos doentes e referido como positivo por ambos, sendo adjectivado de modo

variável entre "relação de amigo" e "relação familiar".

Por outro lado, está em causa a dificuldade de traçar uma fronteira entre

uma relação de natureza profissional e outra de natureza completamente

diferente. Esta dificuldade de definição de fronteiras é patente nos discur­

sos, quer dos doentes, quer das enfermeiras. Esta indefinição de fronteiras

não é um problema de natureza académico, mas antes de natureza clínica.

Considerando de duvidosa utilidade terapêutica a rígida definição de fron­

teiras, em algumas circunstâncias, considero porém, que se deve equacionar

esta questão, por duas ordens de razões: pelo doente e pela enfermeira. No

primeiro caso poder-se-á questionar até que ponto é terapêutica uma relação

com fronteiras indefinidas, na qual os papéis assumidos pela enfermeira

Dissertação de Doutoramento

JCJIASi

Page 335: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

oscilam entre o de amizade e o familiar. No segundo, para além de se poder

questionar a capacidade de intervenção terapêutica num contexto de indefi­

nição de fronteiras e de papéis, questionar-se-á também as repercussões

sobre a pessoa da enfermeira da vivência e quebra repetidas de relações de

grande proximidade. Se a orientação alinhar pelas escolas psicoterapêuticas

clássicas (e.g., behaviorista, cognitivo-comportamentalista, abordagem cen­

trada), então a problemática da fronteira da relação terá que ser definida

com outro rigor e ser reconsiderada esta forma de intervenção. Todavia, se

levarmos em linha de conta alguns estudos recentemente levados a cabo, dos

quais destaco o já atrás referido de Morse et ai (1992), então teremos que

considerar a proximidade e a intimidade como inerente à forma de interven­

ção das enfermeiras. Aquelas autoras, de acordo com os estudos que desen­

volveram, entendem que a enfermeira utiliza um misto de respostas reflexi­

vas e espontâneas com respostas aprendidas. As primeiras estão centradas

sobre o doente e a sua vivência e pressupõem uma elevada proximidade e

intimidade. As segundas estão mais centradas sobre a enfermeira e pressu­

põem uma fronteira mais nítida e uma maior distância. Ainda segunda as

mesmas autoras, o uso alternado destes tipos de resposta das enfermeiras

tem a ver, por um lado, com as necessidades dos doentes, e pelo outro, com

as capacidades da enfermeira. Explicando melhor. Alguns tipos de interven­

ção que pressupõem grande proximidade parecem ser úteis, do ponto de vis­

ta terapêutico, se usados num determinado contexto e espaço de tempo deli­

mitado, mas prejudiciais se aqueles parâmetros não forem respeitados. Por

outro lado, este tipo de intervenção parece ser extremamente exigente para

quem a desenvolve, pelo que a enfermeira precisa de alternar com outro tipo

(i.e., as respostas aprendidas) no sentido de se proteger. Os objectivos tera­

pêuticos parecem resultar desta conjugação e desta forma de gerir a relação.

Não podendo afirmar, com base nos dados analisados, que as enfermeiras

deste estudo utilizam esta estratégia de gestão da relação, bem assim como

das suas fronteiras, consegui contudo perceber que, na continuidade dos

contactos com os doentes, nem sempre se verificava uma elevada proximida­

de e quando tal acontecia a mesma não se prolongava durante todo o tempo

333 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

de permanência do doente no serviço. Apesar disso, considero que este é um

assunto de grande pertinência do ponto de vista terapêutico e que como tal

carece de estudos direccionados especificamente para esta questão.

O que acabei de afirmar sai reforçado se considerarmos que as dificulda­

des referidas pelas enfermeiras existem ao longo da relação e se prolongam

para além do seu fim. Efectivamente constata-se que as repercussões das

dificuldades atrás referidas se prolongam temporalmente, para além do fim

da relação e que invadem outras esferas da vida das enfermeiras.

Relativamente às estratégias usadas pelas enfermeiras para lidar com as

dificuldades queria destacar essencialmente duas: a centração sobre o pre­

sente e a procura de elementos de gratificação. A centração sobre o presente,

tal como já referi mais atrás, consiste na valorização dos acontecimentos do

aqui e agora e a ausência de projecções a médio e longo prazo. Por sua vez, a

procura de elementos de gratificação, consiste na tentativa de encontrar na

actividade desenvolvida elementos de auto-gratificação. Ou seja, trata-se de

um processo de autoavaliação das actividades desenvolvidas face aos niveis

de benres tar do doente e família. Apesar de este ser um processo essencial­

mente pessoal tem uma tradução grupai e serve-se ainda de elementos for­

necidos pelos próprios doentes e familiares. A tradução grupai constata-se

nas reuniões mais ou menos formais do grupo das enfermeiras, nas quais

são trocadas as mais diversas informações sobre os doentes e familiares, os

cuidados, as relações, entre outras. Os elementos fornecidos pelos doentes e

familiares têm essencialmente a ver com as mais diversas manifestações de

gratidão por eles levadas a cabo, quer durante quer depois dos ciclos de

quimioterapia, independentemente do facto de o doente ter ou não bom

prognóstico médico.

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

335 =========================================== Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

7 - TEORIA DE MÉDIO ALCANCE EXPLICATIVA DA RELAÇÃO

ENFERMEIRODOENTE NO CONTEXTO DE UM SERVIÇO DE

QUIMIOTERAPIA EM REGIME DE HOSPITAL DE DIA

Um dos principais objectivos deste trabalho consistia no desenvolvimento

de uma teoria de médio alcance sobre a relação enferme iro-doente, relativa

ao contexto onde a investigação foi desenvolvida. Assim e após ter apresen­

tado os dados resultantes da investigação desenvolvida e de os ter compara­

do com a literatura, procederei à apresentação integral da referida teoria.

A teoria de médio alcance que proponho para explicar a relação enfer-

meira-doente no contexto onde realizei o presente estudo, caracteriza-se por

ser constituida por duas componentes distintas mas complementares e

estreitamente interrelacionadas : a natureza da relação e o processo de rela­

ção (ver figura 23).

Figura 23 - Componentes fundamentais da teoria de médio alcance relati­va à relação enfermeiro-doente no contexto onde decorreu o estudo

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A NATUREZA DA RELAÇÃO

O PROCESSO DE RELAÇÃO

Processo de Avaliação Diagnostica

Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem

Início da Relação

Corpo da Relação

Fim da Relação

336 ' Dissertação de Doutoramento

Page 339: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

A natureza da relação responde ao primeiro dos objectivos a que me pro­

pus (i.e., Compreender a natureza da interacção entre os enfermeiros e os

doentes oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia). A

natureza da relação refere-se à componente expressiva da relação (Basto,

1998) e engloba os seguintes elementos: "Processo de avaliação diagnostica"

e "Processo de intervenção terapêutica de enfermagem".

O "Processo de avaliação diagnostica", tal como mais atrás já referi, con­

siste na avaliação/reavaliação da situação do doente/família. Aquela avalia­

ção/reavaliação é feita na conjugação variável da tripla perspectiva: viven­

cial, biomédica e de ajuda. É na variabilidade da conjugação destas três

perspectivas que se constrói a perspectiva de enfermagem presente ao longo

do "Processo de avaliação diagnostica". É feita ainda de modo contínuo, sis­

temático, dinâmico e integrado nos cuidados. Esta definição evidencia ainda

que o foco de atenção da enfermeira é o doente e a família. Contudo este

último (i.e., o foco) será redefinido mais abaixo quando se caracterizar o

"Processo de intervenção terapêutica de enfermagem".

O "Processo de avaliação diagnostica", para além de muitas outras carac­

terísticas, acumula as seguintes duas: s e r o timoneiro dos cuidados e conse­

quentemente, estar presente, numa dimensão cronológica, ao longo de todo o

processo de prestação de cuidados. Por força destas duas características,

adquire especificidade em função da fase da relação na qual ocorre.

Tornam-se assim patentes as relações do "Processo de avaliação diagnos­

tica" com o "Processo de intervenção terapêutica de enfermagem", mas tam­

bém com o processo de relação.

Por sua vez, o "Processo de intervenção terapêutica de enfermagem"

engloba a totalidade da intervenção da enfermeira, dirigida ao doente e

família, bem como à interface destes com o grupo e a organização. Com base

nesta perspectiva é agora possível redefinir o foco de atenção da enfermeira.

Assim, pode-se afirmar que o foco principal é o doente/família, mas é tam­

bém a interface destes com a organização e outros profissionais, bem como o

grupo de doentes na sala de quimioterapia e a interface deste com cada

337===================================================================== Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

doente em particular e com a organização. Pode-se então afirmar que os cui­

dados prestados neste contexto têm uma natureza multifocal.

0 "Processo de intervenção terapêutica de enfermagem" concretiza-se

através de uma razoável diversidade de instrumentos, dos quais destaco: a

gestão de sentimentos e a gestão de informação. Sobre o primeiro (i.e., a ges­

tão de sentimentos) assinala-se, por um lado, a criação de um espaço-tempo

que permite a sua expressão, por outro a tentativa de promoção da confian­

ça/segurança. Na gestão de sentimentos sobressaem ainda a disponibilidade

e a promoção de esperança e da perseverança. O segundo (i.e., a gestão de

informação), deve entender-se em estreita interligação com o anterior.

Desenvolve-se de modo informal e de acordo com as necessidades e solicita­

ções do doente e família. A informação foi reconhecido um importante papel,

pelas características da situação que os doentes estão a viver. Ou seja, con­

siderando a vivência dos doentes como uma crise, com as características que

atrás lhe foram atribuídas, a informação assume um importante papel na

reorganização que permita sair da crise. Assim e para que a informação

cumpra o papel de organizador, precisa de ser contextualizada, repetida,

garantida, as vezes consideradas necessárias pelo doente.

Os instrumentos que acabei de descrever são compreensíveis apenas

quando perspectivados em conjunto com todos os que mais atrás referi,

nomeadamente os técnico-instrumentais. Todos eles são usados de modo sis­

tematicamente dinâmico pelas enfermeiras, em função da avaliação que

fazem da situação (ver figura 24).

A inter-relação entre os dois constructos atrás referidos (i.e., "Processo de

avaliação diagnostica" e "Processo de intervenção terapêutica de enferma­

gem"), mas também a sua natureza, evidenciam o carácter processual dessa

mesma interacção. Esse carácter processual, conduz-nos ao segundo compo­

nente da teoria de médio alcance: o processo de relação (ver figura 23). Este

componente compreende três fases sequenciais: Princípio da relação, Corpo

da relação e Fim da relação. Sendo possível identificar características espe­

cíficas de cada uma destas fases, é contudo bastante problemático estabele­

cer fronteiras precisas entre elas. De todo o modo, pode dizer-se que o Prin-

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

cípio da relação se caracteriza por começar antes de a enfermeira e o doente

se terem encontrado pela primeira vez, sendo que, durante este período a

enfermeira se prepara, quer formal quer informalmente, para o encontro

com o doente. Porém, o Princípio da relação tem o seu momento por excelên­

cia durante a entrevista de admissão. Durante esta, constata_se que a

enfermeira desenvolve predominantemente o "Processo de avaliação diag­

nostica", orientado em três direcções'■ o que o doente sabe, o que preocupa o

doente e estratégias/capacidades do doente. Mas inicia­se também aqui e qua­

se em simultâneo a "Intervenção terapêutica de enfermagem" (ver figura 24).

O Corpo da relação é constituído pelo essencial do "Processo de interven­

ção terapêutica de enfermagem". Ou seja, a partir de um conhecimento e

confiança que se vai construindo, e guiados por uma reavaliação sistemática

da situação, a enfermeira utiliza os instrumentos já atrás identificados. É

durante esta fase que é desenvolvido o essencial da intervenção, que contri­

bui para o objectivo que, recordo, é aprender a viver com a situação, tendo

em vista o bem­estar.

O Fim da relação reúne duas características essenciais '■ E a fase de frontei­

ra inicial mais indefinida, podendo­se até dizer que está presente desde o início

da relação; mas é também a fase de fronteira final mais definida, correspon­

dendo esta ao fim da relação, imposto pelo fim do tratamento ou pela morte do

doente. Tal como oportunamente foi explicado o Fim da relação assume carac­

terísticas completamente diferentes em função do prognóstico de evolução da

saúde do doente. Ou seja, se o prognóstico for considerado bom, o Fim da rela­

ção assemelha­se a uma celebração e não se vislumbram sinais de luto,' se pelo

contrário se perspectivar um prognóstico mau ou se a relação terminar devido à

morte do doente, os sinais de luto e de sofrimento são evidentes, mesmo com

carácter antecipatório, surgindo portanto, precocemente na relação.

Esta última asserção abre portas para as dificuldades inerentes à rela­

ção, na perspectiva das enfermeiras. No entender destas, aquelas têm a ver

essencialmente com três aspectos'• a vivência da proximidade e do luto e a

gestão da agressividade que lhes é dirigida. Sobre as dificuldades na relação,

o primeiro aspecto a salientar tem a ver com o facto de as enfermeiras terem

339 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

consciência das mesmas. Apesar disso, sobre os primeiros dois (i.e., vivência

da proximidade e do luto), o problema, tal como é equacionado pelas enfer­

meiras, resume-se à correlação entre eles. Ou seja, entendem que a proximi­

dade é importante para os cuidados e essencial para a componente relacio­

nal desses cuidados, contudo, sentem que o sofrimento associado ao fim da

relação, nas condições atrás descritas, é tanto maior quanto maior é essa

proximidade. Todavia e apesar de tal não ser equacionado pelas enfermei­

ras, entendo que a proximidade levanta problemas enquanto tal. Dito por

outras palavras, é o grau de proximidade enquanto tal que deve ser equa­

cionado e discutido. Esta problemática é equacionada em códigos deontológi­

cos de associações profissionais de enfermagem de diversos países e discuti­

do por diversos autores sobre múltiplas perspectivas. Tal é o caso de Sheets

(2001), bem como de Mães (2003), as quais denominam esta como uma pro­

blemática de fronteiras de actuação profissional. Entendem que subjacente à

mesma estão questões de poder, ou seja, na relação enfermeiro-doente existe

uma desigual distribuição de poder e como tal pode ser particularmente gra­

voso se forem ultrapassadas as fronteiras de actuação profissional; de con­

fiança, ou seja, um dos pilares fundamentais da relação pode ser posto em

causa ao ultrapassarem-se as referidas fronteiras,' e de capacidade de esco­

lha, isto é, também o respeito pela autonomia do doente pode ser posta em

causa numa situação dessa natureza.

Ao colocar este tipo de questões não estou a insinuar intencionalidade no

uso da relação em desfavor do doente. Estou simplesmente a chamar à aten­

ção para a dificuldade que qualquer pessoa tem de, no uso do "self como

instrumento terapêutico, destrinçar sistematicamente todos os mecanismos

envolvidos e ter capacidade de o usar em função do doente e das suas neces­

sidades. Neste contexto pergunta-se: Se pretendemos usar a relação enfer­

meiro-doente como instrumento terapêutico, será que não devemos equacio­

nar em simultâneo a questão da supervisão clínica?

Por último e relativamente à teoria de médio alcance, uma chamada de

atenção para a profunda e complexa inter-relação entre todos os elementos

que a constituem.

_ _ _ - _ _ _ _ _ _ . _ _ _ _ _ _ _ ^ _ _ _ _ _ . _ _ „ _ _ _ . « _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ „ _ 3 4 0

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

Figura 24 - Perspectiva geral do processo de relação preferencial enfer­meiro-doente.

341

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Dissertação de Doutoramento

Page 344: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os uleiitcs e os enfermeiros; Construção de uma relação

Contudo, a teoria de médio alcance que, de modo sucinto e integrado,

acabei de apresentar não é cabalmente compreensível se não tivermos em

consideração o contexto. Tal não significa que uma relação com as caracte­

rísticas das aqui apresentadas só se poderá desenvolver num contexto sobre-

ponível a este. Contudo, significa que o contexto comporta elementos de

importância crucial não só para a compreensão da teoria, mas também para

o desenvolvimento e o sucesso da relação. Assim, passo a referir alguns dos

elementos contextuais que, no meu entender, contribuem de um modo ou

outro, quer para a compreensão da teoria, quer para o desenvolvimento da

relação.

Começo por fazer referência à boa qualidade geral do espaço, no que diz

respeito a elementos de conforto. Destes destaco, a qualidade dos acessos,

bem como das zonas comuns do serviço, as quais apresentam um aspecto

limpo e arrumado. Realce ainda para o mobiliário de uso geral, também ele

de aspecto limpo e normalmente, em quantidade suficiente. Relativamente

ao material clínico, constata-se que, também neste caso, existe em quanti­

dade e qualidade e se apresenta operacional. Como elemento de conforto,

destaco ainda o facto de todo este espaço estar climatizado com ar condicio­

nado. Por último, referência para a existência de espaços múltiplos que

permitem a individualização e o respeito da privacidade de uma interacção,

se tal se considerar necessário. Recordo que Basto e Coelho (2000) referem

as interrupções sucessivas e falta de privacidade como elementos que per­

turbam a interacção.

A segunda referência vai para o contexto sócio-relacional, nomeadamen­

te, para o ambiente relacional inter e intra-profissional. Como elementos

essenciais deste contexto destaco^

1 - A existência, no grupo das enfermeiras, de uma clara liderança clíni­

ca exercida no contexto da prática dos cuidados. Esta liderança acumulava

uma componente formal, visto ser exercida por alguém formalmente investi­

do nas funções de responsável; mas também uma componente informal e

resultante da dinâmica do grupo, o qual reconhecia e aceitava essa lideran­

ça. O reconhecimento e aceitação da liderança por parte dos pares advinha,

Dissertação de Doutoramento

Page 345: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

entre outras razões, do reconhecimento de algumas características, nomea­

damente, o ser detentora de formação específica, mas acima de tudo, o de lhe

reconhecerem competências, e de perceberem uma linha de orientação rela­

tivamente aos cuidados.

Esta liderança desenvolvia-se através do exercício da prática de cuida­

dos, com uma sistemática atitude pedagógica e de supervisão. O facto de se

desenvolver através da prática de cuidados, permitia-lhe posicionar-se como

referência,' a sistemática atitude pedagógica e de supervisão, permitia-lhe

estar atenta à actuação dos restantes elementos e interferir quando conside­

rasse oportuno. Esta intervenção poderia adquirir características mais for­

mais e desenvolver-se através de acções de formação concretas dirigidas a

necessidades específicas. Recordo a propósito o modo como foi introduzida a

entrevista de admissão, já atrás explicada.

A existência de uma liderança clínica com estas características t inha

ainda algumas outras consequências. De entre estas destaco: servir de lide­

rança a vários outros actores deste serviço, nomeadamente as auxiliares de

acção médica e as voluntárias,' servir de ponte com outros serviços e outros

profissionais, nomeadamente os serviços de internamento e os médicos deste

serviço. Esta última ponte acumulava várias vantagens com repercussões na

qualidade dos cuidados. Uma delas era a criação de um clima de coesão

entre estes dois grupos profissionais (i.e., enfermeiras e médicos), várias

vezes aliás, ressalvado pelos doentes e referido como importante. Esta coe­

são parece radicar na partilha de objectivos terapêuticos, a qual se foi cons­

truindo paulatinamente, desenvolvendo-se a par com a confiança e o respei­

to inter-profissional. Esta partilha de objectivos terapêuticos, de algum

modo, enquadra-se na perspectiva de cuidar proposta por Hesbeen (2004),

mas também por Honoré (2004). De acordo com estes autores, o cuidar é ine­

rente ao ser humano, pelo que não poderá ser apropriado em exclusividade

por ninguém. Se este princípio for traduzido para os cuidados de saúde, o

gesto de cada profissional pode e deve ser reinterpretado de modo diferente.

Assim sendo, mesmo os gestos ditos técnicos, podem ser entendidos no con­

texto deste conceito (i.e., cuidar), se os mesmos não forem um fim em si

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

mesmos, mas antes um meio para alcançar um fim: o benres tar dos doentes.

Parecia ser neste sentido que a liderança e a coesão inter-profissional a que

atrás me referia se orientava.

As características desta liderança, bem como o perfil que o grupo cons­

truiu, evidenciam um outro elemento que reputo de grande importância: a

autonomia de actuação das enfermeiras. Dito por outras palavras, as enfer­

meiras neste contexto possuíam capacidade de decisão sobre os seus actos e

a coesão inter-profissional permitia-lhes ainda ter capacidade de decisão em

áreas interdependentes. Ou seja, dadas as relações de confiança mútua,

parecia haver protocolos de natureza informal que lhes permitiam tomar

decisões em benefício da eficiência e em última análise, do bem-estar do

doente.

2 - Ainda no que concerne ao contexto relacional referência para o modo

como as enfermeiras organizaram as suas actividades. Deste destaco: a cria­

ção de um sistema que permitia a personalização e a continuidade da rela­

ção. Tal sistema iniciava-se com a entrevista de admissão e t inha continui­

dade informal através da admissibilidade da preferência relacional no con­

texto dos cuidados. Esta admissibilidade constituía-se como um acordo

expresso entre as enfermeiras e tácito destas com os doentes. Ou seja, entre

as enfermeiras era pacificamente aceite que se deveria dar prioridade a

essas preferências. Contudo, e relativamente aos doentes esta preferência

era aceite e respondida quando solicitada, mas não era formalizada. Esta é

uma das razões pelas quais a teoria é denominada como informal. Quer em

função dos resultados deste trabalho, bem como de outros semelhantes,

parece adquirir uma importância significativa o facto de o doente reencon­

trar a enfermeira em quem aprendeu a confiar e poder contar com continui­

dade.

3 - A última referência vai para o facto de as intervenções da enfermeira

decorrerem num espaço no qual coexistem em simultâneo diversos actores

(e.g., doentes, familiares, auxiliares de acção médica, voluntárias, outras

enfermeiras e eventualmente médicos). Destes destaco naturalmente os

doentes para acrescentar que o grupo não é homogéneo. Assim, ao longo do

, _ _ _ 344 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

dia estão presentes em simultâneo, diversos doentes em interacção entre si,

com processos fisiopatológicos e vivenciais em estádios diferentes. Destaco

ainda os familiares, com os quais a enfermeira desenvolve uma relação espe­

cial, na medida em que aqueles se posicionam simultaneamente como uten­

tes e parceiros de cuidados.

É no contexto que acabei de referir que a enfermeira desenvolve a sua

actividade. Este contexto parece reunir um conjunto de factores que ajuda­

rão a compreender as características da relação. Destes factores destaco dois

que reputo de grande importância: a liderança clínica e a autonomia na

decisão. Nem um nem outro destes dois factores são apropriáveis ou extra­

poláveis. Resultam antes de uma construção que este grupo, neste contexto

desenvolveu e que contribuíam para a qualidade dos cuidados no geral e da

relação enfermeira-doente, em particular.

Todavia e a propósito dos factores contextuais atrás referidos, recordo

um estudo desenvolvido por Basto (1998), cujo objectivo foi, contribuir para

um "melhor conhecimento do processo de mudança dos comportamentos pro­

fissionais e, portanto, dos factores determinantes dessa mudança" (p.19).

Com base nesse estudo elencou um conjunto de forças favoráveis à melhoria

dos cuidados. Destas faziam parte, entre outras:

S o poder hierárquico - Tinha a ver essencialmente com o poder da

enfermeira chefe e do médico chefe do serviço. Realçava-se então o

poder catalisador e aglutinador e de ponte que a enfermeira chefe

podia assumir. Neste contexto, recordo o que atrás referi sobre as

características da liderança no serviço onde realizei o presente

trabalho.

S diálogo com os médicos - Era valorizada a capacidade de manter o

diálogo com os médicos, como força promotora da melhoria da qua­

lidade dos cuidados. Também neste caso é adequado recordar o

que foi dito, quer sobre a liderança, quer sobre a coesão da equipa

e partilha de objectivos.

S desenvolvimento de capacidades, conhecimentos e experiência -

No entender das enfermeiras participantes no estudo de Basto

345 ==================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 348: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

(1998), este era um factor de grande importância na melhoria dos

cuidados. No caso do presente estudo, recordo a valorização atri­

buída à formação e ao desenvolvimento de competências, pela

enfermeira coordenadora. Esta importância traduzia-se, entre

outras, no desenvolvimento de acções de formação dirigidas ao

grupo e implementadas de forma inovadora.

S formação de equipas - Também este aspecto era muito valorizado

pelas enfermeiras do serviço onde desenvolvi o estudo. A impor­

tância percebe-se em alguns dos argumentos já apresentados ao

longo do trabalho (e.g., coesão na actuação, discussão inter-pares

prévia à tomada de decisão). Mas percebe-se também em activida­

des de índole social, como as que decorriam no "Sítio do Pica-Pau

Amarelo", designação atribuída à pequena sala de convívio do ser­

viço. Aí trocavam-se bolos e piadas, em ambiente de grande des­

contracção e amizade, à mistura com uma ou outra conversa mais

séria.

S acreditar no que faz - No caso do presente estudo apercebrme da

importância que as enfermeiras atribuíam ao que faziam através

de dois indicadores^ a disponibilização do número de telefone par­

ticular aos doentes e a participação em actividades extra-horário

como sejam, as viagens de grupo com os doentes e a sardinhada

anual.

S participar nas decisões - Também a participação nas decisões já

foi devidamente evidenciada ao longo de todo o trabalho. Conside­

ro que este factor tem uma importância central para o auto-concei-

to e auto-imagem profissional da enfermeira. Mas também é

importante pela eficácia e eficiência que introduz na actuação das

enfermeiras e consequentemente no berrrestar dos doentes.

Em resumo, pode dizer-se que um contexto com as características que

acabei de referir, reúne condições de excepção relativamente à qualidade dos

cuidados. Mas também exige da enfermeira uma postura proactiva pela

diversidade de competências que lhe são exigidas, as quais não são um dado

====== . - - - - - - - - - - - - — — _ _ - _ _ _ _ ^ _ 346 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

adquirido à partida. Assim, ter a capacidade de gerir os sentimentos e a

informação dos doentes, num contexto desta natureza pressupõe conhecer o

grupo como um todo, mas também cada um em particular. Só assim conse­

guirá adequar as suas respostas a cada um, bem como aproveitar e promo­

ver a força do próprio grupo. O desenvolvimento e actualização destas com­

petências requer da enfermeira uma atitude investida e de aprendizagem.

Considerando o conjunto dos elementos atrás referidos, penso que se con­

figuram como um conjunto de condições (e.g., contextuais, características

pessoais e profissionais das enfermeiras, características dos utentes), favo­

ráveis ao desenvolvimento de processos relacionais terapêuticos. Estas con­

dições são enquadráveis nos vectores de que fala Le Boterf (1995) e que

Rebelo (1996), Costa (2002) e Basto et ai (2000), também referem nos seus

estudos. Todavia e para além disso, realço como fundamental a conjugação

dinâmica dos factores, engendrada pelas enfermeiras, para, de modo proac-

tivo, os aproveitarem em prol de um objectivo terapêutico.

Esta forma de entender a intervenção relacional da enfermeira, em

simultâneo dirigida à pessoa individual, mas catalisando as mais diversas

condições de natureza grupai e ambiental, vem de encontro ao modo multi­

focal como atrás defini a actuação da enfermeira neste contexto, mas, ao

mesmo tempo, define uma forma de actuação muito específica e que me

atrevo a afirmar ser específica da enfermagem.

É pela conjugação deste conjunto diversificado de factores que entendo

que a actuação da enfermeira se erige como o "espaço" onde o doente e famí­

lia se podem acolher para se re-organizarem. Trata-se assim de um espaço

de ajuda na acepção de Balint (1993, 1998a, 1998b) mas também de Peplau

(1990) Orlando (1961) e outros. Concluo então que a relação desenvolvida

pelas enfermeiras possui intencionalidade terapêutica, apesar de ter um

carácter informal.

347 Dissertação de Doutoramento

Page 350: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

8 - CONCLUSÃO

A conclusão deste trabalho consistirá num exercício de duplo sentido.

Num primeiro momento farei um exercício de natureza retrospectiva, atra­

vés do qual lançarei um olhar para o que foi feito, tentando perceber as

potencialidades e debilidades deste trabalho. Trata-se de um exercício de

grande utilidade porque funciona como um especial momento de auto-refle-

xão e como tal é gerador de aprendizagem e desenvolvimento pessoal.

Num segundo momento tentarei um exercício prospectivo. Ou seja, tra­

ta-se de tentar equacionar as perspectivas abertas por este trabalho, em ter­

mos de desenvolvimentos futuros. Para o efeito serão equacionadas as pers­

pectivas de desenvolvimento de investigação, mas também o aproveitamento

deste trabalho na formação de novos profissionais e/ou no desenvolvimento

das competências clínicas dos profissionais em exercício, na perspectiva

defendida por Schõn (1998).

Na tentativa de responder ao primeiro desafio, começo por fazer referên­

cia aos aspectos metodológicos. Equacionando-os em perspectiva, diria que,

do ponto de vista pessoal, foram dos que mais desenvolvimento me propor­

cionaram. Ao afirmar tal continuo a posicionar-me na linha epistemológi-

co-metodológica inicialmente proposta. Tal significa que ao posicionar-me

como investigador qualitativo e ao desenvolver uma investigação de acordo

com a perspectiva do interaccionismo simbólico, posiciono-me também como

actor da minha própria investigação. Nesta perspectiva compreende-se este

posicionamento de auto-reflexividade face ao processo desenvolvido, na linha

aliás do defendido por, de la Cuesta Benjumea (2003).

Assim, sendo para mim inquestionável que as opções metodológicas

foram as adequadas em função dos pressupostos epistemológicos, mas tam­

bém da natureza do problema que me propus investigar, considero porém

que esta opção me colocou algumas dificuldades. Relativamente à adequabi-

lidade, começo por realçar a do local seleccionado para o desenvolvimento do

Dissertação de Doutoramento

Page 351: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

estudo. Sobre este, penso que seja de sublinhar que o considero um dos prin­

cipais responsáveis do resultado final deste estudo. Foi assinalável o contri­

buto dado por todos os intervenientes, pela disponibilidade demonstrada,

mas acima de tudo, pela coragem de aceitarem que um intruso olhasse para

o que fazem e o que dizem. Foi também de particular relevância a riqueza de

dados que me proporcionaram. Efectivamente, neste caso, os dados eram

inerentes à acção, pelo que a sua riqueza dependia de quem a desenvolvia.

Dependia ainda desses actores pela sua capacidade de auto-reflexão e de

verbalização. Ao investigador é apenas inerente o trabalho de desvendar os

dados e de os reinterpretar.

Sobre o meu estar neste local, confesso algumas dificuldades. Num

momento inicial senti-me demasiado em casa. Ou seja, como resultado do

facto de ser conhecido, as pessoas esforçavam-se por me facilitar a vida. Por

isso precisei de deixar passar algum tempo até que me "ignorassem".

Por último e sobre o local escolhido para o desenvolvimento do trabalho, é

de referir que estes contextos se constituem, naturalmente, como realidades

dinâmicas e complexas. Isto significa que é uma realidade sempre nova,

mesmo que se mantenham inalteráveis os seus protagonistas. Mas poderá

ser uma realidade muito diferente se estes últimos mudarem.

Para o acesso à riqueza e diversidade de dados a que atrás fiz referência,

contribuíram decisivamente as opções metodológicas que assumi. Assim, foi

particularmente enriquecedor o facto de ter optado por recolher dados sobre

o mesmo fenómeno a partir de fontes diversas e com técnicas diferentes

(Apshur, 2001; Swanson & Morse, 2001). Esta opção contribuiu inegavel­

mente para incrementar o rigor do trabalho e em simultâneo, atenuou

algumas das limitações de cada uma das técnicas usadas. Destas destaco a

observação. Poder-se-á argumentar que, para incrementar o rigor da obser­

vação, esta deve ser desenvolvida por mais que um observador, com valida­

ção à posteriori. Embora este argumento não seja em absoluto aplicável à

presente situação, dadas as características do estudo e da observação, reco­

nheço que haveria um maior enriquecimento se fosse utilizado mais do que

um observador. Contudo, esta potencial limitação do estudo é em parte

349 ====_===_==========_=======_=========__============____________„===

Dissertação de Doutoramento

Page 352: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ultrapassada pela possibilidade de cruzar os dados oriundos de diversas fon­

tes e de diversas técnicas.

Mas foi também a riqueza e diversidade de dados a componente que

maiores dificuldades me criou. Efectivamente, a análise de um corpus desta

dimensão e diversidade constiturse como um desafio considerável. Este

desafio residiu também na natureza do método de análise (i.e., análise com­

parativa constante). Este pressupõe simultaneidade entre a recolha e a aná­

lise de dados, sendo a primeira re-orientada em função desta última, condu­

zindo assim à saturação teórica. Tal como oportunamente expliquei, tal foi

sendo feito, contudo, dadas as limitações pessoais de continuar a recolher e a

analisar em simultâneo, precisei de interromper a recolha de dados durante

algum tempo. Tal permitiu-me analisar em profundidade os dados entretan­

to recolhidos, para depois continuar a recolha de dados, re-orientada pela

análise entretanto efectuada.

A natureza do método impôs ainda uma outra dificuldade que tinha a ver

com a garantia do rigor da análise produzida. Esta consti tuhrse como uma

preocupação central, o que me impulsionou a adoptar um conjunto de medi­

das já descritas, mas que reputo de grande importância. Destas destaco as

medidas de auto-controlo, como a que se traduziu no acoplamento de cada

unidade de significação ao texto-extracto de onde aquela foi extraída. Tal

permitiu-me confrontar o sentido que lhe estava a imprimir ao longo dos

diversos níveis de análise, com o significado original. Mas realço também as

medidas de hetero-controlo. De entre estas destaco as que se traduziram na

devolução às fontes (i.e., as enfermeiras) dos resultados da análise de alguns

dados, mas também a colaboração de juízes externos na aferição da estabili­

dade das categorias criadas.

Relativamente aos resultados propriamente ditos gostaria de destacar

dois aspectos que me parecem fundamentais. O primeiro tem a ver com a

constatação através da investigação produzida, não só da complexidade, mas

também da riqueza da intervenção das enfermeiras num contexto com as

características do aqui referido. Ao destacar este aspecto tenho em mente

não só os contributos para os ganhos em saúde, numa perspectiva de natu-

_ - =-. , — _ — , 350 Dissertação de Doutoramento

Page 353: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utcatcs c os enfermeiros: Construção de uma relação

reza macrersistémica, mas principalmente os contributos para o bem-estar e

para a qualidade de vida de cada um dos doentes e familiares que usufruí­

ram destes cuidados.

0 segundo aspecto que entendo destacar tem a ver com algumas perple­

xidades que ressaltam da análise produzida. Assim, constatou-se através

deste estudo a importância para os doentes não só de terem uma enfermeira

de referência mas principalmente o facto de serem tacitamente aceites as

preferências informais. Esta constatação vem ao encontro de idênticas cons­

tatações em diversos estudos já referidos. Face a isto interrogo-me: Porque

não formalizar as preferências informais e tacitamente aceites? Porque não

criar "espaços" de interacção em cada reencontro entre a enfermeira e o

doente? A título de exemplo recordo que durante a minha permanência no

serviço, uma das enfermeiras realizou o seu curso de formação complemen­

tar. No âmbito desse curso desenvolveu um projecto no serviço, que consistiu

na criação de um espaço de interacção com cada doente, prévio a cada sessão

de quimioterapia. No contexto desse espaço a enfermeira tentava, de forma

mais sistemática e organizada, fazer uma reavaliação da evolução e em

simultâneo, permitir a expressão das preocupações do doente. Este projecto

teve a duração estrita do estágio, mas, curiosamente, foram os doentes que,

após o seu terminus, questionaram as enfermeiras sobre a cessação dessa

actividade. Ou seja, de algum modo parece ser indicador que sentiam aquele

espaço como útil.

Relativamente à componente prospectiva desta conclusão, e como forma

de lhe dar solidez, inicio-a recordando a sobreposição entre os resultados

deste trabalho com todos os outros que já referi, mas também com os estudos

desenvolvidos por Basto (1998) e Basto et ai (2000), principalmente devido

ao facto de serem relativos ao nosso país. Assim e no conjunto destes dois

estudos sobressaem dois elementos que reputo de grande importância: o

primeiro tem a ver com o facto de, quer num, quer noutro, terem sido perce­

bidas acções desenvolvidas pelos enfermeiros, enquadráveis no conceito de

interacção terapêutica e sobreponívéis às percebidas no presente estudo; o

3 51 ==================================================================== Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

segundo tem a ver com o facto de em ambos os casos o contexto onde essas

interacções ocorriam, as condicionar.

A verificação desta aparente sobreposição de resultados, se por um lado

me demonstra o interesse e a riqueza desta área de investigação, por outro,

demonstra-me a necessidade de, sobre a mesma, se desenvolver meta-inves-

tigação.

Contudo, a análise prospectiva não ficaria completa se não desenvolves­

se também alguma comparação desta estrutura relacional com outra exte­

rior à enfermagem. Para o efeito entendi como adequado a comparação com

uma estrutura conceptual, relativa ao ensino e intervenção relacional, mas

de natureza transdisciplinar.

Tal é o caso da estrutura proposta por Heron (2003). Este autor tem vin­

do a desenvolver, desde 1974, uma estrutura conceptual de natureza univer­

sal e que sirva de base à formação e à intervenção relacional terapêutica.

Esta estrutura assenta num conjunto de categorias comportamentais que

foram consideradas relevantes na formação e na intervenção terapêutica.

Essas categorias comportamentais foram agrupadas em duas árvores (i.e.,

Autoritário e Facilitador) com três grupos em cada uma, perfazendo portan­

to um total de seis grupos. Pode-se assim dizer que este sistema de seis cate­

gorias, lida com seis tipos básicos de intenção de que o técnico se pode servir

para ajudar o seu cliente. Cada categoria tem uma classe major de intenção

a qual integra um vasto conjunto de sub-intenções e comportamentos especí­

ficos que lhe dão corpo. Assim com seis tipos de géneros e muitas espécies

em cada género, o sistema tem grande flexibilidade e poder para cobrir uma

grande gama de necessidades dos clientes e papéis dos técnicos e para os

cobrir com intenção prática.

Assim, a primeira árvore recebeu a denominação "Autoritário". A princi­

pal característica é a sua natureza hierárquica, ou seja, o técnico assume

responsabilidade por e em nome do cliente - guiando o seu comportamento,

dando instruções, aumentando a consciência. Dentro desta árvore devem

considerar-se as seguintes categorias^

___—-___================____=====___======„_„„„„„„„„.___. ._ 352 Dissertação cie Doutoramento

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Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

1 - Prescritivo- esta categoria caracteriza-se por uma intervenção pres­

critiva, a qual serve para dirigir o comportamento do cliente, quando aquele

está para além da relação técnico-cliente. Dito por outras palavras, prescre­

ve comportamentos que ocorrerão fora do contexto da relação técnico-cliente.

2 - Informativo- uma intervenção informativa tem como principais objec­

tivos, comunicar conhecimento, informação, e sentido para o cliente.

3 - Confrontação- uma intervenção caracterizada pelo confronto, tem

como principal objectivo, aumentar a consciência do cliente sobre algumas

atitudes limite ou comportamentos sobre os quais ele está relativamente

inconsciente.

A segunda árvore o autor apelidou-a de "Facilitadora". A sua caracterís­

tica principal é ser menos hierárquica que a anterior. Nesta caso o técnico

tenta capacitar o cliente a tornar-se mais autónomo e a assumir mais res­

ponsabilidade por si próprio, ajudando-o a libertar a dor emocional que blo­

queia o seu poder pessoal, promovendo a aprendizagem auto-dirigida, pro­

movendo a abertura do seu potencial espiritual, afirmando o seu valor como

um ser único. Esta árvore compreende as seguintes categorias^

4 - Catártico- uma intervenção catártica serve para capacitar o cliente

para descarregar as emoções dolorosas, o luto primário, o medo e a raiva.

5 - Catalítico'- uma intervenção catalítica serve para promover a

auto-descoberta e a capacidade de se auto-dirigir e de resolver os seus pró­

prios problemas.

6 - Suporte- uma intervenção de suporte serve para afirmar as capacida­

des e o valor das qualidades, atitudes e acções da pessoa do cliente.

De acordo com Heron (2003) a intervenção relacional terapêutica será

uma peça identificável de comportamento verbal e/ou não verbal e que se

constitui como parte do serviço que o técnico presta ao cliente. Contudo, as

referências neste modelo são essencialmente para os comportamentos ver­

bais.

De referir também que nenhum dos dois grandes modos de intervenção

(i.e., autoritário e facilitador) é preponderante ou mais ou menos útil que o

outro. Tudo depende quer do técnico, quer do doente, bem como das suas

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação / /C !

necessidades e ainda do contexto. Serão este conjunto de elementos, bem

como os valores subjacentes ao processo relacional (i.e., Hierarquia, Coope­

ração e Autonomia) que determinarão as suas características, resultantes

estas de um balanço dinâmico.

Relativamente às categorias propriamente ditas de referir que as mes­

mas são independentes entre si, contudo têm áreas de sobreposição. Por

outro lado, não existe qualquer hierarquia entre elas. Apesar disso a catalí­

tica assume­se como fundamental na actuação dos técnicos. Tal compreen­

de­se se considerarmos que ajuda, de acordo com Heron (2003), define­se

como, suportar e capacitar o benres tar de outra pessoa. Ora só poderemos

capacitar se promovermos as capacidades das pessoas.

Comparando esta estrutura conceptual com a que mais atrás propus,

resultante do estudo desenvolvido, notanrse diversas sobreposições das

quais destaco^

■S Os modos de intervenção das enfermeiras são genericamente

enquadráveis nas categorias propostas por Heron (2003).

S A combinação dinâmica de diversos elementos, entre os quais

assumem destaque os inerentes ao doente e ao contexto, são facto­

res essenciais no modo de intervenção, quer de um modelo, quer do

outro.

Entendo que por estas razões sai reforçada a estrutura conceptual pro­

posta, mas acima de tudo a estratégia de ajuda desenvolvida pelas enfermei­

ras naquele contexto. Todavia e para além disso, esta forma de encarar a

intervenção da enfermeira coloca questões que se poderão dividir em três

grupos distintos, embora inter­relacionados­'

1. A produção de investigação;

2. A formação de novos enfermeiros!

3. A formação contínua dos actuais enfermeiros;

1 ­ A produção de investigação ­ Através deste aspecto pretendo eviden­

ciar o modo como entendo que o último objectivo a que me propus inicial­

mente (i.e., contribuir para o desenvolvimento do conhecimento em enfer­

magem) se pode cumprir. Entendo que o conhecimento em enfermagem se

— _ _ ^ _ _ „ ■ _ _ — ^ . . ^ ­ . _ 354 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

pode construir a partir de muitas perspectivas (Carper, 1978), porém privi­

legio a que radica na investigação. Este privilégio justifica-se porque na

enfermagem atribuo uma importância central à intervenção clinica e esta

precisa urgentemente de ser investigada (Meleis, 1997). Este trabalho é

apenas um contributo. Precisa de ser depurado pelo tempo e pela acção criti­

ca de todos os que para isso queiram contribuir. Mas também precisa de ser

posto em causa através de novas investigações. Estas evidenciarão cada vez

mais a essência da intervenção clinica de enfermagem e contribuirão deste

modo para o desenvolvimento do conhecimento, mas também para o benr

estar das pessoas.

2 - A formação de novos enfermeiros — O anterior aspecto tem repercus­

são directa sobre este outro. E essencial que cada vez mais a formação de

novos enfermeiros, nomeadamente no que às competências clinicas diz res­

peito, assente sobre as competências de facto utilizadas pelos enfermeiros.

Para tal, torna-se necessário que aquelas sejam sistematicamente investi­

gadas. Porém, entendo que a formação deve assentar mais nas competências

complexas, do que nas competências psicomotoras. Dito por outras palavras,

entendo a formação de novos profissionais deve basear-se nas competências

usadas pelos profissionais e com base nas quais conseguem perceber de

modo dinâmico a realidade, identificar as necessidades dos utentes e selec­

cionar as acções mais adequadas a cada situação.

3- A formação contínua dos actuais enfermeiros - Algo de semelhante se

pode dizer sobre a formação contínua de actuais profissionais. Considero

fundamental que a mesma se processe através do desenvolvimento de uma

atitude auto-reflexiva e auto-crítica. Nesse processo, trabalhos como o pre­

sente podem ter um papel importante, não tanto como teoria aplicável a

novas situações, mas antes como ponto de partida para análise crítica das

intervenções e de aprendizagem com essa análise. E também como forma de

olhar para o que se faz de modo simultaneamente crítico mas positivo. Deste

modo, desenvolver-se-ia um sistema de reflexão durante a acção com base no

qual se acederia ao saber escondido no agir profissional (Schõn, 1998).

355 Dissertação de Doutoramento

Page 358: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros; Construção de uma relação

As formas de o fazer são as mais diversas, porém, destaco as propostas

por Schõn (1998):

Aprender pelo sucesso — 0 praticante pode olhar para as intervenções

que desenvolveu e que lhe pareçam ter "funcionado", tentando perceber: Em

que situação é que foi capaz de obter os resultados pretendidos ou mesmo

inventar novos objectivos e vias para os alcançar? Que é que fez efectiva­

mente nessas situações? O que é que fez com que essa acção fosse efectiva­

mente realizada?

Aprender pelo bloqueio - Este consiste num exercicio de análise das

situações em que a intervenção do praticante redundou num bloqueio. Tor-

na-se então necessário percorrer todos os passos dados na tentativa de per­

ceber onde residem as potenciais causas desse bloqueio.

Aprender pela transferência reflexiva - Este é um procedimento de

aprendizagem na medida em que a transferência, neste caso, não consiste

na reprodução de uma intervenção bem sucedida, mas antes numa reprodu­

ção reflexiva. Ou seja, ao reproduzir uma intervenção bem sucedido, volto a

analisá-la como forma de potenciar a minha aprendizagem.

Aprender pela formação profissional - Este tipo de aprendizagem consis­

te na utilização de um profissional detentor de determinada competência no

ensino da mesma.

Reconstruir a relação entre investigador e praticante - Pelo que já disse

acerca do potencial papel deste trabalho no contexto da formação contínua

dos actuais profissionais, subentende-se que a relação entre investigador e

investigado precisa de assentar em pressupostos diferentes. Dito por outras

palavras, para que o trabalho do investigador contribua para o desenvolvi­

mento de competências dos investigados, não é possível desenvolver investi­

gação assente no pressuposto de que o investigado é aquele que aplica uma

determinada teoria à prática, mas antes o que consegue compreende-la e

recriar novas formas de lidar com ela. Deste modo, o prático é aquele que

desenvolve novas competências e o investigador aquele que poderá contri­

buir para as desvelar.

= = = = = = = _ = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = _ = 3 5 6

Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

357 ========================================== Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

3 81 ========================================== Dissertação de Doutoramento

Page 384: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ANEXOS

■ ­ _ ­ ■ _ — ­ ­ — _ — _ _ _ _ . _ . . 3 8 2

Page 385: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

383 ==================================================================== Dissertação de Doutoramento

Page 386: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ANEXO I ■ GUIÃO DE ENTREVISTA ÀS ENFERMEIRAS INTRODUÇÃO COMENTÁRIOS

1 ­ Explicação sumária do trabalho que estou a

desenvolver.

Variável, em fun­

ção do conhecimen­

to que a enfermeira já tiver destes ele­

mentos. 2 ­ Explicação da entrevista considerando:

S Os objectivos

S A minha função durante a entrevista

•S A estrutura

■S A gravação dos dados

•f 0 t ratamento dos dados

■S A confidencialidade

Variável, em fun­

ção do conhecimen­

to que a enfermeira já tiver destes ele­

mentos.

3 ­ Solicitação e registo da autorização para a realiza­

ção da entrevista e para a sua gravação.

Gravar declaração de autorização.

FASE NARRATIVA

Objectivo^

Obter narração factual e cronológica dos acontecimentos.

Postura'­

Emitir sinais ver­

bais e não verbais de atenção e com­

preensão. Solicitar esclareci­

mentos apenas relacionados com a compreensão fac­

tual da história.

Questões:

No decurso da sua experiência de prestação de cuida­

dos, teve com certeza diversas experiências relacio­

nais com doentes.

0 que lhe peço é que, escolha uma dessas experiên­

cias que considere que foi importante, do ponto de

vista terapêutico, para o doente e que ma relate, des­

de o seu início ao fim.

Postura'­

Emitir sinais ver­

bais e não verbais de atenção e com­

preensão. Solicitar esclareci­

mentos apenas relacionados com a compreensão fac­

tual da história.

FASE DE BALANÇO

Objectivo^

Compreender as razões da escolha e a consciência do

processo.

Postura'­

Acrescentar outras perguntas conside­

radas pertinentes, considerando o objectivo e basea ­das na história relatada.

Que razões a levaram a escolher esta experiência

para relatar?

Porque é que considera que esta relação foi importan­

te para o doente?

Postura'­

Acrescentar outras perguntas conside­

radas pertinentes, considerando o objectivo e basea ­das na história relatada.

Dissertação de Doutoramento

Page 387: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

ANEXO II ­ GUIÃO DE ENTREVISTA AOS DOENTES E FAMILIARES INTRODUÇÃO COMENTÁRIOS

1 ­ Explicação sumária do trabalho que estou a

desenvolver.

Detalhado e em linguagem com ­preensível. Sublinhar que não se pretende avaliar o trabalho das enfermeiras. Sublinhar o trata­

mento dos dados e assegurar pessoal­

mente a confiden­

cialidade.

2 ­ Explicação da entrevista considerando:

■f Os objectivos

■S A minha função durante a entrevista

■S A estrutura

S A gravação dos dados

S 0 tratamento dos dados

•S A confidencialidade

Detalhado e em linguagem com ­preensível. Sublinhar que não se pretende avaliar o trabalho das enfermeiras. Sublinhar o trata­

mento dos dados e assegurar pessoal­

mente a confiden­

cialidade.

3 ­ Solicitação e registo da autorização para a realiza­

ção da entrevista e para a sua gravação.

Gravar declaração de autorização.

FASE NARRATIVA

Objectivo:

Obter narração factual e cronológica dos acontecimentos.

Postura'­

­ Emitir sinais ver­

bais e não verbais de atenção e com­

preensão. ­ Solicitar esclare­

cimentos relacio­

nados com a com­

preensão factual da história. ­ Ajudar com per­

guntas de continui­

dade se necessário. ­ Aceitar relato de relação com as enfermeiras.

Questões:

No decurso da sua experiência neste serviço, relacio­

nou­se com certeza com diversas enfermeiras.

0 que lhe peço é que, escolha uma dessas experiên­

cias que considere que foi importante para si, ou seja,

que o ajudou, e que ma relate, desde o seu início ao

fim.

Postura'­

­ Emitir sinais ver­

bais e não verbais de atenção e com­

preensão. ­ Solicitar esclare­

cimentos relacio­

nados com a com­

preensão factual da história. ­ Ajudar com per­

guntas de continui­

dade se necessário. ­ Aceitar relato de relação com as enfermeiras.

385 ========================================== Dissertação de Doutoramento

Page 388: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação

GUIÃO DE ENTREVISTA AOS DOENTES E FAMILIARES (Cont.) FASE DE BALANÇO

Objectivo-

Compreender as razões da escolha.

Identificar as razões da importância da ajuda.

Postura? Acrescentar outras perguntas conside­radas pertinentes, considerando o objectivo e basea­das na história relatada. Se o relato não foi personaliza do, identificar factores indicativos de pre­ferência relacional e confrontar doente com os mesmos.

Que razões a levaram a escolher esta experiência

para relatar?

Porque é que considera que esta relação foi importan­

te para si?

Postura? Acrescentar outras perguntas conside­radas pertinentes, considerando o objectivo e basea­das na história relatada. Se o relato não foi personaliza do, identificar factores indicativos de pre­ferência relacional e confrontar doente com os mesmos.

Dissertação de Doutoramento

Page 389: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

LOCAIS A OBSER­

VAR

ANEXO III - GUIÃO DE OBSERVAÇÃO Das 8h45m até à chamada para a quimioterapia (cerca das 9hl5m) - Sala de Estar dos doentes. Após a chamada dos doentes - Salas de quimioterapia. Em situações excepcionais — Corredores e outros espaços.

O »<3

Î CG

H

Usar roupa discreta e cuidada (combinado com as enfermeiras o não uso de qualquer farda); Ir munido de um pequeno bloco de apontamentos e material de escrita. Informar todos os novos doentes da minha presença durante a entrevista de admissão (procedimento a desenvolver pelas enfer­meiras). Informar paulatinamente os doentes habituais (procedimento a desenvolver pelas enfermeiras). Fazer cumprimento social à chegada (bonrdia). Sentar-me discretamente no canto menos ocupado e frequentado pelos doentes. Permanecer em silêncio. Responder a cumprimento social. Não suscitar interacção. Tomar notas se necessário, mas discretamente. Levantar-me, aproximar-me e posicionar-me discretamente, à chegada das enfermeiras à sala de espera. Cumprimento social discreto às enfermeiras. Acompanhar o movimento dos doentes e enfermeiras em direcção às salas. Assumir posição mais ou menos fixa, a partir da qual possa ver tudo o que se passa na sala. Manter-me em silêncio e concentrado nas interacções (quase como se fosse invisível). Não interferir, nem com as interacções, nem com os cuidados; Fazer registos de modo discreto; Não exibir os registos; Estar atento principalmente à interacção entre enfermeiras e doentes; Estar atento às interacções de continuidade. Estar atento aos movimentos dos doentes, dos familiares e das enfermeiras. Se for necessário ir observar uma interacção noutro espaço, usar de discrição e bom senso (não prejudicar ninguém). Fazer descrições das interacções ocorridas, considerando os tópi-

REGIS- cos e as orientações abaixo descriminadas. ' "'- ' Acrescentar todos os aspectos considerados pertinentes e úteis à

compreensão do fenómeno em estudo.

387 Dissertação de Doutoramento

Page 390: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

GUIÃO DE OBSERVAÇÃO ANTES DA CHEGADA DAS ENFERMEIRAS: A INTERACÇÃO:

•S Distribuição de doentes na sala; S Aspecto dos doentes,' S Interacção entre doentes e respectivos familiares; S Interacção entre doentes; •S Interacção entre familiares.

CONTEXTO •S Nivel de ruido S Televisores ou outros aparelhos audiovisuais; / Impressão gestáltica.

A CHEGADA DAS ENFERMEIRAS: Observar a interacção entre doentes/familiares e enfermeiras, no momento em que estas atravessam a sala de espera vindas da sala do café, em direcção às salas de quimioterapia (ATENÇÃO ESPECIAL ÀS INTERACÇÕES DE CONTINUIDA­

DE):

1 AS ENFERMEIRAS:

1 s w

S Como entram na sala (expressão facial, interacção entre £ s

w elas)?

(3 03 CG S Como cumprimentam (cumprimento geral ou personalizado, PQ

CG verbal e/ou outro)?

O Q

S Como falam (expressão verbal e não verbal)? Durante quanto M

Q tempo?

O H •S Com quem falam? O CG S Falam em andamento ou param a falar? PH ã S Aproximanrse ou falam à distância? Tocam­se? Como? Quem CG ã

toma a iniciativa? S Sobre o que falam? Dão ordens? Tomam decisões? Quais?

OS DOENTES: S Qual a reacção dos doentes à entrada das enfermeiras

(expressões)? S Aproximanrse ou são indiferentes? S Cumprimentam­nas? Como? ■S Falam com as enfermeiras? Sobre o que falam? S Têm participação activa ou passiva na conversação? ■S 0 que fazem a seguir à interacção?

OS FAMILIARES S Qual a reacção dos familiares à entrada das enfermeiras? S Aproximanrse ou são indiferentes? S Cumprimentam as enfermeiras? Como? ■S Falam com as enfermeiras? Sobre o que falam? S Têm participação activa ou passiva na conversação?

0 CONTEXTO: S Nível de ruído S Impressão gestáltica !

Dissertação de Doutoramento

A

Page 391: os utentes e os enfermeiros: construção de uma relação

Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação

GUIÃO DE OBSERVAÇÃO

H ui PQ O < m O w PH <

A CHEGADA DOS DOENTES: S Escolhem a sala? E o lugar? S Vêm sozinhos? S Como se apresentam (aspecto geral, fácies, ...)? •S Cumprimentam (expressões verbais e não verbais usadas)? ■S A enfermeira, como os recebe (atitude, postura, expressões ver­

bais e não verbais, postura ...)? S Cumprimenta­os? Sobre o que falam à chegada? Deixa­os esco­

lher o lugar? S Existe continuidade face a interacções anteriores?

INTERACÇÃO ANTES DA COLOCAÇÃO DA QUIMIOTERAPIA: ■S O que faz a enfermeira enquanto não aplica a quimioterapia?

Com quem fala? Sobre o quê? Quem toma a iniciativa da interacção enfermeira­doente? O que a motiva? O que é que o doente faz? Com quem fala? Sobre o que fala? Quem toma a iniciativa? Existe continuidade face a interacções anteriores?

INTERACÇÃO DURANTE A COLOCAÇÃO DA QUIMIOTERAPIA: •S O que faz a enfermeira enquanto a aplica a quimioterapia?

Com quem fala? Sobre o quê? Quem toma a iniciativa da interacção? O que a motiva? O que é que o doente faz? Com quem fala? Sobre o que fala? Qual o tom de voz? A conversação é pública ou privada? Qual o grau de proximidade? Existe toque? De que natureza? Existe continuidade face a interacções anteriores?

APÓS A COLOCAÇÃO DA QUIMIOTERAPIA: S O que faz a enfermeira após a aplicação da quimioterapia?

Com quem fala? Sobre o quê? Quem toma a iniciativa da interacção? O que a motiva? O que faz o doente? Com quem fala? Sobre o que fala? Qual o tom de voz? A conversação é pública ou privada? Qual o grau de proximidade? Existe toque? De que natureza? Existe continuidade face a interacções anteriores?

À DESPEDIDA: •S Como se despedem? Do que falam? S_ Qual a atitude da enfermeira? E do doente?

O CONTEXTO: Presença de outros actores:

S Quais? Qual a sua função? Com quem interagem? ■S Qual o papel e a atitude do doente face a esses outros actores? •/ Qual o papel e a atitude das enfermeiras face a esses outros

actores? Presença de outros factores (televisão, revistas, jornais, ...) Impressão gestáltica do contexto da sala de quimioterapia

S Na presença de doentes e enfermeiras; •S Só com os doentes e na ausência das enfermeiras;

/

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389 Dissertação de Doutoramento

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Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação

GUIÃO DE OBSERVAÇÃO A

SPEC

TOS

A O

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R

Nos

cor

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paço

s

Que interacções decorrem nos corredores? Quem as solicita? Quais os objectivos? Têm alguma continuidade face a interacções anterio­res? Como se caracterizam?

S Qual o tom de voz? •S Qual o assunto? S Qual o grau de proximidade entre os interlocu­

tores?

CRITÉRIOS DE DECISÃO

Critérios de esco­lha de sala

Ocupação da sala - Considerar não só a lotação mas também durante quanto tempo vai estar ocupada. Presença de doentes e/ou de enfermeiras e/ou de pares de interacção que pretenda observar em conti­nuidade de observações anteriores.

Critérios para mudança de sala durante um período de obser­vação

Chegada de doentes cuja interacção com a enfermei­ra presente nessa sala pretenda observar. Percepção da probabilidade de ocorrência de interac­ções de continuidade consideradas relevantes. Percepção da ocorrência de situações consideradas relevantes (chegada de doente especialmente careci­do de intervenção relacional, agravamento da situa­ção de um doente, desencadeamento de interacção relevante entre os diversos actores...)

Critérios para seguir enfermeira para outro contex­to que não as salas de quimiote­rapia

Percepção de solicitação à enfermeira para interacção privada. Percepção da presença de doente ou familiar carecido de interacção. Percepção de possibilidade de ocorrência de interac­

ções de continuidade entre a enfermeira e o doente ou familiar. Percepção de ocorrência extraordinária que justifique uma intervenção excepcional da enfermeira.

Dissertação de Doutoramento

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