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OS TERRITÓRIOS-REDE A INTELIGÊNCIA TERRITORIAL DA 2.ª RURALIDADE

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OS TERRITÓRIOS-REDE

A INTELIGÊNCIA TERRITORIAL

DA 2.ª RURALIDADE

António Covas

Maria das Mercês Covas

OS TERRITÓRIOS-REDE

A INTELIGÊNCIA TERRITORIAL

DA 2.ª RURALIDADE

Edições Colibri

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação COVAS, António, 1953- , e outro Os territórios-rede : a inteligência territorial da 2ª ruralidade / António Covas, Maria das Mercês Covas. – (Extra-colecção) ISBN 978-989-689-423-8 I – COVAS, Maria das Mercês, 1954- CDU 332

Título: Os territórios-rede. A inteligência territorial da 2.ª ruralidade

Autores: António Covas e Maria das Mercês Covas

Editor: Fernando Mão de Ferro

Capa: Raquel Ferreira

Depósito legal n.º 378 208/14

Lisboa, Julho de 2014 Este livro está escrito de acordo com a antiga ortografia.

À nossa filha

ÍNDICE DE MATÉRIAS

Nota Prévia........................................................................................................ 15

Introdução geral: a construção social dos territórios-rede da 2ª rura-

lidade ............................................................................................................ 17

I Parte

UM NOVO CONTRATO SOCIAL

PARA OS TERRITÓRIOS-REDE DA 2.ª RURALIDADE

Introdução ......................................................................................................... 29

1. A declaração de princípios do movimento da 2.ª ruralidade................... 30

1.1. O ciclo de vida dos territórios, dissolução e recreação de sentido........ 31

1.2. A declaração de princípios do movimento da 2.ª ruralidade................. 32

1.3. A microgeoeconomia das baixas densidades ........................................ 36

2. Os territórios-rede, uma nova região cognitiva em formação................... 41

2.1. A natureza do policy-problem do território-rede .................................. 42

2.2. A transição cognitiva do território-zona para o território-rede............ 45

2.3. A tensão política e a violência simbólica do processo de transição......... 47

3. Multifuncionalidade e bens de mérito, a base do novo contrato

social........................................................................................................ 48

3.1. O contributo da teoria positiva da multifuncionalidade........................ 49

8 Os territórios-rede

3.2. O contributo da teoria normativa da multifuncionalidade .................... 55

3.3. O contributo dos bens de mérito para um novo contrato social ............ 58

Conclusão .......................................................................................................... 66

II Parte

A BASE AGROECOLÓGICA DA 2.ª RURALIDADE:

A 3.ª REVOLUÇÃO VERDE (3.ª RV)

Introdução ......................................................................................................... 69

4. O contributo da teoria da modernização ecológica (2.ª Revolução

Verde) ........................................................................................................... 69

4.1. O capitalismo verde e as teses sobre a modernização ecológica........... 70

4.2. As principais críticas à teoria da modernização ecológica.................... 74

4.3. A revisão da teoria à luz do desenvolvimento sustentável.................... 78

5. A 3.ª revolução verde, a longa transição agroecossistémica .................... 86

5.1. As dúvidas herdadas acerca da transição biotecnológica..................... 86

5.2. A relevância da abordagem agroecológica e ecossistémica.................. 91

5.3. O processo de transição e conversão agroecológica e ecossistémica....... 96

6. Uma biopolítica da paisagem: o contributo do arquitecto Gonçalo

Ribeiro Telles (GRT)............................................................................ 102

6.1. A filosofia e a política da paisagem em GRT...................................... 102

6.2. O universo conceptual e normativo em GRT ...................................... 109

6.3. O plano verde e a ecopolis da 2.ª ruralidade ....................................... 115

Conclusão ........................................................................................................ 127

António Covas e Maria das Mercês Covas 9

III Parte

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS TERRITÓRIOS-REDE

DA 2.ª RURALIDADE (2.ª R)

Introdução ....................................................................................................... 129

7. A dinâmica territorial e a construção social dos territórios-rede

da 2.ª ruralidade................................................................................... 131

7.1. A reconsideração do “problema rural” ............................................... 131

7.2. O universo conceptual dos territórios-rede e a teoria social .............. 138

7.3. Um quadro analítico, topologia e tipologia dos territórios-rede ......... 147

8. A cooperação territorial e funcional e a governança dos terri-

tórios-rede............................................................................................. 153

8.1. Os territórios lentos e a cooperação multiterritorial

e multifuncional .................................................................................. 154

8.2 Os campos de força no mundo rural

e a formação dos território-rede .......................................................... 168

8.3 Uma teoria do actor-rede para uma governança dedicada................. 179

9. A construção social de um território-rede para a Dieta Mediter-

rânica .................................................................................................... 185

9.1. A microgeoeconomia territorial, Querença e as suas réplicas............. 185

9.2. A Dieta Mediterrânica, uma apelação territorial de prestígio ............. 198

9.3 A construção social de um território-rede

para Dieta Mediterrânica..................................................................... 206

Conclusão ........................................................................................................ 217

Conclusões Gerais e Finais............................................................................. 219

LISTA DE ABREVIATURAS / ACRÓNIMOS / SIGLAS

1.ª R – 1.ª Ruralidade

2.ª R – 2.ª Ruralidade

3R – Reduzir, Reciclar, Reutilizar

1.ª RV – 1.ª Revolução Verde

2.ª RV – 2.ª Revolução Verde

3.ª RV – 3.ª Revolução Verde

AECT – Agrupamentos Europeus de Cooperação Territorial

BD – Baixa Densidade

BNT – Bens Não Transaccionáveis

BVS – Bolsa de Valores Sociais

CEE – Comunidade Económica Europeia

CEP – Convenção Europeia da Paisagem

CV – Corredores Verdes

DM – Dieta Mediterrânica

DS – Desenvolvimento Sustentável

EEM – Estrutura Ecológica Municipal

EEF – Estrutura Ecológica Fundamental

EEI – Estrutura Ecológica

EFTA – European Free Trade Association (Associação Europeia de Comércio Livre)

EN – Estrada Nacional

EPC – Estrutura de Paisagem Cultural

ERPVA – Estrutura Regional de Protecção e Valorização Ambiental

GAL – Grupo de Acção Local

GAL/PAL – Grupo de Acção Local/ Programa de Acção Local

12 Os territórios-rede

GD – Governança Dedicada (sentido idêntico a Institucionalidade Dedicada – ID)

GRT – Gonçalo Ribeiro Teles

HEP-NEP – Human Exceptionalism Paradigm – New Environmental Paradigm

ICNF – Instituto para a Conservação da Natureza e Florestas

ID – Institucionalidade Dedicada (sentido idêntico a Governança Dedicada – GD)

IEFP – Instituto de Emprego e Formação Profissional

IGP – Indicação Geográfica de Proveniência

INTERREG – Programa de Cooperação Transfronteiriça

IPCC – Intergovernamental Panel on Climate Change

IPSS – Instituição Particular de Solidariedade Social

ITI – Intervenções Territoriais Integradas

LEADER – Ligações Entre Acções de Desenvolvimento Rural

NUTS – Nomenclatura de Unidades Territoriais Estatísticas (NUTS I; NUTS II; NUTS III)

OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico

OMC – Organização Mundial do Comércio

OGM – Organismos Geneticamente Modificados

PAC – Política Agrícola Comum

PAEF – Programa de assistência económica e financeira (da Troika)

PAL – Programa de Acção Local

PDM – Plano Director Municipal

PDM/EEM – Plano Director Municipal / Estrutura Ecológica Municipal

PP – Planos de Pormenor

PROT – Programa Regional de Ordenamento do Território

PROTAL – Programa de Ordenamento Regional do Algarve

PROT/ERPVA – Programa Regional de Ordenamento do Território / Estrutura Regional de Protecção e Valorização Ambiental

QCA – Quadro Comunitário de Apoio

R – Ruralidade

RCV – Rede de Corredores Verdes

RV – Revolução Verde

SAL – Sistema Alimentar Local

António Covas e Maria das Mercês Covas 13

SAF – Sistema Agro-Florestal

SC – Sistema(s) Cultural(ais)

SCS – Sistemas Culturais e Simbólicos

SGL/ID – Sistemas de Governança Local / Institucionalidade Dedicada

SIC – Sítio de Interesse Comunitário

SPL – Sistema Produtivo Local

SSC – Sistema Simbólico-Cultural

TAR – Teoria do Actor-Rede

TASA – Técnicas Ancestrais, Soluções Actuais

TR – Território-Rede

ZIF – Zonas de Intervenção Florestal

ZPE – Zona de Protecção Especial

UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization

UP – Unidades de Paisagem

14 Os territórios-rede

ÍNDICES DAS FIGURAS

Figura n.º 1 – Paisagem global e sistema-paisagem

ÍNDICES DAS TABELAS

Tabela n.º 1 – Aproximação do quadro conceptual inovador (Middle level con-cepts) à construção social dos conceitos de Marsden (2004)

Tabela n.º 2 – Os modelos-padrão produtivista e sustentável

Tabela n.º 3 – A estratégia agroecológica

Tabela n.º 4 – Diferenças estruturais nos processos de transição e conversão

Tabela n.º 5 – A paisagem normativa do sistema-paisagem

Tabela n.º 6 – Territórios-rede e teoria social

Tabela n.º 7 – Quadro interpretativo do Projecto Querença e suas réplicas

NOTA PRÉVIA Depois de A Grande Transição (Covas e Covas: 2011) e a A caminho

da 2.ª ruralidade (Covas e Covas: 2012) Os Territórios-rede é o terceiro livro de uma trilogia sobre a construção social dos territórios rurais, muito particularmente, a construção social dos territórios-rede e dos actores-rede. A nossa tese é a de que os espaços privados de produção podem assumir uma dupla faceta ou condição, isto é, podem tornar-se espaços comuns de produção por via da cooperação territorial e, ao mesmo tempo, espaços públicos de consumo por via do acesso e da visitação. Esta dupla faceta, espaço comum de produção e espaço público de consumo, configura e deli-mita um território-rede e nele estão reunidas as condições mínimas para o despertar de uma nova inteligência territorial e, também, para uma promis-sora economia de rede e visitação em espaço rural. O protagonista principal deste território-rede em construção é, também ele, um actor em construção, o actor-rede.

O livro é, igualmente, tributário de várias experiências recentes de microgeoeconomia territorial, conduzidas entre 2011 e 2014, e algumas ain-da em curso, que tiveram o seu projecto pioneiro na aldeia de Querença do concelho de Loulé (denominado Projecto Querença) e que se replicou por mais oito ensaios de intervenção territorial em projectos desenvolvidos por diversos concelhos do país.

INTRODUÇÃO GERAL:

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS TERRITÓRIOS-REDE

DA 2.ª RURALIDADE

Pior do que ter uma má ideia é ter uma ideia feita.

Charles Péguy

O livro que agora se publica é o terceiro de uma trilogia sobre a Grande

Transição para a 2.ª Ruralidade. É um livro sobre a construção social dos ter-ritórios da 2.ª ruralidade, dos territórios-zona da 1.ª ruralidade aos territórios--rede da 2.ª ruralidade. Nesta transição longa e paradigmática entre a 1.ª e a 2.ª ruralidades (Covas e Covas, 2011 e 2012) as grandes tendências pesadas já aí estão: o inverno demográfico, as alterações climáticas e os grandes ris-cos, as deslocalizações repentinas das actividades económicas, a aceleração disruptiva das dinâmicas territoriais, o regresso em força das vagas migra-tórias, a miniaturização do progresso tecnológico, a desvalorização estrutural da força de trabalho, as crises agudas do sistema capitalista, os choques assi-métricos sobre os níveis de procura interna nos mercados locais e regionais. No plano territorial, e sobretudo ao nível local, estas tendências pesadas têm pro-vocado impactos devastadores nos concelhos mais desprotegidos do interior do país. Por isso, podemos dizer que os “territórios também se abatem”, sobretudo os “territórios fixos” ou inertes ou imóveis do interior.

Estamos no segundo trimestre de 2014, no final do programa de assis-tência económica e financeira patrocinado pela TROIKA e no terceiro ano consecutivo de recessão económica e social. O país tem parcelas crescentes do seu território em estado de necessidade que mais parecem verdadeiros “territórios em reclusão”. Referimo-nos a municípios inteiros sem actividade económica digna desse nome, com uma população totalmente envelhecida e, sobretudo, sem um horizonte de esperança no futuro próximo ou longínquo.

Nestes territórios imóveis do interior prevalece a “lógica dos fixos e delimitados” que, há muito, se confunde com a lógica associativa conven-

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cional dos municípios, sendo a associação de municípios o único actor-rede com algum significado neste “grande universo interior”. No contexto da aplicação do programa de ajustamento económico e financeiro não surpreen-de, por isso, que a reforma do Estado e da sua organização político-adminis-trativa voltem a estar na ordem do dia.

Ao mesmo tempo, a dinâmica global dos mercados põe em causa inú-meros “arranjos produtivos locais e regionais” do passado recente, construí-dos, muitas vezes, em circunstâncias de duvidosa sustentabilidade. Estes dois vectores em conjunto – a reorganização político-administrativa do Estado e a reestruturação das economias locais e regionais – chamam a nossa atenção para uma grave implicação de natureza democrática: o contrato social dos regimes demo-liberais já não assegura as condições de bem-estar em que vivemos nas últimas décadas. Se focarmos a nossa atenção nas economias locais e regionais dos velhos Estados-nação do sul da Europa somos imedia-tamente surpreendidos pela rapidez da desagregação e fragmentação territo-riais operadas, razão pela qual somos confrontados com opções verdadeira-mente dilemáticas sobre o que fazer em condições muito precárias e adversas e com dotações de recursos muito exíguas.

Já não há dúvidas de que muitas regiões nacionais ficarão à margem dos processos de transnacionalização da economia global. Mas mesmo essa mar-ginalidade relativa precisa de ser gerida adequadamente, pois, mais uma vez, é muito elevado o seu custo de oportunidade e são cada vez mais escassos os recursos que podemos afectar a essas regiões em dificuldades. É neste movimento de recentragem do papel do Estado-administração em Portugal – entre um ciclo que se fecha, o da despesa e distribuição, e um ciclo que se abre, o da eficiência, produtividade e resultados – que faz sentido o apelo às abordagens territorialistas de inspiração e extracção muito diversas.

Mas nada está garantido à partida. Por um lado, tudo ou quase tudo gira ainda à volta do Estado e dos seus territórios-zona hierárquicos, corporativos e clientelares, quantas vezes institucionalizados por via dos sistemas de incentivos e das preferências que eles contêm. Por outro lado, aumenta a pressão sobre a chamada “economia real” e, por maioria de razão, sobre as pequenas economias locais e regionais, quer pela lógica anárquica e impes-soal dos mercados, quer pela “desalavancagem” imposta pelo sistema bancá-rio, ele próprio com sérios problemas de capitalização financeira.

No contexto que enunciámos, a vida não fica fácil para a implantação do que, neste livro, denominamos de territórios-rede. À partida, porém, nada nos impede de criar uma associação virtuosa entre empreendimentos turísti-cos, grupos empresariais, parques e reservas naturais, comunidades piscató-rias, instituições do ensino superior, centros de investigação, escolas profis-sionais agrícolas, associações empresariais e de desenvolvimento local,

António Covas e Maria das Mercês Covas 19

cooperativas e suas federações, autarquias e suas associações, clubes de pro-dutores e de consumidores, superfícies comerciais e suas associações, meios de comunicação social, etc. A este propósito, aliás, é, no mínimo, surpreen-dente que tantos actores se tenham ignorado durante tanto tempo acerca de problemas e projectos que eles nunca anteciparam e conheceram como co-muns, apesar de serem vizinhos geográficos e habitarem o mesmo chão comum territorial durante as últimas décadas. Pelos vistos este chão comum foi pouco inspirador, pois tudo ou quase tudo foi entregue à hierarquia aco-lhedora do Estado e à anarquia madura do mercado e muito pouco à sociedade civil e à sua auto-organização na construção social dos mesmos territórios.

Esta acumulação desordenada de territórios particulares, privados e públicos, que são geograficamente contíguos é um paradoxo digno do nosso tempo, uma vez que é elevada a probabilidade de, neste caso, o todo ser mui-to menor do que a soma das partes. É sobre estes paradoxos, e por causa deles, que terá lugar a construção social dos territórios-rede da 2.ª ruralidade. Com efeito, são eles que, pelo seu paroxismo, permitirão aos diferentes gru-pos sociais construir diferentes versões do território, logo, também, a sua multiterritorialidade e, esperamos, uma transterritorialidade inteligente. Para ir ao encontro de tal complexidade, é necessário fomentar a associação vir-tuosa desses territórios particulares e formar um território-rede que promova novas centralidades, funcionalidades, racionalidades e personalidades, mis-são de que se incumbirá o pivot do território-rede, o actor-rede. Os territó-rios-rede são, em tese, mais policontextuais, heterárquicos e cooperativos, e aparentemente mais prometedores, mas têm quase tudo por demonstrar e não existem regras universais válidas para todos os casos.

E no entanto. Da mesma forma que os mercados se constituem cada vez mais num

“objecto de construção social” por parte de produtores e consumidores explicitamente interessados em fazer deles “mercados reflexivos”, isto é, mercados cognitivos que aprendem pela participação de todos os seus ope-radores, quando se densificam, diferenciam e auto-regulam, também os ter-ritórios se podem constituir em “objectos de construção social”, em territó-rios reflexivos e cognitivos que cooperam e se auto-organizam para recu-perar e recriar os seus capitais essenciais, muitos deles esquecidos e aban-donados, fixando para si próprios uma nova estrutura de objectivos e opor-tunidades.

Senão, vejamos. Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia de um território-rede

cujo lugar central é um Parque Natural ou um Sítio da Reserva Natura 2000 tendo em vista o ordenamento e a promoção de um Sistema Produtivo Local (SPL) apoiado no Parque e sustentado pela criação de uma Indicação Geo-

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gráfica de Proveniência (IGP), tudo isto em conjunto com as aldeias do Par-que e os contributos do Instituto para a Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), a Escola Politécnica mais próxima e o “clube de produtores do par-que” criado para o efeito.

Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia de um território-rede intermunicipal correspondente ao nível NUTS III ou, em alternativa, de uma unidade territorial de um Programa Regional de Ordenamento do Território (PROT), desenhando nesse território um projecto comum de Sistema Ali-mentar Local (SAL) em bancos de solos intermunicipais orientados, por exemplo, para os desempregados de longa duração desses municípios, em estreita colaboração com a associação de empresários e a escola superior agrária mais próxima.

Podemos, por exemplo, reconfigurar o território periurbano de um ou dois municípios geograficamente contíguos e delimitar um “Parque Agroe-cológico Intermunicipal” de fins múltiplos, uma espécie de centro comercial em espaço rural, que junte a produção, a conservação e a recreação, em cola-boração com a Escola Superior Agrária mais próxima, a associação de agri-cultores e os diferentes “clubes” criados para o efeito.

Podemos, por exemplo, reconfigurar o território-rede de uma ou mais Zonas de Intervenção Florestal (ZIF) tendo em vista criar uma economia agro-florestal mais pujante e mais diversificada, em colaboração com as aldeias serranas respectivas, o Instituto de Conservação da Natureza e Flo-restas (ICNF), a Escola Politécnica mais próxima e as associações de pro-prietários e caçadores que integram as ZIF.

Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia do território-rede de uma ou mais cooperativas agrícolas e agro-industriais geograficamente con-tíguas tendo em vista melhorar e aprofundar as suas relações de integração e as suas cadeias de valor regionais, inovando e recriando o seu cabaz de pro-dutos sob a forma de terroir ou “apelação de origem”, em colaboração com a Universidade ou Politécnico mais próximo e as associações e grupos empre-sariais respectivos.

Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia do território de uma amenidade natural e paisagística, por exemplo, uma zona termal associada ou integrada numa área de paisagem protegida para efeitos de aproveitamen-to turístico e turismo rural, desenhando e ensaiando, para o efeito, o modelo de sustentabilidade mais apropriado, em colaboração com o grupo termal, as câmaras municipais, o ICNF, a Universidade ou o Politécnico mais próximos e a associação de agricultores e empresários local.

Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia do território-rede abrangido por um empreendimento hidroagrícola de fins múltiplos tendo em vista criar uma economia regional mais poderosa e diversificada e que seja,

António Covas e Maria das Mercês Covas 21

ao mesmo tempo, uma experiência-piloto de incubação empresarial e formação de jovens empreendedores em colaboração com as associações locais, a insti-tuição de ensino superior mais próxima e a administração local e regional.

Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia do território de um Parque Industrial ou Empresarial tendo em vista valorizar a economia do parque através da criação de serviços comuns que podem ser oferecidos por uma espécie de condomínio do parque em colaboração com a associação empresarial local e a escola superior mais próximas.

Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia de um território ou zona turística com o objectivo de diversificar e diferenciar a sua oferta turís-tica para a época baixa, reunindo, para o efeito, a participação dos actores locais, um ou mais grupos turísticos e uma instituição de ensino superior tendo em vista desencadear uma acção colectiva inovadora e criativa de pro-duto e serviço turístico para aquela época específica e/ou grupos-alvo especí-ficos.

Podemos, finalmente, usar a apelação “Dieta Mediterrânica, Património Imaterial da UNESCO” para reconfigurar a economia da região algarvia, em especial as sub-regiões do barrocal e serra, através de uma abordagem agroe-cológica e socioecológica da sua agricultura familiar, em simultâneo com a sua integração em cadeias de valor e “produtos estruturados” que verticali-zem as várias dimensões da economia regional, da economia agrária à eco-nomia da saúde e alimentação e da economia da cultura à economia do turismo.

A simples enunciação destes exemplos, entre muitos outros, revela dois traços principais: em primeiro lugar, sublinha a importância da cooperação entre territórios e do capital social que lhes corresponde, em segundo lugar, mostra como a “construção social de um território de qualidade” é uma tare-fa de grande exigência e complexidade, uma vez que não podemos prescre-ver os ingredientes do normativismo, colhidos algures, como solução geral para todos os casos.

A tese central deste livro é a de que os espaços particulares de produção e conservação podem assumir uma dupla faceta ou condição, isto é, podem tornar-se espaços comuns de produção e conservação por via da cooperação territorial e, ao mesmo tempo, espaços públicos de consumo e recreação por via do acesso e da visitação. Esta dupla faceta, espaço comum de produção e conservação e espaço público de consumo e recreação, configura e delimita um território-rede e nele estão reunidas as condições mínimas para o des-pertar de uma nova inteligência territorial e, também, para uma promissora economia de rede e visitação em espaço rural. O protagonista principal des-te território-rede em construção é, também ele, um actor em construção, o actor-rede.

22 Os territórios-rede

O que queremos reafirmar é que a compressão espaço-tempo em que estamos mergulhados obriga os nossos territórios mais convencionais, sejam mais institucionais ou mais particulares, a olhar de dentro para fora e a bus-car na cooperação territorial, mais próxima e/ou mais longínqua, na vizi-nhança ou na rede, as soluções que já não são capazes de encontrar dentro de portas. As suas alianças serão muito variadas e vão desde as associações tra-dicionais com os seus pares até alianças muito heterogéneas com agentes e entidades que não faziam, até agora, parte da sua rede habitual de relações. É a este processo heterodoxo de construção de novos relacionamentos e conec-tividades, a esta nova inteligência territorial, que aqui denominamos de cons-trução de uma região cognitiva.

Em todos os casos, a delimitação do território de partida e a escolha dos parceiros para o efeito irão dizer-nos qual será a dotação inicial de recursos territoriais, onde se inclui o capital social disponível que o território-rede e o actor-rede estarão em condições de mobilizar. A dinâmica deste território--rede-cognitivo assenta em dois conceitos operativos: em primeiro lugar, um conceito-rede-interno, a “cooperatividade” (Covas e Covas, 2011 e 2012) entre os parceiros e o grupo de missão constituído para o efeito, em segundo lugar, um conceito-rede-externo, a “coopetitividade” entre o território-rede e os promotores externos, de tal modo que a “produção conjunta de internali-dades e externalidades positivas” seja disseminada pelo território-rede e ter-ritórios adjacentes.

Estamos agora em condições de formular as nossas perguntas de par-tida, no quadro daquilo que já designámos por “paradoxo da vizinhança” (Covas e Covas, 2011 e 2012): o que fazer para desencadear e instigar o potencial de cooperação que está imanente nas relações de vizinhança e proximidade, o qual, devidamente promovido, poderia servir para resolver muitos problemas críticos de organização e acção colectiva territoriais no sentido da criação de bens comuns para todos?

Esta pergunta de partida tem um corolário lógico: como transformar os territórios vizinhos num actor-rede que seja capaz de consolidar a base cooperativa da sua configuração territorial (a sua cooperatividade e interna-lidades positivas) e, do mesmo passo, de alargar a base operativa (a sua coopetitividade e externalidades positivas) da sua produção conjunta de bens e serviços de mérito e reputação?

Para ilustrar a complexidade da operação e o potencial de cooperação contidos nas relações de proximidade e vizinhança territoriais do território--rede basta evocar, aqui e agora, a recente decisão da UNESCO de Dezem-bro de 2013 de inscrever a “Dieta Mediterrânica” na lista do património imaterial da humanidade:

António Covas e Maria das Mercês Covas 23

A dieta mediterrânica envolve uma série de competências, conhecimentos, rituais, símbolos e tradições ligadas às colheitas, à safra, à pesca, à pecuá-ria, à conservação, processamento, confecção e, em particular, à partilha e ao consumo dos alimentos. Comer em conjunto é a base da identidade cul-tural e da sobrevivência das comunidades por toda a bacia do Mediterrâ-neo. É um momento de convívio social e de comunicação, de afirmação e renovação da identidade de uma família, grupo ou comunidade (Jornal PÚBLICO de 04/12/2013).

Ou ainda,

com esta inscrição Portugal assume particulares responsabilidades na defe-sa das culturas locais, a obrigação de realizar inventários e de participar no “Plano de Salvaguarda” com os outros Estados e comunidades repre-sentativas. A inscrição cria boas oportunidades para um maior dinamismo na protecção e divulgação dos produtos tradicionais, espécies autóctones e paisagens culturais, para a promoção de estilos de vida saudável e turismo cultural (Jornal PÚBLICO de 22/12/2013).

Nesta declaração está contida toda a complexidade da 2.ª ruralidade e a filosofia que deve inspirar o novo contrato social com o mundo rural. De res-to, a criação de um território-rede para a promoção da Dieta Mediterrânica será um desafio de grande monta para a região do Algarve nos próximos anos.

Uma parte significativa deste potencial de cooperação residirá na forma

como os territórios-zona do poder autárquico convencional evoluírem em direcção aos territórios-rede do poder local do próximo futuro. Para isso, é necessário que o poder local deixe de se confundir com o poder autárquico, como aconteceu até aqui. Até agora, o poder local em Portugal caía na área de influência do poder autárquico, isto é, não havia praticamente sociedade política local fora da sua área de influência. No próximo futuro, a sociedade civil local irá separar-se gradualmente do poder autárquico e criar uma sociedade política local distinta do poder autárquico que, entretanto, conti-nuará a perder a relevância que assumiu no passado recente. Ou seja, o poder autárquico vai contrair e o poder local vai dilatar.

Doravante, é provável que o poder autárquico, tal como o conhecemos hoje, esteja de tal modo limitado nos seus recursos e capacidades que não terá outra solução que não seja federar-se para cima e descentralizar-se para baixo. Para cima, no sentido de uma autarquia de grau superior, com mais músculo, recursos e acção estratégica, para baixo, no sentido de uma delega-ção e contratualização de muitas missões e tarefas às organizações da socie-dade civil local que se constituirão gradualmente para esse efeito.

24 Os territórios-rede

Estamos a falar de uma maior interacção entre a democracia represemta-tiva e a democracia participativa local. Todavia, a maioria dessa delega-ção/contratualização de missões e tarefas estará ainda por reinventar no âmbito do que serão os futuros “territórios inteligentes municipais”. Ao mesmo tempo que a democracia participativa adquire novas formas organi-zativas e modelos de acção cooperativa, aumentará, do mesmo passo, a accountability municipal e o contencioso de responsabilidade será uma roti-na absolutamente estabelecida.

Acresce que, esta dupla evolução para cima e para baixo alterará radical-mente a estrutura orgânico-funcional de uma câmara municipal. Por um lado, o front office municipal será gradualmente reduzido pois dará lugar aos balcões virtuais em tudo o que diga respeito a tarefas estandardizadas, por outro, o back office ocupar-se-á de missões muito diferentes das actuais em tudo o que diga respeito a projectos de desenvolvimento territorial e acções colectivas inovadoras no âmbito da futura autarquia federativa de 2.º nível. No próximo futuro, os territórios municipais estarão de tal modo limitados nos seus recur-sos e na sua acção que existe o risco elevado de se converterem em territórios de reclusão e “municípios-lar”, espelhos de um irreversível definhamento sociodemográfico que já hoje se observa. Por isso, se quisermos conhecer a verdadeira face da democracia participativa no futuro próximo, os territórios municipais terão de se transmutar em verdadeiros actores sociais, coligados com outros actores sociais na concepção e realização de territórios-rede e de uma nova produção conjunta de bens de mérito e reputação.

Esta mudança profunda nas missões e tarefas da autarquia de 2.º grau e dos municípios que a integram obrigará não apenas a mudar o quadro dos seus colaboradores como a estabelecer um novo padrão de relacionamento com as instituições de ensino superior, as associações empresariais, outras estruturas associativas e a administração pública regional.

Neste contexto fortemente cognitivo onde todos estão obrigados a aprender, a abordagem da teoria das convenções e da teoria das redes pode ajudar à configuração de um território-rede para o novo ciclo, em especial para a arquitectura socioeconómica daqueles concelhos e municípios com uma população reduzida e intermitente, mais móvel e mais ausente, em que é preciso trabalhar, simultaneamente, em muitas áreas de intervenção. Uma convenção de desenvolvimento territorial pode, por exemplo, ser desenhada para promover o lado virtuoso da baixa densidade e trabalhar com mercados de gama e de nicho conectados com populações virtuais e mercados à distân-cia. Falamos, por exemplo, dos mercados da saudade ou da “força dos laços fracos” de Granovetter (2011) e, em todos os casos, de uma economia de eventos e visitação apoiada em actividades criativas e culturais que combi-nam bem com os mercados turísticos de gama e nicho.

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Em resumo, num momento em que, em Portugal, o “país interior” está a ser desmantelado e abandonado queremos ainda acreditar que é possível mobilizar “valores e recursos de baixo custo” que inspirem um novo contrato social orientado para a construção dos territórios-rede da 2.ª ruralidade. Esta 2.ª ruralidade assentará numa base agroecológica e socioecológica que pode ajudar a “revolucionar” a agricultura familiar em Portugal e as pequenas eco-nomias locais e rurais do interior do país, se, para tanto, formos capazes de construir novas multiterritorialidades, novas formas de acção colectiva e “acto-res-rede dedicados” que saibam gerar esse efeito virtuoso nos territórios.

O país acaba de experimentar uma cura de austeridade de três anos, que

ainda permanecerá nos próximos tempos, e o Estado-administração está exausto. Todos sentimos essa fadiga na nossa vida quotidiana. É, mesmo, muito provável que ele queira retirar-se de muitas áreas onde tinha interven-ção directa até agora. Não o fará de ânimo leve porque durante muito tempo, e ainda hoje, foi capturado pelos poderes corporativos, formais e informais, organizados nos planos nacional, regional e local. O Estado-administração não se auto-reformará ou, então, fará um exercício proclamatório inconse-quente como foi aquele a que assistimos com a divulgação recente do Rela-tório sobre a reforma do Estado.

É imperioso insistirmos neste ponto nevrálgico. A transição dos territó-

rios-zona para os territórios-rede é uma tarefa de longo alcance que só acon-tecerá se mergulhar fundo num caldo de cultura inspirado pelos princípios da democracia participativa e contratual onde os conceitos da ordem velha polí-tico-administrativa de cariz hierárquico, autoritário e unilateral darão lugar, pouco a pouco, aos conceitos da ordem nova, aqueles que podem ser repor-tados a uma nova reconfiguração do território, desta vez mais heterárquica, comunicativa, policêntrica e policontextual da sociedade aberta. Nesta nova arquitectura societal residirão, seguramente, as áreas de maior inovação do futuro Estado-administração, um Estado-procurador dos interesses, comuns e públicos, dos cidadãos.

Gostaríamos, por isso, de terminar esta introdução com uma referência

final ao “factor associativo”, condição sine qua non para levar a bom termo os territórios-rede e a sua refrescante inteligência territorial. Tudo leva a crer que a próxima fase do sistema capitalista, pelo menos nas economias madu-ras da Europa Continental, se caracterizará por taxas de crescimento econó-mico anémicas, baixas taxas de emprego e altas taxas de desemprego estrutu-ral, acompanhadas por um agravamento correlativo das assimetrias regionais e territoriais (já hoje isso acontece).

26 Os territórios-rede

Quer dizer, iremos assistir à desvalorização estrutural do factor trabalho, nas remunerações e nos direitos sociais adquiridos, e à desconsolidação territo-rial dos mercados de trabalho e emprego que, doravante, se concentrarão nas grandes áreas metropolitanas e num número reduzido de pólos de crescimento. Fora destas áreas e pólos de crescimento haverá uma rarefacção crescente de postos de trabalho e, portanto, uma desterritorialização das economias locais com um impacto muito forte sobre a estrutura sociodemográfica e socioeco-nómica da grande maioria dos concelhos do interior do país.

Neste contexto tão hostil, os movimentos sociais e o associativismo de todas as naturezas, tanto do lado da oferta como do lado da procura, terão de fazer o seu trabalho de casa e, doravante, deixarem de ser complacentes e cúmplices para passarem a ser implacáveis e exigentes com as várias admi-nistrações públicas e/ou corporativas. É o tempo de uma nova radicalidade, “da ética e do cuidado”, é o tempo de a função de accountability ser levada até às últimas consequências, seja perante a administração pública ou perante as corporações e grupos empresariais, é o tempo de um outro interesse comum, de um outro espaço público, de uma outra acção colectiva. Os terri-tórios-rede e os actores-rede são, neste enunciado, uma promessa de futuro.

O livro que agora se apresenta é composto por três partes e nove capítu-

los. Na I Parte tratamos do novo contrato social da 2.ª ruralidade, se quiser-mos, da policontextualização favorável à ocorrência dos territórios-rede da 2.ª ruralidade. No capítulo 1 começamos por abordar, numa perspectiva qua-se doutrinária, aquilo que designamos como “declaração de princípios do movimento da segunda ruralidade”, um decálogo de princípios que, julga-mos, resume bem os fundamentos essenciais do nosso “labor construtivista”.

No capítulo 2, elaboramos um pouco mais sobre a transição dos territó-rios-zona para os territórios-rede, de acordo com a hermenêutica própria da noção de região cognitiva, isto é, de uma região que pela sua auto--organização é capaz de reflectir, aprender e crescer.

No capítulo 3 regressamos aos conceitos e às temáticas da multifuncio-nalidade e dos bens de mérito e reputação para esclarecer e justificar quais os atributos que gostaríamos de reconhecer nos bens e serviços produzidos por uma sociedade participativa e contratual, o caldo de cultura onde germinará a região cognitiva e a formação dos territórios-rede da 2.ª ruralidade.

Na segunda Parte abordamos a base agroecológica e agroecossistémica da 2.ª ruralidade que aqui designamos como o advento da 3.ª revolução ver-de. No capítulo 4 abordamos o contributo da teoria da modernização ecoló-gica que na literatura especializada é denominado de 2.ª revolução verde, numa lógica e num registo de “modernização reflexiva” levada a cabo no “interior do sistema dominante”.

António Covas e Maria das Mercês Covas 27

No capítulo 5 fazemos uma viagem exploratória até à “transição agroe-cológica e socioecológica” que aqui consideramos como o núcleo base da futura revolução agro-ecossistémica ou 3.ª revolução verde.

No capítulo 6 fazemos uma digressão filosófica ao universo paisagístico do Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT) através de uma revisitação bre-ve a alguns dos seus conceitos mais emblemáticos como são os de paisagem global, cidade-região e plano verde, que são os conceitos centrais para a estruturação do campo da região cognitiva da 2.ª ruralidade.

Na III Parte abordamos a construção social dos territórios-rede da 2.ª ruralidade, a partir da reconstituição do capital social dos territórios, em primeira instância pela mobilização e conjugação de “valores e recursos de baixo custo” como são a cooperação, o associativismo, a solidariedade e a responsabilidade social e ambiental.

No capítulo 7 fazemos uma descrição da “nova ordem” em formação, acompanhada de uma reflexão sobre o universo conceptual dos territórios--rede no quadro mais geral da teoria social e elencamos uma série de exem-plos possíveis de territórios-rede, sob a forma de uma primeira tipologia exploratória, de onde ressalta, sobretudo, a variedade multiterritorial e o potencial de inovação e cooperação organizacional que neles se podem observar e promover.

No capítulo 8 tomamos as virtualidades dessa variedade multiterritorial e multifuncional como activos territoriais de primeira linha, confrontamo-las com os campos de forças que correm hoje no mundo rural e terminamos com uma teoria-prática do actor-rede enquanto operador nuclear da governança dos territórios-rede.

Finalmente, no capítulo 9, ensaiamos a construção de um território-rede que está, por enquanto, apenas virtualmente implícito na apelação Dieta Mediterrânica que nos foi conferida pela UNESCO e, através de um pequeno ensaio, procuramos averiguar até que ponto uma denominação de prestígio outorgada por uma organização internacional tem força suficiente para mobi-lizar o capital social de uma parte importante da região do Algarve numa outra direcção, nomeadamente, tendo em vista a diversificação do modelo de negócio prevalecente na região. Para introduzir o capítulo 9 tiramos partido e benefício de uma experiência prática de microgeoeconomia territorial que ocorreu entre 2011 e 2014, e ainda em curso, e que envolveu um projecto pio-neiro de intervenção territorial, o Projecto Querença, assim como diversas replicações que tiveram lugar em vários concelhos do país e rematamos com uma delimitação exploratória de um território-rede para a Dieta Mediterrânica.

I PARTE

UM NOVO CONTRATO SOCIAL PARA OS

TERRITÓRIOS-REDE DA 2.ª RURALIDADE

Introdução

Em Portugal, a construção social dos territórios rurais tem sido determi-nada e fortemente condicionada pela implantação territorial das estruturas polí-tico-administrativas, seja no âmbito dos planos directores municipais e das políticas públicas locais, seja no quadro da política regional e do programa operacional de cada região NUTS II ou, finalmente, no âmbito do plano de desenvolvimento rural, grupos de acção local e respectivas unidades de gestão territoriais. Em quase todos os casos, há uma presença, mais visível ou mais dissimulada, dos aparelhos político-ideológicos e das estruturas político--partidárias, pois, como sabemos, as circunscrições eleitorais passam por esses dois níveis de recrutamento. Não admira, portanto, que uma parte importante dos recursos públicos para o mundo rural passe por aqui.

Isto quer dizer que outros critérios, com outras referências, por exem-

plo, as “regiões naturais” reportadas a unidades de paisagem ou as “regiões virtuais” reportadas a certas tipologias de rede e inteligência territorial ou, ainda, “regiões funcionais” reportadas a certos tipos de aglomeração econó-mica e sistemas produtivos locais, acabam por ser relegadas para plano secundário. Já para não falar das “regiões administrativas”. Estamos, portan-to, no país dos “territórios-zona”.

Assim sendo, estamos, portanto, num país bipolar em que a administra-ção central é grande demais para resolver os pequenos problemas e a admi-nistração local é pequena demais para resolver os grandes problemas. Infe-lizmente, é à volta desses dois níveis de administração que gira a maior parte das políticas públicas, pois é também aí que se monta a “girândola político-

30 Os territórios-rede

-eleitoral” e se estabelecem as “casas político-partidárias”. A ruralidade, em sentido amplo, é um parente pobre deste país dual. Por um lado, tem uma baixa expressão eleitoral, o que lhe retira competitividade política, por outro apresenta reduzidos efeitos de aglomeração económica o que, na retórica dominante, significa que tem uma baixa competitividade económica. Este facto, porém, não impede o mundo rural de continuar a ser um excelente reservatório de mais-valias, agrárias, imobiliárias e urbanísticas, o que, à evidência, parece convir a uma certa “inércia do sistema”.

A I Parte visa estabelecer as bases político-doutrinárias do contrato social dos territórios-rede da 2.ª ruralidade. O primeiro capítulo trata da “declaração de princípios” de um suposto movimento da 2.ª ruralidade. O segundo capítulo aborda os territórios-rede como uma região cognitiva em construção. Finalmente, o terceiro capítulo trata da multifuncionalidade agrorural e dos bens de mérito como conceitos constituintes e instituintes de um novo contrato social da 2.ª ruralidade.

1. A declaração de princípios do movimento da 2.ª ruralidade

A construção da chamada agricultura convencional acompanha os gran-des ciclos de transformação social do capitalismo contemporâneo. Falamos de industrialismo, urbanismo, grande distribuição alimentar, conservacio-nismo, higienismo e segurança alimentar, recreacionismo e lazer, ecossiste-mismo, financeirização e sociedade da informação e do conhecimento. Em pano de fundo, assistimos ao processo de découpling agro-alimentar-territo-rial, isto é, à separação, ao alongamento e à artificialização das cadeias ali-mentares que se tornam mais energetívoras, mais bioquímicas, mais biotec-nológicas e mais desterritorializadas.

Hoje, é possível descrever as características-padrão da chamada agricul-tura convencional ou agricultura de commodities com relativa segurança: agressividade nos mercados globais, intemporalidade das produções, mais higiene e segurança alimentar, mais contingência e risco, mais custos de formalidade e contexto, maior volatilidade dos investimentos, maior capitali-zação dos empreendimentos, maior verticalização das cadeias agro--industriais-alimentares, mais e melhor interprofissionalismo. O contravalor da fase actual do capitalismo contemporâneo tem pelo menos duas faces: em primeiro lugar, a diversidade e a pluralidade de formas de agricultura como manifestação de uma contra-racionalidade territorial, em segundo lugar, a microgeoeconomia das baixas densidades como uma manifestação de resi-liência dos microterritórios. Em ambos os casos, a força imanente dos territó-rios e a resiliência das gentes como resposta a uma putativa morte anunciada.

António Covas e Maria das Mercês Covas 31

1.1. O ciclo de vida dos territórios, dissolução e recriação de sentido

A fase actual do capitalismo procede por compressão. A compressão das dimensões espaço-tempo marca o ciclo de vida dos territórios como se houvesse apenas duas classes de territórios, os rápidos e os lentos. Devido à aceleração das dinâmicas territoriais motivada pela velocidade e expansão dos mercados de commodities, os ciclos de vida de muitos territórios são dramaticamente encurtados e muitos estão à beira de viver um verdadeiro estado de necessidade e reclusão. Em consequência, vivemos, hoje, um movimento permanente de dissolução e recreação de sentido, de espaço recebido, vivido e transmitido, em que o espaço é uma sucessão interminável de formas e conteúdos, produzidos e reproduzidos continuadamente. Entre os factores que contribuem para essa dissolução e recreação de sentido, num perpétuo movimento de desterritorialização e reterritorialização, contam-se:

– A crescente artificialização das cadeias agro-alimentares que provoca descontinuação nas fileiras verticais de produção e consumo;

– A crescente marginalização de solos agrícolas, o abandono e concentra-ção da propriedade mas, também, o aumento da economia informal e o risco de incêndio;

– A crescente mobilidade dos factores que contraria e impede um correcto ordenamento do território, a terra em primeiro lugar;

– A crescente volatilidade de capitais e investimentos que põe em causa os valores naturais e o sistema-paisagem;

– A investigação dominante que responde, tantas vezes, às necessidades dos grandes laboratórios para obter resultados imediatos e que, por isso, nem sempre acautela a “velocidade” de regeneração dos recursos natu-rais;

– A incultura sobre os recursos identitários e simbólicos de um território que danifica a estrutura de oportunidades desse território e de que a turistificação excessiva é apenas um exemplo;

– O excesso de zelo regulamentar e administrativo face às micro e peque-nas empresas e o “excesso de distracção” face às múltiplas formas de concorrência imperfeita e seus “projectos especiais” que acabam por destruir território e pequenos negócios;

– A inércia conservadora das instituições de ensino que não actualizaram a sua missão face às necessidades de intervenção urgente nas economias locais e regionais. Como se pode observar, é a velocidade que impõe o ritmo da dissolu-

ção e recriação de sentido aos territórios. Apesar de todas estas dificuldades

32 Os territórios-rede

e oportunidades, ou talvez por causa delas, continuamos a acreditar que o campo das possibilidades do mundo rural não se reduziu e que, ao contrá-rio, a polissemia dos territórios será cada vez mais tributária da aleatorie-dade da natureza, por um lado, e da liberdade humana, por outro, e que estas duas “contingências” podem ser muito úteis ao desenho e à gestão de sistemas territoriais complexos e inteligentes (Covas e Covas, 2012) no pró-ximo futuro.

Os sistemas territoriais são complexos de vida, história e geografia, resi-lientes à homogeneização do mundo-plano, onde ainda é possível descortinar uma inteligência territorial remanescente e onde ainda se respira o espírito e o génio dos lugares, mesmo em áreas de baixa densidade onde os “lugares também se abatem”. Os sistemas territoriais são, por outro lado, pequenos laboratórios de construção de novas territorialidades onde, lentamente, se recupera o capital natural e o capital social e se desperta a inteligência terri-torial adormecida dos lugares. Trata-se, se quisermos, de uma biopolítica do território, isto é, de respeitar e instigar a pluralidade e a diversidade das for-mas de vida do mundo rural. Embora ainda timidamente, as características de “uma outra ruralidade” também já se anunciam:

– O resgate das “agriculturas de época”, que é, também, o resgate das agriculturas de proximidade e da denominada “agricultura acompanha-da pela comunidade”;

– O resgate das “agriculturas alternativas”, de diferentes lógicas e siste-mas de agricultura, cujos protagonistas são muito diferenciados, e que vão desde a agricultura biológica até uma tipologia muito variada que inclui a protecção integrada e a produção integrada, a permacultura e outras “agriculturas naturais”;

– O resgate das “agriculturas urbanas”, desde a pequena horta social até às formas mais sofisticadas de agricultura vertical;

– A diversificação das formas de agricultura multifuncional, na linha de um certo metabolismo e organicismo dos territórios, é uma corrente de ar fresco na teoria do desenvolvimento rural e, também, um contributo decisivo para o desenvolvimento do conceito de região cognitiva;

– A modernização ecológica dos sistemas especializados de agricultura convencional e a transição de alguns agrossistemas em direcção aos prin-cípios fundadores da agroecologia é, também, uma resposta à diversidade das condições e dos valores naturais e, mais uma vez, um contributo inte-ressante para o reconhecimento do conceito de região cognitiva;

– O reconhecimento por parte da nova PAC pós-2013 de uma economia dos ecossistemas e dos serviços ecossistémicos, onde se inclui uma nova geração de bens públicos rurais, tais como infraestruturas verdes,

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corredores ecológicos, equipamentos agroecológicos e ecossistémicos e pagamentos por serviços de mérito prestados, é mais uma revelação da biopolítica que informa a região cognitiva;

– O reconhecimento de outros formatos socioinstitucionais, com funda-mento na nova sociologia económica e na nova economia institucional, como são a economia dos contratos, das convenções, dos clubes e das formas de governança e institucionalidade dedicadas, assim como o lugar central da nova estratificação socioecológica e o papel nuclear dos actores-rede no quadro dos futuros territórios-rede;

– Finalmente, o novo contrato social com o mundo rural dará um lugar destacado ao sistema-paisagem, à cidade-região e à estrutura ecológica local tendo em vista um planeamento de base regional onde fazem sen-tido conceitos como plano verde, reserva estratégica alimentar e merca-dos de proximidade. Na mesma linha de raciocínio, de permanente dissolução e recriação de

sentido dos territórios, estará a inibição ou o receio que sentirmos em enfren-tar as alternativas ao modelo dominante de agricultura, em ir à redescoberta, sem quaisquer medos, da nossa exclusão e contra-racionalidade. Se formos capazes de assumir esta contra-racionalidade, iremos, também, redescobrir muitos sistemas territoriais em espaços geográficos que já considerávamos “não-lugares” (Augé, 1992), pois mesmo nos espaços mais críticos da baixa densidade há uma razão orgânica e virtuosa e um “génio dos lugares” que podem irromper a qualquer momento, se forem devidamente instigados.

Já conhecemos os quatro elementos que estruturam um sistema territo-rial: as unidades de paisagem (UP), os sistemas produtivos locais (SPL), os sistemas socioculturais (SC) e os sistemas de governança local ou institucio-nalidade dedicada (SGL/ID) (Covas e Covas, 2012: 25). Sabemos, também, que é muito difícil fazer coincidir, no mesmo espaço-tempo, estes quatro subsistemas territoriais. Não obstante, só podemos acreditar que os sistemas territoriais da alter e da contra-racionalidade, ao acolher geografias e territo-rialidades muito diversas e pouco comuns, irão enriquecer a “biopolítica” de qualquer território e, portanto, alargar imenso o seu campo de possibilidades. Dito isto, na doutrina da 2.ª ruralidade a pluralidade de racionalidades terri-toriais é uma espécie de imperativo categórico e é sobre elas que se construi-rá a inteligência territorial dos futuros territórios-rede, uma vez que as eco-nomias internas e externas que se formam em seu redor (economies of scope) constituem activos inestimáveis para a rede colaborativa desses territórios.

Chegados aqui, com a informação de que já dispomos, julgamos estar em condições de enunciar a declaração de princípios da 2.ª ruralidade que são, também, os princípios estruturantes do novo contrato social que a socie-

34 Os territórios-rede

dade portuguesa estará ou não disponível para subscrever com o mundo rural português.

1.2. A Declaração de Princípios do Movimento da 2.ª Ruralidade (2.ªR)

Não podemos afirmar que há um movimento da 2.ª ruralidade, essa afir-mação não seria verdadeira. Um movimento supõe uma organização acreditada e um plano de acção com um mínimo de notoriedade. Nada disso acontece, há, apenas, sinais prometedores, uns, inquietantes, outros promissores. Todavia, no plano doutrinário, e à luz dos grandes problemas globais que afectam a nossa civilização e a nossa cultura, há uma estruturação do pensamento que se enca-minha, cada vez mais, para uma “biopolítica da vida”, É sobre este imperativo de uma “biopolítica da vida” que repousa esta declaração de princípios da 2.ª ruralidade que informará, estamos seguros disso, a construção social dos futu-ros territórios-rede. Vejamos, então, essa declaração de princípios.

Declaração de Princípios do movimento da 2.ª ruralidade (2.ªR)

1. A 2.ª R assentará numa “economia dos sistemas territoriais”, isto é, uma geografia de sistemas territoriais complexos, de geometria variável, compostos de unidades de paisagem (UP), sistemas produtivos locais (SPL), sistemas culturais e simbólicos (SCS) e sistemas de governança local ou institucionalidade dedicada (SGL/ID) e na “produção conjunta de bens de mérito” que esses sistemas forem capazes de criar e promo-ver como sua prova de vida;

2. A 2.ª R assentará numa “biopolítica da vida” que promoverá a ligação umbilical entre as ciências da natureza (o capital natural) e as ciências sociais (o capital social), numa abordagem cada vez mais próxima de uma biociência e de uma bioética;

3. A 2.ª R assumirá os princípios biogeográfico e socioecológico por via dos conceitos directores de sistema-paisagem, cidade-região e estrutura ecológica municipal tendo em vista criar contextos, imagens e represen-tações e contínuos socioecológicos favoráveis à integração e articulação de áreas urbanas, áreas rurais e áreas naturais;

4. A 2.ª R assentará num continuum de fusão entre a ecologia e a cultura, de tal modo que seja possível criar uma grande variedade de sistemas

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territoriais e paisagísticos, cada vez mais autónomos, auto-regulados e inovadores em matéria de estrutura, cadeia de valor e modos de gestão;

5. A 2.ª R assumirá os princípios multifuncional e agroecológico, que dizem que quanto mais um agroecossistema se parece, em termos de estrutura e função, com o ecossistema da região biogeográfica em que se encontra, maior será a probabilidade de que este agroecossistema seja sustentável e duradouro;

6. A 2.ª R reconhecerá o lugar central de uma nova geração de “bens públicos rurais” mais próxima da engenharia biofísica e da arquitectura paisagística ou, mais ainda, das diversas ecologias e biologias funcio-nais que contribuem para melhorar a produtividade primária das espé-cies e populações das nossas comunidades e ecossistemas naturais;

7. A 2.ª R assentará numa nova cultura de ordenamento urbanístico com relevo para as pequenas e médias cidades do interior no que diz respeito à auto-organização e autogestão do seu sistema de recursos, sejam os subsistemas de fornecimento energético (sistemas integrados de micro-geração), de abastecimento de água (sistemas de captação, poupança, eficiência e reciclagem), de aprovisionamento agro-alimentar (sistemas produtivos locais), de construção sustentável (sistemas de bioconstrução e bioregulação) e de reciclagem de resíduos (a política dos 3R, redução, reciclagem e reutilização);

8. A 2.ª R assumirá uma filosofia da paisagem que nos diz que os espaços verdes da cidade do século XXI não deverão ser concebidos à--posteriori, por via de um mero decorativismo vegetal, em arranjos pai-sagísticos, na vegetalização e enquadramento de infraestruturas ou em paisagismos pictóricos, mas sim concebidos como uma obra de arqui-tectura paisagística de carácter interdisciplinar e transdisciplinar;

9. A 2.ª R adoptará o continuum natural e cultural como princípio opera-cional necessário para recriar a unidade da urbe-ager-saltus-silva, isto é, a integração da natureza na cultura em ordem a um urbanismo de base sistémica onde os ecossistemas naturais e os agrossistemas se arti-culam com o fácies edificado da cidade;

36 Os territórios-rede

10. A 2.ª R assumirá a estetização do mundo rural na linha do pensamento do Prof. Francisco Caldeira Cabral em que a beleza deve ser o reflexo espontâneo da boa adequação da obra ao fim proposto, como qualidade intrínseca, e não, como geralmente se supõe, em resultado de uma série de operações posteriores e, portanto, extrínsecas, chamadas embeleza-mento (Cabral, 2003: 40). Este conjunto de princípios acerca da 2.ª ruralidade é designado mais à

frente, a propósito do pensamento do Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, de um “decálogo do realismo virtual”. Em aplicação deste conjunto de princí-pios da 2.ª ruralidade podemos falar de algumas aplicações, por exemplo, entre outras, dos parques agroecológicos, dos corredores verdes, da ecopolis ou do que aqui nós designamos por “a microgeoeconomia das baixas densi-dades” que a seguir ilustraremos sob a forma de um programa de acção para os territórios de baixa densidade. Agora que se volta a falar de reorganização administrativa, de agregação de freguesias e municípios, o decálogo que se segue pode ser um bom instrumento programático para dar conteúdo aos novos agrupamentos, sejam de aldeias, freguesias ou municípios.

1.3. A microgeoeconomia das baixas densidades (BD)

A baixa densidade (BD) pertence àquele complexo de conceitos difusos e ambíguos que são, digamos, convenientes para quase toda a gente, para quem dá, para quem opera e para quem recebe. A lista destes pré-conceitos intuitivos não pára de crescer e tanto mais quanto é preciso inovar concep-tualmente para dar cobertura política e financeira a problemas emergentes que surgem, de forma aguda, quase todos os dias. Eis alguns exemplos des-ses pré-conceitos intuitivos: desenvolvimento endógeno, interioridade, insu-laridade, ultra-perificidade, multifuncionalidade, zonas desfavorecidas, desenvolvimento sustentável, policentrismo, desenvolvimento territorial, etc.

A baixa densidade é um problema crónico com manifestações agudas, mas é, também, uma construção social com uma história mais ou menos lon-ga. Mas nunca é uma inevitabilidade ou uma fatalidade. Um território de baixa densidade é uma espécie de iceberg onde a parte visível do problema é menor do que a sua parte invisível. Então, o problema existe ou emerge por várias razões: porque, à superfície, explode uma situação-limite considerada intolerável, porque há um conflito de interesses mal resolvido a que é preciso dar alguma visibilidade política e social, porque há um silêncio… ensurdece-dor por parte de uma coligação de interesses para quem a BD é conveniente

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ou, finalmente, porque ocorreu um acontecimento ou uma circunstância que, abruptamente, alterou a paz e o leque de oportunidades daquele território.

Em síntese, à superfície, “o problema BD” pode aparecer como “a víti-ma” de um conflito de interesses mal resolvido, mas também pode emergir como um conceito de ocasião para acomodar certos interesses que estão, digamos, entrincheirados por detrás de “um problema conveniente” e, final-mente, pode funcionar, ainda, como um recurso argumentativo e retórico para explorar durante um período negocial como é aquele que agora se apre-senta na véspera do próximo período de programação plurianual dos fundos europeus.

Mas esta é apenas a parte visível do iceberg. Na sua essência, a baixa densidade (BD) é quase sempre um problema estrutural de longa data e um vício de concepção e realização de um modelo de desenvolvimento territorial que a política local, em si mesma, nunca será capaz de resolver. O que se pede, portanto, é um olhar mais cirúrgico, uma diferenciação mais rigorosa e mais fina da BD, em especial, a sua rede arterial e capilar e a sua rede de capital social, para averiguar se o território em questão tem “intensidade de rede” suficiente para sair pelos seus próprios meios da situação em que se encontra ou se precisa de ajuda externa, resgatado, como agora se diz. Há, portanto, limiares e dinâmicas de BD e pode, mesmo, estabelecer-se uma tipologia de baixas densidades, que vai desde a BD remota em zonas de montanha e zonas hostis até BD pendulares em periferias urbanas ou turísti-cas, com passagem pelas BD de enclave e eclosão mais recente, enquistadas em territórios críticos ou vítimas de uma acentuada desaceleração económi-ca, social e ambiental.

No caso de Portugal, a este propósito, não podemos deixar de formular a seguinte questão:

Um país que tem apenas 200km de largura, um país que tem excelentes rodovias, um país que tem instituições de ensino espalhadas por todas as capitais de distrito, um país que tem uma grande variedade de microclimas, um país que teve acesso nos últimos 25 anos a meios financeiros em abun-dância, um país que tem a mesma cobertura autárquica há cerca de 150 anos, um país com uma larguíssima cobertura de associações empresariais e de associações de desenvolvimento local, como é que um país com todas estas características permitiu que o contributo do mundo rural para a riqueza nacional fosse tão baixo e desigual?

A baixa densidade não é, como já dissemos, um epifenómeno superfi-cial, é sempre uma tendência de longo prazo e uma fraqueza estrutural reve-lada por um certo modelo de desenvolvimento, geralmente difuso, híbrido, invertebrado e assimétrico. Tem a ver com características demográficas lon-gas, com a espessura da rede urbana, com a industrialização difusa, com a

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estrutura da propriedade fundiária e a estrutura do povoamento, com as características da terciarização urbana e periurbana e com a lógica de meca-nismos de pendularidade e pluriactividade.

Em si mesma, a baixa densidade transmite quase sempre sinais contradi-tórios. Podemos ter crescimento económico associado a baixa densidade (grandes empresas de monocultura exportadoras que não empregam muita mão-de-obra) e frágil crescimento económico associado a densidades mais elevadas de população. O problema é saber se a BD é a causa que leva à condenação de uma região ou se a BD é, ela própria, a consequência e a expressão de um complexo de factores, gerais e particulares, que ultrapassam em muito a simples circunstância local ou regional.

Ao longo da nossa história recente, desde o pós-guerra, tivemos um ciclo longo de crescimento económico até, praticamente, o fim do século XX. Foram 50 anos de crescimento económico que não aproveitámos devi-damente para conciliar coesão com competitividade e crescimento económi-co com desenvolvimento social e ambiental, equilibrado e sustentável. Por três vezes, a EFTA nos anos sessenta, a CEE no princípio dos anos setenta e novamente a CEE a partir de 1986, tivemos “surtos de crescimento económi-co” que deveríamos ter aproveitado para ordenar e consolidar a rede urbana, para criar uma sólida estrutura industrial, para desenvolver o mundo agrícola e rural e para ter uma rede de parques e reservas naturais que contribuíssem para uma oferta integrada de mercados de nicho e de amenidades para desenvolver o turismo em espaço rural.

A primeira década do século XXI é já uma inversão do ciclo de cresci-mento de cinco décadas. A produtividade e a competitividade subiram, mas não o suficiente para contrariar a agressividade dos mercados globais e o rigor financeiro e orçamental imposto pelas regras da moeda única europeia. A crise internacional de 2008 apenas veio agravar e precipitar uma crise de competitividade externa que já se pressentia há muito tempo. O Programa de assistência económica e financeira da Troika (PAEF) é apenas o culminar de uma crise aguda de pagamentos que foi dramaticamente precipitada pela fal-ta de acesso aos mercados financeiros internacionais.

Chegados aqui, a grande questão é esta: durante 5 décadas, entre 1950 e 2000, o país beneficiou de crescimento económico contínuo e elevado, melhorou substancialmente a rede de bens não-transaccionáveis, equipamen-tos e infra-estruturas, mas, não obstante, não foi capaz de reequilibrar eco-nomicamente o país, dotando-o de uma coluna vertebral sólida assente numa boa rede urbana, numa boa rede industrial e numa boa rede rural. Quer dizer, o país melhorou a sua coesão territorial no que diz respeito a acessibilidades e mobilidade mas não foi capaz de se dotar das redes que aumentam a com-petitividade externa dos bens transaccionáveis (redes de investigação, de

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inovação, de cooperação, de transferência, de extensão). Além disso, depois de uma década perdida, a primeira do século XXI, o país prepara-se para perder a segunda década do século XXI.

Não há territórios de baixa densidade que resistam a estes pesados cus-tos de contexto gerais, não obstante a generosidade da política de coesão que, neste âmbito, pouco mais consegue fazer do que pequenas adaptações e ajustamentos para além de mitigação e controlo de danos.

Por tudo isto, a nossa pergunta de partida só pode ser esta: 25 anos depois do 1.º Quadro Comunitário de Apoio (QCA), depois de um período tão longo de abundância de subsídios e financiamentos concedidos em con-dições tão favoráveis, como foi possível chegar aqui, e como reverter esta situação de desigualdade territorial e regional para o próximo futuro num quadro macroeconómico tão adverso no plano nacional e europeu, num período marcado por uma forte penúria de meios financeiros e em que será necessário ajustar e mitigar os danos causados pela descontinuação de algu-mas políticas com incidência territorial?

Acrescentemos, ainda, que os empreendedores são indivíduos racionais nas suas escolhas e que reagem racionalmente aos estímulos públicos e priva-dos disponíveis, em termos de custo e rendimento efectivo e potencial. Se há territórios de BD isso quer dizer que a relação custo-benefício desses territórios não é, em princípio, favorável à fixação de pessoas e actividades, pelo menos de acordo com aquilo que são as expectativas e as preferências do potencial investidor. Acrescente-se que, quanto mais os territórios competem entre si mais escassos se tornam os recursos e mais elevado é o custo de oportunidade de um investimento. Quanto mais um país ou uma região se abre ao exterior maior é o número de concorrentes muito competitivos e, portanto, mais alto é o custo de oportunidade do investimento, o mesmo é dizer, sobe o risco de uma região menos competitiva ficar sem actividades e sem pessoas.

O que dissemos não nos deve impedir, porém, de actuar à superfície, lá

onde é preciso agir e dispor de um banco de urgência, sabendo nós, de ante-mão, que os instrumentos de mitigação e controlo de danos não se substi-tuem nem resolvem os problemas estruturais de uma região. Depois desta digressão pela baixa densidade e na linha dos princípios antes enunciados para a 2.ª ruralidade, cabe aqui, perfeitamente, o elenco de dez bases pro-gramáticas para o desenvolvimento comunitário dos territórios de baixa den-sidade, útil, por exemplo, para planear o desenvolvimento dos agrupamentos de aldeias ou municípios do interior do país:

1) Programa “Em busca das sementes perdidas”: recuperação da biodiver-sidade local e restauração biofísica dos hotspots respectivos (base bio-diversa);

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2) Programa “Poupança, conservação e eficiência energética”: divulgação de boas práticas energéticas (base energética);

3) Programa “Bioconstrução e bioregulação climática”: o uso de materiais e tecnologias locais de construção e boas práticas em matéria de biore-gulação e adaptação às alterações climáticas (base climática);

4) Programa “Produção e educação agro-alimentar”: auto-abastecimento e autogestão da produção alimentar (base alimentar);

5) Programa “Turismo de natureza”: ordenamento dos percursos e dos flu-xos de visitação, dos endemismos locais aos sítios histórico--arqueológicos (a base ecoturística);

6) Programa “Floresta de fins múltiplos”: a multifuncionalidade da floresta e o seu uso múltiplo (base florestal);

7) Programa “Mobilidade suave”: o desenho de vários projectos de acessi-bilidade, em especial para grupos de mobilidade reduzida (base de mobilidade);

8) Programa “Microcrédito”: o crédito popular para os pequenos empreen-dimentos em conjugação com outros formatos financeiros (base finan-ceira);

9) Programa “Banco de tempo”: a entreajuda entre vizinhos e amigos do projecto para um programa de voluntariado (base voluntariado);

10) Programa “Memória futura”: a arte e a cultura, em todas as suas dimen-sões, ao serviço do desenvolvimento integral do cidadão e da comuni-dade (base sociocultural). Em jeito de conclusão e tendo em vista futuras incursões pelos territó-

rios da baixa densidade, eis alguns apontamentos finais:

– O conceito de BD parece ser, em primeira análise, um “conceito de con-veniência”, como são outros (desenvolvimento endógeno, interioridade, insularidade, policentrismo, desenvolvimento sustentável, desenvolvi-mento territorial) que servem de instrumento de negociação em certas cir-cunstâncias para obter vantagens específicas de mera oportunidade;

– Os territórios de baixa densidade estão, de algum modo, reféns do jogo dos interesses e das coligações de interesses que dominam o universo regional, sub-regional, intermunicipal e municipal e da procura de legi-timidade da despesa pública não-transaccionável que corresponde a cada um desses níveis;

– Existe um “silêncio ensurdecedor” em discutir abertamente qual é o modelo de desenvolvimento que interessa à região como um todo por-que, aparentemente, ninguém quer saber verdadeiramente o que é “a região como um todo”;

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– Há uma diferença abissal entre a retórica e o consenso mole em redor da estratégia, da inovação, da sustentabilidade, da prospectiva e dos cená-rios, por um lado, e o realismo puro e duro do quotidiano dos negócios correntes quase sempre envolvidos em pequenas redes clientelares e de cumplicidade político-partidária;

– Dada a fortíssima restrição orçamental e financeira do próximo período de programação 2014-2020 e a prevalência de regras mais exigentes de financiamento, como é o caso da prevalência dada aos empréstimos reembolsáveis, não surpreenderá que todos os actores locais e regionais adoptem doravante uma posição mais defensiva e cautelosa na forma de abordar os seus investimentos;

– Sem uma forte inovação estratégica e operacional ao nível da região NUTS II, como centro de racionalidade de políticas públicas e central de operações, que tenha expressão territorial efectiva aos níveis inferio-res, NUTS III e intermunicipal, corremos o sério risco de assistir a uma verdadeira cacofonia territorial no próximo período de programação;

– Mais do que discutir a problemática dos territórios de baixa densidade, cada região deve discutir se quer manter o modelo actual de coesão, difuso, disperso e de baixo retorno, baseado em bens não-transaccioná-veis (BNT) locais, sub-regionais e regionais que estão próximos do esgotamento ou se quer iniciar, desde já, um novo ciclo e um novo modelo de transição recentrado sobre os principais centros urbanos, com uma relação totalmente descomplexada face ao mundo rural e aos recursos do território, e exigindo, do mesmo passo, que se altere a estru-tura do governo e administração do território, modificando a escala das intervenções e recentrando-as no nível e no plano regional;

– Finalmente, há a microgeoeconomia das baixas densidades, lá onde emer-gem os problemas mais críticos dos territórios, a solicitar intervenções de emergência, qual banco de urgência dos problemas do quotidiano; as dez bases programáticas para o desenvolvimento comunitário podem ser um instrumento útil e low cost, de intervenção de emergência.

2. Os territórios-rede, uma nova região cognitiva em formação

Na modernidade líquida (Bauman, 2000) e disforme em que estamos mergulhados, o poder global, difuso e sem rosto, procura constantemente novos espaços devolutos para aí “exercer livremente a sua política extraterri-torial”. Por isso, podemos afirmar que nesta globalização líquida há uma luta sem tréguas entre sinergia e entropia territorial, se quisermos, entre territó-

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rios que cooperam e se renovam e territórios que são abandonados e sobrevi-vem “em reclusão”, à espera, digamos, de serem capturados. Neste mundo plano (Friedman, 2006) em que vivemos, os territórios também se abatem, por isso mesmo eles estão obrigados a aprender depressa, a prosseguirem uma estratégia reflexiva, a serem territórios cognitivos ou uma região cogni-tiva. Os territórios-rede são uma construção social com estas características, territórios de combate cujo caminho se faz caminhando, por tentativa-erro, através da experimentação associativa e cooperativa.

Neste capítulo vamos abordar a natureza do policy-problem do territó-rio-rede, em seguida a transição cognitiva do território-zona para o território--rede e, por último, a tensão política e a violência simbólica do processo de transição respectivo.

2.1. A natureza do policy-problem do território-rede

A modernidade líquida (Bauman, 2000) criou um paradoxo de difícil compreensão e administração: há inúmeros territórios geograficamente con-tíguos, vizinhos há muito tempo, dotados de um capital social precioso, que, todavia, nunca entenderam necessário e útil, não obstante as dificuldades de percurso por que passam actualmente, cooperar intensivamente entre si para resolver problemas comuns ou promover novas oportunidades que a coope-ração sempre suscita. Quer dizer, resolver o policy-problem dos futuros terri-tórios-rede implica que os actuais territórios revelem a modéstia suficiente para se olharem “olhos nos olhos” e entenderem os seus problemas como problemas comuns, o que, no contexto presente e na ausência de uma cultura territorial cooperativa, implica que algum actor local ou regional tenha o dis-cernimento bastante para levar esse desiderato a bom porto.

Sabemos, também, que o mesmo território é “apropriado” por vários grupos sociais de maneira diferente, com diferentes grelhas de leitura e con-gregando constelações de poderes muito diferenciados. Por isso, um territó-rio, mas também uma organização ou uma tecnologia, é uma construção social atravessada pelas lógicas cruzadas de poderes particulares e do poder dominante. Sabemos, igualmente, que temos hoje a possibilidade de arranjar de múltiplas formas a coexistência de uma gama variada de diferentes terri-tórios e sabemos, ainda, que nas sociedades actuais o território-rede começa por ser, não raras vezes, um território virtual com origem nos fluxos e nas conexões das redes.

O policy-problem dos futuros territórios-rede estará intimamente asso-

ciado à história recente da sociedade civil portuguesa. Sabemos que, no caso

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português, o défice de organização da sociedade civil ou, se quisermos, a profusão inoperante de organizações associativas sem estrutura técnica, financeira e profissional digna desse nome, está intimamente associado a um excesso de municipalização e política partidária, por um lado, e à omnipre-sença da política administrativa e financeira do Estado, por outro. Sabemos, igualmente, que os territórios-zona assim gerados foram sendo progressiva-mente alimentados por uma profusão de legislação, de regulamentação, de administrativismo e subsidiação, que paulatinamente foi demarcando e regu-lando o sistema de acessos e condicionalidades, que as políticas públicas sempre incorporaram, e que o sistema de poder dominante foi debitando de acordo com a sua relação de preferências in loco.

Hoje, quarenta anos depois do 25 de Abril e quase trinta anos depois da

adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), é visível que esta omni-presença do Estado-administração e do Estado-local condicionou bastante o campo de possibilidades à nossa disposição. De facto, 30 anos consecutivos de apoios europeus, num Estado-administração que continua a ser de estrutu-ra unitária, criaram uma sociedade civil hierárquica, vertical, subordinada e, às vezes, subserviente. A teoria dos “direitos adquiridos” e dos “direito de elegibilidade” criou “destinatários habituais” que estão na origem da criação de uma malha justaposta de territórios-zona, cada um com a sua específica biografia político-partidária. É, aliás, extraordinário que 30 anos de política de coesão e fundos europeus não tenham criado no país um projecto consis-tente de estrutura e organização espacial, uma espécie de coluna vertebral no interior do país de modo a impedir a sua desertificação e despovoamento. O país do interior converteu-se, assim, infelizmente, num país à imagem do IP2 que o atravessa na vertical, isto é, descontínuo, desigual e desqualificado.

E, no entanto. Durante 30 anos de apoios europeus, houve inúmeras oportunidades para

que territórios privados e territórios públicos aprendessem a construir em con-junto “um novo interesse comum” e este, por sua vez, convertido em “um novo espaço público”. Esta “dupla conversão” de interesses particulares em interesse comum e em espaço público constitui a matéria-prima de onde emergirá a filo-sofia e o policy-problem dos territórios-rede do próximo futuro.

Durante 30 anos de apoios europeus, aquela “dupla conversão”, feita de mobilização, agregação, cooperação e aprendizagem mútua dos territórios particulares, podia ter acontecido por vias muito diversas. Em primeiro lugar, por via de laços de vizinhança e proximidade no quadro de uma lógica de integração sociocomunitária e associativa, por exemplo, através da orga-nização das pequenas comunidades e aldeias e sua agregação no limite dos

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concelhos ou no quadro interconcelhio. Em segundo lugar, pela via conven-cional político-administrativa, seguindo a hierarquia que vai desde as uniões de freguesias até à associação de municípios e ao nível NUTS III. Em tercei-ro lugar, por via do ordenamento paisagístico que nos leva das pequenas unidades territoriais até à unidade de paisagem concelhia e desta até ao sis-tema-paisagem de uma cidade-região. Em quarto lugar, por via de territórios que se organizam em redor dos mercados, das tecnologias e finanças e que recortam o espaço-território de formas muito variadas, por exemplo, através de sectores, fileiras, cadeias alimentares, sistemas produtivos locais, grupos económicos e redes de cooperação empresarial. Finalmente, os empreendi-mentos territoriais de fins múltiplos e geometria variável, socialmente cons-truídos por via da cooperação territorial e dotados de uma organização espe-cífica denominada actor-rede para a sua realização material e imaterial.

Sabemos que estas diversas tipologias territoriais não comunicam ou comunicam mal entre si. A sua lógica dominante nunca foi a cooperação ou a complementaridade, razão pela qual sempre houve nelas um uso excessivo de recursos e um défice evidente de resultados. Temos, assim, uma coabita-ção territorial nem sempre fácil, digamos, vizinhos que se observam mas que não cooperam tanto quanto seria desejável. Não obstante, é sobre esta diver-sidade e estes paradoxos, e por causa deles, que terá lugar a construção social dos territórios-rede da 2.ª ruralidade. Com efeito, são eles que, pelo seu paroxismo, permitem aos diferentes grupos sociais construir diferentes versões do território, a sua multiterritorialidade.

Para ir em busca de tal multiterritorialidade é necessário promover e organizar uma associação virtuosa entre parceiros que, em primeiro lugar, será um mero “território em rede” e, num segundo momento, um território--rede mais estruturado e complexo. Esta associação virtuosa pode reunir e congregar, por exemplo, uma associação ou grupo empresarial, um parque ou reserva natural, uma instituição de ensino superior e um centro de inves-tigação, uma associação de desenvolvimento local, uma cooperativa, uma autarquia ou uma associação de municípios, um clube de produtores ou de consumidores, uma superfície comercial, um ou mais meios de comunicação social, etc. É em redor dos interesses particulares destes actores que é neces-sário construir um “novo interesse comum”, por exemplo, um projecto de desenvolvimento territorial, e em seguida, por intermédio de um actor-rede, converter esse interesse comum num “novo espaço público” que crie no ter-ritório-rede uma nova economia de rede e visitação.

Dito isto, e perante tal potencial de crescimento, por que não acontece, com mais frequência, a tão desejada cooperação entre territórios particulares e públicos? Julgamos que este défice de cooperação reside, por um lado, numa espécie de “iliteracia territorial”, em especial na ignorância dos

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“conhecimentos tácitos” que os territórios possuem e, por outro lado, na antecipação que fazemos de que existem custos de transacção elevados na criação de uma “institucionalidade dedicada” e, finalmente, porque o nosso egoísmo está muito ancorado em práticas pouco recomendáveis como são aquelas que se reportam ao risco moral e ao free raider. Não vale a pena, os territórios particulares nunca aprenderão se os actores, indivíduos, desistirem de aprender.

2.2. A transição cognitiva dos territórios-zona para os territórios--rede

Já o dissemos antes, a transição cognitiva ou aprendizagem territorial faz-se entre territórios-zona e territórios-rede (Haesbaert, 2006). Começa-mos, porém, com uma pequena advertência que julgamos fazer todo o senti-do. Existem conceitos, que aqui designamos de “conceitos-solução”, que, pela sua sedução teórica e intelectual, antecipam ou criam uma espécie de “ficção de solução” cuja “lógica invertida” conduz à criação de um “proble-ma-correspondente”, umas vezes um “problema-bom”, outras um “proble-ma-mau”, talvez, mesmo, um problema onde antes ele nem sequer existia. Se não tomarmos algumas medidas cautelares, estes conceitos, úteis na aparên-cia, podem revelar-se contra-intuitivos. O conceito de território-rede é um desses conceitos, outros exemplos são o desenvolvimento sustentável, a mul-tifuncionalidade ou a modernização ecológica. Em todos estes casos, é necessário montar um grande estaleiro de engenharia social e política para pôr de pé essa “ficção de solução”. Não obstante esta eventualidade e contra--indicação, estes “conceitos-solução” apresentam um elevado valor cognitivo e reflexivo. É com esta contra-indicação que aqui os tomamos como “bons”.

No caso dos territórios-rede essa “ficção de solução” e esse valor cogni-tivo podem transmutar-se na seguinte interrogação: como transitar de uma cultura-zona de territorialidade homogénea para uma cultura-rede de mul-titerritorialidade, de tal modo que esta multiterritorialidade se converta em transterritorialidade e possa, por acção de uma actor-rede, dar lugar a uma ulterior territorialização material e concreta?

A resposta a este acréscimo de complexidade e contingência só pode ser uma outra cultura territorial, isto é, mais e “melhor” acção colectiva, coope-ração e aprendizagem mútua ao abrigo de um projecto comum conduzido pela inspiração e sob a égide de um actor-rede movido pela energia de uma nova inteligência territorial.

A transição de um território-zona para um território-rede só pode ser uma transição cognitiva e reflexiva se se aprender a fazer política “para lá da

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política convencional”. Esta “outra política” conduzida por um actor-rede e uma acção colectiva inovadora deve passar da hierarquia para a heterarquia, da autoridade directa para a conexão comunicativa, da posição central para a composição policêntrica, da heteronomia para a autonomia, da regulação unilateral para a implicação policontextual (Innerarity, 2005: 184). O grande objectivo desta transição reflexiva é gerar um fluxo denso de capital social regenerador, uma mistura, porventura caótica, de projectos, ideias, instru-mentos e procedimentos e actores novos.

Vejamos, no plano metodológico, como se desenrola o processo de transição social do território-rede. Em primeiro lugar, a delimitação de um “território de partida” confunde-se com a formação e delimitação da própria “parceria inicial do projecto”. O território de partida é definido de forma pre-liminar e provisória como um “território inorgânico”, em que cada parceiro traz “o seu próprio território particular” na expectativa de outras “visões ter-ritoriais ou territorialidades” e, consequentemente, de outros conteúdos terri-toriais. Para este “território de partida” vamos juntar, por exemplo, uma coo-perativa agrícola, uma escola superior agrária, um parque natural, uma associação de desenvolvimento local, um centro de artes e ofícios e o muni-cípio ou municípios respectivos, todos unidos em redor de uma ideia ou “projecto preliminar de desenvolvimento local ou comunitário”.

Em segundo lugar, segue-se a “produção social de um novo interesse comum”, de uma visão multiterritorial ou territorialidade transcendente, em que cada parceiro dá uma contribuição para lá da sua própria territorialidade, de tal modo que essa visão comum territorial possa ser inspiradora para o actor-rede do território-rede.

Em terceiro lugar, é necessário converter essa “visão comum” ou multi-territorialidade em um programa de acção, isto é, em novas centralidades, funcionalidades e actividades empresariais e territoriais, ou seja, em um “projecto comum” e uma nova economia para o território-rede.

Em quarto lugar, teremos de equacionar qual é o “formato organizacio-nal” mais indicado para acolher e pôr em prática o actor-rede que irá realizar e materializar o programa de acção.

Em quinto lugar, teremos de averiguar se há condições para configurar uma nova solidariedade orgânica e campo de forças para forjar uma nova identidade territorial, pressupostos fundamentais para constituir não apenas o actor-rede mas, também, aquilo que será o novo “espaço público do territó-rio-rede”, isto é, a sua zona de interface com os outros campos e territórios.

Numa sociedade fragmentada e fragmentária, como é aquela que hoje vivemos em Portugal, a configuração de uma parceria territorial inicial não é uma tarefa fácil. Com efeito, e não obstante terem coabitado o mesmo terri-tório durante bastante tempo (um parque industrial ou mesmo uma coopera-

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tiva agrícola), aqueles actores locais ou regionais, muito provavelmente, nunca trocaram conhecimento nem criaram capital social comum, pela razão simples de que sempre ou quase sempre operaram em “modo de território--zona”, ou isoladamente em “modo-arquipélago” ou alinhadamente em “modo hierárquico e vertical”, em sintonia com as determinações das autori-dades político-administrativas. Por isso mesmo, o ponto de partida de um território-rede é muito exigente, seja porque envolve custos de transacção elevados ou porque pode desencadear a libertação de anti-recursos e contra--recursos até aí confortavelmente instalados. Não obstante estas dificuldades iniciais, a cadeia de valor e a energia vital geradas por uma nova racionali-dade operativa, transversal e cooperativa, pode ser extraordinariamente com-pensadora e revelar efeitos externos muito positivos em termos cognitivos, científicos e práticos.

2.3. A tensão política e a violência simbólica do processo de transição

A transição de um território-zona para um território-rede é uma passa-gem com muitos episódios e incidentes de percurso. Em jeito de síntese antecipada poderíamos dizer que liberta tantos recursos positivos como anti--recursos e contra-recursos, tal é a tensão política e a violência simbólica que são inerentes ao processo de transição. Estamos a falar de desconstrução e recentramento de posições de longa data e das mudanças de actor-principal e lógicas de funcionamento. Senão vejamos.

Em primeiro lugar, os diversos subsistemas funcionais que entram na parceria, especializados e autónomos, realizam configurações territoriais diferenciadas consoante os problemas a tratar. A diversidade de visões fun-cionais projecta diferentes versões ou “ficções de unidade”. Isto quer dizer que a escola politécnica, a administração pública regional, a cooperativa, o grupo empresarial, a associação de desenvolvimento, a câmara municipal, a área de paisagem protegida, projectam diferentes versões de unidade e que há uma violência simbólica nessa projecção unilateral, que pode ser melhor ou pior resolvida.

Em segundo lugar, a cooperação entre territórios particulares, sejam privados ou públicos, não é uma tarefa fácil. A tensão política e a violência simbólica produzidas e implicadas pela conversão de várias territorialidades em uma multiterritorialidade e depois em uma territorialização concreta estão dependentes dos arranjos e compromissos que se geram ou não se geram no interior da respectiva parceria territorial, relativamente a uma necessária visão hegemónica ou dominante. Dito de outro modo, andamos à procura de serviços mínimos, de um menor denominador comum, ou de um projecto-comum com custos de transacção elevados?

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Em terceiro lugar, a tensão política e a violência simbólica implicadas pela composição de um “novo interesse comum” não é, também, tarefa fácil devido ao confronto entre recursos, anti-recursos e contra-recursos. Já sabe-mos que a desconstrução liberta recursos e que estes, enquanto não forem novamente reafectados, entram em rota de colisão. Assim, o choque iminente entre o universo hierárquico, burocrático e corporativo dominante (vertical e de fora para dentro) e o universo heterárquico, policontextual e cooperativo emergente (horizontal e de dentro para fora), pode ser extraordinariamente violento no plano simbólico e organizacional, no que diz respeito à conver-são de um padrão organizacional tecno-burocrático para um padrão organi-zacional mais cooperativo e coopetitivo.

Em quarto lugar, a tensão política e simbólica implicada pela conversão de um “novo interesse comum” em um “novo espaço público” introduz tanta liberdade como incerteza, pois junta espaço de produção e espaço de consu-mo em territórios que não tinham originariamente essa vocação. Temos, assim, de um lado, um imenso campo de possibilidades, de outro, um grande mal-estar, justamente por haver excesso de possibilidades, logo maior con-tingência, donde a necessidade de “estabelecer procedimentos” para lidar com toda esta complexidade e contingência que só um actor-rede estará em condições de realizar.

Finalmente, a tensão política e simbólica que deriva da necessidade de proteger a “política em sentido amplo” da “política em sentido estrito”. Falamos da tensão e da violência simbólica que resultam do confronto entre uma legitimidade político-eleitoral de ciclos curtos, ainda dominante, e que interfere e delimita o campo de forças, e uma legitimidade cívico-política cujo embededdeness (Granovetter, 1995, 2011) mergulha fundo na sociedade civil, mas que pela sua relativa imaturidade precisa de ciclos de vida e aprendizagem mais longos. Dito de uma forma mais simples, podemos estar em rota de colisão se os territórios-zona da política convencional produzirem custos de contexto e de formalidade que implicam custos de transacção ele-vados para os novos territórios-rede em construção.

3. Multifuncionalidade e bens de mérito, a base do novo contrato social

O contrato social da 2.ª ruralidade é um compromisso com a ética da responsabilidade. A articulação funcional entre multifuncionalidade e bens de mérito está no coração mesmo do conceito de sustentabilidade e situa-se no cruzamento de uma tripla responsabilidade que é, de resto, reportada à doutrina estabelecida acerca do desenvolvimento sustentável: a responsabili-dade económica, a responsabilidade ambiental e a responsabilidade social.

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A multifuncionalidade agrorural não é uma questão nova e não é uma questão especificamente agrícola. A década de noventa do século passado assistiu ao culminar de diferentes perspectivas que se reconhecem no cruza-mento entre a produção agrícola, a protecção dos recursos naturais, a segu-rança alimentar e o ordenamento do território. Quer dizer, a multifuncionali-dade agrorural é uma construção social de fins múltiplos, prosseguida de acordo com diferentes lógicas e perspectivas de funcionamento. Acrescenta--se, no entanto, que estas características devem ser prosseguidas e satisfeitas sem prejuízo dos resultados operacionais e da rentabilidade das empresas e sem distorções graves sobre a produção e as trocas. Outra coisa, ainda, é o facto de terem sido as circunstâncias históricas, em particular as negociações comerciais multilaterais, a determinar a trajectória da noção de agricultura multifuncional, o que está na origem de várias “versões de conveniência” nacionais.

Quer dizer, a noção de multifuncionalidade agrorural tem tanto de am-bíguo como de promissor. Não admira, por isso, que uma organização como a OCDE tenha preferido uma abordagem positiva do problema, o que nestas circunstâncias quer dizer minimalista e cautelar para evitar lançar mais “externalidades” para a mesa das negociações. Para fazer o contraponto apresentamos também a versão normativa da teoria da multifuncionalidade.

Um corolário lógico da teoria da multifuncionalidade, seja apenas agrí-cola ou, também, territorial é a produção de “bens conjuntos ou de fins múl-tiplos” que aqui designamos como bens de mérito e reputação, assim chama-dos por cumprirem, simultaneamente, fins de interesse privado e de interesse público. Estes bens de mérito serão, no próximo futuro, a coluna vertebral da política de desenvolvimento da 2.ª ruralidade tal como ela ficou expressa na Declaração de Princípios anteriormente enunciada. A nova PAC pós-2013 poderia, inclusivé, ter sido mais ousada e criado um “terceiro pilar” que apontasse claramente no sentido de uma economia dos ecossistemas e servi-ços ecossistémicos em sentido amplo, onde os bens de mérito e de fins múl-tiplos, privados e públicos, ocupassem um lugar central e configurassem uma nova colecção de bens comuns e de bens públicos que funcionariam como uma fonte privilegiada de criação de empregos no mundo rural.

3.1. O contributo da teoria positiva da multifuncionalidade

A teoria positiva da multifuncionalidade expressa pela OCDE (OCDE, 2001) tem “duas referências ideológicas” de peso que lhe determinam todo o sentido. Em primeiro lugar, o sistema comercial multilateral da Organização Mundial de Comércio (OMC) é a variável exógena do regime de trocas

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internacionais, em segundo lugar, este entendimento geral determina que a “externalidade” ao nível da exploração agrícola seja tratada como um pro-blema ou característica inerente à produção, isto é, como um problema tec-nológico próprio da actividade. Percebe-se o alcance da abordagem. Por um lado, visa-se reduzir qualquer justificação lateral para “proteger a produção”. Por outro, visa-se reduzir a própria amplitude da multifuncionalidade, consi-derando-a uma questão que pode ser ultrapassada pela tecnologia. No limite, pode mesmo dizer-se que a teoria positiva visa reduzir a multifuncionalidade à monofuncionalidade, já que, no seu entender, se está a pedir demasiado à agricultura. Sabemos que outras actividades não-agrícolas são igualmente responsáveis pela produção de externalidades e bens públicos em espaço rural. De resto, podemos pôr em causa que a segurança alimentar, a qualida-de ambiental ou a viabilidade das zonas rurais sejam “externalidades puras” da agricultura.

O alerta que a teoria positiva da multifuncionalidade lança é o seguinte: a actividade agrícola pode ficar esmagada entre o sistema de trocas interna-cionais (abaixamento e esmagamento de preços) e o sistema multifuncional da agricultura (encargos adicionais de exploração com a produção de exter-nalidades), pois todos sabemos que o financiamento por via da política pública é insuficiente, é desigual e não é duradouro. Se esta eventualidade acontecer, quer dizer, se este encargo adicional for excessivo, não temos produção agrícola, nem externalidades positivas. O único efeito positivo terá sido o desaparecimento das externalidades negativas. O alerta faz todo o sen-tido e reclama prudência e moderação relativamente ao risco de uma ambien-talização precipitada da agricultura por via de novos custos de formalidade oriundos de regulamentos e directivas europeias (Covas, 2007).

Por maioria de razão, este alerta faz todo o sentido para as agriculturas locais e regionais que são as variáveis endógenas do sistema. Enquanto as arbitragens de nível superior, OMC e PAC, não incorporarem, elas próprias, um modelo de externalidades e bens públicos, ou seja, “um terceiro pilar e um modelo de negócio para os bens de mérito e reputação”, todas as combi-nações de bens privados e bens públicos dos níveis inferiores estão, perma-nentemente, sob o fio da navalha e na expectativa de uma nova negociação. As consequências imediatas são óbvias: a instabilidade da produção agrícola causa uma degradação das externalidades positivas e dos bens públicos asso-ciados e este efeito é regionalmente muito desigual, dado que as regiões mais desfavorecidas não terão os meios próprios para acorrer e mitigar essa even-tualidade (Covas, 2007).

Nestas circunstâncias, a teoria positiva da multifuncionalidade é muito clara: em face de recursos escassos e sem base produtiva não haverá bens públicos agro-rurais. A “solução técnica, tecnológica e profissional” é prefe-

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rida à “solução multifuncional” que pode ser satisfeita por outras actividades não-agrícolas. A política pública deve ser muito selectiva e cirúrgica e visar os casos em que há, manifestamente, uma subprodução de externalidades positivas. Digamos que para a teoria positiva quanto menos multifuncionali-dade melhor, o que não significa rejeitar ou ignorar a importância dos bens de mérito em geral.

A arquitectura conceptual da teoria positiva da multifuncionalidade

A actividade agrícola gera “produtos múltiplos” que têm a característica de “produção conjunta”, produtos comerciais e não-comerciais; os produtos não-comerciais, assim gerados, apresentam características ou “externalida-des” que os aproximam dos bens públicos ou de interesse público. Os produ-tos múltiplos têm, uns, natureza comercial (um mercado e um preço) e, outros, natureza não-comercial (não têm mercado nem preço), isto é, apre-sentam características de bem público (por exemplo, os serviços ecossisté-micos)

A “produção conjunta” significa que os produtos múltiplos são obtidos a partir dos mesmos factores, meios e tecnologias de produção, isto é, têm o mesmo processo produtivo e são tecnologicamente indissociáveis. As “externalidades” são os efeitos, directos e indirectos, produzidos pela produ-ção primária ou agrícola sobre o ambiente envolvente, cujas características (mais ou menos mercantis) os aproximam dos bens de interesse público. Os bens de interesse público são bens sem valor de troca directo (falha de mer-cado) mas com elevado valor de uso, razão pela qual proporcionam aos seus utilizadores elevadas externalidades positivas.

Os custos de transacção são os custos necessários para tornar funcionais e operacionais as externalidades e os bens de interesse público, na exacta medida em que, devido ao seu estado de “pureza”, se apresentam inacessí-veis ou difíceis de delimitar; falamos de custos de organização, negociação, funcionamento e manutenção, não apenas da externalidade em sim mesma como dos diversos grupos de interesse implicados por ela. Neste contexto, a acção pública, pela sua intensidade e natureza, tanto pode ser uma parte do problema como uma parte da solução; passiva, pró-activa ou supletiva, tudo depende da extensão dos custos de transacção e da motivação dos actores para levar a cabo a sua auto-regulação.

Vejamos, agora, as questões mais pertinentes associadas a este desenho

conceptual, se quisermos, as questões de dinâmica conceptual da teoria posi-tiva da multifuncionalidade (Covas, 2007).

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Em abstracto, não é difícil enunciar uma série longa de externalidades positivas e negativas associadas à produção agrícola e alimentar, das mais puras e globais até às mais impuras e locais; a teoria positiva, porém, põe em causa que essa associação, em muitos casos, seja uma ligação funcional forte e possua uma interdependência tecnológica definitiva, isto é, não existe uma relação exclusiva de causa-efeito entre os dois bens e mesmo a relação tec-nológica pode ser modificada com alguma facilidade. Quer dizer, é manifes-tamente abusivo criar tipologias de produção conjunta e cabazes de produtos múltiplos, que depois, por transferência tecnológica, seriam transportados para outros contextos e lugares. A teoria positiva é muito crítica em relação a esta associação abusiva, que coloca uma enorme sobrecarga sobre a produ-ção agrícola.

A teoria positiva considera que a “dissociação da produção conjunta” é

um objectivo que faz todo o sentido, tanto mais quanto a investigação cientí-fica e tecnológica, a agricultura de serviços e as novas formas de organiza-ção empresarial permitem, cada vez mais, atingir esse objectivo de dissocia-ção. Em resumo, a teoria positiva persegue a dissociação funcional e tecnológica para, em seguida, arranjar um mercado e um preço para a nova actividade. No limite, como já dissemos, as multifunções seriam transforma-das em bens privados e novos mercados. Estaríamos, afinal, no caminho da especialização e da monofuncionalidade. Do produtivismo, no fim de contas. Se nos lembrarmos das produções sem solo, das culturas forçadas, da estabu-lação fechada ou dos organismos geneticamente manipulados, as dúvidas assaltam-nos imediatamente, na exacta medida em que alguns processos de dissociação alteram significativamente a estrutura e a qualidade das externa-lidades e dos bens públicos disponíveis, logo o bem-estar dos cidadãos.

As externalidades, por sua vez, são definidas como efeitos, positivos e

negativos, da actividade agrícola sobre o seu ambiente envolvente, entendido em sentido muito largo: recursos naturais, paisagem, biodiversidade, segu-rança alimentar, bem-estar animal, ordenamento do território, emprego rural, erosão dos solos, poluição dos lençóis freáticos, mau-cheiro, ruídos, crises sanitárias, etc. Estes efeitos são designados de “externos” porque não são “internalizados” pela própria actividade que os produziu, em particular, devido à inexistência ou falha de mercado apropriado para o efeito. Neste sentido, compreende-se que a dissociação, técnica e produtiva, atrás referida está funcionalmente ligada à diminuição das externalidades, na medida em que lhe “arranja um mercado para internalizar o efeito externo”. Por exem-plo, as empresas de serviços agro-ambientais e o mercado ambiental, já hoje, “produzem as externalidades” que estão ao alcance das tecnologias disponí-

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veis. Existe, pois, um mercado e um preço que se podem comparar, com uti-lidade, aos custos e benefícios externos da produção agrícola primária.

As externalidades têm as características de bens de interesse público, no caso mais geral dos bens públicos puros (a beleza da paisagem rural ou o ar puro da serra). Nos casos dos bens públicos não-puros, os mais frequentes, podem acontecer situações de acesso condicionado e de algum congestiona-mento na sua utilização. Recordemos que os bens de interesse público são muito variáveis e ocorrem no espaço de uma forma irrepetível. Os bens públicos puros (a qualidade do ar, o habitat, a biodiversidade) são geralmen-te oferecidos pelo Estado-administração, sendo difícil estimar a sua procura. É possível, pois, que haja sobreprodução nuns casos e subprodução noutros casos. Os bens puros locais (os serviços municipais de incêndios, o serviço de protecção civil), pelo seu âmbito e natureza são oferecidos com maior precisão. Os recursos de acesso livre (os bens oceânicos) são, geralmente, sobre-explorados. Os recursos em propriedade comum (condomínio) reve-lam uma preferência pela gestão associativa/colectiva, mas, também, podem ser geridos por uma empresa de gestão de condomínios. Os bens com acesso privilegiado (campo de golfe ou reserva de caça) têm geralmente uma gestão privada. As reservas de caça, por exemplo, podem ter uma gestão colectiva (reserva municipal), associativa (reserva associativa) ou privada (reserva turística).

Os bens de interesse público são um stock, no sentido mais patrimonial, enquanto as externalidades são um fluxo, originado no acto de produção. Digamos que as externalidades positivas se podem consolidar, com o tempo, em bens de interesse público, até em bens pertencentes ao património da humanidade (os socalcos do Douro). É, assim, porque as externalidades são uma produção da actividade privada, enquanto os bens públicos supõem um interesse colectivo, comum ou público que, geralmente, envolve o dispêndio de verbas avultadas de todas as partes.

A possibilidade de classificar muitas externalidades positivas como bens de interesse público é uma forma de valorizar os activos da exploração e iniciar o seu “processo de ruralização”. Em matéria de externalidades e bens de interesse público, a posição da teoria positiva da multifuncionalidade visa delimitar e circunscrever, com a objectividade possível, a origem da externalidade e os agentes directamente implicados. É, se quisermos, um problema microeconómico e de organização de um mercado em concreto, mais do que uma questão de acção ou política pública, de acordo com o lema geral de que “mais dissociação e mais mercado significam menos externali-dades”.

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Por sua vez, os custos de transacção são os custos envolvidos com o processo de internalização de uma externalidade (aproximação dos seus cus-tos privados e sociais). Na externalidade positiva o custo privado é superior ao custo social, logo, pode haver por esse facto, um défice de oferta do bem público; na externalidade negativa o custo privado é inferior ao custo social, logo, pode haver uma penalização excessiva dos bens públicos em questão. Para aproximar os dois tipos de custo (ou para os repartir pela oferta e pela procura) é necessário encontrar um mediador acreditado que, em função da especificidade do bem público em apreço, saiba indicar a forma de provisão mais adequada ao efeito externo: voluntária, municipal, clube, associação, condomínio, privada, pública.

As diferentes formas de provisão referidas envolvem uma diferente estrutura de direitos e responsabilidades sobre o bem público, cujo grau de complexidade depende do número de grupos de interesse que são utilizado-res do bem público e dos direitos já adquiridos por esses utilizadores. Por exemplo, no interior de uma propriedade privada podem defrontar-se os inte-resses e os direitos de proprietários florestais, de agricultores, de criadores de gado (pastoreio), de caçadores, de ambientalistas, de gestores de áreas de paisagem protegida, de bombeiros, de turistas de ambiente, de cidadãos em passeio, etc. O conflito de interesses pode estar iminente, por exemplo, no quadro da prevenção do fogo florestal ou nas tarefas prioritárias a realizar na sequela de um grande incêndio ou após um longo período de seca. Os custos de transacção são gigantescos e, eles próprios, estão na origem de novos efeitos externos, desta vez quase sempre negativos.

Esta é faceta mais conflituosa da 2.ª ruralidade, a saber, o mercado dos

interesses e dos direitos adquiridos. Basta dizer que há uma economia e um mercado do fogo, como, de resto, um mercado da água em tempo de seca. Perante a falta de regras e transparência destes mercados, a acção pública da administração central é a externalidade de último recurso quando todas as outras formas de provisão falharam. Ou por falta de um mediador acreditado, ou por displicência associativa, ou por incompetência dos interessados, ou por falta de empenhamento dos cidadãos-consumidores de espaço rural. A fileira é conhecida: interesses difusos, incompetência profissional, inorgani-cidade associativa, fundamentalismo doutrinário, excesso de zelo.

Como se observa, estamos rodeados de “não-mercados” por todos os lados, cujos efeitos se acumulam à medida que novos interesses e direitos chegam ao “mercado”. A teoria positiva diz-nos que, enquanto a dissociação da produção conjunta não for possível, existem técnicas de medição directa e indirecta das externalidades positivas e negativas, cujo valor estimado pode

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ser incorporado, por exemplo, no preço final do produto de origem, como um prémio (externalidade positiva) ou penalidade (externalidade negativa).

E, no próximo futuro da 2.ª ruralidade, qual a origem provável dos novos produtos e mercados da teoria positiva da multifuncionalidade?

Não temos dúvidas de que as ciências da vida, as biotecnologias, a investigação agronómica e o marketing agrorural ajudarão a promover “novas dissociações da produção conjunta” e que “as externalidades se con-verterão em novos bens e mercados de futuro”. Aí estarão o mercado dos alimentos saudáveis, dos bio-alimentos, dos alicamentos (alimentos--medicamentos), dos OGM, dos novos bioquímicos, dos bens e serviços ambientais, dos referenciais de normalização alimentar, das tecnologias lim-pas e doces, das consociações felizes, o mercado da bio-reciclagem, os novos mercados da água, etc. Só não sabemos que novas discriminações e desi-gualdades surgirão e qual o novo stock de externalidades que lhe correspon-derá. Entre os mercados e os interesses, a teoria positiva da multifuncionali-dade deposita uma fé imensa na ciência e na profissão.

3.2. O contributo da teoria normativa da multifuncionalidade

Definimos a teoria positiva como um atributo ou característica do acto de produção agrícola. É nesta sede que se resolverão os problemas de exter-nalidades, com mais e melhor produção agro-alimentar, que a ciência, a tec-nologia e os mercados ajudarão a internalizar. No final, terão desaparecido os “não-mercados”, a multifuncionalidade será produzida de acordo com as regras da “produção dissociada”.

A teoria positiva deixou uma série de alertas contra uma “ruralização precipitada” e a publicização de uma série de interesses. Estes afirmam-se como legítimos e face às externalidades têm uma estratégia: a privatização dos benefícios e a socialização dos prejuízos. Os custos de transacção cres-cem desmesuradamente e as soluções colectivas e/ou associativas não têm força para se impor. A administração central toma conta da ocorrência, como solução de recurso, mas para não sofrer retaliação dos grupos de interesse sobrecarrega desproporcionadamente o cidadão comum, gerando, assim, a maior externalidade negativa de sempre, aquela que recai sobre os interes-ses difusos dos cidadãos indefesos (Covas, 2007: 59).

Dito isto, a teoria positiva lança uma espécie de anátema sobre a teoria normativa da multifuncionalidade agrícola, como se atirasse, desde já, uma providência cautelar sobre o processo de ruralização em que esta assenta.

A abordagem normativa da multifuncionalidade nos debates sobre a política agrícola e desenvolvimento rural visa sublinhar que a agricultura, do

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ponto de vista social, não pode ser vista unicamente como a produção de bens agrícolas. A actividade de produção faz-se acompanhar de efeitos externos que têm um valor, em si, do ponto de vista social e para os quais os consumidores revelam um consentimento em pagar que depende da forma como eles representam essa realidade. Estas representações dos cidadãos e dos consumidores, mas também de outros actores, acerca da benevolência dos efeitos externos da agricultura, não podem ser malbaratadas, têm que ser preservadas, sob pena de gerar um efeito de ricochete sobre a valorização das próprias produções de base, com consequências imprevisíveis.

Tal como os mercados, também as representações dos actores vão variando com o tempo e o espaço, verificando-se que existe uma relação directa entre a representação e a valorização que é atribuída à multifunciona-lidade agrícola. De um ponto de vista normativo, a multifuncionalidade está na origem de um novo modelo de acção pública e política. O seu objectivo é oferecer estímulos que conduzam a produção conjunta da agricultura num sentido desejado pelas procuras da sociedade.

Este livro é sobre a construção social dos territórios da 2.ª ruralidade. Ora o referencial teórico da teoria normativa gira, justamente, em redor do princípio da “produção social de multifuncionalidade”. Isto quer dizer, também, que as falhas de mercado são uma pequena parte do problema, são igualmente importantes as falhas das instituições e das políticas públi-cas. O referencial da teoria normativa gira em redor de três vectores: uma dimensão privada em redor das normas de mercado, uma dimensão pública relativa às normas sobre externalidades e bens públicos e uma norma colectiva relativa à organização local de bens públicos locais e globais (bens colectivos locais).

Já o dissemos, o mercado pode resolver uma parte, talvez crescente, da multifuncionalidade agrícola. Mas os custos de transacção existem. São os custos de conversão-inovação, por exemplo, relativos à conversão biológica ou à conversão agro-turística. São os custos de organização ligados à criação das competências alternativas nas áreas profissional, da formação e investi-gação, da divulgação e da organização interprofissional. São, finalmente, os custos de inovação institucional, por exemplo, as novas competências públi-cas e os novos modelos de governança agrorural e territorial.

Em termos comparativos, ficamos com a sensação de que a teoria posi-

tiva se contrai para economizar funções, tornando-se nesse movimento mais produtivista e economicista, no fundo menos multifuncional, enquanto a teo-ria normativa se expande para englobar mais funções, tornando-se, assim, mais complexa e labiríntica, mais multifuncional mas, também, porventura, mais dispendiosa e ineficiente.

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Em jeito de balanço, e no que diz respeito à agricultura multifuncional, temos à nossa frente três tipos de agricultura:

– Uma agricultura competitiva, liberalizada por sucessivas vagas de nego-ciação internacional; a concorrência das importações afasta os grupos de interesse mais dependentes das ajudas à produção e liberta recursos para outras aplicações, para uma política agrorural mais desligada e pró--activa, independentemente dos riscos de erosão da base produtiva que esta opção implica; este é, claramente, o modelo dominante;

– Uma “agricultura com atributos multifuncionais”, mas muito ligada à parte agrícola da produção conjunta; este tipo de agricultura comporta muitas versões, desde uma multifuncionalidade periférica própria de zonas desfavorecidas até uma multifuncionalidade central em produção conjunta com a agricultura competitiva; este é um modelo em transição, com alguns exemplos representativos, mas ainda muito minoritário;

– Uma “agricultura estruturalmente multifuncional”, ligada a territórios--projecto, eles próprios concebidos com esse objectivo; este é um mode-lo pós-agrícola, mais holístico e sistémico, em que a agricultura é, sobretudo, uma variável endógena de uma multifuncionalidade clara-mente territorial. Estamos, no fundo, perante três multifuncionalidades em construção: em

primeiro lugar, as fileiras especializadas da agricultura competitiva estão, cada vez mais, obrigadas a respeitar uma multifuncionalidade horizontal ligada a questões de qualidade e segurança alimentares e de responsabilidade ambiental e social; em segundo lugar, as pequenas fileiras de produtos com denominação de origem de qualidade constroem a sua multifuncionalidade em função de uma convenção de qualidade e do seu ecossistema de acolhimento; por último, os territórios-projecto ou os territórios-rede que constroem a sua multifuncio-nalidade agro-territorial a partir das amenidades de uma unidade de paisagem, dos recursos de uma zona de intervenção agro-florestal ou de uma instituciona-lidade dedicada de uma cooperativa multissectorial.

Para concluir este tópico sobre as teorias positiva e normativa da multi-

funcionalidade agrorural, talvez possamos rematar da seguinte forma (Covas, 2007: 71-72)

– A teoria positiva fala de “dissociação da produção conjunta” de bens e serviços, a teoria normativa fala de “consociação de novas missões e finalidades” da agricultura;

– A teoria positiva fala de “falhas de mercado”, a teoria normativa acres-centa as “falhas das instituições e das políticas públicas”;

58 Os territórios-rede

– A teoria positiva fala de “internalizar as externalidades”, a teoria norma-tiva fala de “produzir novos bens contextuais e identitários”;

– A teoria positiva fala de “privatizar os bens públicos”, a teoria normati-va fala de “novos direitos de utilização da propriedade”;

– A teoria positiva fala de “criação de novos mercados”, a teoria normati-va fala de uma “nova organização colectiva, isto é, uma governança local”;

– A teoria positiva fala de “custos de transacção funcionais”, a teoria normativa fala de “novo sistema de competências multifuncionais”. É assim do ponto de vista teórico. No plano dos factos, porém, o exces-

so de realidade não se compadece com esta divisão analítica. O que somos depende das nossas expectativas e estas são reajustadas continuadamente pelos factos. Assim, acontece, também, com as abordagens positiva e norma-tiva da multifuncionalidade agrícola.

3.2. O contributo dos bens de mérito para um novo contrato social

Em termos de um novo contrato social para a 2.ª ruralidade, a multifun-cionalidade agrorural e os bens de mérito fazem um casamento perfeito. Todavia, no terreno concreto da realidade, já hoje assistimos a uma disputa cerrada entre dois grupos de fiéis partidários, uma contenda que se acentuará nos mercados de futuro do mundo agrorural. Referimo-nos ao grupo da bio-tecnologia produtivista, muito poderoso, que acredita na bondade da tecno-logia e dos mercados para resolver todos os problemas emergentes e o grupo da biotecnologia ecossistémica, menos poderoso mas não menos crente, que acredita na virtude redentora dos ecossistemas naturais, naturalizados ou regenerados, como modelo de referência para o funcionamento dos agrossis-temas.

Nos mercados de futuro, os bens e serviços que incorporem, ao mes-mo tempo, a eficiência económica, a responsabilidade social, a sustentabi-lidade ambiental e cultivem a identidade dos territórios, serão considera-dos bens de mérito e reputação e estes atributos distintivos serão a sua fonte de valor primordial que a sociedade premiará quer por via do preço quer por via de contrato ou qualquer outra transferência pública. A pro-cura destes sinais distintivos tornar-se-á, em si mesmo, um factor de dife-renciação por excelência.

Em síntese, estamos a falar da transformação gradual de agrossistemas em agro-ecossistemas. Do que se trata, portanto, é de criar as condições para que estes sinais distintivos vejam a luz do dia e sejam, progressivamente,

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incorporados no desenho dos mercados agroecológicos e agro-ecossisté-micos. Pelo compromisso que promovem entre bens privados, bens comuns e bens de interesse público, estes mercados compostos serão o grande desa-fio do próximo futuro, quer para a investigação científica, na zona de frontei-ra entre a economia e a ecologia, quer para as políticas agro-rurais, na for-mulação conceptual e no desenho de novos instrumentos, de tal modo que seja possível lançar uma nova geração de bens públicos agro-rurais onde o lugar central seja desempenhado pelos bens de mérito e reputação.

Para estes mercados compostos, eis as nossas perguntas de partida. Será possível imaginar no próximo futuro uma exploração agrícola mul-

tifuncional composta por mais alimentos certificados (desde os convencio-nais até aos biológicos com passagem pelos modos de produção integrada), por uma produção sustentável de bens e serviços agro-florestais de uma flo-resta de uso múltiplo, por uma base diversificada e pluralista de produção energética (desde as formas mais convencionais às renováveis com passagem pelas culturas energéticas de biomassa), pela conservação e restauração de funções ecológicas relativas aos elementos solo, água, vegetação, espécies ameaçadas e clima, por uma componente recreativa em múltiplas formas compatíveis de produção-conservação-recreação, obtendo-se, no final, uma produção composta de “campo novo” fazendo um forte apelo às actividades trabalho-intensivo e, portanto, também, a um novo simbolismo identitário da memória agrocultural?

Será possível imaginar uma Nova PAC pós-2013 (aprovada em 2014) em processo de transformação de uma política de produção e rendimentos agrícolas desligados para uma política de promoção de bens públicos e externalidades positivas, cumprindo funções conservacionistas, energéticas, ambientais e rurais, numa economia de base produtiva multifuncional, onde as boas práticas naqueles domínios são, também, os códigos inspiradores de uma boa conduta pessoal e social, e em que a conservação de recursos, a efi-ciência energética e a moderação nos consumos são virtudes activamente promovidas e premiadas?

Será possível imaginar, nas nossas áreas rurais de baixa densidade, a organização de territórios-rede e a confluência virtuosa entre a ecologia e a economia, num combate sem tréguas contra a máxima entropia, isto é, a desertificação e o despovoamento desses territórios?

Será possível imaginar, no próximo futuro, em face da rápida dinâmica dos territórios, como se apresentará o conflito de interesses entre ocupações do solo, agrícolas, florestais, energéticas, conservacionistas e turísticas e, bem assim, o formato organizacional de mediação e conciliação de interesses que lhe poderá corresponder?

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Estas interrogações, entre outras, fazem parte das preocupações da ecos-socioeconomia (Sachs, 2007), uma área do saber ainda muito controversa, em elaboração contínua, onde os equívocos mais frequentes só são ultrapas-sados pela necessidade imperiosa de reconciliar as disciplinas da ecologia (as normas da casa) e da economia (o governo da casa), na exacta medida em que a lei da entropia ou da degradação do meio ambiente, omnipresente, espreita a todo o momento e obriga a esse entendimento.

Dito isto, basta olhar à nossa volta e ver. O mundo está praticamente organizado às avessas. O espaço agrorural é, seguramente, um dos exemplos mais eloquentes da 2.ª lei da termodinâmica, a lei da entropia ou da degrada-ção continuada das formas de energia. De uma revolução que começou “ver-de”, na química, na mecânica e electricidade, mas que, rapidamente, se embrulhou no turbilhão do processo irreversível de degradação energética rumo à sua dissipação calórica. Processo espectacular cujos impactos e pre-juízos saltam todos os dias à nossa frente: exaustão dos recursos naturais solo e água, poluição dos mesmos recursos, abandono e desertificação agro-rural, despovoamento e desvitalização social, êxodo agrícola e rural e guetos urbanos, rupturas nos subsistemas locais da base informacional, da educação e da saúde, para alimentar e compensar os níveis de entropia monumentais do centro ordenador, devido, justamente, ao seu gigantismo organizacional.

Dito isto, é um imperativo de civilização e cultura fazer convergir rapi-damente as disciplinas da ecologia e da economia, as normas e o governo da casa comum, pois não é possível suportar, por mais tempo, a situação para-doxal a que assistimos:

– Rendibilidades económicas positivas coexistindo com balanços energé-ticos desastrosos; só porque o sistema de preços é transitoriamente favo-rável, mantêm-se sistemas produtivos em rota de colisão com os siste-mas energéticos e biofísicos;

– Balanços energéticos comprovadamente positivos coexistindo com ren-dibilidades económicas negativas que o mercado não valoriza suficien-temente e que sobrevivem graças às subvenções dos contribuintes;

– A proliferação de contra-ordenações, compensações e mitigações de natureza ambiental, que se parecem mais com o “pagamento de indul-gências” e servem para confundir os nossos problemas de consciência a propósito.

Os bens de mérito: uma legitimação agroecológica e agr(o)cultural

Se queremos passar um novo contrato social com o mundo agrorural teremos de ser capazes de elaborar uma nova teoria da legitimação agroeco-

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lógica e agr(o)cultural onde os bens de mérito e reputação têm uma função nuclear a desempenhar. Vejamos, pois, como poderemos sustentar esta teoria da legitimação.

Em primeiro lugar, a nova legitimação reporta-se a uma cultura pós--agrícola ou, talvez melhor, pós-convencional que incorporará, em dose variada, agr(i)cultura e agr(o)cultura, isto é, uma agricultura de diversifica-ção que, pela sua natureza tridimensional (produção, conservação e recrea-ção), é mais agr(o)cultura do que agr(i)cultura. Com uma vantagem adicio-nal. Na sociedade da informação e do conhecimento em que viveremos, a adopção destes factores distintivos ajudará a criar reputação e bens de méri-to, isto é, valor acrescentado que valorizará empresarialmente quem os pro-move. Este é, de resto, o sinal mais distintivo da cultura pós-convencional.

Em segundo lugar, para a cultura pós-convencional que se avizinha, é fundamental preservar e valorizar tudo o que rodeia a provisão regular de serviços ecossistémicos. O universo destes serviços é impressionante se pen-sarmos em todos os efeitos externos que desencadeia. De facto, a salvaguar-da e promoção dos efeitos positivos e a minimização dos negativos é, só por si, um programa de trabalho de grande fôlego para a política pública e uma oportunidade única para o mundo rural. Falamos de serviços que sustentam a vida, que regulam os equilíbrios ecológicos, que produzem bens materiais e que nos oferecem bens culturais de um valor inestimável. Só uma economia contratual pode registar, com rigor e com justeza, o elenco dos serviços ecossistémicos prestados, a qualidade e o valor dessa prestação e, bem assim, providenciar a compensação justa e merecida por essa contribuição para o bem-estar das populações e das suas respectivas actividades económicas.

Em terceiro lugar, a nova legitimação já não tolera a internalização e socialização de prejuízos como costuma dizer a economia do ambiente. Com efeito, já não é suficiente esta abordagem, um pouco cínica, da socia-lização e remediação dos prejuízos. Ao contrário, os recursos escassos dos contribuintes devem servir prioritariamente para a produção de bens de mérito que promovam e salvaguardem os mercados de futuro da agr(o)cultura, na linha da economia dos agroecossistemas e numa acepção mais democrática de inclusão socio-territorial das regiões mais desfavore-cidas e respectivas populações.

Em quarto lugar, a nova teoria da legitimação necessita de um embeded-deness territorial muito forte que aproveite os recursos endógenos, que gere benefícios de contexto, que crie novos mercados e novas cadeias de valor, que valorize a identidade e o capital social dos lugares e dos territórios.

Em quinto lugar, a nova legitimação tem uma relação directa com a fronteira do risco, a justiça ambiental e o acesso aos recursos naturais. Face aos grandes riscos os problemas locais não têm uma solução fácil. Face aos

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danos incomensuráveis causados aos ecossistemas e dada a importância vital de que se revestem os serviços ecossistémicos para o bem-estar das popula-ções, estamos perante um problema político de primeira grandeza, a saber, o acesso equitativo aos recursos e a regulação política desse acesso. Uma vez mais uma questão primordial de política pública que só uma governança multilateral está em condições de abordar com sucesso. Os grandes riscos não conhecem fronteiras, os seus impactos fazem-se sentir por todo o globo e produzem efeitos discriminatórios graves, não apenas sobre as condições de vida de largos estratos da população mas, também, sobre a capacidade de muitos Estados atingidos iniciarem processos de reabilitação do seu valioso património natural, razão pela qual levantamos a questão essencial da regu-lação, do acesso e da provisão dos bens públicos globais, em si mesmos, bens de mérito de primordial importância. O protocolo de Quioto e o merca-do do carbono são um bom exemplo destes bens de mérito.

Em sexto lugar, a nova teoria da legitimação dos bens de mérito reco-nhece o lugar central desempenhado pelos sistemas produtivos locais e pelas convenções de qualidade de uma agricultura acompanhada pela comunidade. Falamos de um contexto agrorural em que o sistema de produtos (produção sem coordenação e integração) dá lugar aos produtos do sistema (produção com coordenação e integração). Feita uma primeira comprovação relativa-mente ao estado de saúde dos capitais aí existentes (capital natural, capital físico, capital humano e capital social) e à densidade e intensidade das suas ligações biodiversas, produtivas e relacionais, é, então, o tempo de desenhar o modelo agroecológico que melhor serve o sistema produtivo local, assim como o cabaz de produtos e serviços que lhes corresponde e que melhor se ajusta às finalidades, princípios e objectivos expressos numa Convenção de Qualidade do Território.

Em sétimo lugar, a nova teoria da legitimação guardará um lugar espe-cial para a construção social de territórios-rede. O território de uma coopera-tiva multi-serviços, a constituição de um parque agrícola periurbano, o terri-tório de um parque e/ou reserva natural, o ordenamento e gestão de terrenos baldios, uma zona desfavorecida com handicapes específicos, uma grande aglomeração de explorações minifundiárias, são terrenos de eleição para tes-tar novos instrumentos de governança territorial. No estado de prevenção e carência em que se encontram muitos dos territórios referidos, o desenho ins-titucional assume uma importância decisiva, que não ignora a precariedade dos recursos próprios e a base ou capital social em que assenta toda a organi-zação convencional. Só uma direcção/liderança muito criativa pode propiciar e conciliar factores tão diversos, mas tão inevitáveis, como são: a orgânica funcional, o insourcing e o outsourcing, a certificação e o benchmarking, o modelo de protecção e gestão do risco, os incentivos e o funding próprio, a

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imagem de marca e o marketing, as formas de gestão partilhada e o entre-preneurship, a gestão e mediação de conflitos, etc. O simples enunciado des-tes factores críticos serve para mostrar que o modelo de governança de um território é a chave para um empreendimento bem-sucedido.

Contrato social e ecotopia do mundo rural

A nova teoria da legitimação permite-nos fazer a passagem para a outra margem. O século XX foi marcado pelos avanços espectaculares da física e da química, o século XXI pertencerá às ciências da vida. De facto, o advento da economia biotecnológica, em particular, no último quartel do século vin-te, é, de tal modo, espectacular e surpreendente que poderemos estar, para-doxalmente, no limiar do melhor e do pior dos mundos. “Um admirável mundo novo” onde quase tudo é possível.

Mas se a economia biotecnológica tem o domínio dos instrumentos e dos processos, a nova economia agroecossistémica do mundo rural já tem, também, uma matriz de objectivos bem consolidados que aqui relembramos: a reposição e valorização da biodiversidade, a pluralidade e a integração das fontes energéticas, a multifuncionalidade e a integração das actividades eco-nómicas, a sustentabilidade dos processos e dos recursos naturais, a valora-ção e valorização dos serviços ecossistémicos, a qualidade e a segurança dos alimentos, a reticulação multilocal dos empreendimentos agrorurais, a conso-lidação dos mosaicos e unidades paisagísticas, a solidariedade e a coopera-ção territorial descentralizada entre grupos de municípios, regiões e países. É a este conjunto de objectivos e à economia convencional e contratual que lhe corresponde que atribuímos a designação de “ordem agroecológica” que marcará decisivamente a 2.ª modernidade da agricultura e do mundo rural.

Nesta nova ordem da agricultura da 2.ª modernidade está, também,

implícita uma tese controversa que aqui designamos como “ecotopia do mundo rural”, uma nova ecologia política do mundo rural que poderia ser definida, de modo simples, como a convergência ou a fusão entre os direitos do consumidor e os direitos da natureza, de acordo com uma noção pós--materialista de consumo, mais glocalista, denominada, diferenciada, biodi-versa, culturalista, patrimonialista, ecossistémica.

Nesta circunstância, a pergunta mais pertinente é a seguinte: estão os movimentos sociais da agricultura sustentável, dos consumidores, do ambiente e do património histórico e cultural, por via de uma convergência, mutuamente vantajosa, dos direitos agroecológicos, sociais, naturais e patri-moniais, em condições de se erguerem a um patamar superior de consciência e organização, de tal modo que sejam capazes de influenciar, no sentido pre-

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tendido, o sistema produtivista e mercantilista dominante ou, em alternativa, articulando-se, de alguma forma, com esses interesses (e, quem sabe, por eles, mesmo, patrocinados), e prosseguir, assim, os mesmos objectivos?

A ecotopia do mundo rural está, ainda, assente num outro processo de convergência ou fusão, a saber, entre a agricultura como espaço-produtor e a agricultura como espaço-produzido. Aqui, a nossa ecotopia significa que acreditamos que se poderá dar uma fecundação e rejuvenescimento do mun-do agrorural, isto é, que a fusão dos dois espaços proporcionará a chegada de novos actores atraídos por uma “nova estrutura de oportunidades”. Faz sen-tido, pois, o aviso: é preciso ordenar e regular a chegada desse urbano pós--moderno, quantas vezes arrogante, vaidoso e ignorante, em busca de expe-riências de um certo kitch rural em que o campo serve de elemento decorativo e figurativo para muitas operações de marketing turístico.

A ecotopia do mundo rural faz-se, igualmente, sentir no domínio das agriculturas ecológicas onde a curiosidade é muito elevada. Nestes casos, o acesso está, aparentemente, mais facilitado, os capitais necessários são mais reduzidos, logo o valor acrescentado pode ser mais rápido. Na grande área das agriculturas ecológicas teremos um campo de possibilidades com inte-resse, apesar de sabermos, também, que se farão muitas mais “experiências caprichosas”, muitas delas com destino marcado.

Na ecotopia do mundo rural, a aceleração das dinâmicas territoriais e a desestruturação social que daí decorre são de tal ordem que estamos confron-tados e destinados a ser “construtores sociais de território” mesmo contra nossa vontade. Para isso, teremos de nos libertar do discurso dicotómico dominante e reinventar o sentido relacional das coisas. Nesta conjuntura, estamos mergulhados numa mobilidade constante. Todos somos migrantes: pessoas, recursos e territórios. Tudo está em desconstrução-reconstrução. Reina a anarquia madura. O capitalismo continua o seu trabalho de sapa. As identidades são abandonadas e substituídas pelo conceito de mobilidade migrante. É o admirável mundo novo da razão instrumental e das redes de todo o tipo. É aqui que nos encontramos, numa encruzilhada de territórios sem rede, de territórios em rede e de territórios-rede.

A nova agenda europeia para o mundo rural

No seio desta ecotopia do mundo rural, emerge uma série de trabalhos de investigação, de iniciativa alemã, conhecida por TEEB (2009) (The Eco-nomics of Ecosystems and Biodiversity). É neste contexto que observamos uma nova agenda europeia em formação e que apreciamos sobremaneira os esforços da União Europeia para consagrar uma agenda da economia da bio-diversidade, dos ecossistemas, dos serviços ecossistémicos, das alterações

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climáticas e dos riscos globais, enfim, de uma economia hipocarbónica e ecossistémica. Uma parte destas preocupações ficou consagrada na PAC pós-2013, sobretudo no que diz respeito à temática dos bens públicos rurais. Por isso, nós atrevemo-nos a perguntar, depois de várias décadas de política agrícola comum e de muita controvérsia sobre os seus fundamentos e custos:

Está a sociedade europeia, e nacional, ainda disponível para subscre-ver com o mundo rural um contrato de sociedade cujo propósito essencial seja o desenho de estratégias locais de segurança alimentar e ecológica onde se incluem a provisão de serviços ecossistémicos, a prevenção contra os grandes riscos e a defesa e valorização dos recursos naturais e a biodiversi-dade que são vitais para o bem-estar das populações e, muito especialmen-te, os grupos mais desfavorecidos e vulneráveis?

Estará a próxima agenda europeia de políticas públicas para a agricultu-ra e o mundo rural orientada prioritariamente para a promoção dos mercados de futuro e dos bens de mérito na linha dos quatro vectores antes referidos, agroecologia, biodiversidade, serviços ecossistémicos e paisagem? E, nesse sentido, em que medida a política de subsídios à produção e ao rendimento da União Europeia dará lugar, progressivamente, a uma ajuda contratual por serviços prestados, uma mistura inteligente de empresarialização e contratua-lização enquanto o preço do produto final não incorporar toda a “fileira de mérito”? Estamos, também, convencidos de que, neste intervalo de tempo, o mercado dos serviços agroecológicos, ecossistémicos e paisagísticos se apro-fundará e que novas fórmulas contratuais e mercantis verão a luz do dia.

Tudo somado, e apesar do TEEB, não estamos ainda próximos do que poderíamos designar como “um ponto paradigmático de viragem”, isto é, no limiar de um terceiro pilar da PAC para o mundo rural, relativo à economia dos ecossistemas, da biodiversidade e dos serviços agro-paisagísticos. Trata--se de uma passagem lenta e demorada, conhecimento-intensiva, que a teoria normativa não está em condições de precipitar, enquanto não for socialmente e institucionalmente interiorizada.

De facto, uma economia rural TEEB, no plano europeu é, para já, um caminho muito estreito, não obstante os sinais positivos nessa direcção. De facto, uma economia TEEB (3.º pilar) tem muita dificuldade em confrontar--se com uma economia OCMA (organização comum dos mercados agrícolas, 1.º pilar) e com uma economia PDR (programa de desenvolvimento rural, 2.º pilar), há muito instaladas no mundo do agro-negócio e do agro-território.

O que queremos dizer é que o modelo centralizado em vigor, mais no 1.º pilar e menos no 2.º pilar, não é, ainda, compatível com a aplicação con-creta e material do conceito de multifuncionalidade agroecológica, ecossis-

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témica e paisagística, ele próprio muito controverso como já referimos ante-riormente. As contradições são visíveis e espreitam a três níveis:

– A multifuncionalidade agrorural renova e refresca a especificidade e a legitimidade da agricultura e do mundo rural, por mais ambíguos e difu-sos que sejam os factores e os sentimentos em consideração;

– A especificidade agrorural, o desligamento das ajudas à produção, a diferenciação dos produtos pela qualidade e a pluriactividade, recolo-cam o problema da concorrência em termos inteiramente novos, pois, ao fim e ao cabo, estamos a comparar situações que não são comparáveis, dada, justamente, a sua singularidade agro-territorial;

– A especificidade é, também, sabemo-lo bem, fonte de ineficiência e desperdício; equidade não se confunde com ineficiência e uma agricul-tura de serviços não é necessariamente mais eficaz e menos dispendiosa do que uma terciarização empresarial desses serviços. A renacionalização parcial da PAC, até mesmo a sua regionalização,

pode ser justificada e legitimada pelas razões anteriores, uma vez que não estamos a falar de produtos de massa mas de produtos de qualidade original; neste caso, as ajudas nacionais e regionais podem ser consideradas compatí-veis por não distorcerem as regras de mercado.

Todas estas eventuais contradições não terão muito significado se a

regulação do risco global, pela União Europeia, não for efectiva e não fun-cionar aos diferentes níveis ou escalas do problema. Os bens de mérito e reputação pertencem, não apenas a uma economia intensiva em conhecimen-to mas, sobretudo, a uma economia intensiva em valores. Falamos de bens e serviços, limpos, livres, justos e dignos. Só com estes atributos experimenta-remos a utilidade social do respeito e estaremos em condições de preparar a 3.ª revolução verde.

Conclusão da I Parte

Na primeira parte deste livro procurámos, claramente, perscrutar o futu-ro próximo tendo em vista alargar o campo das possibilidades e a diversida-de dos presentes, amanhã: com a Declaração de Princípios da 2.ª ruralidade, no plano político-doutrinário, com a transição dos territórios-zona para os territórios-rede, no plano cognitivo mas, também, simbólico, com a multi-funcionalidade e os bens de mérito, no plano substantivo, como traves--mestras e pilares de um novo contrato social com o mundo rural.

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Preocupa-nos imenso a aceleração e o encurtamento do ciclo de vida dos territórios, a violência social e simbólica da sua desconstrução e a escas-sez de recursos que são postos à sua disposição para as tarefas da reconstru-ção. Neste sentido, a primeira parte deste livro é uma espécie de grito de alarme e de alerta, tanto mais significativo quanto ocorre num país onde é muito arriscado ter razão antes de tempo.

A 2.ª ruralidade é essencialmente um tempo de esperança e de compos-sibilidade, que está à nossa frente e ao nosso alcance. Apesar do “contrato social e da ecotopia do mundo rural” tivemos o cuidado de não cortar o cor-dão umbilical com o “sistema em vigor”. Esse cuidado nota-se na forma pru-dente como apresentámos os contributos da teoria da multifuncionalidade e dos bens de mérito que consideramos fundamentais para o novo contrato social da 2.ª ruralidade. Esse cuidado nota-se, ainda, na própria agenda euro-peia para a agricultura e o mundo rural. O programa TEEB é esse cordão umbilical, uma espécie de biopolítica que nos devolverá a verdadeira essên-cia das coisas. Como veremos nos próximos capítulos.

II PARTE

A BASE AGROECOLÓGICA DA 2.ª RURALIDADE:

A 3.ª REVOLUÇÃO VERDE (3.ª RV) Na segunda parte vamos abordar a base agroecológica e ecossistémica

da 2.ª ruralidade, o que aqui designamos de “3.ª revolução verde”, depois da revolução químico-mecânica conhecida por 1.ª RV e da revolução biotecno-lógica, mais recente, conhecida por 2.ª RV. No capítulo 4 iremos abordar o contributo da teoria da modernização ecológica (TME), mais conhecida por capitalismo verde. Veremos algumas teses a propósito, bem como algumas críticas à luz da teoria do desenvolvimento sustentável (TDS). No capítulo 5 abordaremos a longa transição agroecológica e agroecossistémica e as dúvi-das existenciais a propósito da transição da 2.ª para a 3.ª revolução verde. No capítulo 6 procuramos ilustrar a base agroecológica e ecossistémica da 2.ª ruralidade através de uma revisitação ao universo paisagístico e conceptual do Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT), com um enfoque particular na transformação da cidade-zona em cidade-região e no seu especial metabo-lismo e organicismo ecossistémico.

4. O contributo da teoria da modernização ecológica (2.ª RV)

Em 1962 Rachel Carson publica a obra premonitória A primavera silen-ciosa (Carson, 1962), sobre as relações entre o modelo agro-químico de agricultura e suas consequências sobre o meio ambiente. Tinha acabado de nascer a chamada “questão ambiental”. Esta contextualização é fundamental para perceber a evolução do pensamento social em matéria ambiental, por exemplo, a formação da disciplina de sociologia ambiental no quadro mais abrangente da teoria sociológica. Não admira, portanto, que adquiram impor-tância relevante os grandes acidentes industriais, químicos e nucleares, dos anos setenta e oitenta do século passado, que se traduziram em outras tantas

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crises do industrialismo do sistema capitalista e que estão, em grande medi-da, na origem da modernização reflexiva da modernidade tardia, tal como se pode ler e extrair do pensamento social de autores como Anthony Giddens e Ulrich Beck (Beck et al: 2004).

Estes grandes acidentes do industrialismo capitalista, que já eram pres-sentidos nos protestos dos movimentos ambientalistas mais radicais dos anos setenta, de inspiração neomarxista e ecologista radical, têm uma consequên-cia maior sobre o entendimento até aí prevalecente acerca da questão ambiental. A “nova questão ambiental”, onde se integra, com lugar de desta-que, a teoria da modernização ecológica, pode ser expressa através de algu-mas mudanças importantes: da mudança sectorial para as mudanças globais, do risco local para o risco global, da abordagem ideológica para a aborda-gem pragmática do problem-solving, dos movimentos alternativos para os movimentos participativos, do governing para a governance do policy-process, das subdisciplinas ambientais para o corpo principal da teoria sociológica e das políticas domésticas para os regimes da modernidade global.

4.1. O capitalismo verde e as teses sobre a modernização ecológica

A teoria da modernização ecológica (TME) é um exemplo eloquente da evolução da questão ambiental do último meio século. No início, é uma reacção contra as teorias mais radicais e desconstrutivistas dos anos setenta, que visavam combater o sistema capitalista, mais tarde, antecipa e materiali-za, de acordo com as suas próprias convicções, nas economias desenvolvidas do norte e centro da Europa, a teoria do desenvolvimento sustentável (Rela-tório Bruntdland de 1987 e Conferência do Rio de 1992), finalmente, confere verosimilhança e optimismo à grande teoria da modernização reflexiva, não obstante pairar sobre ela o pessimismo da teoria do risco global.

A importância da teoria da modernização ecológica (TME) é que ela acredita, pragmaticamente, que melhorias sucessivas no funcionamento dos mercados, das tecnologias, das instituições e dos comportamentos, condu-zem o capitalismo verde ao desenvolvimento sustentável.

As origens histórico-estruturais da TME, o capitalismo verde

A teoria da modernização ecológica (TME) está em linha com as gran-des preocupações ambientais do último quartel do século XX. Na fase ini-cial, devido ao “romantismo radical” dos movimentos sociais ambientais, não surpreende que os grandes conceitos sociológicos ambientais tenham uma origem de inspiração neo-marxista ou, então, giram em redor de uma

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mudança de paradigma como é aquele que se exprime pelo binómio HEP--NEP (Human Exceptionalism Paradigm and New Environmental Paradigm) de Catton e Dunlapp (1978). Em causa, de facto, estava uma mudança de para-digma: dos impactos dos humanos no ambiente, visão antropocêntrica, para os impactos do ambiente nos humanos, visão ecocêntrica.

Logo de seguida, os grandes acidentes da década de 80 deixam de res-peitar países, sistemas e fronteiras e mudam, por isso, a natureza e a escala dos problemas ambientais. Ao mesmo tempo, entre os debates do Clube de Roma sobre os limites biofísicos ao crescimento económico e os diversos Relatórios do IPCC sobre Alterações Climáticas ou a grande campanha ambiental de Al Gore denominada “Uma Verdade Inconveniente”, assisti-mos à internacionalização da questão ambiental e à emergência da “grande noção” de desenvolvimento sustentável, na sequência do Relatório Brund-tland de 1987 e nas Conferências do Rio de 1992 sobre Ambiente e Desen-volvimento e de Joanesburgo de 2002.

Neste percurso, o que acontece à teoria da modernização ecológica? Julgamos poder descortinar quatro grandes perspectivas (Covas e Covas, 2010: 64-65):

1.ª: Há, em primeiro lugar, uma escola de pensamento social em maté-ria ambiental; esta escola, ao mesmo tempo de carácter teórico e empírico, está identificada com os trabalhos académicos da escola alemã de Berlim de Joseph Huber (2010) e Martin Janicke (2010) e com os trabalhos da escola holandesa de Wageningen dos sociólogos Arthur Mol (2010) e Gert Spaar-garen (2000), aos quais acrescentamos a escola americana desde Allan Sch-naiberg (1986) mais radical até Fred Buttel (2000, 2001, 2010) mais moder-nizador; no início dos anos oitenta, Martin Janicke (2010) e Joseph Huber (2010) já usavam as expressões modernização ecológica e greening the industry; estas escolas detêm, ainda hoje, a propriedade intelectual da teoria da modernização ecológica nos seus traços essenciais;

2.ª: Há, em segundo lugar, um discurso público e uma politização da

questão ambiental, a new environmental policy-framework que conduz à modernização política; este discurso e esta politização preparam o contexto favorável ao desenho de novas políticas públicas ambientais e ao surgimento do neo-corporatismo alemão e das coligações de interesses que são indispen-sáveis à modernização pragmática e utilitária da indústria alemã, segundo o princípio geral de que a economia e a ecologia são conciliáveis no quadro das economias capitalistas avançadas;

3.ª: Há, em terceiro lugar, o pragmatismo da corrente gestionária da

política industrial face ao qual a ecologia perdeu a sua inocência; a TME é,

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doravante, muitas vezes percebida como gestão ambiental, ecologia indus-trial, ecologia agrária e ecologia urbana, isto é, eco-reestruturação, em parti-cular no sector privado; outra aproximação inclui as políticas públicas que promovem a internalização das externalidades ou custos externos não conta-bilizados; porém, o mais interessante desta evolução gestionária e utilitária é que a TME faz emergir uma racionalidade ecológica cada vez mais emanci-pada da economia e da política, ou seja, um mix modernizador de mercado, tecnologia, instituições, não obstante os neo-marxistas nos lembrarem que o “capitalismo verde” é um embuste que não resolve os grandes problemas ambientais do nosso tempo;

4.ª: Há, em quarto lugar, a globalização da questão ambiental, a emer-

gência da sociedade do risco global e o greening do consumo; a geração de 70-80 acreditava nas capacidades do capitalismo liberal para se auto--reformar através de políticas de modernização; hoje, para as gerações mais recentes, com a globalização ambiental e a modernidade global, a agenda da modernização ecológica volta a ser mais político-ideológica e muitos confli-tos de interesse põem em causa os benefícios ecológicos; por outro lado, com a hiperglobalização e depois do greening da produção é agora a vez do greening do consumo e dos estilos de vida; os problemas ambientais deixam de ser um problema de ecologia agrícola, industrial ou urbana para ser um problema de ecologia política e ecologia humana, isto é, de cidadania ambiental.

A partir destas perspectivas podemos construir um decálogo da TME (Covas e Covas, 2010: 67-68):

1.ª tese: a TME é uma tese acerca da “modernização da modernidade”, que não confunde industrialismo com capitalismo, e que se inscreve na gran-de corrente da modernização reflexiva de Anthony Giddens, na fase tardia do capitalismo quando este ainda acredita, apesar de tudo e dos riscos glo-bais, que tem condições para renovar as disfunções do seu próprio industria-lismo;

2.ª tese: a TME é uma tese acerca da economia verde, o greening do

sistema, isto é, é uma lógica técnico-instrumental ao serviço da reestrutura-ção ecológica do capitalismo;

3.ª tese: a TME é uma tese acerca da transição entre o antropocen-

trismo da sociologia clássica e contemporânea e a emergência do paradig-ma ecológico onde a sociologia ambiental tem um papel de relevo na defini-ção e delimitação dos problemas agro-ambientais e eco-rurais; esta

António Covas e Maria das Mercês Covas 73

referência remete-nos para o que poderíamos designar como “a ideologia da modernização ecológica”, a saber, uma abordagem utilitarista, tecnocrática e corporatista própria das economias capitalistas mais desenvolvidas do centro da Europa;

4ª tese: a TME é uma tese acerca do compromisso entre crescimento

económico e protecção da natureza; esta referência diz-nos que estamos perante um problema clássico de policy-framework face à lógica binária exclusivista de crescimento ou ambiente; desse ponto de vista, a TME é um compromisso histórico, um novo campo de forças ou coligação de grupos de interesse, acerca de um novo policy-style para o desenvolvimento económico e social;

5ª tese: a TME é uma tese acerca da crescente independência da racio-

nalidade ecológica face à racionalidade económica; diz-nos que a força das práticas e do hábito conduzirão não apenas a uma efectiva modernização ecológica dos processos agro-industriais mas, também, por efeito colateral, a uma modernização institucional e, ainda, finalmente, a uma autonomia da própria esfera de acção da ecologia; o aprofundamento da racionalidade eco-lógica cria um rationale específico que se repercute positivamente sobre as outras esferas de actividade;

6ª tese: a TME é uma tese acerca de um capitalismo ecologicamente

regulado; seja pela regulação pública ou a hetero-regulação estamos a insti-tucionalizar a ecologia nas práticas correntes como nas instituições;

7ª tese: a TME é uma tese acerca do papel central desempenhado pela

ciência e a tecnologia; quer na definição e delimitação dos problemas ambientais, quer na regulação e gestão dos riscos;

8ª tese: a TME é uma tese acerca da distribuição do poder na forma-

ção e gestão das fileiras agro-industriais; em íntima ligação, de resto, com a carga regulatória dos governos, em especial, em redor dos complexos higie-no-burocráticos de regulação e inspecção;

9ª tese: a TME é uma tese acerca da actualização do poder entre cor-

porações e profissões; muito ligado ao aparato higieno-alimentar, ao mesmo tempo que revela a fragilidade da sua base político-sociológica para se ligar a uma política ecológica que não se limite a ser uma mera modernização agro-industrial conduzida sob a égide da própria indústria agro-alimentar;

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10ª tese: a TME é uma tese acerca da modernização de economias desenvolvidas, logo, carece de uma diferenciação estrutural importante em relação a zonas desfavorecidas.

A colecção de textos incluídos no Reader sobre a modernização ecoló-

gica (Mol, et al. 2010) permite-nos extrair as suas características essenciais, a sua matriz base, que são outros tantos contributos fundamentais para uma teoria geral da sustentabilidade (Covas e Covas, 2010: 70):

a) É uma teoria dentro do sistema ou pró-sistema dominante; b) Visa aumentar a produtividade física dos recursos naturais; c) Adopta o princípio da precaução e confia nos processos de gestão tec-

nológica; d) Faz a gestão verde ou greening das cadeias alimentares; e) É um momento de auto-crítica e modernização institucional; f) Promove políticas públicas correctas e uma policy-change reformista; g) Inova nos produtos e nos processos; h) Privilegia a eficiência energética e dos materiais; i) Muda o metabolismo da estrutura e do processo agro-industrial; procura

fazer o up-grading da capacidade de carga do ambiente.

4.2. As principais críticas à teoria da modernização ecológica

As teses acabadas de enunciar, onde impera o pragmatismo e o utilita-rismo da TME, abrem o flanco a algumas críticas de carácter cautelar ou prudencial (Covas e Covas, 2010: 69):

a) A modernização ecológica é uma construção social com todas as impli-

cações político-sociológicas que isso contém e significa;

b) A modernização ecológica, devido à sua forte componente tecnológica, carrega um risco acrescido e, sobretudo, no domínio agro-alimentar, alarga o campo dos “objectos comestíveis não-identificados”;

c) A modernização ecológica, ao eleger o aparato tecnológico, não faz o balanço dos seus fluxos de energia e materiais, logo, não é muito con-vincente face ao compromisso entre crescimento económico e ambiente;

d) A modernização ecológica é, em boa medida, uma questão microeco-nómica, por um lado, e de política nacional, por outro, sendo certo que os grandes problemas ambientais são de global governance;

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e) A modernização ecológica, por causa da sua “fé verde e tecnológica” menoriza ou secundariza dois problemas maiores: o papel da ciência e tecnologia e, sobretudo, do progresso científico, em primeiro lugar, e a resposta que dá aos riscos globais, em segundo lugar;

f) A modernização ecológica reconhece, porém, que o que é previsível hoje é a resistência das populações e não a satisfação com o progresso científico;

g) A modernização ecológica valoriza o admirável mundo verde das tecno-logias limpas e da ecologia mas não reconhece que produção e a quali-dade alimentar são processos socialmente construídos e que os produto-res e os consumidores podem construir circuitos curtos e directos. Dito isto, as principais limitações da TME podem ser alinhadas do

seguinte modo:

a) É muito eurocentrada nos países ricos e no capitalismo industrial; b) Coloca a enfase na indústria transformadora; c) Coloca o foco na eco-eficiência e na poluição; d) Ignora o consumo e os seus padrões; f) Revela uma confiança acrítica na capacidade do capitalismo; g) Não faz referência aos países subdesenvolvidos do sul; h) Atribui pouca relevância aos movimentos sociais; i) Ignora a desigualdade social e política; j) Encosta aos grandes teóricos da sociologia da modernização reflexiva

para ver se escapa à crítica dos neomarxistas e da ecologia radical. Este conjunto de características da teoria da modernização ecológica

revela, em toda a sua extensão, o modo como o optimismo declarado da TME procura reagir ao paradigma emergente do desenvolvimento sustentá-vel, de coloração mais ideológica e radical e geralmente expresso de acordo com o tríptico eficiência económica, responsabilidade ambiental e responsa-bilidade social. Estamos claramente perante uma filosofia política que pode-ríamos denominar de “pragmatismo positivista de cariz tecnológico”, forte-mente ancorado na melhor tradição industrialista alemã e nas alianças entre o capitalismo industrial e a política científica e tecnológica promovida pelo estado.

Com efeito, na base deste pragmatismo positivista e tecnológico há a convicção de que tudo depende dos incentivos correctos nas áreas da política tecnológica e do ambiente. Se assim acontecer, as três dimensões do desen-

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volvimento sustentável serão mais facilmente alcançáveis. No caso alemão, esta convicção mergulha fundo as suas raízes em dois elementos estruturo--funcionais do Estado alemão, a saber, “a economia social de mercado”, por um lado, e o compromisso político na sociedade alemã em matéria de estado neo-corporatista, por outro.

Uma última frente de crítica da TME provém da chamada cultura do risco, também ela de origem alemã, com base nos escritos de Ulrich Beck (Beck, 2009, 2002, 1999). Todo o optimismo da TME é posto em causa, pois abandonamos cada vez mais territórios, pessoas e recursos. Como é que uma civilização e uma teoria sobre o progresso humano e social nos trouxeram até aqui? Por outro lado, o risco chega por todas as vias e tem um custo de tal modo elevado que só alguns conseguem suportar, logo, torna-se altamen-te discriminatório e exclusivo. Acresce que o risco global, difuso e invisível se torna cada vez mais ameaçador.

O risco é um produto da sociedade urbana e industrial e das respectivas

aplicações da ciência moderna. O lema fundamental da sociedade urbano--industrial da primeira modernidade pode ler-se da seguinte forma: a ciência domina a natureza, o Estado domina o homem. Com a segunda modernidade quebram-se estes dois nexos. O risco cresce com a modernização, seja o ris-co interno de natureza tecnológico ou o risco interdependente e sistémico. Quebra-se o nexo causal científico. Por sua vez, o Estado revela-se incompe-tente para reduzir essa incerteza. Além do mais, com a globalização, revela--se incompetente para regular as crises e o poder dos mercados predadores. Por causa das crises de crescimento da economia do bem-estar o Estado dei-xou de ser “Previdente e Providente”. O risco social das sociedades seniores aumentou de forma correspondente.

As sociedades urbano-industriais tornam-se críticas de si mesmas, refle-xivas. Não há mais actividade risk-free, por isso os cidadãos desenvolvem uma crescente percepção do risco e confiam moderadamente e cautelosa-mente nos institutos e centros de investigação. A 1.ª modernidade é, portan-to, vítima dos seus próprios sucessos (Beck, 2009, 2002, 1999): os riscos são produzidos industrialmente, são externalizados economicamente através do orçamento do estado, são individualizados juridicamente através de uma cobertura de risco por via de uma companhia privada de seguros, são legiti-mados cientificamente através do aparelho técnico-científico, institucionali-zado e financiado pelos dinheiros públicos e, finalmente, são minimizados politicamente através de uma narrativa política de conveniência.

A TME não dá conta desta mudança profunda no padrão global do risco

que afecta seriamente o funcionamento do sistema capitalista e o papel do

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Estado-nação enquanto regulador-mor do sistema. A grande crise de 2008, que ainda continua, é, disso, prova eloquente, se não vejamos (Covas e Covas, 2010: 255):

a) A fábrica, a classe operária e os “exércitos de reserva industrial”, os

signos da sociedade urbano-industrial, estão a ser deslocalizados pelo processo de globalização, quer dizer, o sistema capitalista está a expor-tar os seus riscos mais ameaçadores; o desemprego crescente é o preço a pagar pela “limpeza” do sistema;

b) Socializar o risco através do contribuinte é uma das competências mais emblemáticas do sistema capitalista; por força das evidências, a economia da poluição inventou a teoria do poluidor-pagador e o custo marginal passou a ser comparado com o custo de uma contra--ordenação; a institucionalização dos prejuízos é o preço a pagar para purgar o sistema;

c) O seguro do risco local é uma tarefa comportável nos limites financeiros de uma companhia privada mas a cobertura do risco global é uma cons-trução social e política de primeira grandeza que implica vários níveis de governo e administração, mais uma vez a socialização e a institucio-nalização de uma parte importante de “produção de risco privado”; o resseguro sucessivo é o preço a pagar para evitar a “tragédia dos comuns”;

d) A legitimação científica, outra competência emblemática do sistema capitalista, está, ela própria, em risco; a ciência oculta-se por detrás do discurso científico, define o que é risco e qual a sua gravidade, cria a percepção que lhe convém e desacredita quem ousa fazer o exercício do contraditório; o pluralismo e o relativismo das diversas abordagens téc-nico-científicas é o preço a pagar para contornar a “captura da verdade científica” por interesses corporativos;

e) O risco tem uma narrativa política, logo o discurso político pode “ser-vir-nos” diferentes tipos de risco; o risco global altera, porém, a percep-ção do risco e a forma como o Estado “democratiza o risco global” pas-sa a ser um elemento crítico de análise e decisão políticas, ao abrir para variadas ideologias, culturas e políticas de risco. Em termos de cultura de risco, esta transição paradigmática que estamos

a viver, em que os riscos deixam de ser colaterais para se tornarem riscos

78 Os territórios-rede

estruturalmente constitutivos da sociedade contemporânea, altera radical-mente a relação entre a estrutura e o actor. Reflexividade e estruturação pas-sam a ser, assim, elementos decisivos da acção colectiva, de uma acção social que confere movimento e efectividade às estruturas, que são regras mas, também, recursos. Estas categorias analíticas ocupam um dos lugares centrais da teoria e do pensamento social do século XXI e juntam-se a outras categorias (mobilidade social, acessibilidades, novos direitos, novos espaços públicos, individuação, associacionismo, acção colectiva) que, em conjunto, formam a anarquia madura em que vivemos actualmente, no longo trânsito paradigmático em que estamos mergulhados.

4.3. A revisão da teoria à luz do desenvolvimento sustentável

Depois de uma crítica à TME no próprio terreno da teoria, vamos neste tópico fazer duas revisões diferentes da teoria da modernização ecológica. Em primeiro lugar, revisitamos a noção abrangente e ecléctica de desenvol-vimento sustentável, em especial, as escolas da sustentabilidade fraca e sus-tentabilidade forte. Em segundo lugar, e com a ajuda de um artigo de Terry Marsden intitulado “The Quest for Ecological Modernisation: Re-Spacing Rural Development and Agri-Food Studies” (Marsden: 2004), fazemos uma revisitação da teoria social, numa aproximação mais sociológica à TME usando, para o efeito, um conjunto de middle level concepts que retirámos do campo de forças social inscrito na lógica própria do desenvolvimento rural.

A TME e a noção de desenvolvimento sustentável

O desenvolvimento sustentável (DS), tal como está no Relatório Brund-tland (1987), é o "desenvolvimento que satisfaz as necessidades da geração presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazer as suas próprias necessidades". Esta formulação conceptual genérica de desenvolvimento sustentável tem tanto de pertinente como de difuso e reme-te para uma “construção social permanente”.

A ideia de desenvolvimento sustentável remete-nos, com efeito, para uma arbitragem temporal entre o curto prazo, o médio prazo e o longo prazo, acompanhando, de perto, o desenvolvimento dos diferentes ciclos de repro-dução dos recursos naturais: dos ciclos curtos, mais socioeconómicos, aos ciclos longos, mais biogeoquímicos. E, naturalmente, aos seus inúmeros compromissos. Por isso, e apesar da sua ambiguidade, a ideia do desenvol-vimento sustentável remete-nos para a noção de sustentabilidade, como o atributo de um processo que pode manter-se indefinidamente se for respeita-

António Covas e Maria das Mercês Covas 79

do o equilíbrio entre as potencialidades e as limitações existentes. Assim, a todo o momento, o desenvolvimento sustentável faz a prescrição recorren-te de que a utilização de recursos não pode exceder a capacidade de rege-neração e manutenção da integridade, complexidade e equilíbrio dos ecos-sistemas.

Todavia, as arbitragens temporais contidas na noção de sustentabilidade não se reportam apenas aos ciclos de vida. A sustentabilidade é uma constru-ção social e política a propósito da relação entre o homem e a natureza e, por essa via dessa mediação com a natureza, uma relação social por excelência.

Seguindo de perto Daly e Farley (2004), a sustentabilidade compreende, pelo menos, três abordagens complementares: a sustentabilidade ecológica, que implica a manutenção das principais características do ecossistema, essenciais para a sua sobrevivência no longo prazo, a sustentabilidade eco-nómica, que se refere à viabilidade do compromisso entre a gestão dos recur-sos naturais e a dinâmica dos mercados, e a sustentabilidade social, quando a distribuição dos custos e benefícios respeita a equidade intra-geracional (entre as gerações actuais) e a equidade inter-geracional (entre as gerações futuras) (Daly e Farley, 2004).

A sustentabilidade é, portanto, o equilíbrio muito instável entre econo-mia, ecologia e justiça social. No curto prazo, devido às inúmeras desigual-dades de partida, as relações entre estas três dimensões da sustentabilidade só podem ser conflituosas entre si. Restam os compromissos políticos que, para serem possíveis e verosímeis, precisam de ser “estendidos no tempo”, ou seja, precisamos de um horizonte temporal mais alargado para a econo-mia, uma valoração mais efectiva dos ecossistemas de acolhimento, uma éti-ca intergeracional mais comprometida.

A sustentabilidade pode ainda ser observada de acordo com uma outra “arbitragem”, aquela que relaciona ou troca entre si diferentes “espécies de capital”. Neste caso, a sustentabilidade é o balanço dos efeitos sobre as futu-ras gerações em resultado da aplicação de sistemas e tecnologias que hoje desenvolvemos para utilizar os recursos naturais disponíveis. Está aqui implícita a ideia de neutralidade inter-geracional dos recursos, a ideia de que o capital se pode “legar intacto” em determinadas condições ou, ainda, a noção de que o capital pode ser valorizado constantemente e, portanto, transmitido sob múltiplas formas às gerações vindouras.

Segundo Pearce e Atkinson (1993), em matéria de sustentabilidade, des-tacam-se duas escolas de pensamento: a escola da sustentabilidade fraca e a escola da sustentabilidade forte. A escola da sustentabilidade fraca considera que a substituição de capital manufacturado (ou capital humano) por capital natural é relativamente fácil e que a perda de capital natural não é importante em si mesma, desde que aumente a riqueza sob a forma de capital manufac-

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turado ou de capital humano (Pearce e Atkinson, 1993). A crítica a esta esco-la da sustentabilidade fraca advém do facto de não levar em conta que certos serviços ambientais (os serviços da biodiversidade, por exemplo) têm um valor de existência, de uso único e insubstituível para os quais não existem verdadeiros substitutos (o património natural genético que está na origem desses serviços). A escola da sustentabilidade forte, ao contrário, parte do pressuposto de que não há verdadeiros substitutos para certos bens do patri-mónio natural.

A escola da sustentabilidade forte acrescenta duas razões de peso: não compreendemos em toda a sua complexidade o funcionamento integral dos sistemas ecológicos (a complexidade das cadeias alimentares e a reacção a certos agentes perturbadores, por exemplo) e este facto pode conduzir-nos à perda definitiva de património natural significativo em virtude de, justamen-te, não tomarmos as medidas cautelares que se justificavam para contrariar alguma displicência e falta de prudência da nossa parte.

Como se observa, estas duas escolas de pensamento têm na sua génese uma combinação variável de tecnologia e ecologia, mais uma vez os dois factores que relacionam o homem com a natureza. Digamos que nos encon-tramos num continuum de combinações entre mais tecnologia e menos eco-logia (sustentabilidade fraca), de um lado, e mais ecologia e menos tecnolo-gia (sustentabilidade forte), de outro. A sustentabilidade fraca deposita, portanto, uma fé imensa na inovação tecnológica e, desse ponto de vista, parece identificar-se bem com a teoria da modernização ecológica que anali-sámos no ponto anterior, no quadro mais geral de uma “teoria do sistema” capitalista na fase tardia da modernidade ocidental.

Neste contexto, merece especial destaque a abordagem teórica levada a efeito pela economia do ambiente, de inspiração neoclássica, e o seu peculiar marginalismo económico (as diversas economias da poluição) quando consi-dera que a substituição destes capitais não é perfeita e que, portanto, é neces-sário considerar os custos sociais da degradação ambiental nas estratégias de desenvolvimento.

Nas abordagens de pendor mais ecológico a fé na tecnologia diminui do mesmo passo. Aqui, também, as “doses de ecologia” variam, desde uma posição mais ecodesenvolvimentista à maneira de Ignacy Sachs (1981, 2007) até ao desenvolvimento sem crescimento à maneira de Herman Daly (1974) (estado estacionário), já sem falar nas correntes mais radicais da ecologia profunda, todas elas mais próximo da escola da sustentabilidade forte.

Estas duas escolas de pensamento resumem bem a posição relativa dos “dois realismos” em presença: em primeiro lugar, o realismo político que propõe a continuidade do crescimento económico face à impossibilidade manifesta de conciliar distribuição do rendimento e estabilidade demográfi-

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ca, em segundo lugar, o realismo ecológico ao afirmar que a realidade políti-ca deveria ceder terreno à realidade biofísica, pois a economia mundial já ultrapassou os limites toleráveis do ecossistema-terra. É em redor destas duas “posições realistas” que se faz hoje a política internacional em busca do que parece ser um “terceiro realismo” por todos desejado: o desenvolvimento sustentável pode fazer tudo ao mesmo tempo, tratar de satisfazer as necessi-dades humanas, aspirar a manter o crescimento económico e a preservar o capital natural. É, claramente, uma “carga excessiva” para o pragmatismo e utilitarismo da TME.

A TME e o campo mais vasto da teoria social

Na origem, no tempo da “Primavera silenciosa” de Rachel Carson (1962), o problema ambiental era uma consequência directa da acção huma-na, isto é, os princípios e as aplicações químico-mecânicos do modelo de agricultura produtivista eram a causa principal dos problemas ambientais. No plano da teoria social, a leitura do problema fazia-se, digamos, da sociologia rural para a sociologia ambiental. Muitos factos relevantes aconteceram, entretanto, nas sociedades capitalistas mais avançadas que fizeram avançar a teoria social.

De acordo com Terry Marsden no artigo intitulado “The Quest for Eco-logical Modernisation: Re-Spacing Rural Development and Agri-Food Stu-dies” (Marsden, 2004), onde se actualiza a abordagem sociológica e se recu-peram alguns conceitos que podem relançar o desenvolvimento rural, o problema da reconceptualização da teoria pode ser formulado do seguinte modo: na origem, a sociologia rural deu um excelente contributo para fun-damentar a base temática e teórica da sociologia ambiental, pois os proble-mas agro-químicos foram uma fonte segura e um bom pretexto para criar uma agenda ambiental; hoje, porém, a agenda ambiental, expressiva e conso-lidada como está, pode ser um poderoso instrumento para renovar, em bases novas, a agenda da sociologia rural; poderá esta inversão de perspectiva, mais agroecológica e socioecológica, renovar a sociologia rural e a temática do desenvolvimento rural, ao menos nas sociedades capitalistas mais desen-volvidas?

Em tudo o que dissemos anteriormente sobre a teoria da modernização ecológica (TME) ficou claro que se trata, em primeira instância, de uma abordagem eminentemente urbano-industrial, na confluência de vários pro-cessos de modernização e segundo o princípio geral de que uma racionalida-de ecológica mais autónoma e independente acabará por influenciar e deter-minar, também, as outras esferas de actuação, económica, política e cultural. E, também, a agricultura em toda a sua extensão, acrescentamos nós.

82 Os territórios-rede

O artigo de Marsden (2004), inspirado nas áreas da modernização agrí-cola, das cadeias de bens alimentares e da floresta, adopta uma posição optimista e positiva acerca da importância desta esfera autónoma de raciona-lidade ecológica e confirma a perspectiva de que estamos perante um perío-do de modernização ecológica, no início do século XXI, muito diferente do anterior período de modernização industrial. Dito isto, não devemos, todavia, exagerar a autonomia da esfera ecológica no processo de modernização em curso. Aliás, a referência a uma modernização ecológica fraca e a uma modernização ecológica forte visa, justamente, sublinhar o princípio da pre-caução nesta matéria, pois essa modernização tem uma distribuição muito desigual pelas diferentes economias, sectores e regiões. Este é, de resto, um importante desafio, teórico e empírico, para a sociologia rural e, de um modo mais geral, para a teoria social das questões ambientais.

Tabela n.º 1– Aproximação do quadro conceptual inovador (Middle level concepts) à construção social dos conceitos de Marsden (2004)

Quadro conceptual inovador (Middle Level concepts)

A construção social dos conceitos (segun-do Marsden, 2004)

1. Ambiente e justiça territorial A qualidade dos ecossistemas e da vida das populações são construções sociais

2. Comunidade e associa-cionismo

O embededdeness e o significado político profundo da construção social dos con-ceitos de comunidade e associação

3. Exclusão e capacitação O empowerment e a requalificação, for-mas poderosas de construção social do actor social

4. Consumismo e produtivismo A segurança e a qualidade como uma cons-trução social dos produtos alimentares

5. Responsabilidade socio--ambiental das empresas

A responsabilidade socio-ambiental como construção social do espírito e da ética empresariais

6. Regulação, profissionalização e burocratização

Os custos de formalidade da actividade e da profissão como construção social do “acesso e do exercício”

Fonte: Própria.

No campo da economia rural, o caminho é conhecido, pois prevalecem

as abordagens neo-clássicas e micro-económicas já utilizadas na economia industrial e nos processos de modernização industrial, com as mesmas falhas

António Covas e Maria das Mercês Covas 83

e externalidades de sempre, já há muito conhecidas na literatura. No campo da sociologia rural, a diferenciação teórica e empírica é muito maior e a complexidade, aqui, é o preço a pagar pela diversidade. Citando novamente Marsden (2004), “We need to be reconstructing as well as de-constructing models and frameworks which suggest how things could work in different and more socio-ecological ways over space and time” (Marsden, 2004: 133).

Neste esforço de reconstrução socioecológica do policy-framework do mundo rural desenvolvido, Marsden resgata conceitos do quadro tradicional da teoria social e da sociologia tendo em vista a formação de um novo com-promisso teórico-prático, útil, por exemplo, sobre a construção dos futuros territórios-rede. Partilhando este esforço, apresentamos na Tabela n.º 1 um quadro conceptual inovador (middle level concepts) para a laboriosa cons-trução social dos conceitos de Marsden (2004).

Vejamos, agora, mais de perto, as seis áreas onde pode nascer este novo formative power em resultado da interacção entre a sociologia ambiental e a sociologia rural.

Crescimento desigual, ambiente e justiça territorial

O crescimento desigual cria assimetrias regionais e, portanto, problemas de desemprego, de recursos naturais e recursos humanos, logo, de justiça ter-ritorial, de acordo com o princípio geral de que “qualidade dos ecossistemas e qualidade de vida das populações são as duas faces da mesma moeda”. Se a opção política privilegiar a concentração dos recursos, tendo em vista um crescimento económico mais rápido e uma redistribuição mais efectiva, como garantir que, dessa forma, se corrigirão as injustiças territoriais? Com efeito, um rol de medidas agro-ambientais nas áreas da mitigação, adaptação e compensação não substitui uma estratégia de desenvolvimento sustentável que cumpra o objectivo geral de levar a par a qualidade dos ecossistemas e a qualidade de vida das populações que os habitam e deles usufruem. Levar a par estas duas qualidades é a razão de ser, mesma, da construção social des-tes middle level concepts.

Comunidade e associação

Estas duas noções, ricas na teoria social mais tradicional, pertencem a uma “integração fraca” que é muito vulnerável aos custos de contexto e às variações voláteis dos mercados externos, não obstante poderem proporcio-nar algumas externalidades positivas que têm a ver com a formação do capi-tal social local (por exemplo, as cadeias curtas de bens alimentares), por oposição aos interfaces institucionais mais próximos da intervenção pública

84 Os territórios-rede

e das agências de desenvolvimento. A inovação social hoje recomenda que se articule devidamente o suporte institucional e o desenvolvimento associa-tivo e é nesta articulação que assenta a construção social destes conceitos. Tanto a natureza como as comunidades e as associações “racionalizam” as condições contextuais da sua especial circunstância local e ao fazerem isso forjam novas relações entre a natureza e a sociedade local.

Exclusão e requalificação

De acordo com Marsden (2004), nas comunidades florestais do Reino Unido observa-se um longo e continuado processo de disempowerment e, em consequência, uma crescente marginalização das respectivas populações por parte dos mercados e das autoridades públicas. Todavia, este processo de exclusão-requalificação é, em si mesmo, uma via privilegiada para observar a forma como as comunidades se relacionam com a natureza e como com-põem com ela diferentes modos e processos de sustentabilidade face aos imperativos de curto prazo do mercado.

Outra fonte de exclusão reside no funcionamento das grandes cadeias de bens alimentares, na sua “cumplicidade” com os consumidores e capacidade para afastar os “concorrentes locais” através de preços flexíveis e agressivos. Os consumidores, uma vez afastada a concorrência local, acabam, também, por pagar mais caro os bens alimentares e em muitas áreas urbanas e rurais do Reino Unido estes arranjos monopolísticos são uma prática comum.

Uma terceira fonte de exclusão diz respeito aos produtores primários e aos pequenos industriais, cada vez mais afastados dos mercados retalhistas por factores de custo como normalização, calibragem, higiene e segurança alimentar. Agora, é a grande distribuição e retalho que controla a qualidade da produção final ao consumidor, já não são, como antes, os vendedores de factores de produção aos agricultores e industriais. Estes exemplos mostram como os processos de aprendizagem implicados por este movimento de exclusão e requalificação são um factor poderoso de construção social em permanente actividade.

A agricultura acompanhada pela comunidade de consumidores

A variedade de situações agro-rurais no quadro europeu deve-se a con-textos institucionais, associativos e culturais muito diversos mas, também, a sistemas, tecnologias e mercados diversificados e bem adaptados aos condi-cionalismos locais e territoriais. Quer dizer, a ligação directa entre grupos de produtores e grupos de consumidores, por via de uma convenção ou contrato passado entre eles, pode estar na origem da criação de uma rede dedicada e da

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construção social e cultural de um bem ou serviço comum aos interesses das partes em presença que, assim, podem escolher o sistema de produção, a tecno-logia utilizada, a relação com o ambiente, a forma de distribuição do produto, a qualidade final do produto, etc. Todavia, importa não esquecer que a volatili-dade comercial e financeira imposta pelos sistemas convencionais aos merca-dos agro-alimentares torna muito difícil e precária a existência das cadeias mais curtas e alternativas e o risco do negócio cresce na mesma proporção.

Responsabilidade social e ambiental e ética empresarial

No quadro da mercadorização da produção agro-alimentar, os aspectos cruciais dizem respeito: às mudanças na política regulatória e ao modelo higieno-alimentar, à crescente mobilidade comercial e financeira, à inovação tecnológica e logística no desenvolvimento e localização das cadeias alimen-tares, à mudança nos padrões de consumo, à emergência de novos movimen-tos sociais e dos fenómenos de corrupção, à fragmentação das comunidades locais e ao surgimento de novas formas organizacionais e associativas, à irrupção dos riscos globais e ao papel das companhias de seguros na defini-ção e responsabilidade social face aos riscos e à incerteza.

Este imenso campo de forças cria a necessidade e a urgência para o sur-gimento de novas comunidades de interesses, de inovação social e de res-ponsabilidade empresarial, em especial nas áreas social e ambiental. É a este campo de forças e a estas comunidades de interesses que chamamos gover-nança. Neste contexto, a sociologia rural tem tido um papel muito discreto mas, doravante, não se pode aceitar mais a sua “ausência” face às profundas alterações que estão reconfigurando os territórios agrorurais.

Regulação, profissionalização e burocracia

Face às sucessivas crises agro-industriais e alimentares dos anos mais recentes, os governos europeus responderam com mais regulação, profissio-nalização e burocratização regulamentar por via de códigos e boas práticas, quer dizer, um modo de coordenação em que a higiene, a segurança e a qua-lidade desempenham um papel regulatório fundamental. Esta imensa carga regulatória e regulamentar tem um efeito perverso sobre os pequenos produ-tores e industriais que se vêm confrontados com custos adicionais despro-porcionados e cria, ainda, barreiras à entrada de novos empreendedores. No mesmo sentido, este modo higiénico de regulação afasta mais o consumidor do produtor, ao recordar-lhe que a segurança alimentar prevalece sobre a sustentabilidade socio-ambiental.

86 Os territórios-rede

Chegados aqui, no último meio século, o desenvolvimento rural con-fundiu-se com modernização agrária, nos termos do modelo produtivista, de base químico-mecânica e biotecnológica. A economia agrária tomou como bons os conceitos de economia de escala, mercados globais, concentração e marginalização de explorações agrícolas, internalização marginal de alguns custos externos. A teoria da modernização ecológica, neste contexto, trouxe um benefício inegável. Por via da TME, a sociologia rural e a sociologia do ambiente estão cada vez mais próximas dos problemas reais e complexos do mundo rural do século XXI enquanto, ao mesmo tempo, a abordagem agroe-cológica dá passos seguros na direcção certa abrindo espaço para o surgi-mento de uma pluralidade de agriculturas. Neste contexto, justamente, fazem muito sentido os conceitos antes enunciados pois abrem um amplo espaço de problematização na confluência das duas sociologias antes mencionadas e serão, seguramente, um campo imenso de oportunidades ao estudo da inova-ção agroecológica e agrorural.

5. A 3.ª revolução verde, a longa transição agroecossistémica

Depois dos contributos das teorias críticas da modernização ecológica e dos argumentos em redor da interacção virtuosa entre a sociologia ambiental e a sociologia rural, estamos mais bem preparados para fazer o caminho que nos levará da 2.ª revolução verde até à 3.ª revolução verde. Começamos com as dúvidas herdadas da transição biotecnológica, denominada a 2.ª revolução verde, e transitamos para o ideário agroecológico e agroecossistémico em busca da 2.ª ruralidade e dos seus princípios inspiradores.

5.1. As dúvidas herdadas acerca da transição biotecnológica

O modelo de desenvolvimento económico adoptado pela civilização ocidental coloca-nos face a situações contraditórias e absurdas. De um lado, o progresso científico e tecnológico sem o qual a vida moderna seria inima-ginável, de outro, problemas novos e riscos globais de elevada perigosidade como produtos ou subprodutos do próprio modelo de desenvolvimento. A TME diz-nos que não há razões para ter dúvidas, pois o conhecimento dis-ponível é suficiente para eliminar esses problemas e as preocupações decor-rentes. Mas será verdadeiramente assim? Não estará o “imperativo tecnoló-gico” da nossa sociedade à beira de um limiar perigoso de risco e incerteza? No rasto dos últimos grandes problemas alimentares não estará a nossa dieta

António Covas e Maria das Mercês Covas 87

alimentar à beira de se transformar numa espécie de menu de objectos comestíveis não-identificados?

A primeira revolução verde foi, essencialmente, um processo de “desna-turalização”, e, assim, se criou o “ambiente”. Agora, as dúvidas acerca da transição para a “3.ª revolução verde” residem em saber se se trata de mais tecnologia (a transição biotecnológica) numa direcção claramente produtivis-ta, ou se se trata de “renaturalizar” o ambiente anteriormente desnaturalizado numa perspectiva de restauração ecológica e biofísica de agrossistemas em mau estado (a transição ecológica). Ou, ainda, uma qualquer transição a meio caminho que concilie a biotecnologia e os métodos agroecológicos numa óptica agroecossistémica em direcção a uma pluralidade de agricultu-ras com graus de sustentabilidade variável (uma transição agroecossistémi-ca). Temos, assim, várias transições com graus de intensidade diferenciados à nossa frente e as dúvidas são legítimas acerca do caminho a seguir.

A biotecnología ou a “2.ª revolução verde”

No princípio da década de 1980 a expectativa dominante residia em conseguir aumentos crescentes de produtividade nas principais culturas ali-mentares. A biotecnologia parecia estar à altura desse grande desafio desde que os mercados globais ajudassem. De facto, as biotecnologias passaram a ser vistas como capazes de solucionar os problemas resultantes da aplicação dos métodos da agricultura moderna, especialmente aqueles relacionados com as contaminações ambientais produzidas pela utilização intensiva de produtos agro-químicos e recursos energéticos não renováveis e, também, capazes de dar um novo dinamismo aos rendimentos das culturas, bem como aliviar a pressão crescente sobre os recursos naturais, reduzindo, ao mesmo tempo, a necessidade de combustíveis fósseis na actividade agrícola. No final da década de 1980, a opinião dominante acreditava que estávamos perante uma 2.ª revolução verde, de base biogenética, muito mais ampla nos seus efeitos que a 1.ª revolução verde, de base químico-mecânica. Neste con-texto de grande esplendor científico e técnico, onde estão as dúvidas e a ideologia biotecnológica?

Sabemos, por exemplo, que a orientação dominante das inovações gené-

ticas em sementes tem sido a de diminuir a influência da qualidade da terra e do ambiente físico-químico como determinantes da produção e produtivida-de agrícolas. Porém, sabemos também que as variedades de alto rendimento, base dos pacotes tecnológicos da 1.ª revolução verde, são fortemente depen-dentes de agro-químicos e fertilizantes sintéticos para maximizar o seu potencial produtivo. Quer dizer, as exigências nutricionais e de protecção

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exigidas por estas variedades são realizadas através de uma crescente artifi-cialização agroecossistémica.

Tabela n.º 2 – Os modelos-padrão produtivista e sustentável

Modelo Produtivista Modelo Sustentável

1 O processo de produção e o proces-so de trabalho são determinados pelo kit tecnológico

O kit tecnológico tem de passar pela prova do balanço energético e da produtividade global do ecossistema

2 O sistema biofísico é uma variável endógena do sistema produtivo

O sistema biofísico é a moldura fun-damental do processo produtivo

3 A escala e a estandardização são as variáveis chave do processo produ-tivo

Todas as formas de conhecimento, local e tradicional, devem ser consi-deradas

4 A estandardização genética faz par-te do processo produtivo

A variabilidade genética é um factor produtivo da maior importância

5 O tempo curto prevalece sobre o tempo longo, é intergeracionalmen-te censurável

O tempo longo prevalece sobre o tempo curto, é intergeracionalmente responsável

6 O poder privatiza os benefícios e socializa os prejuízos

O modelo internaliza os custos e pre-meia os méritos

7 A fileira opera uma transferência de rendimentos de montante para jusante

O modelo considera diversos tipos de “convenções” de regulação e con-trolo

8 A escala e a normalização esmagam as margens comerciais

O modelo considera as redes e os sis-temas produtivos locais operadores privilegiados

9 Os ciclos de inovação são curtos e estão programados para a obsoles-cência

Os ciclos de inovação estão orienta-dos para a produtividade global do ecossistema

10 O progresso é excludente O progresso é inclusivo

Fonte: Covas e Covas (2010: 86).

Assim, as biotecnologias, em geral, e a engenharia genética, em particu-

lar, oferecem os instrumentos para a criação de variedades de plantas adap-tadas a ambientes até agora considerados como de menor capacidade produ-tiva. Neste caso, são as sementes que se adaptam a condições ecossistémicas adversas, o que poderia ser usado em benefício da humanidade para permitir

António Covas e Maria das Mercês Covas 89

a obtenção de maiores níveis de produtividade na produção agrária em solos mais empobrecidos e com menor fertilidade natural. Logo, uma mais-valia agroecossistémica preciosa.

Sabemos, por outro lado, que a utilização das biotecnologias pode aumentar, em vez de reduzir, a dependência da actividade de produção de alimentos e fibras do fornecimento de agro-químicos sintéticos. Na sequên-cia dos pacotes tecnológicos da 1.ª revolução verde, desta vez as sementes originárias da engenharia genética “garantem” que os agricultores ficarão muito mais presos aos kits biogenéticos com patente registada.

A duplicidade é evidente, as biotecnologias não somente poderão con-verter-se em um instrumento poderoso para dinamizar a produtividade agrí-cola como, também, poderão propiciar os meios para aumentar o grau de monopolização da indústria sobre a actividade produtiva. O paradigma bio-tecnológico prepara-se, assim, para fechar o triângulo mecânico, químico e genético (MQG), abrindo possibilidades imensas aos kits tecnológicos. O resultado está à vista. Esta tendência pesada provoca um efeito de sucção sobre os recursos, as pessoas e os territórios, tornando-os devolutos e descar-táveis. Neste contexto, a política e o direito não parecem estar à altura das circunstâncias para exercer um contrapoder suficiente.

Se considerarmos ambos os modelos-padrão, produtivista e sustentável, como tridimensionais (mercados, ecossistemas e relações sociais), então poderemos afirmar que o modelo produtivista considera os ecossistemas e as relações sociais como variáveis endógenas e/ou instrumentais face ao siste-ma produtivo e comercial. Por sua vez, o modelo sustentável considera os ecossistemas e as relações sociais como variáveis estruturais ou restrições fundamentais ao sistema produtivo e comercial. Os dois modelos podem ser comparados, de forma esquemática, ao longo de várias características, como se mostra na tabela seguinte.

Os conceitos-chave nesta comparação são já conhecidos. Em primeiro lugar, o kit tecnológico completo garante, dizem-nos, resultados a curto pra-zo. Em segundo lugar, a mitigação é para os casos mais graves em ordem a restabelecer a “ordem antiga”, devidamente financiados pelo contribuinte anónimo. Em terceiro lugar, o difusionismo técnico-comercial, que se con-funde com uma assistência pós-venda, de carácter essencialmente comercial, aparece “travestido” de extensão rural. Em quarto lugar, a genética produti-vista, moderada pelo princípio da precaução, vai acomodando e consolando a investigação científica mais “performante”. Em quinto lugar, a normaliza-ção, para providenciar cada vez mais escala, vai fazendo o seu caminho por entre os despojos da micro e da pequena empresa agrorural. Em sexto lugar, a fileira, como conceito operatório “por excelência”, encarrega-se de confir-mar a lei dos rendimentos decrescentes e da troca desigual entre parceiros.

90 Os territórios-rede

Em sétimo lugar, os custos de formalidade, que crescem sem parar, pressio-nam constantemente as micro e as pequenas empresas em direcção à econo-mia paralela. Em oitavo lugar, os ciclos de inovação são cada vez mais cur-tos e geram a desqualificação dos activos. Finalmente, a política pública, cada vez mais acantonada, pelo défice e pela dívida, limita-se a fazer reme-diação para salvar as aparências.

A questão central no confronto entre os dois modelos é a de saber como se irá desenrolar o “ciclo biotecnológico completo” nas suas duas componentes principais: a “biotecnologia do processo e do produto”, por um lado, e a “bio-tecnologia dos recursos e dos ecossistemas”, por outro, sendo certo que o modelo produtivista valoriza mais a primeira e o modelo sustentável mais a segunda. Neste contexto, o realismo ecológico da economia significa levar a cabo o aprofundamento dos mercados de modo a que eles possam considerar, valorizar e reflectir devidamente os “bens e serviços sem mercado”, enquanto o realismo económico da ecologia significa levar a efeito o aprofundamento dos ecossistemas no sentido da sua exploração económica sob restrições.

Já sabemos que o ciclo biotecnológico foi e está concebido e construído assimetricamente. A inovação de produtos e processos produz resultados mais imediatos e com retorno mensurável, enquanto a inovação de recursos e ecossistemas precisa de tempo para produzir resultados e tem uma óbvia dificuldade em ser mensurável. A primeira é, em grande medida, uma rotina técnico-científica instalada, a segunda é um processo recente de conhecimen-to-intensivo cuja consolidação será, ainda, demorada. Estamos, por exemplo, a falar de balanços energéticos e de mercado de emissões, de acordos volun-tários e compromissos entre negócios e biodiversidade, de métodos de valo-ração e valorização de bens e serviços públicos sem mercado, de modelos de convenção que são fundamentais para a formação de parcerias público--privadas e modos de regulação mais descentralizados, da operacionalização de redes e sistemas produtivos locais, dos ciclos de inovação orientados para a produtividade global dos ecossistemas, da responsabilidade social e comu-nitária dos empreendimentos.

Do ponto de vista da investigação biotecnológica os avanços verificados e esperados estão mais em linha com a trajectória produtivista anterior e visam dois objectivos principais: corrigir os problemas ambientais provoca-dos pelas tecnologias anteriores e prevenir retornos decrescentes de produti-vidade que se tornaram evidentes com as tecnologias actuais. Entretanto, a investigação biotecnológica mais agroecológica (por exemplo, a maior efi-ciência fotossintética das culturas e a fixação de azoto atmosférico em cereais por meios biológicos), em virtude da sua natureza ecossistémica, tar-da em produzir resultados “competitivos” à luz das técnicas actualmente dis-poníveis.

António Covas e Maria das Mercês Covas 91

Em resumo, face à nossa relação com a natureza, podemos encarar a biotecnologia de duas maneiras distintas. Na primeira, consideramos a agri-cultura como uma actividade industrial pelo que se trata de minimizar o seu impacto sobre a natureza. Neste caso, ao aumentar substancialmente a produ-tividade agrícola, a biotecnologia possibilitaria a redução da área cultivada e abriria a oportunidade de reabilitação em grande escala dos ecossistemas naturais com base nos novos conhecimentos científicos e tecnológicos dis-poníveis, reduzindo, ao mesmo tempo, a contaminação e o impacto negativo da agricultura sobre o meio ambiente.

Na segunda, consideramos a agricultura como um subconjunto da natu-reza sujeito aos princípios biofísicos e às leis da termodinâmica. Neste caso, a biotecnologia da 2.ª revolução verde poderia levar a agricultura a um novo círculo vicioso tecnológico e tornar-se uma ameaça para o ecossistema, ainda maior que a anterior revolução química. Seja como for, tudo depende do caminho que as indústrias irão seguir no próximo futuro: criar novos produ-tos que possam poupar factores de produção (como seriam as culturas resis-tentes a pragas) ou fazer um uso mais intensivo dos mesmos factores (por exemplo, as culturas resistentes aos herbicidas). Como se observa, há dúvi-das legítimas acerca da ideologia e do papel das biotecnologias na relação entre agricultura e natureza e nada garante, no curto prazo, que se produzam alterações substanciais na direcção do paradigma agroecossistémico.

5.2. A relevância da abordagem agroecológica e ecossistémica

Já vimos como há boas razões para ter dúvidas acerca da “ideologia da biotecnologia” e mesmo da denominada “produção social de qualidade”. Tudo isto, a propósito, ou por causa, das relações de poder que sempre suportam os processos de transição e mudança. De acordo com Altieri (2004), Gliessman (2007) ou Sevilla-Guzman (1998) os ecossistemas agríco-las são considerados como as unidades fundamentais de estudo na aborda-gem agroecológica. Nesses sistemas, os ciclos minerais, a transformação de energia, os processos biológicos e as relações socioeconómicas são investi-gados e analisados como um todo. Nesses sistemas, a pesquisa agroecológica não se interessa só pela maximização da produção, mas, também, pela opti-mização do agroecossistema de forma integrada; isto significa, ainda, que a exploração integrada dos agroecossistemas rompe com as barreiras discipli-nares tradicionais e com a acomodação do sistema de investigação e desen-volvimento convencional, ruptura essa necessária para a compreensão da complexidade das interacções entre pessoas, sistemas de produção, recursos naturais, animais e ambiente socioeconómico.

92 Os territórios-rede

Agricultura, agroecologia e revolução agroecossistémica (a 3.ª RV)

A “modernização da agricultura” pode converter-se numa opção dile-mática: não modernizar “pode ser” uma tragédia, modernizar “pode ser” uma tragédia. A modernização tecnológica, ou melhor, a “corrida à modernização tecnológica” pode transformar-se numa “faca de dois gumes” se o agricultor não for bem aconselhado quanto à natureza das suas opções em matéria de sistema produtivo. As biotecnologias inscrevem-se na mesma opção dilemá-tica. Por um lado, há uma visão positiva de que as biotecnologias agrárias seriam mais “limpas" que suas antecessoras "agroquímicas" ao permitir, por exemplo, maior resistência biológica a pragas e doenças. Por outro lado, a biotecnologia pode ser usada para aumentar a resistência das culturas aos agroquímicos, mantendo, assim, a dependência do sector face a produtos comerciais que são potencialmente perigosos para o meio ambiente. Neste caso, mais do que uma mudança de ciclo, estaríamos perante uma perspecti-va evolucionista a aprofundar os custos e benefícios da primeira revolução verde.

Não será a “crise ecológica” e, em especial, a emergência de problemas macro-ecológicos, o sinal de que precisávamos para mudar de vida? Crise ecológica, local e global, crise de civilização, riscos globais, o mito do desenvolvimento, pobreza crescente, o lado oculto da racionalidade econó-mica dominante, eis o “menu” do tempo que corre vertiginosamente. É neste contexto que se enquadra a necessidade de uma “agricultura sustentável”, quer dizer, uma agricultura que pondere de modo equivalente produtividade, sustentabilidade e equidade, sabendo nós que o discurso sobre a agricultura sustentável não está liberto de todas as dificuldades e contradições a propósi-to do discurso mais geral sobre o desenvolvimento sustentável.

Estas contradições dizem respeito, por exemplo, ao surgimento das “agriculturas alternativas”, por um lado, e à “proposta abrangente da agroe-cologia”, por outro, sendo que o mais significativo do discurso da agricultura sustentável é a abertura de muitas vias para a diversidade dos sistemas agrá-rios, em contraposição ao discurso “unicitário” da ordem produtivista e tec-nológica até agora dominante. A grelha de leitura da agricultura sustentável é muito aberta e muitas interpretações são possíveis, não surpreendendo que assuma significados distintos para “diferentes comunidades epistémicas”, por exemplo, da biologia ecológica mais radical até às formas mais socio--antropológicas da sociologia ambiental, com passagem pelas diferentes eco-nomias: ecológica, do ambiente e dos recursos naturais, agrária e do desen-volvimento rural.

Uma formulação de compromisso para a agroecologia poderia ser: um agroecossistema sustentável respeita a conservação dos recursos renováveis,

António Covas e Maria das Mercês Covas 93

a adaptação das espécies cultivadas às condições do meio ambiente e a manutenção de níveis moderados, porém sustentáveis, de produtividade, em todo o caso, o objectivo de tal estratégia seria a sustentabilidade ecológica de longo prazo em lugar da produtividade de curto prazo.

A agroecologia é, portanto, uma abordagem compreensiva e multidisci-plinar, integra princípios agronómicos, ecológicos, socioeconómicos e socioculturais, fornece uma estrutura teórico-metodológica para o entendi-mento mais aprofundado da natureza e dos princípios de funcionamento dos agroecossistemas que são aqui utilizados como unidades de estudo, em con-traposição aos convencionais agrossistemas, mais unidimensionais.

A estratégia agroecológica

No plano ecotecnológico, a produção sustentável de um agroecossistema deriva do equilíbrio sistémico entre plantas, solos, nutrientes, luz solar, humi-dade e a comunidade biótica envolvente. O agroecossistema é produtivo, sau-dável e resiliente quando essas condições de crescimento prevalecem e quando as perturbações podem ser superadas por métodos alternativos, adaptados e flexíveis, sem provocar danos desnecessários ou irreparáveis. Além da luta contra as pragas, doenças ou problemas do solo, o agroecologista procura res-taurar a resiliência e a força do agroecossistema. Se a causa da doença, das pragas, da degradação do solo, por exemplo, for entendida como desequilíbrio, então o objectivo do tratamento agroecológico é restabelecê-lo. Na agroecolo-gia, a preservação e ampliação da biodiversidade dos agroecossistemas é o primeiro princípio utilizado para produzir auto-regulação e sustentabilidade (Altieri et al, 1987). Quando a biodiversidade é restituída aos agroecossiste-mas, numerosas e complexas interacções passam a estabelecer-se entre o solo, as plantas e os animais. O aproveitamento de interacções e sinergias comple-mentares pode resultar em efeitos benéficos, uma vez que:

– Cria uma cobertura vegetal contínua para a protecção do solo; – Assegura uma constante produção de alimentos, variedade na dieta ali-

mentar e produção de alimentos e outros produtos para o mercado; – Fecha os ciclos de nutrientes e garante o uso eficaz dos recursos locais; – Contribui para a conservação do solo e dos recursos hídricos através da

cobertura morta e da protecção contra o vento; – Intensifica o controlo biológico de pragas fornecendo um habitat para

os inimigos naturais; – Aumenta a capacidade de uso múltiplo do território; – Assegura uma produção sustentável das culturas sem o uso de inputs

químicos que possam degradar o ambiente.

94 Os territórios-rede

A Tabela n.º 3 considera e resume os elementos de uma estratégia agroecológica.

Tabela n.º 3 – A estratégia agroecológica

I. Conservação e regeneração dos recursos naturais

a) Solo: controlo de erosão, fertilidade e saúde das plantas;

b) Água: captação, conservação, gestão e irrigação;

c) Germoplasma: espécies autóctones, melhoramento genético;

d) Fauna e flora: inimigos naturais, polinizadores, vegetação de uso múltiplo.

II. Gestão de recursos produtivos

a) Diversificação: rotações, policultura, sistemas mistos;

b) Reciclagem de nutrientes e matéria orgânica: biomassa origem vegetal e animal;

c) Regulação biótica: protecção de culturas e saúde animal.

III. Implementação de elementos técnicos

a) Técnicas de regeneração, conservação e maneio de recursos adequados às necessidades locais e ao contexto agroecológico e socioeconómico;

b) O nível de implementação pode ser o da microrregião, bacia hidrográfica, unidade produtiva ou sistema de cultura;

c) A implementação é orientada por uma concepção integrada e sistémica das culturas;

d) A estratégia deve estar de acordo com a racionalidade da agricultura familiar, incorporando elementos da gestão tradicional de recursos.

Fonte: Covas e Covas (2010: 110), adaptado de Altieri (2004).

Restaurar a saúde ecológica não é, porém, o único objectivo da agroeco-

logia. De facto, a sustentabilidade, na acepção larga que adoptámos, não é possível sem a preservação da diversidade cultural que rodeia as agriculturas locais. O estudo da etnociência, por exemplo, tem revelado que o conheci-mento das pessoas do local sobre o ambiente, a vegetação, os animais e solos pode ser bastante detalhado. Para os agroecologistas, algumas particularida-

António Covas e Maria das Mercês Covas 95

des dos sistemas tradicionais de conhecimento são particularmente relevan-tes, não só para a agricultura tradicional mas, sobretudo, para melhorar o desempenho das agriculturas desenvolvidas mais convencionais, por exem-plo: a capacidade de tolerar riscos, a eficiência produtiva de misturas simbió-ticas de culturas, a reciclagem de materiais, a utilização dos recursos e mate-rial genético local, a habilidade em explorar toda uma gama de microam-bientes, etc. A partir daqui, é possível obter informações relevantes que podem ser utilizadas no desenvolvimento de estratégias agrícolas apropria-das, adequadas às necessidades, preferências e base de recursos de grupos específicos de agricultores e agroecossistemas regionais (Altieri, 2004).

Porém, importa não esquecer, a produção sustentável da agroecologia só acontecerá no contexto de uma organização social e política que proteja a integridade dos recursos naturais, compreenda a importância transcendente da economia dos serviços ecossistémicos e perceba a relação umbilical entre agroecologia, ambiente e qualidade de vida. Eis algumas premissas do enfo-que agroecológico de acordo com Altieri (2008) e Gliessman (2007):

– Atender a requisitos sociais: preservando e qualificando as relações entre os indivíduos e buscando melhores condições de vida e de bem--estar em um determinado contexto;

– Considerar aspectos culturais: resgatando e respeitando saberes, conhe-cimentos e valores dos diferentes grupos sociais, que serão analisados, compreendidos e utilizados como ponto de partida para o desenvolvi-mento local;

– Cuidar do meio ambiente: preservando os recursos naturais ao longo do tempo, com a manutenção ou ampliação da biodiversidade, melhorando a reciclagem de materiais e energia dentro dos agroecossistemas;

– Apoiar o fortalecimento de formas associativas e de acção colectiva: promovendo a participação efectiva, possibilitando a formação dos actores sociais e estimulando a autogestão;

– Contribuir para a obtenção de resultados económicos: observando o ponto de equilíbrio entre a produção e preservação da base de recursos naturais;

– Atender a requisitos éticos: compromisso com uma sociedade mais jus-ta, pautada por relações igualitárias e fraternas, observando que a busca de sustentabilidade implica uma necessária solidariedade entre as gera-ções actuais e as futuras gerações. Em resumo, com a contribuição da corrente agroecológica o que se bus-

ca é a construção social de uma diversidade de agriculturas sustentáveis, isto é, estilos de agricultura que reconhecem a natureza sistémica da produção de

96 Os territórios-rede

alimentos, forragens e fibras, equilibrando, com equidade, aspectos relacio-nados com a saúde ambiental, a justiça social e a viabilidade económica, entre os diferentes sectores da população, incluindo distintos povos e dife-rentes gerações (Gliessman, 2007).

Terminamos com a definição de Pretty (2006). Um sistema de produção agrária será sustentável se perseguir, sistematicamente, as seguintes metas:

a) Uma mais completa incorporação de processos naturais, como seriam a reciclagem de nutrientes, a fixação de nitrogénio atmosférico e as rela-ções predador-presa nos processos de produção agrária;

b) Uma redução no uso de inputs externos e não renováveis com maior potencial de dano ao meio ambiente e à saúde de agricultores e consu-midores, e um uso mais criterioso dos demais inputs no sentido de minimizar os custos variáveis de produção;

c) Um acesso mais equitativo aos recursos produtivos e mais atento às for-mas socialmente mais justas de agricultura;

d) Um maior uso produtivo do potencial biológico e genético das espécies animal e vegetal;

e) Um maior uso produtivo das práticas e conhecimentos locais e um incremento da confiança entre agricultores e população rural;

f) Um melhoramento no equilíbrio entre estilos de agricultura, potencial produtivo e restrições ambientais de clima e solo, de maneira a assegu-rar a sustentabilidade dos níveis de produção a longo prazo;

5.3. O processo de transição e conversão agroecológico e ecossisté-mico

Neste tópico vamos destacar, em primeiro lugar, a um nível intermédio, a importância do ecossistema de acolhimento onde ocorre o processo de transição e conversão, em segundo lugar, realçar o significado e a extensão do continuum agroecológico e, por último, registar as fases e a diferenciação dos vários níveis de transição e conversão agroecológica e ecossistémica.

A importância do ecossistema de acolhimento

Há dois níveis fundamentais de transição no processo de conversão agroecossistémico. O primeiro, num plano intermédio de intervenção, diga-mos mesoecológico e mesoeconómico, tem a ver com a preparação do ecos-sistema de acolhimento, isto é, com a diferenciação estrutural que enquadra a passagem dos agrossistemas artificializados aos agroecossistemas mais rena-turalizados. O segundo, num plano microecológico e microeconómico, tem a

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ver com a preparação da exploração agrícola propriamente dita para a res-pectiva conversão. A Tabela n.º 4 mostra a complexidade destas transições entre ecossistemas com diferentes graus de artificialização e renaturalização.

Tabela n.º 4 – Diferenças estruturais nos processos de transição e conversão

Características Ecossistema Natural

Agrossistema Artificializado

Agroecossistema Renaturalizado

1.Produtiv/Líquida 2.Interacção Trófica 3.Diversid. Espécies 4.Diversid. Genética 5. Ciclo de Nutrientes 6.Estabilida/Resiliência 7.Controlo Humano 8.Permanência Tempo 9. Heterog. de habitats

1. Média (natural) 2. Complexa 3. Alta 4. Alta 5. Fechado 6. Alta 7. Independente 8. Longa 9. Complexa

1. Alta (artificial) 2. Simples 3. Baixa 4. Baixa 5. Aberto 6. Baixa 7. Dependente 8. Curta 9. Simples

1. Em alta (renatural) 2. Em recomposição 3. Em recomposição 4. Em recomposição 5. Mais autónomo 6. Mais resiliente 7. Mais independente 8. Mais longa 9. Mais complexa

Fonte: Covas e Covas (2010: 117), adaptado de Gliessman (2007).

Duas constatações ressaltam imediatamente: em primeiro lugar, não há,

em rigor, microconversões definitivas sem uma mesoconversão apropriada do ecossistema de acolhimento; em segundo lugar, e em boa verdade, esta-mos perante um continuum de agriculturas sustentáveis e de inúmeras con-versões em busca de serem bem-sucedidas, uma vez que a concorrência e a contingência estão sempre presentes e podem fazer regredir, a qualquer momento, a “fé” no processo de conversão.

A primeira constatação é tão necessária quanto complexa porque envol-ve uma middle level approach, uma abordagem territorializada e minima-mente institucionalizada (uma extensão rural agroecológica) que permita aplicar no terreno concreto dos ecossistemas em causa os princípios estrutu-rais de uma estratégia de conversão agroecológica, sob pena de os nove tópi-

98 Os territórios-rede

cos referenciados na tabela não produzirem resultados globalmente satisfató-rios.

Esta middle level approach envolve uma rede constituída pelas organi-zações de produtores, os serviços de extensão rural da administração pública, as instituições de ensino superior e investigação agrária e as associações de desenvolvimento local que, no conjunto, representam os principais stakehol-ders do processo de conversão agroecológica. Os territórios-rede podem ser usados com este propósito e esse pode ser uma das suas justificações. Em abono da verdade devemos dizer que a última reforma da PAC, por via do seu esverdeamento, ficou mais próxima desta abordagem intermédia, em par-ticular, pelo reconhecimento da importância dos bens públicos rurais de natureza agroecológica e ecossistémica.

A segunda constatação diz-nos que, se não formos bem-sucedidos na implementação daquela middle level approach, não teremos conversões genuínas, mas tão-só oportunistas, deixando germinar no seu seio o risco moral e os comportamentos egoístas (free raider). Esta eventualidade é mui-to elevada e pode ser observada a olho nu na forma como cada agricultor ou empresário rural desenha os “compromissos agroecológicos e multifuncio-nais” entre as suas diversas produções (Covas e Covas, 2010).

A formação do continuum agroecológico

De um ponto de vista realista, a ideia mais próxima da realidade é a de um continuum de oportunidades e experiências de agricultura sustentável e, portanto, também, de conversão agroecológica, não obstante serem cada vez mais raros os casos de conversão genuína e integral. Numa ponta desse con-tinuum estariam as formas de ecological greening ou de “intensificação sus-tentável” que, apesar de um certo tipo de conversão minimalista, continua-riam muito próximas do padrão produtivista dominante. Na outra ponta do continuum estariam as múltiplas formas de “agricultura de base ecológica”, em busca de uma maior integração entre os conhecimentos agronómicos, ecológicos, económicos e sociológicos. Neste continuum de agriculturas de base ecológica, a conversão agroecológica propriamente dita é um caso especial por não se limitar a ser uma agricultura alternativa e ser, também, ou desejar ser, uma ecologia política e uma economia política da “ruralidade renascentista” do século XXI.

António Covas e Maria das Mercês Covas 99

A extensão agroecológica, no que diz respeito às boas práticas a utilizar na manutenção do continuum agroecológico, recomenda uma série de proce-dimentos que hoje entram em qualquer manual relativo às agriculturas de base ecológica: a transição dos nutrientes externos para a reciclagem de nutrientes, a transição das formas de energia não renovável para a energia renovável, a eliminação de inputs sintéticos e o aproveitamento dos materiais existentes no local, a manipulação de pragas, doenças e ervas daninhas em vez da sua eliminação, o restabelecimento de relações biológicas que podem ocorrer naturalmente na exploração em vez da sua redução ou simplificação, uma combinação mais apropriada entre padrões de cultivo, potencial produ-tivo e limitações físicas da paisagem agrícola, a adaptação do potencial bio-lógico e genético das espécies de plantas e animais às condições ecológicas da exploração, em vez de as modificar para satisfazer às necessidades das culturas e animais, a valorização da saúde geral do ecossistema e a ênfase posta na preservação dos recursos, finalmente, a ideia de sustentabilidade de longo prazo no desenho e gestão geral do agroecossistema.

Em síntese, o continuum agroecológico é um sistema de vasos comuni-

cantes entre natureza e cultura, por isso, a extensão agroecológica ou o actor--rede que gere o continuum agroecológico tem de tomar algumas medidas cautelares para evitar que os incidentes de percurso, que sempre ocorrem, não agravem os custos de contexto e reduzam os benefícios de contexto que estão sempre na base de uma estrutura de acolhimento territorial e ecossis-témica favorável, por exemplo: a baixa utilização do potencial biogenético local, a fragilidade do capital social local, a baixa multifuncionalidade do capital da exploração agrícola e a baixa intensidade-rede das organizações cooperativas e associativas. No resto, é preciso estarmos avisados sobre os principais problemas de ordenamento do território, a sua ocupação e povoa-mento e, sobretudo, confirmar se o equilíbrio metabólico num local não está a ser descompensado por um desequilíbrio noutro local, isto é, se estamos a exportar desequilíbrios ecológicos para territórios politicamente mais frágeis.

Os níveis de transição e conversão

Segundo Gliessman (2007), podem ser distinguidos três níveis funda-mentais no processo de transição para os agroecossistemas sustentáveis:

a) O aumento da eficiência das práticas convencionais para reduzir o uso

e consumo de inputs caros, escassos e perniciosos para o meio ambien-te; tem sido a principal missão da investigação agrária convencional, resultando daí muitas práticas e tecnologias que ajudam a reduzir os

100 Os territórios-rede

impactos negativos da agricultura convencional; embora persista a dependência de recursos externos, adoptam-se já práticas de regenera-ção e conservação da fertilidade do solo, entre outras;

b) A substituição de inputs e práticas convencionais por práticas alterna-tivas; a meta é, aqui, a substituição de produtos e práticas intensivas por outras mais benignas do ponto de vista ecológico; neste nível de transi-ção a estrutura básica do agroecossistema mantém-se praticamente inal-terada, próxima do sistema de produção convencional, podendo ocorrer, portanto, problemas similares aos destes sistemas; nesta altura, estamos a alterar substancialmente a “matriz das intensidades” da exploração, reduzindo e convertendo essas intensidades (química, mecânica, hídrica, fitossanitária, veterinária), etc.;

c) O redesenho do agroecossistema com base num novo conjunto de pro-cessos ecológicos; neste nível procuramos eliminar “as causas” dos pro-blemas que ainda subsistem nos dois níveis anteriores; trata-se de uma conversão “conhecimento-intensiva”, de experimentação complexa, razão pela qual são mais comuns os trabalhos de investigação sobre a transição do primeiro nível ao segundo nível, e mais escassos os traba-lhos sobre a transição ao terceiro nível. Nos primeiros dois níveis podemos falar de um “processo de moderniza-

ção ecológica” da agricultura, inscrita na grande teoria da modernização ecoló-gica, que não se confunde com a transição agroecológica, propriamente dita. A corrente agroecológica defende a construção de agriculturas de base ecológica que se justifiquem pelos seus méritos próprios e incorpora sempre a ideia de justiça social e protecção ambiental, independentemente do valor comercial ou nicho de mercado que venha a conquistar (Caporal e Costabeber, 2000).

Ora, a modernização ecológica da agricultura orienta-se exclusivamente pelo mercado e pela expectativa de um benefício económico obtido num determinado período histórico ou conjuntura económico-comercial, o que, só por si, não garante a sua sustentabilidade no médio e longo prazos. Na pers-pectiva de um “processo de modernização ecológica” nada impede que o “capitalismo verde” venha a produzir uma monocultura orgânica de grande escala, realizada em qualquer parte do mundo e exportada como uma com-modity. Essa green commodity pode, mesmo, ser muito útil aos caprichos de “consumidores informados” sobre as benesses de consumir produtos agríco-las “limpos”, “orgânicos”, “naturais”, “ecológicos”, “biológicos”, indepen-dentemente de o mesmo consumidor desconhecer as condições sociais, polí-ticas e económicas em que o “tal produto” foi ou vem sendo produzido.

António Covas e Maria das Mercês Covas 101

Face ao debate sobre a agroecologia e as suas exigências em termos de conversão, o processo de modernização ecológica da agricultura é uma evo-lução positiva mas, também, uma simplificação, se quisermos, uma moderni-zação ecológica incremental, à maneira da economia do ambiente de inspira-ção neo-clássica. Todavia, este facto não impede, antes pelo contrário, que essas alterações de ordem técnica promovam uma nova diferenciação de produtos e uma nova segmentação do mercado e dos clientes e, finalmente, outros tipos de diferenciação/discriminação social na agricultura por via de uma especialização “ecológica ou orgânica” e respectivas condições de aces-so. Questões como a identidade e certificação ecológicas ou como a produ-ção social de qualidade podem estar na origem de novas segregações sociais na classe dos agricultores se não forem acauteladas algumas condições de partida que constam, por exemplo, no “ideário” da agroecologia e que têm a ver com a abordagem holística e sistémica dos sistemas produtivos locais onde se insere a agricultura (Caporal e Costabeber, 2000).

O terceiro nível de transição, pelo contrário, aproxima-se muito mais da

abordagem agroecológica. Altieri considera que seria uma proposta tecnoló-gica apoiada em conceitos ecológicos, onde as complementaridades e siner-gias resultantes da combinação de espécies animais e vegetais em distintos arranjos espaço-temporais proporcionariam as bases para a optimização agroecossistémica (Altieri, 2004). É, porém, o incremento da biodiversidade agrícola o elemento chave para o desenho e gestão de sistemas agrários, uma vez que promove uma variedade de processos de renovação ecossistémica e serviços ecológicos correspondentes que, em conjunto, potenciam as metas de uma produção sustentável a longo prazo (Altieri, 2008).

As dificuldades para operar estes diferentes níveis de transição têm a

ver com a sua natureza conhecimento-intensiva que não está ao alcance da maioria dos agricultores e empresários agrícolas, em particular, a dificuldade em definir com precisão e monitorizar com rigor os indicadores e critérios operativos que convertem agrossistemas convencionais em agroecossiste-mas. É certo, muitas destas práticas agrárias cabem no âmbito dos primeiros dois níveis porque se estabelecem em contraposição àquelas que têm sido dominantes no modelo agroquímico convencional, e são mais fáceis de apli-car. A passagem ao terceiro nível implica, porém, passar do “sistema de pro-dutos” aos “produtos do sistema”, isto é, uma conversão em que todos os produtos agrícolas são filhos do “agroecossistema”, cujo perfil foi desenhado para que todas as “internalidades” fossem mutuamente vantajosas: integra-ção de agricultura, pecuária e floresta, rotação de culturas, fertilização orgâ-nica do solo, reciclagem de nutrientes, controle biológico de pragas, ervas

102 Os territórios-rede

daninhas e doenças, redução do consumo energético, eliminação do uso de inputs agroquímicos, incremento da biodiversidade, etc.

Em síntese final, o conceito de agricultura sustentável, na prática, fun-ciona como um enorme guarda-chuva sob o qual se abrigam inúmeros siste-mas de produção, tecnologias agrárias e estilos de agricultura. A maior ou menor utilização destas práticas sustentáveis caracterizaria e serviria para descrever alternativas ao modelo tecnológico dominante. Estas alternativas incluiriam, por exemplo, a agricultura de baixos inputs externos (1.º e 2.º níveis de transição), a agricultura agroecológica (3.º nível de transição), para além de outras agriculturas de base ecológica, mais ou menos representativas ou mais ou menos circunscritas, tais como a agricultura biológica, a agricul-tura orgânica, a agricultura biodinâmica, a agricultura natural, a permacultu-ra, entre outras denominações de geometria muito variável.

6. Uma biopolítica da paisagem: o contributo do arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT)

Neste capítulo revisitamos o universo paisagístico e conceptual do arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT) e, também, uma das suas aplica-ções mais conhecidas, o plano verde e a cidade que lhe corresponde, a eco-pólis. O arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles é um dos fundadores da escola de arquitectura paisagista em Portugal, numa linha doutrinária próxima da eco-logia da paisagem, embora o seu pensamento seja extraordinariamente polis-sémico e esteja permanentemente em processo e construção.

Nos principais conceitos com que organiza o seu pensamento há uma vibração biológica constante e a intensificação dos elementos vitais dos seus projectos é um traço permanente da sua composição e do seu compromisso com a paisagem. Nesta medida, ousamos dizer que o pensamento de GRT é um fluxo permanente de energia e vida que procura contrariar o movimento geral a caminho da desordem e da entropia universal. Os seus projectos têm sempre o mesmo propósito, qual seja, o de criar bolsas de estrutura, ordem e beleza que contribuam para aproveitar toda a energia útil disponível mesmo que ela continue o seu processo de degradação à luz das leis gerais da termodi-nâmica. O universo paisagístico e conceptual pertence a essa grande corrente regeneradora, fonte de vida, a que damos o nome de biopolítica do território.

6.1. A filosofia e a política da paisagem em GRT

Em GRT nós podemos observar, a olho nu, a poesia da natureza e a criatividade humana. Basta pensar nesse labor constante que é a construção

António Covas e Maria das Mercês Covas 103

de socalcos, orlas, sebes, muros, bosquetes e bordaduras. A filosofia da pai-sagem em GRT cabe no seu conceito de paisagem global, um conceito de “ordem, estrutura e beleza”, pleno de intuições e princípios de organização e funcionamento mas, também, de normas, regras e procedimentos, que pode ser revisto e revisitado em alguns instrumentos normativos que se foram ins-tituindo ao longo dos últimos anos.

Em GRT a paisagem global é, antes de mais, uma ética e uma estética da paisagem, se quisermos, uma espécie de sentimento vital que em GRT tem, ainda, uma tradução prática na forma como os espaços rurais, urbanos e natu-rais, se articulam e organizam por via da sua continuidade ecológica e cultural.

Em GRT o tempo da paisagem reveste uma dupla natureza. O tempo como sucessão (histórico) e o tempo como simultaneidade (quotidiano). Uma simultaneidade que permite diferentes temporalidades, o que significa que os actores se apropriam do espaço por meio de territorialidades igual-mente diversas. Estas múltiplas determinações territoriais geram inúmeras paisagens ou representações da paisagem. Por isso, a paisagem é sempre um compromisso entre valores que se estendem no tempo (existência, uso e opção), entre interesses e representações e, mesmo, entre normas de realiza-ção e regras de comportamento.

Em GRT este compromisso entre valores que se estendem no tempo, a saber, a existência como património, o uso como utilidade presente e a opção como legado às futuras gerações, é uma espécie de eco-antropologia trans-cendental que comanda a nossa vida e as relações de sociabilidade que man-temos com os outros por intermédio de uma relação essencial de naturalida-de que nos liga à natureza-ambiente.

Em GRT a paisagem é o génio do lugar, o espírito, cultural e ambiental, de um território que é capaz de capturar a nossa atenção, de nos instruir e deslumbrar. Neste sentido, a paisagem é em GRT uma espécie de hermenêu-tica dos lugares, pois todos os lugares parecem fazer sentido nesse lugar transcendente que é a paisagem global.

Dito isto, a filosofia da paisagem é em GRT a arte da composição e do compromisso, uma arte muito complexa cujos principais elementos consti-tuintes podem ser alinhados como segue:

– O solo arável e a biodiversidade local: o solo é uma fonte de vida e a intensificação dos elementos vitais da paisagem aumenta a produtivida-de primária dos recursos com óbvios benefícios para a agricultura;

– A circulação dos elementos naturais: a circulação dos elementos natu-rais é mais uma fonte de vida que inspira a construção social da cidade orgânica e metabólica que deverá substituir-se à cidade zonada e com-partimentada;

104 Os territórios-rede

– O abastecimento alimentar de proximidade e a circular verde: a estrutu-ra ecológica municipal e o continuum natural entre a cidade e o campo permitem organizar a cintura verde, a agricultura periurbana e urbana e todo o sistema alimentar local (SAL) de proximidade;

– O desenho da paisagem como acto de criação: a aptidão não nasce, a aptidão constrói-se, o montado é uma criação humana, é a história humana inscrita na natureza;

– A cidade-região como um continuum natural e cultural: o urbanismo modernista e a agricultura moderna criaram uma não-relação cidade--campo, ou seja, uma relação dicotómica, polarizada e dual, que acabou por ocultar o campo á cidade e a cidade ao campo; pelo contrário, a cidade-região é uma relação aberta, sem complexos ou zonas demarca-das; em GRT regressamos, de certo modo, e paradoxalmente, a um pré e pós-modernismo em busca de um tempo que se renova constantemente pelo acto da criação;

– A conservação da natureza como composição da agricultura: eis a prova de que em GRT a conservação não é um acto exterior à produção, pelo contrário, a conservação é uma internalidade do sistema produtivo, é um output da produção conjunta da agricultura através dos seus serviços agroecológicos e ecossistémicos;

– A paisagem como compromisso de temporalidades e territorialidades: a paisagem do quotidiano tem vários tempos ou várias velocidades, se quisermos, muitos tempos no mesmo tempo produzem muitas represen-tações do tempo presente; cada uma destas temporalidades do quotidia-no está na origem de uma territorialidade diferenciada e assim se enri-quece o mosaico paisagístico do território;

– A paisagem como compromisso de valores e representações: a ética, a estética, a ciência, a arte, a religião e a cultura, todos juntos no acto cria-tivo, sempre como compromisso e representação de autor; mais do que um arquitecto GRT é um artista intemporal;

– O génio do lugar: a morfogénese no pensamento de GRT, a estetização do mundo rural, a beleza e a harmonia das formas e, por essa via supe-rior, o sentimento vital e a recriação do espírito dos lugares, nessa obra permanente que consiste em reciclar todos os materiais da criatividade humana como princípio prático de uma biopolítica da vida.

Num outro plano, no plano da política da paisagem, o universo paisagís-tico em GRT acompanha de perto o que estabelece a Convenção Europeia da Paisagem (CEP). Lembremos o que diz a Convenção:

António Covas e Maria das Mercês Covas 105

– Constatando que a paisagem desempenha importantes funções de inte-resse público, nos campos cultural, ecológico, ambiental e social, e constitui um recurso favorável à actividade económica, cuja protecção, gestão e ordenamento adequados podem contribuir para a criação de emprego;

– Conscientes de que a paisagem contribui para a formação de culturas locais e representa uma componente fundamental do património cultural e natural europeu, contribuindo para o bem-estar humano e para a con-solidação da identidade europeia;

– Reconhecendo que a paisagem é em toda a parte um elemento importan-te da qualidade de vida das populações: nas áreas urbanas e rurais, nas áreas degradadas bem como nas de grande qualidade, em áreas conside-radas notáveis, assim como nas áreas da vida quotidiana;

– Constatando que a evolução das técnicas de produção agrícola, florestal industrial e mineira e das técnicas nos domínios do ordenamento do ter-ritório, do urbanismo, dos transportes, das infra-estruturas, do turismo, do lazer e, de modo mais geral, as alterações na economia mundial estão em muitos casos a acelerar a transformação das paisagens;

– Desejando responder à vontade das populações de usufruir de paisagens de grande qualidade e de desempenhar uma parte activa na sua trans-formação;

– Persuadidos de que a paisagem constitui um elemento-chave do bem--estar individual e social e que a sua protecção, gestão e ordenamento implicam direitos e responsabilidades para cada cidadão. Assim sendo, com base no artigo 5.º da Convenção cada Parte signatária

compromete-se a:

a) Reconhecer juridicamente a paisagem como uma componente essencial do ambiente humano, uma expressão da diversidade do seu património comum, cultural e natural, e base da sua identidade;

b) Estabelecer e aplicar políticas da paisagem visando a protecção, a ges-tão e o ordenamento da paisagem através da adopção das medidas espe-cíficas estabelecidas no artigo 6º;

106 Os territórios-rede

c) Estabelecer procedimentos para a participação do público, das autorida-des locais e das autoridades regionais e de outros intervenientes interes-sados na definição e implementação das políticas da paisagem mencio-nadas na alínea b) anterior;

d) Integrar a paisagem nas suas políticas de ordenamento do território e de urbanismo e nas suas políticas cultural, ambiental, agrícola, social e económica, bem como em quaisquer outras políticas com eventual impacto directo ou indirecto. A Convenção aplica-se a todo o território das Partes e incide sobre as

áreas naturais, rurais, urbanas e periurbanas. Abrange as áreas terrestres, as águas interiores e as águas marítimas. Aplica-se tanto a paisagens que pos-sam ser consideradas excepcionais como a paisagens da vida quotidiana e a paisagens degradadas. Para o efeito, a Convenção introduz os seguintes con-ceitos:

1) «Paisagem» designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo carácter resulta da acção e da interacção de factores naturais e/ou humanos;

2) «Política da paisagem» designa a formulação pelas autoridades públicas competentes de princípios gerais, estratégias e linhas orientadoras que permitam a adopção de medidas específicas tendo em vista a protecção, a gestão e o ordenamento da paisagem;

3) «Objectivo de qualidade paisagística» designa a formulação pelas auto-ridades públicas competentes, para uma paisagem específica, das aspi-rações das populações relativamente às características paisagísticas do seu quadro de vida;

4) «Protecção da paisagem» designa as acções de conservação ou manu-tenção dos traços significativos ou característicos de uma paisagem, jus-tificadas pelo seu valor patrimonial resultante da sua configuração natu-ral e/ou da intervenção humana;

5) «Gestão da paisagem» designa a acção visando assegurar a manutenção de uma paisagem, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável, no sentido de orientar e harmonizar as alterações resultantes dos processos sociais, económicos e ambientais;

António Covas e Maria das Mercês Covas 107

6) «Ordenamento da paisagem» designa as acções com forte carácter pros-pectivo visando a valorização, a recuperação ou a criação de paisagens. Este eclectismo e sistemismo da política de paisagem ínsitos na CEP

tem muitos pontos de contacto com o conceito intuitivo de paisagem global de GRT e revelam em comum uma dificuldade maior relacionada com o objectivo de qualidade paisagística, tal como ele é aqui formulado pela CEP, qual seja, a importância das metodologias de participação e envolvimento da população na representação, planeamento e gestão do território e da paisa-gem. A partir do momento em que há vários actores envolvidos e são possí-veis conflitos emergentes de usos do solo, imagina-se a importância de conhecer as percepções e preferências desses actores quanto à evolução desejada da paisagem, os cenários alternativos de planeamento que daí decorrem e, bem assim, o desenho das medidas de política pública mais apropriado a cada novo compromisso de interesses em volta de objectivos de qualidade paisagística.

Com efeito, podemos ter um leque variado de representações que vão desde uma paisagem sentimental (as memórias do passado) até uma paisa-gem futurista (uma certa estetização do futuro), para além das diversas pai-sagens utilitaristas do presente. Não é, portanto, muito previsível que as “várias paisagens” coincidam, isto é, que as representações paisagísticas dos actores presentes e ausentes no território forneçam indicações seguras à polí-tica pública para promover os seus programas de acção. De resto, a política pública é sempre uma racionalização das mensagens contidas nessas várias representações. Nesta sequência, já se vislumbram as dificuldades em deli-mitar e circunscrever as unidades de paisagem e os ecossistemas que elas contêm, por um lado, e os agroecossistemas e o sistema agro-alimentar local que eles suportam, por outro. Ora, esta compatibilização, mutuamente bené-fica, entre unidades de paisagem e sistemas produtivos locais é, justamente, a prova de fogo de uma política de paisagem bem concebida e conduzida.

Neste contexto e nestas condições, julgamos poder dizer o seguinte (Covas e Covas, 2012: 156-157):

– Não há uma “política de paisagem” proactiva e bem dotada que resolva, ao mesmo tempo, os passivos paisagísticos acumulados e as externali-dades positivas que o sistema produtivo local e o subsistema cultural esperam dela;

– Não é muito previsível que uma unidade de paisagem seja um sistema produtivo local perfeito, isto é, que reúna uma massa crítica de recursos e desencadeie uma série de efeitos de aglomeração, capilaridade e reti-culação sobre os territórios adjacentes ou da sua área de influência;

108 Os territórios-rede

– Não é muito previsível que um sistema produtivo local seja exemplar do ponto de vista paisagístico, isto é, que tenha internalizado e incorporado todas as boas práticas de lidar com os recursos naturais e o ordenamento do território;

– Não há, ainda, uma política agroecológica bem estabelecida porque ela não se confunde ou limita a uma transposição de normativos internacio-nais e europeus ou a um simples programa nacional de agricultura bio-lógica;

– Não há uma cultura de ordenamento do território que esclareça qual a importância e a posição destas duas políticas públicas, de paisagem e agroecológica, no desenho e na gestão dos territórios multifuncionais existentes no espaço agrorural. Esta entropia ou falta de “ordem e estrutura” na política de paisagem

acontece porque há dois factores a operar que desestruturam fortemente o espaço-território em construção e que impedem que se materialize aquela convergência favorável. Em primeiro lugar, é visível que a globalização dos mercados acelera e segmenta a dinâmica das actividades económicas e, por-tanto, das paisagens que as integram ou enquadram e mesmo os sistemas produtivos mais remotos não estão imunes a este movimento global de des-construção e segmentação. Desta constatação, fácil de verificar no território, pode retirar-se a questão pertinente de saber se, face a este movimento global de desestruturação, as políticas de paisagem e agroecológica têm argumentos políticos e meios suficientemente fortes para se impor no terreno concreto das empresas e das explorações, ou se, pelo contrário, são consideradas como um custo de contexto adicional, que afecta a competitividade das acti-vidades e empresas e que é preciso reduzir ou eliminar com brevidade.

Em segundo lugar, sabemos que os ciclos de reprodução em causa não

são convergentes e têm diferentes grupos de interesse a suportá-los e promo-vê-los. Os ciclos agroecológicos e paisagísticos inscrevem-se no território de forma lenta e gradual, têm um período longo de incubação e um retorno mediato e são suportados por grupos inorgânicos e difusos. Os ciclos eco-nómicos e produtivos têm uma reprodução e um retorno mais imediatos e são suportados por grupos de interesse mais organizados e poderosos com “ligações perigosas” aos respectivos ciclos político-eleitorais. Este descom-passo dos três ciclos em presença é fonte de muitos equívocos e muito ruido e acaba, quase sempre, por ter repercussões negativas na concepção e gestão das respectivas políticas públicas.

António Covas e Maria das Mercês Covas 109

6.2. O universo conceptual e normativo em GRT

Quando GRT fala em vitalidade biológica, em intensificação dos ele-mentos vitais da paisagem, em variedade e diversidade do mosaico cultural, ele está sintonizado com uma ideia-força deste livro, a ideia de uma biopolí-tica de longo alcance para o mundo rural, que só pode ser de natureza agroe-cológica, ecossistémica e arqui-paisagística. Alarguemos um pouco mais o espectro conceptual em GRT para abarcar outras realidades e para fazer, como ele dizia, a utopia com os pés na terra. O homem de hoje tende a dei-xar de ser rural ou urbano para alcançar uma visão cultural que abrange tanto os valores da ruralidade como os da cidade. E quem diz os valores diz, tam-bém, as actividades. “As ideias que presidem à criação da nova cidade devem ter como paradigmas a integração cidade-campo e a conexão urba-nismo-ecologia. O conceito de paisagem global tende a informar todo o processo de ordenamento do território e o próprio urbanismo” (Telles, 2003: 334).

O realismo virtual em GRT

As reflexões que vamos fazer seguem o mote dado pela Utopia e os pés na terra (Telles, 2003), uma espécie de realismo virtual que consagra alguns conceitos-chave, centrais no pensamento de Gonçalo Ribeiro Telles, como o de paisagem global, sistema-paisagem, cidade-região e plano verde, que integram a nossa noção mais ampla dos sistemas territoriais (Covas e Covas, 2012: 158-171).

O pensamento de GRT é, na sua essência, uma aplicação das leis gerais

da termodinâmica. Criar bolsas de ordem, aproveitar a energia útil disponí-vel, mesmo degradada, para reciclar e criar ordem e beleza novamente, este é o realismo virtual de GRT em face do movimento geral de entropia que nos rodeia. Por isso, todo o seu universo conceptual é feito de estrutura, ordem e beleza. Conceitos como paisagem global, sistema-paisagem, cidade-região ou plano verde fazem parte de uma biopolítica da paisagem e do território, são parte de uma corrente vital contra a desordem e a entropia.

Há em GRT um “desencontro de perspectivas” que não tem a ver com

uma incongruência do seu pensamento mas, antes, com a violência simbólica e a tensão política do campo de forças onde ele se move. A vitalidade dos mercados, pela sua força expansiva, fragmenta constantemente os limites das unidades paisagísticas onde, supostamente, se deviam situar os sistemas pro-

110 Os territórios-rede

dutivos locais (SPL) ou os sistemas alimentares de proximidade (SAP). Quer dizer, os SPL e os SAP contraem e dilatam a uma velocidade tal que não é possível estar permanentemente a redesenhar as unidades de paisagem que os acolhem. Esta diferença de velocidades e representações torna muito difí-cil todo o exercício de planeamento e gestão paisagístico. Acresce que, ao desestruturar as actividades económicas o mercado impõe “ajustamentos de emergência” à política de paisagem com o pretexto ou sob o argumento de que esta pode criar custos de contexto adicionais que, por sua vez, podem desestruturar ainda mais as actividades económicas.

Este “desencontro de perspectivas” pode, ainda, ser expresso de outra

maneira: de um lado, temos uma expressão paisagística plural a que não cor-responde um sistema produtivo local em concreto; de outro, temos um siste-ma produtivo concreto para o qual não encontramos uma expressão paisagís-tica adequada. O ecletismo do pensamento de GRT não o deixa ficar entrincheirado nesta dualidade mas ele parece acreditar que a multiplicidade de representações da paisagem pode “criar um mercado para a paisagem” que respeite os seus interesses específicos. Por isso mesmo, as noções de paisagem global e sistema-paisagem são, em GRT, noções transcendentes para pôr ordem e estrutura em tantas representações da paisagem, razão pela qual o seu pensamento é, não apenas sobre a ecologia da paisagem mas, também, sobre uma ecologia da vida humana que pratica o princípio da utili-dade social do respeito.

Um dos factores que, hoje em dia, mais contribui para esta multiplicida-

de de representações da paisagem são as distintas “culturas de risco” que temos à nossa frente. Esta conexão entre representação paisagística e cultura de risco afigura-se decisiva porque é, em boa medida, a cultura do risco e a sua transmutação territorial que nos permitirão traçar a identidade e o carác-ter da paisagem que queremos delimitar. Ora, as distintas representações da paisagem que daqui derivam estarão na base de outras tantas unidades de paisagem do território e são estes diferentes sistemas naturais e naturalizados que deverão enfrentar, não apenas a imprevisibilidade e a violência do risco global mas, também, operar a ulterior reabilitação e reconstrução dos diver-sos territórios assim representados. Por outro lado, as políticas de paisagem também contraem e dilatam embora menos frequentemente e menos rapida-mente do que as políticas de produção. Podemos ter políticas de paisagem entrincheiradas em áreas de paisagem protegida, em santuários conservacio-nistas e terroirs remotos ou podemos, ao contrário, ter uma política de paisa-gem horizontal e musculada capaz de se impor às diversas políticas sectoriais e respectivas actividades económicas.

António Covas e Maria das Mercês Covas 111

A paisagem normativa do sistema-paisagem

Muitas intuições pertencentes ao universo conceptual de GRT tiveram, felizmente, uma versão normativa. Quer dizer, temos hoje uma extensa “pai-sagem normativa” ao nosso dispor, mas em curso está, ainda, um processo longo de aprendizagem social e colectiva que só poderá acontecer nos siste-mas territoriais em concreto. Por isso, temos a certeza de que não existe, ain-da, a maturidade estratégica e operativa suficiente para tornar efectiva a sua aplicação prática no território concreto das nossas áreas urbanas e rurais.

Tabela n.º 5 – A paisagem normativa do sistema-paisagem

O sistema-paisagem A paisagem normativa

Elementos Tipológicos e Topológicos

– A Convenção Europeia da Paisagem (CEP);

– Os regulamentos e directivas da política euro-peia ambiente;

– A lei de bases do ordenamento do território e urbanismo;

– O regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial;

– O procedimento de avaliação estratégica ambiental;

– O programa nacional de políticas ordenamento do território

– O programa regional de ordenamento do território;

– A reserva ecológica nacional

– A reserva agrícola nacional

– A estrutura regional de protecção e valorização ambiental;

– O plano director municipal;

– O plano intermunicipal e municipal de ordena-mento

– A estrutura ecológica municipal;

– O plano de urbanização;

– O plano de pormenor;

– Os múltiplos normativos sectoriais.

Fonte: Covas e Covas (2012: 148).

112 Os territórios-rede

Mas este facto não diminui a sua pertinência estratégica e o império da lei é, obviamente, para cumprir. Na Tabela n.º 5 temos o que poderíamos designar como a “paisagem-normativa do sistema-paisagem”, todavia, para este efei-to, estamos ainda longe de ter um sistema integrado de planeamento e gestão das unidades de paisagem contidas nos programas regionais de ordenamento do território (PROT), dos sistemas produtivos locais e dos sistemas alimenta-res de proximidade que lhe correspondem. Quando lá chegarmos estaremos, seguramente, muito mais próximos do pensamento de GRT.

A estrutura operativa do sistema-paisagem e da cidade-região

Nesta tipologia normativa e nesta topologia operativa do sistema--paisagem, os lugares centrais, de articulação formal e funcional, são ocupa-dos, no plano regional, pelo programa regional de ordenamento do território (PROT) e o seu instrumento operativo, a estrutura regional de protecção e valorização ambiental (ERPVA) e, no plano local ou municipal, pelo plano director municipal (PDM) e a sua estrutura operativa, a estrutura ecológica municipal (EEM). A ERPVA e a EEM são, portanto, os instrumentos operati-vos fundamentais do sistema-paisagem, da paisagem global e da cidade--região, pela articulação que promovem dos dois níveis de planeamento regional e local e pelo modo como a cidade é projectada para fora das suas fronteiras e do seu perímetro urbano.

Nesta estrutura operativa, o conjunto formado pelos corredores verdes

(CV) e suas redes (RCV), os planos de pormenor (PP) de carácter ecossisté-mico e biofísico, bem como outras unidades operativas de reabilitação eco-lógica e biofísica, imprime uma dinâmica própria a cada sistema territorial e é essa dinâmica que lhe conferirá a identidade e o sentimento de pertença, assim como o carácter da paisagem que a população imagina ou representa em cada segmento do território. Este conjunto de instrumentos operativos é uma espécie de “mesa de operações cirúrgicas”, onde se deitam a Unidade de Paisagem e o Sistema Produtivo Local ou o Sistema Alimentar de Proximi-dade e onde têm lugar as intervenções que fazem convergir os quatro ele-mentos constitutivos de qualquer sistema territorial: a unidade de paisagem (UP), o sistema produtivo local (SPL), o sistema simbólico-cultural (SSC) e a institucionalidade dedicada (ID).

A Figura n.º 1 mostra-nos a estrutura de ligações do sistema-paisagem e

da cidade-região. Como se pode observar, a cidade-região “acontece” entre o nível regional PROT/ERPVA e o nível local PDM/EEM. As áreas ERPVA são 65% do território nacional (Oliveira, et al, 2012), coincidem com áreas de

António Covas e Maria das Mercês Covas 113

baixa densidade e baixa dinâmica territorial de desenvolvimento, logo, podem constituir-se numa “rede de base ecológica de características multi-funcionais” e, portanto, ambicionar atingir objectivos tão meritórios para as zonas menos desenvolvidas como, por exemplo, o sequestro de carbono, o abastecimento alimentar de proximidade, a eficiência energética, a qualidade do ar e da água, a renaturalização urbana e a criação de mais espaços verdes de recreio e lazer.

Figura n.º 1 – Paisagem global e sistema-paisagem

Nivel 5(Cidade-região)

CR

Nível 3(Sub-regional)

Nível 2(Regional)

Nível 1(Nacional)

PNPOTProg. Nacional de

Polít. Ordenamentodo Território

IGTInstrumentos de

Gestão Territorial

PROTProg. Regional de

Ordenamentodo Território

ERPVAEstrut. Regional

de Protecção eValorização

Ambiental

UPUnidade

de Paisagem

PIMOTProg. Inter-

municipal deOrd. Território

PDMPlan. Direct.

Municipal

EEMEstrut. Ecol.

Municipal

PPPlano de

Pormenor

PUPlano de

Urbanização

Nível 4(Municipal)

RD-Rede de Distribuição

Paisagem Global

RE-Rede Ecológica

RC

-Red

eC

ultu

tal

Fonte: Covas e Covas (2012: 152).

A multifuncionalidade complexa proporcionada pelo sistema-paisagem

(Figura n.º 1) permite à cidade-região organizar a sua polaridade concelhia e o seu interland territorial de forma muito mais harmoniosa e inteligente,

114 Os territórios-rede

usando, para o efeito, as redes que tem à sua disposição (de distribuição, eco-lógicas e culturais) e, agora, por causa dessa multifuncionalidade, de uma forma mais heterárquica e policontextual.

Quando dizemos, a propósito da ERPVA, uma “rede de base ecológica de características multifuncionais” percebemos melhor a expressão “realismo virtual” no pensamento de GRT. Seja como for, como mostra a Figura n.º 1, a conexão estrutural-funcional entre a ERPVA e a EEM, se bem estabelecida, confere maior consistência ao conceito de cidade-região que, assim, passa de uma simples gestão urbanística de um perímetro urbano para uma gestão mais territorial, paisagística e multifuncional de toda a área envolvente do município. Em particular, esta conexão estrutural-funcional facilita o dese-nho dos corredores verdes e a implantação das redes de corredores verdes, que são um dos vectores centrais da projecção da cidade-região em toda a sua área envolvente.

Em consequência desta maior consistência estrutural-funcional, tere-mos, também, mais e melhor urbanismo e planeamento sistémico da cidade--região, seja nas variáveis-objectivo do planeamento seja nas suas variáveis--instrumentais. Com efeito, trata-se de:

1. Melhorar as variáveis-objectivo do planeamento verde ou as suas redes

de usos:

– Melhorar as redes de produção: as hortas sociais familiares e colectivas, as hortas pedagógicas, os parques hortícolas, a agricultura especializa-da, a agricultura biológica de abastecimento, a agricultura patrimonial, os agrossistemas tradicionais, as quintas de recreio, as tapadas, cercas e jardins históricos;

– Melhorar as redes de protecção: as linhas de água e as galerias ripícolas, os bosquetes, as sebes de compartimentação, os muros e muretes, as fai-xas de integração paisagística dos espaços-canal;

– Melhorar as redes de recreio e lazer: os espaços de desporto ao ar livre, o campismo, os parques de merenda, os percursos pedestres e cicláveis, etc.

2. Melhorar as variáveis-instrumentais do planeamento verde:

– Aprofundar os estudos de paisagem para a delimitação das unidades de paisagem (UP);

– Aprofundar a complexidade multifuncional das UP para aumentar o número de ligações;

– Melhorar a qualidade das infra-estruturas ecológicas de ligação; – Melhorar a conectividade dos corredores de ligação.

António Covas e Maria das Mercês Covas 115

Nesta organização multiníveis da cidade-região há factores críticos que importa aqui salientar. Em primeiro lugar, queremos relevar a importância da multifuncionalidade da paisagem e a estruturação e dinâmica que ela intro-duz nas multifuncionalidades de 2.ª ordem ou grau, como são as multifun-cionalidades da agricultura e da economia rural. Em segundo lugar, releva-mos a importância dos corredores de ligação, que fazem a conexão entre os diferentes subsistemas da paisagem global e do sistema-paisagem e no inte-rior dos quais podem emergir novos sistemas territoriais. Em terceiro lugar, a governação multiníveis deste sistema complexo deve estar muito atenta à possibilidade real de se virem a formar “sistemas territoriais transfronteiri-ços”, pois neles poderá residir a componente mais inovadora do planeamento urbanístico e ecossistémico da cidade-região, em especial, o planeamento sistémico das ligações entre as redes de uso dos solos e as variáveis--instrumentais da estrutura verde de conexão.

Em resumo, a nossa teoria nesta matéria é a de que uma política de pai-sagem, nos termos definidos, genericamente, na convenção europeia, cria “benefícios de contexto” para o sistema produtivo local da unidade de paisa-gem ou unidades de paisagem que estamos a considerar. A unidade de paisa-gem é um sistema territorial específico que tem uma massa crítica mínima de capital natural que lhe dá identidade e carácter próprio. Por sua vez, o siste-ma produtivo local (SPL) é um conjunto dinâmico de actividades económi-cas que integra, em dose variável mas apropriada, o capital natural, o capital produtivo, o capital social e o capital institucional. O que importa averiguar é se aquela unidade e este sistema são compatíveis e convergem no mesmo plano territorial ou, de outro modo, se a maior homogeneidade da unidade de paisagem é compatível com a maior heterogeneidade do sistema produtivo local. No final, a política de paisagem deve procurar promover esta conver-gência, de tal modo que todos os efeitos externos positivos dessa política se façam sentir sobre a qualidade do sistema produtivo local e sejam atingidos os objectivos visados de qualidade paisagística.

6.3. A cidade-região, o plano verde e a ecopolis da 2.ª ruralidade

Feita esta metanarrativa da paisagem global e do sistema-paisagem, vol-temos, agora, ao discurso premonitório do arquitecto Gonçalo Ribeiro Tel-les, sobretudo no que diz respeito à necessidade de uma estrutura verde da cidade que faça a interface da urbe com o mundo exterior. Como dissemos, a qualidade da conexão estrutural-funcional entre a Estrutura Regional de Pro-tecção e Valorização Ambiental (ERPVA) e a Estrutura Ecológica Municipal

116 Os territórios-rede

(EEM) é, aqui, o elemento determinante, pois abre imenso o campo das liga-ções e possibilidades do planeamento sistémico da cidade, projectando-a desde o anel intra-urbano até aos anéis exteriores do rural remoto.

A cidade monolítica está condenada, é preciso recrear a unidade da urbe--ager-saltus-silva. O planeamento ecológico da região e o desenho da nova paisagem exigem a integração da ecologia no urbanismo. O desenho da cidade não se pode circunscrever a traçar zonas que definam as transforma-ções do espaço edificado ou a edificar mas, pelo contrário, deve comportar todo um sistema espacial definido por circunstâncias geográficas, ecológi-cas e culturais inter-relacionadas (Telles, 2003: 334).

A conexão cidade-campo e os princípios da estrutura verde

Há muito tempo que as fronteiras da cidade foram ultrapassadas. Mas de que cidade estamos a falar? Por paradoxal que pareça, não estamos a falar da “cidade desordenada de antigamente” mas da “cidade-zonada, ordenada”, da era urbano-industrial. Os perímetros urbanos foram alargados, surgiram os anéis suburbanos e periurbanos, os equipamentos e as infra-estruturas ras-garam o território envolvente e as barreiras naturais em todas as direcções, a alteração do uso dos solos promoveu a especulação e a irracionalidade urba-nísticas. Nesta sequência desordenada desapareceu a unidade espacial da urbe-ager-saltus-silva, no tempo em que a cidade era um ponto no meio do campo e em que a cultura da cidade era comum à cultura do campo. O resta-belecimento desta unidade perdida é hoje um imperativo das políticas de ordenamento e de urbanismo.

Com efeito, a trajectória da cidade moderna é a história do modo como a conexão virtuosa entre a cidade (urbe), a agricultura de abastecimento (ager), a agricultura livre e de pastoreio (saltus) e a mata de apoio (silva) foi sendo sucessivamente quebrada ao longo dos diferentes períodos históricos. Mais perto de nós, a cidade do pós-guerra foi rigidamente desenhada a régua e esquadro, uma cidade-zona sectorializada para implementar as suas diferentes funcionalidades. A cidade-tipo do mundo urbano-industrial do pós-guerra é aquela em que tudo ou quase tudo fica circunscrito pelo domínio do automóvel e das grandes densidades urbanísticas, cuja massa e volumetria se sobrepõem à morfologia e aos valores culturais do território (Telles, 2003: 332).

Esta cidade-zona artificializa-se cada vez mais e faz algumas vítimas. Em primeiro lugar, as camadas sociais mais desfavorecidas que são atiradas para os subúrbios inóspitos e agressivos, em segundo lugar, os ecossistemas naturais, cada vez mais poluídos, fragmentados e degradados e, por último, os centros históricos e os seus pequenos núcleos habitacionais, filhos bastardos de heran-

António Covas e Maria das Mercês Covas 117

ças desencontradas e políticas públicas ausentes, onde apenas ficam alguns serviços públicos e os elementos monumentais mais significativos.

Em Portugal, a “terraplanagem” é uma ameaça constante. A morfologia do território e os sistemas ecológicos mas, também, os valores culturais das paisagens tradicionais são desprezados ou menosprezados. A cidade densa urbanisticamente torna-se energetívora. Por outro lado, ao crescer, as cidades urbano-industriais alargam os suas áreas de influência, tornam-se verticais, vão penetrando sucessivamente o território e a sua dimensão é cada vez mais regional, em anéis sucessivos que se estendem do suburbano e do periurbano até ao rural de proximidade e ao rural remoto. Esta é, por isso, também, uma grande oportunidade, pois o restabelecimento da conexão entre áreas urbanas e paisagens rurais está, agora, ao nosso alcance.

É por isso que se deve substituir um urbanismo espartilhado em zonas inde-pendentes, sustentáveis artificialmente, por um urbanismo de base sistémi-ca onde os ecossistemas naturais e os agrossistemas se articulem com o facies edificado da cidade. É esta diversidade espacial que hoje deve presi-dir à cidade-região (Telles, 2003: 333).

Nesta estratégia de restauração da conexão cidade-campo, parece imprescindível uma nova arquitectura biofísica e paisagista. Nesta estratégia e nesta arquitectura, o plano verde, a estrutura ecológica e a rede de corredo-res verdes podem e devem desempenhar um papel fundamental. Assim, na construção do sistema-paisagem e da cidade-região devem ser respeitados os seguintes princípios de ordenamento (Telles, 2003: 334):

– Em primeiro lugar, o primado da ecologia humana porque o homem está sempre no centro de todas as mudanças no território;

– Em segundo lugar, a centralidade do continuum naturale, sistema contí-nuo de funcionamento dos ecossistemas naturais através de estruturas que garantem a presença da natureza, a biodiversidade e a circulação dos elementos;

– Em terceiro lugar, a centralidade do continuum aedificandi, sistema contínuo de espaços edificados, superfícies pavimentadas e equipamen-tos que, no seu conjunto, constituem o habitat residencial do homem;

– Em quarto lugar, a relevância do genius loci, os lugares, biofísicos e simbólicos, histórico-paisagísticos, com valor emblemático na cidade, no país e no mundo;

– Em sexto lugar, a importância da polivalência dos espaços, suporte das actividades de produção e lazer;

– Por último, a intensificação dos elementos biológicos, no sentido da auto-regulação e da auto-regeneração dos sistemas naturais.

118 Os territórios-rede

Neste contexto e com esta estrutura, a cidade-região é a projecção da urbe para a sua envolvente externa que inclui o ager, o saltus e a silva, ou, de uma forma mais actual, os cursos de água biologicamente activos, a agri-cultura de abastecimento de alimentos frescos, as matas e as zonas de recreio e conforto ambiental. A projecção externa da cidade exige a criação de uma estrutura verde global que seja o interface com esse “mundo exterior”. Essa estrutura verde global tem alguns pressupostos fundamentais (Telles, 2003: 332):

– A cidade não é um puzzle de unidades territoriais desenhadas pela for-ma como a estrutura viária se relaciona com o tipo de edificação;

– As estruturas não-identificáveis e os vazios urbanos não garantem, só por si, a constituição de uma estrutura verde útil e eficaz;

– Os espaços verdes não podem ser espaços residuais, mas espaços subs-tanciais que organizam o espaço;

– A cidade não é um conjunto zonado de áreas independentes, só identifi-cáveis pelo modo como o automóvel se relaciona com os blocos resi-denciais;

– A cidade deve ultrapassar o convencionalismo inadequado da composi-ção vegetal que hoje envolve, por exemplo, o tratamento ajardinado em rotundas e faixas de separação;

– A imagem da cidade deve ser defendida através de um sistema cartogra-fado de vistas que que determine a dimensão dos edifícios, a distribui-ção e forma da vegetação e o enquadramento das infra-estruturas;

– No planeamento da cidade do século XXI é fundamental considerar “unidades operativas” de conteúdo ecológico com autonomia de planea-mento, sempre que necessário, sem as quais estará em causa a sustentabi-lidade biofísica, a qualidade ambiental e o abastecimento alimentar.

O plano verde da cidade-região

Na história do modelo urbano-industrial, e em resposta ao artificialismo do ambiente urbano, foram construídos diferentes “pulmões verdes”, desde os mais diversos parques urbanos até aos mais variados tipos de jardins públicos, projectados em lugares centrais ou em espaços residuais. Nos dias de hoje, porém, os problemas sociais e ambientais das cidades-região não podem ser resolvidos por parques e jardins, isolados no meio do tecido urba-no. Já sabemos, também, que o crescimento desordenado causa a fragmenta-ção dos ecossistemas naturais e condiciona o metabolismo circular das cida-des, ao modificar, sobretudo, os cursos de água e a morfologia da paisagem.

António Covas e Maria das Mercês Covas 119

As cinturas verdes do século XIX foram construídas para conter o cres-cimento desordenado das cidades americanas (os parkways e os greenbelts), a poluição dos rios, as inundações e os alagamentos, mas, também, para acautelar as questões estéticas e sociais. Mais recentemente, nos anos 60 do século XX, não só emergiram os movimentos ecologistas para defesa do ambiente e dos recursos naturais como, também, se passou dos parques lineares do século XIX para os corredores verdes e ecológicos de protecção da biodiversidade e dos ecossistemas. Um marco histórico nesta evolução diz respeito à obra de Ian McHarg de 1969, intitulada Design with nature (McHarg, 1969), onde se dá relevo aos estudos de capacidade de carga eco-lógica de estruturas espaciais que visam conciliar a preservação ambiental e a expansão urbana e rural.

Como vimos anteriormente, o conceito de paisagem global corresponde

a uma visão contemporânea, mais completa e complexa das relações cidade--campo, muito para lá dos parques e jardins da cidade industrial. Nesse sis-tema compreensivo e orgânico de vasos comunicantes, o Plano Verde (PV) é um instrumento essencial na concepção dos espaços exteriores da cidade cuja autonomia do desenho é exigida pela retaguarda biofísica e cultural que lhe é própria e pela prática das artes que desde há muito servem a construção da paisagem viva. A elaboração do Plano Verde exige o reconhecimento da morfologia, dos valores pedológicos das áreas livres de construção, da vege-tação existente e potencial e a caracterização estética da paisagem e valores culturais respectivos. A figura central do Plano Verde é a estrutura ecológica urbana ou regional que se desdobra nos seguintes subconjuntos (Telles, 2003: 335-338):

– Estrutura ecológica fundamental (EEF): compreende os sistemas húmido, contínuo e seco; – Estrutura ecológica integrada (EEI): compreende o sistema contínuo de espaços-canal e o sistema descontínuo de jardins, parques públicos e logra-douros; – Estrutura de paisagem cultural (EPC): compreende os agrossistemas tra-dicionais e ocorrências naturais notáveis, geo-monumentos e os valores cul-turais representativos da arte paisagística e dos jardins. A EEF é uma estrutura contínua de espaços naturais (continuum naturale) que permite o funcionamento dos ecossistemas de acordo com a sua própria dinâmica evolutiva. A EEF tem por função a sustentabilidade ecológica e física, o conforto ambiental, a cultura e a imagem da cidade. No plano especificamente ambiental, a EEF tem as funções seguintes: fornecimento de oxigénio e melhoria do conforto ambiental, protecção dos ventos, fixa-

120 Os territórios-rede

ção de poeiras e regularização de brisas, criação de um suporte natural para a circulação e infiltração de água pluvial, criação de habitats tendo em vista a biodiversidade e a activação biológica da vida silvestre, promoção de activi-dades de recreio, uma rede de pistas de bicicletas e outras estruturas de pas-seio e contribuição para o abastecimento da cidade em produtos frescos. A EEF abrange também zonas edificadas já consolidadas e implantadas sobre sistemas naturais, de que se destaca a recuperação das linhas de água, com o objectivo de diminuir a velocidade de escoamento da água, fazer a deposição de materiais inertes e a sua fácil retirada, fazer a depuração das águas através da vegetação marginal, melhorar o recreio, os percursos e o conforto ambiental e eliminar as inundações. A EEF concretiza-se através de projectos específicos de corredores verdes e de corredores de ligação, que estabelecem a continuidade das estruturas verdes no tecido edificado da cidade. A EEI é uma estrutura integrada no tecido edificado e é composta por espa-ços verdes descontínuos de carácter público e privado (logradouros, espa-ços verdes de escolas, etc.), mas, também, pelo sistema contínuo de espa-ços-canal como são, por exemplo, as faixas laterais e centrais de protecção das vias rodoviárias e ferroviárias. A EPC é constituída por espaços culturalmente significativos. Nestas estru-turas estão implantadas redes de produção, de protecção e de recreio. Nas primeiras, falamos de hortas sociais, agricultura urbana, periurbana e agri-cultura patrimonial. Nas segundas, falamos de bosquetes, galerias ripícolas, sebes de compartimentação, faixas de espaços-canal, etc. Nas últimas, de campismo, espaços de desporto, parques de merendas, percursos vários, etc. (Telles, 2003: 335-338).

Chegados aqui, queremos sublinhar o papel e a função que os corredo-res verdes podem desempenhar como uma alternativa sustentável para estru-turar a expansão urbana e rural em bases novas, pois são baseados, simulta-neamente, em factores biofísicos e culturais. De facto, os corredores verdes e as redes de corredores verdes interconectam as pessoas através das cidades e dos campos, perto do lugar onde elas vivem. Esta é uma grande oportunida-de para as ciências sociais e para as ciências naturais, em particular para a sociologia ambiental e a ecologia da paisagem, uma vez que está em causa a forma como as áreas verdes afectam a qualidade de vida das pessoas e das comunidades, os seus efeitos nas relações sociais, na sociabilidade e na eco-nomia, enfim, a saúde física e mental como fonte geradora não apenas de bem-estar mas de rendimento e riqueza.

António Covas e Maria das Mercês Covas 121

Os corredores verdes podem ser de diversa forma e natureza:

– Espaços abertos e lineares ao longo de um corredor natural: um rio, um vale, uma linha de colinas, as margens de uma linha de caminho-de--ferro convertida em uso recreativo, um canal, uma estrada panorâmica;

– Espaços naturais ou paisagísticos para percursos pedestres ou ciclovias; – Uma ligação aberta entre parques, reservas naturais, elementos cultu-

rais, locais históricos entre si ou com áreas habitadas; – No plano local, os espaços de avenidas, parques ou cinturas verdes.

Estes corredores verdes (CV) e, por maioria de razão, as redes de corre-

dores verdes (RCV) desempenham importantes funções (Ferreira et al., 2010). Em primeiro lugar, funções ecológicas, por exemplo: a manutenção da biodiversidade, espaços naturais e habitats, ligações entre habitats para a circulação de espécies, materiais e energia, filtro natural à poluição das águas e atmosfera, fixação de poeiras, protecção dos ventos e regularização de brisas, regularização das amplitudes térmicas e humidade atmosférica, circulação da água pluvial e infiltração. Em segundo lugar, funções sociais e económicas, por exemplo: espaços para recreio e lazer, abastecimento ali-mentar em produtos frescos, melhoria da qualidade ambiental, preservação do património histórico-cultural, valorização da qualidade estética das paisa-gens e controlo dos factores de risco.

As novas funcionalidades cidade-campo e a construção social da ecopolis

O ambiente é um mediador de relações sociais. O processo de urbaniza-ção é uma construção social. Os corredores verdes são construções sociais em busca de novas sociabilidades. Se formos agressivos com a natureza, os impactos ambientais da nossa acção terão fortes implicações sociais e, por sua vez, esta perturbação social repercutir-se-á novamente sobre o ecossis-tema e as condições de vida que ele nos proporciona.

Os corredores verdes, por exemplo, podem tornar áreas densamente

povoadas em locais agradáveis e procurados e melhorar a convivência entre cidadãos. Para o mesmo objectivo contribui a integridade ecológica, a saúde da flora e da fauna respectiva. Um local com uma forte integridade da sua paisagem terá, em princípio, uma boa representação de si mesmo, é um local que acabará por valorizar as funções sociais, económicas, recreativas e esté-ticas. Assim será, se, por via do planeamento biofísico, soubermos tirar par-tido da topografia e morfologia do espaço e adequarmos o projecto da cidade à comunidade local.

122 Os territórios-rede

Sabemos que a paisagem possui um padrão que pode ser determinado pela topografia, pelo ecossistema, pelo tipo de solo, e sofre perturbações e alterações que podem ser naturais ou de origem antrópica. Sabemos que a paisagem é um mosaico composto por três elementos: a matriz ou mancha principal, os fragmentos e os corredores. Sabemos, também, que os arranjos ou configurações espaciais entre manchas, fragmentos e corredores têm grande importância ecológica e determinam a circulação dos elementos, os movimentos de animais, da água e das pessoas através da paisagem. Sabe-mos, também, que os elementos variam e apresentam, em consequência, diver-sos graus de conectividade. A matriz é muito variável, mais ou menos homo-génea e mais ou menos linear. As paisagens são, portanto, compostas de mosaicos heterogéneos. Os corredores são sistemas-condutores para a circula-ção de espécies e, dependendo da dimensão e da variedade das espécies, podem constituir-se em habitats ou em corredores de circulação ou dispersão.

Sabemos que a escala tem uma importância decisiva no estudo da eco-

logia da paisagem, de sua biodiversidade e forma de planear os corredores verdes. A escala adequada para se projectar um corredor verde deve ser con-cebida em função dos usos e funções programados e da área de abrangência do corredor. A possibilidade de espécies e populações circularem entre os diversos fragmentos de um mosaico paisagístico aumenta com a escala, ao mesmo tempo que se reforça a conectividade e se realizam funções naturais indispensáveis à sustentabilidade.

Sabemos, ainda, que a fragmentação ocorre tanto por causas naturais –

deslizamentos de terras, inundações, incêndios, erupções vulcânicas – como por acção do homem, por via dos grandes equipamentos e infra-estruturas. O tamanho dos fragmentos e a natureza e grau de conectividade dos elementos determinam a configuração da paisagem e esta a configuração dos corredo-res. Embora saibamos que a eficácia dos corredores só pode ser provada ao longo de muitos anos ou décadas, também sabemos que não é possível espe-rar pelos resultados pois as paisagens já estarão irremediavelmente alteradas em termos de estrutura e função. O planeamento, a monitorização permanen-te e uma gestão adaptativa são a melhor solução disponível.

As linhas de água, com as suas galerias ripícolas e respectiva dinâmica

hidrológica são um corredor verde por excelência. Todavia, com o desenvol-vimento urbano, tem ocorrido uma extensa impermeabilização dos solos, seja por pavimentação ou compactação, e uma supressão das matas que garantiam a permeabilidade e humidade do solo, fundamentais para a sua manutenção em boas condições ecológicas. A consequência óbvia é que as

António Covas e Maria das Mercês Covas 123

águas escoam com maior facilidade e carregam os resíduos para os corpos de água, gerando assoreamento e poluição e mudando a dinâmica hidrológica da linha de água, que, por sua vez, perturbam a ecologia dos ecossistemas aquáticos e afectam a fauna e a flora respectivas.

Uma zona ripícola bem conservada poderá manter a função de estabili-

zação dos fluxos de água, superficiais e subterrâneos, e assim, aumentar a conectividade entre os seus vários elementos. Este fluxo e esta conectividade permitirão realizar outras funções entre fragmentos: habitats de vida silvestre e corredores de trânsito de fauna e flora, amortecimento de nutrientes e sedimentos, a recreação humana e a manutenção de paisagens culturais. O mesmo se pode dizer em relação às florestas urbanas que podem ser dese-nhadas para conter o deslizamento de encostas, prevenir a erosão dos solos, manter a qualidade das águas, do ar e do ambiente, assim como, a qualidade de vida dos cidadãos em geral.

Sabemos, igualmente, que, quanto mais intensiva, compacta e densa for

a cidade e o processo de urbanização mais ela se projecta na sua área de influência, pelas melhores e piores razões: mudanças no uso e ocupação dos solos, a segregação de famílias de menor rendimento de certos espaços, mais poluição da água, do ar e do solo, maiores distâncias a serem percorridas, maior dependência do automóvel e do sistema de transporte, maiores consu-mos de energia, mais sedentarismo e mais patologias agressivas, menos áreas naturais e menos acesso a espaços livres e, finalmente, menor sociabilidade associada a maior perigosidade e risco urbanos.

As áreas periurbanas são um bom exemplo desta projecção territorial da

cidade intensiva, compacta e densa. Algumas das suas características reve-lam bem a violência social e simbólica destes lugares (Covas e Covas, 2012: 168):

– São áreas em transição, um território movediço em matéria de usos; – São áreas tensas, nervosas, instáveis e voláteis; – São áreas que revelam grande dificuldade em guardar a sua memória e

identidade; – São áreas que revelam uma grande litigiosidade e conflitos de inte-

resses; – São áreas com grandes feridas expostas e sujeitas a processos de exclu-

são social; – São áreas com grandes problemas de representação social e política; – São áreas com grandes feridas abertas na engenharia do território;

124 Os territórios-rede

– São áreas com muito capital social, embora caótico e desordenado; – São áreas com uma grande plasticidade e muita economia informal e

ilegal. Todas as referências anteriores têm a ver com as relações cidade-campo

e a forma como elas são projectadas no território da cidade-região. Nos cor-redores verdes e nas redes de corredores verdes devemos não apenas apro-veitar para reprogramar as relações cidade-campo como, também, para mudar os nossos hábitos e comportamentos para com a natureza, uma vez que a natureza e o ambiente são mediadores de relações sociais.

Em jeito de síntese, julgamos já ter recolhido argumentos suficientes para elaborarmos um pouco mais sobre o perfil da ecopolis do século XXI, a cidade-região da 2.ª ruralidade que apresentámos em obra anterior (Covas e Covas, 2012: 169-170). Retomamos, então, o decálogo da ecopólis, a cidade--região da 2.ª ruralidade:

Decálogo da ecopolis, a cidade-região da 2.ª ruralidade

1) Do rational da paisagem global e das unidades de paisagem à cidade como sistema-paisagem ou sistema territorial;

2) Da função vertebral da estrutura ecológica municipal aos operadores ecossistémicos e multifuncionais no sistema de planeamento biofísico da cidade-região;

3) Da prestação de serviços ecossistémicos ao desenho de uma nova eco-nomia agroecológica e do bem-estar;

4) Do problem-solving para o problem-saving ou da terapêutica para a pro-filaxia urbana;

5) Do “verdismo e do arranjismo paisagístico” ao planeamento biofísico, isto é, ao metabolismo circular dos elementos, à restauração e reabilita-ção ecológicas;

6) Da monofuncionalidade energética intensiva ao pluralismo, descentrali-zação e complementaridade energéticas e aos sistemas integrados de microgeração;

7) Da construção dissipativa e entrópica à bioconstrução e bioclimati-zação;

António Covas e Maria das Mercês Covas 125

8) Do agro-alimentar intensivo e energetívoro aos sistemas agro-alimen-tares locais de proximidade;

9) Do organicismo da administração convencional às formas de governan-ça local e institucionalidade dedicadas;

10) Da cultura zonada da mega-máquina urbana à cultura da fusão entre a cidade e o campo. Este decálogo da ecopolis, cidade-região da 2.ª ruralidade, institui os

fundamentos para uma agroecologia urbana do próximo futuro. Nesta agroe-cologia urbana da cidade-região, há uma nova tipologia e prioridade em construção, a saber, os equipamentos e infra-estruturas verdes que terão um lugar proeminente no planeamento, prevenção e terapêutica urbanas. Estas infra-estruturas ecológicas, que nós designamos aqui como os “operadores biofísicos da cidade-região” serão essenciais na projecção territorial da cida-de, pois elas poderão funcionar como as “placas giratórias dos corredores verdes e das redes de corredores verdes” ou como os “novos lugares cen-trais” da cidade-região. Registemos esses operadores biofísicos e ecossisté-micos da cidade-região:

– Os sistemas ou redes integrados de microgeração energética; – A construção sustentável e a bioregulação climática; – A rede dos sumidouros de carbono numa economia hipocarbónica; – A construção do bosquete multifuncional e a floresta urbana; – O ordenamento da agricultura urbana e periurbana para abastecimento

alimentar; – A provisão dos serviços ecossistémicos e o bem-estar da população; – A promoção dos corredores verdes de ligação aos espaços mais sensí-

veis; – A rede de lagos biodepuradores e de unidades de compostagem urbana; – Os parques agrícolas urbanos para abastecimento de alimentos biológi-

cos; – A construção de amenidades agroecológicas e recreativas; – A rede de equipamentos e experimentação em agricultura vertical urbana.

Em relação a estes operadores ecossistémicos e multifuncionais no

desenho da ecopolis e da cidade-região da 2.ª ruralidade, acompanhamos, de perto, o que refere o arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles (Telles, 2003: 331):

… a estrutura verde não deverá ser concebida ‘à posteriori’ concretizada num mero decorativismo vegetal, em ‘arranjos paisagísticos’, na vegetali-

126 Os territórios-rede

zação e enquadramento de infra-estruturas ou em ‘paisagismos pictóricos’, mas sim concebida como uma obra de arquitectura paisagista que se apoia numa participação interdisciplinar (Telles, 2003: 331).

No fundo, devemos falar de unidades operativas de raiz ecológica sem-pre que há uma obstrução biofísica e paisagística à criação de novas multi-funcionalidades que se afiguram necessárias ao bom funcionamento das redes de uso do território. Depois da arquitectura e da engenharia civil, ele-gemos a arquitectura paisagista e a engenharia biofísica para restaurar e repor muitos dos equilíbrios socioecológicos que antes tinham sido quebra-dos. Regressamos, assim, à biopolítica do território.

António Covas e Maria das Mercês Covas 127

Conclusão da II Parte

Na segunda parte continuámos a nossa digressão pelos caminhos do futuro, desta vez em direcção à 3.ª revolução verde, aqui traduzida e repre-sentada pela base agroecológica e ecossistémica da 2.ª ruralidade. Começá-mos com a filosofia positivista e o realismo pragmático da teoria da moder-nização ecológica de inspiração industrialista, vimos as suas virtualidades e as suas limitações à luz da noção de desenvolvimento sustentável. Em segui-da, passámos para a ecotopia da transição agroecológica e ecossistémica e os respectivos processos de conversão e terminámos com o “realismo virtual e a biopolítica da paisagem” em Gonçalo Ribeiro Telles, com uma referência especial à cidade-região e à ecopolis da 2.ª ruralidade.

Nesta segunda parte é bem visível a forma como a agricultura, o ambiente, a urbanização, a paisagem, mas também a teoria social correspon-dente, podem ser lidos e interpretados como processos de mediação e cons-trução social da realidade. Estes “distintos compartimentos” do mundo rural organizam e conformam, ainda hoje, o pensamento da 1.ª modernidade e, através deles, pode observar-se não apenas a história recente do mainstream da 1.ª ruralidade mas, também, os sinais claros e a evidência suficiente de novas sociabilidades e territorialidades e de um outro construtivismo social.

Talvez a expressão mais genuína desta segunda parte, aquela que pode representar melhor o espírito da 2.ª parte, seja a de “biopolítica da paisagem e do território” a propósito do pensamento e da obra do arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles. O divórcio entre as ciências sociais e as ciências da natureza é uma marca da 1.ª modernidade. A natureza tornou-se ambiente por acção antropogénica e este foi “funcionalizado” pela política pública do ambiente, esquecendo, quase por completo, a ligação umbilical que a ligava à primeira. A biopolítica da paisagem e do território reabilita esta ligação umbilical, não para regressar ao mito das origens mas para vincar a prioridade elevada que deve ser atribuída aos elementos vitais da natureza que regeneram o ambien-te que nos rodeia e aos processos criativos do trabalho humano que, através da paisagem, nos proporcionam “as ordens locais” de estrutura e beleza do território.

III. PARTE

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS TERRITÓRIOS-REDE

DA 2.ª RURALIDADE

Introdução

Retomemos a nossa asserção fundamental já enunciada no início deste livro:

Acreditamos que os territórios, à semelhança dos mercados, se podem constituir em objectos de construção social, em territórios reflexivos e cog-nitivos que aprendem, pela participação cooperativa e organizada dos seus principais actores, a reconfigurar e recriar os seus capitais próprios mais característicos e valiosos por via da diversificação, diferenciação e densifi-cação dos seus muitos atributos e qualidades.

Estamos em Junho de 2014. A 17 de Maio de 2014 Portugal saiu do esta-do de emergência financeira em que se encontrava, vivendo sob assistência internacional e numa espécie de “regime de liberdade condicional”. No interior do país, há parcelas crescentes do território que mais parecem verdadeiros “ter-ritórios em reclusão”. Referimo-nos a municípios inteiros sem actividade eco-nómica digna desse nome, com uma população totalmente envelhecida e sem um horizonte de esperança no futuro próximo ou longínquo.

Nestes territórios imóveis do interior prevalece a lógica associativa

convencional dos municípios, sendo a associação de municípios o único actor-rede (AR) com algum significado neste “grande universo interior”. Mas a inteligência dos territórios não se reduz à associação convencional de municípios, este é o tempo para ousar novas incursões no campo da acção colectiva territorial.

Em primeiro lugar, é muito pertinente averiguar em que medida os

“conhecimentos acumulados pelos territórios” podem ser mobilizados por

130 Os territórios-rede

um pequeno investimento cooperativo em capital social, de tal modo que seja possível reunir em volta do problem-saving e do problem-solving de um território em risco uma constelação de parceiros interessados em for-mar uma nova configuração territorial que permita desenhar uma estratégia inteligente para a reocupação de espaços rurais em risco de despovoamento e desertificação.

Uma universidade ou instituto politécnico, uma associação empresarial ou grupo empresarial, uma associação de municípios ou comunidade inter-municipal, uma ou mais associações de desenvolvimento local, os serviços públicos regionais, uma ou mais cooperativas de produção e serviços, os parques e as reservas naturais, etc., possuem, em conjunto, um capital social valioso que podem pôr em comum para abordar o problem-saving e o pro-blem-solving de um território-rede (TR) em construção.

Em segundo lugar, deve perguntar-se a essa nova entidade colectiva em formação se é capaz de pensar e conceber um território-projecto ou um bem comum territorial, para lá da “política convencional”, a partir de uma visão multiterritorial e multifuncional de um novo território em constru-ção, estando todos os actores imbuídos da mesma modéstia cooperativa e construtivista.

Em terceiro lugar, deve a nova entidade perguntar-se como é possível levar à prática a governança dedicada (GD) de um território-rede em cons-trução e, com esse propósito, qual o actor-rede que é capaz de dar corpo a uma nova inteligência territorial.

Em síntese, estamos convencidos de que os “territórios já instalados” poderão ainda aprender uns com os outros, e ser, digamos, reciclados e refun-cionalizados, se lhes abrirmos a possibilidade de um projecto comum transdis-ciplinar, baseado numa acção colectiva inovadora e assente numa rede de coo-peração multiterritorial de valor acrescentado. Está em causa a reocupação de inúmeros territórios concelhios do interior, na sua grande maioria áreas rurais, e a construção social dos territórios-rede da 2.ª ruralidade.

No capítulo sete iremos abordar a nova ordem dos territórios-rede em construção, a sua relação com a teoria social e uma primeira tipologia explo-ratória. No capítulo oito, abordaremos a cooperação multiterritorial e multi-funcional dos territórios-rede, os campos de força no mundo rural e a impor-tância de uma boa teoria do actor-rede para uma governança dedicada. No capítulo nove, depois de uma breve incursão pela microgeoconomia do desenvolvimento territorial (os ensinamentos do Projecto Querença e suas réplicas), abordaremos o caso particular de uma apelação territorial de pres-

António Covas e Maria das Mercês Covas 131

tígio atribuída pela UNESCO – A Dieta Mediterrânica, Património Imaterial da Humanidade, e, a partir dela, procuramos ensaiar a construção social de um território-rede para a denominada Dieta Mediterrânica.

7. A dinâmica territorial e a construção social dos territórios da 2.ª ru-ralidade

Neste capítulo abordamos, em primeiro lugar, a “nova ordem” em for-mação ou a reconsideração do problema rural, em segundo lugar, fazemos uma incursão pelo universo conceptual dos territórios-rede e seu enquadra-mento na teoria social, em terceiro lugar, traçamos um quadro analítico e tipológico, ainda preliminar, dos territórios-rede.

7.1. A reconsideração do “problema rural”.

A reconsideração do problema rural e a emergência de um novo ciclo da 2.ª ruralidade (2.ªR), requerem que façamos a distinção entre desenvolvimen-to agrário e desenvolvimento rural:

– O desenvolvimento agrário faz-se com “agri-cultura”, isto é, os produ-tos vendem o território que utilizam mas não se preocupam tanto com a reprodução do “recurso e do contexto” que consomem; é, essencialmen-te, um acto comercial, que origina, quase sempre, várias externalidades negativas;

– O desenvolvimento rural faz-se com “agro-cultura”, isto é, os produtos vendem os recursos e os territórios, tanto quanto os territórios comuni-cam por via dos seus produtos e recursos; todos se reproduzem, afinal, no acto de venda mas, para além de ser um acto comercial é, também, um acto cultural cujo fundamento radica nos princípios da agricultura multifuncional e na produção de externalidades positivas, isto é, na “produção de bens contextuais favoráveis”.

Uma outra cultura dos territórios resilientes

No princípio era a economia camponesa e a “produção de campo”. O homem, escravo da terra e servo de outros homens, utilizava e consumia, essencialmente, as energias naturais. A produção agrícola era uma produção primária final para ser autoconsumida e vendida nos mercados locais de pro-ximidade. A divisão do trabalho, de características feudais e familiares e de pequena escala, respeitava, supõe-se, os equilíbrios naturais. A actividade

132 Os territórios-rede

ocupava o território quase em exclusivo, enquanto se aguardava que os agen-tes de mudança fizessem “o trabalho revolucionário”, a saber, a ascensão da burguesia, a revolução industrial, o liberalismo, a reforma fundiária.

Do ciclo estacionário de subsistência e do “caos agrícola pré-moderno”,

a actividade agro-rural, variável consoante os contextos e os pretextos, evo-luiu, rapidamente, para o ciclo da economia agro-industrial e, mais recente-mente, para o ciclo agro-alimentar, à medida que nos afastamos, cada vez mais, da produção primária final para os produtos alimentares objecto de sucessivas transformações.

Eis-nos chegados, pois, ao centro nevrálgico de uma racionalidade

imparável feita de escala, intensificação, especialização, profissionalização, industrialismo, urbanização, acumulação, exportação, êxodo. O campo trans-forma-se em fábrica de estabulação fechada, produtora de matérias-primas que encaminha para a fábrica da cidade onde ocorrem as transformações industriais que criam os novos produtos. As fileiras e as cadeias alimentares geram processos e produtos que pouco ou nada têm a ver com as matérias--primas de origem. A formação das grandes metrópoles e das megacidades levanta problemas novos de abastecimento, donde a importância das activi-dades de logística agro-alimentar, de transporte, distribuição e consumo de alimentos de massa.

Todavia, a aceleração a que se assiste não ocorre de forma idêntica em

todo o espaço do mundo desenvolvido. A actividade agrícola, a indústria ali-mentar e o modelo de consumo alimentar são realidades distintas, como são distintas as tradicionais actividades agrícolas e as novas actividades recém--chegadas ao mundo rural, sendo certo que a presença e a permanência dos agricultores contribuem para restabelecer os equilíbrios com a natureza e o ambiente. Este equilíbrio a três é, aliás, o segredo dos territórios agro-rurais: produzir agricultura, diversificar a ruralidade, conservar a natureza e o ambiente.

Nesta sequência de ciclos e modelos é o tempo da economia biotecno-

lógica, em particular, no último quartel do século vinte. Duas grandes apro-ximações ao século da biotecnologia começam a emergir. Uma, a mais bru-tal, utiliza a ciência genética para preparar mudanças radicais no património genético das espécies. Outra, mais suave, cria formas mais bem integradas e mais sustentáveis de relação entre as espécies existentes e o seu ambiente. Passa-se da era da petroquímica para a era do comércio genético e das paten-tes genéticas. Estamos a criar, assim, um segundo Génesis, desta vez um

António Covas e Maria das Mercês Covas 133

Génesis sintético. Uma espécie de Santa Aliança entre o produtivismo agro--químico e o produtivismo biotecnológico.

É no contexto desta Santa Aliança e em reacção aos efeitos perversos

deste modelo dominante que emerge uma outra cultura do território. Uma cultura dos territórios resilientes. Essa outra cultura em formação já tem, também, uma matriz de objectivos bem estabelecida, a saber: a reposição da biodiversidade, a pluralidade das fontes energéticas, a multifuncionalidade das actividades em espaço rural, a sustentabilidade dos processos e dos recursos naturais, a qualidade e a origem dos alimentos, a reticulação dos empreendimentos agro-rurais, a solidariedade entre grupos, regiões e países.

É também neste contexto hostil e adverso que emergem ou podem

emergir as economias marginais, minoritárias e resilientes, muitas das quais estarão directamente relacionadas com a realidade nua e crua dos territórios--rede em construção. Com efeito, está em causa não apenas a desestruturação da ecossocioeconomia desses territórios como, também, o próprio exercício democrático das autoridades locais que assistem impotentes à deslocalização de empresas até então aí sedeadas e ao encerramento de outros serviços públicos de interesse económico geral.

Estaremos nós a assistir, sem disso nos darmos conta, à reversibilidade

do processo de desenvolvimento contra a tese evolucionista das etapas do crescimento económico, a uma espécie de “processo de involução” e, em muitos casos, à beira de um limiar crítico de desertificação física e humana, de onde emergem quase misteriosamente as “economias marginais, minoritá-rias e resilientes” ligadas ao ordenamento, à conservação e gestão de recur-sos naturais e aos princípios e ideologia do desenvolvimento sustentável?

A reconsideração do “problema rural”

A ideologia dominante, essencialmente de origem e natureza urbana, identifica necessidades sociais com consumos públicos ou colectivos, isto é, infra-estruturas, equipamentos e, obviamente, despesa pública. Portanto, necessidade igual a equipamento e/ou infra-estrutura. No fundo, “o problema rural” só existe se gerar despesa pública, mas uma despesa que padroniza e normaliza necessidades-equipamentos por todo o território e que, depois, se declara impotente para acorrer a todas as procuras porque “a baixa densidade não justifica o investimento”.

A mesma ideologia afirma peremptoriamente que os territórios de baixa densidade foram atingidos pelo círculo vicioso do subdesenvolvimento e que

134 Os territórios-rede

por causa desta “evidência” estes territórios não têm nenhuma “vocação agrícola”, estando disponíveis para todas as “operações urbanas”, sejam imobiliárias, industriais, turísticas ou florestais. Um equívoco recorrente que é continuamente alimentado pelo ciclo político-partidário.

E se a economia biotecnológica, orientada e inspirada por uma outra corrente doutrinária e científica, mais agroecológica e ecossistémica, vier demonstrar e confirmar que todos os círculos viciosos são construções sociais hegemonizadas por determinados grupos de poder? E se a sociedade civil e a sociedade científica estiverem sintonizadas e quiserem “impor” à administração pública os projectos inovadores que poupam recursos e ener-gia e acrescentam valor aos equipamentos e actividades tradicionais? E se a economia biotecnológica for capaz de repor os ritmos naturais da agricultura e encontrar, para o efeito, o ponto de compromisso entre sistemas naturais e sistemas bio-industriais?

A reconsideração do “problema rural” é também visível no plano discur-sivo e no espaço público e até se faz acompanhar de inovações sociolinguísti-cas. Os “prefixos da moda” marcam o ritmo e são conceptualmente significati-vos: trans, inter, multi, pluri, poli. Eles traduzem e comunicam acção, processo, movimento e quebram barreiras e fronteiras de todo o tipo. A teoria do desen-volvimento rural acompanha-os e renova-se com estas aquisições: a multifun-cionalidade, a pluriactividade, a transversalidade, a policultura, a interconecti-vidade, etc. Alguns dirão mesmo, com alguma ironia, que a nossa apregoada pré-modernidade agrorural ou, segundo outros, a nossa modernidade tardia, nos deixou, paradoxalmente, à beira da 2.ª modernidade.

A reconsideração do “problema rural” busca encontrar o ponto de equi-líbrio entre produção, conservação e recreação, os três pólos da nova econo-mia do desenvolvimento rural. A nova ordem em formação coloca, no plano substantivo, a seguinte interrogação: como é que uma economia de base bio-tecnológica pode alargar o seu campo de possibilidades de modo a realizar uma “produção conjunta” que seja, simultaneamente, produção, conservação e recreação?

A reconsideração do “problema rural” é um combate permanente, quan-to mais não seja por que o mundo rural, pela pureza e pelo pudor que ainda encerra, é uma opção de vida inquestionável para uma trajectória individual, para se fazer a experiência concreta da libertação pessoal. É certo que esta-mos perante um combate desigual, em especial, nos territórios desfavoreci-dos de baixa densidade, é certo que não podemos repousar sobre os ombros de uma qualquer utopia naturalista, mas também é verdade que podemos ser racionais de muitos modos diferentes. O que é crítico é perder a capacidade de conceber novos objectivos e de enfrentar novos conflitos. Este é o traço distintivo da 2.ª ruralidade.

António Covas e Maria das Mercês Covas 135

A reconsideração do “problema rural” faz apelo a uma profunda “cultu-ra dos territórios” que projecte a sua identidade para fora das suas fronteiras tendo em vista a comunicação com os outros territórios. Esta comunicação simbólica é fundamental para transmitir “sinais comerciais”. Todavia, se esta comunicação não for autêntica, o marketing territorial e a marca colectiva não acrescentam valor aos produtos locais e regionais. Na aparência, tudo muito moderno. De facto, não chegaremos a convencer o consumidor adver-tido. Que atribui tanta ou mais importância aos sinais simbólicos quanto aos sinais comerciais.

A reconsideração do “problema rural” integrará uma nova economia do desenvolvimento com quatro componentes principais: a economia do orde-namento e da conservação de recursos, a economia da inovação e do conhe-cimento, a economia da produção e do consumo, a economia da recreação e do lazer. No plano organizacional, as duas primeiras são políticas públicas transversais dirigidas à produtividade natural e tecnológica dos recursos. A investigação tem aqui um papel insubstituível na determinação do equilíbrio entre as duas produtividades. As duas últimas são políticas públicas secto-riais cujas capacidades de carga ficam sujeitas às regras de condicionalidade das primeiras.

O processo de inovação socio-territorial da 2.ª ruralidade

A nova economia do desenvolvimento rural tem um potencial de inova-ção muito elevado, se pensarmos em todas as suas componentes e nas várias hipóteses de desmultiplicação e combinação virtuosas. Esta lógica de abor-dagem é, especialmente, importante para os territórios de baixa densidade que, por esta via, readquirem não apenas o interesse dos investigadores e dos conservacionistas mas, também, de novos promotores imobiliários e grupos empresariais que, diga-se, já há muito iniciaram os seus jogos de sedução junto dos proprietários locais. Se forem, todavia, respeitados os princípios do desenvolvimento sustentável, esta abordagem trará muitos benefícios para as populações locais.

Na acepção compreensiva e transdisciplinar que aqui lhe damos, o pro-cesso de inovação socio-territorial deve estar permanentemente orientado para a identificação e promoção dos projectos multifuncionais mais prome-tedores. Vejamos, agora, algumas condições ou requisitos que o processo de inovação deve respeitar para ser bem-sucedido:

– É fundamental introduzir a investigação na identificação, no desenho e na monitorização do projecto multifuncional, de modo a poder alimen-tar, de forma continuada, o processo de inovação;

136 Os territórios-rede

– É fundamental mobilizar e convidar novos stakeholders para os projec-tos mais inovadores, mesmo que sejam exteriores aos territórios em questão;

– É fundamental o reforço das redes temáticas de cooperação transnacio-nal, tendo em vista dispor de boas práticas de outras experiências;

– É fundamental encontrar e desenhar ligações virtuosas às universidades e escolas superiores agrárias, tendo em vista promover não apenas um banco de ensaios do processo de inovação como, também, uma nova governança do processo de inovação territorial;

– É fundamental a criação de um nível federativo regional das associações de desenvolvimento, tendo em vista não apenas o lançamento de uma plataforma de assistência técnica e tecnológica aos associados como, também, um grau elevado de auto-regulação e reflexividade, indispen-sáveis à sustentação do processo de inovação territorial. Para além dos factores antes referidos, o desenvolvimento do processo

de inovação supõe que sejam atendidos certos requisitos internos ou intrín-secos ao ciclo de inovação. Usemos, para o efeito, o exemplo da metodolo-gia Leader1:

– A constituição do grupo de acção local (GAL) tem que ser muito mais criteriosa e a sua composição técnico-política deve reflectir e antecipar as necessidades do próprio processo inovatório;

– A elaboração de um diagnóstico para levantar as necessidades de inova-ção e o respectivo plano de acção tem que ser, simultaneamente, micro-cirúrgica, transdisciplinar e criativa, tendo em vista uma primeira identi-ficação das potenciais ligações virtuosas;

– O dispositivo comunicacional do GAL tem que ser, igualmente, muito inventivo; internamente visa motivar e mobilizar os agentes para os processos participativos, externamente visa criar uma imagem positiva e favorável do empreendimento junto dos seus stakeholders e da opinião pública em geral;

– A montagem ou engenharia do processo inovatório é a tarefa mais difí-cil de realizar porque exige a convergência de muitos contributos e a análise fina das interdependências técnicas e sistémicas;

– Uma vez realizado este inventário é necessário convencer os agentes socioeconómicos da bondade destas ligações virtuosas/projectos candi-

1 O autor é membro de dois grupos de acção local (GAL) do Programa LEADER.

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datáveis, de modo a que o plano de acção seja não apenas verosímil mas, também, mobilizador e verdadeiramente interactivo no seu ciclo de desenvolvimento;

– Uma vez delimitada a carteira dos projectos com potencial inovatório efectivo e concretizadas as candidaturas, é necessário implementar todo o processo de acompanhamento-monitorização-investigação, isto é, conceber um factor de instigação permanente da inovação, por exemplo, um núcleo técnico criativo que seja capaz de transformar as ligações virtuosas em novos projectos e produtos inovatórios; este é o mecanis-mo endógeno por excelência do processo de inovação e o seu momento mais crítico;

– Se este processo de instigação for bem-sucedido, o que não está garan-tido, o ciclo da inovação pode continuar, desta vez em redor da codifi-cação de boas práticas, do registo de patentes, da demonstração e da transferência de resultados e, finalmente, de uma imagem de reputação do território, misturada com novos elementos simbólicos, que atraem novas iniciativas e novos empreendedores. Dito isto, não nos parece que estejam reunidas, neste momento, as con-

dições necessárias e suficientes, objectivas e subjectivas, para despoletar um processo inovatório num território rural desfavorecido, tal como aqui o ima-ginámos. De facto, a gestão de restrições de todo o tipo (institucionais, buro-cráticas, financeiras, técnicas, sociais) condiciona e prevalece sobre a gestão por objectivos e sobre o processo de planeamento na sua inteireza e comple-xidade. Quanto ao programa LEADER, apesar das suas inegáveis virtualida-des, não nos parece que ele tenha arcaboiço para liderar o processo inovató-rio tal como aqui o descrevemos, nem essa é a sua vocação, não obstante as virtudes da metodologia Grupo de Acção Local/ Programa de Acção Local. (GAL/PAL).

Em resumo, o novo “problema rural” e a nova ordem eco-rural em cons-

trução têm um longo caminho à sua frente, mas o facto de um número cres-cente de territórios serem expulsos do “mercado competitivo” e entrarem no “mercado resiliente” abre um campo imenso de possibilidades de soluções inovadoras e, também, novos compromissos entre as diversas racionalidades em presença. De resto, se nos lembrarmos que em quase todos os distritos há uma universidade ou escola superior agrária com formação na área dos estu-dos agro-rurais, é quase um crime de lesa pátria ter, de um lado, uma popu-lação agrícola envelhecida e, de outro, uma população de jovens quadros técnicos sem património e capital inicial para aceder à actividade.

138 Os territórios-rede

Em síntese, no longo caminho que nos levará dos valores de existência até aos valores transaccionáveis, estamos de volta a uma nova economia do sector primário, desta vez, porém, mais agroecológica, multifuncional e terri-torialista. A matriz agrorural da nova ordem em construção será, doravante, composta de vários agros:

– O agro-alimentar que converge em redor de conceitos como segurança, rastreabilidade e certificação;

– O agro-florestal que converge em redor de conceitos como ordenamen-to, uso múltiplo e certificação;

– O agro-ambiental em redor da eco-condicionalidade, das boas práticas e da protecção dos recursos;

– A agro-conservação em redor dos recursos genéticos, da agroecologia e dos serviços ecossistémicos;

– O agro-energético em redor do balanço energético, sequestro do carbo-no e créditos verdes;

– O agro-recreativo em redor do ordenamento, marketing dos territórios e ecovisistação.

7.2. O universo conceptual dos territórios-rede e a teoria social

Os territórios-rede são uma intuição prometedora, mas na aldeia global é preciso fazer prova de vida, isto é, é imprescindível desenhar estratégias con-sociativas e cooperativas que reduzam as vulnerabilidades próprias e aumen-tem o campo de possibilidades de gerar capital social entre actores que até aí mal se conheciam e pouco interagiam. Em nome e benefício deste desejável interaccionismo metodológico que junta “espaço comum e espaço público”, há vários contributos teóricos com interesse que vão desde a Nova Sociologia Económica, de Polanyi (2000) a Granovetter (1995, 2011) e a Fligstein (2001, 2012) até ao Neo-Institucionalismo Económico de Williamson (2000), Ostrom (2005) e de Olson (1999), com passagem pelas teorias do capital social de Put-nam (1993), Coleman (1988) e Bourdieu (1979, 2000) e das convenções de Duvernay e Thévenot (2006), até às abordagens transdisciplinares de cariz ter-ritorialista e culturalista de matriz teórica variada que vão da sociologia rural e ambiental até à sociologia do risco no âmbito mais largo da teoria social da modernização reflexiva (Giddens e Beck, 2004).

O universo conceptual dos territórios-rede da 2.ª ruralidade, tal como nós o entendemos, assenta numa base teórica muito ecléctica que considera: o sentido de comunidade e pertença, o embededdeness, na linha de Grano-vetter (1995), por exemplo; a convenção territorial e os projectos de qualida-de, “as convenções”, na linha de Duvernay (2006); os bens comuns e a acção

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colectiva, “a lógica da acção colectiva”, na linha de Olson (1999); a justiça social e a justiça ambiental, “a ecologia social e política” na linha de Marti-nez-Alier (2007); “os empreendimentos multifuncionais”, na linha de Van der Ploeg (2000) e Huylenbroeck (2003); “os territórios inteligentes” e “as classes criativas”, na linha de Florida (2002);” a governança territorial” e “as redes” na linha dos trabalhos do ESPON (European Observation Network for Territorial Development and Cohesion); “a economia das proximidades”, “o génio dos lugares” e “a cultura territorial” segundo Pecqueur (1996, 2004), entre outros.

A convergência e a transdisciplinaridade destes contributos teóricos podem ser muito úteis na revisitação, renovação, integração e mobilização destes valores e conceitos tendo em vista promover um novo aparato socio--territorial de intervenção e desenvolvimento, em vários “registos territo-riais”. A Tabela n.º 6 é uma síntese das principais incursões pela teoria social.

Tabela n.º 6 – Territórios-rede e teoria social

Corpo conceptual A Teoria Social

Enraizamento

Capital social

Instituições sociais

Rede social

Campos de força

Actor-rede

I. A Nova Sociologia Económica e a Teoria das Redes Sociais

– Dos mercados de proximidade aos mercados à distância

– A força dos laços fracos e a confiança

– Do enraizamento à comoditização

– A relação entre a rede e o actor

– As redes, o risco moral e o free raider

Convenções

Normas e standards

Acordos sociais

As qualidades

II. A escola francesa das convenções e da regulação

– Os mundos, os valores e os modos de coordenação

– Os acordos e a organização social da produção

– Uma qualidade certificada e regulada

Custos de transacção

Custos informação

Direitos propriedade

Contratos

III. A Nova Economia Institucional

– As boas instituições reduzem custos de transacção e informação

– A abordagem microeconómica do mercado é privile-giada

– Os direitos de propriedade, os contratos e uma boa regulação

Fonte: Elaboração própria.

140 Os territórios-rede

Em tempo de “racionalidade limitada” estes contributos teóricos são uma fonte de inspiração preciosa que, todavia, só poderão ser avaliados e postos à prova em territórios concretos que sejam mobilizados por via de projectos de cooperação territorial e por configurações territoriais mais ousadas e inovadoras. Para ilustrar esta asserção vejamos alguns exemplos onde esta convergência teórico-prática pode acontecer.

No campo dos sistemas agro-alimentares locais (SAL) há margem de liberdade disponível, conceptual e prática para, através de uma convenção territorial apropriada, desenhar uma “qualidade específica alimentar” e a par-tir dela criar uma rede de suporte – um clube de produtores e um clube de consumidores ligados entre si por um circuito curto de comercialização – que, em si mesma, pode informar um novo território reticular dotado de um capital social que importará consolidar.

No campo da acção social de reinserção, pode ser desenhado um projec-to associativo, comunitário e/ou empresarial, que junte uma escola profissio-nal, um sindicato, algumas Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), o instituto de emprego e formação profissional, uma associação empresarial ou um grupo empresarial, com o objectivo de promover a rein-serção de um grupo de desempregados de longa duração que tenha sido constituído para o efeito no âmbito de intervenção de um determinado centro de emprego.

No campo da construção social dos territórios, o desenho de um novo território-projecto, de uma nova multiterritorialidade e da configuração de um território-rede de suporte a esse projecto, pode juntar, por exemplo, um parque natural, as aldeias do parque, uma associação empresarial local, uma escola superior agrária, os municípios do parque, tendo em vista estabilizar e desenvolver o sistema produtivo local desse território.

No campo da provisão de serviços ambientais e ecossistémicos, o dese-nho de uma convenção territorial para a protecção de recursos naturais e a provisão de serviços ecossistémicos que são essenciais para o bem-estar e a qualidade de vida, pode juntar, por exemplo, uma administração de bacia hidrográfica, os produtores de regadio e a intermediação de uma associação de regantes, os municípios respectivos, tendo em vista a melhoria da quali-dade da água, a provisão de amenidades ribeirinhas e o ordenamento de um parque recreativo.

No campo da acção colectiva e da provisão de serviços comuns, atra-vés do desenho de diversas fórmulas condominiais, seja em espaço rural para gerir um banco de terras, em espaço urbano para administrar um con-domínio, ou em espaço industrial para gerir um parque empresarial ou uma zona industrial, tendo em vista reduzir o risco moral implicado pela prática do free rider.

António Covas e Maria das Mercês Covas 141

Mas poderíamos, também, referir outros territórios em estado de neces-sidade a precisar de intervenção urgente e “rede social”: guetos urbanos, ter-ritórios pendulares, territórios de 2.ª residência em meio rural, territórios turísticos padecendo de “stress sazonal”, zonas industriais decadentes, zonas florestais desordenadas, bacias hidrográficas descuidadas, cooperativas agrí-colas com problemas de fidelidade, etc. Em cada caso, é necessário pergun-tar qual a melhor fórmula de “acção colectiva e inovação social” que pode e deve ser promovida.

A pergunta que se impõe é, então, a seguinte: em tempo de emergência nacional e de desterritorialização de muitas parcelas do território nacional, saberemos nós reunir as condições mínimas necessárias para passar da racionalidade abstracta à racionalidade limitada e do “individualismo metodológico” ao “interaccionismo metodológico” e, no contexto de um ter-ritório em concreto, explorar todas as virtualidades do processo de “des-truição criativa e cooperativa” que muitos parecem desejar mas que tão poucos ousam propor e praticar?

Vejamos o problema pelo lado da teoria das redes.

Uma teoria das redes para a construção de territórios-rede

Já vimos que a “1.ª revolução verde”, a revolução químico-mecânica, nos deixou exaustos e exangues. Por outro lado, já aí está a “2.ª revolução verde”, a biotecnológica, a revolução do gene, puro ou manipulado. Prome-tem-nos, agora, a agricultura sem solo e sem dor, uma agricultura medica-mente assistida, através da manipulação e da tecnologia replicativa, que tra-rá, quem sabe, a felicidade às gentes e aos territórios mais desprotegidos e remotos. Quem promete tem, de resto, o kit tecnológico pronto para todos os terrenos. Por isso, dizem-nos, devemos confiar e fazer uma “agricultura sem rede”. Todavia, a pequena agricultura desconfia. Nós, que já vimos o logro das revoluções “ditas verdes”, estamos avisados, não obstante sabermos, de fonte segura, que a agricultura e o desenvolvimento rural estão “nas mãos do poder do mercado e do mercado do poder”.

A rede é uma daquelas noções que parece conter o princípio activo necessário para resolver todos os males de que o mundo padece. Ela contém, de facto, muitas virtualidades, mas apresenta outras tantas condicionalidades. Vejamos algumas características do que poderíamos designar como uma “abordagem territorial pela perspectiva das redes” em ordem á promoção de territórios-rede.

– A rede é um “modo policontextual” de ver o policy-problem

A rede é um modo transversal e policontextual de ver o policy-problem. É uma noção praticável que precisa de ser praticada. Não é uma panaceia.

142 Os territórios-rede

Quase sempre, o modo de ver o problema é uma parte importante do pro-blema. Quer dizer, a rede precisa de passar por uma avaliação ex-ante e ser sujeita a um pré-teste de praticabilidade, pela “razão simples” de que tem ou pode ter custos de transacção elevados. Não queremos que a solução se transforme no problema e que as virtualidades se transformem em dificul-dades.

– A rede é um ecossistema heterárquico de acolhimento

A rede é, ou pode ser, uma zona de conforto, um ecossistema de aco-lhimento capaz de proporcionar uma grande diversidade contextual. Se for possível desenvolver, e isso já é todo “um programa”, todos os benefícios de contexto que encerra. Esse ecossistema policontextual de acolhimento per-corre toda a fileira ecossistémica, desde a gestão da biodiversidade até à prestação de serviços ecossistémicos. Por outro lado, a rede aumenta a sua capacidade de reticulação em linha directa com a variedade e funcionalidade do mosaico paisagístico, a consequência é uma interacção acrescida de flora, fauna e actividades económicas.

– A rede pode estruturar um mercado de serviços de valor acrescentado

Adensar o mosaico paisagístico, gerir as suas multifuncionalidades, é reticular mais e melhor a actividade económica. O mosaico paisagístico é um mercado de valor acrescentado. Nesta rede os mercados mais convencionais estão intimamente conectados com o mercado dos serviços agro-ambientais e ecossistémicos que estão, por sua vez, muito articulados com os mercados de visitação do ecoturismo. Para os territórios mais desfavorecidos esta articu-lação é portadora de futuro. As redes deverão promover fórmulas inovadoras para a operacionalização destes mercados de serviços de elevado valor acrescentado.

– A rede pode estruturar um sistema produtivo local (SPL)

A rede precisa “desesperadamente” de redescobrir ou reinventar o sis-tema produtivo local do seu “local de residência” e, muito em particular, de organizar e consolidar as suas ligações socioeconómicas. Em primeiro lugar, o mercado interno da rede, em segundo lugar, as ligações externas da rede, em especial, a sua articulação com empresas e/ou investimentos-âncora, seja uma cooperativa, uma fileira, um parque industrial ou uma rede de distribui-ção. Isto é, os nós da rede. É aqui que se formam as pequenas aglomerações, mas, também, as economias de rede e as suas ramificações. Na pequena agri-cultura, este é um trabalho de microcirurgia, de malha fina, sem resultados garantidos à partida.

António Covas e Maria das Mercês Covas 143

– A rede pode estruturar um sistema 3R, (reduzir, reciclar, reutilizar)

A rede é um sistema produtivo de ciclo fechado, sem desperdício de recursos. Os resíduos da rede são recursos da rede que se organiza no sentido da sua auto-regulação. No plano dos resíduos orgânicos mas, também, no plano das águas pluviais ou no aproveitamento das energias renováveis, a rede precisa de elaborar o seu “plano de internalidades” de modo a aumentar o seu grau de autonomia e a sua capacidade de autogestão.

– A rede pode estruturar uma multilocal itinerante

A rede pode conceber-se como um empreendimento móvel e itinerante que compensa a imobilidade relativa dos seus utentes-destinatários. A rede organiza a mobilidade de serviços públicos e comunitários e pode tornar-se a sede privilegiada para a criação de empreendimentos sociais, de um mercado social de emprego, e o local próprio para a aplicação de políticas activas de emprego, por exemplo, através de uma carteira de micro-projectos para serem propostos na rede aos seus destinatários.

– A rede é uma comunidade virtual de informação e conhecimento

A rede é, na sua substância, um instrumento conhecimento-intensivo, sobretudo na forma como transforma e converte informação virtual em informação real. A rede é um banco de problemas e soluções já experimen-tados noutras latitudes. A rede não tem, necessariamente, contiguidade física entre os parceiros, uma parte pode estar virtualmente mais próxima do que os membros fisicamente mais chegados. Gerir a rede virtual pode tornar-se uma tarefa esgotante e uma fonte de enormes desperdícios. O sucesso da rede depende directamente da qualidade do networking.

– A rede é uma forma de administração inovadora (pivots e reputação)

A rede pode adoptar diversos formatos, das formas mais associativas às formas mais condominiais. A rede administra o sistema de ajudas públicas, é uma gestão de compartes, é uma mútua de seguros, é uma central de com-pras, é uma central de leasing, é uma carteira de projectos, é um mediador de conflitos, é tudo isto sob a forma cooperativa, por exemplo. A rede adminis-tra informação assimétrica, disciplina comportamentos, regula a lógica da acção colectiva e reduz o risco moral e o comportamento free raider. Neste contexto, a rede depende directamente da qualidade do leadership e, portan-to, da sua reputação.

144 Os territórios-rede

– A rede é uma estrutura resiliente

A rede contribui positivamente para gerir as expectativas dos parceiros. Deste ponto de vista, a rede é socialmente resiliente se contribuir para gerar solidariedade activa na forma como reage às adversidades e à contingência que afecta todos e cada um dos seus membros. Quer dizer, por via da adver-sidade e da contingência a rede pode chegar às “economias de rede”. Esta é uma forma de valor acrescentado que não pode ser menosprezada na génese e constituição de uma rede, tanto mais quanto o factor contingência se insti-tui, cada vez mais, como o factor perturbador por excelência.

– A rede é uma construção social da “razão de ser”

Esta é a substância de uma rede, a sua constituição, o seu projecto, o seu bem comum. A rede é, pois, muito mais do que um mercado, é uma rede de sentido, produz identificação, é uma construção social da razão de ser. Se assim for, a rede é socialmente resiliente na forma como reage às adversida-des e à contingência que afectam todos e cada um dos seus membros. Este facto pode facilitar a ligação entre a solidariedade e a economia, por um lado, e a ligação delas com o conhecimento e a cultura, por outro.

Esta introdução a uma teoria das redes esconde uma duplicidade mais

do que evidente. De um lado, uma necessidade incontornável de formaliza-ção, sob a forma de normas e standards, de regras e convenções, tendo em vista a extensão dos mercados locais, de outro, uma construção social pro-blemática, pois as micro e pequenas empresas e serviços em espaço rural, com interesses similares mas muito difusos, defrontam-se, geralmente, com um custo de constituição, organização, certificação e transacção muito ele-vado. Mesmo que transfiram para fora essa responsabilidade, esse outsour-cing terá, porventura, um custo desproporcionado para os parceiros em pre-sença e suas respectivas associações.

As associações de desenvolvimento local e rural, na sua grande maioria “uma produção primária” das políticas públicas em vigor, procuram remediar e fazer frente a essa duplicidade mas nem sempre parecem estar em condições de garantir essas economias de rede e esta fragilidade é um teste decisivo à sua sobrevivência no próximo futuro, dedicado, justamente, às economias de rede no espaço virtual da sociedade da informação e do conhecimento.

Uma teoria geral para a construção dos territórios-rede (TR)

Em inúmeras situações e circunstâncias, é no mínimo estranho que a cooperação mas, também, o mutualismo, a entreajuda e a solidariedade inter-

António Covas e Maria das Mercês Covas 145

territoriais não sejam um instrumento privilegiado de actuação e de vanta-gem competitiva dos territórios, por maioria de razão os territórios e as regiões mais desfavorecidos. Sabemos que a economia dominante continua a ignorar as internalidades (trocas directas), a socializar os prejuízos das suas externalidades negativas e a exportar o seu risco moral para dentro do orça-mento do Estado, mas nada impede que os “territórios vizinhos” possam aprender mutuamente através da cooperação e da troca de capital social, numa espécie de economia da comunhão e da reciprocidade onde a troca de internalidades é um activo precioso, embora um “valor sem preço”.

No plano de uma teoria geral dos territórios-rede, a sua construção social assenta em três pilares principais: a centralidade da cooperação (a cooperatividade), a troca interna directa (a produção de internalidades) e a competitividade de um arranjo institucional (a coopetitividade). De um pon-to de vista mais conceptual, esta teoria geral dos territórios-rede (TR) pode-ria ser esquematizado do seguinte modo:

– No plano epistemológico, o território rede (TR) é uma construção social

complexa que envolve a compreensão do que aqui designamos como “o paradoxo da vizinhança”: porque é que os “territórios vizinhos” coope-ram tão pouco? Porque é que o capital social com origem na cooperação inter-organizacional atrai tão pouco as organizações e as empresas? Por que é que as organizações parecem preferir a impessoalidade do merca-do à aparente intersubjectividade da cooperação territorial?

– No plano conceptual, o TR é uma teoria ecléctica que vai buscar inspi-ração à teoria das convenções (os mundos e as regras convencionais), à teoria neo-institucional (os custos de transacção, os custos de informa-ção e as restrições dos direitos de propriedade) e à teoria das redes (o actor-rede, a acção colectiva e a gestão inter-organizacional); o TR é também um middle level concept e uma abordagem meso-analítica de territórios mais desfavorecidos;

– No plano metodológico, o TR está focado na centralidade da cooperação (a cooperatividade), na produção de bens e serviços internos comuns (a internalidade) e na eficácia, eficiência e efectividade do seu arranjo ins-titucional (a coopetitividade);

– No plano operacional, o TR é o lugar geométrico da multi-level gover-nance e tira partido de vários níveis e escalas de governo e administra-ção; o TR é um operador multi-escalar da maior relevância e nessa medida é uma nova estrutura de oportunidades para outros operadores locais e regionais;

146 Os territórios-rede

– No plano organizacional, o TR é um actor-rede, inter-organizacional e inovador que pode assumir várias fórmulas compósitas e complexas tendo em vista coordenar e gerir “activos territoriais estratégicos”;

– No plano produtivo, o TR é um sistema produtivo local (SPL) ou um sistema alimentar local (SAL) que opera a conversão do “sistema de produtos locais” em “os produtos do sistema local”, sistema cuja origem e denominação passam a constituir uma das suas formas de identifica-ção mais emblemáticas;

– No plano da rede social, o TR é um ensaio e um compromisso entre os mercados de proximidade e os mercados à distância com toda a com-plexidade que estas duas redes implicam, da resiliência dos mercados locais à construção social da qualidade dos mercados à distância;

– No plano comunicacional, o TR está obrigado a investir na sua coesão interna, isto é, a construir uma idiossincrasia própria e uma ideologia do agir comunicacional a condizer com o seu triplo arranjo convencional, institucional e produtivo;

– No plano político, o TR supõe e solicita que os níveis e escalas meso--territoriais NUTS III e NUTS II vejam melhor esclarecidas as suas atri-buições e competências à luz de uma nova estrutura de benefícios e cus-tos de contexto territoriais; se quisermos, faz falta a “criação de um centro de racionalidade de políticas públicas no quadro regional” para a refuncionalização, articulação e consistência de territórios que são con-siderados subsistemas funcionais da região;

– No plano cultural, o TR está em condições de estabelecer inúmeras articulações e mediações extraterritoriais, de projectar nos outros a sua identidade territorial e, portanto, de procurar nos outros uma imagem de si próprio. Como veremos mais à frente, estes territórios-rede podem reportar-se a

territórios muito variados como, por exemplo: regiões termais, zonas de intervenção florestal (ZIF), áreas de cooperação agrícola, parques ambientais e biológicos, zonas turísticas e de lazer, áreas de paisagem protegida, par-ques multimunicipais, grupos empresariais e parques industriais e, ainda mais importante, uma diversidade de redes cooperativas e colaborativas que estes territórios podem constituir entre si, dando origem a outras multiterrito-rialidades até aí desconhecidas.

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7.3. Um quadro analítico, topologia e tipologia dos territórios-rede

Depois de uma incursão pelo universo conceptual dos territórios-rede e pela teoria social que inspira este universo conceptual, temos à nossa frente, de um ponto de vista mais analítico, três abordagens possíveis de organiza-ção territorial, o que aqui designamos como uma “topologia da construção social dos territórios”:

– Uma abordagem que verticaliza actividades e sectores, em cadeia ou em fileira, por via de contratos mais justos ou mais leoninos e de rela-ções interprofissionais bem estabelecidas, num quadro mais industrial e tecnológico em que a escala e o processo da integração vertical desem-penham o papel principal; o sector agro-industrial-alimentar em Portu-gal, hegemonizado pela grande distribuição, é uma boa ilustração desta abordagem topológica;

– Uma abordagem que aglomera actividades diversas, por exemplo, sob a forma de distritos industriais, pólos de crescimento e clusters, e onde a proximidade, a diferenciação e a complementaridade dos capitais in situ desempenham o papel principal; neste caso, a escala e a produto homogé-neo dão lugar à coordenação e à colaboração e a um produto mais difuso e heterogéneo; no entanto, esta topologia territorial pode evoluir bem para um sistema produtivo local mais definido do que o anterior;

– Uma abordagem que reticula mercados e territórios, por via de territó-rios em rede e de territórios-rede e actores-rede e onde a cooperação, a colaboração e a coordenação desempenham o papel principal na cons-trução social desses territórios; estes são os territórios cognitivos por excelência, os “territórios-surpreendentes” onde tudo pode acontecer, onde as expectativas são mais controversas e onde a inteligência territo-rial é mais posta à prova; nesta topologia territorial de geometria variá-vel estamos verdadeiramente a conceber e a construir o futuro, por exemplo, nos nossos remotos territórios de baixa densidade (Covas e Covas, 2013a, 2013b, 2013c, 2013d, 2012, 2012a, 2011, 2010a, 2008, 2008a) e (Pereira, M., 2013, 2009). A primeira abordagem territorial cai dentro da teoria microeconómica

neo-clássica, seja na variante da nova economia institucional por via dos contratos, dos custos de transacção e informação e dos direitos de proprieda-de, seja na variante da teoria da regulação no que concerne à natureza das relações de integração vertical e ao interprofissionalismo no interior da filei-ra ou cadeia industrial. Nesta abordagem o problema principal é uma questão

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de eficácia, de eficiência e de efectividade. No mesmo sentido, o território é relegado para um plano secundário, torna-se um mero território-suporte onde a actividade, o mercado-preço e o actor desempenham o papel principal.

A segunda abordagem territorial “sai do scale e entra no scope”, seja na variante dos “meios inovadores”, ou nas diversas aproximações conceptuais operadas pela sociologia económica: capital social, redes sociais, conven-ções, campos de forças. Nesta abordagem, o território volta à boca de cena, não apenas com a força imanente dos seus “conhecimentos tácitos” mas, sobretudo, pelo impulso construtivista que está traduzido naqueles conceitos. Esta topologia mais horizontal transfere o seu policy-problem para os “ambientes acolhedores” e para uma melhor policontextualização desses ambientes em ordem a baixar substancialmente os custos de contexto.

A terceira abordagem territorial é não apenas uma abordagem claramen-te construtivista como, acima de tudo, um modelo de acção, isto é, os concei-tos não preexistem à construção do território-rede e do actor-rede, da mesma forma que não são exteriores à construção dos “acordos sociais” necessários: o acordo sobre a qualidade dos produtos, sobre a qualidade do ambiente, sobre a qualidade da relação laboral, sobre a qualidade da relação associativa ou sobre a qualidade da relação intergeracional. O território surge nesta abordagem como o elemento de ligação e o cimento de todas estas qualida-des. A teoria das convenções, por exemplo, pode ajudar-nos a definir projec-tos de vida para um território-rede e para um actor-rede na medida em que podem endogeneizar a questão da qualidade e estabelecer “ordens locais” que funcionam nos territórios que estamos a considerar.

No tópico anterior vimos a topologia da construção dos territórios-rede.

Tomando como referência a região do Algarve, podemos, agora, ensaiar uma primeira tipologia exploratória da construção social de territórios, se quiser-mos, a produção de território novo a partir de estratégias de cooperação terri-torial descentralizada e horizontal.

Assim, de que falamos quando falamos de cooperação territorial des-centralizada? Quais os territórios que desejamos mobilizar para esse efeito?

– Em primeiro lugar, os territórios convencionais da nossa 1.ª ruralida-de: redes de aldeias, amenidades rurais, corredores verdes, territórios de produção cooperativa, etc.; neste caso, a construção da rede de aldeias do barrocal algarvio pode ser uma excelente ilustração ou, ainda, a construção do território-rede representativo da Dieta Mediterrânica;

– Em segundo lugar, os territórios e sistemas agro-alimentares locais: clubes de produtores e consumidores, circuitos curtos, parques agroeco-

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lógicos, indicações geográficas de proveniência (Dallabrida, 2013, 2012b, 2010b, 2010c), convenções locais de produção social e comuni-tária; neste caso, o ordenamento do sistema agro-alimentar local (SAL), por exemplo, a construção do SAL da campina de Faro pode ser uma excelente ilustração;

– Em terceiro lugar, os territórios urbanos e o reordenamento do espaço público: a política ambiental dos 3R (redução, reciclagem, reutilização), a reabilitação urbana, a certificação energética renovável, os planos verdes e as redes de cidades; neste caso, a construção da rede urbana da ecopolis de Faro-Loulé-Olhão ou o reordenamento do espaço público de toda a área ribeirinha da Ria Formosa no concelho de Faro podem ser uma boa ilustração;

– Em quarto lugar, territórios integrados na rede nacional de áreas pro-tegidas e rede natura 2000: os parques e reservas naturais, os territórios de Zonas de Protecção Especiais (ZPE) e Sítios de Interesse Comunitá-rio (SIC), a rede de corredores verdes, a estrutura ecológica municipal, os territórios ITI (intervenções territoriais integradas) no novo quadro regulamentar dos fundos estruturais europeus; neste caso, algumas uni-dades territoriais do Programa de Ordenamento Regional do Algarve (PROTAL) do Algarve, como o Baixo Guadiana ou a Costa Vicentina, por exemplo, podem ser objecto de intervenções ITI;

– Em quinto lugar, territórios socio-terapêuticos, recreativos e comuni-tários: áreas-problema, territórios-problema, grupos-alvo, projectos de voluntariado, associativismo e projecto de desenvolvimento; por exem-plo, a construção de um projecto de voluntariado ou um projecto de desenvolvimento comunitário (Gonçalves, et al., 2013) com uma asso-ciação de jovens desempregados, por via de uma cooperativa de servi-ços ou uma cooperativa de reabilitação urbana pode ser uma excelente ilustração de um território-rede;

– Finalmente, em sexto lugar, os territórios que acolhem as áreas empre-sariais; um parque empresarial, público ou privado, ou o território de um grupo empresarial privado ou cooperativo neste caso, podem conce-ber-se redes de cooperação empresarial (Covas e Covas, 2010a), projec-tos de condomínio industrial ou ainda projectos inovadores de empreendedorismo jovem incrustados nessas áreas empresariais e incu-bando os seus projectos nas áreas já existentes, por exemplo, uma incu-badora jovem para o parque das cidades de Faro-Olhão.

150 Os territórios-rede

Feito o elenco de territórios potenciais que podem ser mobilizados para a construção de territórios-rede, apresentamos a seguir uma série de exem-plos, aqui designados como configurações sociais de territórios-rede, uma espécie de “produto potencial” de uma região, que podem e devem servir para formar, a pouco-e-pouco, uma grelha de leitura crítica relativamente a uma estratégia necessária de desenvolvimento territorial.

1) Uma área urbana, um arco urbano, uma rede de cidades, em articulação

com clubes de produtores e de consumidores, uma associação de desen-volvimento local e uma escola superior agrária, por exemplo, propõem-se desenhar um sistema alimentar local (SAL), a partir da agricultura periur-bana e através de uma rede de circuitos curtos tendo em vista organizar o comércio local de produtos alimentares de proximidade; ao mesmo tem-po, a parceria aproveita para requalificar o sistema de espaços e corredo-res verdes, utilizando, por exemplo, as hortas sociais, as linhas de água e os bosquetes multifuncionais, tendo em vista articular as áreas urbanas, as áreas rurais e as áreas naturais; falamos, também, de contratos e conven-ções entre clubes de produtores e clubes de consumidores;

2) Um parque natural que comporta uma ou várias unidades de paisagem, conjuntamente com o clube de produtores do parque ou a associação ambientalista do parque, mais o conjunto das aldeias que integram o parque, a associação de desenvolvimento local da região e a escola poli-técnica ou universidade mais próxima propõem-se modernizar o sistema produtivo local (SPL) do parque, criando, para o efeito, uma agroecolo-gia específica, uma indicação geográfica de proveniência (IGP) e uma nova estratégia de visitação do parque por via de um marketing territo-rial mais ousado e imaginativo; passamos, assim, do “sistema de produ-tos” locais para os “produtos do sistema” produtivo local;

3) Um empreendimento turístico, uma comunidade piscatória, uma área de paisagem protegida, uma câmara municipal, uma associação de desen-volvimento local e uma escola superior, propõem-se requalificar um empreendimento turístico e uma praia adjacente e criar um nicho de mercado e um novo espaço público de qualidade para o turismo acessí-vel, terapêutico e recreativo (turismo de saúde e bem-estar) com base, por exemplo, numa pequena aglomeração de actividades terapêuticas, criativas e culturais criadas para o efeito;

4) Um grupo de aldeias ribeirinhas, na área de influência de um lago, de uma albufeira, de uma barragem ou bacia hidrográfica, os operadores

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turísticos, as associações e/ou clubes de produtores agro-florestais, as administrações de recursos hídricos, uma escola superior, propõem-se lançar uma estratégia criativa e integrada de agro-turismo e turismo rural que inclui a participação e a experienciação dos visitantes nas prá-ticas agro-rurais tradicionais;

5) Um grupo de aldeias com vocação especializada num determinado sec-tor ou produto, as aldeias vinhateiras do Alto Douro, por exemplo, património mundial da Humanidade, associa-se com os empreendimen-tos turísticos, as associações ou clubes de produtores, uma escola supe-rior, as associações culturais mais representativas, tendo em vista dese-nhar uma estratégia conjunta de visitação e valorização do património material e imaterial dessa sub-região;

6) Um grupo de cooperativas agrícolas ou associações de agricultores, uma empresa de distribuição alimentar ou rede de supermercados, a associa-ção de municípios da mesma área, uma escola superior agrária ou uni-versidade, associam-se tendo em vista desenhar uma estratégia conjunta de modernização agroecológica e comercial para uma sub-região que foi objecto de grandes investimentos públicos e que precisa urgentemente de ser relançada (Alqueva e Cova da Beira, por exemplo);

7) Uma ou mais Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), as associações ou clubes de produtores florestais, as reservas cinegéticas, as áreas de pai-sagem protegida e as zonas de protecção especial, as empresas agro--florestais, uma escola superior, as comunidades humanas envolvidas, associam-se para constituir um sistema agro-florestal (SAF) ou agrosil-vopastoril tendo em vista criar uma estratégia de intervenção integrada que vai desde a prevenção e recuperação de áreas ardidas à construção dos sistemas agro-silvo-pastoris com o seu cabaz completo de produtos da floresta;

8) Um centro de investigação na área da biodiversidade, da ecologia fun-cional e reabilitação de ecossistemas, um parque ou reserva natural, uma associação agro-florestal, empresas de turismo em espaço rural, empresas na área do termalismo, propõem-se criar um programa de investigação-acção tendo em vista a preservação da biodiversidade e dos endemismos locais, a melhoria da oferta de serviços ecossistémicos relevantes e a valorização comercial destes activos biodiversos por via do lançamento de serviços turísticos, culturais e científicos;

152 Os territórios-rede

9) Um agrupamento de associações de desenvolvimento local em associa-ção com uma universidade ou escola politécnica, uma escola profissio-nal agrícola, um parque ou reserva natural e um conjunto de aldeias ser-ranas, os operadores de turismo de natureza e de aldeia, propõem-se lançar um programa de desenvolvimento comunitário de aldeias serra-nas;

10) Um grupo empresarial da área do termalismo e das águas minerais, uma área de paisagem protegida, uma associação ambientalista ou de desen-volvimento local, uma escola superior politécnica, a cooperativa ou associação local de produtores, as aldeias e vilas da área de influência do projecto, propõem-se criar uma espécie de “santuário ou ecossistema exemplar” que seja um local de aprendizagem e visitação de boas práti-cas agroecológicas onde se pode observar e aprender: a diversidade de agriculturas como arte, técnica e estética da paisagem rural, a ecologia da paisagem e a reabilitação de habitats, a economia da conservação, do baixo carbono e da energia renovável, a arquitectura funcional associa-da à bioconstrução e à bioclimatização, etc.;

11) No campo da acção social, através da configuração de um projecto asso-ciativo, comunitário e/ou de voluntariado, que junte, por exemplo, os sindicatos, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) e uma associação ou grupo de desempregados de longa duração que tenha sido constituí-do para o efeito no âmbito de cada centro de emprego;

12) No campo da provisão de serviços ambientais e ecossistémicos, através do desenho de uma convenção territorial para a protecção de recursos naturais e a provisão de serviços ecossistémicos que são essenciais para o bem-estar e a qualidade de vida, que junte, por exemplo, uma admi-nistração de bacia hidrográfica, os produtores de regadio e a interme-diação de uma associação de regantes, tendo em vista a melhoria da qualidade da água e a provisão de amenidades ribeirinhas;

13) No campo da acção colectiva e da provisão de serviços comuns, através do desenho de diversas fórmulas condominiais, seja em espaço rural para gerir um banco de terras, em espaço urbano para administrar um condomínio, ou em espaço industrial para gerir um parque empresarial ou uma zona industrial, tendo em vista reduzir o risco moral implicado pela prática do free rider;

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14) Mas poderíamos, também, referir outros territórios em estado crítico a necessitar de intervenção urgente e “rede social”: guetos urbanos, terri-tórios pendulares, territórios de 2.ª residência em meio rural, territórios turísticos padecendo de stress sazonal, zonas industriais decadentes, zonas florestais desordenadas, bacias hidrográficas descuidadas, etc. Em cada caso, é necessário perguntar qual a melhor fórmula de “acção colectiva e inovação social” que pode e deve ser promovida.

Desta “desordem tipológica” queríamos retirar, apenas, um ensinamento de ordem geral, a saber, em todos os casos, a construção social de um territó-rio-rede faz apelo a três ordens de arranjos. Em primeiro lugar, um “arranjo convencional” entre parceiros que desejam empreender um território-rede, em segundo lugar, um “arranjo institucional” acerca de processos e procedi-mentos necessários sob a forma, por exemplo, de um actor-rede, finalmente, um “arranjo produtivo local” sob a forma de um sistema produtivo local (SPL), de um sistema alimentar local (SAL) ou de outros arranjos inovado-res. Neste último caso, a discussão sobre a produção dos bens de mérito e reputação é, igualmente, uma excelente contribuição para a construção social dos territórios em questão.

8. A cooperação territorial e funcional e a governança dos territórios-rede

Vamos aprofundar um pouco mais a base cooperativa, territorial e fun-cional da nossa tese, em particular quando a abordamos pela óptica da “mobilidade” da actual conjuntura capitalística, como se houvesse aqui uma guerra de velocidades entre “os lentos e os rápidos”. Neste capítulo vamos abordar três tópicos fundamentais. Em primeiro lugar, em vez de uma anun-ciada “tragédia dos lentos” podemos provar que essa eventual morte prema-tura pode ser contrariada por uma cooperação territorial e funcional bem concebida e conduzida. Em segundo lugar, não podemos escapar ao facto de que a emergência de uma nova estrutura de poderes no mundo rural condi-cionará decisivamente a formação dos territórios-rede. Vale, por isso, a pena averiguar em que direcção aponta essa nova estrutura de poder em formação e, por essa razão, esse novo determinismo social. Por último, e em sentido oposto, queremos sublinhar que a autonomia do actor-rede na pilotagem do território-rede cria não apenas uma nova multiterritorialidade como configu-ra uma nova institucionalidade muito prometedora; neste caso, a criação de um actor-rede mas, também, a sua acção e eficácia exigem que sobre ele possamos fazer uma reflexão teórica a condizer.

154 Os territórios-rede

8.1. Os “territórios lentos” e a cooperação territorial e funcional

Permitam os leitores que, a propósito deste capítulo sobre cooperação, comecemos por duas citações do Padre José Tolentino de Mendonça escritas nas crónicas semanais da Revista do jornal Expresso e intituladas Primaverar (Mendonça, 23.03.2014: 6) e a Arte da lentidão (Mendonça, 25.05.2013: 6).

A propósito de Primaverar diz-nos o Padre José Tolentino de Mendon-ça na Revista do Jornal Expresso de 23.03.2014:

A primavera faz de nós testemunhas da revitalização do mundo. Desde o fio de erva à vegetação mais grandiosa, tudo passa por um incrível processo de rejuvenescimento. A vida parece uma rebentação, um contágio impará-vel, um sobressalto. Não somos apenas testemunhas mas protagonistas, todos somos chamados a primaverar. Primaverar é uma sucessão infinda de recomeços. Ao lado do previsto chega-nos o imprevisto, irrompe o impre-visível que precisamos aprender a acolher. Misturado com aquilo que esco-lhemos, chega-nos o que não escolhemos e que temos, na mesma de viver, transformando-o em oportunidade e desafio para a confiança (Mendonça, 23.03.2014: 6).

Ou, ainda, a propósito da Arte da Lentidão diz-nos o Padre José Tolen-tino de Mendonça na Revista do Jornal Expresso de 25.05.2013:

Deveríamos reflectir sobre o que vai ficando para trás, sobre o que deixa-mos de saber quando a aceleração nos condiciona porque o grau de veloci-dade é directamente proporcional à intensidade do esquecimento. A pressa condena-nos ao esquecimento e a velocidade impede-nos de viver. Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo, por tentativas e pequenos passos. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Preci-samente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de rea-prender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e uno (Mendonça, 25.05.2013: 6).

Estas duas citações resumem o essencial da mensagem deste capítulo sobre cooperação. A arte da cooperação pode ser, se quisermos, a “arte de primaverar pela vida e contra o esquecimento”. Se essa for a nossa atitude não há motivos para ter receios de uma “tragédia dos lentos” ou ter a expec-tativa de uma “morte anunciada”. Porque o território não é um consumível corrente que, uma vez usado e abusado, nós alienamos levianamente, como se fosse pura e simplesmente descartável. Em defesa da natureza e da cultura dos “territórios lentos” nós propomos o paradigma da cooperação territorial e da mobilidade com conta, peso e medida.

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O paradigma da cooperação e da mobilidade territoriais

Já sabemos que a “velha” geografia política é uma geografia dos limites e das fronteiras físicas e, também, dos aparelhos ideológicos de Estado que lhe correspondem. É uma geopolítica dos limites e das fronteiras, logo, de territórios-zona. Mas, também, em boa medida, uma geografia das suspei-ções. Toda esta construção começou a desmoronar-se em nome de um “Mundo Plano” (Friedman, 2006) mas, primaverar, em matéria de recons-trução dos territórios é uma tarefa de longo alcance.

Na esfera global, e sobretudo na esfera europeia em que vivemos, já não há “o dentro e o fora”, estamos todos, digamos, do mesmo lado da barricada, isto é “dentro”. As dinâmicas socioeconómicas mais recentes puseram em causa a coesão territorial, pelo menos nos países do sul da Europa: a austeri-dade e as recessões prolongadas, o envelhecimento e as elevadas taxas de desemprego, em especial dos jovens e desempregados de longa duração, e o agravamento das assimetrias regionais e locais, deixaram muitos territórios à beira de um ataque de nervos, onde se incluem inúmeros concelhos entre-gues ao “fatalismo da desertificação e do despovoamento”.

Nos países do sul da Europa, confrontados com dívidas públicas e pri-vadas muito expressivas para os próximos vinte anos, pelo menos, a nova geopolítica da coesão territorial terá de fazer opções de fundo: menos estado e menos política (estado mínimo), mais estado e menos política (estado burocrático) e menos estado e mais política (estado cooperativo). Estamos convencidos de que a melhor opção será a terceira, pois o que se esgotou não foi a política mas uma determinada forma de fazer política e, concretamente, aquela que corresponde à era da sociedade delimitada territorialmente e inte-grada politicamente.

Isto quer dizer que deveremos ensaiar, doravante, uma geografia de limites variáveis, “des-limitada” e, mesmo, sem contiguidade territorial. Não desaparecem os “fixos e lentos”, pois os estados, as regiões e os municípios permanecerão, ainda, por muito tempo. Não obstante, “os fixos e lentos” irão participar em novas experiências de geometria variável, desde os territórios em rede aos territórios-rede, móveis e mutáveis, e até portáteis, espaços de múltiplas territorialidades, onde a contiguidade geográfica conta cada vez menos. Doravante, todos, sem excepção, iremos participar na grande aventu-ra paradigmática da cooperação e da mobilidade territoriais.

E qual é o acquis da cooperação territorial europeia? Digamos, para começar, que, depois da liberdade de circulação propor-

cionada às empresas e aos cidadãos, o processo de construção do espaço público europeu não estaria completo se às autoridades locais e regionais fosse coarctada a possibilidade de aprofundarem a liberdade de relaciona-

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mento e cooperação entre si, como uma das manifestações fundamentais do processo de aprofundamento da cidadania europeia e da construção europeia. Esta cooperação territorial passou, assim, por várias fases, desde a simples cooperação de vizinhança fronteiriça até à cooperação territorial “propria-mente dita”, tal como pode ser entendida a partir da figura do “Agrupamento Europeu de Cooperação Territorial” (AECT), um instrumento de direito comunitário para materializar a ideia de cooperação de 2.ª geração. A esco-lha de um instrumento jurídico comunitário com as características do regu-lamento é, também, um traço distintivo desta “mudança de geração”, uma vez que complementa e aprofunda os instrumentos convencionais usados até então, a saber, os acordos bilaterais entre Estados nacionais e a Convenção--Quadro do Conselho da Europa sobre cooperação transfronteiriça.

No início do processo de construção europeia, a cooperação territorial

resumia-se a uma mera cooperação de vizinhança entre regiões de “fim de linha” de Estados nacionais soberanos. Esta cooperação assentava em acor-dos de natureza diplomática, seja de âmbito multilateral (Conselho da Euro-pa) ou bilateral. Estávamos, digamos, na fase interfronteiriça da cooperação territorial. A história da política regional europeia traz-nos até ao Programa INTERREG que acabou por consagrar três vertentes de cooperação: trans-fronteiriça, transnacional e inter-regional. Estas vertentes convergem na noção, mais compreensiva, de cooperação territorial, embora a parte mais substancial dos recursos continue a ser destinada à cooperação transfronteiri-ça (de vizinhança), aquela que regista uma actividade mais intensa e, por isso, aquela que solicita um maior esforço em termos de soluções institucio-nais. Aliás, os agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT) foram concebidos para este tipo de cooperação, antes de, no seguimento das objecções levantadas pelo Comité das Regiões e pelo Parlamento, terem sido alargados aos outros níveis de cooperação territorial. É este edifício, cada vez mais complexo, que recebe consagração no tratado de Lisboa com a designação de cooperação territorial, o terceiro pilar da política de coesão, depois da coesão económica e social.

Como dissemos, esta evolução acompanha a construção do mercado único, desta vez no sentido da formação de um “território único europeu” ou de uma nova territorialidade em formação.

A partir de 2007 a cooperação territorial é promovida à condição de objectivo prioritário. A nova política de coesão, por intermédio da coopera-ção territorial, assegura a continuidade dos objectivos anteriormente prosse-guidos no quadro do INTERREG em todas as suas vertentes. Com esta refor-ma da política de coesão busca-se uma maior equivalência e comunicação entre todos os territórios, mais e menos desenvolvidos, porque há a convic-

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ção crescente de que a tradicional linha de separação entre competitividade e coesão está cada vez mais ultrapassada à luz dos mecanismos veiculados pelo processo de globalização. Há um enorme potencial de desenvolvimento entre regiões, mais e menos ricas, a partir da multiplicação de relações ino-vadoras de cooperação territorial entre autoridades locais e regionais. Por isso, seria um erro compartimentar os três objectivos de convergência, com-petitividade e cooperação territorial da política de coesão. A programação orçamental para 2007-2013 foi uma fase de transição. Nesta sequência, a política de coesão para o período pós-2013 deverá, em nossa opinião, aumentar a equivalência e a intercomunicabilidade dos três objectivos e reforçar a cooperação territorial como elemento instigador de novas relações de desenvolvimento e bem-estar entre os povos e os cidadãos europeus.

As ideias-força da cooperação territorial europeia

Chegados aqui, a interrogação é legítima, sobretudo, na actual conjuntu-ra de quase estagnação económica: em que medida a experiência adquirida de várias décadas, em matéria de cooperação transfronteiriça, transnacional e inter-regional, é útil e, mesmo decisiva, na reconstrução dos territórios atin-gidos pela deslocalização empresarial, pelo recuo dos Estado em serviços básicos essenciais e pelo abandono das populações? Ou, de outra forma, ain-da, face à dimensão e gravidade dos problemas socioeconómicos actuais, estamos nós, simples cidadãos, “com paciência” para aceitar que problemas simultaneamente locais e transfronteiriços se transformem em questões internacionais e assuntos de Estado, ficando a aguardar que a capital ou o respectivo ministério dos Negócios Estrangeiros se digne prestar atenção a questões de “vida banal” do quotidiano transfronteiriço e inter-regional?

Num balanço sumário da cooperação territorial e tendo em vista o pró-

ximo futuro da cooperação de 2.ª geração, algumas ideias-força podem ser apontadas. Eis o nosso decálogo da cooperação territorial de 2.ª geração para o período pós-2014:

1. A existência de um quadro territorial de intervenção, claro e inteligível,

permite estimular formas de governabilidade com valor acrescentado próprio e distintas das que decorrem de lógicas nacionais ou de recorte mais sectorial; a cooperação de 2.ª geração exige segurança jurídica, estabilidade institucional, programação estratégica de actividades, hori-zonte temporal alargado e avaliação consequente, autonomia financeira suficiente, parcerias eficazes e eficientes, isto é, regiões politicamente constituídas dos dois lados da “fronteira”;

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2. Nas orientações fundamentais para o próximo período de programação 2014-2020 é imperioso rever o trinómio convergência-competitividade--cooperação, os três objectivos da política de coesão, por esta ordem, e decidir qual o novo equilíbrio de prioridades que desejamos alcançar e de que forma elas podem e devem comunicar entre si mercados, territó-rios e instituições;

3. No plano estratégico, político e operacional, é fundamental que, na sequência da profunda recessão económica dos anos 2010-2013, se pro-ceda a uma revisão das prioridades em matéria de programa de políticas de ordenamento do território; as novas centralidades territoriais (trans-fronteiriças, transnacionais e inter-regionais) são decisivas para reiniciar os processos de desenvolvimento sustentável e, neste contexto, a coope-ração territorial, nas suas várias formulações, é fundamental para a for-mação destas novas centralidades (euro-regiões, euro-cidades, agências de desenvolvimento transfronteiriço, redes de cidades, redes de parques e reservas naturais, etc.);

4. Um programa de cooperação territorial tendo em vista a eliminação de custos de contexto transfronteiriços é um objectivo central e decisivo a curto e médio prazo; a política de coesão sem aprofundamento do mer-cado interno de proximidade e sem o aprofundamento da cidadania transfronteiriça não produz resultados duradouros, para lá do valor sim-bólico indiscutível de um programa com aquelas características;

5. A cooperação territorial não pode nem deve confundir os meios com os fins, isto é, não pode assentar numa abordagem meramente oportunísti-ca de acesso aos fundos europeus; ao contrário, a cooperação territorial só é duradoura se se basear em instrumentos de cooperação que estejam para lá do horizonte financeiro dos programas comunitários e europeus; neste contexto, é, também, importante rever o princípio da adicionalida-de na política de coesão se considerarmos que, por razões de natureza e necessidade, os problemas transfronteiriços são problemas eminente-mente comunitários;

6. Um dos elementos nucleares de uma nova institucionalidade transfron-teiriça de 2.ª geração é a qualidade da governação multiníveis; devería-mos tomar algumas precauções com a aprovação dos primeiros AECT, uma vez que eles servirão de balão de ensaio para futuras experiências de cooperação territorial; preservar, tanto quanto possível, as condições de sucesso dos primeiros AECT é fundamental para garantir o sucesso dos agrupamentos vindouros;

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7. A equidade das dotações financeiras é um factor decisivo para o sucesso da cooperação; de facto, não há cooperação territorial que resista a uma relação financeira de 1 euro para Portugal e 3 euros para Espanha, tal como acontece com os actuais critérios de distribuição do programa operacional de cooperação territorial baseados na densidade dos territó-rios; deste facto, todavia, devem ser retiradas duas consequências fun-damentais para o futuro próximo: em primeiro lugar, devemos evitar a todo o custo que os AECT sejam estruturas consumidoras de recursos, em segundo lugar é imperioso pensar rapidamente qual o modelo de financiamento para além do actual programa de cooperação, num cená-rio de penúria de meios financeiros disponíveis;

8. O “excesso de institucionalização” da cooperação transfronteiriça por via de agrupamentos de autoridades e poderes públicos locais e regionais é um risco com resultados contraproducentes porque pode significar a cap-tura de recursos públicos por aparelhos político-partidários em operações de duvidosa reprodutibilidade e elevado custo de oportunidade;

9. O sucesso a médio e longo prazo dos programas de cooperação trans-fronteiriça recomenda que sejam tidos em devida conta três tipos de ins-trumentos ou lógicas de intervenção: a institucionalização de iniciativas públicas, a empresarialização de iniciativas privadas, a materialização de direitos de cidadania ao quotidiano, de modo a que, no final, todos nos possamos interrogar sobre que espaço público, identidade ou nova territorialidade foram construídos no antigo território das regiões de fronteira;

10. As novas institucionalidades e centralidades para lá da cooperação transfronteiriça de vizinhança e dos programas financeiros de ocasião estarão no cerne da política de coesão para o pós-2014; neste contexto, temos a obrigação de colocar em discussão não apenas os custos da não--regionalização face aquelas institucionalidades e centralidades, como também, de questionar as regiões para o pós-2014 em situação de carência financeira quanto a apoios especificamente europeus e comuni-tários e confrontadas com as novas institucionalidades transfronteiriças, do tipo euro-regiões, euro-cidades, agências de desenvolvimento trans-fronteiriço, etc.; A cooperação territorial na Península Ibérica e na Europa está perante

uma verdadeira encruzilhada civilizacional e cultural que a actual crise se limitou a trazer à luz do dia. As fronteiras foram determinadas por razões históricas. A mudança de contexto e de pretexto podem mudar essas razões e

160 Os territórios-rede

determinar uma outra reconstrução histórica, uma nova territorialidade. A vaga nacionalista e antieuropeia das últimas eleições para o Parlamento Europeu (25 de Maio de 2014) mostra à evidência que os conflitos que jul-gávamos ultrapassados podem regressar a qualquer momento. À nossa fren-te, podem reemergir com um vigor redobrado:

– A história longa contra a história curta e a geografia dos territórios de proximidade;

– O interesse concreto das colectividades locais contra os interesses sem rosto do capital transnacional;

– A vida quotidiana das pessoas comuns contra os assuntos de Estado e o prestígio das instituições;

– Os recursos exíguos e preciosos da cultura dos povos contra a cultura dos recursos infinitos do sistema capitalista;

– As velhas territorialidades do estado-nação contra as novas identidades pós-fronteiriças e pós-estaduais.

Cooperação e diversificação dos territórios: from scale to scope

Num outro plano, a cooperação territorial, a diversificação de activida-des e a gestão multifuncional dos territórios podem constituir entre si uma associação muito virtuosa, sobretudo nos territórios agro-rurais da 2.ª rurali-dade. Há uma interacção muito forte entre agricultura multifuncional e terri-tórios multi-atributos, sobretudo em espaços rurais de baixa densidade e for-te potencial ambiental e paisagístico. Digamos que há uma relação virtuosa entre produtos e territórios, e as suas imagens ou representações, que precisa de ser reconcebida, construída e animada (Covas e Covas, 2008, 2008a). Produtos emblemáticos dão um prémio aos seus territórios de acolhimento, um território com características multifuncionais valoriza e projecta os pro-dutos locais. Todavia, para evitar equívocos desnecessários, é curial que as imagens não se substituam aos produtos e não sirvam para dissimular a sua falta de qualidade intrínseca.

Já sabemos que a economia rural produtivista, por via da intensificação material e energética, conduziu à concentração da propriedade fundiária, ao êxodo agrícola, ao crescente abandono dos territórios, ao crescimento urbano desordenado e a problemas de saúde pública cada vez mais frequentes. Não surpreende, pois, que a nova economia rural tenha de fazer, em boa medida, um movimento contrário ao da “revolução verde”: colocar as tecnologias da informação e do conhecimento ao dispor de novas actividades e serviços agro-rurais, restituir a riqueza florística e faunística ao território, renaturali-zando, por exemplo, os espaços periurbanos, retocar a sua imagem paisagís-

António Covas e Maria das Mercês Covas 161

tica e cultural, utilizar as biotecnologias ecossistémicas em benefício da bio-diversidade para “repovoar” territórios em vias de desertificação, promover uma nova economia residencial em zonas de baixa de densidade, etc.

A economia rural do século XXI será determinada por dois novos pri-mados que se anunciam: o primado ecológico e o primado da mobilidade. O primeiro recoloca a prevalência do território por via dos seus atributos biofí-sicos e ecológicos, o segundo altera radicalmente as nossas percepções con-vencionais sobre o espaço, o tempo e o acesso aos diferentes territórios, em especial os de baixa densidade.

O mundo rural descreve, neste momento, uma longa curva paradigmáti-ca que o levará da escala à diversificação, from scale to scope. As previsões surgidas em estudos recentes (Avillez, 2005) e (Correia, 2006), de que cerca de 80% do nosso território rural estará reservado, a prazo, para uma ruralida-de agroecológica, multifuncional e biodiversa, são agora claramente confir-madas se tivermos em conta as consequências da aplicação do programa de assistência económica e financeira a Portugal no interior do país (Covas e Covas, 2009). De facto, os sinais vitais de muitos municípios e regiões do interior colocam-nos abaixo ou fora das características da chamada economia convencional de mercado.

Todavia, a escassez estrutural de bens alimentares e de matérias-primas energéticas põe em risco aquele destino aparentemente mais virtuoso, pelo que assistiremos, muito provavelmente, na ausência de formalidade e fiscali-zação apropriadas, à mercantilização do espaço e à introdução de cargas des-proporcionadas de ocupação e utilização de recursos. Nestas circunstâncias, por exemplo, a associação entre culturas energéticas e biotecnologia, por via dos organismos geneticamente modificados, é uma incógnita cuja verosimi-lhança se avoluma cada vez mais. A conjugação desta ocorrência com o oportunismo comercial e a irresponsabilidade socio-ambiental de promotores recém-chegados não deixa prever nada de bom. No mesmo sentido, e em relação ao primado ecológico, assistiremos, muito provavelmente, ao “tráfico entre a razão ecológica e a razão verde”, ao greening, numa mistura pastosa de propaganda, publicidade enganosa e evidência científica.

Como se pode verificar, a ruralidade pós-moderna está muito longe de ser um cenário cor-de-rosa. A procura de cereais (as economias emergentes), por um lado, e a procura de culturas energéticas, por outro, põem pressão sobre os terrenos agrícolas, de maior e menor qualidade, podendo gerar a curto e médio prazo uma nova vaga de solos erodidos e abandonados. Nessa altura estaremos muito mais próximos do cenário de desertificação e não haverá meios públicos ou privados que cheguem para reverter a situação.

162 Os territórios-rede

Diversificação e benefícios de contexto em espaço rural

Já sabemos que o desenvolvimento rural “se institucionalizou” na polí-tica agrícola comum (PAC) para reduzir a produção agrícola e poupar recur-sos ao orçamento europeu. Nasceu, digamos, sob a forma de um constrangi-mento. Não foi um começo muito prometedor. Hoje, o mundo rural já não é o monopólio da agricultura, nem pode estar dependente de um constrangi-mento. A nova política de desenvolvimento rural, para ser duradoura, tem de estimular a multifuncionalidade agrícola e o modelo de agricultura familiar mas, também, as actividades não-agrícolas, em especial, uma agricultura energética e de serviços, assegurando, ao mesmo tempo, uma relação virtuo-sa com os bens de interesse e utilidade públicos.

Vamos, desde já, alertar para um risco real que esta preferência pela abordagem territorial envolve. De facto, ela leva-nos da agricultura para o desenvolvimento local, para o desenvolvimento sustentável, para o ordena-mento, para as políticas urbanas e de cidades médias, para o desenvolvimen-to regional, enfim. Quer dizer, para uma concertação político-administrativa cada vez mais sofisticada e, provavelmente, para mais uma longa série de conflitos de jurisdição e competência. Estes conflitos podem gerar muitos vícios de forma e um laborioso contencioso de responsabilidade que os gru-pos de interesse aproveitam para tirar vantagem e benefício para “os seus direitos adquiridos”. Este contencioso de responsabilidade, que implica algu-mas estratégias de autodefesa por parte da administração pública, pode estar na origem de um fluxo significativo de efeitos externos desfavoráveis à for-mação dos territórios multifuncionais.

Seja como for, a nossa teoria nesta matéria diz-nos que o binómio coope-ração-diversificação, se bem concebido e conduzido, pode ajudar-nos a cons-truir uma base sólida para a multifuncionalidade e o desenvolvimento rural. Tomemos o exemplo de uma cooperativa agrícola especializada num determi-nado sector de actividade. Se nela se respirar um verdadeiro espírito cooperati-vo, o capital social já acumulado pode ser utilizado para diversificar os serviços prestados pela cooperativa que, por esse facto, se pode converter numa coope-rativa multissectorial de fins múltiplos, com capacidade para uma oferta inte-grada e complementar de bens privados, de bens comuns e de bens públicos.

O binómio cooperação – diversificação é variável, portanto, com a con-figuração do território de que estamos a tratar. Mas de que territórios esta-mos nós a falar? Os territórios de jurisdição fixa consolidada como os muni-cipais ou os territórios de jurisdição variável construída numa base conservacionista ou ambiental ou, ainda, os territórios-projecto concebidos para atingir objectivos específicos, por exemplo, as áreas de paisagem prote-gida ou as zonas de intervenção florestal?

António Covas e Maria das Mercês Covas 163

Como facilmente se imagina, é diferente o stock de capital e o valor dos activos de cada um destes territórios, bem como a estrutura dos direitos e os conflitos de interesses aí residentes. Sendo certo que a municipalização arruma a questão das fronteiras, não estamos seguros de que, por essa via, se mantenha intacta a capacidade de inovação institucional que uma construção mais atrevida e maleável poderia proporcionar.

Infelizmente, as organizações não-municipais (ou para-municipais?) presentes no terreno não têm sabido ou querido usar a sua liberdade contra-tual para se introduzirem em territórios menos habituais mas, também, mais prometedores. Por exemplo, para além das cooperativas agrícolas, as asso-ciações de desenvolvimento local podiam juntar-se para gerir um território--rede, os centros de investigação podiam juntar-se para gerir um território--experimental ou uma área-piloto, uma associação de proprietários podia associar-se a uma associação de caçadores para gerir uma zona de interven-ção florestal, etc. Em todos os casos, o direito administrativo e a liberdade contratual dos parceiros podem encontrar soluções muito diferenciadas para cada situação.

Em todos os casos, é crucial o critério de dimensão crítica que preside à delimitação da unidade territorial para “efeitos de diversificação”. Infeliz-mente, com frequência, essa demarcação é mais fruto do acaso das circuns-tâncias do que de uma deliberação racional. Na mesma sequência, é imperio-so ultrapassar um enviesamento habitual nas políticas do território, a saber, a sua excessiva municipalização. Por um lado, passando de políticas centradas nas infra-estruturas e equipamentos para políticas centradas no serviço, no conhecimento e na organização, por outro, passando da fase de dispersão e especialização dos equipamentos para uma visão de ordenamento, multifun-cionalidade e polivalência, isto é, pondo as suas valências a render de forma muito mais imaginativa. A mesma imaginação que deveria ser aplicada aos sistemas urbanos territoriais, em especial aos espaços de influência das pequenas e médias cidades do interior.

Devido a estrangulamentos agro-ecológicos e socio-estruturais de longa

data, ainda hoje não resolvidos, o desenvolvimento rural em Portugal é dis-perso e inorgânico. A falta de ordenamento cultural e territorial das explora-ções agrícolas e dos aglomerados urbanos em meio rural não tem permitido o desenvolvimento de uma abordagem sistemática e integrada das questões agro-rurais, tal como aqui a enunciámos por via da cooperação territorial e da diversificação multifuncional. Estamos, todavia, numa fase de transição paradigmática de longo alcance.

A política rural europeia deu, neste sentido, um impulso significativo com o programa LEADER. A filosofia original do programa LEADER (liga-

164 Os territórios-rede

ção entre acções de desenvolvimento rural) pode ser aprofundada e alargada a outras intervenções. Aliás, em rigor, deveria ser, mesmo, o critério ordena-dor. O eixo estruturante do ordenamento, ambiente e recursos naturais e desenvolvimento rural cruza, cada vez mais, a política agrícola tradicional.

É certo que devemos evitar o risco de uma excessiva ambientalização da política agrícola sob pena de reduzirmos, ainda mais, a base produtiva da economia rural. Encontrar o equilíbrio entre a economia da produção, a economia da protecção e a economia da diversificação será, sempre o segre-do do sucesso de uma economia agrorural.

Para lá do rol de medidas já disponíveis em matéria de eco-raciona-lidade (informativas, regulamentares, regulatórias, interventivas, contratuais) são fundamentais, no quadro da diversificação multifuncional que nos inte-ressa, as actividades de investigação, experimentação e desenvolvimento que nos ajudam a dilucidar os interfaces entre agricultura, ambiente e território, em particular, na sequência, rica de ensinamentos, entre agricultura tradicio-nal, agricultura convencional, produção integrada, agricultura biológica, pelo menos em quatro domínios:

1. Numa criteriosa delimitação do sistema de agricultura tradicional: dos métodos e técnicas até aos produtos tradicionais de qualidade;

2. Na intensificação de sistemas extensivos, por paradoxal que possa pare-cer; qual o alcance em termos de mercado e o que pode significar, do ponto de vista tecnológico, esta intensificação sob condições?;

3. Na gestão de novos bens públicos e outros sistemas protegidos; como se sabe, recortamos cada vez mais o território (parques, reservas, outras áreas de paisagem protegida) que necessita, por esse facto, de novas regras de gestão socioeconómica;

4. Na utilização das tecnologias da informação ao serviço do desenvolvi-mento rural e do marketing territorial; o que significam as “procuras agro-culturais em espaço rural”, qual o lugar da agricultura de serviços nessa oferta? Como facilmente se observa, todos estes elementos acrescentam diversi-

ficação e diversidade ao espaço agrorural. Infelizmente, o que aqui trazemos em matéria de diversificação da base territorial está em rota de colisão com a ideia hegemónica de política pública, de cariz essencialmente sectorial e administrativo-financeira, pois é necessário justificar verbas e fechar contas

António Covas e Maria das Mercês Covas 165

anualmente, sob pena de não haver retorno no ano seguinte. Chama-se a esta prática “ser bom aluno”. Na verdade, partimos dos fundos financeiros, fixa-dos em Bruxelas, para as elegibilidades e destas para um catálogo de medi-das. Tudo fica, assim, pré-formatado por um labirinto de disposições regu-lamentares e procedimentos técnico-burocráticos. Neste contexto, os terri-tórios não existem, são um catálogo de medidas, disputadas palmo a palmo que só por acaso ou mera coincidência poderão ser bem-sucedidas. Não há base territorial para a gestão integrada das medidas. Não existem programas operativos para áreas específicas e não é suficiente a “territorialização de políticas de base sectorial”.

A teoria da diversificação em espaço rural tem, portanto, um longo caminho para percorrer, mas os sinais positivos são muito prometedores. A conjugação da multifuncionalidade agrícola (a exploração multifuncional) com a multifuncionalidade territorial (a gestão de programas operativos de base territorial) e a cooperação territorial descentralizada é a via acertada para levar a bom termo uma diversificação virtuosa.

Diversificação e gestão da multifuncionalidade territorial

A multifuncionalidade territorial é um campo aberto para uma nova normatividade social, fonte, igualmente, de uma nova normalização social. Estamos a falar da recomposição dos interesses que giram à volta da activi-dade agrícola, dos seus efeitos externos e dos bens públicos rurais. O equilí-brio precário é posto em causa pela chegada de novos valores e objectivos, novos interesses e direitos, novos actores e protagonistas, pois a multifun-cionalidade, que é diversidade, não se compadece com essa normalização. Donde se retira que a metodologia multifuncional põe, igualmente, em causa a tradicional teoria da acção pública assente na conformação/agregação de interesses individuais.

A multifuncionalidade territorial é, igualmente, um processo criativo de

uma nova organização colectiva local ou uma nova localidade. A multifun-cionalidade supõe que se crie uma rejuvenescida organização colectiva local sob pena de não existirem condições objectivas para promover uma boa governança dos interesses em presença. A multifuncionalidade é, neste con-texto, um risco e uma oportunidade. O risco de congestionamento da organi-zação colectiva que é alimentado pelo risco de congestionamento da própria multifuncionalidade, uma vez que há demasiados objectivos, muitas restri-ções e poucos instrumentos. Por outro lado, a reflexão em redor de uma nova organização colectiva, mesmo que precária, pode estimular e suscitar uma saída para a crise em que se encontra a actividade agrícola e as suas respecti-

166 Os territórios-rede

vas externalidades e bens públicos e chamar a atenção do país para a urgên-cia de uma solução de mais largo espectro.

A multifuncionalidade territorial cria novos referenciais teóricos, meto-

dológicos e práticos para a acção comum e colectiva. A multifuncionalidade é um vector de integração e coordenação horizontal de actividades e pessoas que coabitam um espaço de íntima contiguidade. Não se concebe, por isso, que o problema seja analiticamente compartimentado para que se possa, em seguida, “dialogar com a administração”. Não é a multifuncionalidade que se verticaliza, é a administração que se horizontaliza.

As disfunções irão surgir com toda a naturalidade, mas a nova metodolo-gia irá incluir, tarde ou cedo, o estudo exaustivo das produções conjuntas e das suas externalidades, a definição de quadros territoriais pertinentes para esse efeito, a constituição de carteiras específicas de projectos multifunções, a exe-cução de acções-piloto para efeitos de demonstração, a criação do “guichet único” para este projectos, as equipas de missão ou projecto polivalentes e a formação de mediadores qualificados para as questões de arbitragem de inte-resses. A experimentação, a divulgação e a extensão agro-rurais terão de ser profundamente reconsideradas e os casos ditos de “sucesso” terão de ser reco-lhidos com muito critério para evitar deslumbramentos desnecessários. No mesmo sentido terá de ser repensada a formação inicial e contínua das univer-sidades, provavelmente numa lógica de mais e melhor itinerância e em estreita conexão com uma rede de acções-piloto de agricultura multifuncional.

A multifuncionalidade territorial assistirá, finalmente, à passagem de

testemunho de dois modelos de política agrícola. Depois da reforma de 2003 todas as reformas da PAC apontam no sentido do desligamento total, embora faseado, das ajudas à produção. A interrogação que permanece é a seguinte: será possível manter uma base produtiva alargada, sobretudo em zonas rurais desfavorecidas, sem o apoio das ajudas ligadas à produção, trocadas, entre-tanto, por um sistema de ajudas mais regionalizado e destinado à gestão integrada de estruturas operativas de base territorial?

É muito cedo para responder afirmativamente a esta questão tão perti-

nente. Porém, a PAC desligada é, também, uma PAC extraordinariamente conservadora, pois congelou os direitos adquiridos a um nível que ofende a mais elementar justiça distributiva. Ela continuará, por isso, a ser o ponto de encontro de todos os conflitos do próximo futuro.

António Covas e Maria das Mercês Covas 167

A desterritorialização é sempre uma reterritorialização

No “mundo plano” (Friedman, 2006), a mobilidade é uma espécie de imperativo categórico. Isto também quer dizer que uma desterritorialização é, sempre e algures, uma reterritorialização (Haesbaert, 2006). De acordo com esta posição, e no quadro do movimento permanente dos territórios impulsionados pela dinâmica capitalista, estes viveriam “apenas” uma imobi-lidade relativa, uma espécie de temporalidade diferencial, nada que o para-digma da mobilidade não resolvesse. As crises seriam, portanto, fruto de uma imobilidade relativa, isto é, de meros ajustamentos diferenciais motiva-dos por mobilidades em transição, em processos contínuos de desterritoriali-zação e reterritorialização.

De acordo com esta posição, a desertificação e o despovoamento dos concelhos portugueses do interior (os fixos e os lentos) dever-se-iam, pois, à sua imobilidade relativa, ou, dito de outro modo, tão depressa quanto possí-vel, os “fixos e os lentos” deveriam dar lugar, aos “móveis e rápidos”!

Sempre de acordo com esta posição teórica, tudo seria movimento, logo, exportável e importável. O “equilíbrio interno” seria obtido por via do turis-mo, a emigração, o investimento estrangeiro, a exportação e a importação, os movimentos de capitais, no fundo uma economia cosmopolita em construção fundada em cidadãos cosmopolitas sempre disponíveis para “viajar” quer materialmente quer virtualmente.

A questão fulcral é, então, a seguinte: como é que todo este frenesim do movimento e da mobilidade “se inscreve socialmente nos territórios”, sabendo nós que para os grupos mais poderosos o território é um recur-so instrumental e para os grupos mais vulneráveis é um abrigo, um fim em si mesmo, mais identitário-simbólico do que funcional-instrumental? E que fazer dos territórios que se fecham sobre si próprios, que se tor-nam imóveis por abandono, esquecimento ou falta de projecto comum?

A coesão económica, social e territorial não faz só parte dos tratados europeus, faz parte, também, do contrato social que fundamenta a biopolítica do Estado-nação, a sua razão de ser e o lastro da sua identidade mais profun-da. Há um nexo de causalidade circular nesta relação triangular do princípio da coesão e uma quebra acentuada deste nexo de causalidade converte os ter-ritórios atingidos em verdadeiros “territórios de reclusão”, se quisermos, em “territórios-lar da 3.ª idade”. Infelizmente, este movimento de desterritoriali-zação-reterritorialização não está sintonizado nem pode ser programado. Por outro lado, estes territórios, devido às suas vulnerabilidades estruturais de longa data (problemas de ordenamento e crescimento) e à dinâmica segrega-

168 Os territórios-rede

cionista e agressiva dos mercados globais, estão permanentemente no banco de urgência e nos cuidados intensivos da “meso-cirurgia territorial”. Em cer-ta medida, pode dizer-se que a sua desterritorialização se explica pela sua imobilização, razão pela qual, hoje, um território só resiste à sua imobiliza-ção se promover, em primeiro lugar, a sua multiterritorialidade e, em segun-do lugar, a territorialização e a mobilização de todos os seus recursos.

Não obstante as dificuldades, não há determinismos irremediáveis. O modo de olhar para um problema é uma parte importante do problema. Talvez esteja na altura de verificar em que medida os nossos velhos concei-tos, as nossas grelhas de análise convencionais e os nossos modos de organi-zação e acção estão aptos para lidar com os novos e complexos problemas que temos pela frente. A escassez de recursos ou os défices de capital não são apenas um resultado a jusante motivado por projectos e organizações mal concebidos e executados, são, sobretudo, uma condição e uma restrição a montante que a “ordem local” teima em conservar. Tudo leva a crer que, para aumentar a mobilidade dos “recursos escassos” existentes in situ, vai ser necessário criar alguma desordem local. Os territórios cognitivos, multiterri-toriais e multifuncionais, tiram partido desta desordem local porque teimam em organizar-se como projecto de construção social, a partir da mobilidade e mobilização de todos os seus recursos, materiais e imateriais, tangíveis e intangíveis, de preferência sob a forma de um território-rede que restabeleça as condições mínimas do seu contrato social.

8.2. Os campos de força no mundo rural e os territórios-rede

Na contracapa de A Grande Transição escrevemos:

A Grande Transição é sobre uma nova antropologia cultural do mundo rural, sobre a formação de comunidades de interesses em busca de laços comunitários para o sentido da vida, em contacto directo com o chão físico e biológico. A Grande Transição é sobre a fusão entre os direitos naturais e os direitos sociais e humanos, o primado do acesso sobre a propriedade e da economia de serviços sobre a economia da produção. A Grande Transi-ção, finalmente, diz respeito à utilidade social do respeito. Do respeito pela pessoa da natureza e pela natureza da pessoa humana. De respeito pela diversidade dos futuros, hoje, e pela diversidade dos presentes, amanhã (Covas e Covas, 2011).

A nossa tese é a de que a 2.ª ruralidade será o ecossistema de acolhi-mento dos territórios-rede que ambicionamos construir. Mas o advento da 2.ª ruralidade, que já se anuncia e assinala, está, também, repleto de parado-xos, se não vejamos:

António Covas e Maria das Mercês Covas 169

– Maior agressividade da economia global mas, também, maior resiliência das economias locais;

– Mais produtos brancos e sem rosto, mas, também, mais produtos deno-minados e com indicação geográfica;

– Maior mobilidade de produtos, cada vez mais longínquos, mas, tam-bém, produtos de maior proximidade;

– Menor sazonalidade da produção mas, também, mais produtos de época e estação;

– Mais risco alimentar com maior rastreabilidade, mas, também, mais informalidade;

– Maior volatilidade do investimento em activos mas, também, mais eco-nomia verde e conservação de recursos;

– Mais valores de troca mas, também, mais valores de uso, de existência e de opção;

– Mais soluções tecnológicas disponíveis mas, também, mais segregação social por via da infoexclusão;

– Mais respeito pelo direito de propriedade mas, também, mais direitos de acesso e circulação e mais declarações de interesse público;

– Mais conflitos de interesse, maior privatização dos benefícios, mas, também, maior socialização dos prejuízos;

– Mais ética nos comportamentos, com mais accountability mas, também, mais free raider e risco moral.

A diversidade dos futuros, hoje, a diversidade dos presentes, amanhã

Como se observa, a 2.ª ruralidade terá um chão muito paradoxal de onde germinará, esperamos nós, muita liberdade e contingência. É sobre estes para-doxos, e por causa deles, que terá lugar a construção social dos territórios-rede da 2.ª ruralidade. Com efeito, são eles que, pelo seu paroxismo, permitem aos diferentes grupos sociais construir diferentes versões do território, a sua multi-territorialidade e territorialidade transcendente. Para dar conta de tal complexi-dade e contingência é necessário promover e organizar a “diversidade dos futu-ros hoje”. Só um reforço do capital social por via da cooperação territorial e do empreendedorismo associativo pode provocar a “desordem local” necessária a um acréscimo de mobilidade e mobilização dos “recursos escassos”.

Esta associação virtuosa entre “diversidade de futuros hoje”, “recursos escassos”, “défices de capital”, “desordem local”, “cooperação territorial”, “actor-rede”, está na origem do que aqui temos repetidamente designado como a “construção social de um território-rede cognitivo”.

Para montar o estaleiro de construção de um território-rede, a nossa primeira tarefa é agrupar territórios, de natureza e geometria variáveis, que

170 Os territórios-rede

articularão, de preferência, áreas naturais, áreas urbanas e áreas rurais e uma combinação de novas centralidades, funcionalidades, racionalidades e perso-nalidades, que podem ser conseguidas a partir de uma associação virtuosa entre parceiros. Este trabalho de reagrupamento é uma tarefa ingente e não está garantida à partida, pois a tal desordem local que suscita irá desencadear muitos anti-recursos e contra-recursos. Estamos a falar de uma associação territorial potencialmente virtuosa que pode reunir, em dose variável e em contextos territoriais específicos, por exemplo: empreendimentos turísticos, grupos empresariais, parques e reservas naturais, comunidades piscatórias, instituições do ensino superior, centros de investigação, escolas profissionais agrícolas, associações empresariais e de desenvolvimento local, cooperativas agrícolas e multissectoriais, autarquias e suas associações, clubes de produ-tores e de consumidores, superfícies comerciais e suas associações, meios de comunicação social, etc.

Em segundo lugar, pode e deve perguntar-se: qual é o actor que tem a legitimidade ou então a notoriedade e o prestígio para “desencadear a desor-dem local” e que resultados poderá aspirar e obter face aos “campos de for-ça” existentes, isto é, face à “ordem local” dominante? E o seu corolário lógico, serão os recursos libertados por essa desordem local superiores em quantidade e qualidade aos anti-recursos e contra-recursos que a mesma desordem local libertará?

Quer dizer, estamos à procura de líderes e lideranças que nos possam guiar pelo interior da ordem local estabelecida, à procura de cumplicidades, lealdades e confiança, e que, ao mesmo tempo, nos digam qual é o tipo de desordem local que querem provocar a partir de uma lógica cooperativa mul-titerritorial ou mesmo extraterritorial. Sabemos, de antemão, que o mesmo território é apropriado por vários grupos sociais de maneira diferente, com diferentes grelhas de leitura e congregando poderes muito diferenciados. Sabemos que os territórios, recursos, actividades ou tecnologias são constru-ções sociais e relações sociais atravessadas pela lógica do poder dominante. Sabemos que os anti-recursos e os contra-recursos estão na expectativa à espreita de oportunidade e sabemos, ainda, que temos hoje a possibilidade de combinar de forma inédita a intervenção e a coexistência de uma gama enorme de diferentes territórios.

Em terceiro lugar, sabemos, também, que nas sociedades actuais o territó-rio-rede não escapa ao controlo de mobilidade, dos fluxos e das conexões das redes, com tudo o que isso implica de exposição, vulnerabilidade e anonimato irresponsável. Quer dizer, o território-rede, se não for uma construção sólida, é

António Covas e Maria das Mercês Covas 171

um alvo fácil a abater. Ou, dito de outro modo, a construção social de um terri-tório-rede é uma operação de risco elevado, com um risco moral muito alto e uma taxa de free raider também significativa, razão pela qual os seus prós e contras devem ser, em devido tempo, seriamente ponderados.

No caso português, o “défice de sociedade civil” na configuração dos

territórios teve como consequência um excesso de municipalização e política partidária, por um lado, e a omnipresença da política administrativa e finan-ceira do Estado, por outro. Hoje, esta omnipresença reduz substancialmente o campo de possibilidades à nossa disposição, uma vez que encurta e regula o sistema de acessos e condicionalidades ao poder dominante. O campo de forças (Bourdieu, 2012, 2013) ou as relações de poder no mundo rural e a formação dos territórios-rede estão, portanto, intimamente relacionadas.

Os campos de forças no âmbito de distintos processos de ruralização

Já o dissemos antes, estão em curso distintos processos de ruralização que são, cada um a seu modo, outros tantos processos de privatização do espaço público rural e, portanto, fonte de muitos e novos conflitos de inte-resse. Eis os principais: o rentismo imobiliário, o esverdeamento ou ambien-talização da produção, a florestação de terrenos agrícolas, a conservação de recursos naturais, a residencialização do espaço agrorural, a energetização dos recursos renováveis em espaço agrorural, a turistificação das amenidades agro-rurais, a reagrarização luso-espanhola, a cinegetização dos recursos agro-florestais, a terciarização agrorural.

Não podemos idealizar o mundo rural por mais assombrosas que sejam

as nossas representações e encenações. Na retaguarda desses imaginários urbanos sobre o mundo rural correm as relações de poder e os processos agro-políticos que, na sua discrição e arbitrariedade, determinam o essencial das relações sociais e as sociabilidades do mundo rural. Por isso mesmo, não devemos confundir o frenesim dos novos actores do mundo rural (para já simples epifenómenos) com as relações de poder no interior do mundo rural português, uma mistura, por vezes perversa, de abandono, concentração e intensificação das terras. Eis as suas principais manifestações: a extracção de mais-valias fundiárias em terrenos expectantes, as grandes plantações ou flo-restas industriais em terrenos que estão praticamente abandonados, as gran-des propriedades conservacionistas financiadas pelas multinacionais da con-servação da natureza, as grandes propriedades turistificadas mas, também, os grandes parques energéticos, os grandes parques ambientais e as grandes reservas de caça. Para além, obviamente, da indústria agrícola intensiva e

172 Os territórios-rede

superintensiva que ocorre, sobretudo, na área de influência dos grandes aproveitamentos hidroagrícolas.

Como é óbvio, os novos valores relativos ao ordenamento, ao uso múl-

tiplo e à acessibilidade ao espaço agrorural conflituam com a tentativa de privatização de alguns processos de ruralização em curso. Os conflitos são inevitáveis mas deles também surgem novos territórios, “novos intrusos” e novas relações de poder que podemos observar, por exemplo, no latifúndio tradicional que é convertido em grupo empresarial, na propriedade fundiária que dá lugar a um condomínio de residências secundárias, na caça associati-va que é convertida em coutada de caça turística, nos novos contratos de arrendamento energético onde domina o aerogerador ou o espelho solar, nas pequenas propriedades arrendadas aos grandes projectos de pomar, olival e vinha, intensivos e superintensivos, em que os capitais nacionais aparecem consociados com capitais estrangeiros.

Em resumo, os campos de força do mundo rural terão a sua origem nas ondas de choque que se formarão, quase inevitavelmente, entre duas concep-ções ou ideologias do mundo rural: como espaço de produção e espaço de apropriação privada e como espaço de consumo ou espaço público de visita-ção e lazer. Mas muitas outras representações do espaço rural verão a luz do dia e estarão na origem de projectos inovadores, plenos de futuro, que nós sem sequer imaginamos nesta altura.

O frenesim neo-rural e rurbano

O mundo rural é, hoje, um jogo de sombras e uma encruzilhada onde se cruzam percepções e representações de mundos trocados. As representações giram em redor de polaridades que foram sendo construídas ao longo das últimas décadas. Sobre os territórios em redor do binómio rural-urbano, sobre os sistemas de produção em redor da dualidade agricultura convencio-nal-agricultura não convencional, sobre os valores em redor da dualidade valores de troca-valores de existência. Cada uma destas representações cria a sua própria verdade, mas, também, muitas ideias simplistas, imagens desfo-cadas e equívocos sobre o mundo rural. Por outro lado, estas representações alimentam a produção de uma nova ruralidade e são estas mesmas represen-tações, práticas e teóricas, que criam as novas procuras e os mercados emer-gentes que atravessam em todas as direcções o espaço rural.

Esta transmutação, feita maioritariamente pelos agentes citadinos, signi-fica, umas vezes, verdadeira modernização agrária, outras vezes turistifica-ção vinícola, oleícola ou cinegética, outras vezes, ainda, simples elemento decorativo para happenings cosmopolitas. Todos os dias os meios de comu-nicação social nos fazem chegar estas incursões urbanas em meio rural,

António Covas e Maria das Mercês Covas 173

como casos de sucesso fulgurante, devidamente acompanhados de elementos publicitários que visam passar a imagem da moda. Lá está a moda neo-rural e os seus três pivots, o verde, o eco e o bio, a que se acrescenta a economia agro-residencial, que transformam as áreas rurais em zonas privilegiadas por onde passam todos os equívocos do mundo rural.

O rurbanus está, para já, no início da sua própria construção, a fazer a aprendizagem dos “limites”; é, portanto, um homem itinerante, pendular, “experienciando” momentos especiais, mas, também, cada vez mais dedica-do, experimentado e conhecedor dos segredos do mundo natural-rural, cujas fronteiras deseja alargar (Covas e Covas, 2011: 143).

Os actores do mundo rural, no próximo futuro, serão muito diversificados nas suas vocações e competências. Do mesmo modo, são muito diversos os pretextos para as suas “incursões” ao mundo rural. A principal característica destes novos actores é, portanto, a sua mobilidade e pendularidade, isto é, eles são “incursionistas” do mundo rural em momentos diversos do seu ciclo de vida. São eles que transformam o paradigma do mundo rural, de espaço produ-tor para espaço produzido, por via das suas inúmeras representações e encena-ções do mundo rural. Ou seja, serão eles que “instalarão a desordem” num uni-verso geralmente conservador e tradicionalista. Eis alguns exemplos dessa “desordem em construção” (Covas e Covas, 2011: 144-145):

– Os movimentos pendulares em redor de uma 2.ª residência, para aqueles para quem o campo é um território de recordações, nostalgia mas, tam-bém, de recomeços;

– Os movimentos pendulares no quadro da chamada agricultura periurba-na, em redor de uma pequena propriedade ou exploração agrícola e no quadro dos mercados locais de proximidade;

– Os ecologistas militantes impulsionados pela sua ideologia verde, para quem o campo é um campo privilegiado para o combate em nome de grandes causas;

– Os desportistas radicais e os “excursionistas” da natureza, para quem o campo é uma “experienciação” inesquecível da prática desportiva e da visitação da natureza;

– Os caçadores reservistas, para quem o campo é uma oportunidade de revisitação permanente e regular, além de ser uma fonte de rendimento importante para os empreendimentos cinegéticos;

– Os paisagistas e conservacionistas, para quem o campo é um quadro pictórico e um mosaico ecossistémico que pode encerrar muitos projec-tos com interesse;

174 Os territórios-rede

– Os agricultores biológicos e os produtores alternativos, para quem o campo é uma espécie de regresso à terra-mãe biológica e a oportunidade de construir um sistema alimentar local que respeite os recursos escas-sos da terra-mãe;

– Os patrimonialistas populares ligados à história local e a uma certa eco--antropologia das culturas locais, para quem o campo é um repositório de histórias, mistérios e muitas festividades;

– Os novos investidores nos mercados do carbono, para quem o campo é um depósito e um sumidouro precioso para o sequestro de carbono;

– Os consumidores funcionalistas e o soft food, em redor de novos movi-mentos gastronómicos, para quem o campo é um repositório de dietas e mezinhas e uma fonte inesgotável de novas ideias e projectos culinários;

– Os arquitectos da sustentabilidade e da bio-regulação climática, ligados ao aproveitamento das energias renováveis e à certificação energética, para quem o campo é uma fonte inesgotável de materiais e fontes de bioregulação;

– Os agricultores organizados em hortas sociais e comunitárias e o institutio-nal food, um movimento que cresce junto da população sénior, para quem o campo é um campo de solidariedade para com os mais desprotegidos;

– Os empreendedores pós-convencionais de produtos com indicação geo-gráfica de proveniência em certos nichos de mercado, para quem o campo é uma fonte inesgotável de produtos com história e identidade;

– Os empreendedores dos vários modos de turismo em espaço rural, para quem o campo é um imenso repositório de amenidades e momentos de recreio e lazer, assim como de boas oportunidades de negócio;

– Os empreendedores de ocasião atrás de uma oportunidade agro-comer-cial de curto prazo, em campanhas agrícolas sazonais, para quem o campo é essencialmente um negócio de ocasião com retorno rápido;

– Os jovens empreendedores, finalmente, atrás de uma primeira instalação profissional, para quem o campo é uma oportunidade para iniciar uma actividade empresarial e, também, a sucessão geracional.

Como se observa por estas múltiplas referências a “desordem está insta-lada”; acrescente-se que nenhuma destas referências faz parte do mainstream do “sector dito primário”, em redor do qual ainda hoje se organiza o campo de forças produtivista do mundo rural. Logo, um longo caminho e muitos episódios à nossa frente que farão a história futura da 2.ª ruralidade.

António Covas e Maria das Mercês Covas 175

Um novo campo de forças ou uma middle level approach ao território

Os territórios-rede, enquanto unidades operativas de gestão territorial, são uma abordagem intermédia para a construção social de meso-territórios. Eles estarão, certamente, na confluência de quatro grandes vectores estrutu-rantes, a saber, a agricultura biotecnológica, a agroecologia e a biodiversida-de, os ecossistemas e as paisagens globais. Do mesmo modo, os territórios--rede serão construídos na encruzilhada dos grandes mercados emergentes do futuro que não deixarão de moldar e configurar o mundo rural do século XXI. Estamos em condições de enunciar aqueles que serão, seguramente, os principais mercados de futuro do mundo agrorural das próximas gerações:

– Os mercados de commodities ligados aos grandes operadores e ao agro--business internacional que usa o espaço nacional como plataforma giratória para os seus interesses financeiros de ocasião;

– Os mercados dos produtos agroecológicos: dos produtos limpos aos produtos justos, das tecnologias doces e intermédias às produções con-juntas e aos serviços ambientais;

– Os mercados do carbono: as transacções entre quem limpa e quem suja, os futuros sumidouros e o papel dos fundos de investimento no “seques-tro carbónico” do mundo rural;

– Os mercados da água: da água da chuva à água da rede, as novas empre-sas e os negócios da água, mas, também, as actividades e os negócios dos 3R das águas residuais;

– Os mercados da biodiversidade e da provisão dos serviços ecossistémi-cos: os novos negócios, as novas empresas e os bens de mérito por excelência, socializados, com gosto, por todos nós, os contribuintes;

– Os mercados das amenidades, da arquitectura paisagística à engenharia biofísica: do ordenamento da paisagem global às unidades de paisagem e à gestão de áreas de paisagem protegida, como recursos de primeira linha para a produção de amenidades recreativas e turísticas;

– Os mercados dos 3R: reduzir, reciclar e reutilizar, está em causa a cons-trução social de uma verdadeira economia verde, uma indústria funda-mental de produção e consumo responsáveis;

– Os mercados dos produtos com denominação de origem: estes são os nossos “produtos glocais”, aqueles que importa valorizar a todo o custo porque põem no mapa os nossos territórios mais remotos;

– Os mercados do institutional food não-convencional: um futuro mais saudável está claramente ao nosso alcance, para isso é necessário cons-

176 Os territórios-rede

truir uma relação social entre uma rede de agricultura de alimentos lim-pos e uma rede solidária de institutional food;

– Os mercados da mitigação, adaptação e compensação e, também, da prevenção e contingência: um mercado que cresce em virtude das alte-rações climáticas, da meteorologia, dos equipamentos de aviso e alerta até aos processos laboratoriais de rastreabilidade dos produtos;

– Os mercados dos alimentos e dos medicamentos funcionais: os novos alimentos e medicamentos da biotecnologia ao serviço da saúde pública e da sociedade sénior;

– Os mercados da microgeração energética: os novos sistemas integrados de poupança, eficiência e diversificação das fontes energéticas e, tam-bém, a democracia energética ao nosso alcance, de consumidores para produtores de energia;

– Os mercados da regeneração e da renaturalização dos recursos naturais e dos ecossistemas: da engenharia biofísica e da arquitectura paisagísti-ca até à cirurgia reconstrutiva das áreas ardidas. Para todos estes mercados de futuro, os territórios-rede e os actores-rede

estão em condições de propiciar um middle level approach de intervenção e planeamento e nessa medida muito bem-estar para as populações que habi-tam e vivem esses territórios. É esta abordagem intermédia de natureza terri-torial e multifuncional que trará a diversidade de futuros hoje e a diversidade de presentes amanhã aos nossos territórios mais deprimidos. Para tanto, há um campo imenso de possibilidades de investimento que não apenas respon-dem às exigências do tempo presente, no que diz respeito ao modelo domi-nante de agro-business como legitimam, amanhã, o novo contrato social entre a agricultura e as sociedades da modernidade tardia. Muitos destes investimentos não terão promotores individuais porque não se enquadram nesse padrão. Em vez disso, enquadram-se perfeitamente na filosofia e na política dos territórios-rede. Os “investimentos middle level approach” esta-rão, sobretudo, nas áreas do ordenamento do território, da energia, dos ecos-sistemas, da produção agroecológica e na grande área da economia verde em tudo o que diga respeito à política dos 3R.

No contexto de uma middle level approach territorial a mudança mais

importante que desejamos, em direcção a uma multifuncionalidade intensiva em conhecimento, é aquela que opera a conversão do “sistema de produtos em os produtos do sistema”, isto é, aquela que faz convergir os mercados emergentes, em toda a sua extensão, para plataformas territorializadas e/ou sistemas integrados de produtos. Mais uma vez, só no âmbito de um territó-

António Covas e Maria das Mercês Covas 177

rio-rede é possível materializar esta convergência necessária entre “investi-mentos de construção de um sistema denominado” e “investimentos de cons-trução de um cabaz de produtos” que, sob apelação de origem ou denomina-ção própria, seja o emblema do território-rede.

Uma estratificação social emergente

O desenvolvimento rural ou a “desordem do desenvolvimento rural” ocorre em várias versões, variáveis segundos os concelhos, mas que nós podemos estratificar territorialmente do seguinte modo:

– Uma versão determinista, de abandono progressivo e “morte anuncia-da”, que conduz inelutavelmente ao envelhecimento e à desertificação: o rural enquistado, remoto ou profundo, digamos, territórios de enclave ou reclusão;

– Uma versão localista, resiliente, ligada à economia informal dos conce-lhos, variável com a estrutura fundiária e ligada à promoção das activi-dades dos municípios e ao seu ritual de mercados locais, feiras e festivi-dades: o rural de subsistência e informal;

– Uma versão pluriactiva, ligada ao trânsito das gerações e à gestão do ciclo de vida familiar, uma mistura de reformados com activos, com o regresso à actividade agrícola junto do local de residência e ao comércio de proximidade: o micro-rural difuso de pluriactividade e plurirrendi-mento;

– Uma versão empresarial de capitalismo familiar, em sectores tradicio-nais, modernizados e rentáveis em subsectores especializados e com mercados em expansão (ex.: vinho, azeite, hortofrutícolas, flores, etc.): o agrorural de capitalismo doméstico e familiar;

– Uma versão capitalista intensiva, ligada a grupos empresariais e a capi-tal estrangeiro, de culturas superintensivas, tendo em vista a exportação e rendimentos com retornos rápidos (a floresta, o azeite, as culturas industriais): o agrorural cosmopolita e superintensivo;

– Uma versão ambientalista e conservacionista, ligada à política e ao direito do ordenamento e do ambiente em sentido largo, mais ou menos institucionalizada e com ligações a organizações multinacionais do ambiente: o rural ambientalista e conservacionista. Estas várias versões ilustram a diversidade e autonomia dos actores no

terreno. É isto o “construtivismo agrorural”, porventura em “ordem desorde-nada”. Dito isto, a estratificação social que se indica é o resultado de uma

178 Os territórios-rede

observação descomprometida e vale mais pelo significado dos sinais obser-vados do que pela sua representatividade sociológica. As observações foram por nós recolhidas durante o trabalho de campo feito para o estudo Retratos portugueses de agricultura multifuncional (Covas e Covas, 2009) e já poste-riormente confirmadas por outras visitas de campo:

– Um primeiro estrato diz respeito à grande propriedade e às “quintas

novas” que aparecem associadas aos empreendimentos”complexo”, ligados ao golfe, ao enoturismo, ao turismo cinegético e às diversas formas de turismo de saúde, portanto mais turistificados, internacionali-zados e “financeirizados”;

– Um segundo estrato diz respeito à classe empresarial da agricultura convencional ligada à agro-indústria, à distribuição agro-alimentar e ao agro-negócio dos mercados internacionais que está em ajustamento permanente aos mercados globais e às condições gerais de financiamen-to; este ajustamento permanente está na origem de bastantes processos de reestruturação, concentração e fusão destas empresas motivados por operações de saneamento financeiro e aumento de capital;

– Um terceiro estrato diz respeito à classe dos pequenos e médios agricul-tores, proprietários e arrendatários, que vão desde a agricultura de sub-sistência, presente nos mercados locais de proximidade, até uma agri-cultura de subcontratação junto de cooperativas, intermediários e centrais de compra de grandes superfícies, quase sempre atravessando graves problemas de liquidez e solvência, uma boa parte da qual faz o trânsito ida e volta que vai da economia formal à economia informal;

– Um quarto estrato tem a ver com uma parte da classe média urbana que decidiu, num primeiro momento, patrimonializar a herança recebida na velha casa dos pais-avós “onde tudo começou”; estes neo-rurais aumen-tam o número de movimentos pendulares cidade-campo e interagem cada vez mais com a comunidade da aldeia, uns residencializando sim-plesmente a casa que herdaram, outros empresarializando aquele patri-mónio com microprojectos empresariais, outros, ainda, ensaiando, pela primeira vez, sistemas alternativos de produção;

– Um quinto estrato diz respeito a estratégias de emergência ou urgência, aos casos de regresso forçado às pequenas propriedades dos pais-avós, feito por desempregados jovens e desempregados de longa duração, umas vezes sob a forma de “primeira instalação” nos casos “mais pro-

António Covas e Maria das Mercês Covas 179

fissionalizados”, outras vezes em estratégias de mera subsistência, tem-porárias e em trânsito para a emigração;

– Um sexto e último estrato diz respeito aos casos isolados e/ou familia-res, de decisão própria e autónoma, que fazem dessa mudança um pro-jecto de vida, muitas vezes em áreas que nada têm a ver com o mundo agrorural mas que, rapidamente, acabam por intersectar e interagir com ele e são geralmente portadores de uma dose significativa de iniciativa, inovação e criatividade. Não temos evidência empírica suficiente para traçar com nitidez a rele-

vância, o alcance e os contornos teórico-práticos da estratificação que aca-bámos de traçar. Não obstante, são sinais que anotámos, por observação directa, em alguns trabalhos de campo mais recentes. Estamos, de resto, con-vencidos de que estes sinais, visíveis a olho nu, mereceriam melhor atenção e estudo cuidado por parte da academia, uma vez que eles farão parte do nosso quotidiano, de modo crescente, e mais valia tomar conta dessa ocor-rência de forma rigorosa e intencional para o bem-estar de todos.

8.3. Uma teoria do actor-rede para uma governança dedicada

Como já dissemos, na transição dos territórios-zona para os territórios--rede passamos do modo governing (hierarquia) para o modo governance (heterarquia). Nesta transição falta-nos, ainda, uma teoria-prática do actor--rede e da sua interacção social para fazer bem a aprendizagem da coopera-ção entre parceiros que mal se conhecem.

Recordemos os três pilares sobre os quais assenta a política de transição para uma governança territorial. Em primeiro lugar, a cooperatividade ou cen-tralidade da cooperação como acto criativo de capital social comum aos parcei-ros, em segundo lugar a produção de internalidades como acto de redução e racionalização dos custos de informação e transacção entre parceiros, em ter-ceiro lugar, a coopetitividade como acto de criação de bens e serviços de méri-to e reputação do território-rede em construção, por último, a institucionalida-de dedicada que só a constituição de um actor-rede pode assegurar.

Um actor-rede para um território-rede

Vivemos na sociedade da informação e do conhecimento. Neste género de sociedade só sobrevivem os subsistemas, os sectores e os actores que estão dispostos a aprender e são capazes de aprender. A política, mas tam-

180 Os territórios-rede

bém a ciência, a economia, as artes e a comunicação social, por exemplo, não estão desobrigadas da necessidade de aprender. O que mais impressiona é verificar como todos estes subsistemas, sectores e actores, quantas vezes sobrepostos no mesmo território, desperdiçam as oportunidades de aprender e criar capital social regenerador, ignorando vizinhos e parceiros que verda-deiramente nunca chegaram a ser. De facto, se os parceiros que integram as configurações territoriais que nos propomos construir teimarem em ser auto--referenciais, abdicando de se protegerem de si próprios e do seu interesse egoísta, está criado um equívoco monumental e, em breve, não surpreenderá que o território-zona regresse vitoriosamente para impor ordem no sistema territorial.

As configurações territoriais e os territórios-rede, tal como nós os ima-ginamos aqui, são, antes de mais, “produções civilistas”, de cariz social, societal, cooperativo, mutualista ou comunitário, mais do que territórios ins-titucionais, públicos e institucionalizados ou burocrático-administrativos, o que não invalida a cooperação necessária entre parceiros públicos e privados. Essas “produções civilistas” são verdadeiras “comunidades políticas” produ-toras de capital social (confiança, respeito, entreajuda, conhecimento, futuro) para lá da política convencional e, nessa medida, necessitam de muita “insti-gação política” para atingirem um alto grau de reflexão interna. Esta “insti-gação política” não é fácil de obter na fase de transição e liberta muitos anti--recursos e contra-recursos.

O futuro território-rede tem um horizonte largo de expectativas positi-vas à sua frente e este é o seu principal trunfo, todavia, ao libertar anti--recursos e contra-recursos faz também apelo à necessidade de reforçar o sis-tema de negociação interna e respectivos procedimentos de resolução de conflitos de interesses. Com efeito, se cada parceiro carregar para a acção comum e colectiva as posições fixas do seu estatuto e condição como se fos-se um mero delegado mandatado pela sua corporação, então, a violência simbólica, a que já antes nos referimos, será de tal ordem que bloqueará os progressos já realizados e nada de relevante acontecerá para o território-rede em formação. É, mais uma vez, o reino vitorioso dos anti-recursos e dos con-tra-recursos.

Sabemos hoje, por via da sociologia do conhecimento e dos contributos das teorias construtivistas do conhecimento, que não podemos ver o que não sabemos. O nosso dilema, portanto, neste momento de emergência, é saber como produzir o conhecimento e o capital social onde antes havia um verda-deiro diálogo de surdos, pois a omnipresença da política hierárquica, arro-gante e auto-referencial “segregou e secou” as múltiplas formas de conheci-mento formal e informal que circulavam na sua órbita e que foram progressivamente empurradas para o limbo da “sociedade oficial” onde hoje

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proliferam e vegetam sem esperança, arrastando consigo outros tantos terri-tórios sem futuro.

Sabemos, finalmente, que a produção dos territórios-rede, na sua enor-me variedade, implica a passagem da governação pública para a governação civil ou, ainda, a transição da regulação pública para a hétero-regulação e desta para a auto-regulação que é, afinal, a obrigação de os actores se auto-limitarem na sua acção e nos seus interesses, substituindo a regulação exter-na pela regulação própria. Isto só é possível se o território-rede reunir as condições para criar uma “institucionalidade ou administração dedicada” capaz de produzir várias visões de futuro através de sucessivas “ficções de consenso” que alimentem permanentemente a comunicação consensual em redor de um ideário de prosperidade cooperativa para todos.

Como dissemos, cada configuração territorial, sob a forma de um terri-

tório-rede em formação, terá de criar uma racionalidade operativa apropriada e adaptada aos seus diversos territórios de origem. Numa fase de pré--projecto, que se recomenda que tenha uma duração apropriada de seis a nove meses, essa racionalidade operativa pode assumir a forma de uma comissão instaladora dos parceiros, cuja missão principal é delimitar o terri-tório de partida e esboçar os traços essenciais do que será a estratégia de intervenção ou o bem comum desse território.

Todavia, o território-rede não é um simples “território em rede”, logo, é recomendável que se constitua uma “administração dedicada e permanente” sob a forma organizacional de um actor-rede. Na fase de projecto propria-mente dita este actor-rede é uma “estrutura de missão ou projecto”, servida por uma “administração dedicada e permanente”, pois só há competência se houver permanência, ao serviço de um projecto comum, de preferência com vários cenários de futuro à sua frente. É, também, um actor intuitivo e quase meta-territorial no sentido em que é dotado de um “discurso paradoxal” sobre o território em construção e muito em especial sobre a natureza da sua multiterritorialidade. Por mais surpreendente que possa parecer, a coesão do grupo é mantida pela reflexão prospectiva e pela renovação permanente des-ses cenários de futuro. O actor-rede é, assim, o representante do futuro pró-ximo no presente actual e, nessa medida, ele é o mediador, por excelência, das actividades criativas e culturais que são portadoras de ilusão e de imagi-nário mas que são o alimento do espírito do novo território.

Em síntese, para ser este mentor intuitivo e reflexivo do território-rede,

o actor-rede precisa, em primeiro lugar, de alimentar um ethos cooperativo genuíno, não apenas no procedimento mas, também, na substância do que se deve entender por um “bem comum”. Precisa, em segundo lugar, de uma

182 Os territórios-rede

inteligência territorial, material e imaterial, dotada de modéstia construtivista na formação do valor acrescentado multiterritorial. Em terceiro lugar, precisa de uma teoria do agir comunicacional (Habermas, 1986 e 1994) sob a forma de um arranjo comunicativo local e de uma retórica discursiva que tornem o actor-rede capaz de produzir sucessivas “ficções de consenso” sobre outros tantos conflitos de interesse que germinarão no interior do território-rede em construção. Por último, o actor-rede é o agente-principal de um novo espaço público criativo que se confundirá com a própria multiterritorialidade, qual caldo de cultura de onde emergirá a putativa identidade-rede de uma confi-guração territorial que, tendo começado por ser um território inorgânico ambicionará, algum dia, ser um território-rede dotado de um mínimo de organicidade, consistência e espessura territoriais.

Os elementos para uma teoria do actor-rede (TAR)

Dito isto, estamos em condições de delimitar a natureza e os atributos do que deve ser uma nova inteligência territorial, interpretada e realizada por uma organização-rede cujo objecto é a construção social de um território--rede. Trata-se, em primeira instância, de projectar um novo bem comum que supere os interesses particulares dos parceiros envolvidos e, em segundo lugar, se possível, de transformar esse “bem comum particular” num “novo espaço público alargado” a outros segmentos de público.

Todas estas considerações pressupõem uma extraordinária ampliação do que terá de ser considerado espaço público e/ou bem comum. Não ignoramos a dificuldade da tarefa de configurar espaços comuns, em particular a difi-culdade de traçar limites e de, com base neles, organizar uma estratégia. No melhor dos casos, temos de saber que todos os limites são variáveis, plurais e contextuais. A consequência imediata é que em qualquer actividade o inte-rior e o exterior se misturam continuamente, isto é, que a desconstrução e a reconstrução são as faces da mesma moeda. Ora, a política é, por natureza, o governo dos limites. Isto também quer dizer que aumenta o número de pro-blemas que só pode ser resolvido cooperativamente. Esta é a missão do terri-tório-rede. A política terá de problematizar adequadamente a distinção entre “o dentro e o fora” e entre “nós e eles”, conceitos que são inadequados para governar espaços des-limitados. Há, em vez disso, um espaço que se desen-volve em todas as direcções e, nessa medida, “espaço comum particular” e “espaço público novo” podem ser devidamente articulados com benefício mútuo.

É preciso, pois, politizar esta reticulação entre “espaço comum particu-lar” e “espaço público inteligente” e cumprir esta dupla condição está na ori-gem do território-rede que queremos construir. Para este território-rede é

António Covas e Maria das Mercês Covas 183

preciso criar o actor-rede correspondente, uma organização inovadora e um espaço de acção, coordenação e responsabilidade comuns. Vejamos alguns dos seus atributos.

1) O actor-rede é uma organização dotada de pensamento e inteligência

territorial que é capaz de produzir uma auto-referenciação suficiente para criar um mínimo de “ordem local” no território-rede em formação; nessa exacta medida, patrocina a cultura política do bem comum e do espaço público, o envolvimento policontextual e a interacção comunica-tiva dos parceiros;

2) O actor-rede é uma organização contra-intuitiva que perscruta o futuro antecipando-o constantemente, uma vez que o futuro já não é o que cos-tumava ser; nessa exacta medida, lida tanto com “a realidade” como com a parte mais invisível e contingente da realidade;

3) O actor-rede é uma organização que cultiva a modéstia organizacional e que constrói uma identidade precária em redor de pequenas melhorias sectoriais, provisórias e contingentes; nessa exacta medida, os actores do território-rede em formação “movimentam-se entre a estrutura e a finalidade no interior de uma teia de processos e procedimentos”;

4) O actor-rede é uma organização que atribui mais importância à perfor-matividade dos procedimentos do que à normatividade da sua própria legitimação; nessa exacta medida, é a construção laboriosa de uma esfe-ra deliberativa dos interesses que cultiva o consenso como horizonte e o dissenso como processo, sempre em busca de um compromisso mesmo que provisório e contingente;

5) O actor-rede é uma organização que se distingue pelo modo como lida com a marginalidade e a exclusão; nessa exacta medida, é uma organi-zação inclusiva, em especial na forma como coopera com os anti--recursos e contra-recursos;

6) O actor-rede é uma a organização que deve a sua sobrevivência à sua capacidade cognitiva e reflexiva permanente; nessa exacta medida, é uma “comunidade política de autogoverno” que mantém uma gramática sempre actualizada do bem comum e da acção colectiva;

7) O actor-rede é uma organização que precisa urgentemente de um “sis-tema produtivo local” para a sua identificação e auto-referenciação; nes-sa exacta medida, o actor-rede está obrigado a operar a conversão entre

184 Os territórios-rede

“o sistema de produtos” e “os produtos do sistema”, aqui representados por bens de mérito e reputação que são a ponte entre o espaço comum e o espaço público;

8) O actor-rede é uma organização que privilegia a “produção conjunta de bens de mérito e reputação”; nessa exacta medida, se for capaz de arti-cular espaço comum particular e espaço público teremos um território--rede que oferecerá uma provisão diversificada de bens mercantis, de bens ambientais e ecossistémicos, de bens sociais e culturais e de bens de lazer e turismo num espaço-território muito mais estruturado do que temos hoje;

9) O actor-rede é uma organização que precisa de uma liderança muito for-te e de uma administração dedicada para poder revelar todo o seu “pro-duto potencial” e tanto mais quanto ela tende constantemente para o impasse e a entropia; nessa exacta medida, a organização está obrigada à produção continuada de uma “ficção de consensos” que só uma inteli-gência territorial muito fértil e uma liderança muito marcada estão em condições de proporcionar;

10) O actor-rede é uma organização que, em síntese teórica, apresenta as

seguintes traves-mestras: uma comunidade política de interesses, um projecto de vida em comum, uma acção colectiva inovadora, uma rede cooperativa, uma estrutura de missão, uma institucionalidade dedicada, uma liderança muito marcada. De acordo com estes atributos, o actor-rede está dotado de uma inteli-

gência territorial útil para mobilizar os “conhecimentos tácitos” do território--rede, o que só por si já é uma tarefa de grande monta, mas, sobretudo, está obrigado a criar “ficções de consenso”, como se fosse o actor principal de uma representação ficcional, de uma espécie de encenação territorial. Esta inteligência territorial manifesta-se, sobretudo, na forma como a criação de “um espaço comum particular”, como espaço de produção de bens de mérito e reputação, pode ser convertida no palco de “um novo espaço público” como espaço de consumo, recreação e lazer. Onde antes só havia um espaço comum mas privado passaria a haver, agora, também, um espaço público de visitação e conhecimento, ou seja, um verdadeiro território cognitivo. Se quisermos, adoptando um outro registo, estamos a falar do actor-rede como um actor pós-moderno da multiterritorialidade cuja função principal é, jus-tamente, a construção social dos futuros territórios-rede.

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9. A construção social de um território-rede para a Dieta Mediterrânica

Neste capítulo vamos abordar três tópicos principais, a propósito de uma nova realidade que se anuncia e que, por isso mesmo, precisa de ser urgentemente enunciada. Falamos da Dieta Mediterrânica, recentemente pro-clamada, património imaterial da humanidade pela UNESCO, uma candida-tura transnacional de sete países liderada pela cidade algarvia de Tavira. A aprovação recente desta candidatura em Dezembro de 2013 é uma excelente ocasião para provar a pertinência da construção social de um território-rede que seja a retaguarda e o suporte territorial desta prestigiada apelação inter-nacional e que funcione como um laboratório de ensaio de muitas especifi-cações contidas nesta denominação territorial.

No primeiro tópico passamos em revista uma experiência recente de microgeoeconomia territorial, a saber, o Projecto Querença e algumas das suas réplicas recentes levadas à prática em vários pontos do país, para dela extrair alguns ensinamentos úteis à construção social dos territórios-rede. No segundo tópico discutimos a relevância da apelação UNESCO como distin-ção de prestígio de um território em concreto e o alcance das obrigações que daí decorrem, para perceber, afinal, se há suficiente embeddedeness e se, a partir dele, podemos construir um território-rede com origem numa “declara-ção de património imaterial da humanidade”. No terceiro tópico procurare-mos ensaiar aquilo que, em primeira instância, será a delimitação de um ter-ritório experimental para testar a Dieta Mediterrânica na região do Algarve e as implicações que tal ensaio terá para a “ordem local” da região abrangida.

9.1. A microgeoeconomia territorial, o Projecto Querença e as suas réplicas.

O Projecto Querença (2011-2012) foi um projecto de microgeoecono-mia territorial, uma experiência-piloto de animação e intervenção socioco-munitária, focada numa aldeia em concreto, que usou uma metodologia adaptada de investigação-acção para impulsionar e despertar a inteligência territorial de um espaço rural em concreto, a saber, uma aldeia localizada no denominado barrocal algarvio e no sopé da serra algarvia. Querença é uma aldeia do concelho de Loulé em acelerado processo de envelhecimento, situada na meia-serra algarvia, mas, não obstante, muito próxima da sede do concelho e muito próximo, igualmente, dos maiores centros turísticos do Algarve situados no concelho, como são Vale do Lobo, Quinta do Lago e Vilamoura. Apesar do envelhecimento e da entropia geral de que padece a

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freguesia de Querença, não podemos dizer que se trata de um território remoto ou de uma economia enquistada ou de enclave.

No plano teórico, o Projecto Querença é uma abordagem à microgeoe-conomia de um território, uma missão de resgate de um território em risco em áreas rurais de baixa densidade, dirigido a uma aldeia ou grupo de aldeias ou mesmo de municípios. O Projecto visa promover o empreendedorismo de jovens licenciados em situação profissional precária e, para o efeito, cria uma estrutura de missão residente e uma institucionalidade dedicada. A estrutura de missão residente e a administração dedicada configuram, em conjunto, uma pequena incubadora em meio rural ao redor da qual se desen-volverá toda a dinâmica de grupo e de onde germinará o capital social de que o projecto necessita.

A experiência do Projecto Querença decorreu durante nove meses entre 2011 e 2012 e contou com um apoio financeiro do IEFP, sob a forma de uma bolsa de estágio para os membros estagiários do grupo de missão residente. Entretanto, devido ao interesse que despertou, o Projecto Querença teve várias réplicas no território português: em Geraz do Lima (4 freguesias no concelho de Viana do Castelo), as Aldeias Ribeirinhas do Alqueva (5 fre-guesias em redor da albufeira do Alqueva), o Projecto Alcoutim (no conce-lho de Alcoutim), o Projecto Sabrosa (no concelho de Sabrosa), o Projecto Barril (no concelho de Tavira), o Projecto Ourique Mais (no concelho de Ourique), o Projecto Vipasca21 (no concelho de Aljustrel). Outras iniciativas estão agora em fase de pré-projecto.

1) A apresentação geral do Projecto Querença

O Projecto Querença é um projecto/missão de resgate territorial de ter-ritórios em estado crítico, gravemente atingidos por processos de desertifica-ção e abandono dos seus activos (naturais, produtivos, sociais e simbólicos), cada vez mais próximos de limiares-limite de irreversibilidade de processos de desenvolvimento.

O Projecto Querença está orientado para as áreas rurais de baixa densi-dade, sejam aldeias, grupos de aldeias ou mesmo de municípios, de geome-tria variável e de acordo com uma análise de pertinência dos recursos exis-tentes, disponíveis e potenciais.

O Projecto Querença tem um propósito fundamental, qual seja, o de alargar o campo de possibilidades desses territórios em estado crítico e, ao mesmo tempo, promover o empreendedorismo de jovens licenciados em situação profissional precária, usando, para o efeito, uma abordagem territo-rial inovadora que visa fixar no interior dos municípios aquela população universitária recém-licenciada.

António Covas e Maria das Mercês Covas 187

O Projecto Querença foi constituído a partir do contributo de três promo-tores principais: a Câmara Municipal de Loulé, a Universidade do Algarve e a Fundação Manuel Viegas Guerreiro de Querença, com sede nesta freguesia, que se constituiu em promotora directa do projecto. Através de um protocolo as três entidades partilharam entre si as respectivas responsabilidades.

O Projecto Querença dividiu-se em três fases. A fase de pré-projecto, com a duração de 9 meses, é o período de avaliação ex-ante e visa a prepara-ção de todas as tarefas preliminares do projecto. A fase de projecto, com a duração de 9 meses, correspondeu ao período de intervenção territorial pro-priamente dito, para o qual foi constituída uma equipa ou grupo de missão com o objectivo expresso de desenhar um projecto de empreendedorismo para a aldeia, grupo de aldeias ou município, de acordo com as característi-cas do território que foi delimitado na fase de pré-projecto. A fase de pós--projecto, com uma duração 6 meses, visou dar continuidade e consolidar o projecto e, ao mesmo tempo, fazer a avaliação ex-post do projecto.

O Projecto Querença, para formar o seu grupo de missão, deu preferên-cia, em primeira prioridade, a jovens licenciados e/ou pós-graduados com pou-ca ou nenhuma experiência profissional, oriundos do concelho em questão ou de concelhos vizinhos, recrutados através de um processo de selecção levado a efeito pela entidade promotora do projecto. Os jovens licenciados e/ou pós--graduados foram recrutados de acordo com as necessidades de intervenção do território em causa, cobrindo diversas formações e áreas do conhecimento complementares. Como elemento de selecção refere-se que os candidatos fica-ram obrigados ao critério de permanecer na aldeia durante um período de nove meses, a mesma duração do estágio profissional apoiado pelo IEFP.

O Projecto Querença criou uma institucionalidade dedicada ao projec-to: os promotores constituíram, para além da comissão coordenadora, uma comissão local e uma comissão técnica de acompanhamento para seguir de perto o grupo de missão; a ligação à aldeia faz-se através de um Fórum Aldeia sendo ainda constituídos grupos de apoio ao projecto aqui designados por clubes.

O Projecto Querença teve por objecto três tipos de acções ou projectos: projectos de interacção social, de animação simbólica e projectos empresa-riais propriamente ditos; trata-se, por esta ordem, de confirmar a aceitação social do projecto por parte da população, de reabilitar o espírito sociocomu-nitário na aldeia, de tornar sustentável um pequeno grupo empresarial local.

2) A filosofia de intervenção do Projecto Querença

O Projecto Querença tem um lema geral, “da teoria à acção, aprender a empreender”. Trata-se de uma acção-piloto de problem-solving, investiga-

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ção-acção e dinâmica de grupo. No plano mais programático, o Projecto Querença tem uma doutrina de intervenção própria que pode ser descrita do seguinte modo:

1) Onde não existe normalidade territorial, terá de haver excepcionalidade territorial: o resgate territorial;

2) Onde não há um projecto municipal mobilizador, terá de haver uma acção colectiva inovadora: um grupo de missão;

3) Onde não há capital institucional, terá de haver uma “institucionalidade dedicada”: uma governança específica;

4) Onde não há capital social, terá de haver importação de capital social: jovens licenciados em situação precária;

5) Onde não há stock, terá de haver fluxo: uma economia de redes e de visitação;

6) Onde não há actividade económica continuada, terá de haver actividade económica descontinuada: uma economia de eventos com forte reticu-lação;

7) Onde não há aglomeração, terá de se criar um efeito de aglomeração: uma economia de colar de pérolas;

8) Onde não há actores colectivos, terá de se reinventar a acção colectiva: uma sociologia dos actores-rede e dos clubes do território;

9) Onde não há financiamento convencional, terá de haver um financia-mento não convencional: uma engenharia de microfinanciamento e de parceria;

10) Onde não há uma imagem real, terá de haver uma imagem virtual: um imaginário próprio e uma imagem de marca.

3) A microgeoeconomia do Método Querença

O Projecto de Querença, de acordo com a filosofia e a doutrina anterio-res, segue um método particular de intervenção territorial em três fases. A operacionalização destas fases apresenta diversos pontos críticos que são cruciais para o desenrolar do projecto.

A fase de pré-projecto (6 a 9 meses):

– Os contactos preliminares e a formação de uma equipa de trabalho; – A prospecção e delimitação do território; – A avaliação do estado dos recursos (recursos, anti-recursos, contra-

-recursos); – A definição de linhas de orientação estratégica, metodológica e opera-

cional; – A selecção dos alunos-estagiários candidatos;

António Covas e Maria das Mercês Covas 189

– A logística e o acolhimento dos estagiários e do grupo de trabalho na aldeia;

– A selecção de um pivot, coordenador-executivo para gerir o projecto in situ.

A fase de projecto propriamente dita (9 meses):

1.º trimestre:

– A instalação do grupo de missão e a divisão do trabalho intra-grupo; – As acções de interacção social e simbólica com a população; – O primeiro esboço de actividades, produtos e serviços no território; – A escolha de actores-rede (embaixadores) e a formação de clubes de

suporte;

2.º trimestre:

– O desenho final da linha de actividades, produtos e serviços do terri-tório;

– A formação de redes comerciais dedicadas e primeiros testes de mercado; – O desenho dos planos de negócio empresarial; – A consagração de uma linha de projectos de interacção social e simbólica.

3.º trimestre:

– A consolidação dos planos de negócio; – O plano de marketing do território e a estratégia comunicacional; – O formato empresarial e a engenharia financeira do projecto; – O planeamento de uma candidatura aos sistemas de incentivos em vigor.

A fase de pós-projecto (3 a 6 meses):

– A consolidação da candidatura; – A consolidação do projecto empresarial; – A consolidação da engenharia financeira; – A consolidação de parcerias e acordos de cooperação empresarial; – A consolidação do Projecto Global de Querença nas suas três vertentes

(social, simbólica e empresarial).

4) Os pontos críticos do Projecto Querença

A experiência do Projecto Querença suscitou uma tal curiosidade que ultrapassou todas as expectativas dos promotores. A sua natureza profunda-mente inovadora tinha, porém, alguns pontos críticos que decorriam de duas ordens de razões: em primeiro lugar, o tempo era muito escasso para levar a cabo todas as iniciativas, em segundo lugar, as ideias de projecto foram em tão grande número que criaram alguma saturação ao desenrolar do próprio

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projecto. O decálogo que se segue é um mapa dos pontos críticos do Projecto Querença.

– A escolha de um “território crítico ou pertinente”

Na fase de pré-projecto este é o primeiro ponto crítico. Aqui tratamos

com problemas de escala, de limiares críticos de recursos, de jurisdição terri-torial e conflitos de interesses. Os três promotores do projecto (universidade ou politécnico, câmara municipal e associação de desenvolvimento ou fun-dação) devem tomar uma “decisão política” sobre o assunto depois de terem ponderado convenientemente os prós e contras que decorrem de uma avalia-ção ex-ante do estado dos recursos e do seu potencial de desenvolvimento. O território pertinente será sempre de geometria variável em função da quanti-dade, qualidade, potencialidade e disponibilidade dos seus activos e pode ser uma aldeia, um conjunto de aldeias, um município ou uma associação de municípios. Neste particular, a aldeia de Querença, devido aos seus exíguos recursos, foi desde o início um exercício de alto risco de que todos estavam conscientes.

– A formação de uma equipa de trabalho e a selecção do pivot do projecto

Este é o segundo ponto crítico. Aqui tratamos da formação de uma

equipa de coordenação técnica com representantes das três entidades promo-toras e, sobretudo, com a selecção de um pivot operacional para o projecto, em permanência no terreno, e com a função de dirigir, no dia a dia, todos os aspectos operacionais de desenvolvimento do projecto. Este gestor operacio-nal do projecto deverá ser um técnico sénior, conhecedor profundo do terri-tório em questão, destacado especialmente por um dos promotores para o projecto ou, em alternativa, escolhido fora destas entidades que deverão, para o efeito, encontrar uma forma de remuneração adequada à função a desempenhar durante os nove meses do projecto. Esta equipa deverá estar constituída, ainda que informalmente, logo na fase de pré-projecto e ter con-tinuidade formal na fase de projecto propriamente dita. Neste particular, o Projecto Querença foi bem-sucedido pois contou desde o início com um excelente coordenador-executivo, conhecedor profundo da sub-região onde nos encontrávamos.

– A selecção dos estagiários e a formação do Grupo de Missão Residente

Este é o terceiro ponto crítico ainda na fase de pré-projecto. A preferên-

cia, que não a exclusividade, recaiu sobre jovens alunos licenciados ou pós--graduados, em busca de uma saída profissional, residentes no concelho ou

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concelhos vizinhos. A diversidade dos alunos e das suas formações académi-cas depende em linha directa do estado dos recursos e activos que desejamos reabilitar e desenvolver. O objectivo essencial é formar, com os alunos--estagiários, um Grupo de Missão Residente que se constitui, ele próprio, numa espécie de incubadora local, um laboratório de ideias e projectos onde crescerão as microempresas a desenvolver. Neste sentido, a escolha dos alu-nos-estagiários terá de ser muito criteriosa não apenas em termos curricula-res mas, sobretudo, em termos de traços de carácter e personalidade, uma vez que se deseja constituir uma equipa para funcionar durante nove meses em ambiente adverso e, por vezes, mesmo, hostil. No caso do Projecto Queren-ça, o grupo tinha uma formação homogénea de valor individual equivalente e bem sintonizada com o espírito do Projecto.

– A mobilização social da população da aldeia ou aldeias

Este é o quarto ponto crítico do projecto, a aceitação social do projecto

por parte da população. Neste particular é decisivo o envolvimento da câmara municipal e muito em especial da junta de freguesia respectiva e, bem assim, da associação de desenvolvimento local presente no concelho. O presidente da junta de freguesia é uma figura central em toda esta mobilização, conjuntamen-te com outros agentes locais que têm a faculdade de serem uma espécie de actores-rede. Para o efeito, uma atenção especial terá de ser dedicada, logo no 1.º trimestre da fase de projecto, aos projectos de interacção social e simbólica que visam, justamente, a motivação e a mobilização da população. Para este efeito, pode, também, pensar-se na constituição de um Fórum Aldeia. No caso do Projecto Querença, a participação empenhada do presidente da Junta de Freguesia foi, desde o início, um activo precioso para facilitar a compreensão e a mobilização da população e o mesmo se diga da Fundação Viegas Guerreiro cuja direcção sempre esteve muito próxima da população.

– A incubadora local de ideias e projectos

Este é, porventura, o ponto crítico mais decisivo de todo o projecto.

Trata-se de criar uma linha de actividades, produtos e serviços, de preferên-cia com indicação de origem, que acrescentem identidade e que a partir de um ponto de irradiação no território possam projectar-se para fora desse ter-ritório por via de redes dedicadas de qualidade elevada. Para o efeito, as ligações à universidade/politécnico, em particular, às escolas superiores agrárias, são um elemento decisivo, sobretudo aos laboratórios e centros de investigação onde podem ser realizados testes de verosimilhança e consis-tência dos novos produtos e serviços. No caso do Projecto Querença esta

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ligação aos laboratórios da Universidade do Algarve foi conseguida mas o tempo atribuído ao projecto era manifestamente insuficiente.

– A necessidade de criar uma economia de redes no território

Este é, igualmente, um ponto crítico de todo o projecto, pois estamos a

lidar com territórios de baixa densidade, muito envelhecidos e em perda ace-lerada do seu capital social. Onde não há stock terá de haver fluxo. Por isso, é absolutamente necessário recriar uma economia de redes e fluxos que deverá contemplar, em função de cada território concreto e em combinações diversas, os seguintes factores ou variáveis: os campos de aventura, de férias ou de trabalho, uma linha de serviços de ecoturismo, uma linha de eventos sazonais ligados às festividades tradicionais, a organização da visitação pedagógica (escolas) e da visitação sénior (lares), a atribuição de funções imaginativas/representativas a actores-rede, aos clubes de suporte e às tertú-lias locais, a organização de redes de itinerários histórico-turísticos, a orga-nização de serviços ambulatórios locais e multi-locais ao serviço das popula-ções, um marketing territorial e simbólico imaginativo ligado aos sítios da Reserva 2000 e ao serviço de visitantes virtuais convertidos mais tarde em visitantes reais, por via, por exemplo, de uma associação inteligente entre natureza, gastronomia e lazer. Esta pequena economia de rede e fluxos assim concebida deverá provocar um pequeno efeito de aglomeração local e estará na origem de novos projectos se seguir de perto a lógica do “colar de péro-las”, uma metodologia de reticulação e integração de micro e nano-projectos locais. No caso do Projecto Querença esta economia de rede continua em construção na 2.ª fase do Projecto pois envolve custos de transacção muito elevados que não estão ao alcance de uma organização tão modesta como aquela que foi montada pelo Projecto.

– Os planos de negócio e a estratégia de marketing e comunicação

Este é mais um ponto crítico fundamental, uma vez que todos ou quase

todos os projectos deverão passar por uma análise custo-benefício e demons-trar a sua viabilidade económica e comercial. Dado que estamos a laborar a uma microescala, a integração dos planos de negócio e a coordenação da estratégia de marketing e comunicação são tópicos essenciais para o projecto ser bem-sucedido. Estamos a falar, em especial, de micro-lotes de produção agrícola, de transformações simples mas inovadoras, de circuitos curtos e redes comerciais dedicadas, de pequenos clubes de consumidores leais, de estratégias de institutional food com as IPSS, enfim, de uma estratégia de marketing e comunicação que exige muita persuasão e algum músculo finan-

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ceiro em redor de pequenas cadeias de valor que associem natureza, gastro-nomia, lazer e cultura como uma cadeia de valor completa. O Projecto Que-rença cumpriu bem este objectivo se pensarmos nas inúmeras iniciativas rea-lizadas e no espaço de tempo disponível.

– A governança local do projecto

A governança local do projecto varia com o contexto e a diversidade

dos actores presentes no território. A nossa sugestão para a governança do projecto foi a seguinte: uma Comissão Coordenadora com elementos das entidades promotoras, uma Comissão Técnica e Científica com elementos da universidade e/ou politécnico, uma Comissão Local de Apoio composta pela junta de freguesia e alguns actores-locais, um Fórum Aldeia com todos os “homens bons” da freguesia. A este conjunto acrescenta-se um segundo cír-culo com actores-rede, os clubes de amigos e os filhos da terra, as redes sociais e os amigos virtuais, os mecenas e os patrocinadores do projecto. O Projecto Querença foi beneficiado neste particular tendo em conta o conhecimento mútuo dos parceiros e o papel-chave do coordenador-execu-tivo na mobilização desse conhecimento.

– O financiamento do projecto

No que diz respeito ao financiamento, os custos de funcionamento são

assegurados pelas entidades promotoras. O IEFP assegura o pagamento das bolsas de estágio dos alunos conjuntamente com a Câmara Municipal. A Universidade/Politécnico disponibiliza os seus laboratórios para ensaios e análises de produtos. O financiamento das actividades em concreto deve ser procurado junto de mecenas e patrocinadores, grupos de amigos da terra, a que se acrescenta a organização de trabalho voluntário e comunitário com os habitantes da aldeia mas, também, com os alunos da universidade/politécni-co e os campos de férias e trabalho. Outras fórmulas de financiamento podem envolver o crowdfunding, o microcrédito, as redes sociais, etc. No caso do Projecto Querença, foram assegurados os recursos mínimos para o projecto funcionar mas a exiguidade dos recursos funcionou sempre como uma restrição para levar a cabo ideias mais ambiciosa que o Projecto tinha em carteira. Na 2.ª fase o Projecto procurará recuperar algumas das iniciati-vas que ficaram pendentes.

– O formato do projecto de empreendedorismo local

O formato do projecto de empreendedorismo local será discutido e defi-

nido ao longo da fase de nove meses e pode assumir várias opções em fun-

194 Os territórios-rede

ção da natureza das actividades, produtos e serviços seleccionados, por exemplo: um agrupamento complementar de microempresas unipessoais, uma cooperativa de produção e serviços, uma associação de desenvolvimen-to local, um condomínio rural sob a forma de uma sociedade por quotas, por exemplo etc. O Projecto Querença teve a sua sequência numa empresa pri-vada que assumiu a transição e a 2.ª fase do projecto.

5) O modelo de empreendedorismo implícito na metodologia do Projecto

No plano da sua filosofia geral, o Projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo e à empresarialização de actividades económicas, sociais e culturais que inovem e acrescentem valor aos recursos e actividades já existentes. Vejamos o modelo de empreendedorismo que está implícito no Projecto Querença:

– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo social, desde a 1.ª idade à 4ª idade; queremos ter, em cada território seleccionado, um caso exemplar de empreendedorismo social (educação infantil, envelhecimento activo, voluntariado social, saúde pública e gerontologia social, grupos com deficiência, por exemplo) que possa ser cotado na Bolsa de Valores Sociais (BVS);

– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo cultural, em especial à gestão integrada do património material e imate-rial; queremos ter em cada território um caso exemplar de empreende-dorismo cultural, por exemplo, a gestão de uma plataforma criativa e cultural que faça, não apenas, a administração integrada de equipamen-tos culturais mas, também, a reaproximação criativa dos artistas e arte-sãos do território, por via, por exemplo, da criação de residências cria-tivas a partir de habitações devolutas;

– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo ecológico e ambiental, em especial nas actividades ligadas aos 3R (redu-zir, reciclar e reutilizar), por exemplo no que diz respeito à concepção e produção de uma linha de produtos de ecodesign e merchandising a partir de resíduos de diversa proveniência; queremos ter uma experiência ino-vadora e iniciar um empreendimento nesta área de negócio;

– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo turístico, nas diversas formas e formatos de turismo em espaço rural (TER), em especial no ecoturismo; queremos ter em cada território um

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empreendimento exemplar na área do ecoturismo e turismo de natureza, vocacionado, por exemplo, para os grupos mais vulneráveis e mobili-dade reduzida;

– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo agro-alimentar, pela criação de um sistema alimentar local (SAL) que a biotecnologia e a engenharia alimentar nos podem proporcionar; que-remos, em cada território, criar uma nova cadeia de valor e uma empre-sa que conceba e produza uma nova linha de produtos que aumente e renove a identidade e a coesão dos territórios;

– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo eco-energético e à gestão integrada de diferentes formas e fontes de energia renovável, por exemplo, através da promoção da construção sustentável (a utilização dos materiais locais), das técnicas de biore-gulação climática e das redes integradas de microgeração; queremos ter uma experiência inovadora e um empreendimento nesta área de negócio;

– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada às artes da paisagem, desde a arte efémera às paisagens literárias, desde a engenharia biofísica à arquitectura da paisagem; em cada território deve ser testada uma experiência inovadora de gestão de unidades de paisagem e a sua empresarialização;

– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada às artes da culinária e da gastronomia, em estreita articulação com as escolas de hotelaria e turismo, com os mestres cozinheiros e a população local; em cada terri-tório deve ser testada uma experiência inovadora que associe natureza, gastronomia e inovação alimentar e a sua empresarialização;

– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada às artes de recreio, desporto e lazer, desde os campos de férias e aventura até ao carava-nismo e campismo; em cada território deve ser criado um empreendi-mento exemplar que associe os aspectos pedagógicos, terapêuticos, recreativos e desportivos;

– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada às artes da comunica-ção e cultura, através, por exemplo, de uma empresa de gestão de even-tos criativos e culturais cujo objectivo é criar visitação regular no terri-tório respectivo;

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A experiência do Projecto Querença é uma forma, entre outras, de pro-vocar a animação e a multifuncionalidade de um território e de nele introdu-zir uma dinâmica de “multiplicador virtuoso” para as áreas rurais de baixa densidade. O Projecto foi um sucesso em termos de “ensaio de animação e metodologia de investigação-acção”, mas o universo-aldeia não poderia resistir nem responder, como era óbvio, a tanta expectativa criada com recur-sos tão exíguos. Tratou-se de um projecto de microgeoeconomia territorial, limitado no tempo e no espaço, que pode, no entanto, pelas suas característi-cas metodológicas e com as devidas adaptações, ser transposto para o uni-verso de um território-rede com mais escala, massa, músculo e intensidade rede. O Projecto “aconteceu” em Querença mas era evidente, desde o início, que a experiência pedagógica e profissional adquirida pelos estagiários de Querença os levaria para outros projectos e para outras experiências. Seja como for, os nove estagiários do projecto estão hoje todos ocupados profis-sionalmente e todos continuam ligados, directa ou indirectamente, à segunda fase do Projecto. Entretanto, o Projecto Querença foi replicado em sete (7) locais, três dessas experiências terminaram em 2013 e quatro estão ainda em funcionamento. Outros projectos estão agora a ensaiar os primeiros passos.

6) As réplicas do projecto: uma avaliação muito preliminar

A título preliminar e exploratório podemos realizar uma primeira avalia-ção aos oito projectos já realizados ou ainda em curso, a partir de uma série de variáveis-explicativas construídas para o efeito e concebidas propositadamente para fazer realçar a sua natureza cognitiva e reflexiva. A Tabela n.º 7 resume as variáveis-explicativas utilizadas e as suas dimensões respectivas.

É ainda cedo para uma leitura definitiva dos projectos já terminados e

ainda em curso. Todavia, pelo nosso conhecimento directo do pretexto e do contexto em que foram criados, podemos retirar algumas conclusões muito preliminares sobre alguns factores de ordem geral que estão presentes em todos eles:

– A microescala apresenta limitações óbvias em termos de recursos e de actores, a intervenção fica contida nestes limites; o tempo é também uma variável-limite, a materialização das acções fica, igualmente, con-tida neste limite;

– Fica provado, porém, que apesar das restrições espaço-tempo-recursos, uma pequena estrutura low cost e uma boa equipa podem realizar pequenos milagres de mobilização e animação territoriais;

António Covas e Maria das Mercês Covas 197

Tabela n.º 7 – Quadro interpretativo do Projecto Querença e suas réplicas

Variáveis-explicativas As dimensões das variáveis

1. A dedicação dos parceiros

2. A qualidade da equipa técnica

3. A qualidade do pivot coordenador

4. O grupo de missão residente

5. O território pertinente

6. A duração do projecto

7. O capital social do projecto

8. O capital natural do projecto

9. O capital produtivo do projecto

10. O capital simbólico do projecto

11. As missões atribuídas

12. A dinâmica intra-grupo residente

13. A incubação das ideias de projecto

14. O efeito “colar de pérolas”

15. O choque da realidade

16. Os anti e os contra-recursos

17. O processo “coopetitivo”

18. A gestão das expectativas

19. O “sucesso” do projecto

20. Uma nova acção colectiva

21. Um novo espaço público

22. O valor cognitivo do projecto

23. O valor sentimental do projecto

24. O valor replicativo do projecto

25. O risco de empreender

1. Maior ou menor empenhamento

2. Maior ou menor competência/permanência

3. Maior ou menor competência/permanência

4. Maior ou menor qualidade dos estagiários

5. Maior ou menor escala e recursos

6. Mais curto ou mais longo, uma restrição

7. Valor, disponibilidade e mobilidade

8. O estado dos recursos e sua mobilização

9. Estrutura e dinâmica socio-empresarial

10. Identidade e património imaterial

11. Melhor ou pior afectação das missões

12. Líderes, grupos, conflitos, arbitragem

13. A maior/menor fusão de conhecimentos

14. O processo criativo de gerar ideias novas

15. A realidade resiste ao nosso entusiasmo

16. O projecto liberta “recursos ocultos”

17. Cooperação e competição andam juntas

18. Saber gerir entusiasmo e desilusão

19. O sucesso é sempre relativo e transitivo

20. Uma construção social com os actores

21. Uma construção social com os actores

22. Uma processo de aprendizagem criativo

23. Uma experiência para memória futura

24. Os contextos e os pretextos da replicação

25. Ser maduro, responsável e conhecer

Fonte: Elaboração própria.

198 Os territórios-rede

– Fica provado que a experiência de vida adquirida por estes jovens esta-giários sem experiência profissional, residindo durante nove meses em contacto directo com as populações e os seus problemas, é o acquis mais importante destes projectos, independentemente dos resultados obtidos;

– Fica, ainda, provado que esta experiência de microgeoeconomia territo-rial apresenta um elevado valor cognitivo e que a aprendizagem assim adquirida pode ser transposta, com as devidas cautelas, para uma escala multi-escalar, por exemplo, na construção social de territórios-rede de âmbito geográfico e multiterritorial muito variável.

9.2. Dieta Mediterrânica, uma apelação territorial de prestígio

A Dieta Mediterrânica é uma construção social e cultural milenar. Des-de sempre, o homem mediterrânico necessitou de todo o seu engenho e arte para lidar contra a escassez de água e alimentos. É deste relacionamento intenso e através desta aprendizagem constante que se vão modelar os hábi-tos alimentares dos diferentes povos desta região. O património da dieta mediterrânica é, assim, o conjunto de práticas, conhecimentos e competên-cias associado à produção, confecção e consumo alimentar das populações do sul, assim como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que as comunidades reconhecem como parte do seu património sociocultu-ral. A dieta mediterrânica é, portanto, uma cultura alimentar adaptada á escassez, é um modo de produção e conservação de alimentos ajustado a uma natureza hostil, é, finalmente, um modo de viver a vida, pela sua convi-vialidade e especial sociabilidade.

A Convenção da UNESCO sobre património cultural imaterial

No artigo 2.º da Convenção pode ler-se:

1. Entende-se por “património cultural imaterial” as práticas, representa-ções, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural. Esse património cultu-ral imaterial, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interacção com a natureza e da sua história, incutindo-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo, desse modo, para a promoção do respeito pela diversidade cultural e pela criatividade humana. Para os efeitos da pre-sente Convenção, tomar-se-á em consideração apenas o património cultural

António Covas e Maria das Mercês Covas 199

imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais existentes em matéria de direitos do homem, bem como com as exigências de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos.

2. O “património cultural imaterial”, tal como definido no número ante-rior, manifesta-se nomeadamente nos seguintes domínios:

a) Tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do patri-mónio cultural imaterial;

b) Artes do espectáculo;

c) Práticas sociais, rituais e eventos festivos;

d) Conhecimentos e práticas relacionados com a natureza e o universo;

e) Aptidões ligadas ao artesanato tradicional.

3. Entende-se por “salvaguarda” as medidas que visem assegurar a viabili-dade do património cultural imaterial, incluindo a identificação, docu-mentação, pesquisa, preservação, protecção, promoção, valorização, transmissão, essencialmente através da educação formal e não formal, bem como a revitalização dos diferentes aspectos desse património.

Estas disposições convencionais implicam a consideração das seguintes linhas de reflexão estruturada:

– Considerações históricas sobre as grandes mutações da sociedade medi-terrânica, em particular as mutações e os “desvios” no seu modelo ali-mentar;

– As consequências dessas mutações sobre o estado dos recursos naturais, a estrutura do capital natural e, em particular, da paisagem mediterrânica;

– A responsabilidade social dos agentes-actores principais das cadeias alimentares: produtores, distribuidores, consumidores;

– As necessidades sentidas em matéria de investigação, inovação e infor-mação e a respectiva estratégia organizacional para o efeito;

– As exigências em matéria de qualidade e segurança alimentar no quadro do comércio internacional das mercadorias agro-alimentares e, em par-ticular, a estratégia relativa ao comércio dos produtos de imitação da dieta mediterrânica;

– As políticas públicas de acompanhamento e promoção, sobretudo nas áreas da educação e do turismo;

– As exigências transmediterrânicas em matéria de cooperação interna-cional, para lá das medidas nacionais de salvaguarda do património imaterial e a interacção constante entre as autoridades nacionais e as instâncias da própria Convenção.

200 Os territórios-rede

Como se pode observar, as definições da Convenção reportam-se a um conceito de património imaterial que não se reduz a um mero acto conserva-cionista. Estamos a falar de um património imaterial que poderíamos desig-nar de comunitário ou comunitarista, um património do quotidiano e, como tal, um património dinâmico, criativo e em permanente mutação. Todavia, esta perspectiva abrangente do património imaterial levanta sérias questões científicas, técnicas, processuais e procedimentais que colocação grandes dificuldades ao trabalho de intermediação e cooperação da própria UNES-CO, em especial, a harmonização mínima necessária a uma base comum de inventariação e classificação dos bens e serviços culturais e patrimoniais.

A Convenção foi aprovada em 2003 e, nesta fase, não pode ainda afir-mar-se que a Dieta Mediterrânica seja um emblema da região do Mediterrâ-nico, dado que ela pertence mais à ordem dos desejos do que à ordem da rea-lidade dos factos. Pelo menos enquanto a noção de dieta mediterrânica se confundir ou reduzir, no plano do cidadão comum, a um modelo de consumo alimentar.

Um modelo de produção e consumo alimentar

De acordo com a decisão da UNESCO de Dezembro de 2013:

A dieta mediterrânica envolve uma série de competências, conhecimentos, rituais, símbolos e tradições ligadas às colheitas, à safra, à pesca, à pecuá-ria, à conservação, processamento, confecção e, em particular, à partilha, à convivialidade e ao consumo dos alimentos. Comer em conjunto é a base da identidade cultural e da sobrevivência das comunidades por toda a bacia do Mediterrâneo.

Numa entrevista de Samuel Silva a Pedro Graça, no Jornal Público, em 4/12/2014, Alimentação desequilibrada tem impacto negativo no rendimento escolar dos estudantes, (Graça, 2014), pode ler-se:

… Assim, não é de estranhar a referência constante à recolecção de produ-tos silvestres (os caracóis, moluscos, cogumelos), a tradição na recolha de produtos vegetais selvagens (beldroegas, espargos e agriões), o estatuto da caça, a existência de uma enorme tradição de pastoreio para fornecer a pro-teína animal e o recurso a alimentos sazonais frescos ou conservados que forneciam a energia necessária quando faltavam as outras fontes de energia (figos secos, amêndoas, grão, favas e outras leguminosas, alfarroba, bolo-tas, etc.)” (Graça, 4.12.2014).

… Esta constante adaptação à escassez está na origem de uma arte culinária muito rica que é, afinal, um desafio vegetariano à escassez de proteína animal.

António Covas e Maria das Mercês Covas 201

Devido às temperaturas elevadas, a arte culinária do mediterrâneo utiliza a cozedura com frequência nas sopas, ensopados, estufados, jardineiras e cal-deiradas. Outra forma de reduzir a contaminação dos frescos e das saladas é através da utilização frequente de substâncias ácidas como o vinagre, o limão ou a laranja amarga. Nas bebidas, o vinho, simples ou traçado, tem o equiva-lente no chá de hortelã ou de outras ervas aromáticas do sul da bacia mediter-rânica. Nas carnes e no pescado o sal é o conservante. Nas frutas é a presença do açúcar e do mel que funcionam como conservante” (Graça, 4.12.2014).

Os estudos demonstram que as populações que aderem a este tipo de padrão alimentar possuem, em média, um melhor estado de saúde, visível na redução da mortalidade por doença cardiovascular, doença oncológica e incidência de doença de Parkinson e Alzheimer. Contudo, também sabemos que este padrão alimentar foi muito alterado com a urbanização e industriali-zação, com a modificação do tecido sociodemográfico, com a entrada da mulher no mercado de trabalho e com a nova estrutura comercial agro--alimentar mais recente. Apesar destas profundas modificações alimentares e socioculturais, podemos afirmar que os traços distintivos da dieta mediterrâ-nica se mantêm: o consumo elevado de pescado, a preferência pelas gorduras vegetais, o consumo moderado de vinho, o hábito da sopa.

Estamos na região do Algarve, sede da candidatura à UNESCO através

da cidade de Tavira. Entretanto, o ano 2014 é considerado o Ano Internacio-nal da Agricultura Familiar. A associação íntima entre a promoção da Dieta Mediterrânica e o relançamento da agricultura familiar levanta-nos as seguintes interrogações:

Como é que a apelação “património imaterial da humanidade”, provenien-te de uma organização internacional como a UNESCO, pode aproveitar à agri-cultura familiar e promover as pequenas economias locais da região algarvia?

Como é que as especificações e o plano de salvaguarda desta certifica-ção internacional podem ajudar a modernizar e a promover a agricultura familiar e as pequenas economias da região do Algarve sem as segregar ou excluir?

Que estratégia regional e multilocal podemos desenhar para levar a cabo a “grande aliança” entre educação para a saúde alimentar, o desenvolvimento da agricultura familiar e das pequenas economias locais do interior e a pro-moção do património imaterial das suas culturas respectivas?

Como proceder, desde já, para evitar que a erosão do padrão alimentar da dieta mediterrânica se acentue, que uma apelação internacional de prestí-gio seja trocada, com ligeireza, por festivais de culinária mediterrânica, que as economias locais e a agricultura familiar sejam abandonadas à sua sorte e os pequenos aglomerados do interior desertificados, que as culturas locais

202 Os territórios-rede

sejam abastardadas ainda mais dando lugar ao mau gosto e ao kitch mediter-rânico para “turista ver”?

Que responsabilidade é a nossa, cidadãos algarvios, face a esta incum-bência de que fomos investidos tão solenemente? O que vamos fazer com os nossos recursos naturais do barrocal e serra, o que vamos dizer aos nossos jovens desempregados acerca do futuro que os aguarda, como vamos reagir aos lamentos das populações abandonadas do interior algarvio, que educação básica sobre saúde, alimentação e cultura queremos transmitir às nossas crianças do ensino primário, que visitação turística queremos, de facto, pro-mover nas nossas aldeias e no interior algarvio, que exigências vamos fazer às autoridades locais e regionais se não tivermos, nós próprios, comunidade política dos interesses públicos e do bem comum, assumido a responsabili-dade de o fazer por nossa conta e risco?

Dieta Mediterrânica, uma promessa de futuro

Para lá dos aspectos mais utilitários, produtivos e comerciais, a classifi-cação de património imaterial da humanidade é, antes de mais, uma promes-sa de futuro para uma região, o Algarve, se quisermos, um crédito por conta do que falta fazer na região se, para tanto, seguirmos o caderno de encargos e especificações que acompanha a classificação atribuída.

A Dieta Mediterrânica é, digamos, um conceito vertical, que atravessa a região em toda a sua extensão, do património imaterial como representação simbólica até ao património material como suporte da dieta mediterrânica. É preciso, pois, perceber que não se trata de duas realidades distintas, mas de duas faces da mesma realidade e que preservar o património imaterial equi-vale a conservar e desenvolver o património material.

Este registo e esta exigência são tanto mais importantes quanto sabemos que, em nome do progresso económico e social, se observam, com frequên-cia, ocorrências preocupantes: o poder de controlo sobre o capital natural nas mãos de poucos actores económicos, a reprodução do capital alargada a novos espaços sociais e físicos, uma maior padronização tecnológica e con-sequente empobrecimento biofísico do território. No final, a rápida velocidade de rotação do capital financeiro acaba por entrar em rota de colisão com os ritmos de regeneração própria dos sistemas biofísicos. É preciso que nos preo-cupemos mais com a temporalidade das tecnologias porque o planeta não está em condições de ser indefinidamente reconstituído pelas tecnologias.

A Dieta Mediterrânica, como promessa de futuro, é a expressão cultural

e simbólica de um equilíbrio delicado entre a natureza e a actividade huma-na, que o tempo porfiou e o homem confiou. No cerne da questão, em nome

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do progresso e da tecnologia, teremos a disseminação de monoculturas, a monotonia biofísica e a redução da diversidade social, as diversas facetas do mesmo problema. A cada velocidade a sua cultura. Ora, a Dieta Mediterrâni-ca precisa, com alguma urgência, de um plano de preservação que a proteja dos “riscos morais” de curto prazo, pois há sempre alguém disposta a sacrifi-cá-la no altar da hipervelocidade e do consumo indiscriminado.

O que é relevante é que nesta política da velocidade (Virilio, 1977) o homem e a natureza estão juntos na mesma luta porque correm o risco de serem, ambos, produzidos, isto é, correm o risco de ser o produto e o fruto de uma biopolítica. A intermediação é feita pela tecnologia que é uma forma de relação do capital com as pessoas, a natureza e o território. A tecnologia é uma relação de poder que configura as sociabilidades e a produção biopolíti-ca, isto é, a produção do sujeito e da natureza. Assim, o uso das biotecnolo-gias e das nanotecnologias determina as relações de sociabilidade e a nature-za da produção biopolítica, bem como a relação de poder face à natureza.

A manipulação genética, por exemplo, faz parte desta política da velo-cidade e é uma boa ilustração desta produção biopolítica. Isto quer dizer que, por intermédio de tecnologias, fármacos e alimentos, podem ser defini-dos novos padrões de agrupamento social e estilos de vida. Na retórica do poder biopolítico, biotec e nanotec podem simbolizar objectividade, certeza e verdade científica. As inovações biotec e nanotec podem determinar o rit-mo da vida, a indústria da vida e o mercado da saúde e dos alimentos. A vida passa a ser produzida, deixa de ser simples reprodução para passar a ser um “projecto de ser vivo”.

A dieta mediterrânica tem aqui o seu maior desafio. Depois da bio-política do século XX – limpeza, higiene, rastreabilidade e certificação - a engenharia genética e a biotecnologia molecular, as terapias genéticas mas, também, os alimentos nutriceuticos, a bioética e os novos códigos da vida, adquirem uma condição política elevada. Ao mesmo tempo, a natureza é um imenso campo de possibilidades de manipulação à nossa disposição. O mundo natural e biológico torna-se, portanto, um universo cultural, isto é, pode ser produzido.

A grande aliança do futuro ou, se quisermos, o grande risco global do

futuro para uma cultura social e cultural milenar como é a dieta mediterrânica, é esta ligação perigosa entre biopoder e biopolítica. Cuidado, pois, com a diversidade de biologias de acordo com diferentes programas de investigação, cuidado, pois, com a domesticação de plantas e animais, cuidado, pois, com a fabricação da vida por via de alimentos, fármacos e intervenções diversas.

204 Os territórios-rede

Esta “grande aliança” entre biopolítica e biopoder é a grande oportuni-dade do capitalismo dos dias de hoje, tendo em vista que a expansão do capi-talismo, por causa da globalização e por falta de exterior, é hoje mais inten-sivo do que extensivo. O capitalismo financeiro tornou-se especulador e já não há praticamente santuários ou regiões sagradas. Tudo é transformado em capital, em activos, a começar no ambiente e a terminar na vida humana. Tudo deve trocado, comprado e vendido em nome do “bezerro de oiro” do capitalismo financeiro.

Neste contexto, qual é o lugar da dieta mediterrânica? Uma presa fácil da política de velocidade e das tecnologias de substituição, um local de refú-gio para os mais avisados ou um estilo de vida e um padrão alimentar geral-mente aceites pela população? Escapará a dieta mediterrânica à política de normalização do capitalismo actual que visa transformar-nos a todos numa espécie de “proletários do sistema capitalista em modo monocultura? O capi-talismo está obrigado a criar permanentemente novas oportunidades de negócio e a capitalizar constantemente. A dieta mediterrânica pode emergir como mais uma oportunidade de negócio interessante.

Neste contexto de luta pela sobrevivência, a dieta mediterrânica pode já estar, sem o saber, em rota de colisão com o capitalismo regional e interna-cional. Ela é uma espécie de contra-racionalidade, uma intrusa, em luta mui-to desigual contra o “regime estabelecido” que, entretanto, aproveita para fazer o elogio público de “uma nova promessa” de desenvolvimento regio-nal. A atribuição desta apelação internacional pela UNESCO é um desafio interessante para a “sociologia política local” e, nesse sentido, ninguém aprovaria que a dieta mediterrânica fosse conhecida como a história de uma captura e de uma enorme dissimulação, por mais sucesso e brilhantismo de que a operação fosse coroada. Resta, então, a possibilidade que todos aguar-dam, a saber, a dieta mediterrânica como o exemplo eloquente de uma pro-dução social de qualidade, que melhora o bem-estar material das populações locais e valoriza o património material em que assenta, justificando, dessa forma, a apelação internacional que lhe foi concedida.

A Dieta Mediterrânica e a produção social de qualidade

Se a dieta mediterrânica, pelo valor potencial que encerra, é uma pro-messa de futuro, então a nossa pergunta de partida é a seguinte: como fazer a conversão de uma “expectativa positiva”, a Dieta Mediterrânica, num pro-cesso participativo de sucesso e numa produção social de qualidade e como operar essa conversão através de uma cadeia de valor que liga um patrimó-nio imaterial da Humanidade a um património material regional, de tal modo que pode transformar de forma significativa a estrutura económica, social e empresarial de uma comunidade ou região?

António Covas e Maria das Mercês Covas 205

Sabemos que a produção de qualidade não existe em abstracto e duas abordagens são possíveis. Na primeira, o mercado “sabe” melhor do que ninguém o que o cliente precisa. Mercado e cliente, duas noções abstractas ao serviço de uma “ideologia da qualidade”. Na segunda, a qualidade é um atributo que pode ser negociado por sucessivas "convenções ou regras de procedimento", desde a produção até o consumo e num processo interactivo e negocial em que estão implicados diversos actores com estratégias diferen-tes. O que se pretende é que a qualidade passe a ser o resultado de um con-senso social e de um processo de aprendizagem com implicações políticas e organizacionais, no sentido em que existem e são reconhecidos diversos modos alternativos de “produzir socialmente qualidade”.

Sabemos que a economia de mercado, ela própria, usa inúmeras con-

venções ou regras, desde as normas técnicas às marcas e certificações, já para não falar do próprio mecanismo de preços. Também sabemos que estas regras e procedimentos convencionais já não são suficientes para assegurar a qualidade e a tranquilidade dos consumidores. A pergunta que se impõe é a seguinte: pode a Dieta Mediterrânica estar na origem de uma “economia convencional emergente”, de um “inovador sistema produtivo local”, de um “território-rede de alto valor acrescentado” com base em mercados de pro-ximidade e circuitos curtos, mas, também, em relações interpessoais e nos valores e princípios de uma economia solidária?

Ou, ainda, ao criar uma “contra-racionalidade socio-territorial protegi-

da” por uma apelação internacional de prestígio, pode a Dieta Mediterrânica estar na origem de um contra ou alter-movimento local e regional que alar-gue o campo de possibilidades do território e estenda a “produção social de qualidade” para outras áreas de produção e consumo que até aí estavam qua-se blindadas pela ordem local do capitalismo dominante?

A produção e o consumo são sempre localizados e realizados por produ-

tores e consumidores concretos em algum lugar, o que permite estabelecer convenções ou procedimentos sempre que a qualidade seja considerada um “bem comum” repartido e baseado na confiança mútua. Neste sentido, a “produção social de qualidade” pode ser usada para promover uma estratégia de desenvolvimento rural, feita de uma pluralidade de agriculturas com base em produtos tradicionais de alto valor biológico, ecossistémico e paisagísti-co. Evidentemente, levamos em conta o arsenal disponível no local como sejam as indicações, denominações, selos, etiquetas, de processo e qualidade, que, elas também, podem ser objecto de negociação e convenção.

206 Os territórios-rede

Em síntese, uma “produção social de qualidade” pode e deve ser um excelente pretexto, não apenas para rever os programas de desenvolvimen-to, investigação e extensão agro-rurais, mas, sobretudo, para relançar a economia e a sociedade locais. A Dieta Mediterrânica é um excelente pre-texto para inovar localmente em matéria de inteligência territorial, por intermédio do instrumento “economia das convenções”, um pacto territo-rial para dar à luz um sistema agro-alimentar local e uma cultura simbólica assertiva que respeitem e valorizem a apelação de prestígio internacional que lhe foi concedida.

9.3. A construção social de um território-rede para a Dieta Medi-terrânica

Depois de todas as interrogações que formulámos no ponto anterior ape-tece perguntar: e agora, o que fazer, em concreto, com este património imate-rial da humanidade, com esta cultura alimentar adaptada á escassez, com este modo de produção e conservação de alimentos ajustado a uma natureza hos-til, com este modo de viver a vida, com esta convivialidade e sociabilidade?

Acresce que em 2014 se celebra o ano internacional da agricultura fami-

liar, temos, portanto, uma razão adicional para fazer uma “grande aliança” entre o património material (a biodiversidade local) e o património imaterial das povoações (a culinária e a cultura), entre a promoção da saúde, da edu-cação e do ambiente (o meio social e a educação para o desenvolvimento) e as pequenas economias locais do interior. Uma das possibilidades em aberto é, justamente, a construção social de um território-rede que seja capaz de criar um actor-rede para alimentar as aspirações e a identidade desse novo agrupamento territorial em processo de construção.

Uma breve advertência

Como já dissemos anteriormente, a dieta mediterrânica pertence, por enquanto, mais à ordem da promessa do que à ordem da realidade. Para já, parece-nos mais curial um programa de inventariação, salvaguarda e contin-gência do património imaterial do que um programa de grandes realizações mediáticas. Esse programa deve acautelar, desde logo, que a força da inércia e o oportunismo de ocasião convertam uma sociabilidade singular e uma cul-tura milenar numa “sucessão de eventos” de gosto duvidoso e utilidade ques-tionável, promovidos, porventura, por quem tem legitimidade e ousadia bas-tante para tanto.

António Covas e Maria das Mercês Covas 207

E o que fazer com as micro e pequenas economias e aglomerados do interior desertificados e despovoados, como iremos nós integrá-los neste movimento de longo alcance e duração que é a Dieta Mediterrânica, sem perder de vista que é necessário produzir resultados concretos a curto e médio prazo? Até que ponto a construção de um território-rede para a Dieta Mediterrânica pode servir para testar as exigências e as expectativas que se foram acumulando em redor de uma apelação internacional, ao mesmo tem-po testando a ambição e as competências da comunidade política local em matéria de organização do bem comum e do interesse público, assumindo a responsabilidade de o fazer por sua conta e risco?

Fazemos aqui um alerta que nos foi sugerido pela leitura do livro

L´invention du quotidien de Michel Certeau (Certeau, 1990). A Dieta Medi-terrânica pertence a uma certa antropologia do quotidiano, é, de algum modo, uma história de resistência, faz parte da pequena história invisível comparada com a Grande História do Capitalismo Agrário, por exemplo. Quando se diz “cultura da escassez em ambiente hostil ou convivialidade e sociabilidade” estamos a falar da “invenção do quotidiano e das artes de fazer” (Certeau, 1990). Neste registo, a Dieta Mediterrânica é uma espécie de anti-sistema, uma contra-racionalidade, uma história não-escrita, pratica-da nas margens e na fronteira de um sistema dominante de características urbano-industriais. Numa região marcada pela hegemonia absoluta do sector turístico, com todas as deseconomias externas que esse facto acarreta, julga-mos fazer todo o sentido esta advertência elementar a propósito de uma eventual apropriação indevida da cultura antropológica contida na ecologia humana da Dieta Mediterrânica.

Nesta linha de raciocínio, e com todas estas cautelas, os principais tópicos em agenda neste ponto dizem respeito, respectivamente, à herança das “linhas paralelas” da economia algarvia, à falta de verticalização das cadeias de valor dos produtos regionais, à ausência de uma linha contemporânea e representati-va de “produtos regionais estruturados verticalmente”, a uma rede de suporte da Dieta Mediterrânica para os planos de preservação e promoção e, finalmen-te, aos riscos associados à introdução dos “procedimentos DM”, em face, jus-tamente, dos pergaminhos eco-antropológicos da Dieta Mediterrânica.

A herança das “linhas paralelas” da economia algarvia

A estruturação da economia algarvia no último meio século, pelo menos, ocorreu ao longo de quatro linhas paralelas:

– A linha de costa que inclui o litoral e a área de paisagem protegida da ria formosa;

208 Os territórios-rede

– A linha urbana que acompanha a Estrada Nacional (EN) 125 e que inclui os núcleos urbanos em seu redor, assim como a chamada agricul-tura periurbana que é, em boa medida, hoje, uma agricultura intensiva e forçada;

– A linha do barrocal, do rural algarvio mais tradicional, que acompanha, por exemplo, a EN 270 e que inclui a agricultura tradicional algarvia, em especial o chamado pomar tradicional de sequeiro;

– A linha serrana que acompanha, por exemplo, a EN 124 e a EN 2 e que inclui a economia florestal e os produtos derivados da floresta, a eco-nomia do montado assim como a economia cinegética. A história recente é, por demais, conhecida. Devido à hegemonia cres-

cente da economia do imobiliário, nas suas diversas modalidades turísticas e residenciais, o espaço compreendido entre a linha de costa e a linha da EN 125 foi sendo capturado para a actividade imobiliário-turística, tendo como consequência a fragmentação da propriedade rústica, a profusão de equipa-mentos e infra-estruturas e, portanto, a inviabilização económica de muitas explorações agrícolas tradicionais que revestiam características multifuncio-nais adequadas ao ecossistema mediterrânico algarvio. Esta pulverização da propriedade rústica e da exploração agrícola tradicional coincidiu, por um lado, com o definhamento do movimento associativo e cooperativo regional e, por outro, com a emergência de um sector comercial muito heterogéneo de onde emergem as superfícies comerciais, de todas as dimensões, que impuse-ram regras mais severas de produção e comercialização à economia agro--alimentar da região.

A velocidade de implantação do “novo modelo de negócio regional” não deixou tempo para conceber e praticar uma verdadeira política de desen-volvimento agrícola e rural na região, não obstante o volume de ajudas que foram chegando por via da PAC. Para este panorama ficar mais completo devemos, ainda, juntar o agente comercial intermediário que, nos interstícios da pequena economia local, continuou a fazer os seus negócios de oportuni-dade tirando vantagem das evidentes fragilidades financeiras e comerciais da agricultura familiar, dominante no rural tradicional algarvio. Acrescente-se a desorganização do mercado de trabalho local em consequência da sazonali-dade do mercado de trabalho turístico, mais agressivo e mais atractivo. Esta relação desigual, económica e comercial mas, também, interprofissional e contratual, conduziu a uma forte descapitalização da agricultura familiar algarvia e, com o tempo, ao seu recuo para a economia informal e, mesmo, ao abandono de muitas pequenas propriedades, ao mesmo tempo que se reduzia substancialmente a sua relação paisagística, ecossistémica e multi-funcional com os recursos naturais locais da região.

António Covas e Maria das Mercês Covas 209

A falta de verticalização das cadeias de valor da economia algarvia

As quatro linhas paralelas que referimos, criaram, nos seus interstícios, pequenas economias paralelas que mal comunicavam entre si. A falta de reticulação destes quatro segmentos da economia algarvia e a relação desi-gual entre o sector associativo da produção e o sector empresarial da comer-cialização e do retalho deram origem a uma economia agrária regional muito vulnerável e a uma economia rural muito sensível a estes fortes movimentos de desestruturação socioterritorial. Os sinais mais evidentes estão à vista:

– Terrenos agrícolas expectantes à espera de valorização urbana; – A desorganização dos mercados de trabalho do rural tradicional algar-

vio, trocados por trabalho sazonal nos sectores mais dinâmicos; – As cadeias de produção locais, curtas e de reduzido valor acrescentado,

esmagadas pelas margens comerciais; – Os canais de comercialização locais nas mãos de intermediários trans-

portadores; – O abandono de muitas propriedades rústicas e pequenas explorações

familiares; – A degradação do património rural imaterial local e regional, por exem-

plo, da paisagem mediterrânica à arquitectura rural do barrocal-serra algarvio. O que fazer neste contexto e nestas circunstâncias?:

– Em primeiro lugar, abrir pontos de passagem e cruzamentos entre estas quatro linhas paralelas da economia algarvia, criando, por via dessa fer-tilização, uma nova inteligência territorial;

– Em segundo lugar, criar cadeias de valor em que as actividades tradi-cionais da economia algarvia sejam penetradas pelas artes e pela cultu-ra, isto é, fazer da patrimonialização, material e imaterial, uma nova fonte de riqueza, por via das actividades criativas e culturais;

– Em terceiro lugar, inovar e criar uma nova linha de “produtos e serviços estruturados”, com um designe do produto e um marketing mais arrojados;

– Por fim, disseminar estes benefícios de contexto através da reticulação dos pontos de apoio de uma rede de suporte à Dieta Mediterrânica, sejam micro-redes territoriais, redes temáticas ou territórios-rede com mais músculo e sistema nervoso. A título de exemplo, pensemos, por exemplo, na verticalização da

cadeia de valor da cabra algarvia e nas tarefas que essa opção acarreta, sem-pre numa perspectiva de valorização das economias locais e dos seus ecos-

210 Os territórios-rede

sistemas mais sensíveis, lá onde a cabra algarvia tem o seu nicho ecológico preferido (quem diz cabra diz mel, medronho, frutos silvestres, pomar tradi-cional de sequeiro, citrinos, flores, cogumelos, cortiça, caça, etc.). Vejamos uma primeira aproximação a essa cadeia de valor:

– Em primeiro lugar, trata-se de reagrupar os produtores da raça autócto-ne da cabra algarvia tendo em vista apurar e valorizar a biodiversidade local da espécie e do seu nicho ecológico;

– Em segundo lugar, trata-se de organizar a assistência técnica, associativa e pública, nessa linha de abordagem mais agroecológica e ecossistémica;

– Em terceiro lugar, trata-se de rejuvenescer o capital social envolvido, seja no plano familiar dos produtores, seja convidando “novas entradas” para o agrupamento;

– Em quarto lugar, trata-se de melhorar o processo de produção, de alar-gar as funções da cadeia de valor e de acrescentar as suas internalidades tendo em vista reduzir os sus custos de transacção internos: raça, pasta-gem, biodiversidade, limpeza de matos, compostagem, etc.;

– Em quinto lugar, trata-se de diversificar a linha de produtos finais da cabra algarvia e de diversificar os mercados-alvo por via de uma comer-cialização e marketing mais inteligentes;

– Finalmente, trata-se de capitalizar a fileira de produção e de articular a cadeia de valor da cabra algarvia com a exploração florestal das ZIF, acrescentando, por essa via, a massa, o músculo e o sistema nervoso deste sistema produtivo local regional. Esta metodologia para a verticalização da fileira da cabra algarvia só

será inteiramente bem-sucedida se, ao mesmo tempo, tivermos em mãos um projecto de território-rede em construção, inspirado nos princípios de desen-volvimento territorial que sustentam a filosofia da dieta mediterrânica. Nesta segunda linha de actuação, estamos a robustecer a ecosocioeconomia rural e regional e a estruturar as seguintes áreas de trabalho:

– O alargamento das áreas da agroecologia e da agricultura biológica; – O alargamento das actividades criativas e culturais, desde as artes culi-

nária e gastronómica, à artesania tradicional, os materiais locais e as oficinas de artes e ofícios;

– A consideração das artes da paisagem e da terra associadas ao turismo de natureza;

– O desenvolvimento dos produtos e serviços turísticos nas tipologias do turismo de saúde e bem-estar para a sociedade sénior;

– O desenvolvimento das actividades de ecodesign, a economia verde e as artes dos 3R, (redução, reciclagem e reutilização);

António Covas e Maria das Mercês Covas 211

– A promoção das artes do lazer e do recreio, dos espaços pedagógicos, lúdicos e terapêuticos, por exemplo, para a sociedade sénior, onde se incluem os campos de férias e as residências seniores;

– O desenvolvimento das artes multimédia e performativas e a criação de residências artísticas e culturais, assim como os eventos ligados à histó-ria local, a literatura oral, a poesia, o património imaterial. Todas estas actividades podem e devem ser objecto de uma “convenção

territorial” que passará a ser a lei fundamental da construção social do futuro território-rede. Uma comissão promotora pode ser o elemento de instigação do projecto.

Configurar uma linha de “produtos e serviços estruturados”

A verticalização de uma actividade económica ao longo de uma fileira ou cadeia de valor deve ser cruzada e complementada com uma rede de acti-vidades reticuladas horizontalmente, de tal modo que destes cruzamentos e desta malha possamos derivar uma nova inteligência territorial e, a partir dela, desenhar um novo cabaz de “produtos e serviços estruturados” que possamos identificar com uma nova imagem mais contemporânea e cosmo-polita da região. Estamos a falar de uma malha mais apertada e de uma capi-laridade socioterritorial mais densa onde a composição de actividades eco-nómicas tradicionais se cruze com as actividades criativas e culturais e a visitação turística como elo de ligação de todas elas.

A título ilustrativo, vejamos como esta malha mais apertada e esta capi-laridade socioterritorial mais densa poderiam ser organizadas numa região como o Algarve. Enumeremos as artes tradicionais e pensemos no que pode-ria ser realizado com algumas pequenas inovações introduzidas nestas acti-vidades de tal modo que, a partir delas, se pudesse estruturar e construir um território-rede e uma economia de rede e visitação turística:

1) As artes do pastoreio da cabra algarvia; 2) As artes da rouparia/queijaria tradicional algarvia; 3) As artes da tirada da cortiça; 4) As artes do varejo e da apanha da azeitona; 5) As artes do varejo e da apanha da alfarroba e da amêndoa; 6) As artes da apicultura e da melaria e a transumância das abelhas; 7) As artes da pisa a pé das uvas; 8) As artes da destilação do medronho; 9) As artes da apanha do figo da índia;

10) As artes da apanha dos produtos micológicos;

212 Os territórios-rede

11) As artes associadas à poda e ao enxerto; 12) As artes associadas à cosmética tradicional; 13) As artes associadas às ervas aromáticas; 14) As artes associadas às ervas medicinais; 15) As artes da cestaria e da olaria; 16) As artes associadas às flores comestíveis; 17) As artes associadas à pesca artesanal; 18) As artes associadas à caça e à cinegética; 19) As artes da confeitaria e doçaria tradicionais; 20) As artes associadas à culinária tradicional; (…)

Imaginemos, agora, o mapeamento destas actividades no território-rede

em construção e a diversidade de “produtos e serviços estruturados” que seria possível realizar a partir da combinação e cruzamento de todas estas actividades. A título de exemplo, apontamos algumas inovações em matéria de designe de produto obtidas pelo cruzamento entre as fileiras verticais de produção e as fileiras horizontais da visitação e do consumo, aqui designadas por nós sob a forma de “um dia em”:

– Um dia na floresta da serra algarvia: a apanha dos frutos silvestres e a destilação do medronho conjugado com o turismo micológico e os per-cursos de natureza e a gastronomia serrana da dieta mediterrânica;

– Um dia nas aldeias do barrocal algarvio: a colheita das ervas aromáticas e medicinais, a sua preparação e destilação, conjugado com a visita ao apiário e visitas guiadas ao património vivo e museológico das aldeias; à noite a gastronomia mediterrânica e os serões de música e teatro na aldeia;

– Uma jornada científica e cultural no barrocal e serra algarvios: visitas guiadas para a observação dos endemismos florísticos e faunísticos do barrocal e serra algarvios, conjugado com percursos de natureza, as pai-sagens literárias, a gastronomia mediterrânica e os serões culturais de aldeia; importa lembrar que a inventariação e o plano de salvaguarda da dieta mediterrânica obrigarão a criar uma linha de investigação nesta área em particular;

– Um dia na caça: a preparação e a participação numa caçada, a culinária dos produtos da caça, sessões sobre a natureza e a vida selvagem e o turismo cinegético;

– Um dia na ria formosa: a observação de peixes e aves na ria formosa, os percursos de natureza pela ria, a gastronomia da ria, sessões sobre a natureza e a vida selvagem da ria e actividades culturais e recreativas a pretexto da ria;

António Covas e Maria das Mercês Covas 213

– Um dia na rota da cortiça: a tirada da cortiça e a sua transformação industrial, as artes artísticas e decorativas associadas à cortiça, os produ-tos e a gastronomia do montado, a apanha de flores comestíveis, as ses-sões científicas, culturais e recreativas associadas à multifuncionalidade do montado;

– Um dia no pastoreio: pastorear um rebanho de cabras de raça autóctone, recolher o leite e produzir o queijo artesanal, provar a gastronomia da dieta mediterrânica, assistir às sessões culturais e recreativas associadas ao sistema agro-silvo-pastoril;

– Um dia no pomar tradicional de sequeiro do barrocal algarvio: a apa-nha do figo, da amêndoa e da alfarroba, a sua preparação e transforma-ção, o artesanato da doçaria tradicional, workshops sobre a doçaria tra-dicional, a gastronomia da dieta mediterrânica, sessões sobre artesanato local;

– Um dia na vinha e na adega: o conhecimento das boas práticas de produção na vinha, a pisa da uva, o processo de vinificação, a recicla-gem de resíduos, os produtos derivados, as provas de vinho e o enotu-rismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas à vinha e ao vinho;

– Um dia no olival e no lagar: o conhecimento das boas práticas de pro-dução no olival, a apanha da azeitona, o processo de transformação no lagar, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de azeite e o olivoturismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas ao olival e ao azeite. Estes programas curtos podem, ainda, estar associados com programas

especiais para o turismo sénior e o turismo para grupos de mobilidade redu-zida e ser articulados, por exemplo, com residências artísticas e produção criativa e cultural (semanas criativas e culturais) e, ainda, com programas de educação física de manutenção e tratamento adaptados a grupos especiais e programas recreativos de eventos e espectáculos nocturnos de fados, de tea-tro, de música de câmara, de canto e poesia, de cinema e documentário, campeonatos de jogos de mesa, concursos vários, etc..

Num outro plano, a criação de uma linha de “produtos e serviços estru-turados” ligada ao território é um objectivo que merece ser prosseguido com muita tenacidade e persistência. O exemplo da linha de artesanato “TASA” (técnicas ancestrais, soluções actuais) é uma boa ilustração deste campo imenso de possibilidades que combina matérias-primas locais e tecnologias artesanais com soluções de designe e comunicação actuais que revolucionam o marketing comercial e territorial devolvendo aos territórios e aos artistas locais uma relevância que eles não tinham até aí. A linha de produtos ligados

214 Os territórios-rede

à cortiça, mais artesanais ou mais artísticos, e à rota da cortiça é outro exce-lente exemplo de embeddedeness territorial.

Se pensarmos nas múltiplas associações técnicas, tecnológicas e cultu-rais entre a produção agrícola, a engenharia alimentar, a logística da distri-buição, o marketing territorial e o design e a comunicação teremos um cam-po imenso de possibilidades para os “produtos e serviços estruturados” em redor da cabra algarvia, frutos silvestres, mel, medronho, cogumelos, ervas aromáticas e medicinais, cosmética artesanal, cinegética, citrinos, etc., para já não falar do universo das “sementes perdidas”, sobretudo na área hortofru-tícola, um mundo surpreendente que jaz expectante sob os nossos pés à espreita de uma oportunidade.

Uma rede de suporte da Dieta Mediterrânica

No que diz respeito à aplicação prática de um plano de inventariação, salvaguarda e promoção da Dieta Mediterrânica, é fundamental a construção de uma rede de suporte à dieta mediterrânica, que pode assumir várias geo-metrias e naturezas, desde uma micro-rede local muito circunscrita a uma rede de natureza temática e a um território-rede de âmbito mais alargado.

Uma micro-rede pode justificar-se para resgatar uma “semente perdida ou um produto autóctone” em risco de extinção que, todavia, pode revestir um valor científico e simbólico extraordinário para o plano de salvaguarda da dieta mediterrânica. A rede temática é uma rede sobre inventariação e classificação das “práticas alimentares e culturais e os estilos de vida” mais representativos da Dieta Mediterrânica e que podem ser recolhidos em vários pontos do país. Uma rede territorial é uma rede delimitada geograficamente que, em primeira instância, tem a sua origem na comunidade política e cultu-ral do concelho de Tavira, líder da candidatura, mas que pode ser estendida a outros concelhos algarvios adjacentes ou distantes que com ele compõem um “território vertical”, isto é, um território cujo corte seja representativo dos vários estratos socioculturais que se estendem do mar até à serra.

No caso da rede temática, estamos convencidos de que o inventário e a classificação das práticas alimentares, (desde a biodiversidade local até à confecção alimentar) e dos estilos de vida (desde a estrutura familiar até às formas de convivialidade, sociabilidade e festividade) merecerão tratamento privilegiado. Neste particular, sabemos que já estão em curso trabalhos pre-paratórios de carácter operacional por via de comissões técnico-científicas que se constituem numa espécie de actor-rede da Dieta Mediterrânica e tão cedo quanto possível pois o plano de salvaguarda será avaliado nos próximos quatro anos em 2018.

António Covas e Maria das Mercês Covas 215

No segundo caso, a rede territorial, estamos convencido de que podem ser considerados duas linhas de abordagem, de primeira e segunda priorida-de. A primeira linha corresponde ao concelho de Tavira, que é, em primeira instância, o rosto da comunidade representativa da parte portuguesa da can-didatura. Neste sentido, a eleição da Estação Agrária de Tavira como sede do futuro Centro de Estudos da Dieta Mediterrânica seria uma excelente escolha para celebrar o arranque do plano de salvaguarda e promoção da Dieta Medi-terrânica, tanto mais quanto a Estação Agrária de Tavira dispõe de um espó-lio valioso de variedades hortofrutícolas que serão, não apenas no plano simbólico mas, sobretudo, no plano da biodiversidade local e regional, um óptimo ponto de partida para o lançamento e a promoção da Dieta Mediter-rânica. De resto, esta primeira prioridade é perfeitamente compatível com as micro-redes de salvaguarda de sementes perdidas e espécies autóctones.

No que diz respeito à segunda linha de abordagem da rede territorial,

seguindo o critério dos “concelhos verticais representativos”, estamos con-vencidos de que, em primeira aproximação, uma das zonas mais relevantes para este efeito é aquela que encontramos no cruzamento e na área de influência das estradas nacionais N124, N2 e N270. Assim sendo, a primeira rede experimental de suporte da Dieta Mediterrânica poderia incluir as fre-guesias de Martinlongo, Cachopo, Barranco do Velho e Querença no ali-nhamento da N124, o Ameixial, novamente o Barranco do Velho e Alportel no alinhamento da N2 e Alportel novamente, Santa Catarina e Santa Luzia/Barril no alinhamento da N270. No prolongamento destas linhas podía-mos ainda acrescentar as aldeias típicas do barrocal como são Alte, Salir e a União das Freguesias de Querença, Tor e Benafim. Quer dizer, estaríamos a eleger uma boa parte da Serra do Caldeirão para este efeito, mas, também, a eleger uma zona especialmente atingida pelos grandes incêndios do verão onde o risco climático é elevado e onde, por isso mesmo, todas as “práticas alimen-tares e culturais” lutam abnegadamente pela sua sobrevivência.

A rede de suporte e os riscos associados à Dieta Mediterrânica

No Algarve, como sabemos, muita actividade depende da estratégia seguida e prosseguida pela indústria do turismo/lazer, em sentido amplo. Quer dizer, as condições de funcionamento em baixa densidade, que repre-senta a maioria do território da região, só são possíveis se o turismo/lazer, ele próprio, polinuclear e reticular o seu crescimento interno. Dito de outro modo, o turismo/lazer é o sector-motor, a indústria-industrializante que tem capital próprio suficiente para fazer uma incursão estratégica no interior do Algarve, criando investimento multifuncional e empreendimentos de fins múltiplos que reconfiguram o território e geram pequenas economias de

216 Os territórios-rede

aglomeração em seu redor, com ou sem base produtiva própria. Deve fazer isto por razões de racionalidade económica e não por meras razões de cir-cunstância ou oportunidade, dado que estamos convencidos de que o futuro da indústria do turismo/lazer depende também da diversificação que for capaz de imprimir ao contínuo campina-barrocal-serra, numa linha de “eco-nomia vertical” a que nos referimos anteriormente.

Neste sentido, uma “economia vertical” é uma espécie de “arquitectura de interiores” que considera e trabalha conjuntamente sobre as infra-estruturas, os equipamentos, os corredores ecológicos, a engenharia biofísica, as amenidades paisagísticas, as economias de aglomeração e reticulação, as cargas e a gestão ordenada dos fluxos turísticos para o interior. Se a pilotagem desta economia vertical não estiver à altura da sua responsabilidade, a indústria do turis-mo/lazer continuará, muito provavelmente, a ser desequilibrante, enquanto os programas de índole regional e local, supostamente desenvolvimentistas, serão tão só redistributivos e cada vez mais assistencialistas.

Debater o desenvolvimento rural do interior e serra algarvios é reflectir sobre o futuro de dois terços do território algarvio, é prevenir a região quanto a um possível choque assimétrico que, de um momento para o outro, pode irromper e devastar a economia costeira, é dar profundidade ao litoral e à campina, é aproveitar territórios em estado preventivo, é, afinal, reequacio-nar a identidade profunda dos algarvios, num momento em que “as modas identitárias estão na moda”. É aqui que, na equação desta economia vertical que une litoral-campina-barrocal-serra, surge a Dieta Mediterrânica com fac-tor de reunificação e apelação territorial.

Será a Dieta Mediterrânica um foco resiliente suficientemente forte

e capaz de contrariar os riscos de vária ordem que já hoje afectam o interior algarvio?

Os valores culturais, patrimoniais, naturais e paisagísticos do mundo

rural são um bem público inestimável cuja fragilidade e vulnerabilidade importa contrariar a todo o custo. A desertificação, as secas prolongadas, os incêndios florestais, a degradação das reservas naturais de futuro, são uma ferida a céu aberto nos ecossistemas agro-rurais da região do Algarve. Em que medida, pode a Dieta Mediterrânica contribuir para contrariar os riscos climáticos e ambientais associados a um despovoamento destes territórios?

O segundo tipo de riscos que pode seriamente afectar a Dieta Mediter-rânica tem a ver com o rejuvenescimento e a sucessão geracional, isto é, com o capital social hoje disponível e o capital social disponível no futuro próxi-mo. É imprescindível fazer algum trabalho de investigação no terreno da rede territorial de suporte que aqui sugerimos e realizar uma pré-qualificação

António Covas e Maria das Mercês Covas 217

dos actores disponíveis para este efeito. As juntas de freguesia podem ser, em primeira instância, um ponto de partida com interesse mas outras estrutu-ras associativas já existentes podem funcionar como os animadores dos pon-tos da rede. Outro ponto da rede com muito interesse, em matéria de capital social, são todas as iniciativas que podem envolver os jovens saídos das escolas técnicas profissionais e superiores da região.

Um outro tipo de risco associado à DM está relacionado com as boas práticas impostas pelo respectivo “caderno de especificações” e, bem assim, as tipologias diversas de certificação e controlo que podem causar danos ele-vados na micro e pequena agricultura local. Importa relembrar mais uma vez que a Dieta Mediterrânica é uma apelação internacional que não se resume a ser uma “cultura alimentar da escassez e da natureza hostil”, ela é também um estilo de vida e uma antropologia do quotidiano. Uma abordagem mera-mente produtivista e economicista da DM pode ter efeitos contraproducentes e impactos negativos sobre os modos de produção familiar e artesanal.

Finalmente, um último risco associado à Dieta Mediterrânica está relacio-nado com a sua política de imagem, ou a sua imagem de marca, e o plano de marketing que for julgado mais apropriado, isto é, com a possibilidade de, no futuro próximo, a Dieta Mediterrânica aparecer travestida de produtos e servi-ços turísticos de bom gosto e bom senso muito duvidosos. Se a imagem de marca da DM for confundida com uma sucessão de eventos mais ou menos “turistificados” então o risco de uma “dieta kitch” espreitará a todo o momento.

Em conclusão, a apelação “Dieta Mediterrânica, património imaterial da humanidade” afigura-se como uma oportunidade única para realizar o up--grade da economia local e regional algarvia, em especial a promoção da economia do barrocal algarvio e da economia serrana. Serve, porém, a adver-tência para dizer que se deve depositar uma expectativa contida e moderada em tal desiderato. Para o efeito, a região precisa urgentemente, no plano da microgeoeconomia territorial e dos territórios-rede, de levar a cabo um ensaio experimental, uma rede temática e territorial, que possa lançar as pri-meiras sementes do que será, no futuro próximo, uma política de certificação regional da dieta mediterrânica. Este é um desafio de longo alcance e um bem comum inestimável para o país e a região do Algarve. Recordemos, a propósito, que o primeiro teste, a avaliação do plano de salvaguarda, estará à nossa frente já em 2018. O tempo urge, pois.

Conclusão

Na terceira parte debruçámo-nos sobre a construção social dos territó-rios-rede da 2.ª ruralidade. Os territórios-rede são, essa é a nossa convicção,

218 Os territórios-rede

uma promessa carregada de futuro, uma promessa que nós aqui enunciamos e anunciamos. Eis algumas conclusões acerca desta promessa de futuro.

Em primeiro lugar, a dinâmica dos territórios hoje, a sua velocidade de transformação, obriga-nos a reconsiderar a natureza do problema rural, de um território espaço de produção para um território cada vez mais espaço de consumo e visitação. Neste alargamento, a sociologia rural e o desenvolvi-mento rural estenderam e ramificaram o seu campo teórico para dentro da teoria social e essa fertilização cruzada beneficiou extraordinariamente a construção social dos territórios-rede, sobretudo a sua natureza cognitiva, o seu quadro analítico, a sua topologia e tipologia.

Em segundo lugar, a construção social dos territórios-rede é fortemente tributária do aprofundamento da cooperação territorial e funcional que os espaços-territórios particulares forem capazes de mobilizar e implementar, assim como das inovações socio-organizacionais introduzidas em matéria de governança e administração dedicadas, que nós aqui identificámos com a criação de um agente principal designado de actor-rede. Esta corrente teóri-co-prática dos territórios-rede não esquece, porém, que se move em terreno adverso e que é minoritária no campo de forças do mainstream do capitalis-mo financeiro e do agro-business. Neste contexto, a teoria dos territórios--rede e do actor-rede pode ser apelidada, com legitimidade, de uma “teoria da resiliência” de economias e sociedades à margem da Grande História e, ainda, de uma “teoria do capital social” sob a forma de “cooperação low cost” de natureza funcional e territorial.

Em terceiro lugar, transportámos o corpo teórico-prático dos territórios--rede para o campo experimental dos territórios em concreto e procurámos avaliar em que medida a transposição multi-escalar ou multiníveis entre ter-ritórios pode ser útil e instrutiva para os nossos exercícios de engenharia e governança territoriais (Pereira, 2013, 2009), (Gonçalves et al., 2013) e (Dallabrida, 2011, 2010). O nosso ponto de partida foi uma experiência já concretizada de microgeoeconomia territorial, o Projecto Querença e as suas oito réplicas. Aos ensinamentos destas micro-redes de experimentação terri-torial juntámos o arsenal conceptual e instrumental dos territórios-rede em construção e, assim, chegámos à discussão da Dieta Mediterrânica, Patri-mónio Imaterial da Humanidade, uma apelação territorial de prestígio que nos foi concedida pela UNESCO. Em aberto fica, ainda, a possibilidade de delimitarmos uma rede territorial para testar no terreno concreto da região algarvia os “encargos e as especificações” desta apelação de prestígio tão portadora de futuro.

CONCLUSÕES GERAIS E FINAIS

Interessa-me o futuro porque é o sítio onde vou passar o resto da minha vida.

Woody Allen

O texto que agora terminamos é, nos limites do nosso conhecimento e

dos nossos desejos, uma aposta comedida e ponderada sobre o futuro próxi-mo. Não é uma preocupação de agora. Este texto é o terceiro livro de uma trilogia que inclui mais dois títulos, a saber, A Grande Transição (Covas e Covas, 2011) e A caminho da 2.ª Ruralidade (Covas e Covas, 2012). A rura-lidade é, portanto, o espaço cénico e o campo de forças onde tudo acontece: a construção social de um território-rede, a emergência de um actor-rede e o desenvolvimento de uma nova inteligência territorial.

A nossa primeira convicção é a de que os territórios guardam conheci-

mentos tácitos e expressos fundamentais que podem ser instigados e provo-cados na boa direcção, por via de processos e procedimentos de cooperação funcional e territorial estimulados e activados por um agente singular deno-minado actor-rede.

A nossa segunda convicção é a de que estes territórios particulares,

sejam privados ou públicos, não respondem imediatamente a esta instigação ou provocação porque sofrem de um paradoxo muito comum que nós deno-minamos de “paradoxo da vizinhança”, acerca do qual, para simplificar, poderíamos dizer que “santos de casa não fazem milagres”. O paradoxo diz--nos que os territórios vizinhos abdicam da proximidade e da intersubjectivi-dade das relações de vizinhança em benefício de relações mais impessoais e virtuais onde, aparentemente, é menor o risco moral e a retaliação pessoal. Ao relegarem para plano secundário a sua relação de vizinhança, os territó-rios abdicam de um enorme potencial de cooperação que está implicitamente contido nos seus respectivos stocks de capital.

220 Os territórios-rede

A nossa terceira convicção é a de que precisamos de uma dose apro-priada de “utopia com os pés na terra” (Telles, 2003) para ultrapassar este paradoxo da vizinhança, cuja matéria-prima-bruta são os custos de tran-sacção, o risco moral e o free raider que estão contidos na transição de um território-zona para um território-rede. Precisamos de doutrina, de “ficções de consenso” e de processos e procedimentos que façam avançar o traba-lho de construção social, características próprias de um verdadeiro territó-rio cognitivo.

A nossa quarta convicção é a de que precisamos de uma boa teoria para

resolver um problema prático. Essa é a razão pela qual o universo conceptual dos territórios-rede mergulha fundo as suas raízes na teoria social disponível com o objectivo de configurar um quadro analítico mais poderoso e constru-tivo. Lembremos os três pilares desta teoria dos territórios-rede: a cooperati-vidade, sob a forma de reciprocidade e troca de capital social low-cost, a produção de internalidades, de modo a reduzir os inputs externos e os custos de transacção internos e a coopetitividade, sob a forma de bens de mérito e reputação e de uma institucionalidade dedicada e eficaz sob a égide de um actor-rede.

A nossa quinta convicção é a de que a 2.ª ruralidade e, em particular, a

chamada 3.ª revolução verde são um terreno de eleição para a construção social dos territórios-rede. Nesta linha, a contribuição do arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT) é um input muito importante no sentido de uma biopo-lítica da paisagem e do território, de uma configuração feita de estrutura, ordem e beleza, se quisermos, a mesma “utopia com os pés na terra” em que parece apontar a denominação de Dieta Mediterrânica, património imaterial da humanidade, apelação concedida pela UNESCO a uma candidatura trans-nacional liderada pela cidade portuguesa de Tavira.

A nossa sexta convicção é a de que o actor-rede é a figura central des-

ta construção social do território-rede. Só o actor-rede parece estar em condições de transformar uma série de territórios particulares num espaço comum cooperativo e este num novo espaço público que sendo um objecto de cultura, pode ser igualmente, objecto de consumo e visitação. Tal como o concebemos, o actor-rede é o único que pode mobilizar as condições de imanência e transcendência necessárias para desencadear uma nova inteli-gência colectiva no território-rede, em benefício de territórios críticos que hoje estão à beira de “uma morte anunciada”, por exemplo, no grande inte-rior de Portugal.

António Covas e Maria das Mercês Covas 221

A nossa sétima convicção é a de que esta “ecotopia com os pés na ter-ra”, para ser experimentada, precisa de uma outra cultura política para lá da política convencional, tal como a conhecemos hoje. A que temos hoje é demasiado conservadora, rotineira, calculista e excessivamente instituciona-lizada. As instituições políticas de jurisdição fixa dominam a política con-vencional porque é nesse quadro territorial de geometria fixa que se reprodu-zem os sistemas, os aparelhos e as clientelas político-partidárias respectivas. Ora, em alguns casos o experimentalismo territorialista e a construção social em geometria variável, tal como aqui as descrevemos, podem entrar em rota de colisão com as instituições e o regime estabelecido.

A nossa última convicção é a de que temos muitas dúvidas acerca das

nossas convicções. Somos, porventura, vítimas da nossa dúvida metódica mas não desistimos facilmente. Como dissemos no início deste livro, pior do que ter uma má ideia é ter uma ideia feita (Charles Péguy). Boa leitura.

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