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OS SENTIDOS DO CORTEJO DE CONGADO NO CONTEXTO URBANO OLIVEIRA, ROSÂNGELA CRISTINA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Mestrado do Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável Linha de Pesquisa: Conservação Rua Paraíba, 697- Funcionários Belo Horizonte MG [email protected] RESUMO Este artigo apresenta uma abordagem do conjunto das representações simbólicas e estéticas e suas mediações culturais percebidas na manifestação cultural do congado na cidade de Belo Horizonte-Minas Gerais, na perspectiva da paisagem cultural. Partindo da noção de que bens materiais carregam consigo uma força simbólica e estética. Essa riqueza irá caracterizar o bem cultural como único, proporcionando, uma concepção mais rica e ampla sobre patrimônio cultural, não mais centrada no valor de determinado objeto e sim numa relação da sociedade com a sua cultura. Palavras-chave: patrimônio imateral; a festa de congado; paisagem cultural.

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OS SENTIDOS DO CORTEJO DE CONGADO NO CONTEXTO URBANO

OLIVEIRA, ROSÂNGELA CRISTINA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Mestrado do Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável – Linha de Pesquisa: Conservação

Rua Paraíba, 697- Funcionários – Belo Horizonte – MG [email protected]

RESUMO

Este artigo apresenta uma abordagem do conjunto das representações simbólicas e estéticas e suas mediações culturais percebidas na manifestação cultural do congado na cidade de Belo Horizonte-Minas Gerais, na perspectiva da paisagem cultural. Partindo da noção de que bens materiais carregam consigo uma força simbólica e estética. Essa riqueza irá caracterizar o bem cultural como único, proporcionando, uma concepção mais rica e ampla sobre patrimônio cultural, não mais centrada no valor de determinado objeto e sim numa relação da sociedade com a sua cultura. Palavras-chave: patrimônio imateral; a festa de congado; paisagem cultural.

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INTRODUÇÃO

No final do século XX, o tema patrimonio cultural assume um papel particularmente importante

nas questôes referente à memória coletiva e as identidades nacionais e regionais. Assim,

partindo de um discurso patrimonial que se resumia aos monumentos artísticos e históricos, o

conceito de patrimônio caminhou para uma concepção mais ampla, nas quais os conjuntos

culturais pssaram a ser reconhecidos e valorizados, conforme destaca Abreu: Delineava-se a

ideia de que havia um patrimonio cultural a ser preservado e que incluía não apenas a história

da arte de cada país, mas um conjunto de realizações humanas em suas mais diversas

expressôes (ABREU, 2003, p.33).

Desse modo, a partir de uma reflexão sobre a concepção mais ampla de patrimônio cultural,

passa a se mover não mais centrada no valor de determinado objeto e sim numa relação da

sociedade com a sua cultura, a festa, como expressão de significados e espaços de vivencias

sociais, mostra-se uma área de investigação importante para a análise das formas de

apropriação da cidade e de compreensão das práticas sociais e culturais, contribuindo com a

noção de patrimônio como um bem coletivo, que contempla as diversidades culturais, onde a

noção de cultura inclui hábitos, costumes, tradiçôes, crenças; em fim, um acervo de

realizações, materais e imateriais.

Neste sentido, o presente artigo tem como objetivo principal analisar as representações do

conjunto estético e simbólico presente na manifestação do Congado, na cidade de Belo

horizonte - Minas Gerais. O Congado é uma manifestação cultural que tange o patrimonio

imaterial. Devemos acentuar que os ritos e celebrações religiosas afro-brasileiras

representam meios de sobrevivencia dos vetígios da memória africana, que na análise da

paisagem simbólica, por meio da visita in locus, essas evidências são apreendidas e em muito

contribuem para a explicação da festa como significado e identidade de grupos imprimindo

uma dada paisagem cultural.

NOTAS SOBRE AMPLIAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Quando falamos em patrimônio cultural, estamos aludindo direta ou indiretamente ao

passado, no qual a exemplo do que ocorre com a tradição, é sempre construído a partir do

presente. O termo “patrimônio” – em inglês, heritage – refere-se a algo que herdamos e que,

por conseguinte, deve ser protegido.

O patrimônio cultural num mundo globalizado, no processo de mudança vertiginoso, crescem

as preocupações com o patrimônio cultural e a questão das identidades culturais locais.

Movido pelo temor da perda de referências importantes com relação ao acervo cultural do

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patrimônio materiais e imateriais, o conselho executivo da UNESCO1 tem se preocupado em

definir ação e programas de valorização através de políticas de preservação,

Em 1972, foi realizada pela UNESCO em Paris a significativa “Convenção Sobre Proteção do

Patrimônio Mundial Cultural e Natural”, que consistia em discutir e deliberar sobre a do evento

era a salvaguarda dos bens tangíveis, de modo à comtemplar uma espécie de acervo cultural

da humanidade. A UNESCO torna-se o centro mundial de referencia para o desenvolvimento

das bases técnicas e conceituais de preservação, destacando a noção de patrimônio da

humanidade, juntamente com a noção de diversidade cultural, de nodo a preservar um acervo

de bens materiais e imateriais, destacando a multiplicidade cultural de cada conjunto nacional.

Assim, percebe-se que, em1989, como resultados de estudos a fim de se propor um

instrumento internacional de proteção das “expressões populares de valor cultural”, por meio

da Conferência Geral da UNESCO aprova a “Recomendação sobre Salvaguardar da Cultura

Tradicional e Popular”, com o novo do documento a “cultura tradicional e popular forma parte

do patrimônio universal da humanidade e é um meio de aproximação entre povos e grupos

sociais existentes e de afirmação da identidade cultural”. Um novo elemento do patrimônio

cultural, desde então passou a fazer parte dos objetivos de preservação das entidades

governamentais: o bem cultural imaterial2.

Neste contexto, de estudos internacionais, surge a noção de patrimônio imaterial ou

intangível, aludindo à ideia de uma produção, não apenas material, mas também simbólica.

Assim, a UNESCO define como patrimônio imaterial as práticas as representações,

expressões, conhecimentos e técnicas, bem como utilização de instrumentos, objetos,

artefatos e lugares comuns constituem o fundamento da vida comunitária e são, portanto,

parte integrante do patrimônio cultural. Para muitos, em especial a minoria étnica, o

patrimônio imaterial é uma importante fonte de identidade que constrói sua história.

No Brasil a legitimação sobre o patrimônio cultural é da década de 1930 do século XX, quando

o país passou por um processo de integração nacional de “Brasilidade”. A ideia de que o

patrimônio não se compõe apenas de edifícios e obra de arte, mas também no produto

popular, retoma ao projeto que Mário de Andrade elaborou para o Serviço do Patrimônio

Artístico Nacional (SPHAN), em 1936. Como afirma Sant’anna (2003), Mário de Andrade foi,

na prática, um pioneiro do registro dos aspectos imateriais do patrimônio cultural, pois

documentou sistematicamente manifestações dessa natureza ao longo de sua vida, deixando

para posteridade fotografias, gravações e filmes que realizou em suas viagens ao Nordeste3. 1 Conferencia Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

2 Podendo também ser denominado como “bem imaterial”, “patrimônio imaterial” ou “bem intangível”.

3 Esse acervo encontra-se reunido em instituições, como a Discoteca Oneyda Alvarenga, em São Paulo.

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Já na década de 1970, período denominado “fase moderna” e que teve como precursor

Aloísio Magalhães – com as experiências de registros culturais, realizadas no Centro Nacional

de Referencia Cultural (tendo o CNRC e a Fundação Pró-Memória). Desse período a principal

herança foi à introdução, na Constituição Federal de um conceito mais largo de patrimônio.

No final de década de 1980 mais precisamente a promulgação da Constituição de 1988 que

tal ideia foi tratada com expressivo avanço, em seu artigo 216, é dado um grande destaque

aos bens culturais de caráter imaterial, entende como patrimônio cultural brasileiro:

Os bens de natureza material e imaterial, tomados em individualismo ou em conjunto, portadores de referencia e identidade, a ação, a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados ás manifestações artístico-culturais;

V – os conjuntos urbanos e os sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 2003, p.97)

Figura 01: Guarda de congos.

Fonte: da autora, 2014.

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Em seu artigo 215 da mesma carta magna, atribui à valorização ás “culturas populares”,

“indígenas”, “afrodescendentes” e de outros os grupos participantes do processo civilizatório

nacional, como parte do patrimônio cultural da nação.

A partir deste passo da Constituição brasileira uma intensa mobilização para a formulação de

instrumentos e meios de implementar políticas eficazes pata a área foi iniciada. O decreto nº

3. 551, de 4 de agosto de 2000, implementado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional (IPHAN), que instituiu dois instrumentos de salvaguarda e proteção do patrimônio

imaterial: a Instituição do registro de bens Culturais de Natureza Imaterial (PNPI). O novo

registro compreende o Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro como saberes, os ofícios, as

festas, os ritos, as expressões artísticas e lúdicas, que, desenvolvidas na diferentes

manifestações culturais, tornam-se referencias indenitárias na visão do próprio grupo que as

participam. Os bens culturais de natureza imaterial estariam incluídos, ou contextualizados,

nas seguintes categorias que constituem o Livro do Registro:

1) Saberes conhecimentos e modos de fazer enraizado no cotidiano das comunidades. 2) Formas de expressão: manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas. 3) Celebrações: rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho. Religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social. 4) Lugares: mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas.

4

É interessante compreender que essa atenção para os bens de natureza imaterial é fruto de

uma conjuntura internacional, impulsionada pelo maior órgão da cultura, a UNESCO. Através

das ações políticas de preservação cultural do IPHAN, o interesse institucional em identificar e

registrar através de ferramentas específicas, as diversas formas de culturas que se integram a

identidade de cada localidade, contribuindo para a valorização do patrimônio cultural da

nação.

Festa e o patrimônio cultural

No Brasil existem inúmeras festas populares religiosas conhecidas nacionalmente. Sob as

mais diversas motivações, elas são espaços de celebrações e, ao mesmo tempo em que se

constituem lugares de memória, preservam e revitalizam o patrimônio cultural de grupos

sociais através de rituais festivos. “Festas, ritos e celebração” foram examinados os

significados da qual alimentam as narrativas. Tradição, devoção, subversão, sistema de

trocas e sociabilidade são alguns conceitos que permeiam as reflexões de alguns autores.

4 Decreto nº 3.551, 4 de Agosto de 2000, in; http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=295 Acesso em

14 de agosto de 2014

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As festas estão presentes sem dúvida em todas as culturas a manifestação de uma vida

diferente, de uma vida presenteada. Assim pessoas na celebração reanimam suas próprias

identidades. Nesse sistema valorativo, coletivamente, os aspectos abstratos e invisíveis,

como a relação com os espaços de cultura, as estruturas indenitárias, a memória – tudo isso

articulado ao imaginário social – irão fomentar a elaboração, a reprodução e expressão do

patrimônio cultural.

A festa dessa maneira revela-se desempenhando um importante papel entre o sujeito e o

meio, pois estas manifestações sempre refletem o modo como os grupos sociais, percebem e

concedem seu ambiente, valorizam mais ou menos certos lugares. Nesse sentido “a festa

torna-se também lugar da memória de construção e atualização de um passado que não

pertence apenas aos seus cidadãos, mas mostrou-se capaz de atribuir identidade a setores

ampliados da sociedade” (CAVALCANTI, 2001, p.74).

As festas são fenômenos primordiais e indissociáveis da civilização, porque nelas os homens

sempre alcançam os mais altos níveis de sociabilidade. A afirmação de Durkheim toda festa

tem características religiosas, pois aproxima as pessoas causando um estado de

efervescência pelas manifestações apresentadas pelos participantes:

Toda festa, mesmo que puramente leiga por suas origens, tem certos traços da cerimônia religiosa, pois sempre tem por efeito aproximar os indivíduos pôr em movimento as massas e suscitar, assim, um estado de efervescência, às vezes até delírio, que não deixar ter parentesco com o estado religioso. O homem é transportado fora de si, distraído de suas ocupações e preocupações ordinárias. Por isso, observam-se em ambos os casos as mesmas manifestações: gritos, cantos, música, movimentos violentos, danças, busca de estimulantes que elevem o nível vital, etc. (DURKHEIM, 2003 p. 417 – 418).

Figura 02: Guarda de Moçambique, Figura 03: Guarda de congo.

Fonte: da autora. 2014. Fonte: da autora. 2014.

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Rita Amaral, em sua tese de doutorado afirma que as festas oscilam entre dois polos: a

cerimônia e a festividade; podendo se distinguir dos ritos cotidianos por sua amplitude e do

mero divertimento pela densidade. Para ela, este caráter misto poderia ser tomado como um

primeiro termo da definição de festa:

Toda festa ultrapassa o tempo cotidiano, ainda que seja para desenrolar-se numa pura sucessão de instantes. Toda festa acontece de modo extra-cotidiano, mas precisa selecionar elementos característicos da vida cotidiana. Toda festa é ritualizada nos imperativos que permitem identificá-la, mas ultrapassa o rito primeiro de investigação nos elementos livres (AMARAL, 1998, p.38 -39).

Portanto, existem tipos de festas em que estes aspectos aparecem dissociados e até opostos.

A razão dessas dissociações, segundo Amaral, aparece relacionada ao caráter simbólico da

festa; “a função do simbólico aparece não estar então, simplesmente, em significar o objeto, o

acontecimento, mas em celebra-lo, em utilizar todos os meios de expressão para fazer

acontecer o valor que atribui a este objeto” (AMARAL, 1998, p.39).

As festas não têm sido utilizadas somente para afirmar a coesão dos habitantes nas cidades

e, portanto, das relações hegemônicas, mas também foram utilizadas para construir uma

unidade e ressignificar e identificar a identidade de grupos subalternizados historicamente, a

manifestação cultural religiosa, abre brechas para o exercício de denúncias expressando uma

resistência cultural que indica o início da construção do longo processo de afirmação

étnico-sócio-cultural desse grupo na cidade, a exemplo da população negra do período

colonial do Brasil.

Para falar de identidade, principalmente na atualidade, é falar em diversidade. De acordo com

as ideias de Hall (2003), a identidade cultural de um indivíduo é marcada pelos aspectos que

determinam seu pertencimento a determinada cultura étnica, religiosa, racial etc. Segundo o

autor, com a pós-modernidade, observa-se uma fragmentação do sujeito em diversas,

assumidas em momentos diferentes, de acordo com a noção de sujeito sociológico, temos:

[...] a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou ausência interior que é “o eu real”, mas é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que este mundo oferecem (HALL, 2003, p.11).

Esse sujeito “dividido” em várias identidades encontra no momento festivo a oportunidade de

compartilhar com sua comunidade o que tem em comum, sua unidade. Através dos ritos eles

se renovam em partes da sociedade, como seres sociais, renovando, assim, as forças do que

nos une. São compartilhados símbolos, histórias, crenças e a memória coletiva fundamentada

as representações. Percebemos tal fato claramente na história do povo negro no Brasil

quando, ainda durante a escravidão encontravam-se para relembrar e celebrar ao modo da

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terra de origem. As diferenças culturais entre os escravos eram amenizadas pela situação

comum da opressão a que eram submetidos, sendo seus encontros, com fins religiosos ou

festivos, a oportunidade para a troca de símbolos, o que resultou, com outras influências

posteriores, na tão vasta e múltipla cultura brasileira.

Também vale destacar o que Roberto Da Matta (1983) chama de ritual de inversão, quando

há quebra de papéis rotineiros. Percebemos em muitos ritos um jogo entre as identidades

cotidianas e os festivos, quando aquelas que estão numa condição de subalternos,

dominados, exercem domínio e poder simbólico sobre os demais participantes. Há até mesmo

uma valorização do sujeito por participação, principalmente quando há destaque para o

evento perante a toda a cidade, fato comum no interior do Brasil, quando grupos

marginalizados ganham mais espaços e são mais “valorizados” por serem agentes de ritos

religiosos e/ou comemorativos importantes no local.

Outro aspecto importante no que diz respeito das identidades é a relação com o espaço onde

a festa teve de origem e de onde ocorre no memento presente. “Nascer é nascer num lugar,

ser designado à residência. Nesse sentido, o lugar de nascimento é constitutivo da identidade

individual [...]” (AUGÉ, 2003, p.52). Com esse pensamento, temos o lugar de nascimento e de

morada não só como pano de fundo para os acontecimentos, mas como fator influente no

processo ritual. Os aspectos sócio-geográficos podem, ao longo do tempo, alterar

características dos ritos, assim como esses também influenciamos espaços onde atuam. A

escolha do local ocupado pelos agentes de uma cerimônia festiva não se faz por acaso.

Concorrem para tal a história do lugar, os símbolos ali encontrados, as possibilidades que

oferece para deslocamento e fixação, a proximidade ou não de centros urbanos. E fixando-se

nesse espaço, a festa adquire os traços locais, e podem, então, serem observadas diversas

trocas entre a festa e a cidade.

O cortejo religioso no contexto urbano

As guardas ou ternos de Nossa Senhora do Rosário5 , ou irmandade é uma das mais

representativas expressões religiosas (ou catolicismo popular) e da cultura afro-brasileira com

forte expressão em Minas Gerais. A cada ano, pessoas das grandes cidades e do interior das

5

Festa Nossa Senhora do Rosário popularmente conhecida como congados, congadas ou reinado. A diferenciação entre as guardas é feita em algumas cidades, caracterizando o reinado como uma estrutura mais complexa que incluí a presença de das “guardas” ou “ternos” (dançantes) missa, cortejo, e Coroação de reis do Congo. Já Congado refere-se também, especificamente às guardas de Congo, que pode existir

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mesmas encontram-se para cantar e sua fé e coroar Nossa Senhora do Rosário. Cada

irmandade ou grupo a sua maneira.

Histórias compartilhadas pelos os praticantes do Congado que se organiza através de

irmandades ou grupos nesses mais de 300 anos de comemoração se recriam continuamente,

no ir e vir da memória, deixando marcas significativas em suas vidas. Muitas delas sentidas de

forma muito intensa, movidas pela dor, pelas incertezas e, sobretudo, pela esperança de

conseguir superar as agruras vivenciadas. Muitas histórias do Congado se encontram ainda

presentes na memória dos praticantes sendo o marco do recomeço, de uma trajetória de fé e

comemoração, dentre os quais muitos acontecimentos se firmaram como marca histórica

interligando o sentir sagrado ao festivo.

Entretanto, são vários sentidos assumidos pelas comemorações da Festa do Rosário em Belo

Horizonte- MG, na tentativa de perceber como eles foram recriados, principalmente por parte

de seus praticantes. São eles, que percebem a festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário

como espaço de materialização de sua fé, de sua religiosidade: como ruptura do cotidiano;

sinônimo de vida e alegria; de reencontro com sua ancestralidade e de atualização da

memória coletiva.

O Universo simbólico das celebrações religiosas e seu significado expresso nas festas dos

santos, por sua vez, revelam códigos próprios, metáforas e linguagens locais. Por meio das

performances ou alegorias, a festa dos santos apresenta uma dimensão estética, é um

sistema de trocas, momentos de devoção e sincretismo.

Sentidos do cortejo

O cortejo de congado, em Belo Horizonte, confere a Igreja Santa Efigênia e o seu entorno um

“lugar de festa”, transformando o espaço cotidiano em espaço festivo e sagrado. Espaço este

que se apresenta como palco das representações das memórias coletivas na qual uma

comunidade dividida e heterogênea se expressa de forma única, através de gestos, símbolos,

cores e sons, neutralizando seus conflitos e diferenças.

Festas para serem vividas – o cortejo, a união e expansão dos grupos. A manifestação cultural

do congado perfaz um ciclo anual de progressiva expansão do dos ternos no movimento

“bairros ao centro”, e de um auto de representação da cultura popular “autêntica” da cidade de

independentemente dos reinados. Neste texto utilizei os dois termos como sinônimos, já que são aceitos como tal, ao reportar a festa em questão.

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Belo Horizonte. O cortejo é sempre realizado no terceiro domingo do mês de novembro,

quando acontece à tradicional missa Conga, reunindo além das guardas da cidade e

arredores e de cidades vizinhas. Os dançantes ocupam os espaços das ruas centrais em

direção à celebração e a própria invenção criativa e expressiva da cidade e nos aproxima da

construção de determinadas formulações das sensibilidades urbanas transformando o que é

expresso em paisagem.

A marcha dos cortejos segue inspirados nas procissões e romarias, onde se anda pelas ruas,

se exibindo. Nesses espaços, expõem-se comemoram permitindo interações vivenciadas,

entretanto propõe um enquadramento espaço-temporal específico, capaz de promover uma

determinada sociabilidade da festa, vivida especialmente e potencializada nesse evento. O

“cortejo” cria molduras de imagens e sensibilidade da cidade. Ao lidar com o fluxo no espaço

constitui uma forma significante privilegiada de apropriação das ruas onde quem desfila quer

se conceber sendo visto e quem assiste quer olhar e se conceber sendo parte da relação.

Há aqueles que participam, há aqueles que visualmente os acompanham e participam

aqueles que os avaliam. Todos são provocados a participar da celebração. No momento do

”cortejo”, marcam-se espaços diferenciados para quem não dá escola ou marcha, ainda que

essa separação não seja estanque.

Para o Congadeiro, não resta dúvida que o cortejo é uma experiência única, afinal é o

momento esperado durante todo o ano. É o momento, como lembra Glaura Lucas, de

ritualização da memória. “O tempo em que o homem comum se transforma em participante do

Congado, subordinado às leis deste sistema social” (LUCAS, 1999, p.70).

Esse mesmo “tempo” assume durante o cortejo um lugar virtual proporcionado pela música,

que evoca e organiza memórias coletivas, e proporciona experiências intensas àqueles que

participam. Além de favorecer esta sensação de deslocamento espaço/temporal, a música

que emana dos instrumentos ajuda a comunicar como o mundo divino, preenchendo os

espaços sagrados multiplicando em todas as direções dando sentido a paisagem cultural da

cidade.

Durante esta comemoração, destacamos a presença do Congado de Belo Horizonte, que

representa a fé e a Nossa Senhora do Rosário e a devoção a outros santos, através de suas

cantorias e danças. O cenário musical é carregado de sons e imagens que constroem uma

atmosfera rica, encantadora, quase onírica para o espectador. Cantos e danças parecem

indissociáveis, o canto é elemento vinculador de textos que impulsionam os movimentos

corporais.

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A paisagem sonora do congado, assim, multiplica uma excitação específica e, ao mesmo

tempo, experiências coletivas. Partindo da dimensão afetiva marcada nas manifestações,

vamos perceber como se formaram as representações coletivas. Tentaremos perceber

algumas nuances deste quadro materializado, considerando o espetáculo que se mostram do

cortejo do congado, são carregadas de representações do que nossos olhos podem

apreender. Como lembrou Foucault (1987, p.18), o espetáculo libera o seu volume, mas não

antes de um sutil sistema de rodeios:

O espetáculo que ele observa é, portanto duas vezes invisível, pois não está representado no espaço do quadro e se situa precisamente nesse ponto cego, nesse esconderijo essencial em que o nosso olhar se subtrai a nos mesmos no momento em que olhamos. E, no entanto, como podemos nós evitarmos ver essa inviabilidade, aí nossa vista, se ela tem, no seu próprio quadro, o seu equivalente sensível, sua figura selada? (FOUCAULT 1996, p.18).

Esta forma de conhecimento, baseada na construção de uma realidade comum, definida por

Jodelet (2001) como representações sociais, apresenta sua funcionalidade enquanto sistema

de interpretações que regem nossas relações com o mundo e com os outros.

Figura 04: Bandeira de Nossa Senhora do Rosário

Fonte: da autora, 2014.

O simbólico do Congado compreende também uma gama de objetos singulares, produzidos

especialmente para o mento festivo sagrado e que foram um conjunto estético que merece um

olhar apurado. Muitos desses objetos passam despercebidos entre tantos sons e danças, mas

são fundamentais para o bom procedimento do rito. São os bastões, as coroas, as imagens de

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santos, os próprios instrumentos musicais, mastros, estandartes, bandeiras, adornos

corporais e indumentárias, São artefatos imbuídos de religiosidade.

Como todos os fenômenos religiosos da Festa do Rosário, possui dimensão estética inerente

ao ritual, através da qual são identificados os símbolos sagrados e adorados que ligam os fiéis

as suas crenças. A concretização e a materialização dos mitos ocorrem através de diversos

elementos utilizados durante a cerimônia ou mesmo fora delas e não estão isentos de valores

estéticos e artísticos. Utilizando a ideia de Mauss (1967) para compreender este processo ao

dizer que os fenômenos estéticos são inerentes à vida social e que a estética contribui de fora

significativa para a eficácia religiosa. Sendo o objeto estético algo que possa ser

comtemplado, é possível nele encontrar o valor estético bem como nas atividades aqui

referindo do jogo dança, música etc.

Entre os fenômenos estéticos e religiosos há conexão, fica evidente quando se pensa na

origem comum de arte e religião, ambas retratos da sociedade em que aparecem indissolúvel

do cotidiano nas sociedades tradicionais, a arte são é e sempre foi essencial nos processos

de simbolização adoração e confecção de materiais litúrgicos, sendo o canal de comunicação

com o divino, instrumento auxiliar para tal contato ou apenas ornamento das peças usadas na

liturgia.

Objetos rituais, danças, indumentárias, cantos e instrumentos musicais entregam esse acervo

mágico-religioso repleto de sentidos múltiplos e portadores de valores estéticos, plásticos e

artísticos.

A Festa do Rosário ao compreender como fenômeno estético é conferir-lhe o caráter de arte

reconhecendo seu valor como ação simbólica. Para decifrar seus símbolos, faz-se necessário

conhecer a estrutura social do grupo que os produzem para então chegar aos códigos de seus

fenômenos estéticos. Na concepção de Geertz “A semiótica deve ser uma ciência social”

(GEERTZ, 1994, p.144).

Assim uma infinidade de significados pode ser retirada do conjunto estético presente na festa

em questão. A arte feita pelo povo em louvor aos santos transforma-se em um belo espetáculo

pelas as ruas da cidade, palco para celebração da fé. O Catolicismo e o africanismo

encontram-se na diversidade de formas e cores expressões corporais e musicais que

conferem a identidade própria ao congado. E é nesse momento de comunicação que vemos

sua arte e sua criatividade no ato de adorar. Os festejos fazem parte da vida dos congadeiros

e, distante dela seus símbolos não podem ser lidos, Diversos elementos que constituem a

paisagem visual da festa é o resultado da construção dinâmica da cultura.

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Conclusão

O Cortejo religioso em Belo Horizonte no torno da paróquia é uma marca na paisagem urbana

e aglutinam em seu redor as práticas rituais católicas. Portanto o cortejo do Congado, com

suas características religiosas e profanas, representa o patrimônio cultural da cidade,

mostrando que o patrimônio não é usado para apenas simbolizar, representar ou comunicar,

mas também para criar sentidos e significados além de revigorar suas identidades. O cortejo

dos congadeiros é um encontro de iguais, que promove por meio de suas alegorias um

espaço para encontro de diferentes.

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