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Paulo Lucas

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Paulo Lucas

OS TRABALHADORES

SUBMUNDO A Servidão Subterrânea

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Os Trabalhadores do Submundo

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Os Trabalhadores do Submundo

A Servidão Subterrânea

Paulo Lucas

Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens, organizações,

e eventos mostrados nesta novela são produtos da imaginação do

autor ou são usados de forma fictícia.

Os Trabalhadores do Submundo

A Servidão Subterrânea

Paulo Lucas

Todos os direitos reservados

Publicado pela Perse

São Paulo, SP.

www.perse.com.br

1ª Edição: Janeiro de 2013

Impresso no Brasil

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Prefácio do Autor

Escrever um livro é literalmente ficar doidão. Você passa

noites em claro pensando no que vai escrever, e no outro dia a

gente fica um bagaço. Ficamos pensativos de olhos vidrados

quando andamos de ônibus. As pessoas olham para gente de

forma estranha, achando que a gente tá doido. Isso acontece,

porque o escritor vive a história dentro da cabeça dele primeiro,

para depois colocá-la no papel.

E ainda mais: escrever ficção científica não é fácil. Por mais

que uma história seja simples do ponto de vista de quem a lê.

Escrever uma história e torná-la coerente e legível; demanda

tempo, canseira e muitas horas junto a um terminal de

computador. Devo falar também que um escritor tem que

conciliar seu trabalho de ganhar o pão com a arte de escrever. E

às vezes sobra muito pouco tempo para escrever, quando não se

vive só de escrever.

Os escritores sofrem para conciliar sua arte; para achar tempo

para ficar com suas mulheres, e nem sempre elas têm paciência

com aqueles que escrevem. Dificilmente se encontrará uma

mulher que não torça o lábio quando chega à casa de seu

namorado, e o encontra chafurdando no teclado do computar

escrevendo sua história.

É preciso muita paciência e perseverança quando um escritor

novato como eu, vive num ambiente que não é de pessoas dadas

à literatura. Quando se vive rodeado de pessoas que nunca leram

um livro e vão morrer sem colocar as mãos em um. É uma luta

tremenda contra a maré de desânimo. E isso é muito comum em

nosso país; com as pessoas que preferem passar horas na frente

da televisão assistindo novelas, matanças ou destruição. Em

veículos de comunicação que na verdade são ruins à beça.

A grande maioria das pessoas acha que, aqueles que passam

seu tempo lendo um livro ou escrevendo, são uns verdadeiros

panacas. E o público feminino é a maioria nesse público. As

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pessoas acham que seria muito melhor, se gastássemos nosso

tempo nas baladas ou outras porcarias quaisquer. Enfim,

escrever neste país é dar murro em ponta de faca e como isso

dói. Pois não há o incentivo para aqueles que estão se iniciando

na arte da literatura.

Mas uma história é como um bebezinho que vai sendo gerado

aos poucos no útero. Vai se formando lentamente, lentamente e

de repente... Bingo! Você tem dentro da cabeça uma história

para contar. Louca para sair e ganhar vida se transformando em

caracteres, palavras e frases inteiras. Esse processo é tão

poderoso que a gente chega a perder o sono, e a coisa só

melhora quando colocamos a coisa no papel.

Uma história é como se um universo inteiro cheio gritasse

para ganhar vida. Como se fosse um Big Bang primordial

querendo explodir para se transformar nos milhões de galáxias e

estrelas. E à medida que vamos escrevendo; tudo isso vai

tomando corpo e crescendo de uma forma extraordinária. Com

personagens e paisagens. Ações de indivíduos que são nossos

filhos por assim dizer. Pois eles são formados e criados dentro

de nossas cabeças.

Apesar das dificuldades e das barreiras, acho que a arte de

escrever é deliciosa. É uma arte que surgiu com a escrita da

Suméria na Mesopotâmia; permitindo que as pessoas falassem

sobre o mundo a sua volta, sobre sua religião e suas ideias em

geral. O comércio e a religião foram os que mais se

beneficiaram com a arte de escrever. Já imaginou como seria o

mundo se não houvesse a escrita? Como seriam as teologias

religiosas se não existisse a escrita? Ainda estaríamos no

Neolítico como os nossos indígenas atuais.

Um livro nos permite falar com um escritor que morreu há

décadas atrás ou até milênios. É como se ouvíssemos sua voz

falando dentro de nossas cabeças, nos contando coisas sobre o

que ele pensava. Ouvimos seus conceitos, suas ideias e suas

crenças e sobre o mundo do seu tempo. Nenhuma civilização

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vive sem livros, é tolice achar que isso seja possível. O país que

dá pouco valor à educação e aos livros; vive assim como o

nosso. Com hordas de bárbaros dirigindo automóveis nas ruas,

adolescentes cruéis armados nas favelas e nas casas

correcionais. Sou leigo em psicologia e não entendo bulhufas de

psicoterapia. Mas acredito que a mente dessas hordas de

bárbaros criminosos que andam pelas ruas, são completamente

ausentes de imaginação e fantasia. São pessoas com a mente

cheia de perversidade, e vazia de boas maneiras. Acredito que

sejam pessoas que nunca pegaram num livro para ler. Elas

gastam seu tempo maquinando crimes, perversidades e como

tirar proveito dos outros. É como se a gente os ouvisse rindo

atrás de nossas costas, dizendo: É grana fácil mano! É isso que

importa brou! O resto que se dane!

A literatura desenvolve em nós a fantasia, a imaginação e o

gosto pela vida. Tornamo-nos sonhadores acordados, com

olhinhos brilhando porque lemos uma boa história. E com isso,

não temos tempo para encher nossas cabecinhas com besteiras,

crimes ou violências. É justamente o que falta em nossa cultura

brasileira: livros, muitos livros. Esta nação precisa desenvolver

o gosto pela leitura. E quando isso acontecer, quando os

brasileiros passarem a ler mais, as coisas vão realmente começar

a melhor.

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Sumário 1- Marcos Horácio

2- Civilização Subterrânea

3- Sandoval Mendes

4- À volta para casa

5- O lado sombrio de Sandoval

6- O fim de Miranda e Sheila

7- A descoberta do corredor escuro

8- Cobaias Trabas

9- A sacada

10- Se disfarçando

11- A polícia age

12- Lendro presta ajuda

13- O interrogatório G-12

14- A rede de túneis

15- Marcos é preso

16- Na cela como um animal

17- Agente involuntário

18- A superfície

19- O monumento e a fera branca

20- A nave caída

21- A ponte arruinada e os lagartos

22- O despertar do Tathi

23- De novo em Esperança

24- O Robô Defeituoso

25- A Mente e o Andróide

26- Os Zumbis Cibernéticos

27- O Tathi foge

28- Na Positrônica Mendes

29- Zacharias

30- O Velho Magistrado

31- Rumo à cidadela do Tathi

32- A Queda de Sandoval

33- Os Robôs RCDA-344

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34- Ante as Portas de Esperança

35- Dara

36- O Ataque começa

37- A Revolta do Submundo

38- Na Emissora de TV

39- O Triunvirato depõe o Conselho

40- Nasce a Colônia na Superfície

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Dedico este livro ao meu amado filho Paulo Alexandre.

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Marcos Horácio

Eram quase três horas da manhã e Marcos Horácio Gomes

ainda não conseguira dormir nem um pouco. Da pequena janela

do cômodo exíguo, podia ouvir o som do metrô Maglev batendo

suavemente em seu campo suspensor sobre os trilhos. Um som

que tinha um ritmo cadenciado, como se trouxesse uma

mensagem repetitiva de tristeza.

Ele era um sujeito alto de cabelos castanhos. No momento

estavam quase raspados devido ao surto de piolhos que surgira

no setor onde vivia. Se observássemos com cuidado, veríamos

que ele era magro demais e pálido como um defunto. Mas até aí

tudo bem; todos os moradores do setor habitacional Alvorada

tinham aquela palidez mórbida e aquela magreza. Suas roupas

consistiam em uma camisa bege, e uma calça de tecido grosso

de algodão parecendo que fora azul escura algum dia. No

momento suas roupas estavam tão gastas e velhas que, muitos as

considerariam pano de chão. Seus pés estavam metidos em

sandálias alpercatas de couro curtido de aparência escura devido

ao uso constante.

Ele era casado e tinha uma filha de quatro anos de idade. No

momento mãe e filha estavam deitadas na cama de casal no

aposento que servia como dormitório. Ao casar com Miranda,

Marcos recebera a moradia de dois cômodos da Autoridade

Setorial. Os cômodos eram estreitos e abafados. O quarto tinha a

cama de casal e um guarda-roupa de compensado. A pequena

cozinha tinha um fogão de duas bocas com uma mesa e duas

cadeiras. E para cobrir tudo, os cômodos tinham uma pintura na

tonalidade cinza que contribuía para deixar a moradia bem

sombria.

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Assim como todos os moradores do setor Alvorada, Marcos e

sua família deviam usar os banheiros públicos. E participar do

rodízio de faxina quando chegasse a vez deles. Lá fora algumas

pessoas vinham pela via de acesso, talvez de algum turno de

trabalho das inúmeras usinas de processamento. Figuras

embuçadas em roupas escuras, tão escuras quanto os edifícios à

volta deles. Em um dos cantos da rua semiescura, uma luminária

piscou momentaneamente embaçada por vapores que saía da

tubulação ali perto.

―São hamsteres numa gaiola!‖ — disse alguém na mente de

Marcos. Ele estremeceu assustado com aquele pensamento

alienígena intrometido. ―Hamsteres eternamente rolando na

rodinha dentro da gaiola!‖. Por um momento, Marcos sentiu

como se aquela voz interna gemesse como que expressando uma

canseira infinita. Nunca tinha pensado aquilo. Sabia o que eram

os ratinhos hamsteres, mas nunca os comparara com pessoas.

Aquela voz interna lhe parecia mais do que um simples

pensamento. Pensando bem, sabia que a voz mental sempre o

acompanhara desde a mais tenra infância. Ela falara com ele, o

aconselhara e o repreendera quando fizera alguma coisa errada.

O poder da voz melhorava no silêncio da noite, sempre fora

assim.

O turno de trabalho de Marcos começaria às oito horas da

manhã, mas ainda não sentia nenhum sono. A vida de rotina,

que ele e a maioria da população pobre da cidade subterrânea de

Esperança viviam os deixava doente de uma maneira

inexplicável. Tudo era feito de um cinza escuro, sem atenuantes

para que os olhos pudessem se refrescar nas variadas cores do

espectro. A única exceção era o solário público com árvores e

um céu azul artificial. Mas vivia tão lotado que quase não se

conseguia achar um lugar para pisar. Era tão cansativo conseguir

um lugar no solário, que nem valia a pena o esforço.

O setor habitacional Alvorada era uma gigantesca caverna de

teto muito alto escavada na rocha. O complexo possuía uma

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linha de metrô Maglev com acesso para diversos centros fabris

ramificados. A maioria dos edifícios era de sete andares com

apartamentos de dois ou três cômodos. Foram construídos para

abrigar os moradores que trabalhavam em turnos de oito horas

nas usinas de beneficiamento; na produção de bens alimentícios

e outros materiais.

Cada morador não só deste setor como os de outros, recebia

uma cesta com alimentos e produtos de higiene que às vezes mal

dava para o mês inteiro. Também tinham um tipo de cartão

magnético onde recebiam certa quantia em créditos para outras

despesas. Algo que era parecido com um salário mensal. No

setor havia uma biblioteca, um templo religioso ecumênico, um

posto de saúde e um centro holográfico onde os moradores

podiam assistir aos filmes. Por quase todos os lugares estavam

as holotelas exibindo a programação dos canais da TV estatal.

Tudo era controlado e fiscalizado pela polícia da cidade de

Esperança. Os menores crimes e infrações eram severamente

punidos. Dependendo da situação, o cidadão ganhava uma pena

de morte imediatamente e sem apelações. Aqui não havia

defensores públicos e nem advogados. A lei de Esperança era

dura e implacável.

A informação que os moradores dos setores habitacionais

recebiam era plenamente controlada. Tudo era filtrado pelo

Departamento de Informação. Agrupamentos com mais de vinte

pessoas eram extremamente proibidos. Geralmente as

conversações eram em voz baixa para não chamar a atenção de

alguém. Afinal de contas, algum policial do Olho Público

poderia estar lhe observando, e você ganhava uma passagem até

o escritório mais próximo para dar explicações.

Gritaria e vozes altas vieram de um lugar ali perto e tiraram

Marcos de seus pensamentos tristes e sombrios. Imediatamente

lhe pareceu que alguém estava chorando e gritando. Com muito

cuidado, ele afastou as cortinas da pequena janela e olhou na

direção de onde se originara a algazarra. Inconscientemente ele

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acabou coçando a cabeça num gesto de preocupação.

Definitivamente alguém estava chorando e implorando por ajuda

na rua lá embaixo.

Do outro lado da rua, no outro bloco de apartamentos, uma

mulher estava sendo arrastada pelos policiais do Olho Público.

O marido e o filho imploravam desesperados para que ela não

fosse levada. Marcos contou cinco policiais fortemente armados

com o que pareciam ser bastões de choque. Um deles que era de

estatura bem alta arrastava a mulher pelos cabelos. Na frente da

habitação uma esguia viatura elétrica do Olho aguardava com

seu giroflex brilhando. Produzindo fachos fantasmagóricos de

luz vermelha que dançavam nas paredes escuras das habitações

em volta. Pessoas que vinham de seus turnos de trabalho

começaram a se desviar dali. Era perceptível que aquelas

pessoas não queriam chamar a atenção dos homens do órgão

público de segurança.

O marido tentou esboçar alguma reação mais séria, mas logo

foi contido por uma chuva de cacetadas e choques dos bastões

dos policiais. O homem foi ao chão desmaiado. O filho pequeno

ficou perto dele chorando e tentando acordá-lo. Logo os

brutamontes colocaram a mulher no compartimento traseiro da

viatura de um jeito não muito delicado. Ela foi praticamente

jogada lá dentro como um saco de batatas. Nos outros

apartamentos próximos as cortinas de muitas janelas se

remexeram discretamente, mas evidentemente nenhuma luz foi

acesa. Assim como Marcos os moradores tentavam ver o que

acontecia, e a ação disso eram às escuras cortinas se mexendo

nas janelas.

Os homens do Olho Público nem se importaram com o

marido que ficara caído no chão desacordado. Marcos sabia que

ninguém no setor moveria um dedo sequer para ajudá-lo. Quem

era louco? Abatido pelo o que tinha assistido, ele nem percebeu

a aproximação de sua jovem esposa.

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— Oh, querido você ainda não dormiu? Tem alguma coisa

errada com você? — disse ela carinhosamente.

Marcos se virou e encarou o belo rosto dela. Miranda era

ruiva e tinha os cabelos cortados bem rentes. Seus olhos eram

duas gemas verdes esmeraldinas. Aqueles olhos eram a única

fonte de vida que trazia cor para o mundo úmido e sombrio de

Alvorada. Dois fogos verdes que lhe aquecia enchendo o

coração de alento. Marcos a abraçou e a beijou na testa.

Miranda pôs uma cálida mão na nuca semi-raspada do

marido. — Você está tão abatido ultimamente amor. O que há

com você? Dorme muito pouco e mal come os alimentos nas

refeições. Você está doente?

Marcos suspirou cansado. — Agora pouco os policiais do

Olho arrastaram uma mulher de sua casa, e ainda bateram no

marido dela. Quando a levaram, o que restou foi uma criança

chorando sobre o corpo desfalecido do pai... Deus! Por que os

governantes nos tratam como animais? O que nós fizemos para

viver assim? Com pouca comida, roupas velhas e excesso de

trabalho nas fábricas...

Miranda olhou assustada para a janela da cozinha. — Chiii!

Fale baixo Marcos! Você quer que alguém escute? Você quer

que Sheila cresça sem pai? Você sabe muito bem o que acontece

com os descontentes, não é?

— Eu sei... Desculpe-me eu perdi o controle... Eu sei o que

acontece com eles. Eles desaparecem misteriosamente e

ninguém sabe para onde vão, não é? — ele acrescentou abatido.

Os olhos de Marcos estavam avermelhados não somente pelo

cansaço, como também pela amargura que sentia. Miranda sabia

que o marido estava muito triste e abatido ultimamente, e

definitivamente não sabia o que fazer para agradá-lo. Ela tinha

medo que ele ficasse doente, ou que enlouquecesse como

acontecia comumente com os moradores de muitos setores.

Eram comuns as cenas com os enfermeiros colocando as pessoas

nas viaturas brancas do Departamento Médico. O pior era que

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ninguém sabia para onde aqueles doentes eram levados. A

certeza que se tinha era que ninguém jamais os vira novamente.

Querendo tirar o marido daqueles pensamentos pesarosos,

Miranda sorriu e disse. — Sabe amor, eu tive um sonho tão

lindo. Você quer que eu conte?

— Conte querida, por favor. — Marcos disse sem muito

entusiasmo, em seguida pegou um copo de água na pia.

— Eu sonhei que estava andando com Sheila em um campo

cheio de grama verde, aqui e acolá árvores muito altas eram

agitadas pelo vento. O que mais era lindo no sonho era que o

céu estava azul, muito azul e o sol brilhava bem lá em cima. —

o rosto caucasiano estreito de Miranda brilhou num sorriso de

felicidade.

Marcos escutou pacientemente a jovem esposa. Ficou

pensando como é que ela ainda tinha ânimo para sorrir naquele

mundo cinza subterrâneo. Num mundo onde as pessoas eram

levadas no meio da noite gritando por ajuda. Aparentemente

Miranda não se deixava afetar pelo o que havia a sua volta. Ela

tinha muita força vital capaz de fazê-la viver plenamente mesmo

na adversidade. Tinha força vital, ou era outra coisa qualquer...

Era isso que Marcos quis saber.

O casal ficou conversando mais alguns minutos até que

finalmente Miranda fez com que o marido fosse se deitar. A

pequena Sheila ressonava tranquilamente alheia aos problemas

psicológicos do pai. Por um momento o amoroso pai ficou

contemplando aquela coisinha ruiva que ressonava. Por um

breve instante se esqueceu do mundo sombrio a sua volta.

Acima das cabeças deles, o cronógrafo digital embutido na

parede de concreto mostrava as horas e a data. Os números do

mostrador lançavam uma suave luz avermelhada sobre a

cabeceira da cama do casal.

Às seis horas da manhã o cronógrafo os despertou com uma

melodia insossa. Algo que devido ao infame trabalho de

despertar os humanos, se tornara desagradável ao longo do

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tempo. Marcos se levantou e foi ao banheiro público fazer sua

higiene matinal, enquanto Miranda faria o mingau de proteínas e

cereais. Miranda só iria trabalhar as oito e trinta, mas antes disso

levaria Sheila para a Escola Educacional onde a pegaria

novamente às dezoito horas.

Assim que ele voltou, se sentou à mesa junto com a pequena

Sheila. Começou a comer o mingau matinal sem muito apetite.

Miranda tinha ido ao banheiro público. Revirando o mingau

amarelado, Marcos ficou dando tratos à bola para saber de onde

vinha o farelo de cereal para fazer aquela insossa refeição

matinal. Tinha certeza que o leite sintético vinha de uma das

fábricas daqui mesmo. De fato nunca vira uma plantação de

cereais, só sabia o que eram porque tinha visto uma através de

fotos dos hololivros e filmes. Mesmo assim, desde a mais tenra

idade ele se alimentara com o mingau matinal de cereal. E

depois que comia a singela refeição ele e todo mundo se sentiam

bem alegres e dispostos. Como se todos esquecessem dos

problemas e a vida fosse maravilhosa. Ele e toda a população

dos setores habitacionais sentiam a mesma coisa após cada

refeição. Depois que o mingau passeou desagradavelmente no

interior da boca e foi engolido, ele foi lavar o prato metálico na

pequena pia. Logo Miranda chegou e Marcos abraçou a pequena

Sheila para poder partir.

— Você ama o papai, meu docinho?

— Eu te amo papai. — Sheila abraçou o pescoço do pai e o

beijou na bochecha. Miranda observava extasiada de felicidade.

Adorava aqueles momentos felizes onde seu homem sorria com

um semblante completamente diferente. Momentos como aquele

era um alívio nesta época em que ele andava muito triste e

abatido. Depois de beijar a esposa e se despedir dela, o marido

deixou o apartamento térreo. Suas roupas de sair eram feitas de

uma fibra que imitava algodão. Composta de uma calça bege

clara, camisa branca e uma jaqueta simples de cor azul

esmaecido. E para completar o figurino triste ele usava um boné