Os Rompedores da Alvorada Vol. I, parte 1

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Esta é a primeira metade da colossal narrativa escrita por Nabil (um dos primeiros adeptos do movimento bahá’í), que foi compilada e traduzida do persa para o inglês por Shoghi Effendi. A obra completa nos conta os primórdios do nascimento da Fé Bahá’í, até a morte de Bahá'u'lláh em 1892. Porém, esta edição que em português se fez em dois volumes, termina com a expulsão de Bahá'u'lláh da Pérsia. Sua importância é evidente. São aqueles acontecimentos perenemente significativos aos quais dá um registro ímpar. Arquivo digital em 5 partes.

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OS ROMPEDORES DA ALVORADA

VOLUME I

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OS ROMPEDORES DA ALVORADA A NARRATIVA DE NABÍL DOS PRIMEIROS DIAS

DA REVELAÇÃO BAHÁ'1

"trtrttirií-írtrírírírd-trtt

"Nós nos manteremos firmes, com a vida na mão, inteira-mente resignados à Sua vontade, para que talvez, através da benevolência de Deus e de Sua graça, esta Letra reve-lada e manifesta possa oferecer a vida em holocausto no caminho do Ponto Primaz, o Mais Excelso Verbo."

BAHA'U'LLÁH

TRADUZIDO DO ORIGINAL PERSA PARA O INGLÊS POR

SHOGHI EFFENDI

VOLUME I

1989 EDITORA BAHÁ'1

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© Copyright Assembléia Espiritual Nacional dos Bahá'ís do Brasil 1989

Editora Bahá'í do Brasil

Todos os direitos reservados.

Título original em inglês: "The Dawn-Breakers"

1? edição Rio de Janeiro 1989 ISBN: 85-320-0001-0 Obra Completa (E) ISBN: 85-320-0003-7 Obra Completa (B) ISBN: 85-320-0004-5 (Brochura) ISBN: 85-320-0002-9 (Encadernado)

Editora Bahá'í do Brasil Rua Eng<? Gama Lobo, 267 - Vila Isabel 20551 Rio de Janeiro, RJ, Brasil

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Para A Folha Mais Sagrada

A Última Sobrevivente de uma Idade Heróica e Gloriosa Dedico esta Obra

em Sinal de um Grande Débito de Gratidão e Amor

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ÍNDICE

Introdução 9 Relação das Ilustrações 47 Prefácio 49

Capítulo I

A Missão de Shaykh Ahmad-i-Ahsá'í 51

Capítulo II A missão de Siyyid Kázím-i-Rashtí 69

Capítulo III A Declaração da Missão do Báb 96

Capítulo IV A Viagem de Mullá Husayn a Teerã 139

Capítulo V

A Viagem de Bahá'u'lláh a Mázindarán 149

Capítulo VI

A Viagem de Mullá Husayn a Khurásán 161

Capítulo VII

A Peregrinação do Báb a Meca e a Medina 166

Capítulo VIII

A Estada do Báb em Shiráz após a Peregrinação . . . . 177

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Capítulo IX A Estada do Báb em Shiráz após a Peregrinação (Continuação) 205

Capítulo X A Estada do Báb em Isfáhán 234

Capítulo XI

A Estada do Báb em Kashán 249

Capítulo XII

A Viagem do Báb de Kashán a Tabriz 253

Capítulo XIII O Encarceramento do Báb na Fortaleza de Máh-Kú . . 269

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INTRODUÇÃO

O Movimento Bahál está agora bem conhecido no mundo inteiro, e chegou o tempo em que a incomparável narrativa de Nabíl acerca de seus primórdios há de interes-sar a muitos leitores. A história que ele narra com esme-rada devoção é, em muitos aspectos, extraordinária. As passagens emocionantes e o esplendor do tema central con-ferem à crônica não só grande valor histórico, como também alto poder moral. Suas luzes têm o efeito intenso e fulguran-te de um romper do sol à meia-noite. A história é de luta e martírio e muitas vezes permeada de cenas pungentes e trá-gicas. Corrupção, fanatismo e crueldade aliam-se contra a causa da reforma com a finalidade de destruí-la, e o presen-te livro encerra-se no momento em que o turbilhão de ódio parece haver cumprido seu propósito, tendo levado ao exílio ou à morte todo homem, mulher e criança da Pérsia que ousou professar simpatia para com o ensinamento do Báb.

Nabíl, ele próprio protagonista de algumas das cenas que narra, tomou sua pena solitária para relatar a verdade so-bre homens e mulheres tão impiedosamente perseguidos e um movimento tão penosamente caluniado.

Ele escreve com fluência, e quando se sente fortemen-te emocionado seu estilo torna-se vigoroso e incisivo. Não apresenta sistematicamente as pretensões e o ensinamento de Bahá'u'lláh e de seu precursor. Seu propósito é apenas relatar os primórdios da Revelação Bahá'í e preservar a lembrança das façanhas de seus primeiros campeões. Ele relata uma série de incidentes, e invoca escrupulosamente a própria autoridade em quase todos os itens de informação.

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Sua obra, em conseqüência, se por um lado perde em ter-mos de conteúdo filosófico e artístico, por outro ganha en-quanto relato vigoroso e fidedigno daquilo que ele sabia ou pode descobrir por intermédio de testemunhas dignas de crédito acerca da história primitiva da Causa,

As principais características da narrativa (a figura san-ta e heróica do Báb, um líder tão meigo e tão sereno, porém veemente, resoluto e dominante; a devoção de seus seguidores que enfrentavam com inabalável coragem e êxta-se a opressão e, muitas vezes, a fúria de um clero invejoso, que, para seus próprios fins, inflamava as paixões de um povo sedento de sangue) estão na força de uma linguagem que todos podem entender. Não é fácil, entretanto, acompa-nhar a narrativa em detalhes, e apreciar quão estupenda a tarefa empreendida por Baháulláh e pelo Seu Precursor, sem algum conhecimento do que representavam a Igreja e o Estado na Pérsia, bem como seus costumes e a atitude men-tal do povo e de seus mestres. Nabíl presumiu existir esse conhecimento. Ele mesmo viajou pouco, não indo muito além das fronteiras dos impérios do Xá e do Sultão, e não lhe ocor-reu instituir comparações entre sua própria civilização e o que ocorria no estrangeiro. Não estava se dirigindo ao leitor ocidental. Embora consciente de que o material que compi-lara era de uma importância mais que nacional ou islâmica e que, dentro em breve, haveria de se espalhar para leste e oeste até abranger o globo, ele, entretanto, era um oriental escrevendo num idioma oriental para aqueles que o conhe-ciam, e o trabalho incomparável que executou tão fielmente foi em si uma grande e laboriosa tarefa.

Existe em inglês, porém, uma literatura acerca da Pér-sia do século XIX que dará ao leitor ocidental ampla in-formação sobre o assunto. Em textos persas que já foram traduzidos ou nos livros escritos por viajantes europeus como Lord Curzon, Sir J. Malcom e muitos outros, pode se encontrar um quadro real e vivido, se bem que pouco agra-dável, e das terríveis condições que o Báb teve de enfrentar quando inaugurou o Movimento em meados do século XIX.

Todos os observadores concordam em represantar a Pérsia como uma nação débil e atrasada, dividida em si por práticas corruptas e feroz intolerância. Ineficiência e misé-

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ria — frutos da decadência moral — grassavam em todo lu-gar. Nas camadas mais altas até as mais baixas, parecia não haver capacidade para efetivar reformas nem sequer a von-tade de instituí-las seriamente. A vaidade nacional pregava uma grandiosa auto-satisfação. Uma mortalha de imobilidade pairava sobre todas as coisas, e uma prevalecente paralisia mental tornava impossível qualquer desenvolvimento.

Para um estudioso da História, a degeneração de uma nação, outrora tão poderosa e tão ilustre, parece extrema-mente lastimável. 'Abdu'1-Bahá, que apesar das crueldades acumuladas sobre Bahá'u'lláh, sobre o Báb, e sobre Si mes-mo, ainda amava Sua pátria, referiu-se à degradação dela como "a tragédia de um povo"; e na obra The mysterious forces of civilisation ("As forças misteriosas das civiliza-ções"), na qual procurou comover os corações de Seus com-patriotas para que empreendessem reformas radicais, Ele ex-pressou um lamento pungente sobre a sorte atual de um povo que outrora estendera suas conquistas para leste e oeste e promovera a civilização da humanidade. "Nos tem-pos antigos", Ele escreve, "a Pérsia era verdadeiramente o coração do mundo e brilhava entre as nações como uma to-cha acesa. Sua glória e prosperidade despontaram no hori-zonte da humanidade assim como o verdadeiro alvorecer, difundindo a luz do conhecimento e iluminando as nações do Oriente e do Ocidente. A fama de seus reis vitoriosos chegou aos ouvidos dos habitantes dos pólos da Terra. A supremacia de seus reis humilhou os monarcas da Grécia e Roma. Sua sabedoria em governar enchia de espanto os sá-bios, e os governantes de outros povos criavam suas leis es-pelhando-se no sistema político da Pérsia. Havendo os persas se distinguido entre as nações da Terra como um povo de conquistadores e sendo, com justiça, admirados pela sua ci-vilização e pelos seus conhecimentos, seu país tornou-se glo-rioso centro de todas as ciências e artes; fonte de cultura e de virtude. Como é que esse admirável país agora, por causa de nossa negligência, vaidade e indiferença, e devido à falta de conhecimento e organização, à escassez de zelo e ambição por parte de seu povo, tem permitido que os raios de sua prosperidade sejam obscurecidos e quase extintos?."

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Muitos outros escritores narraram amplamente essas condições infelizes às quais 'Abdu'1-Bahá se refere.

No tempo em que o Báb declarou Sua Missão, o governo do país era — nas palavras de Lord Curzon — um "Church-State" (Estado eclesiástico). Por venal, cruel e imoral que fosse, formalmente era religioso. No mais, não havia leis, es-tatutos ou diretrizes para guiar a administração dos assuntos públicos. Não havia Câmara de Lordes nem conselho privado, nenhum sínodo, nenhum parlamento. O Xá era déspota e seu governo, arbitrário, refletindo-se em todos os níveis oficiais, através de todos os seus ministros e governadores, desde o mais humilde funcionário até o mais remoto chefe tribal. Não existia tribunal civil para corrigir ou modificar o poder do monarca ou da autoridade que ele se dignasse delegar aos subordinados. Se havia alguma lei, era a sua von-tade. Ele podia fazer o que lhe aprouvesse. Outorgava o po-der de nomear ou destituir todos os ministros, funcionários, oficiais e juizes. Detinha poder de vida e morte inapelável sobre todos os membros de sua casa e de sua corte, quer civis ou militares. O direito de tirar a vida cabia a ele somen-te, como também todas as funções de governo — legislativa, executiva e judiciária. Sua prerrogativa real não era limitada por nenhuma restrição escrita.

Aos descendentes dos xás eram confiados os cargos de maior renda em todo o país, e, à medida que as gerações se passavam, eles vinham a ocupar inumeráveis posições de menor importância também, em toda parte, até que a Pérsia ficou infestada dessa raça de zangões reais que deviam sua posição a nada mais que seu sangue, dando motivo ao provér-bio persa que diz: "camelos, pulgas e príncipes existem em toda parte."

Até mesmo quando um Xá desejava tomar Uma decisão justa e sábia em qualquer caso que lhe fosse levado para julgar, encontrava dificuldade em fazê-lo, pois não podia con-fiar nas informações dadas a ele. Os fatos essenciais ou eram omitidos ou deturpados pela influência de testemunhas in-teressadas ou de ministros mercenários. O sistema de cor-rupção havia chegado a tal ponto na Pérsia que se tornara unia instituição reconhecida, descrita por Lord Curzon nos seguintes termos:

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"Chegamos agora à característica cardeal e distintiva da administração iraniana. O governo — mais ainda a própria vida neste país, pode-se dizer — consiste na maior parte, num intercâmbio de presentes. Pode parecer a primeira vista que essa prática demonstre, sota seus aspectos sociais, os senti-mentos generosos de um povo amável; nesse caso, porém, não há nenhum sentimento objetivo envolvido; por exemplo, ao congratular-se por haver recebido um presente, o receptor descobre que deve não só retribuí-lo por um de valor equi-valente, como também remunerar generosamente o portador do presente (para quem, muito provavelmente, tal prêmio é o único meio reconhecido de subsistência) em proporção ao seu valor pecuniário. Sob seus aspectos políticos, essa prática de dar presentes, embora consagrada nas tradições arraigadas do Oriente, é sinônimo do sistema descrito em outras partes por termos menos agradáveis. Tal á o sistema segundo o qual o governo da Pérsia se orienta desde séculos e cuja continuação opõe uma barreira sólida a qualquer re-forma verdadeira. A começar pelo Xá, quase não existe um oficial que não se disponha a aceitar presentes; raro é o car-go que não seja conferido em troca de presente; ou a renda que não tenha sido acumulada por meio de presentes. Cada indivíduo na hierarquia acima mencionada, praticamente sem exceção, apenas comprou seu cargo, mediante um pre-sente em dinheiro ao Xá, a um ministro, ou a um governador superior por quem ele foi nomeado. Se há vários candidatos a um cargo, com toda probabilidade o que fizer a melhor oferta ganhará.

" . . . O madákhil é uma acariciada instituição nacional da Pérsia, cuja efetivação, numa miríade de formas diferentes, é o interesse e deleite supremo da existência dos persas, e cuja engenhosidade é igualada somente por sua multiplici-dade. Essa palavra extraordinária, para a qual Mr. Watson diz não haver no inglês equivalente exato, pode ser tradu-zida de várias maneiras, como, commission, perquisite dou-ceur, consideration, pickings and stealings, profit (comissão, propina, gratificação, remuneração, furtos e roubos, lucro), segundo o contexto imediato em que é empregada. Em ter-mos gerais, significa aquele saldo de vantagem pessoal que se manifesta usualmente em forma de dinheiro e pode ser

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extraído de toda e qualquer transação. Uma negociação na qual duas partes são envolvidas como doador e receptor, como superior e subordinado, ou mesmo como agentes iguais num contrato, não pode ser efetivada na Pérsia sem que a parte representada como autor do favor ou serviço reclame e receba a remuneração preestabelecida monetária por aquilo que fez ou deu. Pode-se dizer, naturalmente, que a natureza humana é em grande parte a mesma no mundo todo; que um sistema semelhante existe sob um nome diferente em nosso próprio país ou em outros, e que o crítico filosófico reconhecerá no persa tanto um homem quanto um irmão. Até certo ponto é verdade. Mas em nenhum país que já vi ou do qual ouvi falar é o sistema tão ostensivo e generaliza-damente corrupto como na Pérsia. Longe de se limitar à es-fera da economia doméstica ou às transações comerciais, pe-netra todos os níveis da vida e inspira a maioria das ações. Pela sua operação, pode-se dizer que na Pérsia se apagou da categoria das virtudes sociais a generosidade ou serviço gratuito e se elevou como princípio orientador da conduta humana a cobiça. . . Assim é instituída uma progressão arit-mética de saque, desde o soberano até o súdito, cada uni-dade na escala descendente remunerando-se da próxima unidade abaixo dela, sendo o infeliz camponês a vítima final. Não é de admirar que, sob essas circunstâncias, o cargo pú-blico é o caminho comum para a riqueza, e são freqüentes os casos de homens que, tendo começado do nada, passam a possuir residências magníficas, cercados por multidões de servidores e vivendo de modo principesco. 'Ganha o quanto puderes enquanto puderes' a regra que a maioria dos ho-mens estabelece para si ao entrar para a vida pública. Nem o espírito popular ressente com esta norma de conduta; al-guém que tenha tido a oportunidade e, não a aproveitou para encher os próprios bolsos é objeto de acerbas críticas por sua falta de bom senso. Ninguém dirige sequer um pensa-mento aos sofredores de quem, em última análise arranca-ram os recursos para esses sucessivos 'madákhils' e do suor de cuja fronte resignada foi extorquida a riqueza que é dis-sipada com luxuosas casas de campo, curiosidades européias e cortejos enormes."

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Ler o supracitado é perceber algo da dificuldade da mis-são do Báb; ler o que se segue é compreender os perigos que Ele enfrentou e estar preparado para uma história de violência e horripilante crueldade.

"Antes de terminar o assunto da lei persa e sua admi-nistração, gostaria de acrescentar algumas palavras sobre pe-nalidades e prisões. Nada é mais chocante para o leitor euro-peu — enquanto prossegue através das páginas sangrentas, manchadas de crimes da história persa do século passado e, em menor grau, felizmente, do atual — do que o registro de castigos selvagens e torturas abomináveis, atestando al-ternadamente a insensibilidade do bruto e a engenhosidade do demônio. O caráter persa foi sempre fértil em invenção e indiferente ao sofrimento; e no campo das execuções ju-diciais tem encontrado amplo terreno para o exercício de ambas as habilidades. Até um período muito recente, ainda no reinado atual, criminosos condenados têm sido crucifi-cados, executados por canhões, enterrados vivos, empalados, ferrados como cavalos, ou amarrados os corpos inclinados de duas árvores, partindo-se ao meio quando estas voltam à sua posição original o que acabei de descrever convertidos era tochas humanas, ou esfolados vivo.

" . . . Sob um sistema duplo de governo, tal como — isto é, uma administração na qual cada membro é, sob diversos aspectos, o subornador e também o subornado e uma prá-tica judicial sem lei ou tribunal —, compreender-se-á facil-mente que confiança no governo não deve existir e que não há senso pessoal de dever ou orgulho, de honra, nenhuma confiança mútua ou cooperação (a não ser a serviço da per-versidade), nenhuma vergonha no desmascaramento, nem crédito na virtude, e, acima de tudo, nenhum espírito nacio-nal ou patriótico."

Desde o início deve o Báb ter pressentido qual seria a recepção dada aos Seus ensinamentos pelos patrícios, e qual o destino que O esperava nas mãos dos mullás. Mas Ele não permitia que suspeitas pessoais afetassem a enunciação franca de Suas pretensões ou a aberta apresentação de Sua Causa. As inovações que Ele proclamou, embora puramente religiosas, foram drásticas; o anúncio de Sua própria iden-tidade foi impressionante e extraordinário. Ele se deu a conhe-

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cer como o Qálrn, o Sumo Profeta ou Messias há tanto pro-metido, tão ansiosamente esperado pelo mundo maometano. Acrescentou a isso a declaração de ser Ele também a Porta (isto é, o Báb), por cujo intermédio um Manifestante maior que Ele mesmo haveria de entrar no reino humano.

Colocando-se assim em alinhamento com as tradições do Islã, e ao aparecer como o cumprimento da profecia, Ele entrou em conflito com aqueles que tinham idéias fixas e imutáveis (diferentes das Suas) sobre o significado daquelas profecias e tradições. As duas grandes seitas persas do Islã, a xiita e a sunita, davam importância vital ao antigo depó sito de sua fé, mas não concordaram quanto a seu conteúdo ou significado. Os xiitas, de cujas doutrinas surgiu o Mo-vimento Babí, sustentaram que, após a ascensão do Sumo Profeta Maomé, Ele foi sucedido por uma linha de doze Imames. Cada um destes foi especialmente dotado por Deus de qualidades espirituais e tinha direito à obediência cordial dos fiéis. Cada um devia sua nomeação não à escolha popu-lar, mas sim, à indicação de seu predecessor no cargo. O décimo segundo e último desses guias inspirados foi Mu-hammad, chamado pelos xiitas Imame Mihdí, Hujjátulláh (a Prova de Deus), Bagíyyatulláh (o Remanescente de Deus) e Qá'im-i-Ál-i-Muhammad (aquele que surgirá da família de Maomé). Ele assumiu as funções de Imame no ano de 260 da Hégira, mas repentinamente desapareceu de vista, comu-nicando-se com seus seguidores somente através de interme-diários escolhidos como uma Porta. Quatro dessas Portas sucederam-se uma após outra, sendo cada uma nomeada pelo seu predecessor com a aprovação do Imame. Quando, porém, Abu'l-Hasan-'Alí, a quarta Porta, foi solicitado pelos fiéis, an-tes da sua morte, a nomear seu sucessor, ele se recusou a fazê-lo, dizendo que Deus tinha outro plano. Com sua morte, toda a comunicação entre o Imame e sua igreja, portanto, cessou. Se bem que, cercado por um grupo de seguidores ele ainda viva e espere em algum recinto misterioso, não reassumirá relações com seu povo antes de surgir com poder para estabelecer uma nova era no mundo inteiro.

Os sunitas, por outro lado, têm uma opinião menos exal-tada do cargo daqueles que sucederam o Sumo Profeta. Con-sideram a vice-gerência menos um assunto espiritual do que

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prático. O Califa, aos seus olhos, é o defensor da Fé, de vendo sua nomeação à escolha e aprovação do povo.

Por importantes que sejam essas diferenças, ambas as seitas concordam na expectativa de uma Manifestação du-pla. Os xiitas esperam o Qá'im, que deve vir na plenitude dos tempos, e também o regresso do Imame Husayn. Os suni-tas esperam o aparecimento do Mihdí e também a volta de Jesus Cristo. Quando o Báb, no começo de Sua missão, con-tinuando a tradição dos xiitas, proclamou Sua função sob título duplo de, primeiro, o Qá'im e, segundo, a Porta, ou Báb, alguns dos maometanos interpretaram mal esta última referência. Imaginaram que isso significasse ser Ele uma quinta Porta em sucessão a Abu'l-Hasan-'Alí. Seu verdadeiro significado, entretanto, como Ele mesmo anunciou claramen-te, era muito diferente. Ele era o Qá'im; mas o Qá'im, em-bora Sumo Profeta, estava ligado a um maior Manifestante sucedâneo, assim como o tinha estado João Batista a Cristo. Era o Precursor de Alguém ainda mais poderoso do que Ele próprio. Ele haveria de descrever; aquele poderoso haveria de crescer. Do mesmo modo que João Batista fora o Arauto ou Porta do Cristo, assim foi o Báb o Arauto ou Porta de Bahá'u'lláh.

Há muitas tradições autênticas que mostram que o Qá'im ao aparecer, traria consigo leis novas e assim aboliria o Islã. Mas não era isso que a hierarquia estabelecida en-tendia. Com confiança esperavam seus integrantes que o pro-metido advento não viria substituir a revelação por uma nova e mais rica, mas sim endossaria e fortaleceria o sistema do qual faziam parte. Aumentaria incalculavelmente seu pres-tígio pessoal, estenderia sua autoridade por todas as naçõess obtendo para eles o prestígio relutante e abjeto da humani-dade. Quando o Báb revelou Seu Bayán, proclamou um novo código de lei religiosa e instituiu por preceito e exemplo uma profunda reforma moral espiritual, os sacerdotes imediata-mente pressentiram o perigo mortal. Viram em risco, seu monopólio, ameaçadas suas ambições, suas próprias vidas e conduta expostas à ignomínia. Levantaram-se contra Ele em beata indignação. Declararam perante o Xá e todo o povo que esse pretencioso era um inimigo da erudição sã, um subversor do Islã, traidor de Maomé e um perigo não só para

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a santa igreja, mas também para a ordem social e para o próprio Estado.

A causa da rejeição e perseguição do Báb foi em sua essência a mesma da rejeição e perseguição de Cristo. Não tivesse Jesus trazido um Novo Livro, se tivesse não apenas reiterado os princípios espirituais ensinados por Moisés, como também continuado os preceitos e regulamentos de Moisés, Ele, como simples reformador moral, teria talvez escapado à vingança dos escribas e fariseus. Sustentar, po-rém, que qualquer parte da lei mosaica, até ordenações ma-teriais como aquelas que se referiam ao divórcio e à obser-vância do sábado, pudesse ser modificada — e justamente por um pregador de Nazaré que nem se ordenou —, isso iria ameaçar os interesses dos próprios escribas e fariseus e, desde que eram os representantes de Moisés e de Deus, também seria blasfêmia contra o Altíssimo. Logo que foi com-preendida a posição de Jesus, Sua perseguição começou. Por recusar a desistir, Ele foi morto.

Por razões semelhantes, o Báb desde o início encontrou oposição pelos interesses criados pela religião dominante, que o acusava de extirpador da fé. Entretanto, mesmo na-quele país tenebroso e fanático, os mullás (equivalentes aos escribas na Palestina dezoito séculos antes) não acharam fácil apresentar um pretexto plausível para destruir Aquele que pensavam ser seu inimigo.

O único registro conhecido de que o Báb fora visto por um europeu pertence ao período de Sua perseguição, quando um médico inglês residente em Tabríz, dr. Cormick, foi cha-mado pelas autoridades persas para pronunciar-se sobre a condição mental do Báb. A carta do médico, dirigida a um colega numa missão americana na Pérsia, é citada em Mate-rials for the Stuãy of the Bábí Religion (Material para o Es-tudo da Religião Bábí) pelo professor E. G. Browne. "Pe-diu-me" escreve o médico "alguns detalhes sobre minha entre-vista com o fundador da seita conhecida como Babí. Nada de importante ocorreu nessa entrevista, porque o Báb estava ciente de que eu havia sido mandado com outros dois mé-dicos para verificar se ele era de mente sã ou simplesmente um louco, para decidir a questão se ele devia ser morto ou não. Sabendo disso, ele reluta em responder a qualquer per-

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gunta que lhe fosse feita. Em resposta, ele apenas nos con-templava com olhar suave, entoando, numa voz baixa, melo-diosa, alguns hinos, suponho. Outros dois siyyids, amigos íntimos dele, e que depois também foram mortos, estavam inclusive presentes, além de alguns oficiais do governo. Só se dignou a me responder quando lhe disse que eu não era um muçulmano e gostaria de saber algo sobre sua reagião porque eu talvez me inclinasse a adotá-la. Ele me olhou mui-to atentamente ao ouvir isso e respondeu que não tinha ne-nhuma dúvida de que todos os europeus se converteriam para a sua religião. Nosso relatório ao xá naquela ocasião foi feito de forma que lhe poupassem a vida. Ele foi morto algum tempo depois por ordem do Amír-Nizám, Mírzá Taqí Khán. Em conseqüência de nosso relatório, ele recebeu apenas al-gumas bastonadas, durante as quais um farrásh, intencional-mente ou não, lhe bateu no rosto com o bastão destinado aos pés, o que ca,usou-lhe uma grande ferida e inchação no rosto. Quando lhe perguntaram se queria que um cirurgião persa lhe fosse trazido para tratá-lo, ele expressou o desejo de que eu fosse chamado, dessa forma, eu o tratei por alguns dias, mas nesses encontros nunca consegui que ele falasse comigo confidencialmente, porque sempre estavam presentes alguns oficiais do governo, em vista de ele ser prisioneiro. Era um homem de aspecto muito meigo e delicado, de esta-tura um tanto pequena e muito mais alvo do que a maioria dos persas, com voz suave, melodiosa, que muito me impres-sionou. Sendo um siyyid, usava o traje daquela seita, como também o faziam seus dois companheiros. De fato, toda a sua aparência, bem como seu porte, contribuiu muito para que conquistasse minha simpatia. Sobre sua doutrina nada ouvi de seus próprios lábios, embora se entendesse que sua reli-gião se aproximava de certa forma do cristianismo. Alguns carpinteiros armênios, mandados a sua prisão para fazer re-paros, viram-no lendo a Bíblia, o que ele não tentou esconder mas, ao contrário, até lhes falou disso. Com absoluta certeza, sua religião não encara o cristianismo com o fanatismo tí-pico dos muçulmanos, nem há qualquer restrição às mulhe-res como a que existe atualmente."

Tal foi a impressão que o Báb causou nesse inglês culto. Até onde a influência de Seu caráter e ensinamento se tem

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espalhado desde então pelo Ocidente, não há nenhum outro registro de que Ele tenha sido visto e observado por olhos europeus.

Suas qualidades eram de uma nobreza e beleza tão ra-ras, sua personalidade tão meiga e, não obstante, tão dinâ-mica, e ao Seu encanto natural aliava-se tanto tato e dis-cernimento que, após sua declaração, logo Ele se tornaria uma figura de grande popularidade por toda Pérsia. Con-quistava a simpatia de quase todos com quem tinha contato pessoal, muitas vezes convertendo Seus carcereiros para Sua Fé e transformando os malévolos em amigos cheios de admiração.

Silenciar tal homem sem provocar algum grau de ódio público não era coisa muito fácil, mesmo na Pérsia de mea-dos do século passado. Com os seguidores do Báb, porém, era diferente.

Aqui os mullás nenhum motivo de protelação encontra-ram e pouca necessidade de intrigas. O fanatismo dos mao-metanos, desde o xá até o mais humilde, podia facilmente ser provocado contra qualquer desenvolvimento religioso. Os bábís podiam ser acusados de deslealdade ao xá, sendo às suas atividades atribuídos obscuros motivos políticos. Além disso, os seguidores do Báb já eram numerosos, mui-tos deles em boa situação financeira, havendo alguns ricos e poucos que não tivessem algumas possessões as quais vizi-nhos invejosos pudessem ser instigados a desejar. Apelando aos receios das autoridades e às baixas paixões nacionais do fanatismo e da avareza, os mullás deram início a uma campa-nha de ultraje e espoliação que mantinham com implacável ferocidade até julgarem haver atingido completamente seu objetivo.

Muitos dos incidentes desta narrativa triste são relata-dos por Nabíl em sua história, entre os quais os aconteci-mentos em Mázindarán, Nayríz e Zanján sobressaem em virtude do caráter dos episódios de heroísmo dos bábís, quan-do eram acossados. Nessas três ocasiões, alguns bábís, le-vados ao desespero, retiraram-se em conjunto de suas casas para um lugar predeterminado e, erigindo ao seu redor forti-ficações, desafiaram com armas a continuação das persegui-ções. Para qualquer testemunha imparcial, as alegações dos

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mullás de um motivo político eram evidentemente falsas Os bábís mostravam-se sempre prontos — caso lhes fosse dada uma garantia de que não mais seriam molestados em função de suas crenças religiosas — para voltar pacificamen-te às suas ocupações civis. Nabíl enfatiza os cuidados no sentido de evitar agressões. Lutavam por suas vidas com habilidade e força resolutas, mas não atacavam. Mesmo em meio a um conflito feroz, não tiravam nenhuma vantagem nem davam um golpe desnecessário.

'Abdu'1-Bahá é citado em Traveller's Narrative (Narrati-va de um Viajante), pp. 34-35, onde diz o seguinte sobre o aspecto moral de suas ações:

"O ministro (Mírzá Taqí Khán), com absoluta arbitra-riedade, sem haver recebido quaisquer instruções ou pedido permissão, emitiu ordens por todos os lados para punir e castigar os bábís. Governadores e magistrados procuravam um pretexto para amontoar riquezas, e os oficiais, um meio para adquirir lucros; doutores célebres, do alto de seus púl-pitos, incitavam os homens a uma investida geral; os pode-res da lei religiosa e civil deram-se as mãos e esforçavam-se para extirpar e destruir esse povo. Naquele tempo esse povo não havia adquirido ainda o devido conhecimento dos prin-cípios fundamentais e doutrinas ocultas dos ensinamentos do Báb, e não reconhecia seus deveres. Não só seus conceitos e idéias estavam de acordo com os valores da Pérsia antiga, como também sua postura de vida e conduta. A via de acesso ao Báb, além disso, estava vedada, e a chama da tribulação ardia visivelmente por todos os lados. Em virtude do decreto dos mais célebres doutores, o governo e, de fato, as massas, com poder irresistível, haviam institucionalizado a rapina e a pilhagem por todos os lados, ocupando-se em punir e tor-turar, matar e depredar, a fim de poder extinguir esse fogo e fazer desfalecer essas pobres almas. Em cidades onde ha-via apenas um número limitado, todos, com mãos amarradas, tornaram-se alimento para a espada, enquanto onde eram nu-merosos, levantavam-se em defesa própria, de acordo com suas crenças anteriores, uma vez que lhes era impossível per-guntar qual era seu dever e lhes estavam fechadas todas as portas".

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Bahá'u'lláh, ao proclamar Sua Missão alguns anos de-pois, não deixou lugar para a incerteza quanto à lei a ser aplicada numa situação como essa, quando afirmou: "Me-lhor ser morto do que matar".

Qualquer resistência oferecida pelos taábís aqui, ou em outra parte, provou ser ineficaz. Foram esmagados em gran-de número. O próprio Báb foi tirado de sua cela e executado. Dentre os principais discípulos que professaram sua fé nEle nenhuma só alma restava viva, salvo Bahá'u'lláh, que com Sua família e alguns devotos, foi expulso, destituído de tudo, para o exílio e a prisão numa terra estrangeira.

O fogo, entretanto, embora abafado, não se extinguira. Ardia nos corações dos exilados, que o levavam de país a país enquanto viajavam. Mesmo em sua terra natal, na Pér-sia, havia-se propagado tão profundamente que não pode ser apagado pela violência física, flamejando ainda no coração do povo e necessitando de apenas um sopro do espírito para ser avivado até se tornar uma conflagração que a tudo consumiria.

A Segunda e Maior Manifestação de Deus foi proclama-da de acordo com a profecia do Báb na data por Ele predi-ta. Nove anos após o início da Revelação Bábí — isto é, em 1853 —, Bahá'u'liáh, em algumas de Suas odes, fez alusão a Sua identidade e Missão e, dez anos mais tarde, enquanto residia em Bagdá, declarou se a Seus companheiros como o Prometido.

Agora o grande Movimento para o qual o Báb prepara-ra o caminho começava a mostrar toda a sita abrangência e a magnificência de seu poder. Apesar de o próprio Bahá'u'-lláh ter vivido e morrido como exilado e prisioneiro, sendo conhecido por poucos europeus, Suas epístolas que procla-mavam o novo advento foram levadas aos grandes governan-tes de ambos os hemisférios, desde o xá da Pérsia até o papa e o presidente dos Estados Unidos. Após Sua morte, Seu fi-lho, 'Abdu'1-Bahá, levou as boas novas pessoalmente para o Egito e para muitas regiões do mundo ocidental. 'Abdu'1-Bahá visitou a Inglaterra, a França, a Suíça, a Alemanha e os Estados Unidos, anunciando em toda a parte que mais uma vez os céus se abriram e novos desígnios vieram aben-çoar os filhos dos homens. Faleceu em novembro de 1921.

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e hoje o fogo que parecia extinto para sempre, arde nova-mente em todos os recantos da Pérsia, já se estabeleceu no continente americano e se propagou em todos os países do mundo. Em torno dos sagrados escritos de Bahá'u'lláh e da exposição autorizada de 'Abdu'1-Bahá, cresce uma literatura volumosa repleta de comentários e de testemunhos. Os prin-cípios humanitários e espirituais enunciados há décadas atrás no tenebroso Oriente por Bahá'u'lláh, e por Ele coeren-temente esquematizados, estão sendo adotados, um após ou-tro, por um mundo que, embora desconhecendo sua origem, os considera características de uma civilização evolutiva. A percepção de que a humanidade rompeu com o passado e de que a velha orientação não a conduzirá através das emergên-cias do presente encheu de dúvidas e apreensões todos os homens que pensam, salvo aqueles que aprenderam a encon-trar na história de Bahá'u'lláh o significado de todos os pro-dígios e avanços de nossa era.

Quase três gerações se passaram desde o início do Movi-mento. Quaisquer de seus primeiros adeptos que escaparam da espada e da fogueira já morreram há muito tempo, se-gundo o curso da natureza. A porta da informação contem-porânea acerca de seus dois grandes líderes e seus discípulos heróicos está fechada para sempre. A narrativa de Nabíl, cuidadosa coleção de fatos feita no interesse da verdade e completada durante a vida de Bahá'u'lláh, tem agora um valor incomparável. O autor tinha treze anos quando o Báb se declarou, tendo nascido na aldeia de Zarand na Pérsia, no dia 18 de Safar, 1247 A.H.. Durante a vida inteira esteve associado intimamente aos líderes da Causa. Embora naque-le tempo fosse apenas um menino, estava se preparando para ir a Shaykh Tabarsí e se juntar ao grupo de Mullá Hu-sayn quando a notícia do massacre pérfido dos bábís frus-trou-lhe o objetivo. Diz ele em sua narrativa que em Teerã conhece Hájí Mírzá Siyyid 'Ali, irmão da mãe do Báb, que na ocasião acabava de voltar de uma visita ao Báb na for-taleza de Chihríq; durante muitos anos ele foi companheiro íntimo do secretário do Báb, Mírzá Ahmad.

Ele entrou na presença de Bahá'u'liáh em Kirmánsháh e Teerã antes da data do exílio para o Iraque e mais tarde 3ste/e ocupado em Seu serviço em Bagdá e em Adrianópo-

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lis, bem como na cidade-prisão de 'Akká. Mais de uma vez foi ele mandado em missões à Pérsia para promover a Causa e animar os crentes dispersos e perseguidos e, quando Ba-há'u'lláh faleceu, em 1892 A.D., ele estava residindo em 'Akká. A maneira de sua morte foi patética e lamentável, pois ele ficou tão terrivelmente afetado pela morte do Grande Bem-Amado que, acabrunhado pelo pesar, afogou-se no mar, sendo seu corpo encontrado na praia, próximo à cidade de 'Akká.

Sua crônica inicia-se em 1888, quando gozava da assistên-cia pessoal de Mírzá Músá, irmão de Bahá'u'lláh, e foi termi-nada em aproximadamente um ano e meio; partes do ma-nuscrito foram revisadas e aprovadas, algumas por Bahá'u'-lláh e outras por 'Abdu'1-Bahá.

A obra completa leva a história do Movimento até a morte de Bahá'u'lláh em 1892.

A primeira metade desta narrativa, que termina com a expulsão de Bahá'u'lláh da Pérsia, é contida no presente volume. Sua importância é evidente. Será lida menos por causa das poucas passagens comoventes que contém ou mes-mo por seus numerosos quadros de heroísmo e inabalável fé do que por aqueles acontecimentos perenemente signifi-cativos aos quais dá um registro ímpar.

O ESTADO DE DECADÊNCIA DA PÉRSIA EM MEADOS DO SÉCULO XIX

Os soberanos Qájár

"Em teoria o rei pode fazer o que lhe apraz; sua pala-vra é lei. O ditado de que 'A lei dos medos e persas não se altera' foi meramente uma antiga perífrase para o absolu-tismo do soberano. Ele nomeia e pode demitir todos os mi-nistros, oficiais, funcionários e juizes. Sobre sua própria fa-mília e todos de sua casa e sobre os funcionários civis ou militares a seu serviço, ele tem poder de vida e morte sem apelação a qualquer tribunal. A propriedade de um indivíduo que cair em desonra, ou for executado, reverte a ele. O di-reito de tirar a vida em qualquer caso cabe a ele tão-somente, mas pode ser delegado a governadores ou deputados. Toda propriedade não concedida anteriormente pela coroa ou com-

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prada — à qual não pode ser estabelecido título legal —, lhe pertence, ficando inteiramente à sua disposição. Todos os direitos ou privilégios — como a construção de obras pú-blicas, a operação de minas, a instituição de telégrafos, es-tradas, ferrovias, bondes, etc, enfim todos os recursos do país — cabem a ele e dele devem ser comprados antes de poderem ser assumidos por outros. Em sua pessoa se fun-dem as tríplices funções de governo: legislativa, executiva e judiciária. Nenhuma obrigação lhe é imposta além da obser-vância exterior das formas da religião nacional. Ele é o pivô sobre o qual gira toda a máquina governamental.

"Tal é em teoria e foi, até recentemente, na prática, o caráter da monarquia persa. E nenhuma, dessas altas pre-tensões sequer foi ainda cedida abertamente. A linguagem em que o xá se dirige aos súditos e estes se lhe dirigem lembra o tom orgulhoso em que um Artaxerxes ou Dario falava com seus milhões de tributários, podendo suas pala-vras ainda ser lidas no registro gravado em muro de rocha e em túmulo. Continua ele a ser o Xainxá ou Rei dos Reis; o Zillu'lláh, ou Sombra de Deus; o Qibliy-i-Álam, ou Centro do Universo, 'Exaltado como o planeta Saturno; Manan-cial da Ciência; Senda do Céu; Soberano Sublime, cujo estandarte é o Sol, cujo esplendor é o do Firmamento; Mo-narca de exercícios numerosos como as estrelas.' Ainda o súdito persa endossaria o preceito de Sa'dí, que 'O vício aprovado pelo rei torna-se virtude; se alguém procura con-selho oposto, tinge as mãos em seu próprio sangue'. A mar-cha do tempo não lhe impôs concilio religioso ou secular, nem ulemá ou senado. Instituições eletivas e representati-vas não introduziram ainda suas feições irreverentes. Nada por escrito existe para refrear a prerrogativa real.

" . . . Tal é a divindade que cerca um trono na Pérsia que não só o xá nunca assiste a um jantar de Estado ou come à mesa com seus súditos, com a exceção única de um ban-quete para seus principais parentes masculinos no Naw-Rúz mas a atitude para com ele e a linguagem empregada até pelos ministros de confiança são de aquiescência e adu-lação servis. 'Possa eu ser vosso sacrifício, asilo do univer-so' é o modo comum adotado até pelos súditos da mais alta categoria ao se dirigirem a ele. Em seu próprio ambi-

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ente, pessoa alguma há para lhe dizer a verdade ou lhe dai. um conselho desapaixonado. Os ministros estrangeiros são, provavelmente, quase a única fonte de onde se podem saber os fatos como são, ou receber conselhos sinceros, ainda que esses conselhos sejam dados por interesse. Com as melhores intenções do mundo para o empreendimento de grandes pla-nos e o progresso de seu país, pouco ou nenhum controle tem ele sobre a execução de um projeto, uma vez que haja pas-sado por suas mãos e se tornado o joguete de oficiais cor-ruptos e ambiciosos. A metade do dinheiro dado com seu consentimento nunca chega a seu destino, mas recheia cada bolso intermediário, cuja engenhosidade profissional pode habilmente trazê-lo de volta; metade dos projetos por ele autorizados não se realiza, pois o ministro ou funcionário incumbido confia nos caprichos de esquecimento do soberano para dissimular sua negligência do dever.

Há somente um século prevalecia o abominável sistema de cegar possíveis aspirantes ao trono, de mutilá-los com selvageria e condená-los à prisão perpétua, desencadeando a matança e a carnificina sistemática. A desgraça não era menos repentina do que a promoção, e a morte era muitas vezes concomitante à desgraça.

" . . . Fath-'Alí Sháh... e seus sucessores têm-se provado tão extraordinariamente prolíficos em progênie masculina que a continuidade da dinastia tem sido assegurada; e pro-vavelmente não há no mundo uma família reinante que num período de cem anos tenha aumentado até atingir tão amplas dimensões como a casa real da Pérsia... Nem no número de suas esposas, nem na qualidade de sua prole, pode o xá, em-bora inegavelmente um homem de família, ser comparado com seu bisavô, Fath-'Alí Sháh. À alta opinião tida universal-mente das capacidades domésticas daquele monarca, imagi-no eu, devem ser atribuídas as estimativas divergentes, en-contradas em obras sobre a Pérsia, a respeito do número de suas concubinas e seus filhos. O coronel Drouville, em 1813, calculou em setecentos o número de suas esposas, com 64 filhos e 125 filhas. O coronel Stuart, que esteve na Pérsia no ano após a morte de Fath-'Alí, lhe atribuiu mil esposas e 105 filhos... A senhora Dieulafoy também menciona cinco mil descendentes, mas cinqüenta anos mais tarde (o que

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parece ter maior probabilidade)... A estimativa que se en-contra no Násikhu'-t-Tavárikh, uma grande obra histórica persa moderna, dá o número das esposas de Fath-'Alí como superior a mil, e o da sua progênie como 260, dos quais 110 sobreviveram ao pai. Daí o conhecido provérbio persa: 'Ca-melos, pulgas e príncipes existem em toda parte'. . . Nenhu-ma família real jamais deu mais frisante exemplo da afirma-ção escriturai: 'Em vez de teus pais, tu terás filhos, a quem poderás fazer príncipes em todas as terras'; pois quase ne-nhum cargo de governador ou outro lucrativo existia na Pérsia que não fosse ocupado por um desses enxames de principelhos; e até hoje a miríade de Sháh-zádihs, ou des-cendentes de um rei, é urna verdadeira maldição para o país, se bem que muitos dessa desditosa estirpe da realeza, que consomem grande parte da renda em concessões e pensões anuais, ocupem atualmente lugares muito inferiores como telegrafistas, secretários, etc. Fraser deu-nos um quadro vi-vido da miséria causada ao país há cinqüenta anos (1842) por essa 'raça de zangões reais' que se apoderavam de todos os cargos de governo não só em cada província, mas em cada bulúk ou distrito, cada cidade e município; cada qual man-tinha uma corte e um harém enorme e devastavam o país assim como um enxame de gafanhotos... Fraser, passando pelo Ãdhírbáyján em 1834 e observando os resultados calami-tosos do sistema segundo o qual Fath-'Alí Sháh distribuía sua colossal progênie masculina em todos os cargos de go-verno no reino inteiro, comentou: "A mais óbvia conseqüên-cia desse estado de coisas é uma animosidade completa e universal para com a raça Qájár, sendo isso um sentimento que predomina em cada coração e tema de cada língua.

" . . . Assim como, durante suas viagens européias, ele (Násiri'd-Dín Sháh) colecionava um vasto número de objetos que, para a mente oriental, pareciam ser maravilhosas curio-sidades, mas que desde então têm sido amontoados em vários apartamentos do palácio, ou guardados e esquecidos. Também na esfera maior da política e administração públi-ca ele está continuamente introduzindo e promovendo algum projeto ou invenção que, uma vez satisfeito seu capricho, é abandonado ou deixado de lado. Numa semana, é o gás; na outra, é a luz elétrica. Agora é uma escola para oficiais;

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depois, um hospital militar. Hoje, é um uniforme russo; ontem foi um navio de guerra alemão para o Golfo Pérsi co. Um novo certificado militar é emitido neste ano; um novo código de leis é prometido para o próximo. Nada re-sulta de qualquer desses brilhantes projetos, e os depósi-tos do palácio não estão mais cheios de mecanismos que-brados e pequenos objetos descartados do que estão cheios os escaninhos dos departamentos governamentais de refor mas abortivas e fiascos.

" . . . Num aposento superior do mesmo pavilhão, Mír-zá Abu'1-Qásim, o Qá'im-Maqám ou grão-vizir de Muham-mad Sháh (pai do monarca atual), foi estrangulado em 1835, por ordem de seu mestre real, que com isso seguiu um exemplo que lhe foi dado pelo seu predecessor, e seu, dando ele próprio um exemplo que foi seguido devidamente por seu filho. Deve ser raro encontrar na História três sobera-nos sucessivos que mandaram matar, por motivos de ciú-mes unicamente, os três ministros que os elevaram ao tro-no, ou que estavam na ocasião de sua queda desempenhando o mais alto cargo do Estado. Tal é a distinção tríplice dos xás Path-'Alí, Muhammad e Násiri'd-Dín."

O governo

"Num país tão atrasado em progresso constitucional, tão destituído de formas, estatutos e cartas constitucionais, e tão firmemente estereotipado pelas tradições imemoriais do Oriente, o elemento pessoal, como era de esperar, tem grande ascendência; e o governo da Pérsia pouco mais é do que o exercício arbitrário da autoridade por uma série de unidades em escala descendente — do soberano ao chefe de uma pequena aldeia. O único freio que opera sobre as graduações oficiais inferiores é o medo de seus superiores, mas existem meios de mitigá-lo; o único freio para as gra-duações superiores é o medo do soberano, e este nem sem-pre é imune a semelhantes métodos de pacificação; e o medo que restringe o próprio soberano não é a opinião nacional, mas sim, a estrangeira, representada pelas críticas hostis da imprensa européia... O xá, de fato, pode ser considerado,

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neste momento, como talvez o melhor espécime existente de um déspota moderado, pois, dentro dos limites indicados, ele é praticamente irresponsável e onipotente. Tem domínio absoluto sobre a vida e a propriedade de cada um de seus súditos. Seus filhos não têm poder independente e, num piscar de olhos, podem ser reduzidos à impotência ou men-dicância. Os ministros são elevados e degradados ao bel-prazer real. O soberano é o executivo único, sendo todos os oficiais seus deputados. Não existe tribunal civil para restringir ou modificar sua prerrogativa.

" . . . Sobre o caráter geral e as habilidades dos minis-tros da corte persa, sir J. Malcolm, em sua obra histórica, escreveu o seguinte nos primeiros anos do século: 'Os mi-nistros e principais oficiais da corte são quase sempre ho-mens de modos polidos, bem versados nos assuntos de seus respectivos departamentos, afáveis no trato, suaves e obser-vadores argutos; mas essas qualidades agradáveis e úteis são, em geral, tudo o que possuem. Nem é possível encon-trar virtude ou conhecimentos liberais em homens cujas vidas são desperdiçadas com a observância das formalidades; cujos meios de subsistência derivam das fontes mais cor-ruptas; que se ocupam de intrigas que visam sempre aos mesmos objetivos: preservar-se a si próprios ou arruinar os outros, que não podem, sem perigo, falar outra linguagem senão a da lisonja e da impostura e que são, numa palavra, condenados pela sua condição a ser venais, astuciosos e falsos. Já houve, sem dúvida, muitos ministros da Pérsia que seriam injustamente classificados sob essa descrição geral; mas mesmo aqueles que mais se distinguiram pelas suas virtudes e seus talentos têm sido forçados, em algum grau, a acomodar seus princípios à sua posição social; e, a menos que a confiança do soberano os colocassem além do medo de rivais, a necessidade os tem obrigado a praticar a subserviência e a dissimulação em desacordo com a verdade e a integridade que tão-somente podem exigir o respeito que todos se dispõem a mostrar aos bons e grandes homens'. Estas observações indicam a perspicácia e a justiça que caracterizam seu eminente autor, e receamos que, em grande parte, se apliquem tanto à presente quanto à velha geração."

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O povo " . . . Chegamos agora àquilo que é a característica car-

deal e distintiva da administração iraniana. A administração pública — e ainda mais a própria vida — nesse país con-siste em sua maior parte, pode-se dizer, num intercâmbio de presentes. Pode parecer, à primeira vista, que essa prá-tica demonstre, sob seus aspectos sociais, os sentimentos generosos de um povo amável; ocorre, porém, que não há nenhum sentimento afetivo envolvido; por exemplo, ao con-gratular-se por haver recebido um presente, você descobre que deve não só retribuí-lo por um de valor equivalente, como também remunerar generosamente o portador do pre-sente (para quem, muito provavelmente, tal prêmio é o único meio conhecido de subsistência) em proporção ao seu valor pecuniário. Sob seus aspectos políticos a prática de dar pre-sentes, embora consagrada nas tradições arraigadas do Ori-ente, é sinônima do sistema descrito em outras partes de maneira muito pouco lisonjeira. Este é o sistema segundo o qual o governo da Pérsia se orienta desde séculos e cuja continuação opõe uma barreira sólida à qualquer reforma verdadeira. A começar pelo xá, quase não existe um oficial que não se disponha a aceitar presentes; raro é um cargo que não seja conferido em troca de presentes; ou uma renda que não tenha sido acumulada por meio de presentes, Cada indivíduo na hierarquia acima mencionada, praticamente sem exceção, apenas comprou seu cargo, mediante um pre-sente em dinheiro ao xá, a um ministro, ou a um governador superior por quem ele foi nomeado. Se há vários candidatos para um cargo, com toda probabilidade aquele que fizer a melhor oferta ganhará.

" . . . O madákhil é uma acariciada instituição nacional na Pérsia, cuja efetivação ocorre numa miríade de formas diferentes, sendo sua engenhosidade igualada somente pela sua multiplicidade, e é o culminante interesse e deleite da existência de um persa. Essa palavra extraordinária, para a qual Mr. Watson diz não haver no inglês equivalente exato, pode ser traduzida de várias maneiras, como, commission, perquisite, áouceur, consideration, pickings and stealing, profit (comissão, propina, gratificação, remuneração, furtos

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e roubos, lucro), segundo o contexto imediato em que é em-pregada. Em termos gerais, significaria aquele saldo de van-tagem pessoal que se manifesta usualmente em forma de dinheiro e pode ser extraído de toda e qualquer transação. Uma negociação, na qual duas partes são envolvidas como doador e receptor, como superior e subordinado, ou mesmo como agentes iguais num contrate, não pode ser efetivada na Pérsia sem que a parte representada como autora do favor ou serviço reclame e receba definida remuneração mo-netária por aquilo que fez ou deu. Pode-se dizer, natural-mente, que a natureza humana não apresenta grandes varia-ções de um povo para outro; da mesma forma, os sistemas se assemelham — em persa, um homem, um irmão, tem o mesmo sentido universal. Até certo ponto é verdade. Mas em nenhum país que já vi ou do qual ouvi falar é tão aber-tamente corrupto como na Pérsia. Longe de se limitar à es-fera da economia doméstica ou às transações comerciais, penetra todos os níveis da vida e inspira a maioria das ações. Pela sua operação, pode-se dizer que na Pérsia se apagou da categoria das virtudes sociais a generosidade ou serviço gra-tuito e se elevou como princípio orientador da conduta hu-mana a cobiça... Assim é instituída uma progressão aritmé-tica de saque, desde o soberano até o súdito, cada unidade na escala descendente remunerando-se da próxima unidade abaixo dela, sendo o infeliz camponês a vítima final. Não é de admirar que, sob essas circunstâncias, o cargo público é o caminho comum para a riqueza e são freqüentes os casos de homens que, tendo começado do nada, passam a possuir residências magníficas, cercados por numerosos servidores e vivendo de um modo principesco. Ganhe o quanto puderes é a regra que a maioria dos homens estabelece para si ao entrar para a vida pública. Nem o espírito popular se res-sente com esta norma de conduta; alguém que tenha tido a oportunidade e não a aproveitou para encher os próprios bolsos é objeto de severas críticas por sua falta de bom senso. Ninguém dirige um pensamento sequer àqueles que foram vítimas desse estado de exploração institucionalizada, verdadeira extorsão que permite que a riqueza seja dissipada com luxuosas casas de campo, curiosidade européias e cor-tejos enormes."

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" . . . Uma das características da vida pública na Pérsia que mais rápido chamam a atenção do estrangeiro, e que indiretamente derivam das mesmas condições, é o número enorme de atendentes e sequazes que se enxameam ao redor de um ministro ou oficial de qualquer espécie. Quando se trata de funcionários de alto escalão, estes variam em nú-mero de cinqüenta a quinhentos. Diz Benjamim que em seu tempo o primeiro-ministro mantinha três mil. Ora, a teoria de etiqueta social e cerimonial que predomina na Pérsia, como em todo Oriente é, até certo ponto, responsável por esse estado de coisas, sendo a importância da pessoa, em grande parte, estimada pela ostentação que ela pode fazer e pelo número de servos que em certas ocasiões pode exibir. É, porém, na instituição do 'Madákhil' e dos lucros ilícitos e roubos que está a raiz do mal. Se o governador ou ministro fosse obrigado a pagar ordenados a essa verdadeira horda de servos, suas fileiras diminuiriam rapidamente. A grande maioria deles não é paga; eles se ligam ao seu mestre por causa das oportunidades para extorsão que tal ligação lhes oferece e prosperam e enriquecem com a pilhagem. Pron-tamente se percebe a que ponto esse enxame de sanguessugas esgota os recursos do país. São verdadeiros tipos de traba-lhadores improdutivos, absorvendo, mas nunca criando a riqueza; e sua existência é quase uma calamidade nacio-nal . . . É ponto cardeal da etiqueta persa que uma pessoa, ao fazer uma visita, seja acompanhada do maior número possível dos membros de seu próprio estabelecimento, quer montada ou viajando a pé, sendo o número desse séquito aceito como indício da categoria do mestre."

A Ordem Eclesiástica

"Maravilhosamente adaptado tanto ao clima quanto ao caráter e às ocupações daqueles países sobre os quais tem posto seu punho adamantino, o Islã segura seu devoto em completa submissão, desde o berço até o túmulo. Para ele, não é apenas religião, mas também governo, filosofia e ciên-cia. O conceito maometano não é tanto o de uma igreja do Estado, mas principalmente, caso se permita a frase, o de um Estado eclesiástico. Os alicerces sobre os quais a própria

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sociedade se sustenta não são de fabricação civil, e sim, ecle-siástica; e envolto nessa crença soberana, ainda que parali-sante, o muçulmano vive contente por haver rendido toda a volição, julga ser seu mais alto dever adorar a Deus e se constranger ou, quando impossível, desprezar aqueles que não O adoram no espírito, morrendo com a esperança certa e segura de ganhar o paraíso.

" . . . Esses Siyyids, ou descendentes do Profeta, são um prejuízo intolerável para o país, derivando de sua alegada descendência e da prerrogativa do turbante verde o direito a uma independência e insolência de conduta das quais seus conterrâneos, não menos que os estrangeiros, têm de sofrer.

" . . . Os judeus persas, como uma comunidade, estão mergulhados em grande pobreza e ignorância... Por toda a parte dos países muçulmanos do Oriente, esse povo infeliz tem sofrido a perseguição que o costume lhe ensinou, bem como ao mundo, a considerar como sua sorte normal. Nor-malmente forçados a viver isolados num gueto ou bairro afastado das cidades, desde tempos imemoriais têm os ju-deus sofrido por não ter uma ocupação definida; por seus costumes e vestuário diferentes, o que os marcou como párias sociais, distintos de seus semelhantes... Em Isf áhán, onde vivem 3.700 judeus, segundo se diz, e onde desfrutam uma condição relativamente melhor do que em outras partes da Pérsia, não lhes é permitido usar o Kuláh ou cobertura persa para a cabeça, nem ter lojas no bazar, construir as paredes de suas casas tão altas como as de um vizinho mu-çulmano, ou andar montado ou num veículo nas ruas. . . Logo, entretanto, que ocorre alguma explosão de fanatismo na Pérsia ou em outra parte, é provável que os judeus sejam as primeiras vítimas. A mão de todo homem é então levan-tada contra eles, e ai do desventurado hebreu que seja o primeiro a encontrar uma multidão persa.

" . . . Talvez o aspecto mais extraordinário da vida em Mashhad, antes de eu deixar o assunto do santuário e dos peregrinos, seja a providência tomada para o conforto destes últimos durante sua permanência na cidade. Em reconhe-cimento às longas viagens que fizeram, às durezas que su-portaram e às distâncias pelas quais estão separados da família e do lar, lhes é permitido, com a conivência da lei

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eclesiástica e de seus oficiais, contrair casamentos tempo-rários durante sua permanência na cidade. Há uma grande população permanente de esposas idôneas para esse fim. Um mullá é encontrado, e com sua permissão um contrato é lavrado e selado formalmente por ambas as partes, um ho-norário é pago e a união é realizada legalmente. Após haver passado uma quinzena ou um mês, ou qualquer período es-pecificado, o contrato termina; o esposo temporário volta aos seus próprios lares et penates em alguma região distante e a mulher, após um celibato obrigatório de catorze dias, reassume sua carreira de perseverar em matrimônio. Em outras palavras, um gigantesco sistema de prostituição, com a permissão da Igreja, floresce em Mashhad. Não há, pro-vavelmente, cidade mais imoral na Ásia; e eu não gostaria de dizer quantos dos peregrinos que, atravessando, sem ne-nhuma queixa, mares e terras a fim de beijar a grade do santuário do Imame, não são também animados e consola-dos, em sua marcha pela perspectiva de umas férias agra-dáveis, com algo que poderia ser descrito no vernáculo in-glês como 'a good spree' (uma boa farra)."

Conclusão

"Antes de terminar o assunto da lei persa e sua admi-nistração, eu queria acrescentar algumas palavras sobre pe-nalidades e prisões. Nada é mais chocante para o leitor europeu quando prossegue a leitura das páginas sangrentas, manchadas de crime, da história persa do século passado — e, em menor grau felizmente, do atual —, do que o registro de castigos selvagens e torturas abomináveis, atestando al-ternadamente a insensibilidade do bruto e a engenhosidade do demônio. O caráter persa foi sempre fértil em invenção e indiferente ao sofrimento; e no campo das execuções judiciais tem encontrado amplo terreno para o exercício de ambas as habilidades. Até um período muito recente, ainda no reinado atual, criminosos condenados têm sido cruci-ficados, executados por canhões, enterrados vivos, empa-lados, ferrados como cavalos, partidos ao meio ao serem amarrados às copas de duas árvores inclinadas quando vol-

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tam à sua posição original, convertidos em tochas humanas, ou esfolados enquanto vivos.

" . . . Sob um sistema duplo de governo assim como aquele do qual agora completei a descrição — isto é, uma administração na qual cada membro é, sob diversos as-pectos, o subornador como também o subornado; e um procedimento judicial sem lei ou tribunal — compreender -se-á facilmente que confiança no governo não deve existir, e que não há senso pessoal de dever ou orgulho em se ter honra, nenhuma confiança mútua ou cooperação (a não ser no serviço do malfazer), nenhuma vergonha no escândalo, nem crédito na virtude, e, acima de tudo nenhum espírito nacional ou patriótico. Têm razão aqueles filósofos que afirmam que a reforma moral, na Pérsia deve preceder a material, e a interna à exterior. É inútil enxertar brotos novos numa haste cuja própria seiva está esgotada ou en-venenada. Podemos dar à Pérsia estradas e ferrovias, pode-mos pôr em operação suas minas e explorar seus recursos; podemos treinar seu Exército e vestir seus artesãos, mas não a teremos feito entrar no círculo das nações civilizadas antes de penetrarmos no âmago do povo e de havermos dado um jeito novo e radical ao caráter e às instituições nacio-nais. Apresentei este quadro da administração persa, o qual acredito ser verídico, a fim de que os leitores possam com-preender o sistema que os reformadores, quer estrangeiros ou nativos, terão de enfrentar, e o muro férreo de resistência, erigido por todos os instintos mais egoístas da natureza hu-mana, que se opõe às idéias progressistas. O próprio xá, por mais que deseje a inovação, está em algum grau engajado nesse sistema pernicioso, visto que ele lhe deve sua fortuna particular, enquanto aqueles que, nas mais altas vozes o condenam em segredo, não estão atrás dos outros ao curvar as cabeças publicamente no templo de Rimmon. Em cada categoria abaixo do soberano, falta completamente a inicia-tiva para efetivar uma rebelião contra a tirania do costume imemorial; e se um homem forte como o próprio rei não é capaz de empreendê-la, onde está aquele que há de pregar a cruzada?"

Extratos do Pérsia and the Persian Question (A Pérsia e a Questão Persa) por Lord Curzon.

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TRIBUTO DE BAHÁ'U'LLÁH AO BÁB E AOS SEUS PRINCIPAIS DISCÍPULOS

Extraído do Kitáb-I-íqán "Embora jovem e de tenra idade, e não obstante ser a

Causa por Ele revelada contrária ao desejo de todos os po-vos da Terra, dos poderosos aos humildes, dos ricos aos pobres, dos enaltecidos aos aviltados, do rei aos súditos, levantou-se Ele, todavia, e proclamou-a firmemente. Disto todos têm sabido e ouvido falar. A ninguém temia; não to-mava em conta as conseqüências. Poderia tal coisa se ma-nifestar, salvo através do poder de uma Revelação Divina e da potência da invencível Vontade de Deus? Pela justiça de Deus! Fosse alguém nutrir no coração tão grande Reve-lação, só o pensar em declará-la confundir-lhe-ia! Se os co-rações de todos os homens se comprimissem dentro de seu coração, ainda ele hesitaria em se aventurar a tão grave empreendimento. Só poderia realizá-lo com a permissão de Deus, e tão-somente se seu coração estivesse ligado à fonte da Graça Divina, e à sua alma fosse assegurado o infalível sustento do Todo-Poderoso. A que — nós perguntamos — atribuem eles tão grande intrepidez? Será que o acusam de loucura, assim como acusaram aos Profetas antigos? Ou alegam ter sido Seu motivo único a aquisição de prestígio e de riquezas terrenas?

Deus bondoso! Em Seu livro, que intitulou Qayyúmu'l-Asmá — o primeiro, maior e mais poderoso de todos os livros —, Ele profetizou o próprio martírio. Nele se encontra esta passagem: ' õ Tu Remanescente de Deus! Sacrifiquei-me inteiramente por Ti; aceitei maldições por Tua causa; e nada almejei, senão o martírio no caminho do Teu amor. Testemu-nha suficiente para mim é Deus, o Excelso, o Protetor, o Ancião dos Dias!'

" . . . Poder-se-ia supor que o Revelador de palavras como estas andasse em outro caminho senão no de Deus, e alme-jasse qualquer coisa que não fosse a Sua aprovação? Nesse mesmo versículo jaz oculto um sopro de desprendimento, que se fosse emitido em sua plenitude sobre o mundo, faria com que todos os seres renunciassem à vida e sacrificassem a alma.

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" . . . E considera tu agora como esse Sadrih do Ridván de Deus, ainda na flor da juventude, se levantou para pro-clamar a Causa de Deus! Vê que constância esse Manifes-tante da Beleza Divina revelou. O mundo inteiro levantou-se para impedi-Lo, mas falhou completamente. Quanto mais severa a perseguição que infligiam a esse Sadrih abençoado, mais crescia Seu fervor e mais intensamente a chama de Seu amor ardia. Tudo isso é evidente e ninguém lhe contesta a verdade. Afinal, Ele entregou a alma e alçou vôo para os reinos do alto.

" . . . Mal havia esse Manifestante da Beleza Eterna Se revelado em Shíráz, no ano sessenta, e rompido o véu da ocultaçao, quando se tornaram manifestos em toda a Terra os sinais da supremacia, da grandeza, da soberania e do poder que emanavam dessa Essência das Essências, desse Mar dos Mares; a tal ponto que, de cada cidade, aparece-ram os sinais, as evidências, os indícios e testemunhos desse Luminar Divino. Quão numerosos foram os corações puros e benévolos que espelharam fielmente a luz desse Sol eterno! Quão múltiplas as emanações de conhecimento desse Oceano da sabedoria divina que envolveram todos os seres! Em cada cidade, todos os eclesiásticos e nobres levantaram-se com o fim de os impedir e reprimir, e muniram-se de malí-cia, inveja e tirania para aniquilá-los. Que grande número dessas almas santas, dessas essências da justiça, sendo acusadas de tirania, foram mortas! E quantas personifica-ções da pureza, que nada demonstraram senão o conheci-mento verdadeiro e atos imaculados, sofreram uma mor-te angustiosa! Não obstante tudo isso, cada um desses san-tos seres, até o último momento, suspirava o Nome de Deus e elevava-se para o reino da submissão e resignação. Tão grande foi a influência que Ele exerceu sobre esses seres, a tal ponto os transformando, que deixaram de nutrir qual-quer desejo a não ser Sua Vontade e devotaram as almas à. Sua Lembrança.

"Reflete: quem no mundo é capaz de manifestar tão transcendente poder, predominante influência? Todos esses corações sem mácula e essas almas santificadas responde-ram, com resignação absoluta, ao chamado de Seu decreto. Em vez de se queixarem, agradeceram a Deus e, em meio

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às trevas de sua angústia, nada revelaram senão aquiescên-cia radiante à Sua Vontade. Bem se sabe como era impla-cável o ódio e amargas a malícia e a inimizade que todos os povos da Terra mostraram para com esses companheiros. A perseguição e a dor que infligiram sobre esses seres santos e espirituais foram vistas por eles como o meio de atingir a salvação, a prosperidade e o êxito eterno. Terá o mundo visto, desde os dias de Adão, tumulto igual ou comoção de tanta violência? Não obstante todo o tormento que sofreram e as múltiplas aflições que suportaram, tornaram-se alvo de opróbrio e execração universais. Parece-me que a paciência se revelou unicamente em virtude de sua fortaleza, e a pró-pria fidelidade não foi gerada senão por suas façanhas.

"Pondera em teu coração esses momentosos aconteci-mentos, para que possas compreender a grandeza desta Re-velação e perceber sua glória estupenda."

CARACTERÍSTICAS DISTINTIVAS DO ISLÃ XIITA

"O ponto cardeal em que os xiitas (bem como as outras seitas incluídas sob a denominação mais geral de imanitas) diferem dos sunitas é a doutrina do Imanato. Segundo a crença destes últimos, a vice-gerência do profeta (califado) é questão a ser resolvida por escolha e eleição por parte de seus seguidores, e o cabeça visível do mundo muçulmano preenche o elevado cargo que lhe cabe, menos por alguma especial graça divina do que por uma combinação de capa cidade administrativa com ortodoxia. De acordo com a opi-nião imamita, por outro lado, a vice-gerência é questão totalmente espiritual; um cargo conferido por Deus so-mente — primeiro pelo Seu Profeta e depois por aqueles que lhe sucederam, nada tendo que ver com a escolha ou a aprovação popular. Numa palavra, o Califa dos sunitas é apenas o defensor exterior e visível da Fé; o Imame dos xiitas é o sucessor do Profeta por designação divina, é do-tado de todas as perfeições e graças espirituais, deve ser obedecido por todos os fiéis, sendo absoluta e final sua de-cisão, sobre-humana sua sabedoria e autorizadas suas pala-vras. O termo geral de Imanato é aplicável a todos aque-

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ies que têm esta opinião, sem referência ao modo como traçam a sucessão, e inclui, portanto, seitas tais como os Báqirís e Ismá'ílís, bem como os xiitas ou 'Igreja dos Doze' (Madhhab-i-Ithmá-'Asharíyyih), como são mais especifica-mente denominados, pelos quais tão-somente estamos aqui interessados. Segundo afirmam estas, doze pessoas suces-sivamente ocuparam o cargo de Imame. Estas doze são como segue:

1. 'Alí-ibn-i-Abí-Tálib, primo e primeiro discípulo do Pro-feta, assassinado por Ibn-i-Muljam em Kúfih, 40 A.H. (661 A.D.).

2 Hasan, filho de 'Ali e Fátimih, nascido em 2 A.H., en-venenado por ordem de Mu'ávíyih I, 50 A.H. (670 A.D.).

3 Husayn, filho de 'Ali e Fátimih, nascido em 4 A.H., morto em Karbilá em Muharram 10, 61 A.H. (10 de outubro, 680 A.D.).

4. 'Ali, filho de Husayn e Sháhribánú (filha de Yazdigird, último rei sassânida, geralmente chamado Imame Zaynu'l-'Abidín, envenenado por Valíd.

5 Muharnmad-Báqir, filho do acima mencionado Zaynu'l-'Ábidín e sua prima Umm-i-'Abdu'lláh, filha do Imame Hasan, envenenado por Ibráhím ibn-i-Valíd.

6 Ja'far-i-Sádiq, filho do Imame Muhammad-Báqir, enve-nenado por ordem de Mansúr, o Califa 'Abbáside.

7, Músá-Kázim, filho do Imame Ja'far-i-Sádiq, nascido em 129 A.H., envenenado por ordem de Hárúnu'r-Ra-shíd, 183 A.H.

8 'Alí-ibn-i-Músa'r-Ridá, geralmente chamado Imame Ri-da, nascido em 153 A.H., envenenado próximo de Tús, em Khurásán, por ordem do Califa Ma'mún, 203 A.H. e sepultado em Mashhad, que deriva dele seu nome e santidade.

9 Muhammad-Taqí, filho do Imame Rida, nascido em 195 A.H., envenenado pelo Califa Mu'tasim em Bagdá, 220 A.H.

10 'Alí-Naqí, filho do Imame Muhammad-Taqí, nascido em 213 A.H., envenenado em Surra-man-Ra'á, 254

A.H.

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11. Hasan-i-'Askarí, filho do Imame 'Alí-Naqí, nascido em 232 A.H., envenenado 260 A.H.

12. Muhammad, filho do Imame Hasan-i-'Askarí e Nargis-Khátún, chamado pelos xiitas 'Imame-Mihdí', 'Huj-

játu'lláh' (A Prova de Deus), 'Baqíyya-tu'lláh (o Remanescente de Deus), e 'Qá'im-i-Ál-i-Muhammad (Aquele que há de surgir da família de Maomé). Ele tinha não só o mesmo nome, mas também o mesmo Kunyih — Abu'1-Qásim — do Profeta e, se-gundo os xiitas, a lei não permite que qualquer outro tenha esse nome e esse kunyih junto. Ele nasceu em Surra-man-Ra'á, 255 A.H., e sucedeu a

seu pai no Imanato em 260 A.H.

"Os xiitas afirmam que ele não morreu, mas desapare-ceu numa passagem subterrânea em Surra-man-Ra'á, 329 A.H,. que ainda vive, rodeado por um grupo escolhido de seus seguidores, numa daquelas cidades misteriosas, Jábul-qá e Jábulsá e que, ao chegar à plenitude do tempo, quando a Terra estiver cheia de injustiça e os fiéis estiverem mer-gulhados no desespero, ele se levantará, prenunciado por Jesus Cristo, derrubará os infiéis, e restabelecerá a paz e a justiça universais e inaugurará um milênio de beatitude. Du-rante o período inteiro de seu imamato, isto é, desde 260 A.H. até o tempo presente, o Imame Mihdí tem estado invisível e inacessível para a generalidade de seus seguidores, e é isso o que significa o termo 'Ocultação' {Ghaybat). Após haver assumido as funções de Imame e presidido o enter-ro de seu pai e predecessor, o Imame Hasan-i-'Askarí, ele desapareceu da vista de todos, salvo uns poucos escolhidos, os quais, um após outro, continuaram a servir de canais de comunicação entre ele e seus seguidores. Essas pessoas eram conhecidas como Portas (Abváb). A primeira delas foi Abú-'Umar-'thmán ibn-i-Sa'íd'Umarí; a segunda Abú-Ja'far Muhammad-ibn-i-'Uthman, filho deste último; a terceira, Hu-sayn-i-ibn-i-Rúh Naw-Bakhtí; a quarta, Abu'1-Hasan 'Alí-i-ibn-i-Muhammad Símarí. Dessas Portas, a primeira foi nomeada pelo Imame Hasan-i-'Askarí, e as outras pela Porta interina, com a aprovação do Imame Mihdí. Esse período — abran-gendo mais de 69 anos —, durante o qual o Imame estava

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ainda acessível por meio das Portas, é conhecido como a 'Ocultação Menor' (Ghaybat-i-Sughrá). Esse período foi su-cedido pela 'Ocultação Maior' (.Ghaybat-i-Kubrá). Quando Abu'1-Hasan 'Ali, a última das Portas, se aproximava de seu fim, os fiéis (que contemplavam com desespero a perspec-tiva de desligação completa do Imame) instaram com ele para que nomeasse um sucessor. Isso, entretanto, ele recusou, dizendo: 'Deus tem um desígnio que Ele executará.' Assim, com sua morte, toda comunicação entre o Imame e sua Igreja cessou, e teve início a 'Ocultação Maior', a qual haverá de continuar até a volta do Imame na plenitude do tempo."

(Excerto de 'A Traveller's Narrative,' nota 1 p.p. 296-299.)

GENEALOGIA DO PROFETA MAOMÉ

r Háshim

'AMu' l-Mut^alllj 'AMuUláh

I MüÇAJfflUD

f Hasan

Atra-Talib

'Ali

1 Husayn

Quraysh

W - i - M a n á f

—1 fAbí>ás

'Abbasíd Calipho

<Abd\i'1 sh-Shams

Umayyih !

üraayyad Caliphs

Califas Umayyad 661-749 A.D. Califas 'Abbásíd 749-1258 A.D. Califas Fátimitas 1258-1517 A.D. Califas Otomanos 1517-19 AX>. Nascimento de Maomé, 20 de agosto de 570 A.D. Declaração de sua Missão, 613-14 A.D. Sua fuga para Medina, 622 A.D. Abú-Bakri's-Siddíq-ibn-i-Abí-Quháfih, 632-34 A.D. 'Umar-ibn-i'1-Khattáb, 634-44 A.D. 'Uthmán-ibn-i-'Affán, 644-56 A.D. 'Alí-ibn-i-Abí-Tálib, 656-61 A.D.

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TEORIA E ADMINISTRAÇÃO DA LEI NA PÉRSIA EM MEADOS DO SÉCULO XIX

" . . . A lei na Pérsia e, de fato, entre os povos muçul-manos em geral consiste em dois ramos: o religioso e a lei comum; a lei que se baseia nas Escrituras maometanas e aquela que se baseia no precedente; aquela que é adminis-trada pelos tribunais eclesiásticos e aquela que é adminis-trada pelos tribunais civis. Na Pérsia, a primeira é conhe-cida como 'Shar, e a segunda como 'Urf. Das duas se evo-luiu uma jurisprudência que, embora em sentido algum fosse científica, é, no entanto, razoavelmente prática na apli-cação e superficialmente acomodada às necessidades e cir-cunstâncias daqueles para quem é dispensada. A base de autoridade no caso do 'Shar', ou Lei Eclesiástica, consiste nas palavras do Profeta no Alcorão; as opiniões dos Doze Santos Imames, cuja voz, no parecer dos maometanos xi-itas, é de importância quase igual, bem como segundo co-mentários de uma escola de preeminentes juristas eclesiás-ticos. Estes últimos desempenharam praticamente o mesmo papel na ampliação do volume da jurisprudência nacional, que fizeram os famosos júris consulti no caso da Lei Comum de Roma ou os comentadores talmúdicos com o sistema he-braico. O corpo das leis assim estruturado tem sido superfi-cialmente codificado e dividido em quatro subtítulos, tra-tando respectivamente de ritos e deveres religiosos, contratos e obrigações, assuntos pessoais e de regulamentos suntuários e procedimento judicial. Essa lei é administrada por uma corte eclesiástica, consistindo em mullás, isto é, padres lei-gos, e mujtahids, ou seja, sábios doutores da lei, assistidos algumas vezes por qádís ou juizes e sob a presidência de um oficial, conhecido como o Shaykhu'l Islám, um dos quais, por via de regra, é nomeado, em toda cidade grande, pelo soberano. Nos tempos antigos, o principal dessa hierarquia eclesiástica era o Sadru's-Sudúr, ou Pontifex Maximus, digni-tário este que era escolhido pelo rei e a quem ficavam subor-dinados todo o clero e todas as autoridades judiciárias do reino. Este cargo, porém, foi abolido por Nádir Sháh em sua campanha anticlerical e jamais foi renovado. Nos cen-tros menores da população e nas aldeias, essa corte é subs-

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tituída pelo mullá ou mullás locais, que, em troca de algu-ma consideração, estão sempre prontos com um texto de Alcorão. No caso das cortes superiores, a decisão é invaria-velmente escrita, junto com a citação das Escrituras, ou dos comentadores, na qual se baseia. Casos de extrema im-portância são entregues aos mujtahiãs mais eminentes, dos quais há um número limitado e cuja posição se deve tão-somente à sua erudição ou habilidades, com a ratificação popular, e cujas decisões raramente são impugnadas .. . Em obras sobre a teoria da lei na Pérsia, se lê comumente que casos criminais são decididos pelas cortes eclesiásticas e casos civis, pelas cortes seculares. Na prática, entretanto, não há essa clara distinção; as funções e as prerrogativas das cortes coordenadas variam em diferentes épocas e parecem depen-der demais de fatores acidentais ou de escolha do que pro-priamente de necessidade; e, hoje embora casos criminais difíceis possam ser submetidos à corte eclesiástica, é, no entanto, de questões civis que eles se incumbem principal-mente. Questões de heresia ou de sacrilégio são naturalmente submetidas a esta corte, a qual toma conhecimento também de adultério e divórcio; e a embriaguez como ofensa, não contra a lei comum (de fato, se fosse questão de precedente, a não-sobriedade poderia apresentar as mais altas creden-ciais na Pérsia), mas sim, contra o Alcorão, se inclui dentro do âmbito de sua adjudicação...

Do 'Shar', passo agora ao 'Urf, ou Lei Comum. Nomi-nalmente, esta se baseia na tradição oral, no precedente e no costume. Assim, varia em diferentes partes do país. En-tretanto, não havendo escritos ou códigos reconhecidos, nota-se que varia ainda mais na prática, segundo o caráter ou o capricho do indivíduo que o administra... Os adminis-tradores do 'Urf são magistrados civis em toda parte do reino, não existindo corte secular ou banca de juizes segundo o modelo ocidental. Numa aldeia, o caso será submetido ao kad-khudá, ou chefe; numa cidade, ao dárúghih, ou magis-trado da polícia. Ao seu julgamento são submetidas todas as pequenas ofensas que ocupam uma corte policial de cidade ou uma banca de magistrados de condado na Inglaterra. A pena no caso de roubos, ou assalto, ou ofensas semelhantes, é, de modo geral, a restituição, ou no mesmo gênero ou no

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valor monetário, ao passo que, se por falta de meios isso é impossível, o criminoso é espancado com violência. Todos os casos de crimes comuns são submetidos ao hakím, ou governador provincial ou ao governador-geral. A corte final de apelo em cada caso é o rei, de cuja jurisdição são apenas uma delegação, se bem que seja raro um suplicante longe da capital conseguir que sua queixa seja ouvida de tão longa distância. A Justiça, pouco considerada pelos oficiais de go-verno na Pérsia, não obedece a nenhuma lei, não segue sis-tema algum. O que pode garantir a eqüidade, unicamente, é a publicidade; mas vasto é o campo, especialmente nos níveis mais baixos, para pishkash e propina. Os aarúghis têm a reputação de ser tanto austeros quanto venais, e alguns dizem, até que não existe uma sentença de um ofi-cial na Pérsia, mesmo das categorias mais altas, que não possa ser modificada mediante uma consideração pecuniá-ria."

(Excertos do Pérsia and the Persian Question por Lord Curzon, vol. 1 p.p. 452-455.)

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EXPLICAÇÃO DA GENEALOGIA DO BÁB

1. Descendente do Imame Husayn, residente de Shíráz. 2. Esposa do Báb. 3. Intitulado "Afnán-i-Kabír." 4. Esposa de Mírzá Zaynu'l-'Ábidín. 5. Conhecido como "Saqqá-Khání." 6. Esposa de Hájí Mírzá Siyyid Hasan, filho de Mírzá 'Ali. 7. Morreu ao nascer. 8. Intitulado "Khál-i-Asghar", a quem foi dirigido o Ki-

táb-i-fqán. 9. Intitulado "Khál-i-A'zam", um dos Sete Mártires de

Teerã. 10. Intitulado "Vakílu'd-Dawlih," principal construtor do

Mashriqu'1-Adhkár em Ishqábád. 11. Intitulado "Vazír", nativo de Núr em Mázindarán; seu

nome 'Abbás. 12. Seu nome 'Abbás. 13. Seu nome 'Alí-Muhammad. 14. Seu nome Husayn-'Ali. 15. Esposa -de Vakílu'd-Dawlih, Hájí Mírzá Muhammad

Taqí. 16. Único filho de Hájí Mírzá Muhammad-'Ali. 17. Genro de 'Abdu'1-Bahá. 18. Descendente do Imame Husayn, comerciante e natural

de Shíráz. 19. Genro de 'Abdu'1-Bahá. 20. ünico filho de Mírzá Abu'1-Fath.

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A DINASTIA QÁJÁR

Fath-'Alí Sháh, 1798-1834 A.D. Muhammad Sháh, 1835-48 A.D. Násiri'd-Dín Sháh, 1848-96 AD. Muzaffari'd-Dín Sháh, 1896-1907 A.D. Muhammad-'Ali Sháh, 1907-9 A.D. Ahmad Sháh, 1909-25 A.D.

Mírzá Abu'1-Qásim-i-Qá'im-Maqám. Hájí Mírzá Áqásí. Mírzá Taqí Khán Amír-Nizám. Mírzá Áqá Khán-i-Núrí.

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RELAÇÃO DAS ILUSTRAÇÕES (Veja caderno de ilustrações entre as páginas 68 e 69)

Foto 1 — Facsímile da Epístola do Báb escrita para Bahá'u'lláh Foto 2 — Muhammad-i-Zarandí entitulado Nabíl-i-A'zam Foto 3 — Casa de Mullá Husayn em Bushrúyih Foto 4 — 'Aqáy-i-Kalím, irmão de Bahá'u'lláh Foto 5 — Manúchir Khán, o Mu'tamidu'd-i-Dawlih Foto 6 — Shaykh Ahmad-i-Ahsá'í Foto 7 — Relíquias do Báb, mostrando o chapéu em volta do qual

o turba foi enrolado Foto 8 — Pintura de Mirzá Buzurg (pai de Bahá'u'lláh) Foto 9 — O quarto onde o Báb nasceu em Shíráz Fotos 10 e 11 — Adjacências de Shíráz onde o Báb caminhava Foto 12 — Roupa vestida pelo Báb quando circundava o Ka'bih Foto 13 — Cômodo no Masjid-i-ílkhání, Shíráz, em que o Báb e

Mullá Husayn se encontraram Foto 14 — Pé de laranja plantada pelo Báb no quintal de sua casa

em Shíráz Fotos 15, 16 e 17 — Vistas do quarto superior da casa do Báb em

Shíráz onde Ele declarou Sua missão Fotos 18, 19 e 20 — Vistas da casa do Báb em Shíráz, mostrando

Seu quarto de dormir, o quarto de Sua mãe e u sala de estar

Fotos 21 e 22 — Vistas de banho público em Shíráz, onde o Báb foi quando criança

Foto 23 — Inscrição colocada pelo Vazír Mírzá Buzurg sobre a porta da casa em Tákur

Fotos 24 e 25 — Árvore sinalizando a cova de Bebê do Báb em Bábí — Duktarán, Shíráz

Foto 26.— Túmulo da esposa do Báb em Sháh-Chirágh, Shíráz Foto 27 — Hájí Mírzá Áqásí

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Foto 28 — Relíquias do Báb, mostrando a roupa vestida sob o jubbih (casaco)

Foto 29 — Facsímile de caligrafia da Táhirih Fotos 30, 31 e 32 — Vistas da casa do Bahá'u'lláh em Teerã Fotos 33 e 34 — Vista da "Babiyyih" em Mashhad Foto 35 — Muhammad Sháh Fotto 36 — Siyyid Javád-i-Karbilá'í Foto 37 — Interior da casa de Hájí Mírzá 'Ali em Shiráz (o tio

materno do Báb) Foto 38 — Vista exterior do quarto ocupado por BaháVlláh em

Tákur, Mázindarán Foto 39 — Vista interior do quarto de Bahá'u'lláh na casa de Tákur

mantido na sua condição original Foto 40 — Vista exterior do quarto ocupado por 'Abdu'1-Bahá em

Takúr, Mázindarán Foto 41 — Vista interior do quarto ocupado por 'Abdu'1-Bahá em

Tákur Fotos 42, 43 e 44 — Vistas da casa do Hájí Mírzá Jání em Káshán,

mostrando o quarto onde o Báb ficou Foto 45 — A casa do Hájí Mírzá 'Ali, (o tio materno do Báb) Fotos 46 e 47 — O Arco (cidadela) de Tabriz onde o Báb foi con-

finado, mostrando o interior e o exterior da cela que ele ocupou

Foto 48 — O castelo de Máh-Kú

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PREFÁCIO

É minha intenção, pela ajuda e assistência de Deus, devotar as páginas introdutórias desta narrativa à exposi-ção daquilo que tenho podido obter sobre aquelas duas grandes luzes gêmeas, Shaykh Ahmad-i-Ahsá'í e Siyyid Ká-zim-i-Rashtí, depois do que é minha esperança relatar, por ordem cronológica, os principais acontecimentos desde o ano de 60 1, ano que testemunhou a declaração da Fé pelo Báb, até o tempo atual, o ano de 1305 A.H. -

Em certos casos entrarei em algum detalhe; em outros, contentar-me-ei com um breve sumário dos acontecimentos. Registrarei uma descrição dos episódios que eu mesmo tes-temunhei, bem como aqueles que me foram contados por informantes fidedignos e reconhecidos, cujos nomes e po-sição especificarei em cada caso. Aqueles a quem estou prin-cipalmente agradecido são os seguintes: Mírzá Ahmad-i-Qaz-víní, amanuense do Báb; Siyyid Ismá'íl-i-Dhabíh; Shaykh Hasan-i-Zunúzí; Shaykh Abú-Turáb-i-Qazviní; e, por fim, em-bora não de importância menor, Mírzá Músá, Áqáy-i-Kalím. irmão de Bahá'u'lláh.

i 1260 A.H. (1844 A.D.) 2 1887-8 A.D.

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Agradeço a Deus por me haver ajudado a escrever estas páginas preliminares e por tê-las abençoado e honrado com a aprovação de Bahá'u'lláh, que bondosamente se dignou a considerá-las e assinalou, por intermédio de Seu amanuen-se, Mirzá Áqá Ján — que as leu para Ele — Seu prazer e aceitação. Suplico que o Todo-Poderoso me possa sustentar e guiar para que eu não erre e falhe na tarefa que me pus a desempenhar.

Muhammad-i-Zarandí

'Akká, Palestina 1305 A.H.

3 Seu título completo é Nabíl-i-A'zam.

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OS ROMPEDORES DA ALVORADA

CAPÍTULO I A MISSÃO DE SHAYKH AHMAD-1-AHSÁ'I

Num tempo em que a realidade esplendorosa da Fé de Maomé se obscurecera em razão da ignorância, do fanatis-mo e da perversidade das seitas discordantes em que se havia dividido, apareceu no horizonte do Oriente1 aquela luminosa Estrela da Guia Divina, Shaykh Ahmad-i-Ahsá'í.2

Ele observou como aqueles que professavam a Fé do Islã haviam demolido sua unidade e solapado sua força, perver-tendo-lhe o desígnio e degradando-lhe o nome santo. Sua alma encheu-se de angústia diante da corrupção e da conten-da que predominavam na seita xiita do Islã. Inspirado pela luz que dentro dele brilhava,3 levantou-se com infalível visão,

1 Sua genealogia, de acordo com seu filho Shaykh 'Abdu'lláh, é a seguinte: "Shaykh Ahmad-ibn-i-Zaynu'd-Dín-ibn-i-Ibráhím-ibn-i-Sakhr-ibn-i-lbráhím-ibn-i-Záhir-ibn-i-Eamadán-ibn-i-Rashíd-ibn-i- D a h í m-i b n-i-Shimrúkh-ibn-i-Súlih". (A. L. M. Nicolas: "Essai sur le Shaykisme" I. P- D

2 Nascido no mês de Rajab 1166 D.H. 24 de abril a 24 de maio de 1753, na cidade de Ahsá, no distrito de Ahsá, no nordeste da península Árabe. (A. L. M. Nicolas': Essai sur le Shatykhisme I, p. I ) . Nasceu xiita, embora seus antepassados fossem sun'tas (idem p. 2 ) . De acordo com E.G. Browne (A Traveller's Narrativa, nota E, p. 235), Shaykh Ahmad nasceu no ano de 1157 D.H. e faleceu em 1242.

8 Siyyid Kázim, em seu livro intitulado Dalílú'l-Mutahayyirin, escreve o seguinte: "Nosso mestre viu certa noite o Imame Hasan; A salvação esteja com ele! Sua Santidade lhe pôs na boca sua língua abençoada. Da saliva adorável desta Santidade retirou ele as ciências e a ajuda de Deus. O gosto era açucarado, mais doce que o mel, mais perfumado que o almíscar; ademais, estava bem aquecida. Quando voltou a si a despertou de seu sono irradiava em seu íntimo as luzes da

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com firme propósito e desprendimento sublime, para exter-nar seu protesto contra a traição da Fé por aquele povo ignóbil. Ardendo de zelo e com plena consciência da subli-midade de sua vocação, fez um apelo veemente não só ao Islã xiita, mas a todos os seguidores de Maomé no Oriente inteiro, para que acordassem de seu sono de negligência e preparassem o caminho para Aquele que iria se manifestar na plenitude do tempo, cuja luz tão-somente poderia dis-sipar as névoas do preconceito e da ignorância que haviam envolvido essa Fé. Abandonando seu lar e seus familiares numa das ilhas de Bahrein, na parte sul do Golfo Pérsico, partiu, assim como lhe ordenara a Providência Todo-Po-derosa, com o fim de desvendar os mistérios dos ver-sículos das Escrituras islâmicas que pressagiavam o adven-to de um novo Manifestante. Bem consciente estava ele dos riscos e perigos que lhe assediavam o caminho; plenamen-te percebia a responsabilidade gravíssima de sua tarefa. Em sua alma ardia a convicção de que nenhuma reforma dentro da Fé Islâmica, por drástica que fosse, poderia efe-tivar a regeneração desse povo perverso. Sabia, e estava destinado pela Vontade de Deus a demonstrá-lo, que nada menos que uma Revelação nova e independente, assim como atestavam e prediziam as Sagradas Escrituras do Islã, po-deria reviver as fortunas dessa decadente Fé e lhe restaurar a pureza.4

Destituído de todos os bens terrenos, desligado de tudo, salvo de Deus, levantou-se ele, nos primeiros dias do século

contemplação de Deus, transbordando da inundação de suas bênçãos e, se desapegou totalmente de tudo, salvo de Deus. Sua crença e sua fé em Deus aumentaram ao mesmo tempo que sua submissão à Vontade do Altíssimo. Por causa de um amor excessivo, de um desejo impetuoso que nascia de seu coração, esqueceu de comer e de vestir-se, exceto o indispensável para não morrer". (A. L. M. Nicolas Essai sur le Shay-khisrrw I, p. 6.)

4 Ele Shaykh Ahmad, sabia muito bem que havia sido eleito por Deus para preparar os corações dos homens para receber a com-pleta verdade que logo se iria revelar e que por seu intermédio se abriria novamente o caminho para o oculto décimo segundo Imame Mihdí. Entretanto, isto não lhe foi exposto em termos claros e inequívocos, para que os "não-renegados" não se voltassem contra ele e não o matassem. (Dr. T. K. Cheyne The Reconàliation of Races and Religions, p. 15.)

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XIII da Hégira, aos quarenta anos de idade, para dedicar o tempo que lhe restava em vida a tarefa que se sentia im-pelido a ombrear. Dirigiu-se primeiro a Najáf e Karbilá,5

onde, dentro de poucos anos, adquiriu familiaridade com os pensamentos e normas correntes entre os sábios do Islã. Isso fez com que viesse a ser reconhecido como um dos autoriza-dos expositores dos sagrados escritos islâmicos, fosse decla-rado um mujtahid e logo adquirisse ascendência sobre os de-mais colegas que visitavam aquelas cidades santas ou nelas residiam. Estes vieram a considerá-lo como iniciado nos mis-térios da Revelação Divina e qualificado para elucidar as palavras abstrusas de Maomé e dos imames da Fé. À me-dida que sua influência aumentava, tornando-se maior o âm-bito de sua autoridade, ele se via assediado de todos os lados por um sempre crescente número de inquiridores de-votados que pediam esclarecimento sobre certos aspectos intrincados da Fé, os quais foram por ele hábil e plenamente elucidados. Com seu conhecimento e sua audácia, aterrori-zava os corações dos sufis e neoplatonistas e outras corren-tes similares de pensamento,6 os quais lhe invejavam a eru-

5 "Karbilá encontra se a mais ou menos 55 milhas a sudoeste de Bagdá nas margens do Euf r a t e s . . . O túmulo de Husayn no centro da cidade e o de seu irmão Abbás no setor S.E. são os edifícios prin-cipais." (C. R. Markham: A General Sketch of the History of Pérsia p. 486). Os xiitas têm veneração por Najáf porque ali se encontra o túmulo do Imame Ali.

0 "As características principais do ponto de vista de Shaykh Ahmad parecem ser as seguintes. Ele declarou que todo o conhecimento e toda a ciência se encontram no Alcorão e que, portanto, para com-preender os significados internos deste em sua totalidade, deve-se adquirir conhecimento daqueles. Para desenvolver essa doutrina aplicava métodos cabalísticos de interpretação do texto sagrado e se esforçava para familiarizar-se com as diversas ciências conhecidas no mundo mu-çulmano. Tinha uma exagerada veneração pelos imames, especialmente o Imame Ja'far-i-Sádiq, o sexto na sucessão, cujas palavras citava sem-pre. . . Sobre a vida futura e a ressurreição do corpo também tinha opiniões que, em geral, eram consideradas heterodoxas, como se foi men-cionado. Declarou que o corpo do homem era composto de diferentes porções derivadas de cada um dos quatro elementos e dos nove céus e que o corpo que ia ser elevado à ressurreição continha somente estes últimos componentes, enquanto os primeiros regressavam às suas fontes

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dição e temiam sua intrepidez. Assim ele adquiriu maior consideração aos olhos daqueles sábios teólogos que julga-vam essas seitas como as disseminadoras de obscuras e he-réticas doutrinas. No entanto, não obstante a fama e estima que lhe devotavam, ele desdenhava todas as honras que seus admiradores tão profusamente lhe dispensavam. Ele se admi-rava da servil devoção destes à dignidade e à alta posição, recusando-se, resolutamente, a se associar àqueles que se de-dicavam a esses esforços e desejos.

Uma vez que havia cumprido seu propósito naquelas cidades, ao inalar a fragrância que lhe emanava da Pérsia, ele sentiu em seu coração um anelo irreprimível de seguir para esse país. Ocultou dos amigos, entretanto, o verdadei-ro motivo que o impelia a dirigir os passos a essa região. Por via do Golfo Pérsico apressou-se a alcançar a terra do desejo de seu coração, ostensivamente com o fim de visitar o santuário do Imame Rida em Mashhad.7 Cheio de an-siedade para desabafar sua alma, buscava zelosamente aque-les a quem pudesse confiar o segredo que até então a nin-guém revelara. Vindo a Shíráz, cidade que encerrava o Te-souro oculto de Deus, e da qual a voz do Arauto de ura novo Manifestante era destinada a proclamar, dirigiu-se ao Masjid-i-Jum'ih, uma mesquita que, em estilo e formato, se assemelhava, de modo impressionante, ao santuário sagrado de Meca. E não raras vezes comentava enquanto contempla-va esse edifício: "Verdadeiramente, essa casa de Deus ma-nifesta sinais de tal natureza que só os dotados de compre-ensão podem perceber. Quem a concebeu e edificou foi, pa

originais no momento da morte. A este corpo sutil, que era o único que se livrava da destruição, chamou-o de Jism-i-Húriqlíyá, a última das quais se supõe é uma palavra grega. Afirmou que existia em potencial em nossos corpos atuais "como o vidro em uma pedra". Em forma si-milar, afirmou que no caso da Ascensão do Profeta ao Céu, foi este, e não seu corpo material que iniciou a viagem. Por causa destas opiniões, era considerado heterodoxo pela maioria dos 'uiemás e foi acusado de segur as doutrinas de Mullá Sadrá, o maior filósofo persa dos tempos modernos". Journal of the Royal Asiatic Society, 1889, art. 12 p.p. 890-91.)

7 No século IX os restos do Imame Rida, filho do Imame Músá, o oitavo dos doze Imames, foram sepultados em Mashhad.

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rece-me, inspirado por Deus.8 Quão freqüente e apaixona damente ele louvava essa cidade! Tão profusos foram seus elogios que seus ouvintes, conhecedores do quanto ela era medíocre, se mostravam atônitos com o tom de sua lingua-gem. "Não vos maravilheis", dizia àqueles tão admirados, "pois dentro em breve o segredo de minhas palavras se manifestará a vós. Dentre vós alguns haverão de viver até contemplarem a glória de um Dia que os Profetas da Antigüidade tinham ânsia de testemunhar."

Tão grande era sua autoridade aos olhos dos ulemás com quem encontrava e conversava que estes se profes-savam incapazes de compreender o significado das miste-riosas alusões e atribuíam esta falha à deficiência de seu próprio entendimento.

Após haver lançado as sementes do conhecimento divino nos corações daqueles que lhe pareciam receptivos a seu chamado, Shaykh Ahmad partiu para Yazd, onde se demo-rou por algum tempo, ocupando-se sempre em disseminar as verdades que se sentia constrangido a revelar. A maio-ria de seus livros e epístolas foi escrita nessa cidade.9 Tal a

8 "Na terra de Fá (Fars) há uma mesquita, no meio da qual se ergue uma construção parecida com a Ka'bih (Masj.id-i-Jum'ih). Foi ed!ficada apenas como sinal indicativo da manifestação da ordem de Deus através do levantamento da casa nesta terra. (Alusão à nova Meca, i.e., a casa do Báb em Shíráz.) Feliz aquele que adore a Deus naquela ter ra : em verdade, nós também temos adorado a Deus e ali temos orado para aquele que levantou esta construção." (Le Bayán Persan, vol. 2, p. 151.)

9 A. L. M. Nicolas', no capítulo 5 do seu livro, Essai sur le Shaykhisme de uma lista de mais ou menos noventa e seis volumes que representam a totalidade da produção literária deste prolífico es-critor. Entre eles os mais importantes são os seguintes:

a) Comentário sobre o Zíyáratu'l Jámi'atu'1-Kabírih de Shaykh Hádi.

b) Comentário sobre o versículo "Qu'l Huválláh-u-Ahad". c) Risáliy-i-Kháqáníyyih, em contestação à pergunta de Fath-Alí

Shah sobre a superioridade do Qá'im sobre seus antepassados. d) Os sonhos. e) Contestação a Shaykh Músáy-i-Bahrayni sobre a posição e pre-

tensão do Sáhibu'z-Zamán. f ) Contestação dos Súfís.

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fama por ele adquirida10 que o governante da Pérsia, Fath-Alí Sháh, se sentiu movido a dirigir-lhe de Teerã uma men-sagem por escrito," na qual pedia que explicasse certas ques-tões específicas relacionadas aos ensinamentos obscuros da Fé muçulmana, cujo significado os principais ulemás de seu reino não haviam podido revelar. A esta mensagem respon-deu prontamente com uma epístola à qual deu o nome de Risáliy-i-Sultáníyyih. Tão satisfeito ficou o xá com o tom e o conteúdo desta epístola que lhe enviou de imediato uma segunda mensagem, fazendo-lhe desta vez um convite para visitar sua corte. Em resposta a esta segunda mensagem imperial, ele escreveu o seguinte: "Como eu sempre, desde minha partida de Najáf e Karbilá tencionara visitar o san-tuário do Imame Rídá em Mashhad e lhe render minha ho-menagem, aventuro-me a esperar que Vossa Majestade Impe-rial me concederá a graça para cumprir o voto que tenho feito. Subseqüentemente, se Deus quiser, é minha esperança

g) Contestação a Mullá Mihdíy-i-Astirábádí sobre o conhecimento da alma.

h) Sobre as satisfações e penas da vida futura, i ) Contestação a Mullá 'Alí-Akbar sobre o menor caminho para

alcançar Deus. j ) Sobre a Ressurreição. 10 "A notícia de sua chegada causou grande agitação e alguns

ulemás, entre os mais célebres, o receberam com distinção, rodearam-no de atenções e os habitantes da cidade os imitaram. Todos os ulemás vieram vê-lo. Todos reconheciam que era ele o mais sábio entre os sábios.' (A. L. M. Nicolas 'Essaá sur le Shaykhisme' p. 18).

1 1 A. L. M. Nicolas em seu livro Essai sur le Shaykhisme (p.p. 19-20) refere-se a uma segunda carta dirigida pelo xá a Shaykh Ah-mad: "O xá, prevenido, lhe escreveu novamente dizendo que obvia-mente era dever seu, do rei, incumbir-se de ir até Yazd para visitar a ilustre e santa personagem cujos pés eram uma bênção para a pro-víncia sobre a qual consentia pô-los, porém, por razões políticas de grande importância, não podia, nesse momento, deixar a capital. Além disso, em caso de mover-se, estaria obrigado a levar consigo um desta-camento de dez mil homens. Como a cidade de Yazd era pequena, e seus campos muito pobres para receber tal excesso de população, a che-gada de tropas tão numerosas provocaria, sem dúvida, uma falta de alimentos. "Você não desejaria semelhante desgraça, estou seguro e creio que, ainda que eu seja muito insignificante ante a sua pessoa, você aceitará o convite para me visitar."

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e meu propósito valer-me da honra que Vossa Majestade Imperial se dignou de me conferir".

Entre aqueles que foram despertados na cidade de Yazd pela mensagem daquele portador da luz de Deus estava Hájí'Abdu'1-Vahháb, homem de grande piedade e retidão, cheio de temor a Deus. Ele visitava Shaykh Ahmad todos os dias na companhia de um certo Mullá 'Abdu'1-Kháliq-i-Yazdí, célebre por sua autoridade e sua erudição. Em certas ocasiões, entretanto, Shaykh Ahmad, a fim de falar confi-dencialmente com 'Abdu'1-Vahháb, pedia ao sábio 'Abdu'l-Khalíq, causando-lhe por isso grande surpresa, que se reti-rasse de sua presença e o deixasse a sós com seu discípulo escolhido e favorito. Essa notável preferência mostrada a um homem tão modesto e iletrado como 'Abdu'1-Vahháb causou grande admiração a seu companheiro, demasiado consciente que era de sua própria superioridade e conheci-mentos. Mais tarde, porém, após haver Shaykh Ahmad partido de Yazd, 'Abdu'1-Vahháb retirou-se da sociedade dos homens, vindo a ser considerado um sufi. Pelos orto doxos daquela comunidade, entretanto, tais como o Ni'ma-tu'lláhí e o Dhahabí, foi denunciado como intruso e suspeito de desejar-lhes usurpar a liderança. 'Abdu'1-Vahháb, para quem a doutrina sufi não tinha nenhuma atração especial, desdenhou suas falsas imputações e evitava sua companhia. A ninguém se associava, exceto a Hájí-Hasan-i-Náyiní, a quem escolhera como seu amigo íntimo e a quem confiou o segredo que lhe havia sido entregue pelo seu mestre. Após a morte de 'Abdul-Vahháb, esse amigo, seguindo-lhe o exemplo, continuou ho caminho que ele lhe indicara e anunciou a toda alma receptiva as boas novas da iminente Revelação de Deus.

Mírzá Mahmúd-i-Qamsarí, a quem conheci em Káshán e que naquele tempo tinha mais de noventa anos de idade, um homem muito querido e reverenciado por todos aque-les que o conheciam, relatou-me a seguinte história: "Re-cordo quando na juventude, na época em que vivia em Káshán, ouvi falar de certo homem em Náyin que se havia levantado para anunciar a notícia de uma nova Revelação e em cuja presença se tomavam de encanto todos os que

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o ouviam, fossem doutos, oficiais de governo ou os iletra-dos entre o povo. Sua influência era tal que os que tinham contato com ele renunciavam ao mundo e desprezavam as riquezas terrenas. "Curioso, querendo certificar-me da ver-dade, prossegui — sem que meus amigos suspeitassem — a Náyin, onde pude verificar as asserções que a seu respeito corriam. Seu semblante radiante demonstrava a luz que em sua alma se acendera. Num dia, após haver ele oferecido sua prece matinal, palavras como estas o ouvi pronunciar: 'Em paraíso, a Terra breve se converterá. Breve a Pérsia se fará o santuário em cujo redor os povos da Terra circu-larão.' Certa manhã, na hora da alvorada, encontrei-o pros-trado enquanto repetia, absorto em sua devoção, as pala-vras 'Alláh-u-Akbar'.12 Para grande surpresa minha, vi-rou-se para mim, dizendo: 'O que tenho te anunciado re-vela-se agora. Nesta hora exata, a luz do Prometido irrom-peu e está derramando sobre o mundo seu esplendor, ó Mahmúd, em verdade digo, tu viverás para testemunhar aquele Dia dos dias'. As palavras que me dirigiu esse ho-mem santo ressoavam sempre em meus ouvidos até o dia, quando, no ano sessenta, em que foi privilégio meu ouvir o Chamado que surgiu de Shíráz. Infelizmente, meu estado en-fermo impedia que para aquela cidade eu me apressasse. Mais tarde, quando o Báb, o Arauto da nova Revelação, veio a Káshán e por três noites se hospedou na casa de Hájí Mírzá Jání, por não saber de Sua visita, perdi a honra de atingir a Sua presença. Algum tempo depois, ao conversar com os seguidores da Fé, fui informado de que o aniversá-rio natalício era no primeiro dia do mês de Muharram, do ano de 1235 A.H.13 Percebi que o dia citado por Hájí-Hasan-i-Náyní não correspondia com essa data, havendo entre eles uma diferença de dois anos. Este pensamento me deixou ex-cessivamente perplexo. Muito depois, porém, conheci um certo Hájí Mírzá Kamálu'd-Dín-i-Naráqí, que me anunciou a Revelação de Bahá'u'lláh, em Bagdá, e compartilhou comigo alguns versículos do 'Qasídiy-i-Varqá'íyyih', bem como certas

12 "Deus é Todo Poderoso". ia 20 de outubro de 1819 A.D.

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passagens das Palavras Ocultas em persa e em árabe. Como-veu-me até as profundezas de minh'alma ouvi-lo recitar essas palavras sagradas. Das seguintes, lembro-me vividamente ain-da: "ó Filho do Ser! Teu coração é Meu lar; santifica-o para Minha descida. Teu espírito é a sede da Minha Revelação; purifica-o, para que nele Eu possa Me manifestar, õ Filho da Terra! Se tu Me quiseres ter, a nenhum outro busques, senão a Mim; e se desejas contemplar Minha beleza, fecha teus olhos ao mundo e a tudo o que nele se acha; pois Minha vontade e a vontade de outro que não seja Eu, tal como o fogo e a água, não podem habitar no mesmo coração." Perguntei-lhe a data do nascimento de Bahá'u'lláh. "A alvorada do segundo dia de Muharram", respondeu, "do ano de 1233 A.H."14 Imediatamente recordei as palavras de Hájí-Hasan e lembrei-me do dia em que foram pronunciadas. Instinti-vamente me prostrei no chão exclamando: "Glorifiçado és Tu, ó meu Deus, por me haveres habilitado a alcançar este Dia prometido. Se agora eu for chamado a Ti, morrerei con-tente e tranqüilo". Naquele mesmo ano, 1274 A.H.15 esse ser venerável e radiante entregou a Deus seu espírito.

Este relato, que ouvi dos lábios do próprio Mírzá Mah-múd-i-Qamsarí e que ainda permanece vivo na memória do povo, é, de certo, inquestionável evidência da perspicácia do falecido Shaykh Ahmad-i-Ahsá'í e dá testemunho eloqüente da influência que exercia sobre seus discípulos imediatos. A promessa que ele lhes fez cumpriu-se, afinal, e o mistério com que lhes inflamou a alma desdobrava-se em sua plena glória.

Durante os dias em que Shaykh Ahmad fazia os prepa-rativos para sair de Yazd; Siyyid Kázim-i-Rashtí,16 aque-

14 12 de novembro de 1817 A.D. 15 1857-8 A.D. 16 "Sua família (de Siyyid Kázim) era comerciantes de prestígio.

Seu pai se chamava, Áqá Siyyid Qásim. Quando tinha doze anos de idade, vivia em Ardibíl, perto do túmulo de Shaykh Safi'u'd-Dín Isháq, descendente do sétimo Imame Musa Kázim e antepassado dos reis Safaví. Certa noite, durante um sonho, recebeu a mensagem de um dos ilustres antepassados do santo sepultado de que deveria ficar sob a orientação espiritual de Shaykh Ahmad-i Ahsá'í, o qual residia em Yazd. Em obe-diência dirigiu-se àquela cidade e tornou-se um dos discípulos de Shaykh Ahmad, em cuja doutrina alcançou tal distinção que com a morte do

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íe outro luminar da guia Divina, partiu de sua província natal de Gílán com o fim de visitar Shaykh Ahmad antes de este iniciar sua peregrinação a Khurásán. No decorrer da primeira entrevista com ele, com estas palavras Shaykh Ahmad se expressou: "Boas vindas te dou, ó meu amigo! Há quanto tempo e com que ânsia tenho te esperado, para que viesses me livrar da arrogância desse povo perverso! Em face de seus atos vergonhosos e de seu caráter depravado, sinto-me oprimido. "Em verdade, nós propusemos aos céus, à ter-ra e aos montes que recebessem a incumbência de Deus, mas recusaram o fardo, e com medo tiveram de recebê-lo. O ho-mem tentou suportá-la; e ele, em verdade, provou ser injusto, ignorante".

Desde sua infância, já mostrara esse Siyyid Kázim si-nais de notável poder intelectual e percepção espiritual. Era ímpar entre aqueles de seu próprio nível e idade. Aos onze anos havia ele decorado o Alcorão inteiro. Aos catorze, sabia de memória um número prodigioso de preces e reco-nhecidas tradições de Maomé. Com a idade de dezoito anos, fez um comentário sobre um versículo do Alcorão co-nhecido como o Ayatu'1-Kursí, o qual causara espanto e admiração entre os mais eruditos de seu tempo. Sua piedade, a meiguice de seu caráter e sua humildade eram tais que todos aqueles que o conheciam, fossem jovens ou idosos, se sentiam profundamente impressionados. No ano de 1231 A.H.,17 abandonando lar, parentes e amigos partiu de Gílán com apenas vinte e dois anos de idade, ansioso por atingir a presença daquele que com tanta nobreza se havia levantado para anunciar o próximo alvorecer de uma Revelação Divi-na. Poucas semanas, apenas, estivera ele na companhia de Shaykh Ahmad quando certo dia, este, nas seguintes pala-vras, dirigiu-se a ele: "Permanece em tua casa e não mais assistas a meus discursos. Doravante, a ti se volverão aque-les de meus discípulos que se sentirem perplexos; diretamen-te de ti buscarão qualquer assistência que tiossam necessi-tar. Através do conhecimento a ti conferido pelo Senhor teu

Shaykh foi reconhecido por unanimidade como o chefe da escola Shaykhí. A Traveller's Narrative (Nota E, p. 238.)

" 1815-16 A.D.

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Deus, haverás de lhes resolver os problemas e tranqüilizar os corações. Mediante o poder de tuas palavras, ajudarás a avivar a Fé, tão lamentavelmente obscurecida, de Maomé, teu ilustre ancestral". Estas palavras dirigidas a Siyyid Ká-zim provocaram o ressentimento e atearam a inveja dos dis-cípulos preeminentes de Shaykh Ahmad, entre os quais figu-ravam Mullá Muhmmad-i-Mamaqání e Mullá'Abdu'1-Kháliq-i-Yazdí. A tal ponto se impunha a dignidade de Siyyid Kázim, entretanto, e se realçaram as evidências de seu conhecimento e sua sabedoria que esses discípulos, tomados de respeito, sentiram-se compelidos a se submeter.

Entregando assim aos cuidados de Siyyid Kázim os seus discípulos, Shaykh Ahmad partiu para Khurásán. Lá por al-gum tempo se deteve nas cercanias do sagrado santuário do Imame Rida em Mashhad. Nesse recinto prosseguiu com zelo inalterado o curso de seus labores. Resolvendo as in-trincadas questões que agitavam a mente do inquiridor, continuou a preparar o caminho para o advento iminente do Manifestante. Nessa cidade, mais e mais se tornou cons-ciente de que o Dia destinado a testemunhar o nascimento do Prometido não poderia estar muito distante. Sentiu que a hora prometida se aproximava rapidamente. Da direção de Núr, na província de Mázindarán, podia perceber os pri-meiros sinais que prenunciavam o alvorecer da prometida Revelação. Parecia-lhe estar próxima a Revelação prognosti-cada nos seguintes dizeres tradicionais: "Breve havereis de contemplar o semelhante de vosso Senhor, esplendoroso como a Lua em sua plena glória. E, no entanto, não havereis de vos unir em lhe reconhecer a verdade e abraçar a Fé. E um dos mais poderosos sinais que haverão de assinalar o adven-to da Hora prometida é este: 'Uma mulher dará à luz a Um que será seu Senhor' ".

Shaykh Ahmad partiu, pois, em direção a Núr e, acom panhado por Siyyid Kázim e um grupo de seus discípulos distintos, prosseguiu para Teerã. O xá da Pérsia, ao ser infor-mado de que Shaykh Ahmad se aproximava de sua capital, ordenou que os dignitários e oficiais de Teerã saíssem a seu encontro e lhe proferissem em seu nome uma cordial ex-pressão de boas-vindas. O distinto visitante e seus compa-nheiros foram recebidos regiamente pelo xá, que fez uma

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visita pessoal a Shaykh Ahmad e o declarou ser "a gióriE, de sua nação e um adorno para seu povo".18 Nesses dias, nasceu numa família antiga e nobre de Núr,19 uma Crian-ça cujo pai era Mírzá 'Abbás, mais conhecido como Mírzá Buzurg, um ministro favorecido da Coroa. Essa Criança era BaháVlláh.20 Na hora do amanhecer, no segundo dia de Muharram, no ano de 1233 A.H.,21 o mundo, inconsciente de seu significado, viu nascer Aquele que estava predestinado a lhe conferir tão incalculáveis bênçãos. Shaykh Ahmad, reco-nhecendo em toda sua plenitude o que significava esse auspi-cioso evento, ansiava por passar os dias restantes de sua vida dentro da corte desse recém-nascido Rei Divino. Mas isto não havia de ser. Sem ter aliviado a sede ou satisfeito seu desejo ardente, sentiu-se compelido a se submeter ao irrevogável decreto de Deus e, voltando a face da cidade de seu Bem-Amado, rumou para Kirmánsháh.

O governador de Kirmánsháh, o Príncipe Muhammad-'Alí Mírzá, filho mais velho do xá e o membro mais capaz de sua casa, já pedira a permissão de Sua Majestade Impe-rial para receber e servir pessoalmente a Shaykh Ahmad.22

Tão favorecido era o príncipe aos olhos do xá que sua solici-tação foi concedida de imediato. Completamente resignado a seu destino, Shaykh Ahmad despediu-se de Teerã. Antes de partir dessa cidade, sussurrou uma súplica para que esse

18 "O xá sentia aumentar dia após dia sua benevolência e res-peito por Shaykh. Acreditava ser sua obrigação obedecer-lhe e achava uma blasfêmia quem lhe fizesse oposição. Além disso, nessa época ocor-reram sucessivos tremores de terra em Rayy e muitas casas foram des-truídas. O xá teve um sonho no qual lhe foi dito que se Shaykh Ahmad não estivesse ali, toda a cidade teria sido destruída e todos os habi-tantes mortos. Despertou aterrorizado e sua fé no Shaykh aumentou mais ainda." (A. L. M. Nicolas 'Essai sur le Shaykhisme I, p. 21.)

W Mirzá Abu'1-Fadl afirma em seus escritos que a genealogia de BaháVlláh segue até os antigos Profetas da Pérsia assim como seus reis que governaram o país antes da invasão dos Árabes.

20 Seu nome era Mirzá Husayn-'Alí. 21 12 de novembro de 1817 A.D. 22 "Kirmánsháh o esperava com muita impaciênc;a. O príncipe

governador Muhammad-'Alí Mírzá enviou todo o povo da cidade ao seu encontro e haviam erigido tendas para recebê-lo em Cháh-Qílán. O prín-cipe veio ao seu encontro em Táj-Abád, que estava a quatro farsakhs da cidade." (A. L. M. Nicolas Essai sur le Shaykhisme. I, p. 30.)

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Tesouro de Deus, ainda oculto, que acabava de nascer entre seus conterrâneos fosse preservado e estimado por todos, e para que viessem a reconhecer plenamente o grau de Sua santidade e glória e fossem capacitados a proclamar Sua ex-celência a todas as nações e povos.

Ao chegar em Kirmánsháh, Shaykh Ahmad decidiu es-colher alguns dos mais receptivos dentre seus discípulos xiitas e, dedicando sua especial atenção a seu esclarecimen-to, capacitá-los a se tornarem os ativos defensores da Causa da prometida Revelação. Na série de livros e epístolas que se pôs a escrever, entre os quais figura sua bem conhecida obra Sharhu'z-Zíyárih, ele exaltou em linguagem clara e vi-vida as virtudes dos imames da Fé, dando especial relevo às alusões feitas por eles à vinda do Prometido. Por suas repetidas referências a Husayn, queria aludir, no entan-to, a nenhum outro senão a Husayn que ainda seria revelado; e pelas alusões ao sempre-reiterado nome de 'Ali, não queria se referir ao 'Ali que fora morto e, sim, ao 'Ali recém-nas-cido. Aqueles que o interrogavam sobre os sinais que teriam de prenunciar o advento do Qá'im, asseverava enfaticamen-te a irrevogabilidade da prometida Revelação. No mesmo ano do nascimento do Báb, sofreu Shaykh Ahmad a perda de seu filho, cujo nome era Shaykh 'Ali. Aos discípulos que lamentavam sua perda, disse estas palavras de consolo: "Não sejais pesarosos, ó meus amigos, pois ofereci meu filho, meu próprio 'Ali, como sacrifício pelo 'Ali cujo adven-to nós todos esperamos. Para este fim o criei e preparei."

O Báb, cujo nome era 'Alí-Muhammad, nasceu em Shí-ráz, no primeiro dia de Muharram, no ano de 1235 A.H. Era descendente de uma casa célebre por sua nobreza, que tra-çava sua origem até o próprio Maomé. Seu pai, Siyyid Mu-hammad Rida, e sua mãe eram descendentes do Profeta e pertenciam a famílias de reconhecido prestígio. A data de Seu nascimento confirmou a verdade das palavras atribuídas ao Imame 'Ali, Comandante dos fiéis: "Sou dois anos mais jo-vem do que meu Senhor". O mistério desta afirmação, po-rém., permaneceu velado salvo para aqueles que buscaram e reconheceram a verdade da nova Revelação. Foi Ele, o Báb. quem revelou, em Seu primeiro, mais importante e excelso livro, esta passagem referente a Bahá'u'lláh: "ó Tu Rema-

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nescente de Deus! Sacrifiquei-me totalmente por Ti; consenti em ser amaldiçoado por Tua causa; e não tenho ansiado se-não pelo martírio no caminho de Teu amor. Suficiente teste-munha para Mim é Deus, o Excelso, o Protetor, o Ancião dos Dias!"

Durante a estada de Shaykh Ahmad em Kirmánsháh, ele recebia tantas evidências de ardentes devoção do prínci-pe Muhammad-'Alí-Mírzá que, em uma ocasião, sentiu-se im-pelido a se referir ao príncipe em termos como estes: "Con-sidero Muhammad-'Alí como meu próprio filho, embora seja descendente de Fath'Alí". Um número considerável de inqui-ridores e discípulos aglomerava-se em sua casa, ávidos de assistirem seus discursos. A nenhum deles, entretanto, se sentiu inclinado a mostrar a atenção e a afetuosa estima que caracterizavam sua atitude para com Siyyid Kázim. Pa-recia havê-lo escolhido dentre a multidão que se amontoava ao seu redor e estar preparando-o para levar avante sua obra, com vágor inalterado, após sua morte. Um de seus discípulos interrogou Shaykh Ahmad, certo dia, a respeito da Palavra que se espera que o Prometido venha a pronun-ciar na plenitude do tempo, uma Palavra tão espantosa e estupenda que cada um dos trezentos e três dirigentes e nobres da Terra fugiria consternado, como se abatido pelo seu estupendo peso. E assim Shaykh Ahmad replicou: "Como podes tu presumir sustentar o peso da Palavra que os di-rigentes da Terra se vêem incapazes de suportar? Não pro-cures satisfazer um desejo impossível. Deixa de me fazer essa pergunta, e de Deus pede perdão". Esse inquiridor pre-sunçoso ainda outra vez com ele instou que lhe revelasse a natureza daquela Palavra. Finalmente Shaykh Ahmad res-pondeu: "Fosses tu atingir aquele Dia, se te fosse dito que repudiasses a guardiania de 'Ali e lhe denunciasses a vali-dade, que dirias?" "Deus proíba!", exclamou ele. "Nunca pode suceder tal coisa. Palavras como essas procederem dos lábios do Prometido me é inconcebível." Quão grave foi seu erro e quão lastimável seu estado! Foi pesada na balança a sua fé e se verificou ser ela falha, desde que ele deixara de reconhecer que Aquele que há de se tornar manifesto é do-tado de tal poder soberano como nenhum homem se atre-

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ve a questionar. Seu é o direito de "ordenar o que for Sua vontade, de decretar o que lhe aprouver". Qualquer um que hesite, qualquer um que ponha em dúvida Sua autoridade, ainda que seja por um piscar de olhos, ou menos, priva-se de Sua graça e é contado entre os caídos. E, no entanto, poucos, se alguns dos que escutavam Shaykh Ahmad nessa cidade e o ouviram desdobrar os mistérios das alusões nas Sagradas Escrituras, puderam apreciar o significado de suas palavras ou apreender seu propósito. Somente Siyyid Ká-zim, seu tenente capaz e distinto, podia afirmar que havia entendido seu intuito.

Após a morte do príncipe Muhammad-'Alí-Mírzá,23 Shaykh Ahmad, livre das urgentes solicitações do príncipe para que prolongasse sua estada em Kirmánsháh, transferiu sua residência para Karbilá. Embora na aparência rodeasse o san-tuário do Siyyidu'sh-Shuhadá,24 o Imame Husayn, seu cora-ção, enquanto ele executava aqueles ritos, concentrava-se na-quele verdadeiro Husayn, objeto único de sua devoção. Uma grande multidão dos mais distintos ulemás e mujta-hids reunia-se ao seu redor. Muitos começaram a invejar sua reputação e alguns procuraram minar-lhes a autoridade. Por mais que se esforçassem, não conseguiram abalar sua po-sição de indubitável preeminência entre os homens letrados daquela cidade. Finalmente, aquela luz brilhante foi chama-da para irradiar seu esplendor sobre as cidades santas de Meca e Medina. Para estas cidades empreendeu viagem, nelas prosseguindo com irrestrita dedicação os seus labores, e aí entrou em seu repouso eterno à sombra do sepulcro do Profeta, para a compreensão de cuja Causa ele tão fiel-mente lidara.

Antes de partir de Karbilá, Shaykh Ahmad confiou a Siyyid Kázím, seu sucessor escolhido, o segredo de sua missão,25 ineumbindo-lhe de se esforçar para acender em

23 1237 A.H. 34 O Príncipe dos Mártires. -5 A. L. M. Nicolas no prefácio de Essai sur le Shaykhisme

V. I., cita as seguintes palavras que haviam sido ditas por Shaykh Ahmad refer;ndo-se a Siyyid Kázím: "Não existe outro a não ser Siyyid Kázím-i-Rashtí que compreenda o objetivo que persigo, e ninguém, senão ele, o compreende... Procurai a c!ência, depois de mim, ao lado de

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cada coração receptivo o fogo que tão intensamente nele ardera. Por muito que Siyyid Kázím insistisse em acompa-nhá-lo até Najáf, Shaykh Ahmad recusou ceder a seu pedi-do. "Não tens tempo a perder", foram as últimas palavras que ele proferiu. "Cada hora fugaz deve ser aproveitada to-talmente e com sabedoria. Deves envidar os máximos es-forços, tentando dia e noite romper, pela graça de Deus e com a mão da sabedoria e amorosa bondade, aqueles véus de negligência que têm cegado os olhos dos homens. Pois em verdade digo, aproxima-se a Hora, a Hora que tenho implorado a Deus que me poupasse de testemunhar, pois o tremor de terra da Última Hora será horrendo. Deves orar a Deus que te livre das assombrosas provações desse Dia, pois de lhe resistir a força predominante nenhum de nós é capaz. A outros, de maior intrepidez e dotados de poder, cabe o destino de arcar com tão estupendo peso, homens sujos corações de todas as coisas terrenas estão santifiça-dos e cuja valia é reforçada pela potência de Seu poder."

Ditas estas palavras, Shaykh Ahmad dele se despediu, exortando-o a enfrentar com valentia as provações que por força o haveriam de afligir, e o entregou aos cuidados de Deus. Em Karbilá, Siyyid Kázím dedicou-se à obra iniciada pelo seu mestre, expondo seus ensinamentos, defendendo sua Causa e respondendo a quaisquer perguntas que causassem perplexidade nas mentes de seus discípulos. O vigor com que prosseguia essa tarefa inflamava a animosidade dos ig-norantes e invejosos. "Há quarenta anos", vociferavam, "permitimos que os ensinamentos pretensiosos de Shaykh Ahmad sejam difundidos sem a mínima oposição de nossa oarte. Já não podemos tolerar pretensões similares da parte de seu sucessor, que rejeita a crença na ressurreição do corpo, repudia a interpretação literal do 'Mi'ráj',26 consi-dera alegóricos os sinais do Dia vindouro e prega uma dou-trina que é de caráter herético e contrária aos melhores preceitos do Islã ortodoxo." Quanto mais alto seus clamo-

Siyyid Kázím-i-Rashtí, que a adquiriu diretamente de mim e a obteve dos imames, os quais aprenderam do Profeta, a quem Deus a havia iado . . . Ele é o único que me compreende!"

28 "A Ascensão de Maomé ao Céu."

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res e protestos, mais firme se tornou a determinação de Siyyid Kázím de prosseguir sua missão e cumprir o que lhe fora incumbido. A Shaykh Ahmad dirigiu uma epístola, na qual expôs minuciosamente as calúnias contra ele pronun-ciadas e lhe informou o caráter de sua oposição e a que ponto a levavam. Nela aventurou-se a inquirir por quanto tempo era destinado a se submeter ao inexorável fanatismo de um povo obstinado e sem instrução e suplicou que o esclarecesse quanto ao tempo em que o Prometido iria se manifestar. A isto Shaykh Ahmad respondeu: "Podes estar certo da graça de teu Deus. Não te entristeças por causa de suas ações. O mistério desta Causa deve, seguramente, tornar-se manifesto, e o segredo desta Mensagem por força haverá de se revelar.37 Mais não posso dizer; tempo ne-nhum posso designar. Sua Causa tornar-se-á conhecida de-pois de Hín.28 Não me perguntes coisas que, se te fossem reveladas, só poderiam te causar dor".

2 7 O Báb se refere a esta passagem e a confirma no Dalá'iLi-Sab'ih: "São conhecidas as palavras do venerável Shaykh Ahmad-í Ahsá'í. Há nelas inumeráveis indicações referentes à Manifestação. Por exemplo, ele escreveu de seu próprio punho à Siyyid Kázím-i-Rashtí: "Do mesmo modo que para a construção de uma casa se necessita de um terreno, assim deve-se apresentar o momento para esta Manifestação. Aqui, porém, não se pode responder fixando o momento exato. Logo será conhecido de forma inequívoca". O que tu mesmo, tantas vezes, tens ouvi-do Siyyid Kázím dizer — não é isso uma explicação. Não repetia ele a cada instante: "Não desejam vocês que eu me vá e que Deus apareça?" (Lè livre des Sept Preuves, traduzido por A. L. M. Nicolas, p. 58). "Há também o episódio relativo a Shaykh Ahmad-í-Ahsá'í no caminho de Meca. Foi provado que esta história é autêntica e assim tem alguma coisa de verdadeiro nela. Discípulos do Shaykh relataram as conversas que tinham ouvido e entre eles se encontravam personagens como Mullá Abdu'1-.Kftáliq e Murtadá-Qulí. Mullá 'Abdu'1-Kháliq relatou que o Shaykh lhes disse certo dia: "Rezai para não estar no começo da Ma-nifestação e do Retorno, porque haverá muitas guerras civis". E acres-centou: "Se algum de vocês viver todavia nesse tempo, verá coisas es-tranhas entre os anos 60 e 67. E que coisa estranha pode ser mais es-tranha que o próprio Ser da Manifestação. Tu lá estarás e verás uma coisa extraordinária: É que Deus para fazer vitoriosa esta Manifes-tação suscitará um Ser, o qual falará de si mesmo, sem ter aprendido jamais nada dos demais". (Id. p.p. 59-60.)

28 De acordo com a observação de Abjad, o valor numérico da palavra Hín é 68. Foi no ano de 1268 A.H. que BaháVlláh. enquanto

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Quão grande, quão imensa é sua Causa que até para um personagem tão exaltado quanto Siyyid Kázím palavras como essas foram dirigidas. Esta resposta de Shaykh Ah-mad trouxe consolo e ânimo ao coração de Siyyid Kázím e assim, com redobrada determinação, ele continuou a resistir à investida de um inimigo invejoso e pérfido.

Shaykh Ahmad faleceu pouco depois,29 no ano de 1242 A.H., com a idade de oitenta e um anos, e foi sepultado no cemitério de Baqí,30 nas imediações do lugar de descanso de Maomé, na cidade santa de Medina.

se encontrava preso na "fossa negra" de Teerã, recebeu as primeiras manifestações da Sua Missão Divina.

2 9 Faleceu em um lugar chamado Haddih, nas vizinhanças de Medina. (A. L. M. Nicolas Essai sur le Shaykisme I, p. 60.)

3 0 Seu corpo foi levado para Medina, onde foi sepultado no cemi-tério Baqí' atrás do muro da cúpula do Profeta, no lado sul, debaixo da goteira de Mihráb. Diz-se que ali está também o túmulo de Fátimih em frente ao Baytúl-Hasan". (A. L. M. Nicolas Essai sur le Shaykis-me, I, p.p. 60-61.) "A morte de Shaykh Ahmad pôs fim a luta durante

alguns dias e as paixões pareciam aquietar-se. Por outro lado, foi nessa época que o Islã sofreu um golpe terrível, sendo quebrado seu poder. O imperador da Rússia venceu as nações muçulmanas e a maioria das províncias habitadas por pessoas dessa religião caíram nas mãos do exér-cito moscovita". (A. L. M. Nicolas Essai sur le Shaykhisme, II, p. 51). "Por outro lado, se pensava que, com a morte de Shaykh Ahmad, sua doutrina desapareceria com ele, para sempre, e a paz durou por um período de quase dois anos. Porém, os muçulmanos voltaram logo aos seus primeiros sentimentos quando viram que a luz da doutrina do fa-iecido mestre resplandecia sobre o mundo graças a Siyyid Kázím-i-Rashtí, o melhor e mais fiel discípulo de Shaykh Ahmad e seu sucessor". (Id, p, 5-6.)

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CAPÍTULO II

A MISSÃO DE SIYYID KÁZIM-I-RASHTI

A notícia do passamento de seu bem-amado mestre trouxe indizível pesar ao coração de Siyyid Kázím. Inspira-do pelo versículo do Alcorão, "Bem queriam eles com as bocas extinguir a luz de Deus; mas Deus só deseja aperfei-çoar Sua luz, ainda que seja abominada pelos infiéis", le-vantou-se com o inalterável propósito de consumar a tarefa a ele confiada por Shaykh Ahmad. Após o desaparecimento de tão distinto protetor, viu-se ele vítima da língua difa-madora e da implacável inimizade do povo ao seu redor. Eles agrediram sua pessoa, desdenharam seus ensinamentos e aviltaram seu nome. Instigados por um líder xiita, pode-roso e notório, Siyyid Ibráhím-i-Qazvíní, coligaram-se aos ini-migos de Siyyid Kázím com a determinação de o destruir. Concebeu então Siyyid Kázím o plano de obter o apoio e a boa vontade de um dos dignitários eclesiásticos mais respei-tados e eminentes da Pérsia, o célebre Hájí Siyyid Muham-mad Báqír-i-Rashtí, que residia em Isfáhán e cuja autori-dade se estendia muito além dos confins daquela cidade. Com essa amizade e simpatia, pensou Siyyid Kázím, lhe se-ria possível prosseguir no curso de suas atividades sem obstáculo e aumentar-se-ia consideravelmente a influência por ele exercida sobre seus discípulos. "Oxalá um dentre vós", ouviam-no dizer muitas vezes aos seguidores, "pudesse levantar e, com desprendimento completo, viajar a Isfáhán e lá entregar àquele sábio Siyyid esta mensagem minha: 'Por que de início mostrastes vós tão notável consideração e afeto para o falecido Shaykh Ahmad e agora, de súbito, vos desli-

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gastes do corpo de seus escolhidos discípulos? Por que é que nos abandonastes à mercê de nossos oponentes? Oxalá tal mensageiro, em Deus pondo sua confiança, possa levantar para explicar os quaisquer mistérios que na mente da-quele sábio Siyyid tenham causado perplexidade e para lhe dissipar as dúvidas que tenham alienado sua simpatia. Oxalá pudesse dele obter uma declaração solene que atestasse a inquestionável autoridade de Shaykh Ahmad e admitisse se-rem verídicos e sãos os seus ensinamentos. Oxalá pudesse ele também, após haver obtido tal testemunho, visitar Mash-had e lá conseguir uma declaração semelhante de Mírzá'As-karí, o mais eminente líder eclesiástico naquela cidade santa, e, então, tendo completado sua missão, possa, regressar em triunfo para este lugar". Repetidas vezes achava Siyyid Ká-zím oportunidade para reiterar seu apelo. A esse chamado, porém, ninguém se aventurou a responder, exceto um certo Mírzá Muhít-i-Kirmání, se expressou disposto a empreender essa missão. A ele Siyyid Kázím replicou: "Acautelai-vos de tocar na cauda do leão. Não menosprezeis a delicadeza e a dificuldade de tal missão". Volvendo a face, então para seu jovem discípulo, Mullá Husayn-i-Bushrú'í, o Bábu'1-Báb,1 di-rigiu-lhe estas palavras: "Levantai-vos e cumpri esta missão, pois eu vos declaro capaz de executar tal tarefa. O Todo-Po-deroso com Sua graça vos assistirá, e de êxito haverá Ele de vos coroar os esforços".

Mullá Husayn com júbilo se pôs em pé, beijou a orla das vestes do instrutor e, jurando-lhe, lealdade de pronto partiu em sua jornada. Com inteiro desprendimento e no-bre resolução, empreendeu a consecução do objetivo. Ao chegar em Isfáhán de imediato procurou a presença do sábio Siyyid. Humildemente vestido e coberto do pó da viagem, diante da presença dos discípulos ricamente traja-dos daquele líder distinto, pareceu uma figura sem impor-tância ou valor. Sem ser observado, intrépido, avançou a um lugar frente ao assento que o célebre instrutor ocupava. Invocando em auxílio toda a coragem e confiança nele inspiradas pelas instruções de Siyyid Kázím, dirigiu-se a Hájí Siyyid Muhammad-Báqir nestas palavras: "Ouvi, ó

1 Ele foi o primeiro a crer no Báb, que lhe deu esse título,

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Siyyid, as minhas palavras, pois a resposta ao meu apelo há de garantir a salvação da Fé do Profeta de Deus, e a re-cusa a considerar a minha mensagem causar-lhe-á prejuízo lastimável". Estas palavras audazes e corajosas, com fran-queza e força pronunciadas, produziram no Siyyid surpre-endente impressão. De súbito interrompeu ele seu discurso e, desconsiderando o auditório, escutou com concentrada atenção a mensagem trazida pelo estranho visitante. Seus discípulos, atônitos perante tão extraordinária conduta, re-preenderam o abrupto intruso, denunciando-lhe as presun-çosas pretensões. Com gentileza extrema, em firme e digna linguagem, Mullá Husayn sutilmente se referiu à descorte-sia e baixeza dos presentes, mostrando-se surpreso diante da arrogância e vangloria destes. Plenamente contentou-se o Siyyid com o porte e o argumento impressionantes da parte do visitante. Deplorou a indigna conduta de seus próprios discípulos, pedindo que a desculpasse. A fim de lhe compen-sar essa ingratidão, mostrou ao jovem toda gentileza conce-bível, assegurando-lhe seu apoio e com ele instando que transmitisse sua mensagem. Com isso lhe informou Mullá Husayn a natureza e o objetivo da missão da qual fora in-cumbido. O sábio Siyyid a isso replicou: "Como de início acreditávamos que Shaykh Ahmad, como também Siyyid Kázím, não eram motivados por outro desejo senão o de promover a causa do conhecimento e salvaguardar os sagra-dos interesses da Fé, nós nos sentíamos impelidos a pres-tar-lhes o mais sincero auxílio e lhes elogiar os ensinamen-tos. Em anos subseqüentes, porém, temos notado em seus escritos tantas afirmações contraditórias e alusões obscuras e misteriosas que achamos aconselhável guardar silên-cio por algum tempo, abstehdo-nos tanto de censura como de aplauso." Respondeu Mullá Husayn: "Não posso senão deplorar tal silêncio de vossa parte, pois firmemente creio que isso envolve a perda de uma esplêndida oportunidade para promover a causa da Verdade. Cumpre-vos expor es pecificamente tais passagens em seus escritos que vos pare-cem misteriosos ou inconsistentes com os preceitos da Fé. e eu, com o auxílio de Deus, me incumbirei de expor seu verdadeiro significado". O porte, a dignidade e a confiança

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que caracterizavam a conduta desse inesperado visitante, causaram profunda impressão em Hájí Siyyid Muhammad Báqir. Solicitou-lhe que não insistisse no assunto no mo-mento, mas esperasse até o dia seguinte, quando, em conversa particular, lhe pudesse falar de suas próprias dúvi-das e receios. Mullá Husayn, no entanto, julgando que a demora poderia prejudicar a causa tão querida de seu co-ração, insistiu em ter com ele uma conferência imediata acerca dos graves problemas que se sentia impelido a re-solver e com capacidade para isto fazer. Comoveu-se o Siyyid até as lágrimas diante do entusiasmo juvenil, da sinceridade e confiança serena que o semblante de Mullá Husayn tão admiravelmente demonstrava. De imediato man-dou-o buscar algumas das obras escritas por Shaykh Ah-mad e Siyyid Kázím e pôs-se a interrogar Mullá Husayn a respeito daquelas passagens que lhe haviam provocado o desagrado e a surpresa. A cada referência o mensageiro replicou com característico vigor, com conhecimento magis-tral e modéstia decorosa.

Assim continuou ele a expor, na presença dos discípu-los reunidos, os ensinamentos de Shaykh Ahmad e Siyyid Kázim, lhes vindicando a verdade e defendendo a causa, até a hora em que o muezim, chamando à oração os fiéis, de súbito interrompeu o curso de seu argumento. No dia se-guinte, do mesmo modo, na presença de uma assembléia grande e representativa e, face a face com o Siyyid, reas-sumiu sua eloqüente defesa da elevada missão que a Shaykh Ahmad e a seu sucessor fora confiada pela Providência toda-poderosa. Um silêncio profundo caiu sobre seus ouvin-tes. Pasmaram-se diante da força de seu argumento e do tom e estilo de sua palestra. O Siyyid prometeu publicamen-te que ele mesmo, no dia seguinte, faria por escrito uma declaração que desse testemunho da eminente posição de Shaykh Ahmad, como também de Siyyid Kázím, e denun-ciasse qualquer um que se desviasse de seu caminho como alguém que da Fé do próprio Profeta se tivesse afastado. Outrossim daria ele testemunho de sua penetrante percep-ção, de sua compreensão correta e profunda dos mistérios que a Fé de Maomé entesourava. Cumprindo sua promessa,

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de próprio punho o Siyyid redigiu a prometida declaração. Longamente escreveu, prestando um tributo, no curso do testemunho, ao caráter e à erudição de Mullá Husayn. Em termos fervorosos se referiu a Siyyid Kázím, desculpan-do-se pela atitude anterior e expressando a esperança de que, nos dias vindouros, pela lamentável conduta passada para com ele, lhe fosse possível compensá-la. Aos seus dis-cípulos, ele próprio leu o texto desse testemunho escrito, entregando-o em seguida a Mullá Husayn sem lacrá-lo, auto-rizando-o a compartilhar com qualquer um que quisesse o conteúdo, a fim de que todos assim conhecessem o grau de sua devoção a Siyyid Kázím.

Mal Mullá Husayn se retirara, o Siyyid incumbiu a um de seus atendentes de confiança de seguir as pegadas do visitante, para que descobrisse o lugar onde residia. O atendente seguiu-o até um prédio modesto, que servia de madrisih2, onde o viu entrar num quarto que, além de um tapete muito gasto, nada de mobília possuía. Viu-o chegar, oferecer sua oração de agradecimento a Deus e se deitar naquele tapete, com seu 'abáz, unicamente para se cobrir. Após haver relatado ao seu mestre tudo o que ob-servara, o atendente foi incumbido de entregar a Mullá Hu-sayn a quantia de cem túmáns4 e de lhe expressar as sinceras desculpas de seu mestre por não haver podido ofe-recer a tão notável mensageiro a hospitalidade digna de sua posição. A essa oferta enviou Mullá Husayn a seguinte res-posta: "Diga ao seu mestre que sua verdadeira dádiva a mim foi o espírito de eqüidade com que me recebeu e o es-pírito aberto que o levou, a despeito de seu elevado grau;

2 "Os madrisihs ou colégios persas encontram-se totalmente nas mãos do clero e existem vários deles em todas grandes cidades. Geralmen-te são formados de um grande pátio rodeado por prédios que possuem quartos para os estudantes e professores, com uma porta independente; freqüentemente tem um jardim com um chafariz no centro do pá t iu . . . Muitos dos madrisihs foram fundados e subvencionados por reis ou por pessoas filantrópicas." (C. R. Markham A General Sketch of the History of Pérsia, p. 365.)

3 Uma vestimenta solta, que se parece com uma capa, feita ge-ralmente de pele de camelo.

4 Equivalente a mais ou menos cem dólares, soma considerável naqueles tempos.

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a responder à mensagem trazida por mim, um estranho hu-milde. Devolva esse dinheiro ao seu'mestre, pois eu, como mensageiro, recompensa alguma peço, nem remuneração. 'Nutrimos vossas almas por amor a Deus; de vós nenhuma recompensa nem agradecimento buscamos.'5 Minha ora-ção pelo seu mestre é que nenhum prestígio terreno jamais o possa impedir de reconhecer e atestar a Verdade".6

Hájí Siyyid Muhammad-Báqir faleceu antes do ano sessen-ta A.H., ano que testemunhou o nascimento da Fé procla-mada pelo Báb. Até seu último momento permaneceu ele um destemido defensor e fervoroso admirador de Siyyid Kázím.

Tendo cumprido a primeira parte de sua missão, Mullá Husayn enviou ao seu mestre em Karbilá esse testemunho escrito por Hájí Siyyid Muhammad-Báqir, e para Mashhad dirigiu seus passos, determinado a entregar, da melhor ma-neira possível, a mensagem que estava incumbido de dar a Mírzá 'Askarí. Logo que a carta, junto com a declaração es-crita pelo Siyyid, foi entregue a Siyyid Kãzím, este se re-gozijou tanto que de pronto mandou a Mullá Husayn sua resposta, expressando sua grata apreciação pelo modo exem-plar como ele desempenhara sua incumbência. Tão extasia-do estava com a carta recebida que, interrompendo o curso de sua conferência, leu-a aos seus discípulos, bem como o testemunho nela incluso. Mais tarde compartilhou

5 Alcorão, 76:9. fi O Báb no Dalá'ü-i-Sabeih, refere-se a Mullá Husayn nestes

termos: "Tu sabes que foi ele o primeiro a confessar esta Pé; Tu sabes que a maior parte dos doutores Shaykhí, Siyyidíyyih e de outras seitas admiravam sua ciência e seu talento. Quando entrou em Isfáhán, os moleques da cidade gritaram ao vê-lo passar: "Vejam! Um estudante esfarrapado acaba de chegar!" No entanto, este homem mediante suas provas e argumentos convenceu a um siyyid de sabedoria reconhecida como Muhammad-Báqir!, na verdade esta é uma das provas desta Manifes-tação, pois. após a morte do Siyyid, esta personagem foi ver a maioria dos doutores do Islã e não encontrou a verdade, mas o Mestre da Ver-df/le; assim, alcançou o destino que lhe havia sido predestinado. Na verdade, as criaturas do começo e do fim desta Manifestação o invejam e o invejarão até o dia do Juízo! Quem, pois, pode acusar a este mes-tre da inteligência de ser débil mental ou imprudente?" (Le livre ães Se-pt Preuves, traduzido por A. Ti. M. Nicolas, p. 54.)

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com eles a epístola que ele próprio escrevera a Mullá Hu sayn, em reconhecimento ao notável serviço que este pres-tara. Nela Siyyid Kázím tão ardente tributo rendia a suas altas realizações, a sua habilidade e ao seu caráter que al-guns dos que a ouviram desconfiavam ser Mullá Husayn aquele Prometido a quem seu mestre incessantemente se referia, Aquele que ele tantas vezes declarava estar vivendo em seu próprio meio, mas ainda desconhecido de todos. Essa comunicação recomendou a Mullá Husayn o temor a Deus e o exortava a considerá-lo o mais potente instrumen-to com que resistir à investida do inimigo e a característica distintiva de todo verdadeiro seguidor da Fé. Estava expres-sa em termos de tão terna afeição que ninguém que a lesse poderia duvidar de que quem a escreveu estava se despedin-do de seu bem-amado discípulo, não nutrindo nenhuma esperança de encontrá-lo jamais neste mundo.

Naqueles dias, Siyyid Kázím se tornava cada vez mais consciente da aproximação da Hora em que o Prometido haveria de se revelar.7. Ele compreendia quanto eram densos os véus que impediam aqueles que o buscavam c\e apreender a glória do Manifestante oculto. Por isso en-vidou os máximos esforços para remover gradativamen-te, com cautela e sabedoria, quaisquer barreiras que pudes-sem obstruir o caminho do pleno reconhecimento daquele Tesouro oculto de Deus. Repetidas vezes instava ele a seus discípulos que se lembrassem do fato de que Aquele cujo advento esperavam não apareceria nem de Jábulqá nem de Jábulsá8. Até sugeria a possibilidade de sua presença em seu próprio meio. "Vós O vedes com os próprios olhos",

7 Em relação a isto, o Báb revelou o seguinte no Dalá'il-i-Sábeih: O que ele dizia desde a sua última viagem, que tu mesmo tens ouvido, não se conta já? E a história de Mirzá Muhammad-i-Akhl:' -í que foi relatada por 'Abdul Husayn-i-Shushtarí? Mirzá Muhammad-i-Akhbárí perguntou certa vez, quando estava em Kázimayn, ao venerável Siyjnd quando se manifestaria o Imame? O Siyyid percorreu a platéia com o olhar e lhe disse: "E quanto a ti, tu o verás!' Mullá Muhammad-Taquíy-i-Haraví relatava também esta história em Isfáhán! (Le livre des Sept Preuves, traduzido por A. L. M. Nicolas, p. 58.)

8 Veja nota no começo do livro: Características Distintivas do Islã Xiita.

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freqüentemente ele observava, "e no entanto não O reco nheceis!" Aos discípulos que o interrogavam sobre os sinais do Manifestante, dizia: "Ele é de linhagem nobre. É des-cendente do Profeta de Deus, da família de Háshim. É jovem e possui conhecimento inato. Sua erudição deriva não dos ensinamentos de Shaykh Ahmad, mas sim, de Deus. Meu conhecimento é apenas uma gota em comparação com a imensidão de Seu conhecimento; minhas realizações, uma partícula de pó em face das maravilhas de sua graça e po-der. Não, imensurável é a diferença. Ele é de altura média, abstem-se de fumar e é de extrema devoção e piedade"9. Certos discípulos do Siyyid, a despeito dos testemunhos de seu mestre, acreditaram ser ele o Prometido, pois os sinais aludidos nele os reconheceram. Um destes foi um certo Mullá Mihdíy-i-Khu'í, que chegou até a tornar pública tal opinião. Com isso o Siyyid se desagradou tão seriamente que o teria expulso da companhia de seus escolhidos seguido-res, não tivesse ele pedido perdão e expressado arrependi-mento pela sua ação.

O próprio Shaykh Hasan-i-Zunúzí informou-me que ele também tinha essas dúvidas e suplicava a Deus que fosse confirmado em sua crença se sua suposição tivesse anda-mento e que, se não, que fosse livrado dessa vã fantasia. "Estava tão perturbado", relatou-me ele uma vez, "que por vários dias nem comer nem dormir eu podia. Meus dias foram passados no serviço de Siyyid Kázím, a quem estava extremamente afeiçoado. Um dia, na hora do alvorecer, fui de súbito acordado por Mullá Naw-Rüz, um de seus servos íntimos, que, muito excitado, mandou-me levantar e o se-guir. Fomos a casa de Siyyid Kázím, a quem encontramos inteiramente vestido com o seu 'abá, e, pronto para sair de casa; pediu-me que o acompanhasse. 'Uma Pessoa alta-mente estimada e distinta chegou', disse ele. 'Creio, que nos incumbe visitá-Lo." Principiava a brilhar à luz matinal

9 "Parece haver provas conclundentes de que Siyyid Kázim se re-feria amíúde, no fim da sua vida, à Divina Manifestação, que ele acre-ditava estar muito próxima. Dizia: "Eu a vejo como o sol ao nascer". (Dr. T. K. Cheyne The Reconciliation of Races and Religions p. 19.)

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quando estava com ele caminhando pelas ruas de Karbilá. Logo chegamos a uma casa, em cuja porta estava um Jo-vem, como se estivesse na expectativa de nos receber. Ele usava um turbante verde, e Seu semblante revelava uma expressão de humildade e gentileza como jamais poderei descrever. Aproximou-se de nós tranqüilamente, estendeu Seus braços para Siyyid Kázím e afetuosamente o abraçou. Sua afabilidade e benevolência estavam em contraste mar-cante com o senso de reverência profunda que caracteriza-va a atitude de Siyyid Kázím para com Ele. Sem falar uma palavra e baixando a cabeça, recebeu as muitas expressões de afeto e estima com os quais o Jovem o saudava. Logo fomos por Ele conduzidos ao andar superior da casa, onde entra-mos numa sala adornada de flores e impregnada do mais delicioso perfume. Convidou-nos a sentar. Não sabíamos, porém, que assentos ocupávamos, realmente, de tão subjugado o senso de deleite que de nós se apoderara. Vimos uma taça de prata que havia sido colocada no centro da sala e que nosso jovem Anfitrião, pouco depois de nos sentarmos, encheu-a até transbordar e a Siyyid Kázím ofereceu dizendo: "Uma poção de uma pura bebida dar-lhes-á o Seu Senhor10." Siyyid Kázím com ambas as mãos segurou a taça e a sor-veu. Um sentimento de júbilo reverente lhe encheu o ser, sentimento esse que não podia conter. A mim, também, foi dada uma taça cheia dessa bebida, embora não me fosse dirigida nenhuma palavra. Tudo o que foi dito nesse memo-rável encontro foi o versículo do Alcorão acima menciona-do. Pouco depois, levantou-se o Anfitrião de Seu assento e, acompanhando-nos até o limiar da casa, despediu-se. Estava eu mudo de admiração, sem saber como expressar a cor-dialidade de Sua acolhida, a dignidade de Seu porte, o en-canto daquela face e a deliciosa fragrância daquela bebida. Como foi grande meu espanto ao ver meu instrutor, sem a mínima hesitação, sorver aquela bebida santa de uma taça de prata, cujo uso, segundo os preceitos do Islã, aos fiéis é vedado. Não sabia explicar o motivo que induziu o Siyyid

M> Alcorão, 76:21.

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a manifestar tão profunda reverência na presença daquele Jovem — uma reverência que nem a vista do santuário do Siyyidu'sh••Shuhadá lhe havia podido despertar. Três dias depois, vi aquele mesmo Jovem chegar e tomar Seu assen-to em meio à companhia dos discípulos reunidos de Siyyid Kázím. Estava sentado próximo ao limiar e com a mesma modéstia e dignidade de porte escutava o discurso do Siyyid. Assim que seus olhos notaram a presença daquele Jovem, o Siyyid interrompeu sua palestra e guardou silên-cio. Com isso, um de seus discípulos solicitou-lhe que reas-sumisse o argumento que ficara inacabado. 'Que mais direi eu?', respondeu Siyyid Kázím, enquanto volvia a face em direção ao Báb. 'Eis que a verdade está mais manifesta do que o raio de luz que incide sobre aquele colo!' Logo observei que o raio ao qual o Siyyid se referiu incidira sobre o colo daquele mesmo Jovem a quem recentemente visitamos. 'En-tão', perguntou o inquiridor, 'porque não revelas Seu nome nem identificas Sua pessoa?' Replicou a isso o Siyyid, apon-tando com o dedo a própria garganta, o que implicava que, fosse ele divulgar Seu nome, ambos instantaneamente se-riam mortos. Isso aumentou ainda mais a minha perplexi-dade. Já ouvira meu instrutor observar ser tão grande a perversidade dessa geração que, fosse ele com o dedo apon-tar o Prometido e dizer, Ele, em verdade, é o Bem-Amado, o desejo de vossos corações e do meu', ainda assim deixa-riam de O reconhecer e de Lhe dar crédito. Vi o Siyyid re-almente apontar com o dedo para o raio de luz que incidira cobre aquele colo e,no entanto, o que isso significava nenhum dos presentes parecia compreender o seu significado. Eu, de minha parte, estava convencido de que o próprio Siyyid jamais poderia ser o Prometido, mas um mistério a todos nós inescrutável se ocultava naquele estranho e atraente jo-vem. Várias vezes me aventurava a me aproximar de Siyyid Kázím e dele solicitar uma elucidação desse mistério. Cada vez que eu me aproximava, sentia dominar-me um senso de temor que sua personalidade tão poderosamente inspirava. E não raras vezes eu o ouvia observar: "õ Shaykh Hasan, re-gozijai-vos por ser vosso nome Hasan (louvável); Hasan

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vosso princípio e Hasan vosso fim. Tivestes o privilégio de alcançar o dia de Shaykh Ahmad, tendes estado intimamen-te associado a mim e, em dias vindouros, a vós caberá o inestimável prazer de testemunhar 'o que jamais olhos vi-ram, nem ouvidos ouviram, nem coração algum concebeu.' "

"Freqüentemente sentia-me impelido a procurar, eu só, a presença daquele Jovem Háshimita e tentar sondar-lhe o mistério. Observava-o várias vezes enquanto Ele permanecia em atitude de oração na porta do santuário do Imame Hu sayn. Tão absorto em Suas devoções estava que parecia se haver esquecido por completo de tudo a Sua volta. Lágrimas dos olhos lhe choviam e dos lábios fluíam palavras de glo-rificação e louvor, cujo poder e beleza eram. tais que nem as mais nobres passagens de nossas Sagradas Escritu-ras poderiam esperar exceder. As palavras 'õ Deus, meu Deus, meu Bem-Amado, Desejo de meu coração' com tal fre-qüência e ardor eram pronunciadas que os peregrinos vi-sitantes que estavam próximos o bastante para ouvi-lo in-terrompiam instintivamente o curso de suas devoções, ma-ravilhando-se com as manifestações de piedade e veneração de tão jovem semblante. De igual modo, comoviarn-se em lágrimas, d'Ele aprendendo a lição da adoração verdadei-ra. Uma vez completadas Suas preces, o Jovem, sem atravessar o limiar do santuário, ou tentar dirigir àqueles ao Seu redor uma palavra sequer, em silêncio se retirava para sua casa. Eu sentia o impulso de me dirigir a Ele, mas, cada vez que me aventurava a me aproximar, de tinha-me uma força que eu nem explicar ou resistir podia. As minhas indagações trouxeram a informação de que Ele era residente em Shíráz, mercador de profissão e não pertencia a ne-nhuma das ordens eclesiásticas. Informaram-me, ainda mais, que Ele, bem como os tios e outros parentes, contavam-se entre aqueles que amavam e admiravam o Shaykh Ahmad e Siyyid Kázím. Pouco depois, eu soube que Ele havia par-tido para Najáf, a caminho de Shíráz. Esse Jovem havia me inflamado o coração. Perseguia-me a memória daquela vi-são. Minha alma com a Sua estava unida, até o dia em que aos meus ouvidos chegou um chamado de um Jovem de Shíráa que proclamava ser o Báb. Pela minha rn^nte,

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logo ficou claro o pensamento de que tal pessoa nenhuma outra poderia ser senão aquele mesmo Jovem visto por mim em Karbilá, o Jovem que era o desejo de meu coração.

"Quando, mais tarde, eu de Karbilá a Shíráz viajei, sou-be que Ele partira em peregrinação a Meca e Medina. En-contrei-o na Sua volta e tentei, apesar dos muitos obstácu-los no caminho, permanecer em estreita associação a Ele. Quando, posteriormente, foi encarcerado na fortaleza de Máh-Kú, na província de Ádhirbáyján, fui incumbido de trans-crever os versículos que Ele ditava ao Seu amanuense. Toda noite, por um período de nove meses, durante o qual foi prisioneiro naquela fortaleza, revelava Ele, após haver oferecido Suas preces noturnas, um comentário sobre um juz ' u do Alcorão. No fim de cada mês, era assim com-pletado um comentário sobre esse livro sagrado inteiro. Durante o encarceramento em Máh-Kú, nove comentários sobre todo o Alcorão foram por Ele revelados. Os textos desses comentários foram entregues em Tabríz aos cuida-dos de um certo Siyyid Ibráhím-Khalíl, com a advertência de ocultá-los até que chegasse o tempo para sua publicação. Seu destino é incerto até agora.

"A respeito de um desses comentários perguntou-me, um dia, o Báb: 'Qual preferes, este comentário que acabo de revelar ou o Ahsanul-Qisas, Meu comentário anterior sobre a Sura de José? Qual dos dois é superior, segundo tua avaliação?' 'Para mim', respondi, 'o Ahsanu'1-Qisas pa-rece ser dotado de maior poder e encanto.' Sorriu de minha observação e disse: 'Não conheces ainda o tom e o teor desse comentário mais recente. As verdades neste entesou-radas haverão de capacitar o inquiridor, mais rápida e efe-tivamente, a atingir o objeto de sua busca.'

"Continuei intimamente associado a Ele até aquele gran-de encontro de Shaykh Tabarsí. Ao ser informado desse acontecimento, o Báb mandou todos os seus companheiros apressarem-se para aquele local e prestarem todo o auxílio possível a Quddús, Seu heróico e distinto discípulo. Dirigin-

11 Um juz é a trigésima parte do Alcorão.

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do-se a mim certo dia, disse Ele: 'Se não fosse Meu encar-ceramento no Jabal-i-Shadíd, a fortaleza de Chihríq, ter-Me-ia incumbido de prestar Minha assistência pessoal ao Meu bem-amado Quddús. Participação naquela luta não te é or-denada. Deverias prosseguir a Karbilá e naquela cidade san-ta residir, desde que te seja destinado contemplar com os próprios olhos o belo semblante do prometido Husayn. Ao fitares aquela face radiante, lembra-te também de Mim. Transmite-Lhe a expressão de Minha devoção afetuosa'. Ain-da, com ênfase, acrescentou estas palavras: 'Em verdade, digo, Eu confiei a ti uma grande missão. Acautela-te para que teu coração não esmoreça, para que não esqueças a glória da qual te investi'."

"Pouco depois viajei para Karbilá, residindo, segundo mandado, naquela cidade santa. Receando que a prolonga-da demora naquele centro de peregrinação provocasse sus-peitas, decidi casar. Comecei a ganhar a vida corno escriba. Quantas aflições caíram sobre mim das mãos dos shaykhís — aqueles que se professavam seguidores de Shaykh Ah-mad e contudo deixaram de reconhecer o Báb! Tendo em mente os conselhos daquele bem-amado Jovem, submeti-me com paciência às indignidades sobre mim infligidas. Por dois anos naquela cidade residi. Entrementes, de Sua prisão terrena foi libertado aquele Jovem santo; através do martí-rio, livrou-se Ele das crueldades atrozes que nos derradeiros anos de Sua vida O assediaram.

Dezesseis meses lunares, menos de vinte e dois dias, haviam se passado desde o dia do martírio do Báb, quando, no dia de 'Arafih12, no ano de 1267 A.H.13, enquanto eu passava pelo portal do pátio interior do santuário do Imame Husayn, meus olhos pousaram, pela primeira vez, em Bahá'u'lláh. Que haverei de relatar sobre o semblante que contemplei! A beleza daquela face, as delicadas feições que nenhuma pena ou pincel ousam descrever, Seu olhar penetrante, Sua expressão bondosa, a majestade de Seu

i2 É o nono dia do mês de Dhí'1-Hijjih. 1» 5 de outubro de 1851 A.D.

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porte, a doçura de Seu sorriso, o cabelo luxuriante, preto de azeviche, em minha alma deixaram uma indelével impres-são. Nesse tempo era eu idoso, curvado pela velhice. Com quanto amor Ele se aproximou de mim! Tomou minha mão, num tom que demonstrava ao mesmo tempo poder e beleza, dirigiu a mim estas palavras: 'Neste mesmo dia é meu pro-pósito tornar-te conhecido como um bábí em toda Karbilá'. Ainda segurando-me a mão, continuou a conversar comigo. Continuamos juntos por toda a extensão da rua do mercado e Ele finalmente disse: 'Louvado seja Deus por haveres perma-necido em Karbilá e visto com teus próprios olhos a face do prometido Husayn'. Nesse mesmo instante recordei a promessa que me fizera o Báb. Suas palavras, que eu supu-nha se referissem a um futuro remoto, não as havia com-partilhado com ninguém. Estas palavras de Bahá'u'lláh co-moveram-me até as profundezas de meu ser. Sentia-me im-pelido a proclamar a um povo desatento, naquele mesmo momento, com toda minha alma e poder, o advento do pro-metido Husayn. Disse-me, porém, Ele, que contivesse meus sentimentos e ocultasse minhas emoções. 'Ainda não', sus-surrou em meus ouvidos, 'a Hora designada aproxima-se. Ainda não soou. Tem confiança e sê paciente.' Desde aque-le momento, desvaneceram-se todas as minhas tristezas. Mi-nha alma inundava de júbilo. Naqueles dias eu estava tão pobre que durante a maior parte do tempo passava fome. Senti-me tão rico, entretanto, que todos os tesouros da Terra se dissolviam até se tornarem inexistentes quando comparados com aquilo que eu já possuía. 'Tal é a Graça de Deus; a quem Ele queira, a confere: Ele, verdadeiramen-te, é de bondade imensa.'"

Após esta digressão, volto agora a meu tema. Estava referindo-me à ânsia com que Siyyid Kázím se determinara a romper aqueles véus que se interpunham entre o povo de seu tempo e o reconhecimento da manifestação prometida. Nas páginas introdutórias de suas obras, intituladas Sharh-i-Qasídih e Sharh-i-Khutbihu, ele alude em linguagem ve-

14 0 capítulo 2 da obra de A. L. M. Nicolas, Essai sur le Shaykhisme, II, está dedicado por completo a uma detalhada enume-

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lada ao abençoado nome de Bahá'u'lláh. Num livreto, últi-mo escrito por ele, menciona explicitamente o nome do Báb com sua referência ao termo "Dhi.kru'lláh-i-A'zam". Neste escreve: "Ao dirigir-me a esse nobre 'Dhikr15, esta pode-rosa voz de Deus, digo: 'Estou apreensivo pelo povo, para que não te faça mal. Estou apreensivo de meu próprio ser, para que eu também não te magoe. Tenho temor de ti, tre-mo ante tua autoridade, sinto pavor da era que vives. Fosse eu entesourar-te como o menino de meus olhos, até o Dia da Ressurreição, não te haveria dado provas suficientes de minha devoção a ti'16."

ração das 135 obras escritas por Siyyid Kázim. Entre elas se destacam por seu interesse as seguintes:

a) Sharh-i-Khutbiy-i-Tutunjíyyih. b) Sharh-í-Qasídih. c) Tafsírih Áyatú'l-Kursi. d) Dar Asrár-i-Shihádat-i-Imám Husayn. e) Cosmografia. f) Dalílu'1-Mutahayyirín.

Diz-se que suas obras excedem à trezentos volumes (A Tra-veller's Narrative. E p. 238)

is "Dhikr" significa "menção", "lembrança". 16 A. L. M. Nicolas cita, no capítulo 3 de seu Essai sur le

Shaikhisme, II, p. 43, o seguinte extrato do Sharh-i-Qasídih de Siyyid Kázim: "Tenho dito que em cada período de cem anos há alguns esco-lhidos para difundir e semear os preceitos que explicam o que é lícito ou ilícito, que falam as coisas que estavam ocultas nos cem anos prece-dentes. Em outras palavras: A cada cem anos aparece uma pessoa sábia e perfeita que tornará verdejante e florida a árvore da lei relig!osa, que regenerará seu tronco a tal ponto que finalmente o livro da Criação chegará a seu fim, num período de mil e duzentos anos. Neste momento aparecerá certo número de homens perfeitos que manifestarão certas coisas muito íntima? que se encontravam ocultas. Então, quando termi-narem os mil e duzentos anos, já terminado o primeiro ciclo que de-pendia da aparição do Sol do Profeta, e da Lua do Viláyat chegam ao seu fim as influências deste ciclo e começa um segundo ciclo, para a explicação dos preceitos íntimos e dos segredos ocultos". Ele próprio acrescenta as seguintes palavras: "Dito de outra maneira, e a fim de tornar ainda mais clara esta linguagem surpreendente, que, na verdade, não necessita explicação, Siyyid Kázim nos diz que o primeiro ciclo que dura mil e duzentos anos é somente para educar os corpos e os espíritos que dependem desses corpos. É como uma criança no ventre materno. O segundo ciclo é para a educação dos espíritos puros, das almas que não têm nenhuma relação com o mundo material. É como se

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Quão profundos foram os sofrimentos de Siyyid Kázím nas mãos do povo da malícia! Quanto dano lhe infligiu aquela geração perversa! Durante anos sofreu em silêncio, suportando com heróica paciência todas as indignidades, to-das as calúnias e denúncias que foram acumuladas sobre ele. Era seu destino, no entanto, testemunhar nos últimos anos de sua vida como a mão vingadora de Deus "destruiu com total aniquilamento" aqueles que se lhe opuseram, o caluniaram e contra ele conspiraram. Naquele tempo os dis-cípulos de Siyyid Ibráhím, aquele notório inimigo de Siyyid Kázím, agregaram-se com o fim de incitar sedição e danos e pôr em perigo a vida de seu formidável adversário. Por todos os meios ao alcance deles tentaram envenenar as men-tes de seus admiradores e amigos, minar-lhe a autoridade e desacreditar o seu nome. Não se levantou uma só voz em protesto contra a agitação que assiduamente estava sendo preparada por essa gente ímpia e traiçoeira, cada um dos quais se dizia o expoente da verdadeira sabedoria e reposi tórios dos mistérios da Fé de Deus. Ninguém tratou de os admoestar ou despertar. Adquiriram tal poder e incitaram tal luta que conseguiram expulsar de Karbilá, de ma-neira vergonhosa, o representante oficial do governo otoma-no e tomaram para seus próprios fins sórdidos qualquer renda que lhe cabia arrecadar. Sua atitude ameaçadora in-centivou o governo central em Constantinopla a mandar um oficial militar à cena da agitação com plenas instruções para extinguir o fogo da rebeldia. Com as forças sob seu comando, esse oficial assediou a cidade e enviou a Siyyid

Deus quisesse elevar os espíritos mediante o dever neste mundo. Por-tanto, quando o primeiro ciclo chega ao fim, quando brilhou o nome de Maoroé. começa o ciclo da educação das mtinrdades. Neste ciclo as formas exteriores obedecem às interiores, enquanto no período prece-dente as formas internas eram submissas às externas. Logo, neste segundo ciclo o nome celestial do Profeta, que é Ahmad, é o Brilho, o Mestre: "Porém este nome deve forçosamente encontrar-se na melhor das terras, no mais puro dos ares". Nicolas acrescenta ainda: "O nome Ahmad poderia fazer crer que aqui se referisse a Shaykh Ahmad. Po-rém, apesar dn'sso, não se pode falar que Ahsá é a melhor das terras. Sabe-se, por outro lado, que todos os poetas persas cantam em prosa e verso as maravilhas de Shíráz e seu clima ideal".

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Kázím uma comunicação em que lhe rogava que pacificasse os ânimos da população excitada. Apelou para ele, pedindo que aconselhasse moderação aos seus habitantes, que os in-duzisse a atenuar sua obstinação e a se submeter volun-tariamente ao seu governo. Prometeu que fosse eles atender aos seus conselhos, incumbir-se-ia de lhes garantir a segu-rança e proteção, proclamaria uma anistia geral e se esfor-çaria por lhes promover o bem-estar. Advertia-lhes, porém, que, caso recusassem se submeter, suas vidas estariam em perigo, uma grande calamidade, certamente, lhes sobreviria.

Ao receber esta comunicação formal, Siyyid Kázím mandou chamar à sua presença os principais instigadores do movimento e, com a maior sabedoria e afeto, os exortou a deixar de causar agitação e a entregar suas armas. Falou com eloqüência tão persuasiva, com tanta sinceridade e des-prendimento que seus corações se abrandaram e sua resis-tência se conteve. Comprometeram-se solenemente a abrir, na manhã seguinte, os portais da cidade e a se apresentar em companhia de Siyyid Kázím, ao oficial que comandava as forças sitiantes. Foi combinado que o Siyyid interviesse em seu favor e obtivesse para eles o que lhes assegurasse a tranqüilidade e o bem-estar. Mal haviam deixado a pre-sença do Siyyid quando os ulemás, os principais instigado-res da rebelião, levantaram-se unanimemente para frustrar esse plano. Bem consciente de que tal intervenção da parte do Siyyid, que já lhes havia excitado a inveja, serviria para lhes aumentar o prestígio e consolidar a autoridade, determina-ram-se a persuadir os elementos tolos e inflamáveis da população a sair à noite e atacar as forças do inimigo. Asseguraram-lhes a vitória por causa de um sonho que um de seus membros tivera, no qual havia visto 'Abbás17 e fora por ele incumbido de incitar seus seguidores a fazer guerra santa contra os sitiadores, prometendo-lhes êxi-to final. Iludidos por essa promessa vã, rejeitaram a adver-tência daquele conselheiro sábio e judicioso e se levantaram para executar os desígnios de seus líderes insensatos. Siyyid Kázím, que bem conhecia a má influência que incitou essa

17 Irmão do Imame Husayn.

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revolta, enviou um informe detalhado e fiel sobre a situação tio comandante turco, e este tornou a escrever a Siyyid Kázím, reiterando seu apelo para uma solução pacífica da questão. Declarou, ainda mais, que em dado momento ele forçaria os portões da cidadela e consideraria a casa do Siyyid como o único lugar de refúgio para um inimigo der-rotado. Esta declaração, o Siyyid a fez circular por toda a cidade. Só serviu para incentivar a zombaria e o desprezo por parte da população. Ao ser informado da maneira como fora recebida esta declaração, o Siyyid observou: "Em ver-dade, o que lhes ameaça é para o amanhecer. Não está pró-ximo o amanhecer." 1S

Ao romper da alvorada, à hora marcada, as forças do inimigo bombardearam as muralhas da cidadela e lhe demo-liram as paredes, encraram na cidade e pilharam e mas-sacraram um número considerável da população. Muitos fugiram consternados para o pátio do santuário do Imame Husayn. Outros buscaram refúgio no santuário de 'Abbás. Os que amavam e honravam Siyyid Kázím recorreram a sua casa. Tão grande foi a multidão que se apressava ao amparo de sua residência que se tornou necessário apossar-se de algumas casas adjacentes a fim de acomodar a multidão de refugiados que se apinhava às suas portas. Tão vasta e ex-citada estava a multidão que lhe enchia a casa que se ve-rificou, uma vez apaziguado o tumulto, haverem morrido nada menos que vinte e duas pessoas.

Que consternação se apoderou dos residentes e visitan-tes na cidade santa! Com que severidade os vitoriosos tra-taram seu inimigo aterrorizado! Com que audácia desrespei-taram os sagrados direitos e prerrogativas de que a piedade de inúmeros peregrinos muçulmanos investira os lugares santos de Karbilá! Recusaram reconhecer tanto o santuário do Imame Husayn quanto o sagrado mausoléu de 'Abbás como refúgios invioláveis para os milhares que fugiram ante a ira vingadora de um povo estrangeiro. Os sagrados recin-tos de ambos os santuários regaram-se com o sangue das vítimas. Um lugar, e somente um, poderia afirmar seu direi-

i» Alcorão, 11:81

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to de refúgio para os inocentes e fiéis dentre a população. Esse lugar era a residência de Siyyid Kázím. Sua casa, com as dependências, era considerada dotada de tal santidade como nem o mais sagrado santuário do Islã havia podido conservar. Essa extraordinária manifestação da ira vingadora de Deus foi uma lição prática para aqueles que se sentiam inclinados a menosprezar a posição desse homem santo. Esse acontecimento memorável19 realizou-se no dia 8 de Dhi'1-Hijjih no ano de 1258 A.H. «•

Admite-se como evidente que, em cada era e revela-ção aqueles cuja missão é proclamar a Verdade ou prepa-

19 A. L. M. Nicolas em seu Essai sur le Shaykhisme, II, pp. 29-30, descreve o acontecimento: "Foi no ano de 1258 (1842) que isso sucedeu, no dia da festa do Qadr. Os Exércitos de Bagdá, sob o coman-do de Najíb Páshá, se apoderaram de Karbilá, cujos habitantes massa-craram, saqueando as ricas mesquitas. Cerca de nove mil pessoas foram mortas e a maioria delas era persa. Muhammad Sháh estava muito doente quando isso aconteceu e, assim, os altos funcionários do governo lhe ocultaram o fato.

"Quando o xá, posteriormente, tomou conhecimento, possuído de grande cólera, jurou uma vingança terrível. Porém, os representantes da Rússia e da Inglaterra intervieram para acalmar os ânimos. Finalmente, Mirzá Ja'far Khán Mushíru'd-Dawlih, voltando de sua embaixada em Constantinopla, foi enviado para Erzeroum afim de encontrar-se com os representantes ingleses, russos e otomanos.

"Quando chegou a Tabríz, o plenipotenciário persa ficou doente, Hájí Mirzá Áqásí nomeou então como representante Mirzá Taqí Khán-Faráhaní Vázir Nizám: este se dirigiu à Erzeroum com duzentos ofi-ciais.

"O representante turco era Anvar Effendi, que se mostrou mui* > cortês e conciliatório; porém, um dos homens de Amír Nizám cometeu um ato que significava um atentado à religião sunita; a população se lançou contra o acampamento do embaixador, dos ou três persas foram mortos, tudo foi saqueado e Amír Nizám teve a sua vida salva graças à intervenção de Badrí Pashá.

"O governo turco apresentou desculpas e pagou quinze mil túmáns por r!<>nos e prejuízos.

"No seu livro Hidáyatu't-Tálibín, Karím Khán escreve que durante o saque a Karbilá as tropas vitoriosas respeitaram as casas dos Shayk-hís, Todos os que buscaram refúgio ali se salvaram, acumulando-se nessas casas muitos objetos de valor. Nenhum dos companheiros de Siyyid Kázim foi morto, enquanto os refugiados nos túmulos sagrados foram massacrados sem piedade. Diz-se que o Páshá entrou a cavalo no recin-to sagrado."

20 10 de janeiro de 1843 A. D.

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rar o caminho para sua aceitação têm encontrado invaria-velmente a oposição de alguns poderosos adversários que lhes desafiaram a autoridade e tentaram perverter seus en-sinamentos. Quer por fraude ou fingimento, por calú-nia ou opressão, estes têm conseguido por algum tempo en-ganar os mal informados e levar para o mau caminho os fracos. Desejosos de manter seu domínio sobre os pensa-mentos e consciências dos homens, eles têm podido, enquan-to a Fé de Deus permanecesse oculta, gozar dos frutos de uma ascendência fugaz e precária. Mal se proclamava a Fé, entretanto, quando viam, com grande consternação, que os efeitos de suas más intrigas empalideciam ante a luz nascen-te do novo Dia de Deus. Ante os cadentes raios daquele Orbe nascente, todas as suas maquinações e más ações eram reduzidas ao nada e breve se tornavam algo esquecido.

Em torno de Siyyid Kázím haviam se congregado, tam-bém, várias pessoas vãs e ignóbeis que simulavam lhe ter devoção e afeto; que professavam ser fiéis e piedosos e se diziam os únicos repositórios dos mistérios entesourados nas palavras de Shaykh Ahmad e de seu sucessor. Ocupa-vam os lugares de honra na companhia dos discípulos reu-nidos de Siyyid Kázím. A estes dirigia ele seus discursos e mostrava notável consideração e cortesia. E, no entanto, muitas vezes em frases veladas e sutis, ele aludia a sua ce-gueira, sua vangloria e sua incapacidade completa para apre-ender os mistérios da expressão divina. Entre suas alusões está a seguinte: "Ninguém pode compreender minha lingua-gem, salvo quem é gerado por mim". Freqüentemente citava estas palavras: "Estou atônito diante da visão. Estou mudo de assombro e vejo o mundo privado do poder de ouvir. Estou impotente para divulgar o mistério e percebo que o povo é incapaz de lhe suportar o peso". Em outra ocasião comen-tou: "Muitos são aqueles que afirmam haver atingido união com o Bem-amado, e contudo aquele Bem-Amado recusa admitir sua pretensão. Pelas lágrimas que derrama por seu Amado, pode o verdadeiro amante se distinguir do falso". Muitas vezes ele dizia: "Aquele destinado a se manifestar depois de mim é de linhagem pura, de ilustre descendência,

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da semente de Fátimih. É de altura mediana e livre de qualquer defeito físico".21

Tenho ouvido Shaykh Abú-Turáb22 contar o seguin-te: "Eu, junto com alguns dos discípulos de Siyyid Kázám, considerava as alusões a essas deficiências que o Siyyid de-clarava ausentes no Prometido, como dirigidas, especifica-mente, a três indivíduos dentre nossos condiscípulos. Nós até os designávamos por apelações que indicavam seus defeitos físicos. Um deles era Hájí Mírzá Karím Khán23 filho de Ibráhím Khán-i Qájár-i-Kirmání, a quem faltava uma vista e que tinha barba rala. Outro era Mírzá Hasan-i-Gawhar, um homem de excepcional corpulência. O terceiro era Mírzá Muhít-i-Shá'ir-í-Kirmání, extraordinariamente magro e alto. Estávamos convencidos de que estes não eram senão aque-les a quem o Siyyid aludia constantemente como as pessoas vãs e infiéis que no fim revelariam o que realmente eram e deixariam aparecer sua ingratidão e insensatez. Quan-to a Hájí Mírzá Karím Khán, que durante anos sentava-se

2 1 A. L. M. Nicolas em seu Essai sur le Shaykhisme, II, pp. GO-61, cita o seguinte parágrafo dos escritos de Siyyid Kázím: "Tu já compreendeste, penso, que a Lei religiosa e os preceitos da moral são o alimento do Espírito. É portanto obrigatório que estas leis reli-giosas sejam diversas: é necessário que algumas vezes as ordens do passado sejam anuladas, é necessário que estejam formadas de coisas duvidosas e coisas certas, de generalidades e de pontos de vista parti-culares, de verdades absolutas e de verdades finitas, de verdades apa-rentes e íntimas, para que a criança chegue até a adolescência e seja perfeita em seu poder e sua capacidade.

"É nesse momento que deve aparecer o Qá'im e, depois da sua ma-nifestação, deve-se cumprir o tempo da sua vida e deve ser morto; e quando for morto o mundo terá atingido os dezoito anos de idade".

22 Segundo Samandár (p. 32), Shaykh Abú-Turáb era de Jshti-hárd e figurava entre os principais discípulos de Siyyid Kázim. Casou com a irmã de Mullá Husayn. Morreu no cárcere de Teerã.

2 3 "O Báb escreveu a Hájí Muhammad Karím Khán conclaman-do-o a reconhecer sua autoridade. Este não só recusou fazê-lo como também escreveu um tratado contra o Báb e suas doutrinas." Pelo me-nos um dos tratados similares foi escrito por Hájí Muhammad Karím Khán. Um deles foi redigido em data posterior a esta, possivelmente depois da morte do Báb, pedido especialmente por Násiri'd-Din Sháh. Destes dois tratados, um foi impresso e tinha o título de "A Aniquilação da Falsidade". (Izháqu'1-Bátil) (nota n.° I, p. 910 — Journal of the Royal Asiatic Society, 1889, art. 12.)

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aos pés de Siyyid Kazím e dele adquiriu toda a sua, assim chamada, erudição, ele, afinal, obteve permissão de seu mes-tre para se estabelecer em Kirmán e ali ocupar-se em pro mover os interesses do Islã e disseminar aquelas tradições que se agrupavam ao redor da sagrada memória dos Ima-mes da Fé.

"Estive presente na biblioteca de Siyyid Kazím quando, certo dia, chegou um ajudante de Hájí Mírzá Karím Khán, segurando na mão um livro, o qual ele ofereceu ao Siyyid em nome de seu mestre, pedindo-lhe que o examinasse e indicasse com próprio punho sua aprovação do conteúdo. O Siyyid leu trechos desse livro e então o devolveu ao ajudan-te com esta mensagem: 'Diga ao seu mestre que ele, melhor do que qualquer outro, pode estimar o valor de seu próprio livro'. O ajudante havia se retirado quando o Siyyid, com voz pesarosa, fez esta observação: 'Maldito seja ele! Há mui-tos anos está associado comigo e, agora que pretende partir, seu. único objetivo, após tantos anos de estudo e convivência, é difundir por meio de seu livro essas doutrinas heréticas e atéias, as quais quer agora que eu endosse. Tem combinado com alguns hipócritas ambiciosos, mirando estabelecer-se em Kirmán, a fim de assumir após minha partida deste mundo, as rédeas da indiscutida chefia. Quão lastimavelmen-te errou em seu juízo! Pois a brisa da Revelação Divina, so-prando do Alvorecer da guia, seguramente lhe apagará a luz e destruirá a influência. A árvore de seu esforço outro fruto não dará afinal, senão o da amarga desilusão e do remorso atormentador. Em verdade digo, haverás de ver isso com os próprios olhos. Minha oração por ti é que sejas protegido da perniciosa influência que ele, o anti-Cristo da prometida Revelação, futuramente exercerá'. Mandou-me ocultar esta predição até o Dia da Ressurreição, o Dia em que a Mão da Onipotência terá revelado os segredos que agora jazem ocul-tos no peito dos homens. 'Nesse Dia', ele me exortou, 'le-vanta-te com inabalável propósito e determinação para o triunfo da Fé de Deus. Proclama aos quatro ventos tudo o que tens ouvido e visto'". Esse mesmo Shaykh Abú-Turáb, que nos primeiros dias da Revelação anunciada pelo Báb pensou que era melhor e mais prudente não se identificar

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com Sua Causa, nutria no coração o mais fervoroso amor pelo Manifestante revelado, e em sua fé permaneceu tão fir-me e imóvel como a rocha. No fim, esse fogo abafado lan-çou chamas em sua alma e foi responsável por conduta tal de sua parte que causou seu encarceramento em Teerã, na mesma masmorra em que fora confinado Bahá'u'lláh. Con-tinuou firme até o fim e coroou uma vida de amoroso sacri-fício com a glória do martírio.

À medida que se aproximava o fim dos dias de Siyyid Kázím, sempre que se encontrava com seus discípulos, quer em conversação particular ou em discurso público, exorta-va os dizendo: "ó meus bem-amados companheiros! Acaute-lai-vos acautelai-vos, para que depois de mim as efêmeras vai-dades do mundo não vos enganem. Cuidado para que não vos torneis arrogantes e esquecidos de Deus. Incumbe-vos renun-ciar todo conforto, todos os parentes e bens terrenos, em vossa busca Daquele que é o Desejo de vossos corações e do meu. Dispersai-vos por toda parte, desprendei-vos de todas as coisas terrenas e com humildade e orações suplicai a vosso Senhor que vos sustente e guie. Nunca cedais em vossa determinação de buscar e encontrar Aquele que se oculta atrás dos véus da glória. Perseverai até o tempo em que Ele, vosso verdadeiro Guia e Mestre, bondosamente vos aju-dará, capacitando-vos a reconhecê-Lo. Sede firmes até o dia em que Ele vos escolherá como os companheiros e heróicos defensores do prometido Qá'im. Bem-aventurado cada um de vós que sorver o cálix do martírio em Seu caminho. Aqueles de vós que Deus, em Sua sabedoria, preservar e guardar para que testemunhem o ocaso daquela Estrela de Guia Divina, o Arauto do Sol da Revelação Divina, deverão ser pacientes, deverão permanecer confiantes e constantes. Esses dentre vós não devem vacilar nem se desalentar, pois logo depois do primeiro trombetear que há de castigar a Terra com extermínio e morte, ouvir-se-á ainda outro cha-mado, com o qual todas as coisas serão vivifiçadas e reno-vadas. Então se revelará o significado destes sagrados ver-sículos: 'E houve um toque de trombeta, e todos os que estão no Céu e todos os que estão na Terra expiraram, salvo aqueles que Deus permitiu viver. Então soou outro

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toque e eis que, levantando-se, olharam ao redor. A Terra brilhava com a luz de seu Senhor e se estabeleceu o Livro e fez levantarem os Profetas e as testemunhas; e se julgou entre eles com eqüidade e a ninguém se fez injustiça'.24

Em verdade digo, após o Qá'im, o Qayyúm ^ manifestar-se-á. Pois quando a estrela dAquele tiver se posto, o sol da beleza de Husayn haverá de surgir e iluminar o mundo in-teiro. Então se desdobrarão em toda a sua glória o 'misté-rio' e o 'segredo' de que falou Shaykh Ahmad, quando disse: 'O mistério desta Causa há de se tornar manifesto, e o se-gredo desta Mensagem deve forçosamente ser divulgado'. Haver alcançado esse Dia dos dias é haver alcançado a gló-ria culminante das gerações passadas, e uma só boa ação executada nessa era é igual à piedosa adoração de incontá-veis séculos. Com que freqüência aquela alma venerável, Shaykh Ahmad, recitava esses versículos do Alcorão já cita-dos! Quanta ênfase pôs ele em seu significado como prog-nósticos do advento daquelas duas Revelações gêmeas que hão de seguir uma a outra em rápida sucessão, cada uma das quais é destinada a inundar o mundo com toda a sua glória! Quantas vezes exclamava: 'Bem-aventurado aquele que reconhecer seu significado e contemplar seu esplendor!' Quão freqüentemente, dirigindo-se a mim, ele observava: 'Nenhum de nós há de viver até contemplar sua fulgurante glória. Mas muitos dos fiéis dentre vossos discípulos have-rão de ver o Dia que nós, desafortunadamente, jamais po-deremos esperar contemplar!' ó meus bem-amados compa-nheiros! Como é grande, muito grande, a Causa! Quão ele-vada a posição a qual vos chamo! Quão grande a missão para a qual vos tenho ensinado e preparado! Envidai os máximos esforços e fixai vosso olhar em Sua promessa. Su-plico a DeUs que por Sua graça vos ajude a sobreviver às tempestades de provações e tribulações que forçosamente haverão de vos assediar, que vos dê o poder de sair incólu-mes e triunfantes de seu meio e vos leve a vosso elevado destino".

2* Alcorão, 39:68. 2 5 Referências ao Báb e a Bahá'u'lláh, respectivamente.

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Todo ano, no mês de Dhi'1-Qa'dih, o Siyyid ia de Karbilá a Kázimayn2(i a fim de visitar os santuários dos imames. Regressava a Karbilá em tempo de visitar, no dia de 'Arafih, o santuário do Imame Husayn. Naquele ano, último de sua vida, fiel a seu costume, partiu de Karbilá nos primeiros dias do mês de Dhi'1-Qa-dih, no ano de 1259 A.H.27, acom-panhado por um grupo de seus companheiros e amigos. No quarto dia desse mês chegou em Masjid-i-Baráthá, situado na estrada principal entre Bagdá e Kázimayn, em tempo de oferecer sua oração do meio-dia. Pediu ao muezim que con-vocasse os fiéis para se reunirem e orarem. Em pé na som-bra de uma palmeira que ficava em frente ao masjiã, ele fez parte da congregação e mal concluíra suas devoções quando, de repente, um árabe apareceu, aproximou-se do Siyyid e o abraçou. "Há três dias", disse ele, "cuidava eu de meu rebanho nesse pasto adjacente quando, subitamen-te, o sono me sobreveio. Em meu sonho vi Maorrié, o Após-tolo de Deus, Que a mim se dirigiu com estas palavras: 'Dá ouvidos, ó pastor, a Minhas palavras e as entesoura dentro de teu coração. Pois estas palavras Minhas são a in-cumbência de Deus que entrego a teu cuidado. Se lhes fores fiéis, grande será tua recompensa. Se as desprezar, severa retribuição haverá de te sobrevir. Ouve-Me; é esta a incum-bência que te confio: Permanece na vizinhança de Masjid-i-Baráthá. No terceiro dia depois deste sonho, um descenden-te de Minha casa, Siyyid Kázím de nome, com seus amigos e outros companheiros, chegará ao meio-dia sob sombra da palmeira nas proximidades do masjiã. Ali oferecerá suas orações. Assim que teus olhos o fitarem, procura sua pre-sença e lhe transmite Minhas carinhosas saudações. Dize-lhe, de Mim: Regozija-te, pois a hora de tua partida está próxi-ma. Quando tiveres feito tuas visitas em Kázimayn e tiveres regressado a Karbilá, três dias após tua volta, no dia de

2 6 Os túmulos dos Kázím, o sétimo Imame, Músá Kázím, e o nono Imame, Muhammad Taqí, encontram-se a mais ou menos três milhas ao norte de Bagdá. Ao redor deles cresceu uma grande cidade, habitada principalmente por persas, que a chamaram de "Kázimayn".

27 23 de novembro — 23 de dezembro de 1843 A. D.

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Arafih28, alçarás vôo a Mim. Pouco depois, se tornará manifesto Aquele que é a Verdade. Então o mundo será iluminado pela luz de Seu semblante'". Um sorriso ilumi-nou o rosto de Siyyid Kázím ao ouvir completar-se a des-crição do sonho, segundo foi relatado por esse pastor. Disse ele: "Da verdade do sonho que tiveste, não há dúvida". Seus companheiros ficaram profundamente pesarosos. Volvendo-se a eles, disse: "Não é vosso amor a mim devido ao Verdadeiro, cujo advento todos nós esperamos? Não deseja-reis que eu morra, para que o Prometido seja revelado?" Este episódio em sua totalidade tem sido a mim relatado por nada menos que dez pessoas, todas as quais estiveram presentes nessa ocasião e testificaram sua exatidão. E no entanto muitos dos que viram com os próprios olhos tão maravilhosos sinais rejeitaram a Verdade e repudiaram Sua Mensagem!"

Esse estranho acontecimento foi muito comentado. En-tristeceu o coração dos que em verdade amavam Siyyid Kázím. A estes, com infinita ternura e júbilo, dirigiu pala-vras de alento e consolo. Ele lhes acalmou o coração atri-bulado, fortificou a fé e avivou o zelo. Com dignidade e cal-ma completou sua peregrinação e regressou a Karbilá. No mesmo dia de sua chegada, adoeceu, tendo de ficar acama-do. Seus inimigos espalharam o boato de que ele fora enve-nenado pelo governador de Bagdá. Isso era pura calúnia e absolutamente falso, pois o governador mesmo tivera con-fiança incondicional em Siyyid Kázím, sempre o consideran-do um líder de talento notável, possuidor de um caráter irrepreensível29. No dia de 'Arafih, no ano de 1259 A.H., com a experiente idade de sessenta anos, Siyyid Kázim, de acordo com a visão daquele humilde pastor, despediu-se

2 8 31 de dezembro de 1843 A. D. 29 "Karím Khán, que com referência à tomada de Karbilá, in-

siste sobre o respeito que os assaltantes mostraram aos Shaykhís e a Siyyid Kázím-i-Rashtí não hesita em declarar que é muito provável que Siyyid Kázím tenha sido envenenado em Bagdá pelo infame Najib Pashá, o qual teria lhe dado para beber uma poção cuja absorção lhe provocou uma intensa sede e logo depois ele faleceu." É assim que os persas escrevem a história! (A. L. M. Nicolas, Essaá svr le Shaykhisme, II, p.p. 30-31.)

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deste mundo, deixando atrás de si um grupo de discípulos sinceros e devotados, que, purificados de todo desejo ter-reno, partiram em busca de seu prometido Bem-Amado. Seus restos sagrados foram enterrados dentro do recinto do santuário do Imame Husayn.30 Seu falecimento provocou em Karbilá um tumulto similar àquela agitação que se apo-derara do povo no ano anterior31, na véspera do dia de 'Arafih, quando o inimigo vitorioso forçara os portões da cidadela e massacrara um número considerável de seus ha-bitantes assediados. Um ano antes, nesse dia, sua casa fora o único refúgio de paz e segurança para os desolados e sem teto, enquanto agora havia se tornado uma casa de pesar onde aqueles para quem ele havia sido um amigo e um am-paro choravam sua perda e lamentavam seu falecimento.s2

ao ";p0i sepultado atrás da janela do corredor do túmulo do Senhor dos Confessores. Este túmulo foi escavado muito profundo, com inclinação na sua base, para o interior do recinto proibido." (Idem, p. 31.)

3 1 "Durante a vida de Siyyid Kázím, a doutrina dos Shaykhís st.- difundiu por toda a Pérsia. Só na província do Iraque havia mais de cem mil muríds. (Journal Asiatique, 1886, tomo 7, p. 463).

s2 "Aqui termina a história do estabelecimento do shaykhismo, ou, pelo menos da sua unidade. Após a morte de Siyyid Kázim-i-Rasthí, o shaykhismo foi dividido em dois ramos: um ramo, sob o nome de Babismo, desabrcchou como parecia prometer a força do movimento cria-do por Shaykh Ahmad, cumprindo as expectativas dos dois mestres, caso se possa acreditar em suas predições; o outro, sob a direção de Karím Khán Qajár-i-Kirmání continuou suas lutas contra o elemento xiita, porém procurou sempre segurança afetando a aparência exterior de um perfeito Ithná-Asharismo. Se para Karím Khán, o Báb e seus seguidores são ímpios infames, para os babís, Karím Khán é o anti-Cristo ou Dajjál predito por Maomé". (A. L. M. Nicolas, Essai sur le Shaykhisme, II, p. 31.)

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CAPÍTULO III

A DECLAKAÇÃO DA MISSÃO DO BÁB

A morte de Siyyid Kázím foi o sinal para que se reno-vasse a atividade de seus inimigos. Sedentos de poder e en-corajados em face de seu desaparecimento e da conseqüente consternação de seus seguidores, reafirmaram suas preten-sões e se prepararam para levar a cabo as ambições que nutriam. Por algum tempo, medo e ansiedade encheram os corações dos discípulos fiéis de Siyyid Kázím, mas com o regresso de Mullá Husayn-i-Bushrú'í da missão tão bem-su-cedida da qual seu mestre o incumbira, suas tristezas se dissiparam.1

Foi no primeiro dia de Muharram, no ano de 1260 A.H.2, que Mullá Husayn voltou a Karbilá. Animou e for-taleceu os discípulos desconsolados de seu bem-amado mes-tre, lembrou-os da promessa infalível que este lhes fizera e instou que mantivessem uma vigilância constante e esforço ininterrupto na busca do Bem-Amado ainda oculto. Hospe-dado nas vizinhanças próximas da casa em que o Siyyid havia residido, durante três dias, ele ocupou-se continuamen-te em receber visftas de um número considerável de pesa

1 "Mullá Husayn-i-Bushrú'í era um homem cuja grande erudi-ção e força de caráter eram reconhecidas até pelos adversários. Dedi-cou-se aos estudos desde sua infância e fez tamanho progresso em Teo-logia e Jurisprudência que era tido em grande consideração." (Conde de Gobineau, Les Religions et les Philosophies dans 1'Asie Centrale, p. 128.)

2 22 de janeiro de 1844 A. D.

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rosos que se apressavam a expressar-lhe, como o represen tante principal dos discípulos do Siyyid, seu pesar e triste-za. Ele depois convocou um grupo de seus condiscípulos mais distintos e de maior confiança, dos quais inquiriu so-bre os desejos expressos por seu falecido mestre e sobre suas últimas exortações. Disseram-lhe que, repetida e enfa-ticamente, Siyyid Kázím mandara que abandonassem seus lares, se dispersassem em todas as direções, purificassem seus corações de todo desejo vão e se dedicassem à busca d Aquele a cujo advento se havia referido com tanta freqüên-cia. "Ele nos disse," afirmaram, "que o Objeto de nossa busca estava agora revelado. Os véus que se interpõem en-tre vós e Ele são tais que somente vós os podeis remover com vossa fervorosa busca. Nada senão esforço em espírito de prece, pureza1 de motivos e unidade de propósitos torna-rá possível que os rompeis. Não tem Deus revelado em seu Livro: 'A quem fizer esforços por Nós, em Nossos caminhos o guiaremos?'"3 "Por que, então", retrucou Mullá Husa-yn, "tendes preferido demorar em Karbilá? Por que não vos dispersastes, por que não vos tendes levantado para atender a seu fervoroso apelo?" "Reconhecemos nossa falta" foi sua resposta; "de vossa grandeza todos nós damos testemunho. Tal é nossa confiança em vós que, se vos declarardes o Pro-metido, nós todos nos submeteremos pronta e inquestiona-velmente. Com isto hipotecamos nossa lealdade e obediência a qualquer coisa que ordenardes que façamos." "Deus o proíba!", exclamou Mullá Husayn. "Longe esteja de Sua Gló-ria que eu, que sou apenas pó, seja comparado com. Aquele que é o Senhor dos Senhores! Tivésseis vós estado a par do tom da linguagem de Siyyid Kázím, jamais haveríeis pronunciado semelhante palavras. Vossa primeira obrigação, como também é a minha, é levantar-vos e levar a cabo, tanto no espírito como na letra, a mensagem de nosso bem-amado mestre expressa na hora de sua morte." Imediatamente le-vantou-se de seu assento e foi diretamente a Mírzá Hasan-i-Gawhar, Mírzá Muhít e outras figuras bem conhecidas den-tre os discípulos de Siyyid Kázím. A cada um e a todos en-

3 Alcorão. 29:69.

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tregou intrepidamente a mensagem de despedida de seu mestre, deu ênfase ao caráter premente de seu dever e os exortou a se levantar e o cumprir. A seu apelo deram respostas evasivas e indignas. "Nossos inimigos", observou um deles, "são muitos e poderosos. Devemos permanecer nesta cidade e guardar o assento deixado vago por nosso falecido mestre." Replicou outro: "Incumbe-me aqui ficar e cuidar dos filhos que o Siyyid deixou". De imediato reco-nheceu Mullá Husayn o quanto eram fúteis seus esforços Percebendo o grau de sua insensatez, sua cegueira e sua ingratidão, não mais lhes falou. Retirou-se, abandonando-os às suas ocupações vãs.

Como o ano sessenta, que viu nascer a prometida Re-velação, acabava de despontar no mundo, pareceria ser apropriado, a esta altura, fazer uma digressão de nosso tema e mencionar certas tradições de Maomé e dos Imames da Fé, que a esse ano especificamente se referem. Imame Ja'far, filho de Maomé, ao ser interrogado a respeito do ano em que o Qá'im haveria de se manifestar, deu a seguinte resposta: "Em verdade, no ano sessenta haverá de ser reve-lada a Sua Causa, e seu Nome será proclamado em toda parte." Nas obras do sábio e muito famoso Muhy'd-Dín-í-'Arabí, se encontram muitas referências relativas tanto ao ano do advento, como ao nome do prometido Manifestante. Entre estas estão as seguintes: "Os ministros e defensores de Sua Fé serão do povo da Pérsia". "Em seu nome o nome cio Guardião (Ali) precede ao do profeta (Maomé)." "O ano de Sua Revelação é idêntico à metade daquele número que é divisível por nove (2520)." Mírzá Muhammad-i-Akhbá-rí, em seus poemas que se referem ao ano da Manifestação, faz a seguinte profecia: "No ano de Ghars (o valor numéri-co de cujas letras é 1260) a Terra será iluminada por Sua luz, e em Gharasíh (1265) o mundo inundar-se-á de sua glória. Se viveres até o ano de Gharasíh (1270), haverás de testemunhar como as nações, os governantes, os povos e a Fé de Deus terão sido todos renovados. "Numa tradição atribuída ao Imame 'Ali, Comandante dos Fiéis, outrossim está escrito: 'Em Ghars será plantada a Árvore da guia

7inaV

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Mullá Husayn, havendo cumprido a obrigação que sentia de exortar e despertar seus condiscípulos, partiu de Karbilá para Najáf. Com ele estavam Muhammad-Hasan, seu irmão, e Muhammad-Báqir, seu sobrinho, havendo ambos o acom-panhado sempre desde sua visita à sua cidade natal de Bushrúyih, na província de Khurásán. Ao chegar no Masjid-i-Kúfih, Mullá Husayn decidiu passar quarenta dias nesse lugar, onde viveu uma vida de retiro e oração. Com seus jejuns e vigílias preparou-se para a sagrada aventura em que em breve iria embarcar. Na prática destes atos de adora-ção, só seu irmão o acompanhou, enquanto seu sobrinho, que atendia às suas necessidades diárias, observava os je-juns e, nas horas de lazer, tomava parte em suas devoções.

Esta calma, como a de um ciaustro de convento, que os rodeava foi interrompida, depois de alguns dias, pela inespe-rada chegada de Mullá 'Alíy-i-Bastámí, um dos principais discípulos de Siyyid Kázim. Ele, juntamente com outros doze companheiros, chegou ao Masjid-i-Kúfih, onde encon-trou seu condiscípulo Mullá Husayn absorto em contempla-ção e prece. Mullá 'Ali possuía tão vasta erudição e tão profundamente inteirado estava dos ensinamentos de Shay-kh Ahmad que muitos o consideravam como superior até a Mullá Husayn. Em várias ocasiões tentou inquirir de Mullá Husayn seu destino após o término do período de seu reti-ro. Cada vez que dele se aproximava, encontrava-o tão imer-so em suas devoções que lhe parecia impossível aventurar-se a lhe fazer uma pergunta. Breve resolveu retirar-se da so-ciedade dos homens, como ele, por quarenta dias. Todos os seus companheiros seguiram seu exemplo, com exceção de três que atuavam como seus servidores pessoais.

Imediatamente depois de haver completado seus quaren-ta dias de retiro, Mullá Husayn, junto com seus dois com panheiros, partiu para Najáf. Saiu de Karbilá à noite, visi-tou no caminho o santuário de Najáf e seguiu diretamente a Búshihr, no Golfo Pérsico. Lá iniciou sua sagrada busca do Bem-Amado, o desejo de seu coração. Lá, pela primeira vez, inalou a fragrância dAquele que, durante anos, havia levado a vida de um comerciante e humilde cidadão. Lá percebeu os doces eflúvios de santidade dos quais incontá-

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veis invocações desse Bem-Amado tão ricamente impregnara a atmosfera dessa cidade.

Não podia ele, entretanto, demorar mais tempo em Bú-shihr. Como se fosse puxado por um imã que parecia atraí-lo irresistivelmente para o norte, dirigiu-se a Shíráz. Ao chegar aos portões da cidade, deu instruções a seu irmão e a seu sobrinho para que seguissem diretamente ao Masjid-i-ílkhání e ali aguardassem sua chegada. Expressou a espe-rança de que, pela vontade de Deus, ele pudesse ali estar em tempo de participar de sua oração vespertina.

Nesse mesmo dia, poucas horas antes do pôr-do-sol, en-quanto caminhava fora do portão da cidade, seus olhos de súbito avistaram um Jovem de rosto radiante, que usava um turbante verde e que, dele se aproximando, o saudou com sorriso de amorosas boas-vindas. Abraçou Mullá Husa-yn com afeto e ternura, como se tivesse sido amigo íntimo por toda vida. Mullá Husayn pensou, de início, que poderia ser um discípulo de Siyyid Kázim que, ao ser informado de sua vinda, havia saído para lhe dar boas-vindas.

Mírzá Ahmad-i-Qazvíní, o mártir, que em várias ocasiões havia ouvido Mullá Husayn relatar aos primeiros crentes as circunstâncias de sua comovente e histórica entrevista com o Báb, contou-me o seguinte: "Tenho ouvido Mullá Husayn descrever repetida e claramente as circunstâncias dessa ex-traordinária entrevista: O jovem que veio a meu encontro fora do portão de Shiráz assombrou-me com suas expres-sões de afeto, amor e bondade. Convidou-me cordialmente a visitar Sua casa para ali me refrescar após as fadigas da jor-nada. Roguei que me desculpasse, explicando que meus dois companheiros já me haviam providenciado hospedagem nes-sa cidade e estavam, neste momento, esperando meu regres-so. "Confia-os aos cuidados de Deus", foi sua resposta, "Ele seguramente os protegerá e vigiará." Ditas estas palavras, pediu-me que O seguisse. Senti-me profundamente impres-sionado com a maneira meiga, ainda que persuasiva, com que me falou esse estranho Jovem. Enquanto eu O seguia, Seu andar, o encanto de Sua voz, a dignidade de Seu porte serviram para realçar minhas primeiras impressões desse inesperado encontro.

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"Logo nos encontramos frente ao portão de uma casa de aspecto modesto. Ele bateu na porta, que logo foi aberta por um servente etíope. 'Entrai em paz e segurança'4, foram Suas palavras enquanto cruzava o limiar e me fazia um sinal para que O seguisse. Seu convite, proferido com poder e majestade, tocou-me a alma. Parecia-me um bom augúrio serem dirigidas tais palavras a mim enquanto eu parava no limiar da primeira casa que iria entrar em Shiráz, cidade cuja própria atmosfera me havia produzido já uma impressão indescritível. Não seria possível, pensei comigo, que minha visita a esta casa permitisse aproximar-me mais do Objeto de minha busca? Não apressaria o tér-mino de um período de intenso anelo, de procura tenaz, de crescente ansiedade que tal busca implica? Enquanto eu entrava na casa, acompanhando meu Anfitrião ao seu apo-sento, uma inexprimível sensação de alegria invadiu-me o íntimo. Imediatamente depois de sentarmos, Ele ordenou que fosse trazido um jarro de água e me convidou a lavar as mãos e os pés, para lhes tirar as máculas da viagem. Pedi-lhe permissão para me retirar de Sua presença e fazer minhas abluçoes num quarto contíguo. Recusou conceder minha petição e passou a despejar a água sobre minhas mãos. Deu-me de beber de uma poção refrescante, pedindo o samovar5, no qual Ele mesmo preparou o chá que me ofe-receu.

"Constrangido por estes Seus gestos de extrema gentile-za, levantei-me para partir. "A hora da oração vespertina aproxima-se", aventurei-me a observar. "Prometi a meus amigos reunir-me a eles, nesta hora, no Masjid-i-ílkhání." Com profunda cortesia e calma, Ele replicou: "Certamente deveis ter condicionado a hora de vossa volta ao desejo e agrado de Deus. Parece que Seu decreto é outro. Não ne-cessitais recear haver violado vossa promessa". Sua dignida-de e confiança emudeceram-me. Renovei minhas abluçoes e me preparei para orar. Ele também ficou em pé ao meu lado e orou. Enquanto eu orava, aliviei minha alma, que

4 Alcorão, 15:46. r> Recipiente para chá.

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estava demasiado oprimida pelo mistério dessa conversação e pela intensidade e ânsia de minha busca. Sussurrei esta prece: "De toda minha alma, ó meu Deus, esforçei-me por encontrar Teu Mensageiro prometido e até agora tenho fra-cassado. Testifico que Tua palavra não falha e que Tua pro-messa é certa".

Essa noite, essa memorável noite, era a véspera do quin-to dia de Jamádíyu'1-Avval no ano de 1260 A.H.6. Era aproximadamente uma hora após o pôr-do-sol quando meu jovem Anfitrião começou a conversar comigo. "Quem, de-pois de Siyyid Kázím", perguntou Ele, "considerais como seu sucessor e vosso mestre?" "Na hora de sua morte", re-pliquei, "nosso falecido mestre nos exortou insistentemente a abandonar nossos lares e nos espalhar por toda parte, em busca do prometido Bem-Amado. Conseqüentemente, rumei para a Pérsia, levantei-me para cumprir seu desejo e estou ainda comprometido em minha busca." "O seu mes-tre", inquiriu-me ainda, "vos deu algumas indicações deta-lhadas quanto às feições distintivas do Prometido?" "Sim", respondi, "Ele é de linhagem pura, de descendência ilustre e da semente de Fátimih. Quanto à Sua idade, tem mais de vinte anos e menos de trinta. É dotado de conhecimento inato, possui estatura mediana, abstém-se de fumar e está livre de qualquer deficiência física." Guardou silêncio por um momento e, então, com voz vibrante, declarou: "Vede, todos esses sinais estão manifestos em Mim!" Então anali-sou cada um dos sinais acima mencionados e demonstrou de modo concludente que todos eram aplicáveis à Sua pessoa:. Senti-me profundamente admirado e observei de modo cortês: "Aquele Cujo advento esperamos é Homem de inexcedível santidade, e a Causa que Ele há de revelar, uma Causa de tremendo poder. Muitos e diversos são os requi-sitos que Aquele que pretende ser sua personificação visível deve cumprir. Qlantas vezes Siyyid Kázím se referia à vas-tidão do conhecimento do Prometido! Quantas vezes dizia: 'Meu próprio conhecimento é apenas uma gota em compa

6 Corresponde ao entardecer do dia 22 de ma'n de 1844 A. D O dia 23 de maio caiu numa quinta-feira.

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ração com aquele de que Ele foi dotado. Tudo que atingi nada mais é que uma partícula de pó em face da imensidão de Seu conhecimento. Não, imensurável é a diferença!" Mal haviam saído dos meus lábios estas palavras quando me senti acabrunhado de temor e remorso, a tal ponto que nem pude ocultá-lo nem explicá-lo. Repreendi-me amargamente e resolvi nesse momento mudar minha atitude e suavizar meu tom. Prometi a Deus que se meu Anfitrião se referisse outra vez ao tema, eu, com a maior humildade, responderia, dizendo: "Se vós estais disposto a demonstrar a validade de vossa pretensão, livrar-me-eis seguramente da ansiedade e suspen-se que em tal grau oprimem minha alma. Estarei em ver-dade grato a vós por essa libertação". Quando primeiramen-te iniciei minha busca, determinei-me a considerar os dois seguintes critérios pelos quais pudesse me certificar da ver-dade de qualquer um que pretendesse ser o prometido Qálm. O primeiro foi um tratado que eu mesmo havia com-posto, que se referia aos ensinamentos abstrusos e ocultos exposto por Shaykh Ahmad e Siyyid Kázím. A qualquer um que me parecesse capaz de desvendar as misteriosas alusões feitas nesse tratado, eu submeteria então meu segundo pe-dido e pediria a ele que revelasse sem a mínima vacilação ou reflexão a um comentário sobre a Sura de José, num es-tilo e linguagem inteiramente diferentes dos padrões que prevaleciam na época. Em ocasião anterior havia eu pedido a Siyyid Kázím, particularmente, que escrevesse um comen-tário sobre essa mesma Sura, ao que ele recusou, dizendo: "Isto, em verdade, está além de meus poderes, Aquele Grande Ser que vem depois de mim haverá de revelá-lo para vós, sem ser solicitado. Esse comentário constituirá um dos mais importantes testemunos de Sua verdade e uma das evidên-cias mais claras da sua elevada posição".7

7 Diz-se que Mullá Husayn relatava o seguinte: "Certo dia, quando estava só com Siyyid (Kázím) em sua biblioteca, lhe perguntei por que se dava o título "A Melhor das Histórias" ao Súriy-i-Yúsuf no Alcorão, respondendo ele que não era esse o momento apropriado para explicar a razão. Este incidente permaneceu oculto em minha mente e tampouco o mencionei à alguém". (El Tárikh-i-Jadíd, p. 39.)

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"Revolvia estas coisas em minha mente quando meu distinto Anfitrião novamente observou: "Notai atentamente. Não poderia a Pessoa mencionada por Siyyíd Kázím ser nenhum outro senão eu?" Com isso me senti impelido a lhe apresentar uma cópia do tratado que levava comigo. "Que-reis vós", pedi-lhe, "ler este meu livro e examinar suas pá-ginas com olhos indulgentes? Suplico que não repareis em minhas fraquezas e falhas." Cortesmente satisfez Ele meu desejo. Abriu o livro, olhou rapidamente certos trechos, fechou-o e começou a falar. Dentro de alguns minutos havia Ele, com vigor e encanto característico, desvendado todos os seus mistérios e resolvido todos os seus problemas. Haven-do em tão pouco tempo cumprido, para minha inteira sa-tisfação, a tarefa que eu esperava que executasse, Ele então expôs certas verdades que não poderiam ser encontradas nem nos dizeres atribuídos aos imames da Fé nem nos es-critos de Shaykh Ahmad e Siyyid Kázím. Estas verdades, que nunca antes eu havia ouvido, pareciam estar dotadas de brilho e poder refrescantes. "Não tivesses sido Meu hós-pede", observou depois, "de fato teria sido grave tua posi-ção. A graça de Deus que tudo abarca te salvou. A Deus compete provar Seus servos, e não a Seus servos julgá-Lo de acordo com suas normas deficientes. Fosse Eu falhar em dissipar tuas perplexidades, poderia se considerar impo-tente a Realidade que dentro de Mim resplandece, ou acu-sar de defeituoso Meu conhecimento? Não, pela justiça de Deus! Incumbe, neste dia, aos povos e nações, tanto do Oriente como do Ocidente, apressarem-se para alcançar este limiar e aqui se esforçarem por obter a graça vivificadora do Misericordioso. Quem vacilar sofrerá, em verdade, uma perda grave. Não atestam os povos da Terra ser o propósito fundamental de sua criação o conhecimento e a adoração de Deus? Cumpre-lhes levantarem-se com o mesmo fervor e espontaneidade com que tu te levantaste e buscar com de-terminação e constância seu prometido Bem-Amado." Logo prosseguiu dizendo: "Agora é chegado o tempo de revelar o comentário sobre a Sura de José". Tomou Sua pena e, com incrível rapidez, revelou toda a Sura de Mulk, o pri-meiro capítulo de Seu comentário sobre a Sura de José. O

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poderoso efeito da maneira como escrevia foi aumentado pela suave entoação de Sua voz, que acompanhava seu escri-to. Nem por um momento interrompeu Ele o fluxo de ver-sículos que manava de Sua pena. Nenhuma só vez se deteve antes de completar a Sura de Mulk. Permaneci sentado, extasiado pela magia de sua voz e pela força arrebatadora de Sua Revelação. Com relutância, afinal, levantei-rne de meu assento e pedi que me permitisse partir. Sorrindo, Ele mandou-me sentar e disse: "Se saíres nesse estado, qualquer um que te veja dirá seguramente: 'Este pobre jovem perdeu o juízo". Nesse momento o relógio marcou duas horas e onze minutos depois do pôr-do-sol8. Essa noite, véspera do quinto dia depois de Jamádíyu'1-Avval, no ano de 1260 A.H., correspondia à véspera do sexagésimo quinto dia de-pois de Naw-Rúz, que também era a véspera do sexto dia de Khurdád, do ano Nahang, "Esta noite", declarou Ele, "nesta mesma hora, será celebrada, em dias vindouros, como uma das maiores e mais significativas de todos os festivais. Ren-de agradecimentos a Deus por te haver ajudado, com sua graça, a atingir o desejo de teu coração, por haveres sorvido do vinho selado de Suas palavras. 'Bem-aventurados os que a isto atingem.'"9

Na terceira hora após o pôr-do-sol, meu Anfitrião man-dou servir a ceia. O mesmo servente etíope apareceu de novo e pôs diante de nós os mais seletos pratos. Essa sa-grada refeição refrescou tanto meu corpo quanto meu espí-rito. Na presença de meu Anfitrião, nesse momento, senti como se estivesse me alimentado com os frutos do Paraíso. Não podia senão maravilhar-me dos modos e das devotadas atenções desse servo etíope cuja própria vida parecia ter

8 A data da Manifestação se fixa na seguince passagem no Bayán Persa (Váhid 2, Báb, 7) : "Seu começo foi quando duas horas e onze minutos haviam se passado do entardecer do quinto dia do j a -mádíyu'1-Úlá, 1260 (A.H.), que é o ano 1270 da missão de Maomé". (Extraído de uma cópia manuscrita do Bayán feita pela pena de Siyyid Husayn, escritor e amigo do Báb.)

9 A. L. M. Nicolas cita o seguinte do Kitábu'1-Haramayn: "Na verdade, o primeiro d'a que o Espírito descendeu no coração deste es-cravo foi no dia 15 do mês de Rabí'u'1-Avval". (A. L. M. Nicolas, Siyyid 'Alí-Muhammad dit le Báb, p. 206.)

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sido transformada pela influência regeneradora de Seu Mes tre. Então pela primeira vez reconheci o que significavam as taem-conhecidas palavras tradicionais atribuídas a Mao-mé: "Preparei para os piedosos e os retos dentre Meus ser-vos o que os olhos jamais viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano concebeu". Tivesse meu jovem An-fitrião somente esta prova de grandeza, teria sido suficiente — me recebeu com tal grau de hospitalidade e amorosa bondade, estando eu convencido de que nenhum outro ser hu-mano poderia possivelmente revelar.

Continuei sentado, fascinado por Suas palavras, esque-cido do tempo e daqueles que me esperavam. De súbito a chamada do muezim, convocando os fiéis à sua oração ma-tinal, despertou-me do estado de êxtase em que parecia haver caído. Todas as delícias, todas as glórias inefáveis que o Todo-Poderoso relatou em Seu Livro como as inestimáveis possessões do povo do Paraíso, estas eu parecia estar ex-perimentando nessa noite. Parece-me que estava num lugar do qual em verdade se poderia verdadeiramente dizer: "Ali nenhuma faina nos alcançará, nenhuma fadiga nos haverá de tocar; não ouvirão ali nenhum discurso vão, nem fal-sidade alguma, mas, sim, apenas a exclamação: Paz! Paz!. "Sua exclamação ali será, 'Glória a Ti, ó Deus!' e sua sau-dação ali será: 'Paz!' E o término de sua exclamação, 'Lou-vor a Deus, Senhor de todas as criaturas!'"10

O sono havia-me abandonado nessa noite. Cativara-me a música dessa voz que subia e baixava enquanto Ele entoa-va; ora crescendo com a revelação de versículos do Qayyú-mu'1-Asmáu, ora adquirindo harmonias sutis e etéreas, à medida que Ele pronunciava as orações que estava revelan-do'- . No fim de cada invocação, repetia este versículo:

10 Citações do Alcorão. 1 1 O comentário do Báb sobre a Sura de José. 12 "N 0 primeiro desses livros ele era especialmente piedoso e

místico; no segundo, a polêmica e a dialética, tinham uma parte impor-tante e os ouvintes notavam com assombro que ele descobria, no capí-tulo do Livro de Deus que ele havia selecionado, significados novos que ninguém havia conhecido até então e que deles ele extraía doutrinas e ensinamentos completamente inesperados. O que não cansavam de admi-rar era a elegância e a beleza do estilo árabe utilizado em suas compo-

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"Longe da glória de teu Senhor, o Todo-Glorioso, esteja o que Suas criaturas dEle afirmam! E paz esteja sobre Seus Mensageiros! E louvor a Deus, o Senhor de todos os se-res!"13

Dirigiu-se a mim então nestas palavras: "ó tu que és o primeiro a crer em Mim. Em verdade digo, sou o Báb, a Porta de Deus, e tu és o Bábu'1-Báb, a porta desta Porta. Dezoito almas devem, por sua própria e espontânea vonta-de no princípio, aceitar-me e reconhecer a verdade de Minha Revelação. Sem que ninguém lhes advirta ou con-vide, cada uma destas almas, independentemente, deve sair em Minha busca. Quando seu número estiver completo, um deles deve ser escolhido para acompanhar-Me em Minha peregrinação a Meca e Medina. Ali entregarei a Mensagem de Deus ao Sharíf de Meca. Regressarei então a Kúfih, onde, mais uma vez, no Masjid dessa cidade santa, manifestarei a Sua Causa. Incumbe-te não divulgar nem aos teus com-panheiros nem a qualquer outra alma o que tens visto e ouvido. Ocupa-te no Masjid-i-Ilkhání em oração e em ensi-no. Eu também ali contido tomarei parte na oração congre-gacional. Tem cuidado para que tua atitude para comigo não desvende o segredo de tua fé. Deves continuar nessa ocupação e manter essa atitude até nossa partida para Hi-jáz. Antes de partirmos, designaremos a missão especial de cada uma das dezoito almas e as mandaremos sair para cumprir sua tarefa. Nós as incumbiremos de ensinar a Palavra de Deus e vivificar as almas dos homens". Após me haver dito estas palavras, despediu-me de Sua presença. Acompanhando-me à porta da casa, entregou-me ao cuidado de Deus.

"Esta Revelação, que tão repentina e impetuosamente foi confiada a mim, veio como um corisco, que, por algum tempo, parecia haver entorpecido minhas faculdades14.

seções, as quais tinham em breve exaltados admiradores que não re-ceavam preferi-las às mais belas passagens do Alcorão." (Conde de Go-bineau Les Religions et les Philosophies dons 1'Asie Centrale, p. 120).

13 Alcorão, 37:180. 14 " é relatado no Biháru'1-Anvár o 'Aválim e o Yanbú de

Sádiq, filho de Maomé, que disse as seguintes palavras: "O conheci-

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Cegou-me seu deslumbrante esplendor e sua força esmaga-dora. Excitação, júbilo, reverência e admiração agitavam as profundezas de minha alma. Predominante entre estas emo-ções era uma sensação de alegria e poder que parecia me haver transfigurado.

Quão débil e impotente, quão deprimido e temido me sentira antes! Então não podia escrever nem andar, tão trêmulas estavam minhas mãos e meus pés. Agora, porém, o conhecimento de Sua Revelação galvanizara meu ser. Sen-ti que possuía tal coragem e tal poder que se o mundo, todos os seus povos e seus potentados fossem se levantar contra mim, eu só e destemido resistiria a sua investida. O universo parecia-me nada mais que um punhado de pó em minha mão. Eu parecia ser a Voz de Gabriel personificada, chamando toda a humanidade:'" "Despertai, pois vede!, des-pontou a Luz do amanhecer. Levantai-vos, pois Sua Causa se tornou manifesta. O portal de Sua Graça está completa-mente aberto; entrai aí, ó povos do mundo! Pois Aquele que é vosso Prometido já veio!"

"Em tal estado deixei Sua casa e fui ao encontro de meu irmão e meu sobrinho. Muitos dos seguidores de Shaykh Ahmad, que souberam de minha chegada, estavam reunidos no Masjid-i-Ilkhání à minha espera. Fiel às ins-truções de meu recém-encontrado Bem-Amado, logo me dis-pus a levar a cabo Seus desejos. A medida que começava a organizar minhas aulas e praticar minhas devoções, gra-dualmente vinha se reunindo ao meu redor uma vasta mul-tidão de pessoas. Dignatários eclesiásticos e oficiais da cidade também vieram me visitar. Maravilharam-se com o espírito que meus discursos revelavam, sem perceber que a Fonte de

mento são vinte e sete letras. Tudo o que os Profetas revelaram são duas letras. Ninguém, até agora, conheceu algo mais do que estas duas letras. Porém quando se levantar o Qá'im, Ele fará que se manifestem as vinte e cinco restantes." Considera: "Ele declarou que o conhecimento consiste em vinte e sete letras e que todos os Profetas, desde Adão até o Selo, só revelaram duas destas letras. Diz também que o Qá'im reve-lará as vinte e cinco letras restantes. Veja quão grande e exaltado é o Seu advento de acordo com estas palavras. Seu aparecimento ultra-passa o de todos os Profetas e Sua Revelação transcende a compreensão e o entendimento de todos os seus eleitos". (Kitáb-í-íqán, p. 148.)

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onde fluía meu conhecimento outra não era senão Aquele cujo advento eles, ansiosamente, esperavam em sua maioria.

"Durante esses dias o Bata, em várias ocasiões, me cha-mou para ir visitá-Lo. À noite, enviava o mesmo servo etíope ao masjid, com sua mais afetuosa mensagem de boas-vindas. Cada vez que o visitava, passava a noite inteira em Sua pre-sença. Desperto até o alvorecer, permanecia sentado a Seus pés, fascinado pelo encanto de Suas palavras e esquecido do mundo e de suas preocupações e fainas. Com que rapidez voavam essas horas preciosas! Ao amanhecer, retirava-me de Sua presença com relutância. Com quanta ansiedade na-queles dias, esperava que a hora do anoitecer se aproximas-se! Com que sentimentos de tristeza e pesar contemplava o amanhecer do dia! Durante uma dessas visitas noturnas, meu Anfitrião se dirigiu a mim nas seguintes palavras: "Amanhã chegarão treze de teus companheiros. A cada um deles mostra a maior taondade e amor. Não os abandones, porque dedicaram suas vidas à busca de seu Bem-Amado. Suplica a Deus que Ele com Sua graça os ajude a andar seguramente nessa senda que é mais delgada que um cabe-lo e mais afiada que uma espada. Alguns dentre eles serão considerados, aos olhos de Deus, como Seus discípulos es-colhidos e favorecidos. Quanto aos outros, seguirão o cami-nho intermediário. O destino dos demais permanecerá des-conhecido até a hora em que tudo o que está oculto se fará manifesto".15

"Nessa mesma manhã, ao alvorecer, pouco depois de meu regresso da casa do Báb, Mullá Alíy-i-Bastámí, segui-do pelo mesmo número de companheiros que me fora indicado, chegou no Masjid-i-ílkhání. Logo comecei a provi-denciar os meios para seu conforto. Uma noite, poucos dias após sua chegada, Mullá 'Ali, como porta-voz de seus com-panheiros, externou sentimentos que não mais podia repri

15 "Considere o início da manifestação do Bayán: Durante qua-renta dias ninguém senão uma letra acred;tou no Báb. Foi pouco a pouco que as letras de B:smi'lláhu'l-Amná'u'-Aqdas se revestiram com o manto da Fé até que foi conroletada a Unidade PrimHiva. Veja como depôs se multiplicou até o dia de hoje." (O Bayán Persan, vol. 4, p . 119.)

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mir, "Bem sabes", disse, "como é grande nossa confiança em ti. Nós te dedicamos tamanha lealdade que se te decla-rassem o prometido Qá'im, todos nos submeteríamos sem vacilação. Obedientes a tua chamada, temos abandonado nossos lares e partido em busca de nosso prometido Bem-Amado. Tu foste o primeiro a dar a todos nós esse nobre exemplo. Seguimos tuas pegadas. Estamos determinados a não relaxar nossos esforços antes de encontrarmos o Objeto de nossa busca. Nós te seguimos a este lugar dispostos a reconhecer a qualquer um que tu aceites, na esperança de buscar o abrigo de Sua proteção e de passar com êxito pelo tumulto e agitação que por força hão de assinalar a última Hora. Como é que agora te vemos ensinar ao povo e diri-gir suas orações e devoções com a maior tranqüilidade? Aqueles sinais de agitação e expectativa parecem ter-se des-vanecido de teu semblante. Diz-nos a razão, te imploramos, a fim de que também possamos ser livrados de nosso pre-sente estado de incerteza e dúvida." "Teus companheiros", observei suavemente, "naturalmente podem atribuir minha paz e serenidade à ascendência que pareço haver adquirido nesta cidade. A verdade está longe disso. O mundo, eu te asseguro, com toda a sua pompa e suas seduções, jamais poderá alienar este Husayn de Bushrúyih de seu Bem-Ama-do. Sempre, desde o princípio desta sagrada missão em que embarquei, tenho jurado selar, com meu sangue vital, meu próprio destino. Por Sua causa tenho enfrentado com prazer a imersão num oceano de tribulação. Não anelo as coisas deste mundo. Só anseio pelo beneplácito de meu Bem-Ama-do. Até que derrame meu sangue por Seu Nome, o fogo que arde dentro de mim não se extinguira. Apraza a Deus que vivas até presenciar esse dia. Não poderiam haver pen-sado teus companheiros que, em virtude da intensidade de seu anelo e da constância de seus esforços, Deus, em Sua infinita misericórdia, tenha se dignado a abrir bondosa-mente ante a face de Mullá Husayn a Porta de Sua graça e, desejando ocultar este fato de acordo com sua inescrutável sabedoria, o tenha mandado ocupar-se destas coisas? Estas palavras comoveram a alma de Mullá 'Ali. De imediato per-cebeu o que significavam. Com olhos lacrimosos me implo-

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rou que revelasse a identidade dAquele que transformara em paz minha agitação e convertera em certeza minha an-siedade. "Adjuro-te", instava ele, "que me confiras uma parte dessa sagrada poção que a Mão da misericórdia te deu de beber, pois seguramente me aliviará a sede e abrandará a dor de anelo em meu coração." "Não me solicites", repli-quei, "a conceder-te este favor. Nele esteja tua confiança, pois decerto Ele te guiará os passos e acalmará o tumulto do coração."

Mullá 'Ali apressou-se em ir aos companheiros e lhes dar a conhecer a natureza de sua conversação com Mullá Husayn. Inflamados com o fogo que o relato dessa conver-sação acendera em seus corações, logo se dispersaram e, procurando a privacidade de suas celas, imploraram, medi-ante jejum e oração, que de pronto fosse removido o véu interposto entre eles e o reconhecimento de seu Bem-Ama-do. Enquanto guardavam vigília, oravam: "ó Deus, nosso Deus! Só a Ti adoramos e a Ti pedimos ajuda. Guia-nos, Te suplicamos, ao Caminho reto, ó Senhor nosso Deus! Cumpre o que nos prometeste por Teus apóstolos e não nos humilhes no Dia da Ressurreição. Em verdade, não deixarás de cumprir Tua promessa".

Na terceira noite de seu retiro, enquanto, absorto em oração, Mullá 'Alíy-i-Bastámí teve uma visão. Apareceu ante seus olhos uma luz e, eis!, essa luz ia-se afastando de sua frente. Seduzido pelo seu esplendor, seguiu-a, até que o levou a seu Bem-Amado prometido. Nessa mesma hora, na vigília da meia-noite, levantou-se e, transbordando de júbilo e radiante de alegria, abriu a porta de seu aposento e apres-sou-se a ter com Mullá Husayn. Lançou-se nos braços de seu companheiro tão reverenciado. Mullá Husayn abraçou-o mui-to carinhosamente e disse: "Louvado seja Deus que nos guiou até aqui. Não teríamos sido guiados, não tivesse Deus nos guiado!"

Na mesma manhã, ao romper do dia, Mullá Husayn, seguido por Mullá 'Ali, apressou-se em ir à residência do Báb. Na entrada de Sua casa, encontraram o fiel servo etío-pe, que os reconheceu de imediato e os saudou nestas pa-lavras: "Antes do despontar do dia, fui chamado à presença

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de meu Mestre e Ele me mandou abrir a porta da casa e permanecer esperando em seu limiar. "Dois hóspedes", dis-se-me, "hão de chegar cedo esta manhã. Dá-lhes em Meu Nome calorosas boas-vindas. Dize-lhes por Mim: 'Entrem em nome de Deus'."

O primeiro encontro de Mullá 'Ali com o Báb, que foi análogo ao encontro com Mullá Husayn, diferiu somente neste respeito, que enquanto no encontro anterior os teste-munhos e provas da missão do Báb foram expostos e ave-riguados com olhos críticos, neste, todo argumento havia sido deixado de lado, não prevalecendo senão o espírito de intensa adoração e íntima e fervorosa amizade. Todo o apo-sento parecia haver sido vitalizado por esse poder celestial que emanava de Suas palavras inspiradas. Tudo nessa sala parecia estar vibrando com este testemunho: "Em verdade, rompeu a alvorada de um novo Dia. O Prometido está en-tronizado no coração dos homens. Em Sua mão segura a taça mística, o cálice da imortalidade. Bem-aventurados os que dela sorvem!"

Cada um dos doze companheiros de Mullá 'Ali por sua vez, espontaneamente, por seu próprio esforço, saiu em bus-ca e encontrou seu Bem-Amado. Alguns adormecidos, outros acordados, enquanto alguns poucos em oração, e outros ainda em seus momentos de contemplação perceberam a luz desta Revelação Divina e foram levados a reconhecer o poder de sua glória. De igual maneira que Mullá 'Ali, estes e alguns mais, acompanhados por Mullá Husayn, atingiram a presença do Báb e foram declarados "Letras dos Viven-tes". Dezessete Letras foram gradativamente registradas na Epístola Preservada de Deus, sendo designados como os Apóstolos eleitos do Báb, os ministros de Sua Fé e os difu-sores de Sua Luz.

Uma noite, durante Sua conversação com Mullá Husa-yn, o Báb disse estas palavras: "Dezessete Letras até agora se registraram sob o estandarte da Fé de Deus. Resta mais uma para completar o número. Estas Letras dos Viventes haverão de se levantar para proclamar Minha Causa e esta-belecer Minha Fé. Amanhã à noite chegará a Letra restante, completando o número de Meus discípulos escolhidos". No

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dia seguinte ao anoitecer, enquanto o Bata, seguido poi Mullá Husayn, regressava à Sua casa, apareceu um jovem desgrenhado e empoeirado da jornada. Aproximou-se de Mullá Husayn, abraçou-o e lhe perguntou se havia atingido seu objetivo. Mullá Husayn de início tentou acalmar sua agitação e o aconselhou que descansasse por enquanto, pro-metendo que mais tarde o esclareceria. Esse jovem, no en-tanto, recusou aceitar seu conselho. Fixando seu olhar no Báb, disse a Mullá Husayn: "Por que escondê-Lo de mim? Posso reconhecê-Lo pelo Seu andar. Com confiança atesto que ninguém, senão Ele, quer no Oriente ou no Ocidente, pode pretender ser a Verdade. Nenhum outro pode manifes-tar o poder e a majestade que se irradiam de Sua santa pes-soa". Mullá Husayn maravilhou-se de suas palavras. Pediu que o desculpasse, porém o induziu a restringir as emoções até o momento em que ele o pudesse fazer conhecer a ver-dade. Deixando-o, apressou-se a se aproximar do Báb, a quem informou de sua conversação com esse jovem. "Não te maravilhes", observou o Báb, "de sua estranha conduta. No mundo do espírito temos estado comungando com esse jovem. Nós já o conhecemos. De fato, esperávamos sua vinda. Vai a ele e o chame imediatamente a Nossa presen-ça." Ao ouvir estas palavras do Báb, Mullá Husayn recor-dou neste instante a seguinte tradição oral: "No último Dia, os Homens do Invisível, com as asas do espírito, haverão de atravessar a imensidade da Terra, atingir a presença do prometido Qá'im e Dele buscar o segredo que lhes resolverá seus problemas e removerá Suas perplexidades".

Embora distantes em corpo, estas almas heróicas ocu-pam-se em comunhão diária com seu Bem-Amado, partici-pam da graça de Suas palavras e compartilham o supremo privilégio de Sua companhia. De outro modo, como teriam Shaykh Ahmad e Siyyid Kázím podido saber do Báb? Como teriam podido perceber o que significava o segredo que nEle jazia oculto? Como poderia o próprio Báb, como poderia Quddús, Seu querido discípulo, haver escrito em tais ter-mos, não tivesse o místico laço do espírito ligado suas al-mas? Não aludiu o Báb, nos primeiros dias de Sua missão, nas passagens iniciais do Qayyúmu'1-Asmá, Seu comentário

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sobre a Sura de José, à glória e significação da Revelação de Bahá'u'lláh? Não foi Seu propósito, ao se referir à ingra-tidão e malícia que caracterizavam o trato dado a José peios seus irmãos, predizer o que estava Bahá'u'lláh destinado a sofrer nas mãos de Seu irmão e familiares? Não esteve Quddús, ainda que assediado dentro da fortaleza de Shaykh Tabarsí pelos batalhões e pelo fogo de um inimigo implacá-vel, ocupado dia e noite em completar seu elogio de Bahá'u'-lláh — esse comentário imortal sobre o Sád de Samad que já havia alcançado o volume de quinhentos mil versículos? Cada versículo do Qayyúmu'1-Asmá, cada palavra do supra-citado comentário de Quddús, se forem examinados desapai-xonadamente, dará testemunho eloqüente desta verdade.

A aceitação por Quddús da verdade da Revelação do Báb completou o número designado de Seus discípulos es-colhidos. Quddús, cujo nome era Muhammad-'Alí, pela sua mãe, era descendente direto do Imame Hasan, neto do Pro-feta Maomé.16 Nasceu em Bárfurúsh, na província de Mázindarán. Os que assistiam aos discursos de Siyyid Ká-zím têm dito que, nos últimos anos da vida deste, Quddús se registrou como um dos discípulos do Siyyid. Era o últi-mo a chegar e invariavelmente ocupava o assento mais hu-milde na assembléia. Era o primeiro a partir ao término de cada reunião. O silêncio que ele observava e a modéstia de seu comportamento o distinguiam do resto de seus compa-nheiros. Com freqüência se ouvia Siyyid Kázím observar que alguns entre seus discípulos, embora ocupassem os lu-gares mais humildes e observassem o mais estrito silêncio, eram no entanto tão exaltados aos olhos de Deus que ele mesmo se sentia indigno de figurar entre seus servidores. Seus discípulos, se bem que notassem a humildade de Qud-dús e admitissem o caráter exemplar de sua conduta, não vieram a perceber o que queria dizer Siyyid Kázím Quando Quddús chegou em Shíráz e abraçou a Fé declarada pelo Báb, ele tinha apenas vinte e dois anos de idade. Embora

18 O pai de Quddús, de acordo com o Kashfú'1-Ghitá, faleceu vár-os anos ante da Manifestação do Báb. Quando morreu seu pai, Quddús era jovem e estudava no colégio de Mirzá Ja'far em Mashhad (p. 227, nota I.)

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jovem em idade, mostrou essa coragem e fé indomável que nenhum dos discípulos de seu mestre podia ultrapassar. Exemplificou pela sua vida e pelo seu glorioso martírio a verdade desta tradição: "Quem me buscar, haverá de Me encontrar. Quem Me encontrar, será atraído a Mim. Quem for atraído a Mim, haverá de Me amar. A qualquer um que Me ama, Eu também amarei. Àquele que for amado por Mim, hei de matar. Para aquele que for morto por Mim, Eu mesmo serei seu resgate".

O Báb, cujo nome era Siyyid 'Alí-Muhammad17, nas-ceu na cidade de Shíráz, no primeiro dia de Muharram, no ano de 1235 A.H.18 Pertencia a uma família de renome por sua nobreza e, cuja origem remontava ao próprio Maomé. A data de Seu nascimento confirmou a verdade da profecia tradicionalmente atribuída ao Imame 'Ali: "Sou dois anos mais jovem que meu Senhor". Vinte e cinco anos, quatro meses e quatro dias haviam transcorrido desde o dia de Seu nascimento quando declarou Sua Missão. Na pri-meira infância, perdeu o pai, Siyyid Muhammad-Ridá19, um homem conhecido em toda a província de Fárs por sua piedade e virtude e tido em alta estima e honra. Tanto Seu pai quanto Sua mãe eram descendentes do Profeta, sendo am-bos amados e respeitados pelo povo. Foi criado por Seu tio materno, Hájí Mírzá Siyyid 'Ali, um mártir para a Fé, que O pôs, ainda criança, sob os cuidados de um tutor cha-mado Shaykh 'Ábid.20 O Báb, embora tivesse pouca in-clinação para o estudo, submeteu-se à vontade e às instru-ções de Seu tio.

17 É conhecido também pelos seguintes nomes: Siyyd-i-Dhikr Niqtiy-i-Ulá "Rabbi-i-A'lá 'Abdu'dh-Dhikr Tal'at-i-A'lá Nuqtiy-i-Bayán Bábu'lláh Hadrat-i-A'lá Siyyid-i-Báb 18 20 de outubro de 1819 A. D. 19 Segundo Mírzá Abú'1-Fadl (manuscrito sobre a história da

Causa, p. 3) , o Báb era ainda de colo quando faleceu seu pai. 2 0 Segundo Mírzá Abú'1-Padl (Manuscrito, p. 41), o Báb tinha

se:s ou sete anos quando entrou para a escola de Shaykh Ábíd. O colégio chamava-se Qahviyih-Awlíyá. O Báb permaneceu cinco anos nessa es-cola onde aprendeu os rudimentos do persa. No primeiro dia do mês de RabíVl-Avval, no ano 1257 A.H., Ele foi à Najáf e Karbilá e sete meses mais tarde regressou à Sua província natal de Fárs.

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Shaykh 'Ábid, conhecido pelos seus alunos como Shay-khuná, era um homem piedoso e erudito. Fora discípulo tanto de Shaykh Ahmad como de Siyyid Kázím. "Um dia", relatou, "pedi ao Báb que recitasse as palavras iniciais do Alcorão: 'Bismi'lláhi'r-Rahmáni'r-Rahím'.21 Ele hesitou, pe-dindo que, a não ser que lhe fosse dito o que estas pala-vras significavam, não iria de modo algum tentar pro-nunciá-las. Fingi não conhecer seu significado. 'Sei o que estas palavras significam', observou meu aluno, 'com vossa permissão, explicá-las-ei.' Falou com tanto conhecimento e fluência que me senti assombrado. Expôs o significado de Alláh de Rahmán e Rakím em termos que eu jamais havia lido nem ouvido. A doçura de Sua expressão ainda se detém em minha memória. Senti-me impelido a levá-lo de volta a Seu tio, a entregar em suas mãos a incumbência que havia confiado a meus cuidados. Estava decidido a lhe dizer quanto me sentia indigno de educar um menino tão extraordinário. Encontrei Seu tio sozinho em seu trabalho. 'Vim trazê-Lo de volta a vós', disse-lhe, 'e entregá-Lo a vossa vigilante proteção. Não há de ser tratado como um menino qualquer, pois nEle já posso discernir as evidências daque-le poder misterioso que a Revelação do Sáhibu'z-Zamán22

tão-somente pode revelar. Incumbe-vos rodeá-Lo de vosso mais carinhoso cuidado. Guardai-O em vossa casa, porque Ele em verdade não necessita de mestres como eu.' Hájí Mírzá Siyyid 'Ali severamente repreendeu o Báb. 'Tens es-quecido minhas instruções?', perguntou. 'Já não lhe adverti que seguisses o exemplo de Teus condiscípulos, que guar-dasses silêncio e escutasses atentamente cada palavra dita pelo Teu mestre?' Havendo obtido Sua promessa de cum-prir fielmente suas instruções, mandou o Báb voltar a Sua escola. A alma dessa criança, porém, não podia ser reprimi-da pelas austeras advertências de Seu tio. Nenhuma disci-plina poderia reprimir o fluxo de Seu conhecimento intuitivo. Dia após dia continuava a manifestar sinais tão extraordi-nários de sabedoria que sou incapaz de relatar." Finalmen-

21 "Em nome de Deus, O Compassivo, 0 Misericordioso." 22 "0 Senhor da Época", um dos títulos do Qá'im prometido.

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te foi Seu tio induzido a tirá-Lo da escola de Shaykh 'Abid e associá-Lo consigo em sua própria profissão. -lí Lá tam-bém manifestou sinais de um poder e uma grandeza que poucos podiam aproximar e ninguém rivalizar.

Alguns anos mais tarde -* o Báb foi unido em ma-trimônio cem a irmã de Mírzá Siyyid Hasan e Mirzá Abu'l-Qásim.2:> Ao filho que nasceu desta união deu o nome de Ahmad. -,(i Morreu no ano de 1259 A.H. -7, o ano pre-

- 3 Segundo o relato de Hájí Mu'ínu-Saltanih (p. 37) o Báb assumiu a direção independente de Seus negócios. "Órfão desde pequeno, ficou aos cuidados do Seu tio materno Áqá Siyyid 'Ali e, sob orientação

deste, cuidou dos negócios de Seu pai, ou seja, comércio (A. L. M. Ni-colas Siyyid Ali Muhammad dit le Báb, p. 189.)

24 Segundo Hájí Mu'ínu's-Saltanih (p. 37), o Báb se casou aos vinte e dois anos de idade.

23 O Báb se refere a ela em Seu comentário sobre a Sura de José (Sura de Qárábat). Aqui na tradução feita por A. L. M. Nicolas diz o texto: "Em verdade, fiquei noivo de Sara, a bem-amada, sobre o trono de Deus. Pois a bem-amada vem do Bem-Amado (o Bem-Amado é Maomé. Isso quer dizer que Sara era Siyyid). Em verdade, os anjos do Céu e os habitantes do Paraíso foram testemunhas de nosso noivado. Saiba que a benevolência do Dhikr Sublime é grande! Oh, Bem-Amada! Pois é uma benevolência que vem de Deus, o Amado! Tu não és como nenhuma outra mulher, se obedeces a Deus na pessoa do Dhikr Sublime! Conhece tu a imensa verdade do Verbo Sublime e seja glorificada de estar sentada com o amigo que é o Amado de Deus, o Altíssimo. Certa-mente a glória te vem de Deus, o Sábio. Sê paciente nas ordens que procedem de Deus a respeito do Báb e sua família. E, em verdade, teu filho Ahmad tem um asilo no Paraíso bendito, perto da grande Fátimih". (Prefáco da obra de A. L. M. Nicolas Le Bayán Persav, vol. 2 pp. 10-11.) "A viúva do Báb viveu até o ano de 1300 A.H. (1882-83.)" (Journal of the Royal Asiatic Society, 1889, art;go 12, p. 993.) Ambos

eram f Ihos de Mirzá Ali, que era o tio paterno da mãe do Báb. Mirzá Mus in e Mirzá Hádí eram, respectivamente, o filho e neto de Mirzá Siyyid Hasan e Mirzá Abu'l-Qás:m, que chegaram a ser genros de 'Abdu'1-Bahá.

20 O Báb se refere a Seu filho em Seu comentário na Sura de José. O que se segue é a tradução feita por A. L. M. Nicolas: "Em ver-dade teu flho Ahmad tem um asilo no Paraíso Bendito, perto da gran-de Fátimih". (Sura de Qárábat). "Glorificado seja Deus que em verdade, deu ao "Deleite dos Olhos", em sua juventude, uma criança chamada Ahmad. Em verdade, e'evamos este menino até Deus". (Sura de 'Abd). (Prefácio da obra de A.. L. M. Nicolas Le Bayán Persan vol. 2, p. V.)

•^ 1843 A . D .

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cedente à declaração da Fé pelo Báb. O Pai não lamentou sua perda. Consagrou sua morte com palavras como estas: ;'õ Deus, meu Deus! Oxalá fossem dados mil Ismaéis a Mim, este Abraão Teu, para que Eu os pudesse ter oferecido, cada um e todos, como sacrifício de amor a Ti. ó meu Bem-Ama-do, o Desejo de meu coração! O sacrifício deste Ahmad que Teu servo 'Alí-Muhammad ofereceu no altar de Teu amor jamais pode bastar para extinguir a chama de anelo em Seu coração. Enquanto Ele não imolar Seu próprio coração aos Teus pés, enquanto todo o Seu corpo não cair vítima da tirania mais cruel em Teu caminho e Seu peito não se tor-nar alvo de incontáveis dardos por Tua causa, não se aquie-tará o tumulto de Sua alma. õ meu Deus, meu único Dese-jo! Permite que o sacrifício de Meu filho, Meu único filho, Te seja aceitável. Concede que seja um prelúdio para o sa-crifício de Meu próprio Ser, de todo o Meu ser, na senda de Teu beneplácito. Imbui de Tua graça Meu sangue vital, que eu anseio por derramar em Teu caminho. Faze-o regar e nutrir a semente de Tua Fé. Dota-o de Tua potência celes-tial, para que esta recém-nascida semente de Deus possa breve germinar nos corações dos homens, que medre e flo-resça, crescendo até se tornar uma grande árvore, sob cuja sombra possam se reunir todos os povos e raças da Terra. Responde Tu a Minha prece, ó Deus, e cumpre Meu mais acariciado desejo. Tu és, em verdade, o Onipotente, o Todo-Generoso".28

Os dias que Báb dedicou às ocupações comerciais fo-ram passados, em sua maior parte, em Búshihr. -<J O calor

2 8 Deixou Shíráz e foi para Búshihr com dezessete anos, ali perma-necendo por cinco anos, ocupado com seus negócios particulares. Duran-te esse tempo ganhou a estima de todos os comerciantes com quem teve contato devido a Sua integridade e piedade. Prestava muita atenção a suas obrigações religiosas e doava grandes somas de dinheiro com fins de caridade. Em certa ocasião deu cerca de setenta túmans (mais ou me-nos 22 libras) a um velho pobre. (Apêndice 2 da história escrita por Hájí Mirzá Jání : Táríkh-i-Jadíd p.p. 343-40.)

29 "Ele já era meditativo e bastante silencioso; apesar disso, sua figura formosa, o brilho intenso de seu olhar e sua atitude de mo-déstia e meditação atraíram desde então a atenção de seus concidadãos. Extremamente jovem, as questões religiosas o atraíam de forma irre-sistível, já que foi na idade de dezenove anos que escreveu sua primeira

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opressivo do verão não O impediu de devotar, cada sexta feira, algumas horas à adoração contínua no alto de Sua casa. Embora exposto aos impiedosos raios do sol do meio-dia, volvendo o coração ao Seu Bem-Amado, continuava a comungar com Ele, inconsciente da intensidade do calor e esquecido do mundo em volta de Si. Desde a primeira alvo-rada até o nascer do sol, e do meio-dia ao fim da tarde, dedicava Seu tempo à meditação e piedosa adoração. Vol-vendo seu olhar para o norte, em direção a Teerã, todos os dias ao alvorecer, com o coração transbordante de amor e júbilo, saudava o sol nascente, que para Ele era sinal e sím-bolo daquele Sol de Verdade que breve despontaria sobre o mundo. Como o apaixonado que contempla a face da bem-amada, fitava Ele o orbe nascente com anelo e constância. Parecia estar-se dirigindo, em linguagem mística, àquele lu-minar brilhante e estar-lhe confiando Sua mensagem de anelo e amor pelo Seu Bem-Amado oculto. Com tão extático deleite saudava seus raios resplandecentes que os incautos e pouco esclarecidos ao seu redor pensavam Ele estar ena-morado do próprio sol.30

Tenho ouvido Hájí Siyyid Javád-i-Karbilá'í31 relatar o seguinte: "Enquanto viajava à índia, passei por Búshihr.

obra R^sály-i-Fiqhíyyih, na qual revela a verdadeira piedade e uma efu-são islâmica que pareciam lhe prognosticar um futuro brilhante dentro dos vínculos da ortodoxia xiita. É provável que esta obra tenha sido escrita em Búshihr, uma vez que foi mais ou menos entre dezoito e dezenove anos que ele foi enviado por seu tio a esta cidade para resolver assuntos de negócio. (A. L. M. Nicolas Siyyid Ali Muhammad dit le Báh p.p. 189-90.)

30 Na sociedade, se encontrava muito a gosto entre os eruditos ou escutava os relatos dos viajantes que chegavam a esta cidade mer-cante ; sendo, por isso, geralmente considerado um dos seguidores de Tariquát. os quais eram muito respeitadas pelo povo. Journal Asiat-i-que, 1866, tomo 7, p. 335.)

31 O Kasfu'l-Ghita dá os seguintes detalhes sobre essa pessoa extraordinária: "Hájí Siyy;d Javád mesmo me informou que morava em Karb;1á, que seus primos eram bem conhecidos entre os ulemás e dou-tores relig;osos, reconhecidos nesta cidade, e pertenciam à seita Ithná-Ashrí do Islã xiita. Em sua juventude conheceu o Shaykh Ahmad-i-Ahsá'í, porém nunca foi considerado como seu discípulo. No entanto, foi defensor de Siyyid Kázím e figurava entre seus principais segui-dores Conheceu o Báb em Shiráz muito antes da data da Sua manifes-

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Como já conhecia Hájí Mírzá Siyyid'Alí, foi possível rne en centrar com o Báb em várias ocasiões. Toda as vezes que O encontrei, eu O achei em tal estado de humildade e modéstia que não encontro palavras para descrevê-Lo. Seus oihos bai-xos, sua cortesia extrema e a expressão serena de Sua face causaram uma impressão indelével em minha alma.3a Com freqüência ouvia aqueles que lhe estavam estreitamente as-sociados testemunharem a pureza de Seu caráter, o encanto cie Seus modos, Sua abnegação, o alto grau de Sua integri-dade e Sua completa devoção a Deus.33 Certo homem confiou-lhe uma mercadoria, pedindo que desta dispusesse por um determinado preço. Quando o Báb lhe enviou o valor do objeto, o homem verificou que a soma que lhe fora ofere-cida excedia consideravelmente o limite fixado. Escreveu de imediato ao Báb, pedindo que lhe explicasse a razão. O Báb respondeu: "O que vos enviei é exatamente o que vos é de-vido. Não há um só centavo em excesso daquilo a que ten-

tação, quando tinha oito ou nove anos, na casa de seu tio materno. Posteriormente, o encontrou em Búshihr e permaneceu durante seis meses no mesmo caravançarái que residiam o Báb e seu tio. Mullá Aliy-i-Bastá-mí, uma das Letras da Vida, lhe ensinou a Mensagem do Báb enquanto estava em Karbilá, cidade onde chegou proveniente de Shiráz com o objeti-vo de informar-se melhor sobre a natureza da sua revelação" (p.p. 55-7).

;;2 «o B4J-, tinha um rosto suave e bondoso, seus modos eram d'gnos e serenos, sua eloqüência impressionante e escrevia bem e rapi-damente." (Lady Sheil: Glimpses of Life and Manners in Pérsia p. 178) .

3;! "Absorto em si mesmo, sempre ocupado com práticas pie-dosas, ele era de extrema simplicidade de modos e de atraente doçura, dons que sua extrema juventude e o maravilhoso encanto de sua figura realçavam, atraindo ao seu redor certo número de pessoas cultas. Começou-se, então, a falar de sua ciência e da penetrante eloqüência de seus discursos. Sempre que começava a falar, asseguram-nos aqueles que o conheciam, comovia a todos até o fundo do coração. Além disso, se expressava com profunda veneração ao falar do Profeta, dos Imames e de seus santos companheiros, com o que encantava os severos orto-doxos, ao mesmo tempo que, em reuniões mais ín tmas, os espíritos ar-dentes e inquietos se alegravam ao verificar que nele não havia rigidez ao professar opiniões consagradas, o que lhes pareceria um fardo. Ao contrário, sua conversação lhes abria todos os horizontes infinitos, va-riados, coloridos, misteriosos, sombrios e semeados aqui e acolá por uma luz resplandecente que transportava ae júbilo a imaginação da-quele povo." (Conde de Gobineau, Les Religions et les Philosophies dans VAsie Centrale, p. 118.)

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des direito. Houve um tempo em que o objeto que Me en-tregastes alcançou esse valor. Como deixei de vendê-lo por esse preço, considero que agora é Meu dever oferecer-vos essa quantia total". Por mais que o cliente do Báb rogasse permitir que lhe devolvesse a soma em excesso, O Bata per-sistiu em recusar.

"Com que assíduo cuidado Eie assistia àquelas reuniões nas quais eram elogiadas as virtudes do Siyyidu'sh-Shuhadá', o Imame Husayn! Com quanta atenção escutava a entoaçao dos elogios! Que ternura e devoção demonstrava nessas ce-nas de lamento e prece! Lágrimas choviam de Seus olhos enquanto Seus lábios trêmulos murmuravam palavras de oração e louvor. Quão comovedora era Sua dignidade, quão ternos os sentimentos que seu semblante inspirava!"

Quanto àqueles cujo privilégio supremo foi ser registra-dos pelo Báb no livro de Sua Revelação como Suas escolhi-das Letras dos Viventes, seus nomes são os seguintes:

Mullá Husayn-i Bushrú'í, Muhammad-Hasan, seu irmão, Muhammad-Báqir, seu sobrinho, Mullá 'Alíy-i-Bastámí, Mullá Khudá-Bakhsh-i-Qúchání, mais tarde chamado Mullá'Alí, Mullá Hasan-i-Bajistání, Siyyid Husayn-i-Yazdí, Mírzá Muhammad Rawdih-Khán-i-Yazdí, Sa'id-i-Hindí, Mullá Mahmúd-i-Khu'í, Mullá Jalíl-i-Urúmí, Mullá Ahmad-i-Ibdál-i-Marághi'í, Mullá Báqir-i-Tabrízí, Mullá Yúsif-i-Ardibílí, Mírzá Hádí, filho de Mullá 'Abdu'1-Vahháb-i-Qazviní, Mírzá Muhammad-'Alíy-i-Qazviní34,

3* Segundo Samandár, que foi um dos primeiros crentes em Qazvín (manuscrito, p. 15), a irmã de Táhirih, Mardíyyih, era a es-posa de Mirzá Muhammad-Alí, que era uma das Letras da Vida e foi martirizado em Shaykh Tabarsí. Parece que Mardiyyih reconheceu c abiaçou a Mensagem do Báb (p. 5). Mirzá Muhammad-Alí era filho

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Táhirih35, Quddús.

Todos estes, com exceção somente de Táhirih, atingi ram a presença do Báb e foram por Ele pessoalmente in-vestidos da distinção desse grau. Foi ela quem, sabendo que o esposo de sua irmã, Mírzá Muhammad-'Alí, tenciona-va partir de Qazvín, lhe confiou uma carta lacrada, pedindo que a entregasse Àquele Prometido a quem ela disse que seguramente ele haveria de encontrar no curso de sua via-

de Hájí Mullá Abdu'1-Vahháb, ao qual o Báb escreveu uma carta en-quanto estava nas vizinhanças de Qazvín.

35 Segundo Memoriais of the Faithful (pp. 291-8), Táhirih tinha dois filhos e uma filha, nenhum dos quais aceitou a verdade da Causa. Seus conhecimentos e distinções eram tais que seu pai, Hájí Mullá Sálih, expressava freqüentemente seu pesar nos seguintes termos: "Oxalá ela tivesse nascido homem porque honraria meu lugar e teria sido meu sucessor!" Ela conheceu os escritos de Shaykh Ahmad enquanto estava na casa de seu primo, Mullá Javád, quando tomou em-prestado alguns livros de sua biblioteca e os levou para casa. Seu pai fez violentas críticas ao seu modo de agir e nas acaloradas dis-cussões com ela denunciou e criticou os ensinamentos de Shaykh Ahmad. Táhirih recusou prestar atenção aos conselhos de seu pai e manteve correspondência secreta com Siyyid Kázím, que lhe conferiu o título "Qurratu'1-Ayn". O título Táhirih se associou pela primeira vez com seu nome enquanto estava em Badasht e foi aprovado posteriormente pelo Báb. De Qazvín ela foi a Karbilá com a esperança de conhecer Siyyid Kázím, porém; chegou tarde demais já que ele havia falecido dez dias antes. Juntou-se, então, aos seguidores dele e passou seu tempo em oração e meditação aguardando ansiosamente Àquele cujo advento Siyyid Kázím havia predito. nquanto estava naquela cidade ela teve um sonho. Um jovem, um Siyyid, que vestia uma capa negra e um turbante verde, apareceu no céu e com as mãos elevadas recitava certos versículos, um dos quais ela anotou em seu livro. Despertou muito im-pressionada com o sonho que havia tido. Quando, posteriormente, chegou às suas mãos uma cópia do 'Ahsanu'l-Qisas' o comentário do Báb sobre a Sura de José, para grande alegria sua, verificou que era o mesmo versículo que havia ouvido em seu sonho. Essa descoberta lhe assegurou a verdade da Mensagem que o Báb proclamava. Ela se preocupou pes-soalmente em traduzir o Ahsanu'1-Qisas para o persa, e fez o maior esforço possível para sua difusão e interpretação. Durante três meses sua casa ficou vigiada pelos guardas que o governador designou para impedir que ela se associasse ao povo. De Karbilá ela foi a Bagdá e viveu por algum tempo na casa de Shaykh Muhammad-i-Shibl, de onde mudou sua residência para outro lugar e f;nalmente foi levada à casa de Mutfí, onde permaneceu por mais ou menos três meses.

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gem. "Diga-Lhe, de mim", acrescentou, "a refulgência de Tua face cintilou e os raios de Teu semblante remontaram ao alto. Então pronuncie as palavras "Não sou Eu teu Se-nhor?", e "Tu és, Tu és!" nós todos responderemos.'"38

Mírzá Muhammad-'Alí no fim encontrou e reconheceu o Báb e lhe transmitiu tanto a mensagem como a carta de Táhirih. O Báb de imediato a declarou uma das Letras dos Viventes. Seu pai, Hájí Mullá Sálih-i-Qazvíní e seu irmão, Mullá Taqí eram ambos mujtahids de grande renome37,

36 Segundo o Kashfu'l-Ghitá (p. 93), Táhirih soube da Men-sagem do Báb por Mullá Alíy-i-Bastamí, quando este visitou Karbilá no ano de 1260 A.H., depois de seu regresso de Shíráz.

3 7 Uma das famílias mais destacadas de Qazvín, tanto pelos altos postos que seus membros ocupavam dentro da hierarquia eclesiás-tica como pela reputação de conhecimento, era, sem dúvida, a família de Hájí Mullá Sálih-i-Baraqáni. Ele tinha um irmão chamado Mullá Muhammad-Taqíy-i-Baraqání que recebeu, depois da sua morte, o título de "Shahíd-i-Thálith", ou seja, terceiro mártir. Voltaremos algum tem-po atrás na história deles para melhor compreender o papel que tiveram nas dissensões religiosas na Pérsia, assim como a catástrofe que adviria fatalmente pelo caráter altivo e orgulhoso do irmão de Mullá Sálih. Quando o grande Mujtahid Ágá Siyyid Muhammad chegou a Qazvín, alguém lhe perguntou se Hájí Mullá Sálih-i-Baraqáni era um Muj-tahid. "Claro", respondeu o Siyyid, já que Sálih havia sido um de seus antigos alunos, o qual mais tarde havia seguido as lições de Áqá Siyyid Ali. "Muito bem", respondeu seu interlocutor, "porém seu irmão Mu-hammad-Taqí também é digno desse título sagrado?" Áqá Siyyid Muhammad respondeu falando das qualidades e conhecimentos de Taqí, mas evitando dar uma resposta precisa à pergunta que havia sido feita. Isso, entretanto, não impediu que seu interlocutor difundisse na cidade a notícia de que Siyyid Muhammad em pessoa reconhecia o domínio de Taqí, que havia sido declarado um Mujtahid em sua presença. Siyyid Muhammad foi viver na casa de um de seus colegas, Hájí Mullá Abdu'l-Vahháb: este, sabendo da notícia que corria na cidade, chamou à sua casa o interlocutor de Siyyid e o repreendeu rudemente na presença de testemunhas. Naturalmente, o clamor desta intervenção, aumentado de boca em boca, chegou aos ouvidos de Taqí, que, furioso, se limitava a dizer, cada vez que ouvia o nome de Mullá Abdu'1-Vahháb: "Só o resneito porque é filho de meu querido mestre". Siyyid Muhammad, ao saber destes incidentes e rumores e, compreendendo que havia conster-nado a alma de Taqí, o convidou um dia a almoçar, o tratou com muita distinção, expediu seu certificado de Mujtahid e, no mesmo dia, o acom-panhou até a mesquita e, depois da oração, ocupou o púlpito, donde fez um elogio à Taqí, e, em plena assembléia, o confirmou em sua nova dignidade. Pouco depois passou por Qazvín Shaykh Ahmad-i-Ahsá'í.

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versados nas tradições da lei muçulmana e universalmen-te respeitados pelas pessoas de Teerã, Qazvin e outras das cidades principais da Pérsia. Ela era casada com Mullá Mu-hammad, filho de seu tio, Mullá Taqí, a quem os xiitas de-

Ele, disse o piedoso autor do Qisasú'1-Ulamá, foi declarado ímpio por-que quis aproximar a filosofia da lei religiosa, "e todo mundo sabe que na maioria dos casos é impossível misturar a inteligência com a lei religiosa". Seja como for, Shaykh Ahmad se destacou muito entre seus contemporâneos e muitos homens foram partidários da sua opinião. Ti-nha seguidores em todas as c.dades persas e o xá Fath-Alí o tratava com muita consideração, apesar de Ákhúnd Mullá Ali ter dito dele, se-gundo parece: "É um ignorante com o coração puro". Ao passar por Qazvin, foi viver na casa de Mullá Abdu'1-Vahháb, o inimigo da família Baraqání. Ele ia orar na mesquita paroquial e todos os ulemás de Qazvin vinham orar sob sua direção. Naturalmente, ele retribuiu a estas santas pessoas todas as visitas e todas as atenções que havia re-ceb.do delas: estava muito bem com todas elas e logo não era mistér'o para ninguém que seu hóspede era um de seus discípulos. Certo dia ele foi a casa de Hájí Mullá Taqíy-i-Baraqání, que o recebeu aparente-mente com o mais profundo respeito, porém aproveitou da sua presença para fazer algumas perguntas insidiosas. "No que se refere à ressu-reição dos mortos no dia do juízo", perguntou: "Você tem a mesma opinião que Mullá Sadrá?". "Não", disse Shaykh Ahmad. Então Taqi, dirigindo-se ao seu irmão menor Hájí Mullá Ali: "Vá a minha biblio-teca", disse-lhe, "e traga-me o Shaváfiid-i^Rububiyyih de Mullá Sadrá". Como Hájí Mullá demorava a voltar, disse: "Não discuto com você sobre esse assunto; porém, sinto curiosidade em saber sua opinião sobre esse tema". O Shaykh respondeu: "Não há nada mais fácil. Minha opinião é de que a ressurreição não ocorrerá com nosso corpo material, mas sim com sua essência: eu chamo essência, por exemplo, o vidro que se en-contra em potencial na pedra". "Perdoa-me", respondeu maliciosamente Taqí, "pelo que você diz, essência é algo diferente do corpo material e você sabe que é um dogma, em nossa santa religião, a crença na ressurrei-ção deste corpo material em si." Naturalmente o Shaykh ficou embara-çado e foi em vão que um de seus alunos, natural do Turquestão, quisesse desviar a conversa iniciando uma discussão que ameaçava se prolongar; o golpe já havia sido dado e Shaykh Ahmad retirou-se convencido de que havia se comprometido. Não tardou a perceber que sua conversa havia sido cuidadosamente espalhada por Taqí, já que no mesmo dia fo' orar na mesquita e foi acompanhado somente por Abdu'1-Vahháb. A situação ameaçava piorar e Abdu'1-Vahháb acreditou haver encontrado um meio de sanar todas as dificuldades ao suplicar ao seu mestre que escrevesse e publicasse um tratado que confirmasse a ressurreição do corpo mate-r ;al Ele íião tinha contado com o ódio de Taqí. Assim, Shaykh Ahmad escreveu esse tratado que se encontra no volume intitulado "Ajv'batu'l-Masá'il"; porém ninguém tomou conhecimento dele e o clamor da sua im-

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ram o nome de Shahíd-i-Thálith.38 Embora sua família pertencesse aos Bálá-Sarí, somente Táhirih mostrava, desde o princípio, notável simpatia e devoção a Siyyid Kázím. Como evidência de sua admiração pessoal por ele, escreveu uma apologia em defesa e justificação dos ensinamentos de Shaykh Ahmad e lhe apresentou. A esta recebeu ela muito breve uma resposta redigida em termos os mais afetuosos, em cujas passagens iniciais o Siyyid lhe dirigiu estas palavras: "õ tu que és o consolo de meus olhos (Yá Ourrat-i-'Ayní\) e o júbilo de meu coração!" Sempre, desde aquele tempo, ela tem sido conhecida como Qurratu'l-'Ayn. Depois da reu-nião histórica de Badasht, grande número dos que assistiram assombrou-se diante da intrepidez e linguagem franca dessa heroína a ponto de achar ser seu dever informar o Báb do caráter de seu comportamento assustador e sem precedentes. Tentaram macular a pureza de seu nome. Àque-las acusações o Báb replicou: "Que direi Eu daquela a

piedade crescia dia após dia. Chegou a tal ponto que o governador da cidade, o príncipe Alí-Naqí Mirzá Ruknú'd-Dawlih, considerando a im-portância das pessoas implicadas na luta e temendo que o acusassem de haver permitido germinar a discórdia, resolveu tentar uma reconcilia-ção. Certa noite convidou para um grande jantar todos os ulemás ilus-tres da cidade. Shaykh Ahmad tinha o primeiro lugar e, perto dele, separado apenas por uma pessoa, estava sentado Taqí. Foram trazidas bandejas preparadas para três pessoas, de modo que os dois inimigos se encontrassem na obrigação de comer juntos. Porém Taqí, irredutível, virou-se para a bandeja dos vizinhos da direita, e, para o escândalo do príncipe, colocou a mão esquerda tampando a face esquerda, de forma que o seu olhar não se cruzasse, mesmo que involuntariamente, com o de Shaykh Ahmad. Depois da refeição, que foi bastante triste, o prín-cips, persistindo em sua idéia de reconciliar os dois adversários, fez um grande elogio à Shaykh Ahmad, dizendo que ele era o maior entre os doutores árabes e persas, e que Taqí deveria mostrar-lhe o maior respeito e que não ficava bem a ele dar ouvidos a falatórios de pessoas que apenas queriam provocar discórdia entre duas inteligênc:as pr'vi-legiadas. Foi violentamente interrompido por Taqí, que declarou em tom depreciativo: "Não pode haver paz alguma entre a impiedade e a fé: o Shaykh afirma, no que se refere à ressurreição, uma doutrina contrária a lei islâmica. Ora, qualquer um que compartilhar desta doutrina é um ímpio, Que pode haver de comum entre um rebelde e eu?". Por ma's que o príncipe insistisse, rogasse, Taqí não quis ceder, e a reunião ter-minou. (A. L. M. Nicolas Siyyid Alí-Muhammad dit le Báb, p.p. 263-7.)

38 Terceiro Mártir.

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quem a Língua de Poder e Glória deu o nome de Táhirih (.a pura)?" Estas palavras bastaram para silenciar aqueles que haviam tentado lhe minar a posição. Desde então foi ela designada pelos crentes Táhirih.39

39 'Mullá Sálih tinha, entre seus filhos, uma filha, Zarrín-Taj (coroa de ouro), que atraía para si a atenção de todos desde a sua mais tenra idade. Ao invés de dedicar-se, como suas amigas, a jogos e entre-tenimentos, passava horas inteiras escutando as conversações dogmáti-cas de seus pais. Sua aguçada inteligência assimilou rapidamente as falhas na ciência islâmica sem se confundir, e logo se sentia capaz de discutir os pontos mais obscuros e confusos. As tradições (hadís) não tinham segredos para ela. Sua reputação difundiu-se por toda a cidade, e todos a consideravam, com justiça, um prodígio. Prodígio não só de conhecimentos como também de beleza, já que ao crescer a criança se tinha transformado numa jovem cujo rosto resplandecia uma beleza tão radiante que lhe haviam dado o apelido de Qurratu'1-Ayn — que o conde de Gobineau traduz como "o consolo para os olhos". Seu irmão, Abdu'1-Vahháb-i-Qazviní, que havia herdado a erudição e a reputação de seu pai, relatava o seguinte, embora fosse muçulmano, pelo menos aparentemente: "Todos nós, seus irmãos, seus primos, não ousávamos falar em sua presença porque sua erudição nos intimidava demais, e, caso nos aventurássemos a expressar uma hipótese sobre um ponto con-troverso da doutrina, ela nos demonstrava de forma tão clara, tão pre-cisa e tão determinada que estávamos num caminho errado que nós nos retirávamos completamente confusos". Ela assistia aos cursos de seu pai e de seu tio na mesma sala que duzentos ou trezentos estudantes, porém escondida atrás de uma cortina e em mais de uma ocasião re-futava as explicações dadas por esses dois anciões sobre este ou aquele tema. Alcançou imensa reputação na Pérsia erudita, e os mais altivos ulemás consentiram em adotar algumas de suas hipóteses ou opiniões. O feito é tanto mais notável porque a religião muçulmana xiita relegou a mulher quase ao nível do animal: a mulher não tem alma e só existe para a reprodução. Ela se casou, ainda muito jovem, com o filho de seu tio, Muhammad-i-Qazviní, que era Imame Jum'ih da cidade e foi mais tarde a Karbilá, onde assistiu às classes de Siyyid Kázím-i- Rashtí. Ela compartilhou apaixonadamente das idéias de seu mestre, idéias que ela conhecia, já que Qazvín havia chegado a ser um centro das dou-trinas Shaykhís. Ela era, como veremos mais tarde, de temperamento ardente e possuía uma inteligência precisa e lúcida, um sangue-frio ma-ravilhoso e uma coragem indomável. Todas estas qualidades fizeram-na interessar-se pelo Báb, de quem ouviu falar após seu regresso à Qazvín. O que ela aprendeu interessou-a tão vivamente que entrou em correspon-dência com o Reformador e, em breve convencida por ele, anunciou urbi et orbi a sua conversão. O escândalo foi enorme e o clero ficou conster-nado. Foi em vão que seu pai, seu marido e seus irmãos tentaram dis-suadi-la dessa perigosa loucura; ela permaneceu inflexível e procla-

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Convém dizermos agora algumas palavras em explica-ção do termo Bálá-Sarí. Shaykh Ahmad e Siyyid Kázím, bem como seus seguidores, quando visitavam o santuário do Imame Husayn em Karbilá, ocupavam invariavelmente, como sinal de reverência, o extremo inferior do sepulcro. Além deste jamais passaram, enquanto outros devotos, os Bálá-Sarí, recitavam suas orações na seção superior desse san-tuário. Os shaykhís, por acreditarem que "todo crente verda-deiro vive tanto neste mundo quanto no vindouro", acharam que era indecoroso e impróprio ultrapassar os limites das seções inferiores do santuário do Imame Husayn, o qual aos seus olhos era a própria personificação do crente mais per-feito. *°

Mullá Husayn, que esperava ser o companheiro escolhi-do do Báb durante Sua peregrinação a Meca e Medina, foi chamado para a presença de seu Mestre quando decidiu partir de Shíráz, e dele recebeu as seguintes instruções: "Os dias de nosso companheirismo aproximam-se do fim. Meu Convênio contigo está agora cumprido. Prepara-te para os máximos esforços e te levanta para difundir Minha Cau-sa. Não te desalentes ao veres a degradação e perversidade desta geração, pois o Senhor do Convênio há seguramente de te assistir. Em verdade, Ele rodear-te-á com Sua amoro-sa proteção e te conduzirá de vitória em vitória. Assim mesmo como a nuvem que faz chover sobre a terra sua graça, atra-

mou francamente a sua fé". (A. L. M. Nicolas Siyyid 'Alí-Muhammad dit le Báb p.p. 273-4).

40 "Este nome lhes foi dado", diz Hájí Karím Khán em seu Hidwyatu't-Tálibín, "desde que o finado Shaykh Ahmad — quando esteve em Karbilá, durante suas peregrinações aos sepulcros sagrados, e como sinal de respeito aos Imames — fazia suas orações permanecendo atrás do Imame, ou seja, aos seus pés. De fato, para ele não havia diferença entre o respeito que se devia ter a um imame morto ou vivo. Os persas ao contrário, entram na tumba e colocam-se por cima da cabeça do Imame e viram as costas quando oram, já que os santos mortos são sepultados com a cabeça virada para o Quiblih. Isto é uma vergonha e uma mentira! Os apóstolos de Jesus, pretendendo haver vindo em au-xilio a Deus, foram chamados "Nasásá", nome que se deu a todos aque-les que seguiram suas pegadas. Assim, o nome Bálá-Sarí se refere a todos aqueles que oram colocando-se por cima da cabeça do Imame." (A. L. M. Nicolas Essai sur le Shaykhisme, I, prefácio, p.p. 5-6.)

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vessa o país de extremo a extremo e derrama sobre seu povo as bênçãos que o Todo-Poderoso, em Sua misericórdia, se dignou te conferir. Sê tolerante para com os ulemás e te resigna à vontade de Deus. Levanta o chamado: 'Despertai, despertai, pois, eis!, a Porta de Deus está aberta e a Luz ma-tinal irradia seu fulgor sobre toda a humanidade! O Prome-tido torna-se manifesto; preparai-Lhe o caminho, ó povos da Terra! Não vos priveis de sua graça redentora, nem fecheis os olhos para sua fulgente glória'. Com aqueles que encontrardes receptivos ao teu chamado, reparte as epístolas que Nós te revelamos, para que talvez estas maravilhosas palavras os possam fazer se afastar do abismo da negligência e se elevar ao domínio da Presença Divina. Nesta peregrina-ção que em breve haveremos de embarcar, escolhemos Quddús como Nosso companheiro. Nós te deixamos para enfrentares a investida de um inimigo feroz e implacável. Tem tu certeza, porém, de que uma graça indizíveimente gloriosa te será conferida. Segue o curso de tua jornada para o norte e visita no caminho Isfáhán, Káshán, Qum e Teerã. Implora à Providência onipotente que por Sua bon-dade te permita atingir, nessa capital, a sede da soberania verdadeira e entrar na mansão do Bem-Amado. Nessa cida-de jaz oculto um segredo. Ao se tornar manifesto, transfor-mará a Terra num paraíso. É Minha esperança que possas participar de sua graça e reconhecer seu esplendor. De Teerã procede a Khurásán e ali proclama de novo o Cha-mado. Regressa dali a Najáf e Karbilá onde deves aguardar o chamado de teu Senhor. Tem tu certeza de que a alta missão para que foste criado há de ser, em sua totalidade, por ti cumprida. Até que tiveres consumado tua tarefa, se todos os dardos de um mundo descrente contra ti forem dirigidos, um cabelo sequer de tua cabeça não terão eles o poder de lesar. Todas as coisas estão presas em Suas mãos poderosas. Ele, em verdade, é o Onipotente, Aquele que a tudo domina".

Chamou o Báb então a Sua Presença Mullá 'Alíy-i-Bas-támí e lhe dirigiu palavras de ânimo, afeto e bondade. Deu-lhe instruções para seguir diretamente para Najáf e Karbilá, referiu-se às severas provações e aflições que lhe sobrevi-riam e exortou-o a manter-se firme até o fim. "Tua fé",

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disse-lhe, "deve ser imóvel como a rocha, deve resistir a toda tempestade e sobreviver a toda calamidade. Não per-mitas que as denúncias dos néscios e as calúnias do clero te afiijam ou te desviem de teu propósito. Pois és chamado a participar do banquete celestial que te foi preparado no Reino imortal. Tu és o primeiro a partir da Casa de Deus e a sofrer por Sua Causa. Se fores morto em Seu caminho, lembra-te que grande será tua recompensa e bela a dádiva que te será conferida."

Assim que haviam sido pronunciadas estas palavras, Mullá 'Ali se levantou de seu assento e partiu em cumpri-mento de sua missão. A distância de mais ou menos um farsang de Shíráz, alcançou-o um jovem, enrubesciclo de emoção, que pediu com impaciência permissão para lhe fa-lar. Seu nome era 'Abdu'1-Vahháb. "Imploro-vos", suplicou com lágrimas a Mullá' Ali, "permiti que vos acompanhe em vossa jornada. Perplexidades oprimem meu coração; peco-vos que guieis meus passos no caminho da Verdade. Na noite passada, em meu sonho, ouvi o pregoeiro anunciar, na rua do mercado de Shíráz, o aparecimento do Imame 'Ali, Comandante dos Fiéis. Ordenou à multidão: 'Levantai-vos e o buscai. Vede, ele tira do fogo ardente cartas de li-berdade e as está distribuindo ao povo. Apressai-vos a ele, pois quem quer que as receba de suas mãos estará salvo do sofrimento penal, e quem dele não as puder obter será privado das bênçãos do Paraíso'. Logo que ouvi a voz do pregoeiro, levantei-me e, abandonando minha loja, atravessei correndo a rua do mercado de Vakíl para um lugar de onde meus olhos vos avistaram em pé distribuindo aquelas mes-mas cartas ao povo. A cada um que se aproximava para re-cebê-las de vossas mãos, vós lhe sussurravas no ouvido al-gumas palavras que no mesmo instante o faziam fugir em consternação e exclamar: 'Ai de mim, pois estou privado das bênçãos de 'Ali e dos seus! Oh, miserável sou, por ser con-tado entre os proscritos e caídos!' Acordei de meu sonho e, imerso num oceano de pensamento, encontrei-me novamente em minha loja. De súbito vos vi passar, acompanhado por um homem que usava turbante e que estava conversando con-vosco. Pulei de meu assento e, impelido por um poder que não conseguia reprimir, corri para vos alcançar. Para gron

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de surpresa minha, eu vos encontrei no mesmo lugar que havia visto em meu sonho e ocupado em recitar tradições e versículos. Em pé, um pouco afastado, continuei a vos observar, sem ser visto por vós e vosso amigo. Ouvi o ho-mem a quem vos dirigistes protestar impetuosamente: 'Mais fácil para mim é ser devorado pelas chamas do inferno do que admitir a verdade de vossas palavras, cujo peso nem montanhas são capazes de sustentar!' A seu desdenhoso re-púdio replicastes: 'Fosse todo o universo rejeitar Sua ver-dade, jamais poderia embaciar a imaculada pureza de Seu manto de grandeza'. Afastando se dele, dirigistes vossos passos ao portal de Kázirán. Continuei a vos seguir até alcançar este lugar."

Mullá 'Ali tentou tranqüilizar seu coração agitado e per-suadi-lo a voltar à sua loja e continuar seu trabalho diário. "Tua associação comigo", argüia, "só me envolveria em di-ficuldades. Regressa a Shíráz e fique tranqüilo, pois estás contado entre o povo da salvação. Longe esteja da justiça de Deus negar o cálice de Sua graça a quem com tanto fer-vor e devoção O busca, ou privar uma alma tão sedenta do oceano encapelado de Sua Revelação." Em vão foram as palavras de Mullá 'Ali. Quanto mais ele insistia no regresso de 'Abdu'1-Vahháb, mais altos se tornavam seus lamentos e prantos. Finalmente Mullá 'Ali se sentiu constrangido a sa-tisfazer seu desejo, resignando-se à vontade de Deus.

Hájí 'Abdu'1-Majíd, pai de 'Abdu'1-Vahháb, tem relatado muitas vezes, com os olhos cheios de lágrimas, esta histó-ria: "Quão profundamente me arrependo do ato que come-ti. Que Deus me conceda remissão de meu pecado. Eu era um dos favorecidos na corte dos filhos do Farmán-Farmá, governador da província de Fárs. Tal era minha posição que ninguém se atrevia a se opor a mim ou me causar dano. Ninguém questionava minha autoridade ou se aventurava a interferir em minha liberdade. Logo ao saber que meu fi-lho 'Abdu'1-Vahháb havia abandonado sua loja e saído da cidade, corri em direção ao portal de Kázirán para alcançá-lo. Armado de clava, com a qual tencionava lhe bater, in-daguei o caminho que tomara. Disseram-me que um homem que usava turbante acabava de atravessar à rua e haviam visto meu filho segui-lo. Pareciam haver combinado partir

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da cidade juntos. Isto excitou minha ira e indignação. Como podia tolerar, pensei comigo, comportamento tão indigno da parte de meu filho, eu, que já ocupo tão privilegiada posição na corte dos filhos do Farmán-Farmá? Nada senão o mais severo castigo, pensava, poderia apagar o efeito da conduta vergonhosa de meu filho.

"Continuei a busca até alcançá-los. Possuído de uma fúria selvagem, infligi a Mullá 'Ali injúrias indizíveis. Aos golpes que caíam pesadamente sobre ele, respondeu, com extraordinária serenidade: 'Detém tua mão, ó 'Abdu'1-Majíd, pois os olhos de Deus te observam. Tomo-O como minha testemunha de que não sou, de modo algum, responsável pela conduta de teu filho. Não me importam as torturas que me infliges, pois estou preparado para as mais graves aflições no caminho que tenho escolhido. Tuas injúrias, ao lado daquilo que me é destinado a sobrevir no futuro, são como uma gota em comparação com o oceano. Em verdade digo, tu haverás de sobreviver a mim e virás a reconhecer minha inocência. Grande, então, será teu remorso e profun-da tua tristeza'. Desdenhando suas palavras e não atenden-do a seu apelo, continuei a nele bater até me sentir exausto. Em silêncio e com heroísmo suportou aquele castigo tão completamente imerecido. Finalmente, mandei meu filho se-guir-me e deixei Mullá 'Ali só.

"No caminho de volta a Shíráz, meu filho relatou-me o sonho que tivera. Um sentimento de remorso profundo pou-co a pouco se apoderou de mim. A inocência de Mullá !Alí foi vindicada a meus olhos e a lembrança de minha cruel-dade continuou por muito tempo a me oprimir a alma. Sua amargura deteve-se em meu coração até o tempo em que me senti obrigado a transferir minha residência de Shí-ráz a Bagdá. De Bagdá mudei para Kázimayn, onde 'Abdu'l-Vahháb estabeleceu seus negócios. Um estranho mistério pairava sobre sua face jovial. Parecia estar escondendo de mim um segredo que, aparentemente, lhe havia transforma-do a vida. Quando no ano de 1267 A.H.,41 Bahá'u'lláh viajou

« 1850-51 A.D.

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ao Iraque e visitou Kázimayn, 'Abdul-Vahháb foi logo cati-vado pelo Seu encanto e lhe hipotecou Sua imorredoura de-voção. Poucos anos depois, quando meu filho havia sofrido martírio em Teerã e Bahá'u'lláh fora exilado para Bagdá, Ele, com infinita misericórdia e mercê, despertou-me do sono da negligência e me ensinou, Ele Mesmo, a mensagem do Novo Dia, lavando com as águas do perdão divino as manchas desse ato cruel".

Este episódio assinala a primeira aflição que sucedeu a um discípulo do Báb após a declaração de Sua missão. Mullá 'Ali percebeu nessa experiência como era íngreme e espinhosa a senda que o levaria a atingir, por fim, aquilo que seu Mestre lhe prometera. Totalmente resignado à Sua Vontade e pronto a derramar seu sangue vital por Sua Cau-sa, reiniciou sua viagem até que chegou em Najáf. Na pre-sença de Shaykh Muhammad-Hasan, um dos mais célebres eclesiásticos do islã xiita, e ante uma distinguida companhia de seus discípulos, Mullá 'Ali anunciou destemidamente a manifestação do Báb, da Porta cujo advento ansiosamente esperavam. "Sua prova", declarou, "é Sua Palavra; Seu tes-temunho, nenhum outro, senão o testemunho com o qual o islã procura vindicar sua verdade. Da pena deste iletrado jovem Háshimita da Pérsia fluíram, no período de quarenta e oito horas, tão grande número de versículos, orações, ho-mílias e tratados científicos que igualariam em volume o Al-corão inteiro, o que Maomé, o Profeta de Deus, levou vinte e três anos para revelar!" Aquele líder orgulhoso e fanático, em vez de receber com agrado, numa era de trevas e precon-ceitos, estas evidências vivificadoras de uma recém-nascida Revelação, logo pronunciou Mullá 'Ali um herege e o expul-sou da assembléia. Seus discípulos e seguidores, até mesmo os shaykhís, que já haviam testemunhado a piedade, since-ridade e erudição de Mullá 'Ali, endossaram sem hesitação o juízo contra ele. Os discípulos de Shaykh Muhammad-Ha-san, unindo-se com seus adversários, amontoaram sobre ele incontáveis indignidades. Entregaram-no por fim, com as mãos acorrentadas, a um oficial do governo otomano acusan do-o de ser um detrator do Islã, um caluniador do Profeta, um instigador de distúrbio, uma vergonha para a Fé e digno

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da pena de morte. Foi levado a Bagdá sob a escolta de ofi-ciais do governo e encarcerado pelo governador dessa cidade.

Hájí Háshim, de sobrenome 'Attár, preminente comer-ciante, que era bem versado nas Escrituras do Islã, contou o seguinte: "Estive presente na casa do governo numa oca-sião em que Mullá 'Ali foi chamado à presença de uma assembléia de notáveis e oficiais dessa cidade. Foi acusado publicamente de ser um infiel, um abrogador das leis do Islã e repudiador de seus rituais e normas estabelecidas. Depois de haverem sido enumeradas suas supostas ofensas e infra-ções, o mufti, o principal expoente da lei do Islã nessa cida-de, virou-se para ele e disse: 'õ inimigo de Deus!' Como eu ocupava um lugar ao lado do mufti, sussurrei em seu ouvido: 'Não conheceis ainda esse infeliz estranho. Porque lhe falais nesses termos? Não compreendeis que tais palavras exci-tarão contra ele a ira da população? Convém que não con-sidereis as infundadas incriminações que esses intrometidos pronunciaram contra ele, que o interrogueis pessoalmente e julgueis de acordo com as normas estabelecidas de justiça que a Fé do Islã inculca'. O mufti desagradou-se seriamen-te e, levantando-se de seu lugar, saiu da reunião. Novamente foi Mullá 'Ali encarcerado. Poucos dias depois, perguntei por ele, com a esperança de conseguir sua libertação. Infor-maram-me que na noite daquele mesmo dia ele havia sido deportado para Constantinopla. Indaguei mais, esforçando-me por averiguar o que afinal lhe havia sucedido. Não pude, entretanto, descobrir a verdade. Acreditavam alguns que ele na viagem a Constantinopla adoecera, vindo a falecer. Ou-tros asseveraram haver ele sofrido martírio".42 Qualquer que fosse seu fim, Mullá 'Ali por sua vida e por sua morte, ganhou a distinção imortal de haver sido o primeiro a so-frer na senda desta nova Fé de Deus, o primeiro a oferecer a vida em holocausto no Altar do Sacrifício.

42 Segundo Bluhammad-Mustafá (p. 106), Mullá 'Ali ficou se'-s meses encarcerado em Bagdá por ordem de Najíb Páshá, o governador da cidade. Dali foi mandado para Constantinopla, de acordo com as instruções recebidas do governo otomano. Passou por Mosul, onde pode despertar o interesse pela nova Revelação. No entanto, seus amigos não pfderam descobrir se chegou finalmente a seu destino.

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Havendo expedido Mullá 'Ali em sua missão, O Báb chamou à Sua presença as restantes Letras dos Viventes e a cada um por sua vez deu um mandato especial e designou uma determinada tarefa. Dirigiu-lhes estas palavras de des-pedida: "õ Meus bem-amados amigos! Sois os portadores do Nome de Deus neste Dia. Fostes escolhidos como os de-positários de Seu mistério. Imcumbe a cada um de vós ma-nifestar os atributos de Deus e exemplificar por vossas ações e palavras os sinais de Sua retidão, Seu poder e Sua glória. Os próprios membros de vossos corpos devem testemunhar a sublimidade de vosso propósito, a integridade de vossa vida, a realidade de vossa fé e o caráter elevado de vossa devoção. Pois em verdade digo, este é o Dia de que Deus falou em Seu Livro:43 'Nesse Dia haveremos de pôr um selo sobre seus lábios; no entanto, suas mãos Nos falarão e seus pés darão testemunho daquilo que tiverem feito'. Ponderai as palavras de Jesus aos Seus discípulos quando os mandou sair a fim de propagar a Causa de Deus. Em palavras como estas Ele os exortou a se levantar e cum-prir sua missão: 'Sois assim mesmo como o fogo que na escuridão da noite se acendeu no cume da montanha. Dei-xai vossa luz brilhar ante os olhos dos homens. Tal deve ser a pureza de vosso caráter e o grau de vossa renúncia que os povos da Terra possam, por vosso intermédio, reco-nhecer o Pai Celestial, que é a Fonte de pureza e graça e Dele mais se aproximar. Pois ninguém tem visto o Pai que está no céu. Vós que sois Seus filhos espirituais deveis por vossas ações exemplificar Suas virtudes e dar testemunho de Sua glória. Sois o sal da terra, mas se o sal tiver perdido seu sabor, com que se haverá de salgá-la? O grau dè vosso desprendimento deve ser tal que em qualquer cidade que entreis para proclamar e ensinar a Causa de Deus, de modo algum deveis esperar alimento ou recompensa de seu povo. Não, ao partides dessa cidade, deveríeis sacudir o pó de vossos pés. Assim como nela entrastes, puros e sem mácu Ia, também deveis partir. Pois em verdade digo, o Pai celes-tial está sempre convosco e vos vigia. Se Lhe fordes fiéis.

*3 O Alcorão.

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Ele seguramente entregará em vossas mãos todos os tesou ros da Terra e vos exaltará acima de todos os governantes e reis do mundo', ó Minhas Letras! Em verdade digo, imen-samente elevado é este Dia acima dos dias dos Apóstolos de antanho. Não, imensurável é a diferença! Sois as teste-munhas do Alvorecer do prometido Dia de Deus. Sois os que participam do cálice místico de Sua Revelação. Prepa-rai-vos para fazerdes o máximo esforço e atendei às pala-vras de Deus assim como são reveladas em Seu Livro:44

'Eis, o Senhor teu Deus já veio e com Ele está a companhia de Seus anjos que estão dispostos à Sua vanguarda!' Purifi-cai vossos corações dos desejos terrenos e deixai que as virtudes angelicais sejam vosso adorno. Esforçai-vos para que pelos vossos atos possais dar testemunho da verdade destas palavras de Deus, e acautelai-vos para que, por vos haverdes 'voltado para trás', Ele não 'vos troque por um outro povo' que 'vos não será similar' e que de vós haverá de tirar o Reino de Deus. Os dias em que se julgava sufici-ente a vã adoração chegaram ao fim. Veio o tempo em que nada senão o mais puro motivo, apoiado por ações de ima-culada pureza, pode ascender ao trono do Altíssimo e lhe ser aceitável. 'A boa palavra ascende a Ele, e a ação reta fará com que seja exaltada diante Dele.' Sois os humildes, de quem Deus assim falou em Seu LiVro:45 'E desejamos mostrar favor àqueles que foram rebaixados na Terra, e fazê-los dirigentes espirituais entre os homens e Nossos herdeiros.' Fostes chamados a esta posição; havereis de atin-gi-la somente se vos levantardes para desprezar todo desejo terreno e envidar vossos esforços para vos tornardes aqueles 'honrados servos Seus que não falam até que Ele tenha fala-do e fazem o que Ele ordena'. Sois as primeiras Letras que foram geradas do Ponto Primaz,46 os primeiros Nascentes que manaram da Fonte desta Revelação. Suplicai ao Senhor vosso Deus que não permita que qualquer laço terreno, afeto mun-dano ou ocupação efêmera embacie a pureza ou torne amar-

44 O Alcorão. 4 5 O Alcorão. 46 Um dos títulos do Báb.

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ga a doçura dessa graça que flui através de vós. Estou vos preparando para o advento de um Dia grandioso. Envidai os máximos esforços para que no mundo vindouro Eu, que es-tou vos instruindo agora, possa, ante a sede da misericórdia de Deus, regozijar-me por vossas ações e me glorificar de vossas vitórias. O segredo do Dia que há de vir está oculto agora. Não pode ser nem divulgado nem avaliado. A crian-ça recém-nascida nesse Dia ultrapassa o mais sábio e vene-rável dos homens de agora, e os rnais humildes e iletrados desse período excederão em compreensão os mais eruditos e consumados eclesiásticos desta era. Dispersai-vos por toda parte deste país e, com pés firmes e corações santificados, preparai o caminho para Sua vinda. Não olheis vossas fra-quezas e debilidade; contemplai o poder invencível do Se-nhor, vosso Deus, o Onipotente. Não fez Ele, em tempos idos, que Abraão, apesar de Sua aparente fraqueza, triunfas-se sobre as forças de Nimrod? Não capacitou Moisés, cujo bastão era Seu único companheiro a vencer o Faraó e suas hostes? Não estabeleceu Ele a ascendência de Jesus, pobre e rebaixado que era aos olhos dos homens, sobre as forças reunidas do povo judaico? Não sujeitou as tribos bárbaras e militantes da Arábia à santa e transformadora disciplina de Maomé, Seu Profeta? Levantai-vos em Seu Nome, Nele ponde vossa inteira confiança e tende certeza da vitória final."47

Com tais palavras o Báb vitalizou a fé de Seus discípu-los e os lançou a sua missão. 'A cada um designou sua pró-pria província natal como o campo de seu labor. A todos recomendou que não se referissem especificamente a Seu próprio nome e pessoa.48 Ordenou-lhes que levantassem

47 O Báb fez referência às Letras da Vida no Le Bayán Persan (Vahid I, Báb 2) , nos seguintes termos: "Todas elas formam o nome

do vivente, porque são os nomes mais próximos a Deus; todas as outras são guiadas por sua ação indicadora, porque Deus começou com eles a criação do Bayán, e é para eles que Deus fará regressar esta criação do Bayán. São luzes que eternamente se têm prosternado no passado e que se prosternarão eternamente no futuro ante o trono celestial". (Le Bayán Persan, vol. I, p.p. 24-5.)

48 A. L. M. Nicolas, em sua introdução ao volume I do Le Bayán Persan (p.p. 3-5), escreve o seguinte: "Todos estão de acordo

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o chamado de que a Porta ao Prometdio fora aberta, de que Sua prova é irrefutável e Seu testemunho, completo. Man-dou declarar que quem Ele acreditasse, teria acreditado em todos os profetas de Deus, e quem O negasse teria nega-do todos os Seus santos e Seus eleitos. Com estas instru-ções Ele os despediu de Sua presença e, confiou aos cuida-dos de Deus. Dessas Letras dos Viventes a quem deste modo se dirigiu, permaneceram com Ele, em Shíráz, Mullá Husayn, o primeiro, e Quddús, o último. As restantes, catorze no total, partiram de Shíráz na hora do alvorecer, resolvida cada uma a levar a cabo em sua totalidade a tarefa da qual fora incumbida.

A Mullá Husayn, assim que se aproximava a hora de sua partida, dirigiu estas palavras: "Não te entristeças por não haveres sido escolhido para Me acompanhar em Minha peregrinação a Hijáz. Em vez disso, encaminharei teus pas-sos àquela cidade que entesoura um Mistério de tão trans-cendente santidade que nem Hijáz nem Shíráz pode espe-rar rivalizar. É Minha esperança que sejas assistido por Deus na tarefa de remover os véus dos olhos dos refratários e purificar as mentes dos malévolos. Visita, em teu caminho, Isfáhán, Káshán, Teerã e Khurásán. Ruma dali ao Iraque e lá aguarda a chamada de teu Senhor, que te vigiará e guiará a qualquer coisa que seja Sua vontade e desejo. Quanto a Mim, acompanhado por Quddús e Meu servo etíope, pros-

que lhe era completamente impossível proclamar em alta voz sua dou-trina e difundi-la entre os homens. Ele teve de agir como um médico de crianças, que cobre o sabor de um remédio amargo com um revestia mento açucarado para agradar a seus pequenos pacientes. E o povo no me'o do qual Ele havia surgido era e é infelizmente ainda mais faná-tico que os judeus na época de Jesus, e não existia ali, como naquela época, a majestade da paz romana para evitar os furiosos excessos da loucura religiosa de um povo superexcitado. Portanto, se Cristo, apesar da tranqüilidade relativa do ambiente no qual pregava, achou por bem empregar parábolas, Siyyid 'Ali Muhammad, a fortiori, teve que disfar-çar seus pensamentos com numerosos rodeios e não verter, senão gota à gota, o filtro de suas verdades divinas. Ele educa seu filho, a huma-nidade; o guia, tratando de não assustá-lo, conduz seus primeiros pas-sos por um caminho que o levará gradualmente, porém com segurança, até que ele possa avançar sozinho, à meta que lhe foi predestinada desde toda a eternidade".

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seguirei em Minha peregrinação a Hijáz. Juntar-me-ei a com-panhia dos peregrinos de Fárs, que em breve embarcarão para esse lugar. Deverei visitar Meca e Medina, e lá cumprir a missão que Deus Me confiou. Se for a vontade de Deus, regrassarei aqui através de Kúfih, onde espero me encontrar contigo. Se for decretado de outro modo, pedirei que te reúnas comigo em Shíráz. As hostes do Reino Invisível, deves ter certeza, haverão de sustentar e reforçar tuas ten-tativas. A essência do poder agora em ti habita, e a compa-nhia de Seus anjos escolhidos circulam ao teu redor. Seus braços todo-poderosos circundar-te-ão e Seu Espírito infalí-vel para sempre continuará a guiar teus passos. Quem te ama, a Deus ama; quem a ti se opuser, a Deus terá se opos-to. De quem é teu amigo, Deus será amigo; e aquele que te rejeitar, Deus rejeitará".

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CAPÍTULO IV

A VIAGEM DE MULLÁ HUSAYN A TEERÃ

Com estas nobres palavras ressoando em seus ouvidos, Mullá Husayn iniciou seu perigoso empreendimento. Onde quer que fosse e a qualquer classe de pessoas que se dirigis-se, transmitia intrepidamente e sem reservas a Mensagem da qual seu taem-amado Mestre o incumbira. Ao chegar em Isfáhán, estabeleceu-se no madrisih de Ním-Ávard. Ao seu redor se reuniram aqueles que em sua visita anterior o ha-viam conhecido como o mensageiro favorecido de Siyyid Kázím ao eminente mujtahid, Hájí Siyyid Muhammad-Bá-qir.1 Este, agora falecido, foi sucedido por seu filho, que acabava de voltar de Najáf e estava já estabelecido na cá-tedra de seu pai. Hájí Muhammad-Ibráhím-i-Kalbásí tam-bém adoecera gravemente e estava prestes a morrer. Os dis-cípulos do falecido Hájí Siyyid Muhammad-Báqir, agora livres da influência restritiva de seu desaparecido mestre e alarmados pelas estranhas doutrinas que Mullá Husayn estava expondo, denunciaram-no veementemente a Hájí Siy-yid Asadu'lláh, filho do falecido Hájí Siyyid Muhammad

1 "As pessoas formavam grandes aglomerações para escutar o pregador. Ele ocupava, um atrás dos outros, todos os púlpitos de Isfáhán, onde fazia livremente o que havia sido proibido em Shiráz. Ele não temia dizer publicamente e anunciar que Mirzá 'Ali Muhammad era o décimo segundo imame. o Imame Mihdí; mostrava e lia os livros de seu Mestre, fazendo notar sua eloqüência e profundidade, ressaltando a extrema juventude do vidente, relatando seus milagres." (Conde de Gobineau Les Religions et les Phüosophies dans 1'Asie Centrale, p. 130).

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Báqir. "Mullá Husayn", queixavam-se, "conseguiu, durante sua última visita, ganhar o apoio de vosso ilustre pai para a causa de Shaykh Ahmad. Nenhum dos desprestigiados discí-pulos do Siyyid atreveu-se a ele se opor. Agora vem como defensor de um oponente ainda mais formidável e está apoiando Sua Causa com veemência e vigor ainda maiores. Alega persistentemente que Aquele cuja Causa ele agora de-fende é Revelador de um Livro divinamente inspirado, o qual de um modo impressionante se assemelha ao Alcorão em seu tom e linguagem. Na face do povo desta cidade, ele arrojou estas palavras desafiadoras: 'Produzi um semelhan-te, se sois homens verazes'. Aproxima-se rapidamente o dia em que Isfáhán inteira terá abraçado Sua Causa! "Hájí Siyyid Asadulláh respondeu a suas queixas com evasivas." "Que hei de dizer?", viu-se ele afinal forçado a responder. "Não tendes admitido vós mesmos que Mullá Husayn com a eloqüência e a força de seu argumento silenciou um homem tão grande como meu ilustre pai? Como posso eu, pois, que sou tão inferior a ele, em mérito e conhecimentos, presumir desafiar o que ele já aprovou? Que cada homem examine desapaixonadamente estas pretensões. Se se sentir satisfeito, muito bem; se não, que guarde silêncio e não incorra no risco de desacreditar o bom nome de nossa Fé."

Verificando o fracasso de seus esforços em influenciar Hájí Siyyid Asadulláh, seus discípulos referiram a questão a Hájí Muhammad-Ibráhím-i-Kalbásí. "Ai de nós", protesta-ram clamorosamente, "pois o inimigo se levantou para des-truir a santa Fé do Islã!" Em linguagem revoltante e exa gerada, frisaram o caráter desafiador das idéias expostas por Mullá Husayn. "Guardai silêncio", replicou Hájí Mu-hammad-Ibráhím. "Mullá Husayn não é pessoa q\ie possa ser enganada pela fraude de ninguém, nem pode cair vítima de perigosas heresias. Se o que afirmais é verdade, se Mullá Husayn de fato esposou uma nova Fé, inquestionavelmente é vossa primeira obrigação investigar de maneira desapaixo-nada, o caráter de seus ensinamentos e vos abster de o de-nunciar sem um escrutínio prévio e cuidados. É minha inten-ção, se Deus quiser e se me forem restituídas a saúde e as forças, investigar o assunto, eu mesmo, e me certificar da verdade."

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Esta severa repreensão, pronunciada por Hájí Kalbási. embaraçou muito os discípulos de Hájí Siyyid Asadulláh. Em face desse desapontamento, apelaram a Manúchihr Khán, o Mu'tamidu'd-Dawlih, o governador da cidade. Esse sábio e judicioso governante recusou intervir nesses assun-tos, os quais, afirmou ele, caíam exclusivamente dentro da jurisdição dos uiemás. Advertiu-lhes que se abstivessem de maldades e deixassem de perturbar a paz e tranqüilidade do mensageiro. Suas palavras cortantes demoliram as esperan-ças dos intrigantes. Mullá Husayn foi assim livrado das ma-quinações dos inimigos e por algum tempo prosseguiu sem empecilhos o curso de seu trabalho.

O primeiro a abraçar a Causa do Báb nessa cidade foi um homem, um joeireiro de trigo, que sem reservas aceitou a Mensagem logo que o Chamado lhe alcançou os ouvidos. Com maravilhosa devoção serviu a Mullá Husayn e através de sua íntima associação a ele se tornou zeloso defensor da nova Revelação. Poucos anos depois, quando os como-ventes detalhes sobre o assédio do forte de Shaykh Tabarsí lhe estavam sendo relatados, ele se sentiu irresistivelmente impelido a compartir a sorte daqueles heróicos companhei-ros do Báb que se haviam levantado em defesa de sua Fé. Levando na mão sua joeira, levantou-se de imediato e par-tiu em direção à cena daquele memorável encontro. "Por que partir com tanta pressa?", perguntaram-lhe os amigos quando o viram correr pelos bazares de Isfáhán. "Levantei-me", respondeu, "para me unir à gloriosa companhia dos defensores do forte de Shaykh Tabarsí! Com esta joeira que levo comigo, pretendo joeirar as pessoas em cada cidade pela qual eu passar. A qualquer uma que encontre disposta a esposar a Causa que tenho abraçado, pedirei que se una a mim e imediatamente se apresse em direção ao campo do martírio." Tal foi a devoção desse jovem que o Báb, no Bayán Persa, a ele se refere nestes termos: "Isfáhán, aquela notável cidade, distingue-se pelo fervor religioso de seus ha-bitantes xiitas, pela erudição de seus eclesiásticos e pela viva expectativa da vida iminente do Sáhibu'z-Zamán, a qual com-partilham os de alto grau e os de grau inferior. Em todos os setores dessa cidade têm sido estabelecidas instituições

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religiosas. Contudo, quando se tornara manifesto o mensa-geiro de Deus, os que se diziam os repositórios da erudição e os expositores dos mistérios da Fé de Deus rejeitaram Sua Mensagem. Entre todos os habitantes dessa sede de erudição, foi encontrada uma só pessoa, um joeireiro de tri-go, que reconheceu a Verdade e foi revestida com o manto da virtude divina!"2

Entre os siyyids de Isfáhán, alguns poucos, tais como Mírzá Muhammad-'Alíy-i-Nahrí, cuja filha mais tarde se uniu em matrimônio com o Maior Ramo,3 Mírzá Hádí, irmão de Mírzá Muhammad-'Alí, bem como Mírzá Muhammad-Ki-dáy-i-Pá-Qal'iyí, reconheceram a verdade da Causa. Mullá Sá-diq-i-Khurásání, anteriormente conhecido como Muqaddas e cognominado por Bahá'u'lláh Ismu'lláhu'1-Asdaq, que', segun-do as instruções de Siyyid Kázím, havia durante os últimos cinco anos residido em Isfáhán e se ocupado em preparar o caminho para o advento da nova Revelação, também esta-va entre os primeiros crentes que se identificaram com a Mensagem proclamada pelo Báb.4 Logo que soube da chega-da de Mullá Husayn em Isfáhán apressou-se a ir a seu en-contro. A respeito da primeira entrevista, a qual ocorreu à noite na casa de Mírzá Muhammad-'Alíy-i-Nahrí, relata ele o seguinte: "Pedi a Mullá Husayn que revelasse o nome d'Aquele que pretendia ser o prometido Manifestante, ao que respondeu, "Indagar esse nome, assim como revelá-lo, é proibido". "Seria, então, possível", perguntei, "que eu, assim mesmo como as Letras dos Viventes, buscasse inde-

2 Vede a terra de Sád (Isfáhán) que é, neste mundo visível a maior das terras. Em cada rincão de suas escolas encontram-se es-cravos numerosos disfarçados com o nome de sábios e lutadores. No instante em que teve lugar a eleição dos seres humanos, um peneirador de trigo se revestiu com o manto da primazia (sobre os demais). É aqui que se manifesta o segredo da palavra dos Imames sobre o tema da manifestação: "As mais baixas das criaturas se tornarão as mais ele-vadas, e as mais elevadas chegarão a ser as mais vis" (Le Bayán Per-san, vol. 4, p. 113.)

s Referência ao matrimônio de 'Abdu'1-Bahá com Muníríh Khanúm. * Gobineau menciona (p. 129) sobre Mullá Muhammad Taqíy-i-

Hahátí, como um consultor jurídico muito conhecido, sendo um dos primeiros a ser convertido à Fé.

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pendentemente a graça do Misericordioso e, através da ora ção, descobrisse Sua identidade?" "A porta de Sua graça", respondeu, "nunca está fechada ante a face de quem O busca." Retirei-me imediatamente de sua presença e a seu anfitrião solicitei o uso de um aposento privado em sua casa, no qual eu só, sem ninguém que me molestasse, pu-desse comungar com Deus. Em meio à minha contemplação, subitamente lembrei-me da face de um jovem que muitas ve-zes, enquanto estive em Karbilá, eu havia observado em pé. em atitude de prece, com seu rosto banhado de lágrimas, na entrada do santuário do Imame Husayn. Esse mesmo sem-blante apareceu de novo diante de meus olhos. Em minha visão eu parecia estar contemplando essa mesma face, as mesmas feições, que expressavam tal alegria como jamais poderia descrever. Ele sorriu enquanto em mim fixava o olhar. Aproximei-me dele, pronto a me jogar a Seus pés. Eu me curvava para o chão quando, eis!, essa figura radian-te desvaneceu-se de minha vista. Apoderaram-se de mim jú-bilo e contentamento e saí correndo em busca de Mullá Husayn, que me recebeu com êxtase e me assegurou haver eu atingido, afinal, o objeto de meu desejo. Mandou-me. porém, reprimir meus sentimentos. "A ninguém deves decla-rar tua visão", ele me exortou, "não chegou ainda o tempo para isso. Colheste o fruto de tua paciente espera em Isfá-hán. Deverias agora proceder a Kirmán e lá tornar conhe-cida a Hájí Mírzá Karím Khán esta Mensagem. Daí deves viajar a Shíráz e te esforçar por despertar o povo dessa cidade de sua negligência. Espero encontrar-te em Shíráz e contigo compartir as bênçãos de uma jubilosa reunião com nosso Bem-Amado."5

5 A estada de Bushrú'í em Isfáhán foi um triunfo para o Báb. As conversões por ele realizadas foram numerosas e brilhantes, porém atraíram (assim são as coisas neste mundo) o ódio feroz do clero ofi-cial, ante o qual teve de inclinar-se e abandonar a cidade. Com efeito, a conversão de Mullá Muhammad Taqíy-;-Harátí, jurisconsulto de pri-meira ordem, levou ao ápice a fúria do clero, ainda mais que este último, che'o de zelo, todos os da s , subia ao púlpito (mambar), de onde falava aos homens abertamente da grandeza do Báb, a quem atribuía o grau de Na'ib-i-Kháss do décimo segundo Imame". (A. L. M. Nicolas: Siy 'Alt Muhammad dit le Báb, p. 225.)

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De Isfáhán, Mullá Husayn prosseguiu a Káshán. O pri meiro nessa cidade a alistar-se na companhia dos fiéis foi um certo Kájí Mírzá Jání, cognominado Par-Pá, um comer-ciante de renome.6 Entre os amigos de Mullá Husayn figu-rava um sacerdote muito conhecido, Siyyid 'Abdu'1-Báqi, re-sidente de Káshán e membro da comunidade shaykhí. Em-bora intimamente associado a Mullá Husayn durante sua es-tada em Najáf e Karbilá, o Siyyid não se sentiu capaz de sacrificar posição e liderança pela Mensagem que seu amigo lhe trouxera.

Ao chegar em Qum, Mullá Husayn viu que seu povo não estava, em absoluto, preparado para atender a seu cha-mado. As sementes que entre eles semeava só vieram a ger-minar no tempo em que Bahá'u'lláh estava exilado em Bagdá. Nesses dias Hájí Mírzá Músá, nativo de Qum, abraçou a Fé e viajou a Bagdá, onde conheceu Bahá'u'lláh. Por fim, sorveu do cálice do martírio em Seu caminho.

De Qum, Mullá Husayn prosseguiu diretamente a Teerã. Durante sua permanência na capital, morou num dos quar-tos que pertenciam ao madrisih de Mírzá Sálih, mais bem conhecido como o madrisih de Páy-i-Minár. Hájí Mírzá Mu-hammad-i-Khurásání, o líder da comunidade shaykhí de Teerã, que ocupava o lugar de instrutor nessa instituição, foi visitado por Mullá Husayn, mas recusou seu convite para aceitar a Mensagem. "Havíamos alimentado a esperan-ça", dizia a Mullá Husayn, "de que após a morte de Siyyid Kázim vos tivésseis esforçado por promover os melhores interesses da comunidade shaykhí, livrando-a da obscurida-de em que se mergulhara. Parece, entretanto, que lhes ten-des traído a causa. Demolistes nossas mais acariciadas ex-pectativas. Se persistirdes em disseminar essas doutrinas subversivas, extinguireis finalmente os remanescentes dos shaykhis nesta cidade." Mullá Husayn assegurou-lhe que não era sua intenção prolongar sua estada em Teerã, que de

6 De acordo com o "Kashfu'1-Ghitá" (p.p. 42-5), Hájí Mirzá Jání era conhecido em Káshán como Hájí Mirzá Jání-i-Buzurg para dis-tingui-lo de seu homônimo, que era também comerciante ení Káshán, co-nhecido pelo nome de Hájí Mirzá Jáníy-i-Turk, o Kúchiq. O prmeiro tinha três irmãos: o maior chamava-se Hájí Muhammad-Ismá'il-i-Dnabíh, o segundo Hájí Mirzá Ahmad, e o terceiro Hájí 'Alí-Akbar.

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modo algum visava rebaixar ou suprimir os ensinamentos inculcados por Shaykh Ahmad e Siyyid Kázím.7

Durante sua estada em Teerã, Mullá Husayn todas as manhãs, bem cedo, deixava seu quarto e voltava só uma hora após o pôr-do-sol. Ao regressar, entrava em seu quar-to sozinho e em silêncio, fechando a porta atrás e perma-necendo na solidão de seu quarto até o dia seguinte.8

Mírzá Músá, Aqáy-i-Kalím, irmão de Bahá'u'lláh, contou-me o seguinte: "Tenho ouvido Mullá Muhammad-i-Mu'allim, vim nativo de Núr, na província de Mázindarán, fervoroso admi-rador tanto de Shaykh Ahmad quanto de Siyyid Kázím, rela-tar o seguinte: 'Eu era naqueles dias reconhecido como um dos discípulos prediletos de Hájí Mírzá Muhammad e mora-va na mesma escola em que ele ensinava. Meu quarto era adjacente ao seu e vivíamos intimamente associados. No dia em que ele estava ocupado numa discussão corri MulM Husayn, pude ouvir a conversação do começo ao fim e me senti profundamente afetado pelo ardor, fluência e erudição desse estranho jovem. Admirei-me das respostas evasivas, da arrogância e da desprezível conduta de Hájí Mírzá Muham-mad. Nesse dia me senti fortemente atraído pelo encanto desse jovem e me ofendi profundamnte com o indigno com-portamento de meu instrutor para com ele. Escondi meus sentimentos, porém, fingindo nada saber de suas discussões com Mullá Husayn. Apoderou-se de mim um veemente de-r-ejo de conhecê-lo e me aventurei, à meia-noite, visitá-lo. Ele não me esperava, mas bati a sua porta e o encontrei acor-dado, sentado junto de seu lampião. Recebeu-me com afeto e falou com extrema cortesia e ternura. Desabafei meu co-

7 "Permaneceu alguns dias nesta capital, porém não apareceu em público, limitando-se a ter, com às pessoas que o visitavam, entrevis-tas que poderiam ser consideradas confidenciais. Não parou de receber, no entanto, muitas pessoas e de conquistar para seus pontos de vista numerosos curiosos. Todos queriam vê-lo. 0 rei Muhammad Sháh e seu ministro, Hájí M'rzá Aqásí, como verdadeiros persas que eram, não deixaram de mandar chamá-lo à sua presença. Ele lhes expôs sua dou-trina e lhes deu os livros do mestre." (Conde de Gobineau Les Religions H les Philosophies dans 1'Asie Centrale, p. 131.)

8 Segundo Samandár (manuscrito p. 2) Mullá Husayn, em sua viagem de Shiráz a Teerã no ano de 1260 A.H. era portador de uma carta do Báb para Muhammad Sháh.

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ração e, enquanto me dirigia a ele, lágrimas que não podia reprimir fluíram de meus olhos. "Posso ver agora", disse-me "por que razão escolhi este lugar para morar. Teu instrutor rejeitou com desdém esta Mensagem e menosprezou seu Autor. Minha esperança é que o aluno, diferente de seu mes-tre, possa reconhecer sua verdade. Qual é o teu nome e qual a cidade de tua origem? "Meu nome", respondi, "é Mullá Muhammad e meu sobrenome Mu'allim. Sou de Núr, na pro-víncia de Mázindarán." "Dize-me", inquiriu ainda Mullá Hu-sayn, "há hoje entre a família do falecido Mírzá Buzurg-i-Nurí, de tanto renome em virtude de seu caráter, seu encan-to e sua habilidade artística e intelectual, alguém que tenha provado ser capaz de manter as altas tradições dessa casa ilustre?" "Sim", respondi, "entre seus filhos que ainda vivem tem-se distinguido Um pelas mesmas características de Seu pai. Pela Sua vida virtuosa, Suas altas realizações, Sua bene-volência e liberalidade, já se provou um nobre descendente de um pai nobre." "Qual é Sua ocupação?", perguntou-me. "Animar os desconsolados e alimentar os famintos", repli-quei. "Sua posição e grau?" "Nenhuma" disse-lhe, "além de se mostrar o amigo do pobre e do estranho." "Qual é o Seu nome?" "Husayn Ali". "Em qual das escritas de Seu Pai Ele sobressai?" "Sua escrita predileta é shikastih-nasta'líq." "Como passa Ele Seu tempo?" "Ele vaga pelos bosques e se deleita com as belezas do campo."9 "Que idade tem Ele?"

» "Em certa ocasião", escreve o dr. J. E. Esslemont, "Abdu'1-Bahá. o f lho mais velho de Bahá'u'lláh, descreveu os seguintes deta-lhes da juventude de seu pai: "Desde menino foi muito bondoso e ge-neroso. Amava a vida e o ar livre e passava a maior parte do seu tempo no jardim e no campo. Tinha um extraordinário poder de atração que todos sentiam. A gente sempre ficava ao redor dele. Os ministros e as pessoas da corte costumavam rodeá-lo e também as crianças sent:am devoção por ele. Quando tinha apenas treze ou catorze anos ficou famo~o pela sua erud;ção. . . Quando Bahá'u'lláh tinha vinte e dois anos de idade, seu pai faleceu e o governo qu!s que ele o sucedesse no min:,='ério, como era costume na Pérsia. Porém, Bahá'u'lláh não ace tou o rargo. Então., disse o primeíro-nrnistro: "Deixem-no! Um cargo como esse é indigno dele. Ele tem em v;sta alguma meta mais elevada Não o compreendo, porém estou convencido de que está des-tinado para alguma carre ra sublime. Seus pensamentos não são como os n^ sos Deixem-no só!" Bahá'u'lláh and the New Era", p.p. 29 30).

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"Vinte e oito". A ansiedade com que Mullá Husayn me inter-rogava e a sensação de deleite com que acolhia cada detalhe que lhe dava causaram-me grande surpresa. Virando-se para mim, com a face radiante de satisfação e júbilo, fez ainda outra pergunta: "Suponho que freqüentemente te encontras com Ele" "Muitas vezes O visito em Sua casa", respondi. "Po-derias perguntou-me, "entregar em Suas mãos um encargo meu?" "Certamente", foi minha resposta. Deu-me então um pergaminho enrolado num pano e me pediu que lho entre-gasse no dia seguinte na hora do alvorecer. "Caso Ele se digne a me responder", acrescentou, "terias a bondade de me transmitir Sua resposta? Recebi dele o pergaminho e ao romper da alvorada me levantei para levar a cabo seu desejo.

"Ao me aproximar da casa de Bahã'u'lláh, reconheci Seu irmão, Mírzá Musa, em pé no portão, a quem comuni-quei o objetivo de minha visita. Entrou em casa e logo rea-pareceu, trazendo uma mensagem de boas-vindas. Fui con-duzido a Sua presença e entreguei o pergaminho a Mírzá Músá, que o apresentou a Bahá'u'lláh. Ele nos mandou sentar. Desdobrando o pergaminho, olhou rapidamente seu conteúdo e principiou a ler em voz alta certas passagens. Eu me sentia extasiado enquanto escutava o som de Sua voz e a doçura de sua melodia. Após haver uma página do pergaminho lida, virou-se para o irmão e assim falou: "Musa, que tens a dizer? Em verdade digo, quem crê no Alcorão e lhe reconhece a origem Divina, e no entanto hesita, ainda que seja por apenas Um momento, em admitir que estas palavras comovedoras estejam dotadas do mesmo poder regenerador, errou seguramente em seu juízo e se desviou para longe do caminho da justiça". Nada mais disse. Ao me despedir de Sua presença, incumbiu-me de levar a Mullá Husayn, como um presente d'Ele, um pão de açúcar russo e um pacote de chá,10 e lhe expressar Sua apreciação e amor.

"Levantei-me e com grande contentamento me apressei em voltar a Mullá Husayn e lhe entregar o presente e a men-

10 0 chá e a variedade de açúcar mencionados eram muito es-cassos na Pérsia naquela época, ambas eram usados como presentes pelas classes mais elevadas da população.

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sagem de Bahá'u'lláh. Com que júbilo e exultação ele os recebeu de mim! Faltam-me palavras para descrever a inten-sidade de sua emoção. Em um instante se pôs em pé, cur-vando a cabeça ao receber de minha mão o presente e o beijando fervorosamente. Tomou-me então em seus braços, beijando-me os olhos e disse: "Meu muito querido amigo! Oro que assim como me tens regozijado o coração, Deus te conceda felicidade eterna e inunde teu coração de contenta-mento imperecível". Maravilhei-me com o procedimento de Mullá Husayn. Qual poderia ser, pensei comigo, a natureza do laço que une estas duas almas? Que poderia ter acendido tão fervoroso espírito fraternal em seus corações? Por que Mullá Husayn, a cujos olhos a pompa e a circunstância da realeza eram uma simples bagatela, havia mostrado tama-nha alegria ao ver um presente tão insignificante das mãos de Bahá'u'lláh? Causou-me perplexidade este pensamento e não lhe pude desvendar o mistério.

Poucos dias depois, Mullá Husayn partiu para Khurá-sán. Ao se despedir, disse-me: "Não relates a ninguém o que ouviste e testemunhaste. Deixa isto ser um segredo ocul-to em teu peito. Não reveles Seu Nome, pois aqueles que lhe invejam a posição se levantarão para lhe causar dano. Em teus momentos de meditação, ora para que o Todo-Po-deroso O proteja, de modo a enaltecer, por Seu intermédio, os espezinhados, a enriquecer os pobres e redimir os caídos, O segredo das coisas está oculto de nossos olhos. Nosso é o dever de levantar a chamada do Novo Dia e proclamar a todos esta Mensagem Divina. São muitas as almas que, nesta cidade, haverão de derramar seu sangue nesta senda. Esse sangue regará a Árvore de Deus, fazendo com que ela flores-ça e abrigue à sua sombra toda a humanidade".

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CAPÍTULO V A VIAGEM DE BAHÁ'U'LLÁH A MÁZINDARÁN

A primeira viagem que Bahá'u'lláh empreendeu com o fim de promover a Revelação anunciada pelo Báb foi à Sua casa ancestral em Núr, na província de Mázindarán. Partiu em direção a Tákur, patrimônio pessoal de Seu pai, onde havia uma vasta mansão de Sua propriedade, regiamente mobiliada e em excelente localização. Poi privilégio meu ouvir o próprio Baha'u'lláh um dia relatar o seguinte: "O falecido Vizír, Meu pai, fruía a mais invejável posição entre seus conterrâneos. Sua enorme riqueza, sua nobre linhagem, suas aptidões artísticas, seu prestígio sem igual e sua ele-vada posição fizeram-no objeto da admiração de todos os que o conheciam. Por um período de mais de vinte anos, ninguém do largo círculo de sua família e parentes, o qual se estendia por Núr e Teerã, sofreu aflição, qualquer mal ou doença. Desfrutavam, durante longo e ininterrupto pe-ríodo, bênçãos ricas e diversas. De súbito, porém, esta pros-peridade e glória cederam diante de uma série de calami-dades que abalaram severamente as bases de seu bem-estar material. O primeiro prejuízo que sofreu foi ocasionado por uma grande inundação que nasceu nas montanhas de Má zíndarán, varreu com violência extrema a aldeia de Tákur e destruiu completamente a metade da mansão do Vizír, si-tuada acima da fortaleza dessa aldeia. A melhor parte da casa, que fora notável pela solidez de seus alicerces, foi to-talmente demolida pela fúria da torrente- estrondante. Fo-ram destruídos os preciosos objetos da mobília; sua esme-

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rada ornamentação foi irreparavelmente arruinada. Breve se seguiu a perda de vários postos de Estado que o Vizír ocupava devido aos repetidos assaltos dirigidos contra ele por seus adversários invejosos. A despeito desta repentina mu-dança de sorte, o Vizír manteve sua dignidade e calma, na medida de seus limitados recursos, continuou seus atos de benevolência e caridade. Para com seus associados infiéis, não deixou de mostrar aquela mesma cortesia e bondade que haviam caracterizado suas relações com seus semelhan-tes. Com esplêndida fortaleza, até a última hora de sua vida, lutou com ás adversidades que tão penosamente sobre ele pesavam".

Já havia Bahá'u'lláh, antes da declaração do Báb, visi-tado o distrito de Núr, numa época em que o célebre muj-tahid Mírzá Muhammad-Taqíy-i-Núrí estava no auge de sua autoridade e influência. Tão eminente era sua posição que aqueles que se sentavam a seus pés se consideravam, cada qual, o autorizado expoente da fé e lei do Islã. O muj-tahid, dirigindo a palavra a um grupo de mais de duzentos desses discípulos, discorria largamente sobre uma passagem obscura das exposições atribuídas aos imames, quando Ba-há'u'lláh, seguido por alguns de seus companheiros, por aí passou e se deteve por um momento para escutar seu dis-curso. O mujtahid pediu a seus discípulos que elucidassem uma teoria abstrusa que se referia aos aspectos metafísicos dos ensinamentos islâmicos. Como todos confessaram sua incapacidade de explicá-la, Bahá'u'lláh sentiu-se impelido a dar, em linguagem breve mas convincente, uma exposição lúcida dessa teoria. O mujtahid aborreceu-se muito diante da incompetência de seus discípulos. "Há anos vos estou instruindo", exclamou iradamente, "e com paciência tenho me esforçado por instilar em vossas mentes as mais pro-fundas verdades e os mais nobres princípios da Fé. No en-tanto, após todos esses anos de persistente estudo, deixais este jovem, que usa o Kuláh,1 que jamais recebeu ensino

1 O kuláh chapéu feito de pele de cordeiro, servia para dis-tinguir os sacerdotes dos leigos, e sempre era usado pelos oficiais do Estado

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douto e desconhece completamente vossa erudição acadê-mica, demonstrar superioridade sobre vós!"

Mais tarde, quando Bahá'u'lláh havia partido, o mujta-hid relatou a seus discípulos dois de seus sonhos recen-tes, cujas circunstâncias ele acreditava ser da maior signi-ficação. "Em meu primeiro sonho", disse ele, "estava eu em pé em meio a uma vasta assembléia de pessoas, e todas pareciam apontar uma certa casa na qual, diziam, morava o Sáhibu'z-Zamán. Com frenética alegria, apressei-me em meu sonho a atingir Sua presença. Quando alcancei a casa, para grande surpresa minha, me foi recusado acesso. 'O pro-metido Qá'im, informaram-me, 'está ocupado em conversação privada com outra Pessoa. Acesso a eles é estritamente proi-bido.' Dos guardas em pé ao lado da porta, inferi que essa Pessoa não era outra senão Bahá'u'lláh!

"Em meu segundo sonho", continuava o mujtahid, "en-contrei-me num lugar onde vi ao meu redor grande número de cofres, cada um dos quais, foi afirmado, pertencia a Bahá'u'lláh. Quando os abri, verifiquei que estavam cheios de livros. Cada palavra e letra anotadas nesses livros estava engastadas com as mais raras jóias. Seu fulgor deslumbrou-me. Tão fortemente seu brilho me dominou que subitamen-te despertei de meu sonho."

Quando, no ano 60, Bahá'u'lláh chegou em Núr, des-cobriu que o célebre mujtahid, que na ocasião de Sua visita anterior exercia tão imenso poder, havia falecido. O vasto número de seus devotos havia se reduzido a uns poucos discípulos desalentados que, sob a direção de seu sucessor, Mullá Muhammad, se esforçavam para sustentar as tradi-ções de seu falecido líder. A entusiástica acolhida que se fez a Bahá'u'lláh quando veio estava em vivido contraste com as trevas que cercaram aqueles que restavam da comunidade outrora florescente. Grande número dos ofi-ciais e dignitários naquela vizinhança veio visitá-Lo e, com todo sinal de afeto e respeito, lhe deu boas-vindas de modo digno. Estavam ansiosos, em vista da posição social que Ele ocupava, de receber dEle todas as notícias referen-tes à vida do xá, às atividades de seus ministros e aos as-suntos de seu governo. A suas perguntas Bahá'u'lláh res-

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pondeu com indiferença extrema, parecendo mostrar muito pouco interesse ou preocupação. Com eloqüência persuasiva, defendeu a causa da nova Revelação e dirigiu sua atenção aos imensuráveis benefícios que estava destinada a conferir a seu país.2 Os que O ouviam maravilharam-se do vivo interesse que um homem de Sua posição e idade mostrava por verdades que eram primariamente assuntos para os sa-cerdotes e teólogos do islã. Sentiam-se impotentes para de-safiar a solidez de Seus argumentos ou menosprezar a Causa que Ele tão habilmente expunha. Admiraram o alto grau de Seu entusiasmo e a profundidade de Seus pensa-mentos e muito lhes impressionaram Seu desprendimento e abnegação.

Ninguém se atreveu a contradizer Seus pontos de vista, exceto Seu tio Ázíz, que se aventurou a se opor, desafiando Suas afirmações e lhe vilipendiando a verdade. Quando aqueles que o ouviram tentaram silenciar este oponente e lhe causar dano, Bahá'ulláh interveio em seu favor e lhes aconselhou que o deixassem nas mãos de Deus. Alarmado, ele buscou o apoio do mujtahid de Núr, Mullá Muhammad, e solicitou que lhe prestasse ajuda imediata, "õ vice-regente do Profeta de Deus!", disse. "Vede o que aconteceu a fé. Um jovem, um leigo, usando vestes da nobreza, veio a Núr, in-vadiu às cidadelas da ortodoxia e desmoronou a santa Fé do Islã. Levantai-vos e resisti a sua investida. Quem atinge a sua presença cai de imediato sob seu encanto e é subju-gado pelo poder de suas palavras. Não sei se é feiticeiro, ou se mistura em seu chá alguma substância misteriosa que faz com que todo homem que o beba caia vítima de seu encan-to." O mujtahid, não obstante sua própria falta de compre-ensão, pode compreender a insensatez de tais observações. Jocosamente perguntou: "Não tendes compartilhado seu chá e o ouvido discorrer a seus companheiros?" "Sim, tenho", respondeu, "mas graças a vossa amorosa proteção tenho

2 "Sua oratória (de BaháVlláh) era como uma "corrente im-petuosa'' e a clareza de seus argumentos fazia com que os sacerdotes mais eruditos se sentassem para escutá-lo." (Dr. T. K. Cheyne The Reconciliation of Races and Religions, p. 120).

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me mantido imune ao efeito de seu misterioso poder." O mujtahid, vendo-se impotente diante da tarefa de instigar a população contra Bahá'u'lláh e de combater diretamente as idéias que tão poderoso adversário estava difundindo com tamanha intrepidez, contentou-se com uma declaração escri-ta na qual disse: "õ Azíz, não temais, ninguém se atreverá a molestar-vos". Ao escrevê-la, o mujtahid por um erro gra-matical, a tal ponto perverteu o propósito de sua declara-ção que os que a leram, entre os dignatários da aldeia de Tákur, se escandalizaram com seu significado e vilipendia-ram tanto o portador como o autor dessa declaração.

Aqueles que atingiram a presença de Bahá'u'lláh e O ouviram expor a Mensagem proclamada pelo Báb ficaram tão impressionados com o fervor de Seu apelo que imedia-tamente se levantaram para disseminar essa Mensagem en-tre o povo de Núr e louvar as virtudes de seu distinguido Promotor. Os discípulos de Mullá Muhammad, entrementes, tentaram persuadir seu mestre a seguir para Tákur, a visi-tar Bahá'u'lláh em pessoa, verificar por Seu intermédio a natureza desta nova Revelação e esclarecer a seus seguido-res a respeito do caráter e propósito desta Revelação. À sua veemente solicitação o mujtahid deu uma resposta eva-siva. Seus discípulos, entretanto, recusaram admitir a vali-dade das objeções que fez. Argüiram que a primeira obri-gação que se impunha a um homem de sua posição, cuja função era preservar a integridade do Islã xiita, era investi-gar a natureza de todo movimento que tendia a afetar os interesses de sua Fé. Mullá Muhammad decidiu finalmente delegar dois de seus lugar-tenentes de maior destaque, am-bos genros e fidedignos discípulos do falecido mujtahid, Mírzá Muhammad Taqí, para visitar Bahá'u'lláh e determi-nar o verdadeiro caráter da Mensagem por Ele trazida. Com-prometeu-se a sancionar, sem reservas, quaisquer conclusões a que pudessem chegar e a reconhecer como final sua de-cisão em tal assunto.

Quando esses representantes de Mullá Muhammad che-garam em Tákur, sendo informados de que Bahá'u'lláh havia partido para Sua residência de inverno, decidiram ir a esse lugar. Ao chegarem, encontraram Bahá'u'llãh ocupa-

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do em revelar um comentário sobre a Sura com que come-ça o Alcorão, intitulada "Os Sete Versos de Repetição". En-quanto escutavam, sentados, Seu discurso, sentiram-se profundamente impressionados pela elevação do tema, pela eloqüência persuasiva que caracterizava sua apresentação, bem como pela maneira extraordinária em que o expunha. Mullá 'Abbás, não podendo se conter, levantou-se de seu lugar e, movido por um impulso a que não podia resistir, an-dou para trás e ficou imóvel ao lado da porta, em atitude de reverente submissão. O encanto do discurso que ouvia o fascinara. "Vês meu estado", disse ao companheiro, en-quanto permanecia em pé, tremendo de emoção e com os olhos cheios de lágrimas. "Sinto-me sem o poder de fazer uma pergunta a Bahá'u'lláh. As perguntas que tencionava apresentar de súbito se desvaneceram de minha memória. Estás livre, seja para prosseguir com tua investigação ou regressar sozinho ao nosso instrutor e lhe informar do es-tado no qual me encontro. Dize-lhe por mim que 'Abbás jamais poderá voltar a ele, que não mais poderá abandonar este limiar." Mírzá Abdu'1-Qásim igualmente, impelido a se-guir o exemplo de seu companheiro, disse em resposta: "Deixei de reconhecer meu mestre. Neste momento mesmo, fiz a Deus um voto de dedicar os dias restantes de minha vida ao serviço de Bahá'u'lláh, meu verdadeiro e único Mestre".

A notícia da repentina conversão dos emissários esco-lhidos do mujtahid de Núr espalhou-se com espantosa ra-pidez por todo o distrito. Despertou o povo de sua letargia. Dignitários eclesiásticos, oficiais de Estado, comerciantes e camponeses, todos se apinharam à residência de Bahá'u' lláh. Dentre eles, um número considerável, espontaneamen-te, esposou Sua Causa. Em sua admiração por Ele, alguns dos mais distinguidos observaram: "Vemos como o povo de Núr se tem levantado e reunido em torno de vós. Testemu-nhamos por todos os lados evidências de sua exultaçao. Se também Mullá Muhammad se unisse a eles, o triunfo dessa Fé se-HR, completamente assegurado". "Vim a Núr", respon-deu Bahá'u'lláh, "somente com o propósito de proclamar a Causa de Deus. Não nutro outra intenção. Se me fosse dito

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que a uma distância de cem léguas alguém com ânsia bus-cava a Verdade e não podia vir Me ver, com satisfação e sem hesitar Me apressaria em ir a sua morada, e Eu Mesmo lhe saciaria a sede. Mullá Muhammad, dizem-Me, mora em Sa'ádat-Átaád, uma aldeia não muito distante daqui. É Meu propósito visitá-lo e lhe entregar a Mensagem de Deus."

Desejoso de cumprir Suas palavras, Bahá'u'fláh, acom-panhado por alguns de Seus companheiros, prosseguiu de imediato em direção a essa aldeia. Mullá Muhammad rece-beu-O muito cerimoniosamente. "Não vim a esse lugar", observou Bahá'u'lláh, "a fim de vos fazer uma visita oficial ou formal. É Meu desígnio esclarecer-vos a respeito de uma Mensagem nova e maravilhosa, divinamente inspirada e que cumpre a promessa que ao Islã se fez. Qualquer um que tenha inclinado o ouvido a esta Mensagem tem sentido seu poder irresistível, sendo transformado pela potência de sua graça. Dizei-Me o que torna perplexa vossa mente ou vos impede de reconhecer a Verdade." Mullá Muhammad com desapreço respondeu: "Nenhuma ação empreendo sem pri-meiro consultar o Alcorão. Invariavelmente, em tais ocasi-ões, tenho seguido a prática de invocar a ajuda de Deus e Suas bênçãos, abrindo ao acaso Seu Livro Sagrado e con-sultando o primeiro versículo daquela página que meus olhos avistam. Da natureza desse versículo posso julgar se é aconselhável e sábio o curso de ação que tenho em mira". Vendo que Bahá'u'lláh não estava inclinado a recusar seu pedido, o mujtahid mandou trazer um exemplar do Alcorão, abriu-o e de novo o fechou, recusando revelar aos presentes a natureza do versículo. Disse apenas: "Consultei o Livro de Deus e creio que não é aconselhável seguir adiante com este assunto". Alguns poucos concordaram com ele; os ou-tros, na maioria, não deixaram de reconhecer o medo que essas palavras implicavam. Bahá'u'lláh, não se inclinando a lhe causar maior embaraço, levantou-se e, pedindo licença, despediu-se dele cordialmente.

Certo dia, durante um de Seus passeios eqüestres no campo, com Seus companheiros, Bahá'u'lláh viu sentado ao lado da estrada um jovem solitário. Tinha o cabelo desgre-nhado e se vestia como dervixe. Junto de um riacho havia

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ele acendido uma chama, onde estava cozinhando e comendo seu alimento. Aproximando-se dele, Bahá'u'lláh muito cari-nhosamente inquiriu: "Dize-Me, dervixe, que é que estás fazendo?" "Estou ocupado em comer Deus", replicou brus-camente. "Estou cozinhando Deus e queimando-o. A sim-plicidade de seus modos, sem afetação, e a candura de sua resposta agradaram extremamente a Bahá'u'lláh. Sorriu ao ouvir suas palavras e começou a conversar com ele com grande ternura e inteira liberdade. Dentro de pouco tempo havia Bahá'u'lláh o transformado completamente. Esclareci-do a respeito da verdadeira natureza de Deus e com a mente purificada da vã fantasia de seu próprio povo, reconheceu de imediato a Luz que esse Desconhecido amoroso tão ines-peradamente lhe trouxera. Esse dervixe, cujo nome era Mustafá, a tal ponto se enamorou dos ensinamentos que lhe haviam sido incutidos na mente que, deixando atrás os uten-sílios de cozinha, se levantou imediatamente e seguiu Bahá'u'lláh. A pé, atrás de Seu cavalo, incendiado com a chama de Seu amor, entoou alegremente versos de uma canção de amor que compusera nesse momento e dedicara ao seu Bem-Amado. "Tu és o Sol de guia", dizia seu jubiloso estribi-Iho. "Tu és a Luz da verdade. Remove Teu véu ante os ho-mens, ó Revelador da Verdade." Se bem que em anos subse-qüentes, esse poema tivesse uma extensa circulação entre seu povo e se soubesse que certo dervixe, cognominado Maj-dhúb, cujo nome era Mustafá Big-i-Sanandají, o havia com-posto, sem premeditação, em louvor de seu Bem-Amado, nin-guém parecia perceber a quem realmente se referia, tam-pouco havia quem suspeitasse, numa época em que Ba-há'u'lláh estava ainda velado dos olhos dos homens, que so-mente este dervixe havia reconhecido Sua posição e des-coberto Sua glória.

A visita de Bahá'u'lláh a Núr havia produzido resulta-dos de vasto alcance e dado um ímpeto extraordinário à di-fusão da Revelação recém-nascida. Com Sua eloqüência mag-nética, pela pureza de Sua vida, pela dignidade de Seu por-te, pela incontestável lógica de Seu argumento e pelas nu-merosas evidências de Sua bondade, havia Bahá'u'lláh con-quistado os corações do povo de Núr, comovido suas almas

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e as alistado sob o estandarte da Fé. Tal foi o efeito de Suas palavras e ações, enquanto ia era toda parte pregando a Causa e revelando sua glória aos Seus conterrâneos em Núr, que as próprias pedras e árvores desse distrito pareciam haver sido vivificadas pelas ondas de poder espiritual que emanavam de Sua pessoa. Todas as coisas pareciam estar dotadas de uma vida nova e mais abundante; todas as coi-sas pareciam estar proclamando em voz alta: "Eis, a Beleza de Deus tornou-se manifesta! Levantai-vos, pois Ele veio em toda a Sua glória". O povo de Núr, após haver Bahá'u'lláh partido do seu meio, continuou a propagar a Causa e a con-solidar seus alicerces. Alguns deles suportaram as mais se-veras aflições por Sua causa; outros sorveram com alegria o cálice do martírio em Sua senda. Mázindarán, em geral, e Núr, em especial, foram assim distinguidos das outras pro-víncias e distritos da Pérsia, por serem os primeiros a abra-çar com fervor a Mensagem Divina. O distrito de Núr — que significa literalmente "luz" — encaixado dentro das monta-nhas de Mázindarán, foi o primeiro a captar os raios do Sol que nascera em Shíráz, o primeiro a proclamar ao resto da Pérsia, que ainda jazia envolto na sombra do vale da negligên-cia, que o Sol da guia celestial se havia levantado, por fim, para aquecer e iluminar toda a Terra.

Quando Bahá'u'lláh era ainda criança, o Vizir, Seu pai, teve um sonho. Bahá'u'lláh apareceu diante dele, nadando num oceano vasto, ilimitado. Seu corpo reluzia sobre as águas com um brilho que iluminava o mar. Em volta de Sua cabeça, a qual se via nitidamente acima das águas, se ir-radiavam em todas as direções os anéis compridos de Seu cabelo preto de azeviche, flutuando em grande profusão so-bre as ondas. No sonho, uma multidão de peixes aglomera-va-se em torno dEle, segurando-se cada um à extremidade de um fio de cabelo. Fascinados pela fulgência de Sua face. seguiam-No na direção em que Ele nadasse. Embora fossem tão numerosos, e tão tenazmente se apegassem aos Seus ca-belos, nem um só fio parecia ter sido tirado de Sua cabeça, nem o menor dano atingia Sua pessoa. Livre e sem estorvo, Ele se movia sobre as águas e todos O seguiam.

O Vizir, profundamente impressionado por esse sonho, chamou um adivinho que havia adquirido fama nessa região

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e lhe pediu que o interpretasse para ele. Esse homem, como que inspirado por uma premonição da futura glória de Bahá' u'lláh, declarou: "O oceano ilimitado que vistes em vosso sonho, ó Vizír, não é senão o mundo do ser. Sozinho e sem ajuda, vosso filho atingirá sobre este ascendência supre-ma. Aonde quer que lhe apraza, Ele caminhará sem encon-trar obstáculo. Ninguém haverá de lhe resistir à marcha, ninguém lhe impedirá o progresso. A multidão de peixes significa o tumulto que provocará entre os povos e raças da Terra. Em torno dEle se reunirão e a Ele se apegarão. Sendo-lhe assegurada a infalível proteção do Todo-Poderoso, jamais esse tumulto há de causar dano a Sua pessoa, nem Sua solidão no mar da vida porá em perigo Sua segurança".

Esse adivinho foi levado mais tarde para ver Bahá'u' lláh. Observou com atenção Seu rosto e cuidadosamente examinou Suas feições. Encantado com Sua aparência, elo-giou cada aspecto de Seu semblante. Cada expressão de Sua face revelava a seus olhos um sinal de Sua glória oculta. Tão grande foi sua admiração e tão profusos seus elogios a Bahá'u'lláh que o Vizír, desde aquele dia, se tornou ainda mais apaixonadamente devotado ao Filho. As palavras pro-nunciadas por esse adivinho serviram para fortalecer suas esperanças e sua confiança nEle. Da mesma forma como Jacó só desejava assegurar o bem-estar de seu bem-amado José e rodeá-Lo de sua amorosa proteção.

Hájí Mírzá Áqásí, o Grão-Vizir de Muhammad Xá, em-bora completamente alienado do pai de Bahá'u'lláh, mos-trou a seu filho muitos sinais de consideração e favor. Tão grande era a estima que o Hájí lhe professava, que Mírzá Áqá Khán-i-Núrí, o 1'timádu'd-Dawlih, que mais tarde su-cedeu a Hájí Mírzá Áqásí, sentia inveja. Ressentia-se da su-perioridade que se concedia a Bahá'u'lláh, ainda tão jovem. As sementes do ciúme, desde esse tempo, foram implantadas em seu coração. Embora ainda jovem, e enquanto seu pai está vivo, pensava ele, lhe é dada precedência perante o Grão-Vizír. Que me acontecerá, pergunto eu, quando esse jovem tiver sucedido ao pai?

Após o falecimento do Vizír, Hájí Mírzá Áqásí continuou a mostrar a maior consideração para Bahá'u'lláh. Visitava-O em Sua casa, dirigindo-se a Ele como se fosse seu próprio

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filho. A sinceridade de sua devoção, porém, foi logo posta em prova. Num dia, ao passar pela aldeia de Qúch-Hisár, que pertencia a Bahá'u'lláh, tanto se impressionou com o encanto e a beleza desse lugar e com a abundância de sua água que concebeu a idéia de se tornar seu dono. Bahá'u' Iláh, a quem ele chamou para consentir a compra imediata dessa aldeia, observou: "Tivesse essa propriedade sido ex-clusivamente minha, de boa vontade haveria eu satisfeito vosso desejo. Esta vida transitória, com todas as suas pos-sesões sórdidas, não merece, a meus olhos, nenhum ape-go, quanto menos esta pequena e insignificante propriedade. Como várias outras pessoas tanto ricas quanto pobres, algu-mas adultas e outras ainda menores — comigo compartilham a possessão dessa propriedade, pediria que a elas referísseis esta questão, procurando seu consentimento". Não satisfeito com esta resposta, Hájí Mírzá Áqásí tentou por meios frau-dulentos alcançar seu propósito. Logo que Bahá'u'lláh foi informado de suas más intenções, Ele, com o consentimen-to de todos os interessados, imediatamente transferiu o títu-lo da propriedade ao nome da irmã de Muhammad Xá, que já repetidas vezes havia expressado seu desejo de se tornar sua proprietária. O Hájí, furioso ao saber dessa transação, deu ordens para que se tomasse posse da propriedade à força, alegando que já a havia comprado de seu dono origi-nal. Os representantes de Hájí Mírzá Áqásí foram severa-mente repreendidos pelos agentes da irmã do Xã e foram requisitados para informar seu mestre da determinação da-quela senhora de manter seus direitos. O Hájí levou o caso a Muhammad Xá, queixando-se do tratamento injusto ao qual fora sujeitado. Naquela mesma noite havia a irmã do Xá lhe informado da natureza da transação. "Muitas vezes", ela disse a seu irmão, "Vossa Majestade Imperial amavel-mente tem-me dado a entender seu desejo de que me des-fizesse das jóias com as quais costumo adornar-me em sua presença e comprasse com o rendimento alguma proprieda-de. Finalmente consegui satisfazer seu desejo. Hájí Mírzá Áqásí, porém, está de todo determinado a tirá-la de mim à força." O xá tranqüilizou sua irmã e ao Hájí ordenou que desistisse de sua pretensão. Este, em seu desespero, chamou Bahá'u'lláh à sua presença e por meio de todos os artifícios

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Page 178: Os Rompedores da Alvorada Vol. I, parte 1

tentou desacreditar Seu nome. Às acusações contra Ele, Ba-há'u'lláh replicou vigorosamente e conseguiu estabelecer Sua inocência. Em sua fúria fútil, o Grão-Vizir exclamou: "Qual o propósito de todas essas festas e banquetes nos quais pare-ceis vos deleitar? Eu, que sou primeiro-ministro do xáinxá da Pérsia, nunca recebo o número e a variedade de convida-dos que se amontoam ao redor de vossa mesa todas as noites. Por que toda essa extravagância e vaidade? Deveis seguramente estar tramando um complô contra mim". "Deus Misericordioso!", respondeu Bahá'u'lláh. "Deverá o homem que, da generosidade de seu coração, compartilha seu pão com seus semelhantes ser acusado de nutrir intenções cri-minosas?" Hájí Mírzá Áqásí viu-se totalmente confuso. Não se atreveu a responder. Embora apoiado pelo conjunto dos poderes eclesiásticos e civis da Pérsia, ele se viu, afinal, com-pletamente derrotado em cada luta na qual se aventurou contra Bahá'u'lláh.

Em outras numerosas oportunidades, a ascendência de Bahá'u'lláh sobre Seus adversários foi igualmente vindicada e reconhecida. Esses triunfos pessoais conseguidos por Ele serviram para Lhe realçar a posição e difundir largamente Sua fama. Todas as classes de pessoas maravilharam-se de Seu êxito milagroso em sair incólume dos mais perigosos encontros. Nada menos que a proteção divina, pensavam, poderia haver mantido Sua segurança em tais ocasiões. Em-bora cercado pelos mais graves perigos, nenhuma só vez se submeteu Bahá'u'lláh ante a arrogância, a avareza e a per-fídia daqueles a Seu redor. Em Sua constante associação, nesses dias, com os mais altos dignitários do reino, quer eclesiásticos ou oficiais de Estado, Ele nunca se contentou em simplesmente anuir às opiniões por eles expressas ou às pretensões que avançavam. Em suas reuniões, era Ele o intrépido campeão da causa da verdade, vindicando os di-reitos dos espezinhados, defendendo os fracos e protegendo os inocentes.

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