Os processos de midiatização da cozinha paulista: do arraial à ...

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI LUCIA HELENA SOARES DE LIMA OS PROCESSOS DE MIDIATIZAÇÃO DA COZINHA PAULISTA: do Arraial à metrópole SÃO PAULO 2011

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

LUCIA HELENA SOARES DE LIMA

OS PROCESSOS DE MIDIATIZAÇÃO DA COZINHA

PAULISTA: do Arraial à metrópole

SÃO PAULO

2011

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LUCIA HELENA SOARES DE LIMA

OS PROCESSOS DE MIDIATIZAÇÃO DA COZINHA

PAULISTA: do Arraial à metrópole

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr. Gelson Santana

SÃO PAULO

2011

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L698p Lima, Lucia Helena Soares de Os processos de midiatização da cozinha paulista: do arraial à Metrópole / Lucia Helena Soares de Lima. – 2011. 143f.: il.; 30 cm.

Orientador: Gelson Santana Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Universidade

Anhembi Morumbi, São Paulo, 2011. Bibliografia: f.127-135.

1. Comunicação. 2. Midiatização. 3. Cozinha paulista.

4. Cultura alimentar. 5. Modernização. 6. Rádio. 7. Televisão. 8. Processos. I. Título.

CDD 302.2

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LUCIA HELENA SOARES DE LIMA

OS PROCESSOS DE MIDIATIZAÇÃO DA COZINHA

PAULISTA: do Arraial à metrópole

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr. Gelson Santana

Aprovado em ----/-----/-----

Prof. Dr. Gelson Santana

Profª. Drª. Maria Ignês Carlos Magno

Prof. Dr. João Luiz Maximo

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Dedicatória

Aos meus santos protetores São Benedito (padroeiro dos cozinheiros) e Nossa

Senhora Aparecida (padroeira do Brasil)!

À minha bisavó, D. Quinoca que tirou de seu tabuleiro de doces o sustento de seus

filhos, deixando seu legado como herança no imaginário da nossa família!

Ao meu pai, Seu Soares, e D. Izinha, minha mãe, que me incentivaram a estudar

sempre!

Aos meus filhos Rodrigo e Marcos por acreditarem nos meus sonhos!

A meu marido Luis Paravati, paulistano, neto de imigrantes que me ensinou, desde

os nossos primeiros encontros, a amar a sua São Paulo, incondicionalmente...

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Agradecimentos

Agradeço a todos os meus colegas de turma os tantos momentos felizes,

emocionantes e inesquecíveis que compartilhamos, em especial a Adriana

Fernandes, Armando Filho, Sandro Pavão e Roberto Mellão.

Agradeço também a Alessandra Marota pela paciência, dedicação e ternura para

conosco, nosso verdadeiro anjo da guarda no Mestrado em Comunicação.

Quero agradecer ainda a cada um de nossos mestres: a Prof. Bernadette Lyra pelos

meus primeiros traços e laços com a comunicação; a Prof. Laura Cánepa e ao Prof.

André Gatti por nos guiarem pelas trajetórias e fitas de cinema.

E por fim, gostaria de agradecer ao Prof. Gelson Santana, meu querido orientador e

mestre, o grande maestro dessa saborosa orquestra polifônica.

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“[...] meu Anhangabaú das lavadeiras, nem o teu leito ressequido existe!

Que é de ti, afinal? Onde te esgueiras? Para que vargens novas te partistes?

Sepultaram-te os filhos dos teus filhos; E ergueram sobre tua sepultura

Novos padrões de glórias e de brilhos...”

Mario de Andrade

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RESUMO

Essa dissertação tem por objetivo investigar os modos como a cozinha paulista foi

se transformando ao longo do século XX. Para tanto, trabalha com a assimilação de

novos sabores e fazeres a que foi submetida no decorrer das décadas do século

passado, através dos processos de urbanização. Bem como a interferência das

tecnologias tanto urbanas quanto sociais na produção de pratos e na reconstrução

dos sabores da cozinha do arraial. Neste sentido leva em conta a influência das

mídias em todo o processo de mudança da matriz alimentar paulista. Não deixamos

de observar que mesmo com essas mudanças a base primária da cultura alimentar

paulista manteve-se em muitos dos seus aspectos originais. Muito daquilo que

denominamos de cozinha paulista sofreu diferentes tipos de influência ao longo das

transformações urbanas que a cidade de São Paulo registrou durante esse período.

Estas influências vêm marcadas com novos procedimentos e experiências com

produtos industrializados. Todo esse processo de passagem dos modos de

produção colonial para formas de produção industrial inventaram processos e

mecanismos que se acoplaram à invenção de uma urbanidade paulista multi-

cultural. Por isso, alguns dos procedimentos que levantamos ao longo da pesquisa

trafegam por diferentes técnicas de produção. Assim, é na relação entre diferentes

técnicas e diferentes estratégias de apresentação midiática que se consolida um

olhar mediado da cozinha paulista. Essa relação se dá tanto nas formas de

apresentação das receitas, e/ou pratos, quanto na instituição de novos hábitos

alimentares que passam por uma atualização dos referenciais do gosto.

Observamos ainda que não é só um olhar que se institui, mas também os

procedimentos em torno da cozinha ganharam um caráter espetacular.

PALAVRAS CHAVE: Midiatização. Cozinha Paulista. Cultura Alimentar.

Modernizaçao. Radio. Televisão. Processos.

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ABSTRACT

The purpose of this paper is to investigate the ways how the paulista cooking

transformed itself little by little in the course of the twentieth century. To do it this

paper works with the thesis that the paulista cooking absorbed new tastes and new

ways of cooking to which it was submitted in the course of decades in the last

century, in the process of urbanization, as well as the interference of both urban and

social technologies in the production of new dishes and in the reconstruction of

tastes of the provincial cooking. In this respect, it takes into consideration the

influence of the social media in the whole process of change in the basic feeding of

the paulista population. However it is to be noted that in spite of those changes, the

primary basis of the paulista feeding culture maintained many of its original aspects.

A great part of what we call today the paulista cooking suffered different kinds of

influences in the course of the transformations that the city of Sao Paulo underwent

during this period of time. Those influences brought new procedures and

experiments with industrialized products. All this process of moving from the colonial

way to the industrialized forms of production brought new processes and systems

that resulted in a multicultural city. That is why some of the procedures we found all

along our researches include different techniques of production. Therefore, it is in the

relation between different techniques and different ways of presentation by the media

that we have the media look on the paulista cooking, both in the presentation of

recipes or dishes and in the creation of new feeding habits and also in the updating

of taste references. We would say that it is not only a media look that was introduced

in the paulista cooking but that its procedures have acquired a spectacular character.

KEY WORD: Media Coverage; Paulista Cooking; Food Culture; Modernization Radio;

Television; Processes.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................... 13

1. Das dimensões temporais e espaciais da cozinha paulista 17

1.1. Até o final do século XIX: a cozinha da necessidade ......................... 18

1.1.1. A cultura rústica alimentar paulista ........................................... 19

1.1.2. O espaço da cozinha .............................................................. 26

1.2. Do final do Século XIX até 1930: Um caldeirão de misturas ............. 29

1.2.1. A modernização da cozinha ..................................................... 32

1.2.2. A fixação de novos hábitos ...................................................... 36

1.2.3. O processo de urbanização: as ruas e o comércio -

restaurantes e a paulatina transformação da cidade................

40

1.2.4. A cultura paulista e o mito da paulistanidade........................... 45

1.2.5. O processo de industrialização................................................. 48

1.3. Depois de 1930: a contaminação da cozinha pelas mídias............... 52

1.3.1. As transformações na preparação do alimento: a

convergência do Gosto............................................................. 55

1.3.2. A emergência de uma identidade urbana ................................ 62

1.3.3. A identidade da metrópole........................................................ 65

1.3.4. A reelaboração do caipira......................................................... 67

2. Das dimensões sociais do modo de ser e do redimensionamento

das representações.................................................................................

70

2.1. O ―bom gosto‖ como um novo conceito............................................. 75

2.1.1. Uma socialização dos sentidos............................................... 81

2.2. A transformação da estética tradicional em poética da emoção ...... 85

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2.2.1. A Semana de Arte Moderna como efeito da metrópole........ 90

2.3. Um jeito urbano de olhar a comida ................................................... 95

2.3.1. Passagens da domesticidade à globalidade........................... 101

3. A midiatização da cozinha como processo social .............................. 105

3.1. Os novos comeres da cozinha contemporânea ................................ 107

3.1.1. Os comeres domésticos e públicos ....................................... 109

3.2. Os caminhos para uma cozinha científica ........................................ 112

3.2.1. A cozinha científica paulistana como movimento

gastronômico............................................................................ 116

3.2.2. A atualização da cozinha regional .......................................... 118

3.3. A cozinha das celebridades na TV................................................ 121

CONCLUSÃO ..................................................................................................... 126

REFERENCIAS .................................................................................................. 129

ANEXOS.............................................................................................................. 138

GLOSSÁRIO ....................................................................................................... 146

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Panela de pressão Clock ...................................................................... 39

Figura 2 – Receitas para panela de pressão ......................................................... 40

Figura 3 – Foto da Confeitaria Castelões ............................................................... 43

Figura 4 – Fogão a gás .......................................................................................... 56

Figura 5 – Livrinho do Liquidificador Arno .............................................................. 58

Figura 6 – Eletroportáteis Walita ............................................................................ 59

Figura 7 – Receitas do Livrinho da Arno ................................................................ 60

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INTRODUÇÃO

Conheci São Paulo e Rio como presente de aniversário dos meus quinze

anos, em 1969. Naquela época, na minha cidade, Mossoró, essa data era

comemorada com uma festa inesquecível seguida do sonhado baile de debutantes.

Troquei tudo por essa viagem.

Fiquei encantada com o cosmopolitismo de São Paulo daquele tempo: o

frêmito de suas ruas, as curvas dos viadutos, a majestosa verticalização da cidade.

O Mappin com suas gôndolas de infindáveis produtos, cuja maioria eu não fazia a

menor idéia para que serviriam. E a comida... era maravilhosa, mas também

totalmente estranha e nova para mim, como a pompa do menu francês servido no

gueridon no Terraço Itália culminando com um espetáculo do maitre na preparação

de ―bananes flambées‖ diante do nosso olhar incrédulo. Ou as massas de textura

firme e recheio delicado acompanhadas de molhos deliciosos servidas no ambiente

alegre e festivo das cantinas italianas do Bexiga.

Em 2004 quando surgiu a oportunidade de vir trabalhar em São Paulo, eu já

trouxe na bagagem muito carinho e curiosidade por sua cultura, tantas vezes tema

das longas conversas com meu marido, um paulistano apaixonado por sua terra,

exilado por algum tempo em Natal. Ano a ano nossas peregrinações pelos sebos e

livrarias da cidade foram nos rendendo aquisições de livros especiais que se

transformariam no referencial teórico para essa pesquisa, até que encontrei na

Bienal paulista de 2009, o livro recém lançado de João Luiz Maximo da Silva,

Cozinha Modelo que considero o ponto de partida para esta pesquisa porque foi a

partir dele que localizei a cozinha como o meu espaço de estudo.

Através de filmes e leituras fui percebendo, no mestrado, que o modelo de

modernização paulista tão intenso e repentino foi pioneiro no país, seguido em

dimensões reduzidas e de diferentes formas pelas demais cidades, por isso decidi

estudá-lo.

Neste sentido, São Paulo, mais do que qualquer outra cidade brasileira viveu

um intenso processo de transformação a partir do final do século XIX. Os processos

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de urbanização, industrialização e midiatização da cidade contribuíram para a

transformação da cozinha paulistana em um caldeirão antropofágico de sabores e

fazeres, determinando sua escalada, nos últimos anos, para um lugar de destaque

entre as maiores metrópoles gastronômicas do mundo. Com um repertório tão

diversificado e paradoxal, a cidade ostenta também o título de capital brasileira da

gastronomia contabilizando, em 2009, cerca de doze mil e quinhentos restaurantes.

Dessa forma, esse estudo se orienta já no primeiro capítulo pelo processo

histórico identificando três dimensões temporais nítidas do desenvolvimento da

história de São Paulo responsáveis pelas grandes mudanças ocorridas na cozinha

paulistana entre o final do século XIX até os nossos dias. Caracterizado por uma

temporalidade própria na construção do tecido urbano, o processo de transformação

da cidade vai desencadear uma mudança profunda no espaço da cozinha, foco

desta pesquisa.

Primeiramente, observa-se o abandono gradativo das características de uma

cozinha rural, sujeita aos ciclos da natureza e marcada pela necessidade de

produção doméstica de equipamentos e utensílios, bem como do cultivo e

beneficiamento dos alimentos para assumir características urbanas alavancadas

pelo apogeu da economia do café. Deve-se observar que a abolição da escravidão

também influenciou profundamente esse período porque tornou impossível a

sobrevivência nos casarões das fazendas onde toda estrutura de funcionamento

dependia da mão de obra escrava. Foram esses dois fatores: a riqueza do café e a

libertação dos escravos que demandaram a necessidade da imigração européia.

Aos poucos a urbanização da cidade foi sendo construída apoiada na

chegada das primeiras fábricas para atender necessidades novas, dando origem a

uma sociabilidade de muitos sotaques, tipificando atitudes e sentimentos desse

espaço comum como um reflexo dos diferentes imaginários oriundos de diversas

nacionalidades. Uma sociedade emergente baseada no modelo europeu pode ser

considerada responsável pela elevação do conceito de civilidade graças à paulatina

e abrangente mudança dos hábitos alimentares, do comportamento à mesa e do

ritual de relações humanas desenvolvidos durante esse período.

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A partir da década de 1930, essa escalada para a modernidade ganhou um

grande aliado nos lares – o rádio, cujas emissoras chamadas na época de rádios

clubes e rádios sociedades tinham como objetivo difundir informações, cultura,

educação e ciência. Porém, foi com a chegada ao Brasil de fabricantes estrangeiros

como a Philips e a Philco que o rádio se popularizou e passou a ter uma participação

cada vez maior na vida doméstica ao reunir toda a família em torno dele. Essa nova

sociabilidade doméstica, pautada na oralidade, reforçada pelos apelos publicitários

veiculados pelas programações das rádios autorizados em 1932, e as

transformações impulsionadas por essa nova ideologia compõem a segunda

dimensão temporal desse estudo.

A terceira dimensão temporal é representada pelo resultado das mudanças

ocorridas no espaço da cozinha, após a invasão de equipamentos que acabaram

transformando a produção do alimento e abreviando seu próprio tempo de preparo,

reforçada pela oferta da matéria-prima industrializada, ou até mesmo da própria

comida pronta congelada. Com a abertura do governo Fernando Henrique, a

globalização gerou a possibilidade de escolha de inúmeros sabores e métodos

propiciando o multiculturalismo alimentar fomentado pelo mercado de alimentos

próprio da cultura capitalista propagando novos gostos através da expansão dos

restaurantes étnicos contribuindo para o estabelecimento de uma outra relação com

a comida – a de prazer.

No segundo momento, esse estudo aborda a cozinha paulistana sob o ponto

de vista estético, baseado na constatação de um redimensionamento das

representações sociais do modo de ser observado através da evolução e da

padronização do gosto com a emergência do culto à gastronomia, iniciado na França

na segunda metade do século XVII e mediado pelos livros de culinária. A

instauração de uma indústria cultural e sua relação com a produção de bens

simbólicos, depois da Revolução Industrial, leva posteriormente à reorganização

das sociabilidades a partir da cultura midiática que representa o fio condutor desse

capítulo.

O terceiro capítulo compreende o estágio atual de massificação da cozinha

paulista, massificação esta provocada pela contaminação dela pelos processos de

midiatização. Estes processos forjados pela cultura do capital em detrimento de seus

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contornos simbólicos como a perda de seu espaço original e de sua autonomia,

determinam o desligamento da comida de sua função social de necessidade de

sobrevivência para se transformar em prazer e entretenimento.

Por fim, será abordada a substituição do fazer culinário pela prática das

cozinhas industriais e da indústria química alimentar conquistada pelos avanços da

ciência e das novas tecnologias. Esta abordagem salienta a passagem do ambiente

doméstico da cozinha para o laboratório como o novo espaço paradigmático da

transformação da comida contemporânea.

Nesta pesquisa, as sociabilidades do gosto se destacam como um viés

narrativo que parte de uma função prática no primeiro capítulo, durante a cozinha da

necessidade, floresce e ganha contornos do bom gosto francês no segundo capitulo,

para se homogeneizar graças a uma dimensão espetacular e pela transformação

dos mercados locais em globais, no último capítulo.

O papel decisivo das mídias como instrumento de convergência de condutas

e preferências, desde os processos de urbanização até as estratégias de

midiatização da culinária urbana paulista, além de efetivar o gosto flutuante através

do contrato entre ciência e mídia, vai reinscrever os sabores locais no espaço da

globalidade. A nossa percepção deste movimento histórico-social sustenta o título

desta pesquisa: ―Os processos de midiatização da cozinha paulista: do arraial à

metrópole‖.

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1. DAS DIMENSÕES TEMPORAIS E ESPACIAIS DA COZINHA PAULISTA

―Calai silenciosos que, em meu peito, enjaulo! Esta paisagem que daqui se avista,

a terra pode ainda ser São Paulo, mas a gente deixou de ser paulista.‖

Ibraim Nobre

A passagem da vida rural da pacata cidade para uma São Paulo que se

industrializa e se urbaniza criou uma nova domesticidade urbana e organizou

paulatinamente as camadas sociais e as mentalidades públicas o que gerou novos

espaços de sociabilidade e inventou um comportamento público novo.

A classe burguesa se estabeleceu como a primeira classe urbana,

acostumada a viver entre o Brasil e a Europa tinha acesso às idéias da modernidade

que propunha novos valores de consumo, inerente ao processo de industrialização.

Por outro lado, a oferta de trabalho nas lavouras de café, atraiu imigrantes de vários

países, sobretudo italianos e, posteriormente, japoneses. Muitos desses italianos se

estabeleceram na cidade trabalhando nas fábricas ou no comércio, prestando

serviços, abrindo pequenos negócios contribuindo para o desenvolvimento de uma

infra-estrutura urbana enquanto os japoneses se fixaram mais na agricultura. O

comércio ambulante também se renovou com a oferta de novos produtos e serviços.

Como as tradições brasileiras se apoiavam na forte cultura oral facilitou a

adaptação dos imigrantes, alguns analfabetos, criando novos encaixes e abarcando

os diferentes imaginários, o que determinou uma acoplagem do imaginário original

do estrangeiro com o imaginário local reorganizando o modo de ser do paulistano.

Na cultura de um modo geral e, sobretudo, na cultura alimentar pode-se dizer

que houve uma degeneração de velhos padrões com a ruptura de parâmetros

vivenciados no passado, e a adoção do consumo como o novo referencial da

população.

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1.1. Até o final do século XIX: a cozinha da necessidade

―Comendo içá, comendo cambuquira,

Vive a afamada gente paulistana, A mesma a quem chamei de caipira,

Que não parece ser da raça humana.” Francisco José Pinheiro Guimarães

A alimentação é considerada um recurso vital por excelência, uma

necessidade básica inadiável que tal qual a respiração, a fome suscita de satisfação

constante como uma condição de vida, e de uma organização social capaz de supri-

la. É a alimentação que vai imprimir um caráter seqüencial de continuidade

ininterrupta entre as relações do grupo com o meio, ao mesmo tempo em que

representa também um vínculo entre ambos. Segundo Antonio Candido:

Ela é de certo modo um vínculo entre ambos, um dos fatores de solidariedade profunda, e, na medida em que consiste numa incorporação ao homem de elementos extraídos da Natureza, é o seu primeiro e mais constante mediador, lógica e por certo historicamente anterior à técnica (CANDIDO, 1975, p. 28).

De acordo com o autor, o meio natural se apresenta inicialmente como um

grande celeiro em potencial que deverá ser utilizado de acordo com as

possibilidades de intervenção do grupo que seleciona e transforma, por exemplo,

animais e plantas em alimentos, elementos que em si, sob o ponto de vista da

cultura e da sociedade, não o são. Assim, o meio emerge como um projeto humano

tanto no sentido do grupo projetar suas necessidades sobre ele, como também

desse grupo se planejar em função dele, originando o que Marx chamaria de

construção da cultura. Isto significa dizer que a obtenção de comida, bem como a

definição e elaboração de uma dieta alimentar dependem de uma técnica de viver

inerente à cultura da qual a alimentação faz parte, e, assume tamanha importância

que se torna capaz de explicar a vida social do grupo. Isto porque como cerne deste

complexo cultural, a alimentação abrange atos, normas, símbolos e representações,

além de percorrer, em sua cadeia para obtenção de comida, uma vasta gama de

instituições sociais que vão desde o esforço físico ao rito.

No entanto, à medida que as fontes de abastecimento alimentar vão-se modificando ou ampliando – como ocorre em todo processo civilizatório – vamos assistindo a transformações radicais na estrutura

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e função da caça. (...) O animal, que antes era uma espécie de comparsa antagônico num drama, alvo de solicitações, propiciações, verdadeiros entendimentos em que o homem se incorpora ao mundo natural, passa agora a integrar uma realidade diferente, a que o homem se opõe. As novas fontes de abastecimento levaram a uma rearticulação do meio, em que a posição do alimento é outra (CANDIDO, 1975, p. 30).

O estudo da alimentação à luz da Sociologia e da Antropologia se manifesta,

sobretudo, através de pesquisas sobre sociedades rústicas, insistindo nas técnicas

de obtenção de alimentos, critérios de distribuição, chamando a atenção para os

vínculos sociais correlatos, suas representações e seu sistema simbólico. Já entre a

Sociologia propriamente dita e a Economia as pesquisas se voltam para os níveis de

vida a partir de um olhar econômico e estatístico, focando uma totalidade numérica

decomposta em tabelas, índices e orçamentos que abarcam grandes regiões.

1.1.1. A cultura rústica alimentar paulista

Candido (1975) desenvolveu um estudo, entre 1948 e 1954, a partir de

investigações realizadas no município paulista de Bofete buscando compreender os

diversos aspectos da cultura rústica1 (caipira), adotando como base a realidade

econômica. Segundo ele, a acentuada incorporação dos diversos tipos étnicos que

compõem a cultura rústica paulistana resultou em um processo de acaipiramento ou

acaipiração. Nesse estudo, ele parte do principio de que a existência de um grupo

social só é possível graças ao equilíbrio das necessidades do grupo com os

recursos do meio físico, tendo como ponto de partida o número e a qualidade de

soluções encontradas no meio (caráter natural), para a satisfação dessas

necessidades (caráter social):

A existência de todo grupo social pressupõe a obtenção de um equilíbrio relativo entre as suas necessidades e os recursos do meio físico, requerendo da parte do grupo, soluções mais ou menos adequadas e completas, das quais depende a eficácia e a própria natureza daquele equilíbrio. As soluções, por sua vez dependem da

1 Para CANDIDO o termo rústico, não designa rural, rude ou tosco, embora os englobe, mas pretende

se referir às culturas camponesas. Rústico se traduz aqui por caboclo – cultura cabocla – como o resultado étnico do mestiço próximo ou remoto de branco e índio, base da população tradicional de São Paulo. E, caipira, para designar os aspectos culturais, embora seja um termo restrito à área de influência histórica paulista. (CANDIDO, 1975, p. 21,22)

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quantidade e qualidade das necessidades a serem satisfeitas. São estas, portanto, o verdadeiro ponto de partida... (CANDIDO, 1975, p.23).

Esse mesmo pensamento ampliado deve ser estabelecido para as

sociedades, onde conclui que sua evolução depende do surgimento e da satisfação

constante, portanto, da renovação multiplicada dessas necessidades cuja satisfação

corresponde ao encontro de recursos (iniciativas humanas) sempre renovados e

multiplicados que vão alterar o meio tornando-o, com o tempo, reflexo da ação do

homem. O espaço de tempo como duração social é incorporado à história dos

grupos evidenciando os diferentes aspectos das solidariedades entre essas duas

oposições obliteradas. Por sua vez, a incorporação do espaço à sociedade se dá por

intermédio do trabalho e da técnica, vetores da constante transformação capaz de

definir etapas de evolução e de poder conceber um mundo sensível que totaliza a

atividade sensível e viva dos indivíduos.

Candido (1975), portanto, compreende a vida social a partir da satisfação das

necessidades baseado na recusa de Marx em aceitar a solidariedade

(idealismo/materialismo mecânico) da dicotomia homem-natureza para compreendê-

la à luz do desenvolvimento histórico, como partes integrantes do mesmo processo

dialético, ou seja, tudo ciência da História, mas História da Natureza e História dos

Homens. É dessa forma que o autor mostra:

(...) de um lado, que a obtenção dos meios de subsistência é cumulativa e relativa ao equipamento técnico; de outro, que ela não pode ser considerada apenas do ângulo natural, como operação para satisfazer o organismo, mas deve ser também encarada do ângulo social, como forma organizada de atividade (CANDIDO, Op. cit., p. 24).

Sob o prisma sociológico, segundo Candido (1975), a produção dos meios de

subsistência deixa de ser considerada apenas uma reprodução da existência física

dos indivíduos para ser identificada como uma espécie determinada de sua atividade

ou uma manifestação do seu modo de vida, ou seja, é colocada como um ―fato

social da organização no âmago da discussão dos problemas de subsistência‖

(CANDIDO, 1975, p. 24). Concluindo, o autor afirma que para cada grupo a

obtenção de equilíbrio entre essas duas forças (necessidades e recursos do meio)

está dividida (equacionada) entre dois tipos de organização: a busca de solução

para explorar o meio a fim de obter recursos de subsistência e, o estabelecimento de

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uma organização social compatível com elas. Trata-se, portanto, de uma fórmula de

equilíbrio onde ele percebe a existência de um limite mínimo social e vital para cada

cultura, em um determinado momento, que garante a regularidade das relações

humanas, usada nas sociedades civilizadas em situações de mudança e com

sentido comparativo.

Assim, os meios de subsistência de um grupo não podem ser compreendidos separadamente do conjunto das ‗reações culturais‘ desenvolvidas sob o estímulo das ‗necessidades básicas (CANDIDO, Op. cit, p. 28).

Candido (1975) estabelece como ponto de partida de seu estudo sobre a

formação da sociedade caipira tradicional paulista a natureza de seu povoamento,

destacando a atividade nômade do bandeirantismo com sua economia seminômade

responsável pela dieta e pelo caráter do paulista, como um determinado tipo de

sociabilidade caracterizada por suas formas particulares de ocupação do solo e de

se relacionar com o grupo. A fusão da herança portuguesa com o índio é apontada

por ele como a base desse processo de acomodações sucessivas nesse estudo,

análise reforçada por Holanda apud Candido:

Para a análise histórica das influências que podem transformar os modos de vida de uma sociedade é preciso nunca perder de vista a presença, no interior do corpo social, de fatores que ajudam a admitir ou a rejeitar a intrusão de hábitos, condutas, técnicas e instituições estranhas à sua herança de cultura. Longe de representarem aglomerados inânimes e aluviais, sem defesa contra sugestões ou imposições externas, as sociedades, inclusive e, sobretudo entre povos naturais, dispõem normalmente de forças seletivas que agem em benefício de sua unidade orgânica, preservando-as de tudo quanto possa transformar essa unidade. Ou modificando as novas aquisições até o ponto em que se integrem na estrutura tradicional (HOLANDA apud CANDIDO, 1975, p. 36, 37).

Desde a sua fundação em 1554 até a implantação da Academia de Direito em

1828 a cidade de São Paulo era de acordo com Bruno (1984), um ―arraial de

sertanistas‖ marcado por um relativo isolamento caracterizado pela falta de contato

com a Metrópole e pelo desprezo da Coroa portuguesa graças a sua localização de

difícil acesso e ao tipo de economia praticada.

Sobre a inacessibilidade Anchieta em sua Informação de 1585, descreve:

A quarta vila da Capitania de São Vicente é Piratininga, que está dez a doze léguas pelo sertão e terra a dentro. Vão lá por umas serras tão

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altas que dificultosamente podem subir nenhuns animais, e os homens sobem com trabalho e às vezes de gatinhas por não despenharem-se, e por ser o caminho tão mau e ter ruim serventia padecem os moradores e os nossos grandes trabalhos (ANCHIETA apud BRUNO, 1984, p. 38).

Ainda no século XVI, enquanto as capitanias do norte eram bem servidas de

bons tecidos e os homens andavam tão bem vestidos que se aproximavam do

padrão europeu, Fernão Cardim relata que a situação de São Paulo era diferente

―por falta de navios‖ (CARDIM apud BRUNO, 1984, p. 39) os paulistas não recebiam

nem mercadorias nem panos. As condições econômicas da pequena Piratininga, de

acordo com Capistrano de Abreu, não favoreciam a abertura de caminhos melhores

que ligassem o interior com o litoral da capitania, uma vez que se limitaria a oferecer

um pouco de ouro e os índios apreendidos pelas bandeiras. Sendo assim, os

bandeirantes ‖movendo-se pelo próprio pé, dispensavam conduções dispendiosas‖

(ABREU apud BRUNO, 1984, p. 39). Baseado em um escritor anônimo de 1690,

Capistrano de Abreu traçou um retrato da situação dos paulistas como ―homens

capazes para penetrar todos os sertões, por onde andavam continuamente, sem

mais sustento que caças do mato, bichos, cobras, lagartos, frutas bravas e raízes de

vários paus, pelo hábito que tinham dessa vida‖ (ABREU apud BRUNO, 1984, p.

41). Ainda sobre o planalto de Piratininga Capistrano escreve: ―Sob aquela latitude,

naquela altitude fora possível uma lavoura semi-européia, de alguns, se não de

todos os cereais e frutas da península. Ao contrário o meio agiu como evaporador:

os paulistas lançaram-se bandeirantes‖ (ABREU apud BRUNO, 1984, p. 45).

A maior pobreza da sociedade do planalto, nas palavras de um observador

registrado por Auguste de Saint-Hilaire estava relacionada com a ausência dos

homens na cidade porque enquanto os paulistas se lançavam longe de sua terra

―suas lavouras ficavam abandonadas, seus rebanhos se dispersavam, suas

propriedades se arruinavam [...] e sua terra natal entrava em decadência‖ (SAINT-

HILAIRE, 1976, p. 28).

Para Candido (1975), o caráter nômade da vida social do caipira paulista, o

provisório da aventura vivido até o século XVIII estava condicionado à assimilação e

preservação de sua origem nômade caracterizada por uma estrutura instável

dependente da mobilidade do grupo e voltada para uma economia pautada pelas

práticas de presa e coleta. Para exprimir esse caráter de pouco e por ter que se

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adaptar a uma vida de escassez é que sua habitação chamava-se rancho e não

passava de um abrigo de pau-a-pique coberto de palha. A efemeridade da duração

dessas moradias também chamou a atenção do autor como a escolha do caipira

preservada até os nossos dias com suas técnicas de construção rudimentares.

Outra característica da rudeza da cultura caipira era a tradição de ser ele mesmo o

produtor de quase tudo para sua subsistência desde tecer o fio de algodão para o

camisolão aos chapéus de junco, da pólvora à iluminação, da produção de melado e

rapadura aos instrumentos usados no beneficiamento e no preparo de alimentos

como moenda, moinhos de água, fornos de barro, monjolos, tachos, gamelas, e

formas, pote de barro, colher de pau.

Sergio Buarque de Holanda (2005) reforça que apesar do grau de

transigência dos colonos brancos ser superior ao do gentio da terra, houve uma

acomodação da dieta alimentar dos indígenas como resultado de um intenso esforço

de adaptação às condições materiais e climáticas que contribuíram para a energia e

resistência – qualidades que caracterizam o povo paulista. Segundo ele foi ―a fome

companheira constante da aventura‖ (HOLANDA, 2005, p. 56) que acabou impondo

esse gênero de vida ao paulista, sobretudo, durante a entrada nos sertões ou em

períodos de ―excessiva penúria‖ (HOLANDA, Op. cit.) por absoluta falta de opção e

pela facilidade e garantia da domesticação alimentar indígena. Segundo ele:

Quando sujeito a condições semelhantes, o próprio europeu, para sobreviver, devia acolher esses recursos e aceitar, em muitos casos, as mesmas técnicas e ardis inventados pelo gentio. Não só de cobras e outros bichos que rastejam, mas ainda de sapos, ratos, raízes de guariba e guareá, grelos de samambaia, sustentava-se o viandante perdido em sertões de escasso mantimento, os ‗sertões famintos‘ de que falam alguns roteiros. Ou em ocasiões de excessiva penúria, como logo após os descobrimentos nas minas gerais, onde o alqueire de milho foi a trinta e quarenta oitavas e o feijão a vinte, sendo tal a necessidade dos moradores, que ‗se aprouveitárão dos mais imundos animais [...] (HOLANDA, 2005, p. 56)

No entanto, ainda segundo Holanda (2005), os tempos de fartura também

foram marcados pelo exotismo dos pratos apetecidos como jacarés, lagartos e a içá

torrada que conseguiu se urbanizar quase tão completamente como a mandioca, o

feijão, o milho e a pimenta, graças a uma possível disseminação do gosto pelos

jesuítas com o propósito de defender a lavoura da praga das saúvas.

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Como ―prato de bugres‖ (HOLANDA, Idem, p. 57) a içá torrada aparentou o

colonizador do colono e se fez presente durante os séculos XVIII e XIX, pelos meses

de setembro e outubro, nas mesas rurais e paulistanas ou nos tabuleiros das negras

quitandeiras da cidade como saborosa iguaria. Ainda em 1903, o próprio Monteiro

Lobato se deleitava e recomendava em carta a Godofredo Rangel a içá torrada - seu

‗Bezuquet‘ - que considerava a ambrosia do Olimpo grego (CAMARGOS &

SACCHETTA, 2008. p. 12). Abandonado pelas famílias ditas honradas, esse hábito

sobrevive ainda hoje por algumas cozinhas do interior do Estado.

O bicho-de-taquara, outro acepipe indígena, também serviu de alimento aos

colonizadores em sua dieta habitual bem como inúmeras variedades de palmito,

pinhões da araucária e frutas nativas como: jabuticaba, araçá, pitanga, grumixama e

cambuci, algumas variedades de araticum, e jataí, entre outras. Os pinhões muitas

vezes foram a farinha do paulista em substituição à mandioca e sua presença era

tão marcante que o gentio chamava de ―ibá‖2 - a fruta do outono que também recebia

deles o mesmo nome.

Entretanto, para CANDIDO (1975) a dieta básica do sertanejo paulista e as

especificidades de seu preparo e modo de comer deve muito à exigência da

plantação de roças de milho, feijão, mandioca, banana entre outros, pela trilha dos

primeiros desbravadores, publicada no Regimento de Castelo-Branco, de 1707,

visando garantir a subsistência dos colonizadores que por ali passassem.

De acordo com J.J. Machado D‘Oliveira3 foi a partir do século XVIII, no

governo do Morgado de Mateus que a agricultura se estabeleceu como uma

ocupação central amenizando os costumes vigentes do caipira. Plantavam

basicamente roças de feijão, mandioca e milho. Sua ração correspondia a porções

mínimas para garantir o sustento a exemplo dos sertanistas, e às vezes tinham

acesso a leite, carne salgada ou seca e toucinho. CANDIDO registra alguns

alimentos utilizados largamente a partir desse triângulo básico da alimentação

caipira paulista.

2 Expressão usada por Holanda 2005, p. 38

3 (D‘OLIVEIRA apud CANDIDO, 1975, p. 42)

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A mandioca era, por antonomásia, o mantimento, e o milho, a roça. Mais rudes de cultivar que o feijão, admitiam além disso uma série de transformações e empregos que este não comportava. Em São Paulo e área de influência, sobretudo o milho. Verde, come-se na espiga, assado ou cozido; em pamonhas; em mingaus; em bolos, puros (curaus) ou confeccionados com outros ingredientes. Seco, come-se como pipoca, quirera, canjica; moído fornece os dois tipos de fubá, grosso e mimoso, base de quase toda a culinária de forno entre os caipiras, inclusive vários biscoitos, o bolão, bolinhos, broas, numa ubiqüidade só inferior à do trigo; pilado, fornece a farinha e o beiju, não esquecendo o seu papel na alimentação dos animais (CANDIDO, 1975, p. 42).

Paula Pinto e Silva (2005) afirma que o cultivo do milho no sertão além de ter

sido favorecido pelas condições do clima e do solo também se deveu à assimilação

das técnicas de preparo simples empregadas pelos nativos e por sua adequação a

uma vida rústica e itinerante, ao que HOLANDA (2005) aponta como o pouco

espaço que os grãos de milho ocupavam no transporte dos sertanistas, e a

brevidade de sua colheita entre cinco e seis meses após o plantio, o que denominou

de ―civilização do milho‖4:

É característico da acolhida ordinariamente dispensada entre gente da terra – índios, mestiços, brancos aclimados – aos métodos e recursos adventícios no aproveitamento de produtos nativos, que a preferência para o milho de técnicas associadas ao Velho Mundo ao tratamento do trigo não afetou, tanto quanto poderia se esperar, os hábitos alimentícios da população. A preferência geral continuou a dirigir-se, não para o milho moído ou fubá, que se destinava, em geral, aos escravos, mas para o grão pilado ou apenas pelado ao pilão, de acordo com os métodos usuais entre os índios (HOLANDA, 2005, p. 181).

Outros alimentos faziam parte da dieta do paulista com menor freqüência:

abóbora, cará, batata doce e mangarito, além de hortaliças que se aclimataram aqui

com facilidade: couve, chicória e serralha. A pimenta (indígena) foi o principal

condimento e o sal que representou o fator de sociabilidade intergrupal graças à

necessidade de sua obtenção fora do grupo. As frutas do mato: jabuticabas,

goiabas, pitangas, araticuns, bananas, etc. e os palmitos doces ou guariroba

permaneceram no sistema de coleta. A caça considerada atividade caipira por

excelência, consistia na maior fonte de obtenção de carne. De herança indígena,

exigia conhecimento dos hábitos dos animais e técnicas precisas de captura e

4 (HOLANDA, 2005, p. 181)

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morte. As principais aves do mato caçadas eram macuco e nhambus e dos animais:

pacas, cotias, quatis, porco-do-mato, etc. e à beira da água, a capivara. Também

nos campo, brejos e lagoas se caçava codorna e perdiz, saracura, marrecos e patos,

veados, lagartos e tatus.

Segundo Candido (1975):

No caso brasileiro, rústico se traduz praticamente por caboclo no uso dos estudiosos, tendo provavelmente Emilio Willems o primeiro a utilizar de modo coerente a expressão ‘cultura cabocla‘; e com efeito aquele termo exprime as modalidades étnicas e culturais do referido contato do português com o novo meio. (...) no presente trabalho o termo caboclo é utilizado apenas no primeiro sentido, designando o mestiço próximo ou remoto de branco e índio, que em São Paulo forma a maioria da população tradicional (CANDIDO, 1975, p. 22),

Para o autor (1975) o sentido da palavra rústico empregada em seu estudo

não significa rural porque estaria se referindo apenas a uma localização, nem tosco

nem rude, embora os englobe, mas deve ―exprimir um tipo social e cultural,

indicando o que é, no Brasil, o universo das culturas tradicionais do homem do

campo‖ (CANDIDO, 1975, p. 21), resultante da adaptação das transferências e

mutações sofridas pela cultura no contato do português com o índio do Novo Mundo.

Não se trata também de uma cultura isolada, mas em permanente incorporação e

reincorporação de traços que vão se alterando na relação rural-urbano.

Corresponderia, segundo o autor, ao conceito de cultura camponesa adaptado por

Redfield5 usado ―para descrever situações antes compreendidas no seu conceito

inicial, e desprovidas mais tarde de designação adequada, desde que se operou

nele a mencionada restrição‖ (CANDIDO, 1975, p. 21).

1.1.2. O espaço da cozinha

Maria Cristina Cortez Wissenbach (1998) identifica o cotidiano do

caipira/caboclo como obediente a uma temporalidade própria onde se combinavam

dois níveis de regularidade: o ciclo da natureza com as estações do ano e o ciclo

das comemorações das festas religiosas católicas. A sociabilidade do dia-a-dia era

extrapolada pelos ritos religiosos que coincidiam na maioria das vezes com o

5 REDFIELD apud CANDIDO, 1975, p. 21

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27

período da colheita, quando os devotos pagavam suas promessas aos santos com

os principais produtos de suas roças, sobretudo, o milho e o feijão. As romarias e

penitências também indicavam o momento do plantio e colheita, alterado apenas

pelos flagelos diante dos castigos dos céus.

Um estudo sobre a cozinha entre 1870-1930 realizado por João Luiz Máximo

da Silva (2008) concluiu que até meados do século XIX as casas de São Paulo eram

construídas em taipa de pilão, no padrão bandeirista, compostas de uma sala na

frente, quartos no meio, varanda nos fundos e um puxado no quintal que servia de

cozinha. As construções rurais eram idênticas. Tinham uma grande dependência do

trabalho escravo para o funcionamento dos serviços da casa, sobretudo da cozinha.

Os fogões faziam parte da estrutura da cozinha, eram feitos de pedra, barro, ferro ou

alvenaria e abastecidos com lenha cortada, facilmente obtida nos arredores da

cidade. A cozinha era escura e suja e abrigava os trabalhos pesados e

sanguinolentos desde a matança de animais, como o beneficiamento dos víveres a

serem consumidos pela família como o preparo do fubá e da mandioca para

obtenção de farinha, a cocção do caldo de cana até se transformar em melaço e

depois em açúcar, o processamento do sal etc., limpeza e produção de alimentos e

estocagem. (SILVA, 2008)

Nesse trecho do livro dá para se ter uma idéia da casa desse período:

A máquina brasileira de morar ao mesmo tempo da Colônia e do Império dependia dessa mistura de bicho e de gente que era o escravo. Se os casarões remanescentes do tempo antigo parecem inabitáveis devido ao desconforto, é porque o negro está ausente. Era ele que fazia a casa funcionar: havia negro para tudo, desde negrinhos sempre à mão para recados, até negra velha, babá. O negro era esgoto, era água corrente no quarto, quente e fria: era interruptor de luz e botão de campainha, o negro tapava goteira e subia vidraça pesada, era o lavador automático, abanava que nem ventilador‖ (LEMOS apud SILVA, 2008, p. 141).

Silva (2008) ainda chama a atenção para a presença da carne de porco,

sobretudo, do toucinho, e da carne seca nas refeições parcas e frugais desse

período.

Rosa Maria Belluzzo (2008) recorda que o paulista utilizava nessa época o

pilão, tachos, sertãs de cobre e de ferro, chocolateiras, pratos e copos de estanho

de herança portuguesa, bem como cultivava hortas e pomares, e criava animais

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domésticos. Segundo ela, grande número de utensílios de cozinha ainda era de

origem indígena. No cardápio, o paulista preferia leitão assado e frango, mas não

dispensava o feijão com farinha de mandioca ou de milho. No tempo de abóbora,

comia-se quibebe e cambuquira com sopa de milho verde, e se preparava doces de

frutas da estação como goiaba, marmelo, pêssego e figo de tachadas que eram

guardados em caixetas para o ano todo. E, nos dias festivos era oferecido arroz-

doce, manjar branco e rabanadas.

Jamile Japur (1963) registra a presença freqüente à mesa de pinhão cozido, o

hábito de comer carne de vaca afogada ou assada, cuscuz de camarão de água

doce ou bagre, moqueca de piquira, pamonha, curau, canjica6, bolos de milho

socado ou de mandioca puba, pastéis de farinha de milho ou de trigo, empadas de

lambari ou piquira, paçoca e quindungo de amendoim, doces de batata, tarecos e

sequilhos. Bebia-se chá, aguardente de cana, melado, vinhos ibéricos, gengibirra e

caramuru. Já a ração do escravo compunha-se de fubá, feijão, canjica, carne seca,

toucinho e abóbora.

De acordo com Japur pelas ruas de São Paulo negras de tabuleiro vendiam:

(..) içá torrada, biscoitos de polvilho, pé-de-moleque, furrundum, cuscuz de bagre, pinhão quente, batata assada,, cará cozido, empadas de farinha de milho com piquira ou lambari, tigelinhas de café (...) Os vendedores ambulantes vendiam leite de cabra, queimados, balas de coco, pipoca, amendoim torrado, algodão de açúcar (JAPUR, 1963, p. 29).

As escravas cozinheiras tinham um profundo conhecimento sobre a matéria-

prima e suas técnicas de preparo, dos utensílios e do processamento dos alimentos,

dominando, inclusive, a temperatura do fogo. O principal papel da mulher era o de

controlar todo o trabalho realizado por escravos, coisa que fazia, na maioria das

vezes, da varanda estrategicamente sentada. Era na varanda também que a família

fazia suas refeições e se concentrava a maior parte do tempo.

6 MARINS ressalta que a popularidade da canjica no século XIX era de tal forma, que os viajantes

bávaros Spix e Martius apelidaram-na de ―comida nacional paulista‖. (MARINS, 2004, p. 135)

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1.2. Do final do Século XIX até 1930: um caldeirão de misturas

Quedê o sertão daqui? lavrador derrubou. Quedê o lavrador?

está plantando café. Quedê o café?

Moça bebeu. Mas a moça, onde está?

está em Paris. Moça feliz.

Cassiano Ricardo

A partir de 1828, São Paulo já elevado à categoria de cidade desde 1711,

passou a receber numerosos estudantes vindos de diversas cidades do país

transformando-se no que Ernani Silva Bruno (1984) chamou de ―burgo de

estudantes‖ graças à instalação da Academia de Direito, o que alterou

profundamente a existência da cidade observada na abertura de novas ruas para a

edificação de novas casas, pelo surgimento de repúblicas, pensões e cafés,

determinando sua missão de núcleo urbano e seu destaque como centro intelectual

além de possibilitar aos moradores mais contato com os livros. Segundo Bruno

(1984):

A transformação de São Paulo, de povoação onde praticamente não havia lugar para a literatura, em centro intelectual dos mais importantes do país se deveu ainda à presença dos estudantes de Direito, sobretudo através das sociedades e revistas literárias, que foram numerosas e tiveram sua fase de apogeu em torno de 1860. Muitos estudantes desde os primeiros tempos da Academia, se tornaram em seguida figuras de projeção muito grande nas letras brasileiras, bastando lembrar que passaram pela escola de São Paulo, como se sabe, Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Fagundes Varela, José de Alencar, Castro Alves, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa (BRUNO, 1984, p. 809).

Bruno (1984) afirma que de 1828 a 1872 a cidade girou em torno do

funcionamento da Academia de Direito muito embora tenham sido abertos outros

cursos para formação profissional e escolas particulares, colégios e liceus. Os

estudantes também foram os grandes freqüentadores dos primeiros restaurantes e

confeitarias que se estabeleceram na cidade, além de doceiras que forneciam

grande variedade de doces para as festas de formatura. Os estudantes também

contribuíram para a existência do teatro na cidade com seus espetáculos, peças e

representações no Teatro Acadêmico que funcionava na antiga Casa de Ópera e

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depois de 1864, no Teatro São José cuja capacidade ficava em torno de mil e

duzentos lugares. Ainda, segundo o autor, os estudantes costumavam apresentar

concertos musicais nas noites de luar no largo de São Gonçalo além de serenatas

muitas vezes nas próprias repúblicas, apesar da música popular já dominar a cidade

e seus arredores desde o inicio do oitocentismo.

Entre 1870-1872 Bruno (1984) estabelece como o início de uma nova fase

para a cidade em virtude do reflexo de ações dos anos cinqüenta enumeradas por

Sergio Buarque de Holanda (1984):

[...] o começo do movimento regular de constituição de sociedades anônimas; a fundação do segundo Banco do Brasil; a primeira linha telegráfica; a organização do Banco Rural e Hipotecário; a primeira estrada de ferro do país (HOLANDA apud BRUNO, 1984, p. 899).

Sobretudo, a ligação da cidade com o porto de Santos e Jundiaí e a

importância que assumiu o desenvolvimento da cultura cafeeira para a economia

paulista que chegou a transformar a saca de café na unidade métrica da cidade.

Sobre as mudanças da cidade desse tempo escreveu Rodrigo Otávio em suas

memórias entre 1883 e 1886:

O progresso, com todas as exigências e preconceitos da civilização havia insensivelmente invadido a velha capital jesuítica e eliminado, de suas ruas e bairros, aspectos e perspectivas tão caros ao espírito e à saudade de tantas gerações (OTÁVIO apud BRUNO, 1984, p. 908).

Para Soraya Moura (2008) foi a partir de 1880 que teve início o processo

imigratório para São Paulo de imigrantes que vinham de diversos países fugindo da

fome, de guerras e de perseguições políticas que abateram os países europeus, no

final do século XIX, e incentivados pelos cafeicultores paulistas através de uma

política pública estatal denominada Sociedade Promotora da Imigração (1886-1896)

que regulava o processo de subvenção de ―braços para lavoura‖ visando atender a

necessidade de mão de obra para as lavouras de café, sobretudo, a partir da

abolição do cativeiro em 1888.

De acordo com Bruno (1984) o desenvolvimento da cultura cafeeira

condicionou o desenvolvimento econômico da província que transformou São Paulo

na metrópole do café. Beneficiada com a fixação de imigrantes europeus e de outros

estados, e abrigando transitoriamente, principalmente durante o inverno, famílias

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mais ou menos abastadas e de fazendeiros do interior que movimentavam a

economia com seus gastos, e acabaram contribuindo com o esplendor e a

prosperidade da cidade.

Segundo Bruno (1984):

Consciente ou inconscientemente, o governo municipal e o poder eclesiástico iam eliminando da cidade os seus aspectos e os seus costumes de feição tradicional ou provinciana mais acentuada. [...] As próprias igrejas antigas feitas de taipa segundo os rudes moldes coloniais – a de Santa Ifigênia, a de São Bento, a Sé – desapareceram para dar lugar, no começo do novecentismo, a templos edificados segundo estilos universalmente consagrados e portanto mais de acordo com a feição tanto quanto possível européia que a cidade procurava assumir = às vezes sem dúvida mediante esforço deliberado de administradores como Antonio Prado – escondendo ou eliminando qualquer traço não-europeu ou ―caipira‖ que porventura perdurasse em suas ruas, em suas casas, em seus jardins, em seus costumes (BRUNO, 1984, p. 911).

Wissenbach (1998) reforça essa preocupação com a nova estética da cidade

relatando que no último quartel do século XIX observou-se um grande e

desordenado crescimento demográfico na cidade7. Arquitetos como Ramos de

Azevedo foram responsáveis pela construção de uma nova paisagem urbana

erguendo os palacetes da elite paulistana que representaram um rompimento com o

passado, reconhecidamente atrasado, e marcaram a entrada da sociedade na

modernidade, então, vislumbrada apenas pela aparência: como um embelezamento

e limpeza da cidade e das residências.

A imigração européia para São Paulo teve um papel fundamental na

transformação das pessoas e do seu comportamento com a ascensão de novos

estilos, às vezes, conquistados pela brutalidade. Segundo Érnica (2004):

As várias heranças culturais ressurgiam na cidade moderna em fragmentos de práticas e idéias recontextualizadas e relacionados entre si. Alguns desses elementos culturais serviam para reconstruir laços de identidade e de sentimento de pertencimento a um grupo na metrópole que se formava (ÉRNICA, 2004, p.179).

7 Para Grahan e Hollanda (Migrações internas no Brasil p. 21) três causas são apontadas como

principal foco de atração dessas populações: fuga das secas, a Abolição e a dinâmica econômica do Sudeste. (GRAHAN e HOLLANDA apud WISSENBACH, 1998)

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De acordo com Heloisa Barbuy (2006):

Na arquitetura européia da Fasoli8, os jovens vestidos segundo a última moda tomavam um chope, bebida já incorporada aos hábitos paulistanos. Depois, vitrines iluminadas, à moderna, pontuavam-lhe os velhos caminhos. Esta, a cidade da transição, em que conviviam os telhadões e as paredes de barro com a inserção de vários elementos novos (BARBUY, 2006, p. 97).

A autora identifica o processamento dessa modernidade na segunda metade

do século XIX, como um vento que vem de fora, sopra suave e vai introduzindo

novos aromas e sabores sem arrancar telhados nem derrubar paredes, mas que

impregna o ambiente e muda hábitos e mentalidades sem, contudo mudar as feições

da cidade. A elite sempre sintonizada com a cultura européia era influenciada pela

leitura, pelo modo de vida e pelo ideal cosmopolita estrangeiro de modernidade,

porém também afeita à cultura caipira das fazendas e ao modelo de vida urbana que

o casario colonial na cidade proporcionava.

1.2.1. A modernização da cozinha

Para Nicolau Sevcenko (2009) a modernidade de São Paulo começou a se

revelar nos primeiros dias de 1919 por meio de uma nova sensibilidade que foi se

definindo na cidade:

A excepcionalidade desse momento e desse local põe em relevo a estranha conjunção observada entre simultaneidade de ações desconexas, incomunicabilidade de grupos, fragmentação das percepções, descontinuidade dos fluxos de trânsito pela área pública. O mostruário da Avenida Paulista exibe a substância bizarra da vocação metropolitana de São Paulo (SEVCENKO, 2009, p. 28).

Segundo ele, a própria identidade da cidade tinha sido afetada por esse

estranhamento que se impunha de forma repentina e difusa. Novos aspectos sociais

e econômicos se contrapunham ao passado que se perdia. Para o autor:

Essa cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos, tentando entendê-la como podiam, enquanto

8 Confeitaria Fasoli situada à principio na rua XV de Novembro mudando a partir de 1900 para a Rua

Direita, 5.

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33

lutavam para não serem devorados. (...) os personagens desse mundo em ebulição carecem, com urgência, de um eixo de solidez que lhe dê base, energias e um repertório capaz de impor sentidos a um meio intoleravelmente inconsciente (SEVCENKO, 2009, p. 31).

Nesse contexto, segundo Sevcenko (2009), era necessário lançar mão da

ação como ―âmago irradiador das significações na sociedade em formação‖

(SEVCENKO, Idem, p. 32) uma vez que a própria herança cultural trazida dos

séculos anteriores se tornara obsoleta, ou necessitaria de certa carga de prestígio

para se manter em circulação, ou deveria ser reelaborada de acordo com os novos

códigos. Foi assim que o imperativo da ação, como centralização da cultura, levou a

população ao papel ativo do engajamento físico como uma força coletiva capaz de

romper a rotina do cotidiano e o consenso dos hábitos e das idéias, e se nutrir da

abstinência do pensamento. De acordo com o autor:

O antigo hábito de repousar nos fins de semana se tornou um despropósito ridículo. Todos para a rua: é lá que a ação está. (...) Sob o epíteto genérico de ‗diversões‘, toda uma nova série de hábitos, físicos, sensoriais e mentais, são arduamente exercitados, concentradamente nos fins de semana, mas a rigor incorporados em doses metódicas como práticas indispensáveis da rotina cotidiana: esportes, danças, bebedeiras, tóxicos, estimulantes, competições, cinemas, shopping, desfiles de moda, chás, confeitarias, cervejarias (...) toda semana (SEVCENKO, Op. cit., p. 33).

Essa nova ordem cultural que se estabelecia, encontrou resistência por todos

os lugares onde passou, mas em São Paulo a propagação rápida e imediata diante

do pós-guerra de um ―novo homem‖ e de uma ―nova idéia‖ (SEVCENKO, Op. cit., p.

34) acabou contagiando a população de maneira crescente e irreversível. A

chamada ―onda avassaladora‖ (SEVCENKO, Op. cit., p. 36) foi um mal urbano (ou

metropolitano) que se abateu sobre a cidade em seu desenfreado processo de

metropolização.

Na busca de uma identidade para São Paulo, um resultado que o autor

considera bem-sucedido foi sugerido por Alberto Torres: a ―Babel invertida‖

(SEVCENKO, Op. cit., p. 37) que assume a raiz urbana do mito, isto é, lugar do

mundo novo representado pela cidade em seus cruzamentos raciais e os consórcios

das novas gerações com os fugitivos da Europa convulsionada que buscaram a terra

prometida onde ergueriam torres sólidas que comporiam a arquitetura das

sociedades do futuro. Portanto, de acordo com o autor: ―A São Paulo moderna

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34

nasce de um motim dos fatos contra qualquer ética da prudência e do bem-estar‖

(SEVCENKO, Op. cit., p. 41).

Uma nova arquitetura começava a ser observada nas residências, a cozinha

moderna diminuiu e estava integrada ao resto da casa. Nessa época a metrópole do

café já dispunha de todos os serviços urbanos como água encanada, gás,

eletricidade e até um fogão a gás. O trabalho doméstico passou a obedecer a uma

nova lógica pressionado por uma rígida normatização de ordem e higiene. Os

escravos haviam sido libertados e a mão de obra para o serviço doméstico ficara a

cargo de mulheres e menores que recebiam baixos salários usados na

complementação da renda da família, uma vez que os maridos também eram mal

pagos nas indústrias.

Segundo Silva (2008) o artigo 389 do Código Sanitário de 1918 que discutia

os cortiços, estabeleceu o papel da cozinha e seus equipamentos na casa: ―É

terminantemente proibido cozinhar, a não ser nas cozinhas, que deverão ser

instaladas, munidas de fogão e pias para a lavagem de louças‖ (SILVA, 2008, p.

112). O Padrão Municipal de 1920, ainda de acordo com o mesmo autor, dedicava

um item inteiro à cozinha onde indicava um padrão de área mínima em sete metros

quadrados, piso e paredes ladrilhados até um metro e meio de altura, teto gradeado

de madeira ou tela metálica ou de material incombustível e ventilação permanente.

Proibia a comunicação com quartos e latrinas e exigia a construção de chaminés.

O quintal diminuiu (assim como o espaço para o beneficiamento de

alimentos), entretanto aumentou a oferta de alimentos beneficiados. Bruno (1984)

descreve esse período como uma São Paulo ―de traços particularmente sensíveis na

transformação e no engrandecimento de suas atividades comerciais e industriais‖

(BRUNO, 1984, p.1131). Discorre sobre o crescimento do comércio ambulante de

quitandeiras de tabuleiro agora também disputado por imigrantes italianos que

negociavam flores, frutas, hortaliças, peixe e camarão trazidos de Santos, e

enriquecidos com novas modalidades como jornaleiros e engraxates, geralmente

jovens italianinhos. Eram as italianas que às vezes empurravam carros oferecendo

carvão de casa em casa pelas ruas da cidade. O velho Mercado do Tamanduateí

ganhou novos concorrentes mais especializados e elegantes e, em 1914, surgem as

feiras-livres. Aumentou também o número de quiosques em torno das estações, dos

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mercados e das pontes que vendiam de tudo. Em 1889, a Cia Carris de Ferro

contabilizava quarenta e um carros de passageiros movidos por quatrocentos e

setenta e três animais, eram bondinhos lentos e que descarrilavam a toa.

A paisagem urbana, no final do século XIX, já era composta de cafés, bares,

charutarias e cervejarias. Aparecera o Grande Hotel com seus ares de hotel europeu

e, logo se instalaram também alguns outros de mais destaque nos arredores do

Triângulo, onde surgiram casas bancárias, alguns magazines, lojas de fazendas,

armarinhos, oficinas de moda para senhoras, drogarias, barbearias, lojas de

instrumentos musicais e de ferragens e casas importadoras dentre outras coisas de

bengalas, guarda-sóis, brinquedos, louças e cristais e, sobretudo de máquinas

agrícolas. Confeitarias de luxo ocupavam o Largo do Rosário e a Rua Quinze de

Novembro contribuindo para a aristocratização das ruas centrais da cidade. Aos

poucos foram se estabelecendo nos arredores da Estação Inglesa, as primeiras

fábricas de tecidos e indústrias de chapéus, que no decorrer da Primeira Guerra

(1914-1918) ganharam impulso contribuindo para firmar o caráter industrial de

alguns subúrbios paulistanos. Segundo Paulo Rangel Pestana, em 1920 a cidade já

contabilizava oito mil e oitenta e cinco casas comerciais9.

Barbuy (2006) chama a atenção para o estilo eclético e a altura do Grande

Hotel Paulista que fora erguido com o dobro da altura das demais construções da

época. Segundo a autora:

Entretanto, na visão alimentada pela mentalidade então vigente, tais edificações representavam, isto sim, as primeiras projeções de modernidade, signos imponentes de novos tempos que viriam para a cidade, de riqueza material e cosmopolitismo, varrendo-lhe a antiqualha provinciana, como era visto todo vestígio de passado (BARBUY, 2006, p. 101).

Para Bruno (1984), a feição da cidade, sob o ponto de vista alimentar,

começou a mudar a partir do último quartel do século XIX por influência do imigrante

italiano que se fixou na cidade desenvolvendo indústrias alimentícias, modificando

temperos, técnicas de preparo e substituindo preferências por produtos da cultura

italiana.

9 Paulo Rangel Pestana, ―A Cidade de São Paulo – Evolução Histórica‖. (PESTANA apud BRUNO,

1984, p. 1169)

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1.2.2. A fixação de novos hábitos

Em 1896, com a primeira edição do Livro das Noivas de Julia Lopes de

Almeida, a dona-de-casa passava a ter em mãos um verdadeiro manual de normas

de conduta de extraordinária importância para a sua orientação sobre a organização

prática e científica daquele lar moderno que despontava com o novo século. No

capítulo intitulado Falta de tempo, ela escreveu:

Há mil nadas sujeitos ao nosso exame, e, exactamente para facilitar o trabalho e dar ao espírito horas de lazer, é que devemos sujeitar a um methodo rigoroso. Assim, tem um logar certo para cada objecto, o que evita a impaciência da procura, coisa terrível e abominável; tendo aceio, submissão ao relógio, para que tudo marche a tempo e a horas, e tendo distribuído o serviço com intelligencia e justiça, parece-me que a senhora excusa de abandonar o seu piano – por falta de tempo, como a maioria confessa (ALMEIDA, 1914, p. 76).

A mulher ganhou um papel de grande responsabilidade como gestora da casa

e conhecedora da operação dos novos equipamentos, das novas formas de trabalho

e do preparo de refeições, deslocando-se freqüentemente pelas dependências da

casa também redimensionada. Fora relegado a um segundo plano o saber

tradicional das antigas cozinheiras passado de geração a geração e resultante da

própria experiência. Através de seus livros Almeida (1914) teve um importante

desempenho na fixação do papel da mulher como executora e gestora das

atividades domésticas, ajudando-a a definir uma nova rotina para seus afazeres e de

seus criados.

Os livros de Almeida também cumpriram um papel de conscientização da

mulher sobre a imposição dos costumes europeus sobre os nossos, e de defesa da

cultura brasileira. De acordo com ela:

Na roça é que estas festas do Natal e do Ano-Bom têm uma cor mais brasileira. Aqui na cidade fazemo-las seguindo os costumes portugueses. O frio do Natal europeu impele as famílias para o interior das suas casas, para o calor dos fogões e das ceias fumegantes. O nosso Natal é tão diverso! Em vez da neve temos o sol; em vez da ventania áspera, que obriga as pobres criaturas a irem para à igreja envoltas em capotes, salpicadas de lama e de chuva, temos noites estreladas, cheirosas, em que moças e rapazes vão à meia-noite ouvir a missa do galo, com trajes alegres, sem recear bronquites, podendo folgar pelos caminhos à luz das estrelas palpitantes e coloridas. Na roça é assim. A criançada come ao ar livre pinhões cozidos e faz a algazarra que apraz. As moças dançam no terreiro com os namorados, e os velhos, sentados sob o alpendre, contam anedotas, rememoram

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visitas a presépios antigos, até que o sino os chame e eles partam todos, aos magotes, para a capela tão sua conhecida, tão sua amada!

[...] Os costumes europeus não podem, em absoluto, ser reproduzidos aqui. (ALMEIDA, 1906, p.4)

A própria companhia de gás também contribuiu com seus freqüentes

anúncios como o da Societé Anonyme du Gaz que circulou na revista Fon Fon de

julho de 1913, coletado por Silva (2008):

Preparar, cozinhar e servir alimentos nutritivos. Cozinhar em condições higiênicas. Conservar a cozinha perfeitamente limpa. Assegurar o conforto do lar. Minorar as suas atribulações e aborrecimentos. Poupar a bolsa da família. Tornar felizes seu marido e filhos. Manter o bom humor dos criados (SILVA, 2008, p. 159).

Para Luce Giard (2009) os gestos são animados por necessidades e, se

mudam é porque perderam sua utilidade, função sustentada pela ritualização e pelo

consenso de seus praticantes. Segundo ele:

Os gestos antigos não foram relegados simplesmente por causa da entrada dos aparelhos eletrodomésticos na cozinha, mas por causa da transformação de uma cultura material da economia de subsistência que lhe é solidária. Quando a natureza das provisões muda, os gestos de preparação culinária fazem o mesmo (GIARD, 2009, p. 274).

Para Paulo César Garcez Marins (2004) ―beber café é o mais expressivo

sinônimo de transformação dos costumes alimentares paulistas no século XIX‖

(MARINS, 2004, p. 135). Mas o cardápio também mudou a partir da introdução pelos

imigrantes, de pequenas indústrias de produtos como a banha enlatada por

Francisco Matarazzo a partir de 1882. JAPUR (1963) também enfatiza a influência

do colono italiano na alimentação paulista antes mesmo de 1900, com suas massas,

um maior consumo de pão, vinho, tomates, e mais tarde também com a minestra e o

risoto. MARINS (2004) recorda os célebres biscoutos de Jacareí (do Vale do

Paraíba) como um exemplo de produtos industrializados de grande sucesso na

capital, que fizeram a alegria da criançada e de adultos por muitos anos.

Belluzzo (2008) refere-se ao cultivo pelos italianos e à disseminação do gosto

entre os paulistas pelas verduras como escarola, almeirão, chicória, berinjela e

pimentão. Ainda sobre o cardápio, Silva (2008) escreveu que, com o novo conceito

de cozinha atrelado a uma conotação de higiene e saber técnico da dona-de-casa

proporcionado pelos novos equipamentos como o fogão a gás, os novos alimentos

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beneficiados e industrializados, alterava não somente o seu preparo como ampliava

também as noções de química, do conhecimento de novas técnicas10, e, sobretudo,

a escolha dos alimentos a serem consumidos. Nos lares mais abastados,

cozinheiros começam a assumir os lugares das antigas cozinheiras e essa visão de

modernidade se espalharia por toda a sociedade.

Baseado em informações de Eduardo Valim Pereira de Sousa e Almeida

Nogueira, Bruno (1984) relata o horário e o teor das refeições das famílias

paulistanas (que supõe mais abastadas), referente às primeiras décadas do século

XX:

(...) às sete, café com leite, bolos e biscoitos: às nove, almoço e ao meio dia, novo café; às duas, frutas, quase sempre no próprio quintal; às quatro, jantar; às oito, genuíno chá inglês, acompanhado de novas guloseimas ainda quentes, feitas em casa mesmo pelas quituteiras (BRUNO, 1984, p. 1111).

Em 1905 os produtos italianos, suas técnicas de preparo e o hábito de

consumi-los já eram tão familiares aos moradores da cidade que o viajante

português Sousa Pinto recorda que no jantar de um restaurante paulistano comeu

minestra e risoto que lhe rendeu o comentário: ―É a Itália, (...) a Itália com arroz de

açafrão e queijo ralado‖ (BRUNO, 1984, p. 1115).

Apesar do preparo de feijão estar associado às velhas cozinhas e identificado

com as classes mais baixas, com o advento do fogão a gás, ganhou mais espaço na

mesa paulistana e trocou a panela de ferro pela recém-chegada panela de pressão.

Nessa época surgem as panelas de alumínio, ágata e os utensílios de plástico.

A panela de pressão apareceu em São Paulo em 1948, oferecida como um

produto revolucionário que prometia rapidez e economia no preparo de alimentos,

sobretudo, de feijão, fabricada pela Panex11 empresa de três irmãos libaneses

instalada no Bairro do Ipiranga. A National Presto12 desde 1905 no mercado

americano começou fabricando panelas de pressão voltada, a princípio, para

fábricas de conservas comerciais. Em 1915, surgiram as primeiras panelas de

10

Silva descreve essas novas práticas como antigas práticas revestidas com um verniz de civilização e modernidade. (SILVA, op. cit. p. 156)

11 http://www.clock.com.br/institucional/default.asp Acesso em 30/01/2011

12 http://www.gopresto.com/information/history.php Acesso em 30/01/2011

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grande porte para uso doméstico. Em 1941 tinha se consolidado como um produto

de grande aceitação pelo consumidor e já havia ampliado seu repertório de

utensílios de cozinha. Com a Segunda Guerra a empresa se voltou para a

fabricação de produtos bélicos e só retomou suas atividades em 1945 oferecendo

panelas de pressão de quatro litros com muito sucesso.

Figura 1: Panela de pressão Clock

Fonte: Folheto da panela de pressão clock

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40

Figura 2: Receitas para a panela de pressão

Fonte: Folheto da panela de pressão clock

1.2.3. O processo de urbanização: as ruas e o comércio - os

restaurantes e a paulatina transformação da cidade

No final do século XIX, com a ascensão da cultura cafeeira que passou a

sustentar a economia paulista, a libertação dos escravos, a expansão da ferrovia, a

extração do gás de carvão, a chegada dos bondes puxados a tração animal, em

1872, e a imigração de um grande número de trabalhadores estrangeiros, São Paulo

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começou a se transformar. As casas da cidade, antes construções mais modestas

para abrigar as famílias durante as festividades, sobretudo, religiosas, vindas de

chácaras e fazendas afastadas, também passaram por uma grande transformação.

A cidade se urbanizava e crescia em ritmo acelerado. Segundo Marisa Midori

Deaecto (2001):

A partir de 1900, o Triângulo se renova. E o marco legitima o maior feito de Piratininga: os bondes elétricos. Alargam-se as ruas e multiplicam-se os hotéis, bares, cafés, teatros, magazines, bancos, automóveis e... pessoas (DEAECTO, 2001, p. 148).

Segundo Brandão (1990), em 8 de dezembro de 1891, quando foi inaugurada

a Avenida Paulista, no local escolhido conhecido como espigão central, não contava

ainda com uma única construção apesar de destinada a ser uma rua elegante

voltada para a burguesia da cidade. Era uma rua planejada, larga de terrenos

uniformes com cercas de arame, calçadas e duas pistas ladeadas por árvores.

Aos poucos fazendeiros e negociantes, entre novos-ricos e nobres do café,

foram se estabelecendo na avenida refletindo as disparidades de suas culturas nos

diversos estilos de mansões que foram preenchendo a Paulista. Ganhou o Parque

da Avenida, depois Trianon, projeto do paisagista francês Paul Villon e, na década

de 1930 já estava pronta tornando-se um símbolo de São Paulo atraindo dinheiro,

intelectuais, e a sociedade paulistana.

Para João Podanovski (1988), os primeiros restaurantes paulistas registrados

entre os anos 1848 e 1852, período em que São Paulo era uma cidadezinha pobre e

suja de catorze mil almas, tinham donos franceses, Charles e Frederico Fontaine

faziam parte das duas únicas hospedarias, e não tinham boas recomendações.

Segundo ele, a partir de 1854 a situação melhora um pouco:

(...) fundam-se, na Capital, hotéis e casa de pasto do tipo francês, sobressaindo-se entre eles o Hotel Universal, do francês Lefrève, e outros de madame Lagarde e Adolpho Dusser (LEITE apud PODANOVSKI, Idem, p. 16).

Na esquina da Ladeira São João, chamada Ladeira do Acu, ficava o Hotel

Paulistano de Adolpho Dusser, na Rua do Comércio, atual Álvares Penteado, estava

o Hotel da Providência de Madame Felicia Lagarde. Na Rua da Fundição, hoje

Floriano Peixoto, esquina do Largo do Colégio ficava o Café e Hotel do Comércio de

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Hilário Pereira Magro e também o Hotel Universal de J. Lafréve, considerado o

melhor da época. Na Rua da Imperatriz, Hotel Recreio Paulistano de Antonio

Joaquim de Lima, e o Hotel das Nações na atual Praça Patriarca que mudou de

nome e de dono algumas vezes até que Monsieur Fretin o chamou de Hotel de

França e assim permaneceu mesmo depois de comprado pelo alemão Guilherme

Lebeis.

Segundo Bruno (1984) esses primeiros hotéis paulistanos eram praticamente

freqüentados apenas por forasteiros que não corriam muito risco de desmoralização,

e possivelmente, o paulista para uma ceia discreta.

De acordo com Podanovski a vida coletiva dos hotéis não era vista com bons

olhos pela população paulistana por sugerir uma promiscuidade perigosa e

intolerável. Por não tolerarem os hotéis é que os fazendeiros e sitiantes dos

arredores mantinham suas casas no centro da cidade fechada o ano inteiro servindo

apenas para sua ocupação durante as festividades.

A partir de 1860, surgem hotéis mais imponentes como o Hotel Itália, o da

Europa e o Globo onde se praticava uma cozinha francesa. Monsieur e Madame

Guillemet do Hotel das 4 Nações anunciavam orgulhosamente sua cozinha à moda

de Paris, conquistando os primeiros elogios para estes estabelecimentos. Porém,

comparado aos melhores da Europa só O Grande Hotel inaugurado em 1878, na

Rua São Bento.

No final do século XIX apareceram: na Rua Boa Vista, o Hotel Brasil e Itália e

o D‘Oeste. Na Rua São Bento, o Provenceau e o Grande Hotel Paulista e, na Rua

Direita, o Grand Hotel de la Rotisserie; todos ofereciam comidas à moda de Paris.

Para Deaecto:

Bares, cafés, confeitarias e restaurantes se tornaram, como já dissemos, os principais espaços de sociabilidade do paulistano. Esses estabelecimentos se distribuíram por todas as ruas e eram visitados por diferentes grupos sociais, o que conferiu a muitas casa tradicionais, uma certa particularidade. Assim era o popular Café Brandão, localizado na rua São Bento, 67. A Confeitaria Fasoli e o Internacional Bar, na rua Direita, 15. A Confeitaria Castelões, a Brasserie Paulista, instalada na praça Antonio Prado. O Café Paraventi, da 15 de Novembro. O Bar Guanabara e o Restaurante Santino, na Boa Vista. O Bar Thebaida, da Líbero Badaró, entre tantos outros. Nos anos 1930 já aparecem as primeiras leiterias e

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cafés chics na cidade nova, como a Rotisserie Ferraris localizada na Xavier de Toledo, 13, entre tantos outros exemplos (DEAECTO, Op. cit, p. 203).

Figura 3: Foto da Confeitaria Castelões

Fonte: A Cidade da Light: 1889-1930. São Paulo, Superintendência de comunicação/Departamento de Patrimônio Histórico/ Eletropaulo, 1990, p. 117.

Na virada do século a cidade já havia recebido muitos imigrantes, sobretudo,

italianos transformando seu sotaque e suas panelas. Em 1878 foi fundada a primeira

fábrica de macarrão, no Brás e, depois, os primeiros ristorantis e cantinas. A cantina

Don Carmenielo, é considerada uma das primeiras de São Paulo situada na Rua

Rangel Pestana, no Brás, dirigida por um napolitano, Carmine Corvine,

responsabilizado por alguns, segundo Lourenço Diaféria (2004), pela introdução da

pizza em São Paulo e no Brasil. A Cantina do Chico da antiga Rua da Estação, hoje,

Rua Costa Valente, também no Brás, de Francisco Porcari também data do começo

do século XX. A Confeitaria Guarany localizada na Rua Rangel Pestana, no Brás,

considerada a mais chique do Bairro pertencia a família de Dante Siniscalchi que

posteriormente, em 1924, na antiga Travessa do Brás fundou também O Castelões,

referência da cozinha italiana até hoje na cidade.

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Outra é o Giordano de 1910, que nasceu no fundo de uma quitanda com o

casal Giordano vendendo spaghetti alla napolitana e pasta i fagioli. Vieram as

Cantinas 1060, Bella Napoli, Balilla, Pepantino, Capuano, Manaro, 13 de maio, do

Afonso, do Roperto, todas no Bixiga: a Cantina Vagliengo na Estação da Luz,

fundada em 1889 era ponto de encontro da aristocracia e de políticos durante o ciclo

do café.

De acordo com Deaecto (2001), em 1920, o Centro da cidade já era provido

de um comércio de artigos luxuosos e ostentatórios, importados diversificados entre

tecidos, louças, cristais ingleses ou franceses, secos e molhados, aparelhos

elétricos, móveis e utensílios domésticos. Um levantamento realizado para avaliar

qualitativamente o comércio paulista entre 1905 e 1925, concluiu que os segmentos

que mais cresceram, naquele período, foram os ligados a alimentação como os

mercadores de gêneros no atacado alimentícios em grosso e no varejo dos

botequins, açougues, restaurantes, Segundo ela:

A moda está presente na arquitetura, no mobiliário, nos hábitos alimentares, mas sobretudo nas formas de conduta da sociedade. Essas preocupações em viver com elegância, sinônimo de civilidade, permitem maiores investimentos no setor de vestuário e ‗quinquilharias‘. Pode-se mesmo afirmar que quanto mais desenvolvida se apresenta a cultura urbana, maior será o mercado consumidor de supérfluos, pois mais sofisticadas se tornam as formas de distinção e, no seu bojo, os recursos ostentatórios (DEAECTO, Idem, p. 171).

De acordo com Boris Fausto (2009) na década de 1930, São Paulo não era

mais considerada uma ―cidade italiana‘13, mas um centro urbano que contabilizava

aproximadamente 1,3 milhão de habitantes onde se misturavam aos velhos

paulistanos e aos nordestinos que começavam a chegar, imigrantes europeus e

asiáticos, dentre eles cerca de duzentos chineses provenientes do Cantão. Esse

número reduzido de chineses poderia ser justificado, segundo o autor, pelo ―perigo

amarelo‖ 14 propagado pelos filmes de Fu Manchu exibidos nos cinemas da cidade

entre 1930 e 1940 sempre com muito sucesso de público. Alguns chineses se

estabeleceram como feirantes vendendo pastéis com caldo de cana em feiras livres,

outros como tintureiros, ou ainda, como donos de restaurantes como o caso relatado 13

expressão utilizada pelo autor (FAUSTO, 2009, p. 29) 14

expressão utilizada pelo autor (FAUSTO, Op. cit.)

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pelo autor que por sua localização, preço atraente e pratos condizentes com o gosto

dos paulistanos atraíram uma clientela de advogados e empregados de escritórios

dos arredores do Palácio da Justiça. No âmbito da imaginação, os asiáticos geravam

associações contraditórias como teimosia, irredutibilidade e impassividade em seus

negócios quanto ao estilo de barganha de preço e pechinchas incorporadas ao

cotidiano pelos demais imigrantes.

Em 1950, começaram a ser erguidos os primeiros edifícios residenciais, veio

a especulação imobiliária e a verticalização da Avenida. Em 1956, surge o Conjunto

Nacional, um misto de apartamentos residenciais e lojas comerciais se antecipando

aos shoppings centers que abrigou, a partir do final da década, a Confeitaria e

Restaurante Fasano, tornando-se um local de referência em elegância, bom gosto e

gastronomia da cidade. Vittorio Fasano, um milanês que se mudou para São Paulo

em 1902, para cuidar dos negócios de importação de café da família, foi o precursor

do grupo Fasano, criando a Brasserie Paulista, restaurante francês localizado na

Praça Antonio Prado, um endereço elegante da época onde permaneceu até 1923.

De acordo com Podanovski (1988), quem introduziu a pizza em São Paulo foi

um casal de italianos Ricardo Toscano, romano, e Liana Toscano, de Turim. Abriram

o Liz em 1960, que se transformou em Il Fornelo, na Rua Bandeira Paulista, o Tivoli,

na Rua Texas, La Pentola, na Barão do Rio Branco, Il Pentolino, na Rua João

Cachoeira, e Il Papagallo de 1982, na Vieira de Moraes.

1.2.4. A cultura paulista e o mito da paulistanidade

Em seu estudo sobre o multiculturalismo da terra paulista, Mauricio Érnica

(2004) identificou a partir de 1910 a construção de um mito da paulistanidade unindo

o passado bandeirante a um presente moderno, industrial, europeizado capaz de

justificar o sentido da história que se queria imprimir. Para ele: ―Nesse mito, a

ideologia do progresso e a do trabalho se ajustariam muito bem, fazendo com que

os imigrantes e as antigas elites se comprometessem com um modo de olhar a

história e fazer a vida que valorizavam os símbolos da modernidade paulistana‖

(ÉRNICA, 2004, p.179). Segundo o autor, desde as primeiras décadas do século XX

São Paulo foi se tornando:

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o ponto de concentração dos caminhos e dos fluxos de pessoas e bens. Enriquecida, despontou como o universo no qual os novos modelos de viver, habitar, pensar e ser foram desenvolvidos e difundidos. Com isso passou a ser um centro de difusão de referências culturais e experiências de vida para a região interiorana sob a sua influência (ÉRNICA, 2004, p.180).

Para Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2009) a década de 1920 suscitou

um novo regionalismo que refletisse as diferentes formas ―de se perceber e

representar o espaço nas diferentes áreas do país‖ (ALBUQUERQUE JUNIOR,

2009, p. 52). Com a urbanização, a industrialização e a imigração em massa após o

fim da escravidão, São Paulo passou a se destacar do resto do país acrescendo-se

das manifestações artísticas e culturais do modernismo, dos novos códigos de

sociabilidade adquiridos e das novas concepções de modernização da sociedade e

da modernidade. Nessa época, Mario de Andrade entendeu que o Brasil não

possuía uma identidade cultural por falta de tradição e que, portanto, o trabalho

intelectual do artista se colocava como construtor dessas tradições. Esses

Intelectuais percebiam o regional como um elenco de relíquias culturais, elementos

do folclore e da cultura popular a serem pinçadas porque sucumbiriam diante do

progresso. O livro Paulicéia Desvairada de Mario de Andrade escrito em 1921 é um

canto à cidade que não seria abandonada, mas que deveria ser esteticamente

reelaborada pelo fato regional.

Florestan Fernandes (1979) observando as revoluções sociais mais, ou

menos profundas a que foram submetidos os povos contemporâneos, como o caso

de São Paulo, identificou uma desagregação da cultura popular que desfalece diante

da formação da civilização industrial e urbana. A rapidez do padrão de mudança tem

concorrido para destruir os valores sociais, além da falta de apego aos elementos

folclóricos da cultura, e seu caráter heterogêneo desde sua organização em bases

rurais. Segundo ele:

A religião oficial, o cosmopolitismo cultivado como símbolo de ‗civilização‘ pelas camadas dominantes e a supremacia indisputada do saber erudito em contraste com o saber popular criaram essa situação que confinou pouca a pouco, os elementos folclóricos do patrimônio cultural paulistano a círculos humanos que não poderiam valorizá-los socialmente nem defendê-los ativamente (FERNANDES, 1979, p. 29).

Desta forma o autor salienta que não houve por parte do folclore uma

significativa influência social construtiva na reintegração do sistema sócio-cultural da

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cidade de São Paulo, em que tenha predominado a perpetuação de atitudes e

valores sociais. Com três exceções: de grupos que preservavam mais viva sua

herança cultural, sobretudo o folclore infantil, os provérbios e as práticas mágicas se

projetando no meio urbano como pequenos oásis semi-rurais, destacando assim, a

importância da característica adptativa dos elementos da cultura tradicional; da

existência de uma ligação afetiva entre o folclore e tendências específicas de

reintegração do sistema sócio-cultural paulista como as convicções mais profundas

que não se consegue alterar de uma hora para outra, pelo menos transitoriamente;

e, também pela inconsistência das críticas ao atraso e a vulgaridade que

condenavam os provérbios. Segundo Fernandes (1979):

(...) a expansão do sistema de classes sociais acarretou várias conseqüências de grande importância na reconstrução do sistema de concepção do mundo das camadas populares. Dela resultou uma tendência decidida á valorização do social do ‗saber erudito‘, uma ânsia incontida de assimilação das técnicas racionais de pensar e de agir bem como formas de consciência da situação histórico-social que pretendiam, abertamente, ‗desmascarar‘ acomodações produzidas por arranjos de cunho paternalista. Isso quer dizer que os próprios agentes societários, que serviam de veículo humano ao folclore, passaram a interessar-se e a defender uma concepção do mundo na qual as tradições foram relegadas a plano inferior (FERNANDES, 1979, p. 32).

Para o autor, as instituições ‗oficiais‘ em consonância com o processo de

desintegração da cultura tradicional já ocorrido nas classes dominantes, passaram a

exercer pressões cada vez maiores e mais drásticas contra os elementos culturais

responsáveis pela ‗incultura‘ e pelos ‗estados de ignorância‘ do povo. A Igreja

Católica começou a intervir severamente contra as ‗crendices populares‘ e as

‗manifestações profanas‘, as instituições educacionais se empenharam na

democratização do ‗saber erudito‘ e a Polícia reprimiu com veemência as atividades

consideradas ‗perniciosas‘ e ‗impróprias‘ a uma ‗cidade civilizada‘.

Segundo Candido (1975) esse patrimônio não era exatamente um ‗folclore

urbano‘, mas tipificava-se como uma ‗cultura popular‘ em fase crítica, identificada

como pobre e reconhecida como negativa.

O folclore paulista, de acordo com Fernandes (1979):

Ele foi preservado, durante muito tempo, pelas condições rústicas e provincianas de vida, que imperaram em São Paulo até quase os fins de século XIX. A transição para o estilo urbano de vida processou-se,

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em seguida, com certo ímpeto e intensidade, sob a influência de heranças culturais mais ou menos distanciadas da antiga tradição rural imperante na cidade. Em conseqüência, não se operou uma renovação de quadros humanos numa direção que pudesse estabelecer maior continuidade com as matrizes do novo sistema civilizatório (FERNANDES, Idem, p. 33-34).

Por essas razões se observa a dificuldade de sobrevivência do folclore, e das

heranças culturais de São Paulo diferentemente da reação apresentada por outras

cidades como Recife, Salvador e Rio de Janeiro que ofereceram resistência diante

da nova cultura urbana estabelecida desde então.

1.2.5. O processo de industrialização

Edgard Carone (2001) autor de uma pesquisa sobre o processo de

industrialização paulista entre 1889 e 1930, afirma que a imigração foi responsável

tanto pela criação de uma corrente ideológica modernizadora, como pelo

abastecimento de mão-de-obra proletária. O crescimento urbano da cidade de São

Paulo quadruplicou entre 1890 e 1930. Entre a nova população de imigrantes estão

34,5% de italianos, 29,2% de portugueses e 19% de sírio-libaneses.

Defensores da idéia da coletividade, os imigrantes tiveram uma importante

contribuição na base da organização do Estado durante esse período. Politicamente,

embora dividida em facções ideológicas, a classe dirigente paulista, passou, a partir

de 1870, a ter uma reconhecida hegemonia sobre a sociedade com a imposição de

seus interesses à nação. Nesse sentido o autor afirma:

A autonomia estadual permite às unidades territoriais usufruírem de uma situação vantajosa. Enquanto o governo federal é responsável por encargos necessários, mas sem retorno financeiro (forças armadas, dívida pública etc.), as unidades dos estados gozam de rendas do imposto de exportação destinadas até então ao Tesouro Nacional, fora do benefício de outras fontes, como o imposto sobre mercadorias. Em 1892, a arrecadação de São Paulo se multiplica por dez, quando começa a vigorar a Constituição do Estado. De maneira coerente, a classe governante procura não só modernizar os mecanismos da estrutura do Estado, como criar novos (CARONE, Idem, p. 15).

Assim, surgem várias ações governamentais como: a medida que ataca a

questão da saúde, o incentivo à produção através do levantamento da Carta

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49

Geográfica e Geológica do Estado, a fundação da Escola Agrícola Luiz de Queiroz,

e a atividade industrial cujo capital tem origem na agricultura do café e do algodão,

no comércio, em capitais estrangeiros tanto adquiridos no país como trazidos de

seus países, além de recursos oriundos do sistema capitalista externo.

O precário desenvolvimento da atividade industrial paulista apresentado até

então era justificado por alguns fatores de retenção: restrição do público consumidor,

precariedade do poder aquisitivo, falta de transporte, circulação de mercadorias

importadas, escassez de recursos financeiros para movimentar os empréstimos

bancários, falta de usina siderúrgica. De acordo com Carone, em 1896, havia em

São Paulo 121 indústrias movidas por motor a combustão ou a gás, localizadas

entre os bairros de Santa Efigênia e Brás, que produziam bebidas, móveis, sapatos,

chapéus, material de construção e máquinas de beneficiamento de café, ferro e

bronze.

De acordo com o Boletim Histórico da Eletropaulo, de abril de 1985, em 17 de

Julho de 1899, o Decreto Nº 3.349 assinado por Campos Sales concedeu

autorização para a The S. Paulo Railway, Light and Power Company, Limited para

funcionar no Brasil. Em 23 de setembro de 1901 foi inaugurada a primeira

hidrelétrica de São Paulo, a Usina de Parnaíba, no Rio Tietê, com o objetivo de

suprir as necessidades energéticas dos bondes, e abastecer os motores das

fábricas e da iluminação.

A estatística de 1915, coletada por Carone (2001) registra 44 mercadorias

produzidas entre os 184 municípios do estado de São Paulo, em que já se

contabiliza um número considerável de alimentos: 218 indústrias de massas

alimentícias, 27 de conservas, 103 de biscoitos, 174 de doces, 541 de moagem de

cereais, 231 de farinha e polvilho, 53 de laticínios, e 34 de vinagres.

Entre os primeiros industriais de São Paulo se destaca Alexandre Siciliano,

um calabrês que fundou, em 1887, em São Paulo, a Companhia Mecânica e

Importadora de São Paulo e o Banco Ítalo-Brasileiro. Localizada no bairro do Pari,

essa indústria abasteceu a cidade de candelabros, colunas, máquinas e estruturas

metálicas, ferramentas, peças, engenhos e moinhos, prensas e turbinas, guindastes,

elevadores e engrenagens.

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50

De 1888 a Companhia Antártica Paulista fixada na Mooca, fabricava cerveja,

bebidas não alcoólicas, gelo e ácido carbônico e, sua filial no Bairro da Água Branca

de 1912 especializada na fabricação de licores.

Francisco Matarazzo, um italiano de Castellabate, que se fixou em Sorocaba

em 1881, dedicando-se à distribuição de banha de porco até que com a constatação

do grande consumo desse produto, juntou-se a seus irmãos e passou fabricá-la, em

1890. No final do século XIX mudou-se para São Paulo inaugurando em 1900, no

Pari, o primeiro moinho de trigo. Em 1902 cria uma tecelagem para fabricar os sacos

que embalavam a farinha de trigo. Com a sobra das sementes de algodão passou a

fabricar também o óleo que acabou incentivando a fabricação de sabão e velas.

Passou a fabricar também a lata para embalar o óleo, a refinar açúcar e sal, e a

beneficiar arroz.

Dois irmãos sicilianos, Giuseppe e Nicola Puglisi-Carbone instalaram-se em

São Paulo em 1890, onde fundaram um império industrial que abarcava a

Companhia Cerâmica de Vila Prudente, o Grande Moinho de Arroz, a Companhia

Paulista de Alimentos (antiga Duchen) e a Grande Companhia União dos

Refinadores.

Em 1892, foi criada no Bairro da Água Branca a Vidraria Santa Marina por

Elias Pacheco Jordão e Antonio da Silva Prado que fornecia garrafas para as

indústrias de cerveja, e mais tarde passou a investir na fabricação de vidraças.

O paulistano Álvares Penteado funda em 1911 a Companhia Paulista de

Aniagens, situada na Mooca para a manufatura da juta e produção de sacaria de

café. Antonio de Camillis, italiano de Campobasso notabilizou-se pela construção de

um moinho para a fabricação de fubá e sal. O português Antonio Pereira Ignácio

destacou-se pela produção de tecidos de sua Fábrica Votorantim no final do Século

XIX, e a Fábrica Lusitânia instalada no centro de São Paulo.

Jacques Marcovitch (2005) afirma que em 1928 quando foi criada a Ciesp –

Centro das Indústrias do Estado de São Paulo – teve como ponto de partida a

necessidade de alguns industriais de se afastarem da Associação Comercial que

privilegiava os comerciantes contrapondo-se aos interesses da indústria. O primeiro

presidente foi Francisco Matarazzo e seu vice Roberto Simosen e na diretoria

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51

figuravam nomes de peso como José Ermínio, Jorge Street, Horácio Lafer e Antonio

Devisate. Porém, com a crise de 1929 e a revolução de 1930, 50% dessas indústrias

paralisaram ou reduziram suas atividades por falta de compradores.

Na área de eletro portáteis, uma pesquisa realizada por José Abramovitz

(2006) indica que foi entre 1880 e 1890 que os Estados Unidos começaram a

fabricar os primeiros modelos de eletrodomésticos a partir de ventiladores, depois

vieram as máquinas de lavar, os ferros de passar e as cafeteiras. Foi com a Western

Eletric Company que, em 1913, passaram a ser oferecidos ao mercado que se

expandia, as torradeiras elétricas e os aspiradores de pó, rapidamente incorporado à

vida doméstica no modelo americano. Nessa época não havia um cuidado com a

aparência dos aparelhos que mostravam seus motores e mecanismos para atestar a

engenhosidade das máquinas domésticas. Outros, por sua vez, tentavam evocar o

mundo artesanal com excesso de adornos em oposição à modernidade industrial

que se impunha.

A Europa também se modernizava com suas indústrias de eletrodomésticos

em plena expansão permitindo, por exemplo, que a AEG (Allgemeine Elektricitãts-

Geselschaft) alemã contasse, em 1894, em seu catálogo mais de 80 produtos.

Na medida em que a industrialização avançava na Europa e nos Estados

Unidos os produtos já fabricados em série se tornavam mais acessíveis

democratizando o consumo. Além da preocupação com a estética, depois vieram

outras inquietações com a matéria-prima utilizada e com a desumanização do

trabalho mecânico nas indústrias, daí o surgimento em vários países de movimentos

artísticos-conceituais como o Arts and Crafts, o Art Nouveau e o Bauhaus que

contribuíram, sobretudo, para redesenhar os produtos e definir o papel do designer

moderno.

Para Amy Dempsey (2003), o Art Nouveau foi um movimento internacional

que, entre 1880 e a Primeira Guerra Mundial, se difundiu pela Europa e Estados

Unidos, graças às inúmeras novas publicações e algumas exposições

internacionais. Inspirava-se no movimento inglês Arts and Crafts, que abarcava

todas as artes, e em que Williams Morris apregoava, sobretudo, a valorização do

artesanato de qualidade e a indistinção entre belas artes e artes decorativas. O Art

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Nouveau teve em Van de Velde um de seus grandes representantes – era

incentivador da relação da arte com a indústria, e via na decoração do lar a

consolidação da arte total. Seu sucessor, Walter Groupius foi o criador da escola

Bauhaus.

Os senhores do café e suas famílias, que viajavam freqüentemente para a

Europa foram os principais responsáveis pela difusão dos primeiros eletros portáteis

em São Paulo.

1.3. Depois de 1930: a contaminação da cozinha pelas mídias

―Oh, padeiro desta rua

tenha sempre na lembrança não me traga outro pão

que não seja o Pão Bragança. Pão, inimigo da fome,

fome inimiga do pão enquanto os dois não se matam

a gente fica na mão. Oh, padeiro desta rua

tenha firme na lembrança não me traga outro pão

que não seja o Pão Bragança. De noite quando me deito

e faço minha oração peço com todo o respeito

que não me falte o pão.‖ Castelo Branco, 1990, p.177

Após a Primeira Guerra Mundial houve nos Estados Unidos uma aceleração

da produção em série aliando os avanços tecnológicos, a queda de preço e o

aumento do mercado consumidor com índices que cresciam anualmente. Os anos

20 também foram marcados pela indústria de publicidade que ajudou a construir a

imagem de um tempo de prosperidade e conforto com propagandas veiculadas em

jornais, revistas e nos cinemas estimulando as vendas. Em 1929, porém, veio a crise

de depressão e a economia americana entrou em colapso acarretando a queda da

bolsa de NY, a quebra de bancos e indústrias e o desemprego da força

trabalhadora. As indústrias sobreviventes passaram a disputar fatias de um mercado

extremamente competitivo e tiveram que adotar uma nova estratégia para atrair os

consumidores institucionalizando para este fim o designer na indústria americana. O

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salto nas vendas dos novos produtos confirmava o sucesso com o público

consumidor.

No Brasil, a escassez dos produtos e o alto preço acarretaram a diminuição

da importação e motivaram o aparecimento da indústria nacional. Pelo cinema,

rádio, jornais, revistas e mais tarde pelos primeiros aparelhos televisores foi se

consolidando na capital paulista o american way of life sobrepondo-se aos costumes

europeus adquiridos até então. Os rádios tiveram uma aceitação imediata do

público, e em 1932, obtiveram a autorização do governo para veicular publicidade

durante a programação.

Fausto (2009) relata que o rádio por si só fez o carnaval de 1938

popularizando muitas marchas e sambas como Periquitinho verde (uma alusão às

personagens melancólicas da capital paulista), Touradas em Madri e Yes, nós temos

bananas. Como os imigrantes e seus descendentes não eram avessos ao carnaval,

os paulistanos se justificavam dizendo que ―São Paulo era a terra do trabalho, do

progresso, a locomotiva que puxava vinte vagões vazios. O Rio de Janeiro em

contraposição se associava ao ócio, ao prazer, à vida fútil, à ‗eterna folia‘‖. (FAUSTO

2009, p. 62). Mais tarde, em junho do mesmo ano foi o rádio, também, o grande

responsável pelo entusiasmo da Copa do Mundo na França, evento capaz de

encerrar mais cedo o expediente de grandes casas comerciais como o Mappin

Stores e a Casa Alemã, ou de fazer soar uma sirene a ―sereia da Gazeta‖ que já

anunciava a hora do almoço diariamente ao meio-dia, também foi a fórmula

encontrada pela Gazeta para informar o placar do jogo à população após cada gol. A

venda de rádios aumentou com o incentivo da propaganda de lojas como a Casa

Mesbla que anunciava:

A TORCIDA É LIVRE

É ‗torcedor‘ de futebol? Não perca os jogos do campeonato mundial em Paris. Basta-lhe para isso possuir um Crosley. De voz sonora e de longo alcance, é o mais fiel dos repórteres. Onde quer que algo aconteça, . lá V. Sa. estará com um Crosley (FAUSTO, 2009, p.142).

Foi a era do rádio – o telegrafo sem fio. Ligada à política de integração

nacional do governo Getúlio Vargas, e em 1935 foi criada a Hora do Brasil,

programa obrigatório de notícias oficiais.

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As empresas estrangeiras Philips e Philco se instalaram no Brasil entre as

décadas de 1930 e 1940 dedicando-se posteriormente à produção e venda de rádios

estimuladas pela demanda crescente do mercado consumidor frente à urbanização

e modernização da cidade que se concretizava.

Entretanto, os primeiros rádios nacionais só começaram a ser produzidos no

limiar dos anos 1940 pela SEMP, fundada em 1942 e radicada em São Paulo foi

considerada pioneira no ramo, e a Invictus de 1943. A década de 1950, de acordo

com Abramovitz (2006) foi um período marcado pela democratização do rádio

considerado como o maior sonho de consumo dos brasileiros na época, gerando

novidades como a customização do gabinete e abrindo espaço para o mercado,

para magazines e lojas especializadas que ofereciam peças para profissionais

montadores e para atender o hobby de consumidores, além de estimular a abertura

de cursos técnicos de capacitação.

Para Renato Ortiz (2006) a televisão se concretizou como um veículo de

massa na década de 1960, enquanto o cinema e outras esferas da cultura de massa

como discos, publicidade e editorial só se estruturaram como indústria nos anos

1970. Com o advento do Estado Militar é que se consolidou no país o ―capitalismo

tardio‖ – o aspecto econômico da ditadura que reorganizou a economia permitindo a

internacionalização do capital, apesar de coexistir com a dimensão política

caracterizada pela repressão, censura prisões e exílios. A reorientação da economia

estimulou o mercado de bens materiais que por sua vez acelerou o crescimento do

parque industrial e do mercado interno de bens culturais, cuja expansão esbarrava

no poder autoritário. Como os bens culturais envolvem uma dimensão simbólica, a

censura agiu como veto e ao mesmo tempo como reguladora que impossibilitava o

surgimento de uma determinada idéia ou obra artística. Paradoxalmente, apesar da

repressão ideológica e política esse período ficou marcado como o de maior

produção e difusão de bens culturais da história brasileira com o surgimento do

conselho Federal de Cultura, Instituto Nacional de Cinema, EMBRAFILME,

FUNARTE, Pró-Memória, etc. A criação da EMBRATEL em 1965, desencadeou a

modernização das telecomunicações, que depois se associou ao sistema

internacional de satélite (INTELSAT), em 1967, permitindo a interligação de todo o

território nacional. No discurso dos grandes empreendedores da comunicação havia

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segundo Ortiz (2006), uma associação direta da integração nacional com o

desenvolvimento do mercado.

A modernidade resultou também no abandono de velhos hábitos culturais

como o do consumo de certos ingredientes pesados como a banha de porco,

miúdos, sangue de animais etc, na transformação das receitas, na substituição de

antigos fazeres culinários e, em contrapartida, surgiram inúmeras mudanças no

universo da cozinha a partir de então.

1.3.1. As transformações na preparação do alimento: convergências do

gosto

O processo de modernização da cidade foi se consolidando pela constante

presença do rádio nos lares contrastando, segundo Abramovitz (2006), com o uso

renitente do antigo fogão à lenha ainda por boa parte da população. Só na década

de 1930 com a criação das primeiras fábricas surgiu o fogão nacional. Em 1935 a

Dako começou sua produção artesanal em São Paulo produzindo cerca de 35

fogões por mês, mas ainda eram a carvão de dupla combustão. Só com o fim da

Segunda Guerra nos anos 1950, depois que a Petrobrás iniciou a produção do gás

de cozinha, GLP (gás liquefeito do petróleo) é que o mercado para fogão a gás

cresceu e empresas como a Willig, Semer e Fundição Brasil apostaram nos

primeiros fogões domésticos a gás, das quais apenas a Semer e a Fundição Brasil

estavam localizadas em São Paulo, além da Dako que nessa época resolveu investir

no fogão elétrico.

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Figura 4: Fogão a gás de carvão

Fonte: SILVA, 2008, p.189.

Segundo Abramovitz (2006) com a democratização do fogão a gás o mercado

consumidor em expansão, criou novas demandas para os produtos

eletrodomésticos, símbolos de conforto nessa época. Estes aparelhos elétricos

importados para uso doméstico começaram a ser comercializados pela Companhia

Brasileira de Eletricidade, em 1929, através de encomendas eram divulgados como

―fiéis servidores do lar‖ pelo anúncio do Almanak Laemmert e posteriormente pela

revista Fon-fon. Embora fossem restritos aos lares mais abastados, modificaram

hábitos e costumes domésticos nacionais.

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Abramovitz (2006) reforça a crença de que foi o alto custo da importação dos

eletrodomésticos americanos que levou ao surgimento das primeiras fábricas

brasileiras na década de 1950. Segundo ele:

O alto custo dos produtos estrangeiros, aliado às dificuldades de importação durante a guerra, motivou alguns empreendedores a investir na produção nacional desses artefatos para o lar. O estilo de vida do consumidor brasileiro também se modificava. Os costumes europeus importados até os anos 40 eram cada vez mais substituídos pela influência do american way of life, que chegava através do cinema, do rádio, jornais, revistas e, mais tarde, através da televisão. Era também o início do acelerado crescimento urbano brasileiro (ABRAMOVITZ, 2006, p. 67).

Entre as décadas de 1940 e 1950 surgiram em São Paulo, a Walita, a Arno e

a Real. A Walita criada em 1939 por um imigrante alemão com a finalidade de

produzir artigos de iluminação direcionou suas atividades a partir de 1944, após a

importação de um aparelho liquidificador que serviu de estudo e deu origem ao

primeiro modelo nacional – o Neutron. Em 1956 a empresa já contabilizava a marca

de um milhão de aparelhos produzidos entre liquidificadores, batedeiras e

enceradeiras. Tanto a Arno como a Walita surgiram com outra finalidade na década

de 1940 e direcionaram suas atividades para a produção de eletroportáteis em 1949.

A primeira geração de produtos da Arno foi criada por designers da empresa

americana Sears Roebuck & Co marcados por uma tendência do estilo

aerodinâmico (Streamlining) que se tornou símbolo da modernidade brasileira até os

primeiros anos da década de 1960.

Em 1954, com o IV Centenário da Cidade de São Paulo, foram lançados

alguns produtos comemorativos como o liquidificador ARNO implementando as

vendas com a garantia de longevidade e a TV com gabinete e bar acoplado,

equipamentos que reforçavam a idéia da presença de modernidade.

Entre 1956 e 1961 durante o governo JK, a indústria de ―bens de consumo

duráveis‖ foi impulsionada com o programa intitulado ―desenvolvimentismo‖,

tornando-se um dos setores líderes de desenvolvimento industrial do Brasil

moldando uma nova identidade para o país que se afirmava como urbano e

industrial e que se modernizava. Para fomentar a expansão do consumo interno foi

lançada no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, em março de 1960, a Primeira

Feira Nacional de Utilidades Domésticas (UD). Patrocinada pela Federação das

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Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) possibilitava a compra de todos os

produtos de utilidade doméstica, fabricados no Brasil, em um só lugar.

(ABRAMOVITZ, Op. cit, p.94-95)

Figura 5: Livrinho do Liquidificador Arno

FONTE: Livrinho do Liquidificador Arno

Mas, de acordo com Abramovitz (2006, p.130) foram as reformas financeiras

implementadas pelo governo militar, sobretudo, a Resolução número 45, de 31 de

dezembro de 1966 que determinou às sociedades de crédito (financeiras) que

concentrassem suas atividades no crédito direto ao consumidor adotando políticas

flexíveis como maior prazo de financiamento a juros controlados pelo governo que

incentivaram tanto o mercado consumidor como também abriram demanda para a

produção de bens acarretando que o período entre 1968 e 1973 ficasse conhecido,

segundo ele, como do ―milagre econômico‖ quando o Brasil apresentou taxas

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expressivas de crescimento concentrando apenas no setor de eletrodomésticos um

crescimento de 22,6%.

Figura 6: Eletroportáteis Walita

FONTE: http://revirandobaus.blogspot.com/2011/06/propagandas-dos-velhos-e-bons-tempos.html

Acesso em 20/02/2011

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60

Com um maior beneficiamento das matérias-primas e o avanço tecnológico

dos aparelhos eletrodomésticos, o modus operandi das receitas também mudou

implicando em um redimensionamento das receitas o que resultou na diminuição da

quantidade de alguns ingredientes utilizados e no aumento de outros e, na redução

do tempo gasto com o preparo exigindo que as donas-de-casa se adaptassem aos

novos equipamentos. Por isso é que junto com os aparelhos eletrodomésticos, os

fabricantes anexavam manuais enumerando as vantagens do equipamento que

continham um receituário próprio para cada tipo.

Figura 7: Receitas do Livrinho da Arno

FONTE: Livrinho da Arno

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A geladeira, porém, considerada um produto de luxo acessível à poucos, só

se popularizou a partir de 1952 com as primeiras peças da marca Climax, de São

Carlos (SP), além das marcas Gelomatic e Consul esta de origem catarinense.

Ambas ofereciam também a versão querosene para as regiões onde a eletricidade

na havia chegado: A Brasmotor depois Brastemp iniciou suas atividades em 1954

em São Paulo. Posteriormente, o freezer, surgido no Brasil na década de 1970,

propiciou, de acordo com GIARD (2009), a ―cadeia do frio‖ 15 alavancando a

distribuição de produtos congelados criando a necessidade e a difusão do forno de

microondas.

Para (GIARD, 2009, p. 284) ocorreu uma grande revolução no domínio da

cozinha com a industrialização abrangendo produtos, utensílios e operações de

transformações que determinou o fim do antigo regime de gestão de tempo e

transmissão das habilidades culinárias estabelecido para o espaço doméstico em

vigor até então, introduzindo, da mesma forma que no espaço operário, um

esquema de parcelamento, padronização e repetição de tarefas que simplificou o

trabalho doméstico e reduziu a fadiga, mas em compensação criou um espaço de

tempo ocioso, vazio e sombrio.

Segundo a autora, para a obtenção do resultado prometido pelas receitas

existe em seu processo de produção uma linguagem falada na cozinha que abrange

um repertório que ela entende como ―quatro domínios distintos de objetos ou de

ações: os ingredientes que são a matéria prima; os utensílios e recipientes, como os

aparelhos de cozinha, batedeiras, liquidificadores etc.; as operações, verbos de ação

e descrição do hábil movimento das mãos; os produtos finais e a nomeação dos

pratos obtidos.‖ (GIARD, 2009, p. 287)

De acordo com Giard (2009):

A entrada desses aparelhos nas cozinhas modificou os processos de preparação, de cozimento e de conservação, interferindo, portanto, diretamente na língua das receitas. Introduziu a quantificação, a unificação das medidas (peso, capacidade), a precisão da duração e da temperatura de cozimento. Daí a razão e um certo empobrecimento do vocabulário e a extinção de inúmeros pequenos truques (como conhecer o grau de calor do forno, como evitar que a maionese

15

Expressão utilizada pelo autor (GIARD, 2009, p. 293.)

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desande, como fazer um creme chantilly no ponto) cujo segredo desapareceu com a memória da geração passada (GIARD et al, 2009, p. 294).

Para a autora, a antiga flexibilidade dos ingredientes das receitas cujas

medidas se apoiavam em indicações incertas como um prato cheio de açúcar ou de

textura do tipo, juntar o leite até obter uma massa bem fluida, própria da cultura oral

que, como tradição de rituais de memória da época, a aprendizagem a viva voz

passava de geração a geração, foi substituída pela generalização de uma

transmissão escrita remanejando todo o saber culinário de uma importância

proporcional à ―passagem do caldeirão pendurado na lareira (cremalha) ao fogão de

lenha e depois aos fogões elétricos ou a gás.‖ (GIARD, 2009, p. 294) Em relação ao

batismo dos pratos, Giard (2009) se refere ao cardápio da cozinha da vida privada

como oriundo de receitas comuns identificados pela ausência de nome, ou pelo uso

de um título descritivo de como se faz a preparação, ao contrário do restaurante que

quanto mais elevado o nível mais misterioso e intrigante é o seu cardápio.

1.3.2. A emergência de uma identidade urbana

José Manuel Cardoso Mello (1998) comenta que para boa parte dos

brasileiros estaríamos a poucos passos de nos tornarmos uma nação moderna e até

que poderíamos diante do nascimento de uma nova civilização nos trópicos que

combinava a singularidade dos traços de caráter do nosso povo às conquistas

materiais do capitalismo. Entretanto, a partir de 1980, a onda de otimismo deu lugar

ao pessimismo alimentado pelas dúvidas diante do pensamento da impossibilidade

de se construir uma sociedade efetivamente moderna. Apesar do modelo

econômico, social e político de desenvolvimento ter sido modificado com o

militarismo, ficou a impressão de continuidade do progresso do modelo anterior,

manchado algumas vezes pelo regime autoritário.

Roberto da Damatta (1997) estudando a configuração social brasileira

percebeu a presença de três rituais: a parada militar (Dia da Pátria), a procissão

(Festas da Igreja ou Festas de Santo) e Carnaval cujo domínio pertence a três

instituições distintas respectivamente: Forças Armadas, Igreja e população que de

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forma particular promovem a identidade e constroem o caráter da nação. Segundo

ele:

Porque é o ritual que permite tomar consciência de certas cristalizações sociais mais profundas que a própria sociedade deseja situar como parte dos seus ideais ‗eternos‘. (...) cada geração retira do manancial que constitui a história de sua sociedade um conjunto limitado de fatos para servir como os pontos básicos de sua perspectiva diante das coisas (DAMATTA, Idem, p. 29).

A dramatização, recurso utilizado para dar sentido às coisas do mundo

converte-se em rito pela transformação de algo natural em social, ou seja, quando a

dramatização se torna um instrumento capaz de individualizar a coletividade como

um todo lhe conferindo identidade. Trata-se de um plano expresso pelos cerimoniais

que marca a passagem da natureza à cultura. Os ritos estão presentes, tanto na

manutenção da identidade nacional como no folclore preocupando-se com as

tradições locais e regionais. Para o autor:

O rito dá asas ao plano social e inventa, talvez, sua mais profunda realidade. É o instrumento que permite cavar mais fundo esse lugar ideal (...) região entre o estímulo material que pressiona e uma resposta humana que diferencia e liberta. A resposta social, coletiva é, fundamentalmente, uma resposta que surge marcando individualidades, aquilo que aparece como ‗cultura‘, ‗valores‘, ‗ideologia‘ (...) (DAMATTA, Idem, p. 38).

Segundo o autor as três características da resposta social coletiva são: a

primeira refere-se a uma resposta especifica que individualiza algum elemento que

ocorre na infra-estrutura natural, que depois de apropriado e transformado pela

coletividade em coisa social serve para emoldurar a ideologia. A segunda resposta

diz respeito aos valores ou ideologias como componentes do que chamamos de

cultura, o que representa um compromisso ―entre uma pressão externa (apresentada

pelo ambiente natural ou pelo ambiente humano abrangente) e uma resposta

específica, que pode ou não estar de acordo com quem controla essa pressão‖.

(DAMATTA, Idem, Id). A terceira característica reforça a individualidade do grupo

como uma resposta que cria uma consciência de identidade comum encapsulada no

ritual, veículo capaz de dar forma e realidade a essa resposta e que permite criar um

campo transcendente cuja projeção do grupo poderá gerar novas determinações e

estímulos, caracterizando o rito como elemento tanto da permanência quanto da

mudança.

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64

Neste estudo, Damatta (Idem) classifica os rituais em: formal, informal e

solenidade. O formal refere-se aos rituais da igreja, folclore ou tradição específica de

um grupo ou lugar, como as missas e procissões; o informal é o ritual das massas

como o carnaval que usa o espaço da rua e onde impera a jocosidade; e a

solenidade é o ritual das autoridades políticas, os rituais nacionais como os desfiles

do Dia da Pátria que usam o centro da cidade e geram um sentimento de respeito. O

Dia da Pátria se caracteriza como um rito histórico de passagem (ou ritos do

calendário) que marca a passagem do período colonial para a maioridade política.

Assim, os rituais podem ser classificados também de acordo com o tempo histórico

ou cíclico. O carnaval é um ritual de tempo cíclico. DAMATTA (Idem) chama a

atenção para as associações entre ritual e poder:

(...) a intrincada ligadura entre as técnicas de poder em suas associações constantes com as formas grandiosas do cerimonial e do cerimonioso, seja para manter a distância entre o fraco e o forte, seja para fazer passar – pela repetição pausada e verdadeiramente obsessiva – uma coerência que é um dos elementos básicos da estrutura da autoridade (Cf Milgran, 1975). Por outro lado, é por meio do rito que se pode atualizar estruturas de autoridade, permitindo situar, dramaticamente e lado a lado, quem sabe e quem não sabe, quem tem e quem não tem, quem está em contato com os poderes do alto e quem se situa longe deles. (...) Pois é por aqui que se faz a ligação e a afirmação dos que têm com os que não têm, na conhecida dialética dos desfiles, procissões, paradas e reflexos de um grupo sobre o outro, no jogo complicado das múltiplas legitimações (DAMATTA, Idem, p. 31,32).

O espaço também é abordado nesse estudo como domínios sociais básicos

fundamentados no respeito onde a rua se caracteriza pelo descontrole e

massificação, lugar de luta de todos contra todos, de enganos e decepções e a casa

como ambiente de controle e autoritarismo. A rua segmenta-se em centro e praça. O

centro diz respeito ao comércio, ao centro financeiro, já a praça representa os

aspectos estéticos da cidade. Os papéis sociais da rua implicam em escolha e

vontade, ou seja, são coisas da alma e da moral, representam as formas de

corporações civis e fazem parte do domínio público. A casa é o lugar de descanso e

renovação, dos cuidados com o corpo. É à casa que estão imbricados todos os

papéis sociais da ideologia de substância ligados ao corpo e ao sangue. Entre os

ambientes da casa, o autor destaca a cozinha como um local especial, geralmente

escondido onde a mulher reina soberana.

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O autor chama a atenção ainda para a forma ritualizada de como é feita a

passagem da casa para a rua destacando a preocupação com a aparência e a

individualização em que a roupa representa o ato de vestir uma etiqueta social que o

distinga do anonimato.

Para incrementar o mercado de refeições fora de casa, a partir de 1976, um

estudo de Monica Abdala (2005) revela a contribuição de dois fatores: a criação do

PAT (Programa de Refeição do Trabalhador) e o uso de Ticket Refeição adotado

como serviço de refeição-convênio. Embora, segundo ela, muitos trabalhadores

tenham utilizado os vales refeição para o pagamento do supermercado e outros

estabelecimentos do tipo, o setor de serviços cresceu consideravelmente abrindo

espaço para outras modalidades como os restaurantes por quilo que vão surgir em

meados da década de 1980 e conquistar as donas de casa da classe média,

tornando-se com o tempo, na extensão das cozinhas domiciliares, com o consumo

marcado pela realização no próprio local, se sobrepondo às vendas de quentinha

para viagem. Uma característica deste tipo de restaurante é que eles praticam uma

culinária de peculiaridades culturais locais tornando-se, segundo a autora, a

manifestação de uma resistência cultural.

Henrique Carneiro (2003) já encara o advento dos restaurantes por quilo

como uma oportunidade de difusão mais ampla de uma gama de produtos

considerados exóticos, mas não fez ainda um exame sobre suas conseqüências

econômicas, sociais e culturais no Brasil.

1.3.3. A identidade da metrópole

Marcelo Carvalho (2007) em suas pesquisas sobre a transformação do

alimento em mercadoria registrou a década de 1950 a 1960 como o principal período

da transição de São Paulo para uma urbanização mais forte em conseqüência do

processo de industrialização. A passagem para uma sociedade contemporânea,

segundo ele, está associada à formação do capitalismo que apresenta dois

aspectos: a transformação do alimento em mercadoria, e a constituição de uma

sociedade de identidade urbana. O processo de apropriação das diversas

mercadorias (alimentos desprovidos de uma tradição alimentar) vai provocar uma

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profunda transformação na identidade cultural da cidade resultando no

esvaziamento de sua cultura alimentar. (CARVALHO, 2007, p. 92-93).

Mello (1998) cita o hábito de freqüentar o Shopping Iguatemi (1966) e as lojas

de departamento como Mappin (1913) e a Mesbla (1912) como o início do hábito de

comer fora em São Paulo:

Aliás, é dessa época, também, o hábito de ‗comer fora‘. Dos almoços e jantares, para o empresariado, os executivos, a cúpula da burocracia do Estado, os políticos e a classe média alta, para os novos-ricos, os novos-poderosos e os novos-cultos, em restaurantes elegantes, preferidos os de comida italiana ou francesa, alguns árabes, alguns espanhóis [...] Pouquíssimos os de comida brasileira. Mas ao lado da churrascaria ou da pizzaria sem sofisticações, os remediados certamente encontrariam onde comer mais barato: o rodízio, a pizzaria sem sofisticações, as cadeias de venda de comida árabe, especialmente quibe e esfiha, a cantina italiana, o restaurante mais popular. Para refeições rápidas, os privilegiados se dirigiam a lanchonetes badaladas e, depois, aos fast-foods [...] Os outros, nos dias de trabalho, aos bares, às lanchonetes baratas, onde comiam o prato feito, conhecido como PF, ou um sanduíche, moda que também foi se arraigando: além do tradicional de pernil, vieram o misto-quente, o queijo-quente, o cachorro-quente, o paulistaníssimo Bauru, o churrasquinho, com ou sem queijo, o americano. As pastelarias se multiplicam. As crianças passaram a adorar o hot dog, as batatas chips, o sorvete com cobertura, depois o cheese-burger (MELLO, 1998, p. 567).

A década de 1950 marcou a chegada da televisão no Brasil e a

institucionalização do uso dos eletrodomésticos como símbolo de modernidade nos

lares. Para ABRAMOVITZ:

A televisão tornava-se um dos símbolos da casa moderna. Casa moderna significava, em última instância, conforto doméstico, e isso cada vez mais associado à elevação do padrão de vida de muitas famílias brasileiras. E, por sua vez, ―conforto‖ traduzia-se em refrigeradores, fogões modernos, batedeiras, aspiradores, telefones, e até mesmo abajures e garrafas térmicas (ABRAMOVITZ, 2006, p. 94).

A partir de 1969 as emissoras de TV passaram a transmitir sua programação

em rede nacional e durante os primeiros anos da década de 1970 já detinham um

maior volume de verba publicitária que o rádio. Essa vocação para exploração

comercial da televisão determinou o desenvolvimento e a especialização das

emissoras, e a formação de redes que culminou com a sua padronização.

Segundo Douglas Kellner (2001):

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[...] a televisão e outras formas da cultura de mídia desempenham papel fundamental na reestruturação da identidade contemporânea e na conformação de pensamentos e comportamentos. [...] a televisão hoje em dia assume algumas das funções tradicionalmente atribuídas ao mito e ao ritual (ou seja, integrar os indivíduos numa ordem social, celebrando valores dominantes, oferecendo modelos de pensamento, comportamento e sexo para imitação, etc) (KELLNER, 2001, p. 304).

Para Ortiz (2006): ―A idéia de ‗vender cultura‘, colocada de maneira tão

explícita, abria a possibilidade de se planejar o investimento em termos de uma

racionalidade empresarial.‖ (Op. cit. p. 136) Ele reforça que o processo de

racionalização da sociedade implica na transformação do relacionamento entre a

empresa e o empregado, e recorda a dimensão religiosa da idéia de missão e

apoiando-se em Max Weber, declara que assistimos a realização de um exemplo

claro de secularização, de desencantamento do mundo porque a ―missão‖ foi

substituída pelo cálculo, pela exatidão versus a eliminação dos elementos ―políticos‖

ou ―românticos‖ desafiadores das normas da produção industrializada.

1.3.4. A reelaboração do caipira

Para Luis Roberto de Francisco (2004) existem muitas definições para o

termo ―caipira‖ que é geralmente usado para designar algo rural, ultrapassado ou

que não sobreviveu à modernidade. Contém ―uma marca de inferioridade das

práticas rurais diante das verdades do conhecimento e dos hábitos de urbanidade‖.

(FRANCISCO, 2004, p. 23). É como caricatura que a personagem caipira aparece

na TV e no rádio para fazer rir, como vencido, fora de moda, anti-herói etc. Contudo,

o processo de massificação da apropriação do termo caipira com essa carga

marginalizadora se iniciou em 1918 quando Monteiro Lobato escreveu o livro

―Urupês‖ que criticava o sertanejo através do personagem Jeca Tatu – um caipira

que ele revestiu de ócio e inferioridade.

Candido (1975) refere-se ao caipira como: ―esterótipos, fixados

sistematicamente de maneira injusta, brilhante e caricatural.‖ (CANDIDO apud

FRANCISCO 2004, p. 24). Cornélio Pires em seu livro ―Conversas ao pé do fogo‖ de

1922 criticou Monteiro Lobato e defendeu o camponês brasileiro coberto de ridículo

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valorizando sua cultura, divulgando seu linguajar e seu modo de viver porém,

transformou sua sabedoria em anedotário. Mais tarde foi lançado, em 1924, o

almanaque do ―Jeca Tatuzinho‖ também de autoria de Monteiro Lobato que ganhou

notoriedade na divulgação do Biotônico Fontoura, um medicamento que prometia a

cura do amarelão. Para Francisco (2004) a cultura do homem da roça não cabia na

lógica de progresso de Monteiro Lobato.

Mauricio Érnica (2004) entendeu as ambigüidades do papel do mundo rural

que ao mesmo tempo em que a cultura caipira atestava a marca de autenticidade e

paulistanidade de alguns grupos em oposição aos estrangeiros, contraditoriamente,

os habitantes pobres e caipiras expulsos dos espaços considerados modernos da

cidade, não tinham acesso a uma participação plena do trabalho assalariado urbano.

Em seu estudo, Maria Alice Setubal (2005) percebe que há um centro

paulistano identificado como a totalidade da cidade enquanto rejeita a periferia.

Entretanto, denuncia a existência ainda hoje de algumas reminiscências da cultura

caipira no convívio da cidade como:

(...) os pregões de pamonha, caminhões de frutas, vendedores de biju com matracas, afiadores de faca e seus apitos, vendedores de doces em carrinhos, bancas com ervas naturais, avícolas que vendem produtos para horta e até mesmo galinhas vivas, casas com pequenas hortas e minipomares, o círculo da reciprocidade nas trocas das produções de hortifrutos e quitutes caseiros, as repentinas aparições de cavalos e carroças no centro expandido, as procissões religiosas, as festas de samba de roda, sambas de vela e outros ritmos, as brincadeiras infantis de ruas, os inúmeros programas de rádio AM, o sucesso do programa Viola, minha viola com Inezita Barroso na TV Cultura e do antigo Som Brasil inicialmente com Rolando Boldrim e depois com o Lima Duarte, o mercado de discos sertanejos na cidade, os bares de cowboys. Sem contar toda a mistura entre o mundo caipira e o mundo sertanejo nordestino – os largos da Batata e 13 de Maio são ricos nessa mistura de sertões (SETUBAL, 2005, p. 62).

Segundo a autora, o Brasil rural, colonial, imperial e republicano dos negros

paulistas, dos imigrantes, do caipira, com seu jeito de ser e seus fazeres, deixou

inúmeras seqüelas a despeito do processo de industrialização permitindo que o

caipira encarne diversos mitos sendo ora visto como analfabeto, ora como indolente

e preguiçoso, ora como fazendeiro desbravador de sertões e conquistador de

fronteiras. A própria ruralidade tem suas facetas, representações e interpretações

que sobrevivem ao tempo ou são reelaboradas adquirindo novos significados. O que

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se vê do olhar contemporâneo da indústria de cultura de massa, sobretudo, no

Estado de São Paulo sobre o caipira é uma reelaboração desses símbolos

denominados: caipira/country/sertanejo - uma etiqueta dos programas de rádio e de

TV com tema rural - apresentado pelas duplas de música sertaneja e principalmente,

em rodeios e exposições, apontados por Setubal (2005) como o ―ápice do

espetáculo‖. Para ela:

O fato relevante é que a indústria cultural encampou a ruralidade em outros termos ao reelaborar suas modalidades culturais conhecidas sob as marcas da rusticidade, do folclore, da tradição, do atraso, da nostalgia, ressignificando a experiência histórica e cultural campestre (SETUBAL, 2005, p. 67)

Nesse sentido, é possível perceber na cidade que muitos restaurantes

consagrados pela mídia exploram, ainda hoje, um cardápio tradicional regional

apelando para a existência de uma cozinha típica paulista, caipira, mas agora

ressignificada pela indústria cultural.

A despeito da cozinha paulista, Jorge Americano (2004) em seu livro de

memórias, de 1957, recorda o seguinte cardápio familiar praticado na época:

Segunda-feira: alcatra para rosbife; Terça-feira: camarão com chuchu; Quarta-feira: cozido; Quinta-feira: filé; Sexta-feira: peixe ou bacalhau; Sábado: frango; Domingo: carne de porco ou de cabrito. Serviam de acompanhamento croquetes, picadinho disto ou daquilo, fritadas e verduras. Também alguns pratos detestáveis como dobradinha, fígado, miolo ou rins. Ás vezes, cuscuz ou feijoada (AMERICANO, 2004, p.65).

Hoje, inspirando grande número de restaurantes populares por quilo, à la

carte e, sobretudo os PF, pratica-se em toda a cidade esse cardápio semanal:

Segunda-feira: Virado à Paulista; Terça-feira: Rabada ou Dobradinha; Quarta-feira:

Feijoada; Quinta-feira: Massas; Sexta-feira: peixe ou frutos do mar; Sábado:

Feijoada; Domingo: Massa.

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2. Das dimensões sociais do modo de ser e do redimensionamento das

representações

“Há qualidades que nos chegam unicamente pelo juízo dos outros”.

Jean-Paul Sartre

Para Pierre Bourdieu (2009), da Idade Média até grande parte do

Renascimento, a vida intelectual e artística francesa que vivia sob o comando das

demandas éticas e estéticas da aristocracia e da Igreja foi sofrendo transformações

econômicas e sociais progressivas em suas instâncias de legitimidade, acarretadas,

em primeiro lugar, pelo volume cada vez maior e socialmente diversificado do

público de consumidores virtuais capaz de propiciar aos produtores de bens

simbólicos condições mínimas de independência econômica e a concessão de um

princípio de legitimação paralelo. A segunda transformação, de acordo com o autor,

de caráter seletivo efetivada pelas restrições de acesso à profissão e participação no

meio, impostas pela necessidade de profissionalização do grande volume que se

constituiu de produtores e empresários de bens simbólicos, e do reconhecimento

exclusivo de normas e imperativos técnicos. A terceira está relacionada com o

número e a variedade de instâncias de consagração na disputa pela legitimidade

cultural e do caráter econômico e social a que eram subordinadas as instâncias de

difusão.

Segundo Bourdieu (2009):

O processo de autonomização da produção intelectual e artística é correlato à constituição de uma categoria socialmente distinta de artistas ou intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a levar em conta exclusivamente as regras firmadas pela tradição propriamente intelectual ou artística herdada de seus predecessores, e que lhes fornece um ponto de partida ou um ponto de ruptura, e cada vez mais propensos a liberar sua produção e seus produtos de toda e qualquer dependência social, seja das censuras morais e programas estéticos de uma igreja empenhada em proselitismo, seja dos controles acadêmicos e das encomendas de um poder político propenso a tomar a arte como um instrumento de propaganda. (...) Da mesma forma, o processo conducente à constituição da arte enquanto tal é correlato à transformação da relação que os artistas mantêm com os não-artistas e, por esta via, com os demais artistas, resultando na constituição de um campo artístico relativamente autônomo e na

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elaboração concomitante de uma nova definição da função do artista e de sua arte (BOURDIEU, 2009, p. 101).

Para o autor, esse movimento de autonomização no campo artístico da forma

e do estilo teve início em Florença no século XV, porém, seu ritmo estava vinculado

a cada sociedade e às esferas de sua vida artística, assumindo um ritmo muito mais

intenso com a Revolução Industrial e com a cisão da classe intelectual e artística

considerando as particularidades de cada nação. O desenvolvimento de uma

indústria cultural coincide com a expansão do público, como uma resposta da

acessibilidade ao ensino elementar pelas novas classes, e a inclusão das mulheres

paralelamente ao processo de diferenciação pautado na diversidade dos públicos e

do consumo de diferentes produtos e categorias de produtores é que se

desenvolveu o sistema de produção de bens simbólicos que abarca duas realidades

distintas: mercadorias e significações, cujos valores culturais ou mercantis subsistem

relativamente independentes.

Segundo ele:

(...) tudo leva a crer que a constituição da obra de arte como mercadoria e a aparição, devido aos progressos da divisão do trabalho, de uma categoria particular de produtores de bens simbólicos especificamente destinados ao mercado, propiciaram condições favoráveis a uma teoria pura da arte – da arte enquanto tal -, instaurando uma dissolução entre a arte como simples mercadoria e a arte como pura significação, cisão produzida por uma intenção meramente simbólica e destinada à apropriação simbólica, isto é, a fruição desinteressada e irredutível à mera posse material (BOURDIEU, 2009, p. 103).

O campo de produção de bens simbólicos está dividido em dois tipos: campo

de produção erudita – voltado para um sistema de produção de bens culturais e

instrumentos de apropriação desses bens destinado a um público de produtores de

bens culturais – e, o campo de produção cultural destinado aos não-produtores de

bens culturais, ou seja, o grande público. De acordo com Bourdieu (2009) o sistema

de produção e circulação de bens simbólicos é ―o sistema de relações objetivas

entre diferentes instâncias definidas pela função que cumprem na divisão do

trabalho de produção, de reprodução e de difusão de bens simbólicos.‖

A criação espontânea e desinteressada de produtos únicos e inestimáveis de

um artista autônomo, irredutível às necessidades da economia, elemento de

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representação da cultura como realidade superior, identificadas pelo autor como

‗invenções‘ do romantismo, são reações à ameaça de substituição de uma clientela

selecionada (receptor ideal) por um público anônimo de burgueses. Um esforço para

validar a produção artística aferindo-lhe o valor de uma peça de origem única de um

‗gênio criador‘ separando dessa forma o intelectual do vulgar e afastando-se do povo

e do burguês.

Ao contrário do sistema da indústria cultural que obedece à lei da concorrência para a conquista do maior mercado possível, o campo da produção erudita tende a produzir ele mesmo suas normas de produção e os critérios de avaliação de seus produtos, e obedece à lei fundamental da concorrência pelo reconhecimento propriamente cultural concedido pelo grupo de pares que são, ao mesmo tempo clientes privilegiados e concorrentes (BOURDIEU, 2009, p. 105).

Mede-se o grau de autonomia de um campo de produção erudita de acordo

com a sua capacidade de atuação como o campo de uma competição pela

legitimidade cultural que objetiva a conquista das distinções culturalmente

pertinentes (temas, técnicas e estilos dotados de valor) capazes de conferir um valor

cultural como um princípio de diferenciação (uma especialidade, uma maneira, um

estilo) reconhecido como pertinente na esfera cultural.

A recepção das obras produzidas pelo campo de produção erudita (puras,

abstratas e esotéricas) ou depende de uma disposição propriamente estética, ou

exigem enfoques específicos, ou depende do grau de instrução dos receptores,

exigindo um domínio prático e teórico de códigos refinados, enquanto a recepção

dos produtos do campo de produção cultural independe do nível de instrução dos

receptores uma vez que se ajusta às demandas.

O modo de produção erudito deve incluir as instâncias capazes de assegurar

a produção de receptores dispostos e aptos a receber a cultura elaborada, e a

produção de agentes capazes de reprodução e inovação dessa cultura. Nesse

contexto é importante ressaltar as relações que o campo de produção mantém com

as instâncias como os museus (preservação do capital de bens simbólicos), com as

instâncias qualificadas como o sistema de ensino (reprodução dos sistemas de

ação, de expressão, de concepção, de imaginação, de percepção e de apreciação

disponíveis para uma determinada formação social). Da ação prolongada pela

inculcação do sistema de ensino produzem-se agentes dotados de um habitus

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secundário, ou seja, a partir de um ethos e um eidos secundários se constituem os

produtos da interiorização de um conjunto de esquemas.

Segundo o autor:

(...) o habitus seria um conjunto de esquemas implantados desde a primeira educação familiar, e constantemente repostos e reatualizados ao longo da trajetória social restante, que demarcam os limites à consciência possível de ser mobilizada pelos grupos e/ou classes, sendo assim responsáveis, em última instância pelo campo de sentido em que operam as relações de força. Para além da ‗comunicação das consciências‘, os grupos e/ou as classes compartilham das inúmeras competências que perfazem seu capital cultural, como uma espécie de princípio que rege as trajetórias possíveis e potenciais das práticas (BOURDIEU, 2009, p. 42).

O conceito de cultura para Bourdieu (2009) pode ser abordado sob duas

posturas. A cultura como instrumento de comunicação e conhecimento responsável

pelo consenso do significado dos signos e do mundo. E, cultura como instrumento

de poder que legitima a ordem vigente.

Walter Benjamin (2000) desenvolveu uma teoria política sobre a arte onde

questiona o valor da autenticidade e unicidade da obra de arte em relação ao caráter

serial da reprodutibilidade técnica que prognosticou para a modernidade capitalista.

O que ele reconhece como realmente novo é a reprodutibilidade técnica que

exemplifica com a conquista da reprodução de imagens através da fotografia, que

segundo ele, já contém o germe do cinema falado. Porém, mesmo na mais perfeita

reprodução identifica a ausência de algo que chama de hic et nunc que se refere à

ausência da unidade de sua presença no local em que se encontra e que constitui a

sua própria autenticidade. Sobre a noção de autenticidade, ele afirma que não tem

sentido quando se trata de qualquer tipo de reprodução, embora a reprodução

técnica por estar mais independente do original e por sua capacidade de reproduzir

situações não deve ser tratada como uma falsificação. Segundo ele:

O que faz com que uma coisa seja autêntica é tudo o que ela contém de originariamente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico. Como esse testemunho repousa sobre essa duração, no caso da reprodução, em que o primeiro elemento escapa aos homens, o segundo - o testemunho histórico da coisa - encontra-se igualmente abalado. Não em dose maior, por certo, mas o que é assim abalado é a própria autoria da coisa (BENJAMIN, 2000, p. 225).

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Para ele, apesar da reprodução atingir a aura da obra de arte, reconhece sua

capacidade de transformar o evento produzido apenas uma vez em um fenômeno de

massas permitindo a esse objeto reproduzido oferecer-se à visão e audição, além de

atualização constante. Como conseqüência, identifica um abalo na realidade

transmitida – a tradição - constituindo a contrapartida da crise por que passa a

humanidade e sua renovação. Nesse caso, a imagem está associada às duas faces

da obra de arte como unidade e duração, enquanto que a fotografia se coloca na

posição oposta como uma realidade fugidia de reprodução infinita. Enquanto a arte

requer recolhimento, as massas buscam diversão. Segundo o autor:

Desde que a obra de arte se torna mercadoria, essa noção (de obra de arte) já não se lhe pode mais ser aplicada; assim sendo, devemos, com prudência e precaução — mas sem receio renunciar à noção de obra de arte, caso desejemos preservar sua função dentro da própria coisa como tal designada. Trata-se de uma fase necessária de ser atravessada sem dissimuIações; essa virada não é gratuita, ela conduz a uma transformação fundamental do objeto e que apaga seu passado a tal ponto. que. caso a nova noção deva reencontrar seu uso — e por que não? não evocará mais qualquer das lembranças vinculadas á sua antiga significação. (BRECHT apud BENJAMIN, idem, p. 232).

Ainda de acordo com esse autor:

A massa é matriz de onde emana, no momento atual, todo um conjunto de atitudes novas com relação à arte. A quantidade tornou-se qualidade. O crescimento maciço do número de participantes transformou o seu modo de participação. O observador não deve se iludir com o fato de tal participação surgir, a princípio, sob forma depreciada. Muitos, no entanto, são aqueles que, não havendo ainda ultrapassado esse aspecto superficial das coisas, denunciaram-na vigorosamente. As críticas de Duhamel são as mais radicais. O que ele conserva do filme é o modo de participação que o cinema desperta nos espectadores. (...) Na época de Homero, a humanidade oferecia-se, em espetáculo, aos deuses do Olimpo: agora, ela fez de si mesma o seu próprio espetáculo. Tornou-se suficientemente estranha a si mesma, a fim de conseguir viver a sua própria destruição, como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a estetização da política, tal como a pratica o fascismo. A resposta do comunismo é politizar a arte (BENJAMIN, 2000, p. 250, 254).

Enfim, Benjamim (2000) identifica a crescente proletarização do homem

contemporâneo e o aumento da importância das massas como características do

mesmo processo histórico, em que o fascismo querendo organizar as massas sem

mexer no regime de propriedade, culmina com a estetização da vida política.

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2.1. O “bom gosto” como um novo conceito

“É preciso viver para comer, e não comer para viver.”

Molière

Sobre a morte do chef Bernard Loiseau que se suicidou diante da possível

desgraça de perder uma de suas três estrelas do Guia Michelin em fevereiro de

2002, o jornal britânico The Independent divulgou: ―O padrão Michelin-GaultMillau

nasceu na França, existe há séculos e sempre pertencerá ao lugar onde a

gastronomia é uma questão de vida ou morte‖ (DEJEAN, 2010, p. 130-131). Para

Joan Dejean, o processo de transformação da França em um mundo gastronômico à

parte regulado pelo Guia Michelin começou em 1651 com a publicação do primeiro

livro de culinária moderno Le Cuisinier François de François Pierre de La Varenne

que desencadeou uma revolução na cozinha fazendo com que a comida se tornasse

a cuisine e a cuisine se tornasse francesa. Segundo ela: ―Desse momento em

diante, as receitas que ainda são a base da tradicional culinária francesa passaram

a existir como parte de um repertório permanente‖ (DEJEAN, 2010, p. 130-131). Foi

assim que cozinhar e comer deixaram de ser uma necessidade para galgar os

patamares da sofisticação revestindo-se de refinamento e elegância, e tornando-se

objeto de desejo.

Para a autora:

O movimento que La Varenne iniciou fez com que a comida também partilhasse os valores promovidos por todos os setores que sustentavam os padrões do novo estilo francês, da alta-costura aos cafés; tornou-se a comida essencial para a nova civilização de bom gosto (francês) (DEJEAN, 2010, p. 132).

A memória de François Vatel outro grande exemplo da história da cozinha

francesa que o cinema imortalizou com o filme ―Vatel - um banquete para o rei‖, de

2000, confirma essa questão de como a honra culinária foi capaz de justificar seu

suicídio em 1671. Nesse contexto, Dejean (2010) observa que: ―Desde o início, os

novos pratos, promovidos como essencialmente franceses, estavam fortemente

associados à honra da própria nação‖ (DEJEAN, 2010, p. 157)

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Noventa anos depois do lançamento do livro de ―La Varenne, o estilo francês

da cozinha‖ – a cuisine française – tinha se fixado como uma doutrina expressiva em

toda a Europa Ocidental e, paralelamente, vigorava uma segunda doutrina de que só

os cozinheiros franceses eram donos desse savoir faire, e os verdadeiros mestres

da haute cuisine. A cozinha francesa modificou completamente a forma de preparo e

consumo dos alimentos. Pautado na novidade, o estilo francês inspirou o

lançamento de outros livros de culinária se tornando um importante setor da

indústria editorial, contribuindo tanto para atribuir valor ao cardápio francês

(elegância) como para o estabelecimento de uma definição geográfica particular que

se manteve desde então: a presença de um chef francês na cozinha de qualquer

lugar é sinônimo de sofisticação. Foi a cuisine française que criou o gourmet, o chef

celebridade e conferiu a ele um status próprio da nobreza, além de fixar novos

padrões de entretenimento.

Roy Strong (2004) cita a revolução gastronômica do século XVII como

responsável pelo título Le grand siècle e oferece uma discrição dos ingredientes dos

novos cardápios:

O gosto da comida se modificou. O consumo de pássaros exóticos, como pavões e cisnes, grous e garças, saiu de moda, junto com lampreias e baleias. A partir daí só aparecia sob a forma de leitão ou presunto, e o restante foi relegado aos recheios – como picadinho – e ao toucinho. As carnes preferidas eram de boi, vitela e carneiro (cordeiro era considerado insípido), e no que diz respeito às aves, galinhas em todas as variedades, patos, marrecos, pombos e pássaros de caça. A caça em geral, até a Revolução Francesa, permaneceu uma prerrogativa da aristocracia, portanto continuou a ser um símbolo de status. O peru era servido apenas em festas. O peixe era consumido em imensas quantidades – nos países católicos os velhos dias de jejum continuavam vigorando – mas os preferidos eram os peixes de água doce, como salmão e truta (Peixes do mar, como linguado, plaice e pescada, estiveram em grande moda no século XVII) (STRONG, 2004, p. 192).

Segundo ele, o grande triunfo da horticultura na mesa de Versalhes se deve

ao jardineiro de Luis XIV, Jean de La Quintinie que multiplicou as variedades de

frutas e vegetais, e desenvolveu estufas para protegê-los do rigor do inverno. As

saladas se popularizaram com a oferta de cogumelos, aspargos, trufas, alcachofras,

alface, e, sobretudo, a ervilha que ganhou destaque na época. Foi inventando o

método de produção de champanhe que junto com o borgonha se tornaram os

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preferidos da aristocracia. Entraram na moda os licores, águas perfumadas, bebidas

geladas e se popularizaram o chocolate, o chá e o café.

Para Strong (2004) a difusão da nova cozinha francesa por meio de livros

indica dois fatores relevantes: que qualquer cozinheiro importante deveria saber ler e

que as classes altas eram as principais interessadas por serem as mais

alfabetizadas. De acordo com ele: ―uma nova culinária só poderia dominar se

satisfizesse uma necessidade profunda.‖ (STRONG, 2004, p. 194) Baseado nessa

premissa é que ele acredita que, na época, a aristocracia encontrou no novo estilo

de cozinha uma forma de se destacar na hierarquia social, uma vez que piorava a

situação dos camponeses enquanto os burgueses se aproximavam tentando imitá-

la.

De acordo com STRONG o principal fator para o rompimento com a culinária

renascentista e medieval foi a adoção da versão mecanicista do mundo contra o

predomínio do contexto cosmológico e o atomismo de Epicuro permitindo que a

comida passasse a explorar os sentidos através do estimulo do desejo. De acordo

com ele:

O novo estilo tornou o aspecto salgado e ácido da culinária renascentista e adaptou-o, fundindo os vários ingredientes de modo a criar um todo. No novo esquema o sal teve grande proeminência. Em meados do século XVII era adicionado a todos os pratos. Ao mesmo tempo o sabor adocicado – principalmente obtido acrescentando-se açúcar o que antes era uma característica de quase todas as seqüências numa refeição – ,em 1700, limitou-se à seqüência da sobremesa (STRONG, 2004, p. 195).

Essa alteração também afetou o espaço da cozinha que se compartimentou

em cuisine, para a preparação das refeições e office, um espaço em plena expansão

reservado para a elaboração de sobremesas, preservação de frutas e flores, e

esculturas de açúcar. Nesse movimento da quantidade para a qualidade e para a

ascensão social, a cuisine française foi se desfazendo de especiarias e temperos

medievais e renascentistas para abarcar novos ingredientes: cerefólio, estragão,

manjericão, tomilho, louro e cebolinha, além dos laticínios, como a manteiga e o

creme de leite. O autor ainda afirma que, a mudança do foco primário do agrado aos

olhos para a ênfase no paladar foi responsável pela elevação da culinária ao

patamar de arte e, mais tarde, à ciência da gastronomia.

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78

Em 1691, François Massialot substituiu La Varenne com seu livro ―Le cuisinier

royal e bourgeois‖, um livro dedicado aos cozinheiros da aristocracia que dirigia

frases de desprezo para a burguesia e que, de acordo com STRONG, pregava a

extravagância da comida e tudo mais que pudesse destacar o mundo aristocrático

em termos de decoração, ambiente e serviço, como uma expressão de poder,

embora se considerasse austero. Essa ênfase, entretanto, contrariava os princípios

do iluminismo desencadeando a reação de alguns autores como Rousseau e Marin,

e um redirecionamento da cozinha representada pelo livro ―La cuisine bourgeoise‖,

de 1746, de autoria de Manon que pregava a simplicidade, mas de forma que

ficavam preservados os elementos centrais da cozinha francesa definidos por Strong

como haute cuisine e cuisine bourgeoise.

A moda do serviço à francesa, outro legado da revolução da cozinha

francesa, em casos mais requintados se assemelhava a um balé com a substituição

das travessas a cada quinze minutos por um exército de lacaios e o aparelho de

jantar foi introduzido ao serviço à francesa para reforçar seu impacto enfatizando o

aspecto visual da arrumação da mesa. Os hábitos franceses também se

caracterizavam pelas boas maneiras à mesa. Tendências sempre copiadas pela

classe emergente.

Muito celebrado também foi Antonin Carême que em 1803 já era reconhecido

por seus grandes eventos de pastelaria de cunho aristocrático, tanto nas mesas da

realeza como na dos novos ricos. Foi autor de livros que fundamentaram a cozinha

clássica francesa do século XIX.

Jean-Pierre Poulain (2004) destaca a importância do surgimento do crítico

gastronômico na atribuição de legitimidade social à burguesia francesa através da

cozinha, por seu papel norteador da definição de critérios do gosto e do belo. O

autor aponta dois grandes nomes da época: Grimond de La Reynière que publicou

em 1802 seu livro ―L‘almanach des gourmands‖ com o objetivo de ―guiar a burguesia

no emaranhado de suas novas boutiques de carne (magasin de bouche),

restaurantes, traiteurs...‖ (POULAIN, 2004, p. 241) enquanto divulgava as regras da

gastronomia. Dirigido aos novos proprietários da Revolução ele publicou alguns

anos mais tarde, Manuel des amphitryons onde ensinava de maneira nobre a arte de

bem viver. O autor percebe em Reynière o desempenho de um papel mediador em

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79

que ―Ele inventa simultaneamente a literatura gastronômica, os guias e os signos de

qualidade. Da mesma forma, dispositivos de legitimação que são ainda

determinantes na gastronomia e do consumo alimentar contemporâneo.‖ (POULAIN,

2004, p. 241). E, Brillat-Savarin (1995) que ele identifica como ―o segundo

personagem chave na articulação dos códigos alimentares da aristocracia e da

burguesia pós-revolucionária‖ (POULAIN, op. cit., p. 241)

Nessa época, ninguém falou mais dos sentidos do que Brillat-Savarin em seu

livro intitulado A fisiologia do gosto, publicado em 1825. Considerado a certidão de

nascimento da gastronomia, o livro é um ensaio dos sentidos em que o autor

apresenta a ação do bem comer dentro de um contorno científico que transforma o

que era apenas uma necessidade fisiológica em um processo artístico coberto de

delicadezas e preceitos. Segundo ele:

(...) o amor físico invadiu todas as ciências: nisso ele age com aquela tirania que o caracteriza sempre. O gosto, faculdade mais prudente, mais comedida, embora não menos ativa, alcançou o mesmo objetivo com uma lentidão que assegura a duração de seus sucessos. (...) O gosto é aquele de nossos sentidos que nos põe em contato com os corpos sápidos, por meio da sensação que causam no órgão destinado a apreciá-los (SAVARIN, 1995, p. 39-41).

Savarin (1995) considera o gosto a partir de três aspectos: como um aparelho

que permite a apreciação dos sabores, no homem físico; como uma sensação

despertada no órgão impressionado por um corpo saboroso, no aspecto moral; e

como a propriedade de um corpo de impressionar o órgão que desencadeia a

sensação, no aspecto material.

A gastronomia é para ele ―o conhecimento fundamentado de tudo o que se

refere ao homem, na medida em que ele se alimenta.‖ (SAVARIN, 1995, p. 57) E

objetiva zelar pelos homens através da melhor refeição possível, relacionando-se

com a história natural, a física, a química, a culinária, o comércio e a economia

política.

Para POULAIN (2004), o papel que desempenha o Guia Gault et Millau,

criado na década de 1960, na articulação da categoria de executivos divididos entre

o poder delegado pelo capital e o mundo operário da condição de assalariado, é o

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80

mesmo dos críticos do século XIX porque encontra na nova cozinha um espaço de

legitimidade.

Felipe Fernández-Armesto (2004) acredita que a conseqüência mais

importante da nova cozinha francesa foi o aburguesamento da cozinha dos reis e

aristocratas graças à sua acessibilidade provocada pela renúncia aos exotismos da

cozinha ―mourisca‖16 e o retorno aos alimentos mais ocidentais e familiares.

Massimo Montanari (2009) associa a influência da cozinha francesa sobre o

gosto das altas classes européias, às traduções e adaptações de receitas dos

tratados culinários franceses daquela época, o que acarretou em muitos países, uma

dificuldade de se conhecer com precisão usos característicos e as transformações

ocorridas.

Segundo Dejean (2010) a grande divulgação da cozinha francesa na América

do Norte começou a ocorrer a partir da década de 1960, quando os turistas

regressavam de suas viagens a Paris com a convicção de que tinham encontrado a

melhor culinária do mundo. Desde então, chefs franceses passaram a fazer parte do

cenário gastronômico americano, e sair para jantar fora se tornou o principal evento

de uma noite e um dos maiores prazeres da vida.

De acordo com a autora (2010):

E a partir do momento, na década de 1960, em que Julia Child começou a apresentar seu programa televisivo The French Chef, a mensagem inicialmente formulada na França de Luis XIV tornou-se parte de nossa herança culinária. Hoje, a comida elegante servida nos Estados Unidos é quase sempre comida à francesa com um leve sotaque. Mas a partir do momento em que The French Chef foi ao ar pela primeira vez, ninguém deste lado do Atlântico esqueceu que todo bom chef é um cozinheiro francês de coração (DEJEAN, 2010, p. 159).

Dejean (2010) descreve a escalada da haute cuisine para as mesas e

vocabulário americano a partir da publicação do primeiro volume do livro ‖Mastering

the Art of French Cooking‖ (Dominando a arte da culinária francesa) lançado em

1961, de autoria de Simone Beck, Louisette Betholle e Julia Child, quase três

séculos após o lançamento da obra de La Varenne. O sucesso do livro se deve à

desmistificação dos mistérios da haute cuisine, apresentada como uma questão de 16

Aspas do autor (FERNÁNDEZ, 2004, p. 187)

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técnicas e regras, muitas compiladas por La Varenne, mediante a promessa

anunciada no prefácio de que ―qualquer um pode cozinhar à francesa em qualquer

lugar; basta seguir as instruções corretas‖ (DEJEAN, 2010, p. 159). Os anos 1960

marcaram também o início da apresentação do programa de Julia Child, The French

Chef na TV americana.

2.1.1. Uma socialização dos sentidos

De acordo com Georg Simmel (2006) o significado de sociedade, em geral, é

a interação entre indivíduos motivada por determinados impulsos (fome, instintos

eróticos, impulsos religiosos, etc.) ou certas finalidades (interesse objetivo, defesa,

ataque, conquista etc.). Assim, ao mesmo tempo em que o indivíduo exerce efeitos

sobre os demais ele também sofre os efeitos deles o que os torna formadores de

uma unidade chamada sociedade. Porém, as motivações não são consideradas por

si sós, sociais, mas se transformam em fatores de sociação quando deixam de ser

uma agregação isolada dos indivíduos para assumir características de estar e ser

para o outro de acordo com o conceito geral de interação. Para o autor:

A sociação é, portanto, a forma (que se realiza de inúmeras maneiras distintas) na qual os indivíduos, em razão de seus interesses – sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, movidos pela causalidade ou teleologicamente determinados -, se desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses interesses se realizam. Esses interesses sejam eles sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, casuais ou teleológicos, formam a base da sociedade humana (SIMMEL, 2006, p. 60-61).

A elaboração do material (conteúdo) que os indivíduos tomam do mundo varia

segundo a inteligência, criatividade, vontade e movimentos afetivos de acordo com

as condições e necessidades práticas do grupo. O formato que é dado ao conteúdo

passa a ser utilizado como um elemento da vida do grupo, passando a matéria de

valor definitivo libertando-se e tornando-se autônoma posteriormente – o que

Simmel (2006) chama de jogo. As formas do comportamento desejável do grupo

para o jogo se constroem a partir de forças, carências e impulsos da vida real. Essas

formas também criam um domínio autônomo dentro do jogo independentemente da

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realidade, dos seus conteúdos e estímulos autônomos, comparando-se à arte.

Segundo ele:

É de sua origem - que as mantém atreladas à vida – que retiram sua força e sua profundidade. Sempre que arte e jogo se esvaziam de vida, tornam-se artifício e mero entretenimento. Assim, seu significado e sua essência se encontram justamente nessa mudança fundamental pela qual as formas criadas pelas finalidades e pelas matérias da vida se desprendem dela e se tornam finalidade e matéria de sua própria existência (SIMMEL, Idem, p. 63).

As formas se compõem da mútua determinação e da interação de todos os

elementos constitutivos da unidade. Assim, a partir de sua liberação, elas adquirem

por si mesmas e pelo estímulo que delas se irradia, uma vida própria e um livre

exercício dos conteúdos materiais caracterizando o fenômeno da sociabilidade.

Quanto mais perfeita for como sociabilidade mais ela adquire da realidade,

assumindo um papel simbólico e um significado racional (próprio de conteúdos

concretos) que preenche a vida da população em geral. Para Simmel (2006), o

homem em seus múltiplos papéis é uma elaboração construída: ―O ser humano

como um todo é, por assim dizer, um complexo ainda informe de conteúdos, formas

e possibilidades‖ (SIMMEL, Op. cit., p. 67) podendo mudar a configuração de sua

imagem pela alteração de suas motivações e relações da existência.

Simmel (2006) identifica uma estrutura democrática no princípio da

sociabilidade onde ―cada indivíduo deve garantir ao outro aquele máximo de valores

sociáveis (alegria, liberação e vivacidade) compatível com o máximo de valores

recebidos por esse indivíduo‖ (SIMMEL, Idem, p. 69) semelhante à lei kantiana. A

igualdade, segundo ele, resulta da eliminação do que é inteiramente pessoal e

inteiramente material, e até mesmo daquele material que moveu os indivíduos para

a sociação, como uma condição de sociabilidade. O autor se refere a essa

democracia da sociabilidade como um jogo de cena, uma artificialidade que cria um

mundo sociologicamente ideal, voltado para a felicidade dos outros, mas

impossibilitado pela exclusão das outras várias formas sociais. Para ele, esse jogo

do faz de conta de que são todos iguais, só deixa de ser verdadeiro:

(...) quando a ação sociável e o discurso se tornam simples instrumentos das intenções e dos acontecimentos da realidade prática – assim como a pintura se torna mentirosa quando pretende simular panoramicamente a realidade (SIMMEL, Op. cit., p. 71).

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É baseado nisso que ele alerta para a duplicidade de sentido do jogo da

sociedade: ―não somente joga na sociedade aquele que a mantém externamente,

mas com ele ‗joga-se‘ de fato a ‗sociedade‘‖ (SIMMEL, Op. cit., p. 72).

Para o filósofo italiano Mario Perniola, vivemos hoje sob o domínio da

sensologia em substituição à ideologia:

Na passagem da falsa consciência para o falso sentir todos se tornaram inocentes e é-lhes também retirada a culpa de indiferença: na verdade, agora existe sempre um olho pronto a ver, um ouvido pronto a ouvir, um palato pronto a saborear, mas estes sentidos são anônimos impessoais. Se a ideologia era a socialização dos pensamentos, a sensologia é a dos sentidos (PERNIOLA, 1993, p.15).

Nesta hipótese, ele afirma que predomina hoje a mediacracia em substituição

à burocracia que consiste na imposição do poder da mediação entre governantes e

governados. Enquanto na burocracia o poder deriva da capacidade de execução, na

mediacracia deriva da capacidade de mediação, onde agentes do sentir se mantêm

atentos a todos os emissores em jogo. Como resultado, este sentimento do já

sentido e já tateado vai antecipar, preceder e até substituir o fato. Neste caso:

É evidente que os meios de comunicação de massa desempenham um papel importantíssimo neste processo, mas no fundo limitam-se muito mais a obedecer ao já sentido do que comandá-lo. Eles precipitam-se numa incessante corrida para a difusão antecipada do já sentido: os data files das redações dos jornais e das televisões, em que é conservado o já sentido, tomaram assim o lugar dos arquivos das burocracias, em que era conservado o já feito. A mediacracia não consiste apenas no fato de se transferir o domínio do sentir - da sensibilidade e afetividade – do homem para instrumentos e aparatos impessoais, mas também na importância assumida por uma negociação que está mais virada para elementos estéticos no sentido literal da palavra do que para interesses e necessidades (PERNIOLA, 1993, p. 16).

Perniola (1993) observa, nesta perspectiva, o indivíduo até certo ponto como

um mercador, onde o sentir está relacionado à obediência a leis econômicas e a

liberdade é promovida pelo sistema mercantil no jogo da concorrência.

Para Richard Sennett (2006) esta liberdade de escolha do indivíduo mercador

chama-se paixão autoconsumptiva onde o indivíduo é visto como um expectador-

consumidor:

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A decisão sobre o produto de preço baixo que será comprado é da esfera do imaginário e do marketing globais. [...] Para o consumidor a marca deve ter mais relevância que a coisa em si. [...] o consumidor busca o estímulo da diferença em produtos cada vez mais homogeneizados (SENNETT, 2006, p. 126-137).

Segundo Giovanni Sartori (2001) a opinião pública17 é uma situação que

representa um conjunto de opiniões que se encontram na coletividade envolvendo o

bem comum onde o sujeito é o público,caracteriza a opinião como um saber doxa,

subjetivo, fraco, variável que dispensa comprovação (ao contrário do epistème)

pertinente à situação da coisa pública e alimentada pelos fluxos de informações

provenientes do poder político ou veículos de informação pautados nos jornais

(mesmo depois do rádio), cujos efeitos se davam em cascata. Havia um equilíbrio da

opinião autônoma e as opiniões heterônimas - hetero-dirigidas18. Porém, com a

televisão a comunicação imagética suplantou a comunicação lingüística, e a força

avassaladora da imagem quebrou esse sistema de equilíbrio superando os líderes

intermediários de opinião e eliminando as diversas autoridades cognitivas detentoras

do poder de direcionamento. A autoridade da televisão está na própria imagem

entendida como vozes do público, o real transformado em verdadeiro. (SARTORI,

2001, p. 49-57)

Sartori (2001) entende que informar é comunicar um conteúdo, falar a

respeito de alguma coisa, porém, informar no jargão da mídia é apenas o bit:

Quer dizer no canal televisivo a informação é tudo o que circula. Portanto, informação, desinformação, verdade, mentira Inclusive um boato passado na rede televisiva, torna-se informação. [...] A televisão pode mentir, e falsificar a verdade, exatamente como qualquer outro instrumento de comunicação. A diferença está no fato que a ‗força de veracidade‘ contida na imagem torna a sua mentira mais eficaz e por isso mesmo mais perigosa (SARTORI, 2001, p. 84, 85).

Sartori (2001) referindo-se à revolução cultural de 1968 afirma:

Esta revolução a essa altura é quase totalmente tecnológica, de inovação tecnológica. [...] Os meios de comunicação, e, sobretudo a televisão, agora são geridos pela subcultura, por pessoas sem cultura. [...] A televisão premia e promove a extravagância, o absurdo e a insensatez. [...] A cultura audiovisual é ‗inculta‘ e, portanto, não cultura... (SARTORI, Idem, p. 138-141).

17

Sartori supondo a democracia como um sistema de governo controlado pela opinião pública questiona, neste capítulo, como a opinião pública nasce e se forma. (SARTORI, 2001, p. 52) 18

Conceito de Riesmen adotado por Sartori (Op. Cit., p. 52)

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Por estas e outras razões apontadas para o enfraquecimento da democracia,

o autor defende a idéia de que está havendo uma substituição da democracia pela

videocracia19, hoje observada em todos os segmentos como a cozinha paulista que

vive também esta influência da manipulação da cultura de consumo que se propaga

de forma globalizada liderada pela força imagética da comunicação.

2.2. A transformação da estética tradicional em poética da emoção

“A beleza dos atos, como a dos versos,

mede-se pela soma da emoção que provocam”

Dr. Pereira Barreto, O Estado, 1921

Nicolau Sevcenko (2009) observa o escândalo e o grande espanto que

causou a brusca mudança de comportamento das mulheres com a irreverência de

suas danças, a moda de saias curtas e decotes generosos enquanto conquistavam

definitivamente o espaço público: ―Elas estavam por toda parte, a qualquer hora‖

(SEVCENKO, 2009, p. 50).

Em 1919, com a universalização da indústria fonográfica, sobretudo, através

das distribuidoras americanas, era a música que se democratizava com o acesso à

vitrola, e a indústria de lazer que emergia propondo novos hábitos e novos espaços

para dançar. Segundo o autor o comercial da Victor Talking Machine Co. anunciava:

―Todos podem e devem possuir uma vitrola [...]. Aceitamos seu gramofone de

qualquer marca como parte do pagamento‖ (SEVCENKO, 2009, p. 90). Ou o

comercial da Casa Murano: ―Dance muito!! [...] e divirta-se que a vida é curta‖

(SEVCENKO, 2009, p. 90). A música deixava de ser associada à audição privada e

doméstica dos gramofones com suas óperas e músicas eruditas para se tornar

19

Sartori chama de videocracia a fabricação de opinião maciçamente hetero-dirigida que parece fortalecer, mas que esvazia a democracia como governo de opinião, porque a televisão, ao invés de porta-voz de uma opinião pública, transmite o eco da própria voz.(Op. cit., p. 56)

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pública e acessível não só aos mais abastados como também ao público dos clubes

e grupos excitando os jovens com o frenesi estridente dos novos ritmos.

Também crescia a paixão futebolística e o culto ao automobilismo, se

estabelecia o hábito de praticar esportes enquanto prosperava a indústria

cinematográfica americana em que, segundo o autor, predominava o cinema ―mais

rigorosamente codificado e submetido a convenções artísticas e narrativas

tradicionais‖ que o europeu o que acabou amortecendo ―o impacto revolucionário da

nova linguagem artística dentre o público paulista‖ (SEVCENKO, 2009, p. 92).

Segundo ele:

A indústria cinematográfica, em prosperidade galopante, sobretudo os estúdios norte-americanos, beneficiários exclusivos dos transtornos que a Guerra impusera aos concorrentes europeus, supera os teatros e adquire um papel proeminente como forma popular de lazer nas grandes cidades. Os norte-americanos, com suas técnicas propagandísticas e amplos sistemas de distribuição, conseguiram colocar, em 1920, mais de 70 milhões de metros de filme no mercado sul-americano, um terço do total de sua produção. Os filmes naturalmente eram só uma parte da indústria, de expressiva monta igualmente, constando de um manancial caudaloso de revistas, informações, mexericos, fotografias, pôsteres, suvenires, discos, fã-clubes e turnês artísticas (SEVCENKO, 2009, p. 92).

Em São Paulo o cinema fez de imediato uma legião de fãs ardorosos, uma

―clientela voluntariamente cativa e feliz‖ que ―encontravam no dinamismo técnico e

temático da forma cinematográfica a arte compatível por excelência com os

estímulos voláteis da cidade‖ (SEVCENKO, 2009, p. 93). Era, segundo ele, a

indústria contemplando as demandas urgentes das massas urbanizadas.

Nesse mesmo período também se assistiu a um ―boom‖ da indústria editorial

paulista envolvendo livros, revistas e folhetos atraindo escritores de todo o país, e

beneficiando particularmente ―O Estado‖ que se consolida como o jornal de maior

tiragem no país, com um corpo composto por redatores pinçados entre brilhantes

intelectuais e tendo como colaboradores permanentes, celebridades da imprensa

européia. São Paulo passa a ser chamada: ―a capital do livro no Brasil‖ e a nova

geração de jovens intelectuais que abastecem o mercado editorial fica conhecida

como: ―o fenômeno paulista‖ (SEVCENKO, 2009, p. 96).

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Nas artes plásticas também acontece uma explosão de espaços para

exposições improvisados em livrarias, cinemas, hotéis e casas de comércio trazendo

artistas estrangeiros e atraindo jovens artistas locais levando os críticos a forçarem,

com uma campanha ruidosa, as autoridades a dotarem a cidade de uma infra-

estrutura que permitisse uma rotatividade maior de artistas e obras e garantisse a

referência básica de acervos permanentes. A cidade se revelava como a capital

artística e pólo cultural. De acordo com SEVCENKO:

Em meio a essa atmosfera eufórica, várias entidades ou segmentos da população concorrem entre si para deixarem a sua marca ou o seu símbolo coletivo de distinção, fixando a sua própria perspectiva como um marco de referência que viesse a se tornar um marco indelével de qualquer possível identidade da cidade (SEVCENKO, 2009, p. 98).

O autor trata a obra de arte desse momento como ―discursos visuais

ostensivos‖ e ―cenário simbólico-político‖20 capazes de estimular e sensibilizar a

população em suas emoções regularizando sua interação com o espaço público da

mesma forma que os rituais arcaicos despertavam o entusiasmo e conduziam à

euforia e ao transe em que todos se identificavam com uma realidade, idéia ou

símbolo transcendente. Porém, segundo ele, os rituais daquele momento buscavam

―traduzir o presente como um sinal profético do futuro‖ (SEVCENKO, 2009, p. 99).

Ao mesmo tempo em que ele considera a ―cena propriamente dita‖21 a história que

se escrevia da cidade em que os habitantes serviam ao mesmo tempo de público e

um dos personagens.

Ainda de acordo com Sevcenko (2009) entre 1872, quando a cidade de São

Paulo já se encontrava sobre efeito do surto cafeeiro e contabilizava 64.934

habitantes, e o censo de 1934, que indicou o número de um milhão e duzentos mil

habitantes, a cidade registrou o crescimento de 5689% nesses 62 anos, razão pela

qual ficou conhecida como a cidade que mais cresce no mundo. O acúmulo de

recursos trazidos pela riqueza cafeeira e a oferta de oportunidades na indústria e

comércio atraíram um grande número de pessoas de outros países e de outros

estados brasileiros que tiveram que enfrentar muitas contrariedades e improvisar

20

(SEVCENKO, 2009, p. 99) 21

(SEVCENKO, 2009, p. 99)

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suas vidas e moradias. A própria cidade foi perdendo sua identidade rural e

embaraçosa naquele momento, e tomando emprestada uma identidade artificial e

pasteurizada baseada em modelos europeus e americanos, durante sua busca por

um padrão superior de vida urbana. Desse efeito cenográfico da cidade resultou o

esvaziamento das imaginações e a vontade de ser passou a ser catalisada como

empreendimento coletivo.

O Teatro Municipal inaugurado em 1911 tornou-se um catalisador cultural

atuando como uma caixa de emissão e repercussão de símbolos, auxiliado pelas

companhias teatrais que atualizaram sua linguagem cênica transformando-se em

autênticas fábricas de espetáculos.

Porém, paralelamente a tantas expressões artísticas modernas e

internacionais foram se desenvolvendo também pesquisas sobre a cultura popular

sertaneja e direcionando esforços para a instauração de uma arte que refletisse o

popular, o tradicional, o local baseado na própria história, enfim, como um padrão de

identidade autenticamente brasileiro.

Geni Rosa Duarte (2010) identifica em São Paulo desde as primeiras décadas

do século XX a influência da música dos imigrantes italianos que tentavam preservar

sua identidade e tradições, sobretudo pelas festas religiosas e nos espetáculos de

circo, teatro e associações esportivas onde predominava o gosto pela música lírica.

Por sua vez os negros que se concentravam em regiões mais desfavorecidas

também mantinham suas tradições através de suas músicas religiosas e rodas de

partido alto e capoeira. Mas nessa polifonia, no entanto, reconhece um movimento

de identificação do caipira com São Paulo, sobretudo, em locais habitados por

migrantes do interior do Estado e da zona rural. De acordo com o autor:

[...], o que vai se configurar em espaços como o rádio ou o teatro, por exemplo, é a representação de um personagem, dado então como característico do interior paulista. [...] Contudo, exatamente por se distinguir dos demais tipos urbanos – pelas roupas, pelas características físicas, pelo modo de falar -, o caipira podia ser o outro, sendo-lhe permitido expressar pensamentos e opiniões em oposição ao que prevalecia no universo urbano (DUARTE, 2010, p. 427).

Junto com outros personagens menos significativos para a cidade, o caipira

pode se expressar sobre o universo urbano nas páginas da revista O Pirralho de

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Oswald de Andrade, entre 1911 e 1918, através de Cornélio Pires que o retratava

com o seu linguajar próprio.

Em 1916 foi criada, por um grupo de intelectuais, a ―Revista do Brasil‖ que

tratava do regionalismo paulista retratando a cena rural e a cultura caipira com a

participação de autores como Amadeu Amaral, Monteiro Lobato, Cornélio Pires,

Otoniel Mota entre outros. Entre 1917 e 1922 a Liga Nacionalista de São Paulo

liderada pelos estudantes de direito Rui Barbosa e Olavo Bilac viveu uma militância

da cultura nacionalista que apostava na escola com disciplinas intelectuais e

artísticas para promover a tradição da cultura popular. A obra ―Os Sertões‖ de

Euclides da Cunha e ―Urupês‖ de Monteiro Lobato tornaram-se marcos para o

sentimento nativista da arte que apontavam através da exclusão social de seus

personagens, as discrepâncias sociais e políticas do país. Papel mais relevante teve

o escritor Afonso Arinos que encontrou nos hábitos e costumes do nosso passado

popular, folclórico e colonial uma dimensão exótica. Afonso Arinos morreu em 1916,

e em 1918, recebeu como homenagem póstuma uma monumental montagem

dramático-musical do espetáculo ―O contratador de diamantes‖ que se transformou

na coqueluche da cidade. Em 1920 o slogan de Pinto Pereira ―assimilamos ou

seremos assimilados‖ desencadeou uma reação nacionalista liderada, entre outros,

por Sampaio Doria que alertava:

Os brasileiros estão ameaçados de passar, por imprudência, de senhores da terra a colonos dos estrangeiros, que vencem. [...] A reação nacionalista será pois, necessariamente, uma reação da cultura pela supremacia do nacional (DORIA apud SEVECENKO, 2009, p. 246).

Segundo Sevcenko (2009):

Depois d‘O contratador, aquilo que era uma corrente intelectual se transforma numa moda de ampla vigência nacional. É interessante observar como se operam então os deslizamentos e reagregações dos conteúdos míticos difusos pelo imaginário social (SEVECENKO, 2009, p. 247).

Apontado pelo autor como grande sucesso também foram os Saraus

regionalistas lançados pela A Cigarra com o seguinte anúncio:

Um grupo de distintas senhoritas cantará ao violão, vestidas de caipirinha, alguma das nossas melhores canções sertanejas e dançarão cateretês com acompanhamento de violão, cavaquinho,

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flauta, chocalhos e reco-reco. [...] Na segunda parte o brilhante poeta dr Paulo Setúbal recitará versos sobre cenas da roça de seu livro Alma Cabocla, a aparecer em breve (SEVECENKO, 2009, p. 248).

Os relatos bem-humorados de Cornélio Pires sobre rincões remotos do sertão

também, segundo Sevcenko (2009), lotavam teatros e desencadeavam lutas por

bilhetes.

Pires (2002) em seu livro ―Conversa ao pé-do-fogo‖ referindo-se ao eterno

petiscar caipira relata a estória do Nhô Tomé que após pegar seu segundo café com

mistura ou café com duas mãos (café com quitandas) pôs-se a se desculpar: ―Você

não arrepare; no sitio a gente véve prá cume, derd‘o levantá inté no deitá‖ (PIRES,

2002, p. 79). E foi contando que ao se levantar toma um café simples, em seguida

um café com leite com bolo-de-frigideira, de fubá, mandioca cozida ou pão que é um

artigo difícil porque vem da cidade e os atravessadores trocam por algumas aves.

Entre 8:30 e 9:00 é o almoço, entre 11:30 e meio dia toma-se um café com mistura

ou come-se uma fruta e depois às 14:30 vem o jantar. Às 17:00 outra merenda, e

entre 19:30 e 20:00 é a ceia. ―Tudo em abundância, porque o pessoal tem sempre

insaciável apetite‖ (PIRES, 2002, p. 79).

Em meados dos anos 1930 a programação da rádio ainda restrita à cidade,

apresentava musicais direcionados às diversas colônias de imigrantes e um

programa caipira. Em outras rádios a música caipira estava inserida em

programações regionais ou populares, e para as elites que podiam ter acesso ao

radio como participantes das radio-sociedades, ela se identificava com o folclore.

2.2.1. A Semana de Arte Moderna como efeito da metrópole

Conta Mario de Andrade em março de 1921, que, entre melões e figos com

presunto e outros acepipes do Restaurante Trianon (de cardápio desilusório, do

ágape social da cidade), de bailes e concertos, maxixe puladinho, em um almoço

oferecido em honra de Menotti Del Picchia em que se reunia a elite intelectual da

cidade, que entre muitos discursos destaca a fala de Oswald de Andrade:

O Oswald de Andrade falou também, representante e mandarim duma geração nova, reveladora de muito brilho e alguma esperança. Era o clarim dos futuristas, gente ‗do domínio da patologia‘ como dizem e

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redigem certos críticos passadistas, num afanoso rancor pelas auroras (ANDRADE, 2004, p.104).

E, referindo-se aos presentes escreve:

É uma estufa de poetas loucos, geração exótica, fantástica, arrepelada pelo consórcio com a garoa, a internacionalidade das nossas fábricas com o convencionalismo rural do meio. Neste manicômio pouco se pensa, dizem... Mas que de sensações, que de comoções, que de entusiasmos, que de luares e fogaréus, onde cada passo se multiplica e se transfigura em Beleza – essa bem querida Errabunda entre os sarçais da Perfeição!... (ANDRADE, 2004, p.104-105).

Relacionando como prova desse seu pensamento os aplausos à declaração

de Oswald, cuja voz ―[...] é um sacrilégio, pois imita o místico do psalmodiar

beneditino [...]‖ (ANDRADE, 2004, p.104-105).

Logo depois, em 27 de maio de 1921, Oswald, apresenta Mario, então

professor do conservatório Dramático e Musical, ao público e aos demais

modernistas, em um artigo do Jornal do Comercio intitulado: ―O meu poeta futurista‖

causando espanto nos leitores e complicações para o retratado.

Segundo FRANZINI (2010), reza a lenda, que no final de 1921 Di Cavalcanti

lançou a idéia da realização de um festival dedicado à nova produção artística do

momento que contou com o patrocínio do casal Paulo Prado e as bênçãos de Graça

Aranha, sob influência de suas experiências européias. Esses festivais realizados no

Teatro Municipal nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 ficaram conhecidos como

Semana de Arte Moderna que contou no primeiro dia com o Festival de Pintura e

Escultura, no segundo dia com o Festival de Literatura e Poesia e no terceiro dia

com o Festival de Música. O evento teve uma repercussão pequena e mereceu

poucas notas na imprensa da época, mas cunhou a palavra ―modernistas‖ no lugar

de ―futuristas‖, e seus participantes, de acordo com o autor:

[...] continuaram a tocar seus projetos estéticos, que logo passaram a tomar formas ideológicas à medida que, primeiro, suas inovações e experimentações questionavam a produção artística hegemônica e, segundo, se inseriam nos já referidos quadros mais amplos de uma ‗redescoberta do Brasil‘. [...] o rompimento com o passado e com a tradição [...] transformou-se na sustentação do desejo de fundar, por eles próprios, um novo eixo articulador para a cultura nacional, negação do passado imediato e marco zero de um futuro que, por romper com as amarras do arcaico, poria o país a par das grandes nações-modelo ( FRANZINI, 2010, p. 335).

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Para Roberto Gomes (2008) a Semana de Arte Moderna consistiu na nossa

primeira tentativa de real independência cultural diante do passado europeu e dos

modelos estrangeiros, tratando-se, portanto, de uma tomada de consciência e

constatação do óbvio, isto é, que ao invés de fogo, castelos medievais e neve temos

bananeiras, coqueiros, casa de caboclo, nariz batatudo e lábios grossos, uma

derrubada do bom gosto oficial que resultou numa emancipação artística onde

assumíamos nossa posição, ou seja, uma negação contra os vínculos que nos

prendia a uma Europa idealizada, como revela Oswald de Andrade:

Nada podemos esperar da Europa européia, para onde vivemos por tanto tempo voltados, com a luz de Paris em nossos espíritos. Foi uma época que terminou. Tínhamos pelos latino-americanos um desprezo que participava do conhecimento de nós mesmos, de nossos pobres recursos civilizados, perdidos no esmagamento de uma fiança torpe ligada à fome dos imperialismos (ANDRADE apud GOMES, 2008, p. 94-95).

Sobre o movimento modernista brasileiro escreveu Blaise Cendrars (1976), o

ilustre europeu que fazia parte do grupo:

Ah! Esses jovens de São Paulo, eles me faziam rir e eu gostava deles. É claro que exageravam. [...] São Paulo ia se tornar uma capital, uma metrópole. [...] É lindo o entusiasmo. Mas enquanto isso, meus amigos eram insuportáveis, porque constituíam na realidade um cenáculo, e escritores, jornalistas e poetas paulistas macaqueavam de longe o que se fazia em Paris, Nova Iorque, Berlim, Roma, Moscou. Abominavam a Europa, mas não conseguiriam viver uma hora sem o modelo de sua poesia. Queriam estar por dentro, a prova é que tinham me convidado... (CENDRARS, 1976, p. 96)

De acordo com GOMES (2008) Mario de Andrade identifica no próprio

modernismo e em suas modas o espírito importado da Europa: ―Era uma aristocracia

do espírito‖ (ANDRADE apud GOMES, 2008, p. 95). Porém, O Movimento

Modernista baseou-se em princípios que representavam uma ruptura com esse

colonialismo: ―O direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência

artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional‖

(ANDRADE apud GOMES, 2008, p. 95). E, depois, revisando o fracasso de sua

continuidade Mario de Andrade lamentou: ―Deveríamos ter inundado a caducidade

utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a

vida como está.‖ E aconselhou: ―Eu creio que os modernistas da Semana de Arte

Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição.

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O homem atravessa uma fase integralmente política da humanidade‖ (ANDRADE

apud GOMES, 2008, p. 96).

Em 1924 todo o país ainda se movimentava em busca de sua brasilidade

motivado por revistas, movimentos e grupos que pregavam uma revolução

ideológica embora, segundo FRANZINI: ―[...] tal guinada ideológica também se

aproveitou da embalagem inovadora para encobrir projetos conservadores [...]

(FRANZINI, 2010, p. 337) exemplificando com Gilberto Freyre e Plínio Salgado.

Gomes (2008) analisa essa ausência de repercussão da Semana de 22 na

Filosofia praticada entre nós como um estado de alienação diante da nossa

realidade, em decorrência do enraizamento da dependência cultural colonialista,

pela própria atitude de assimilação passiva do universo europeu, enquanto esse

espírito crítico feria aos interesses políticos dominantes que não permitiram

questionamentos mais profundos sobre as bases da visão do mundo vigente. E

conclui:

Assim, apesar de traços de emancipação de uma inteligência nacional que podemos encontrar no modernismo, os praticantes da Filosofia continuaram, e continuaram como no verso de Manuel Bandeira, ‗macaqueando a sintaxe lusíada‘ (GOMES, 2008, p. 98).

Gomes (2008) justifica essa situação através das razões históricas que

guiaram o pensamento brasileiro colocando de um lado a filosofia buscando

questionamentos radicais constantes e do outro o comodismo do povo colonizado

acostumado a receber ordens da Europa. A ligação mantida com Portugal e, por

conseguinte com o continente europeu, desde os primeiros colonizadores, marcada

pela força da coroa portuguesa, a subserviência do bandeirantismo, e o extrativismo

predatório contra a terra brasileira voltado para o abastecimento europeu, são fatos

que caracterizam uma posição de inferioridade do Brasil. Segundo o autor:

Assim, os primeiros ‗brasileiros‘ – no sentido que esta palavra tinha até meados do século XVII: aquele que explora o pau-brasil ou aquele que fez fortuna nestas terras – sempre se mantiveram voltados com muitas saudades, já se pensou nas explorações dessa palavra entre nós? para as terras d‘além-mar, De lá vinham notícias significativas, lá o destino do mundo era decidido. Lá estavam o poder e o saber. E para lá se voltaria algum dia (GOMES, 2008, p. 99).

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De acordo com Gomes (2008), como não havia uma geração interna no país,

a formação do povo brasileiro se deu por meio de um transplante cultural, e o

brasileiro se manteve sempre contaminado pela posição de dependência e de objeto

de exploração, restando-lhe apenas o papel de assimilador, por isso sentiu-se

sempre saudoso mesmo depois de ter conquistado a liberdade. Ele afirma ainda que

o caráter provisório da instalação na colônia atendia ao propósito de posse, e

reservava o desejo de voltar para Portugal.

Foram os poetas portugueses que contribuíram segundo, Eduardo Lourenço

(1999), para que a cultura portuguesa se inscrevesse no círculo da saudade

transformando miticamente Portugal na terra da saudade. De acordo com o autor:

Na trama do imaginário português convivem: a imagem de reino cristão, o sentimento de isolamento e fragilidade, o sebastianismo e a idéia de um povo messiânico, a visão de um país predestinadamente colonizador e oniricamente imperial. Mas é a saudade, ícone maior da cultura de Portugal, o elemento que alinhava todos os demais. Instaurada como mitologia nacional pelos Lusíadas e revisitada por românticos e modernistas, a saudade ergue-se como uma espécie brasão da sensibilidade nacional (LOURENÇO, 1999, Apresentação do livro).

Lourenço (1999) afirma que a saudade nasceu em berço céltico – da Galícia e

Portugal - filha e prisioneira do lirismo porque nasceu cantada tendo a voz como

expressão do excesso de amor a tudo que merece ser amado desde o amigo

ausente até as ondas do mar. Transformada em mito se configura num papel

hagiográfico-patriótico.

Segundo o autor, apesar do povo português ter vivido coletivamente tantas

tragédias reais, não é trágico e se encontra aquém ou além da tragédia. Também

não é nostálgico nem melancólico. É a memória que dá vida ao passado no

momento presente. Daí ele voltar seu olhar espontaneamente para o passado

através da saudade enraizada nesse seu tão grande amor, como um lugar de sonho

em que habita a alma-portuguesa, num verdadeiro afastamento de si entendido

como ―uma adesão efetiva ao presente como sua condição‖ (LOURENÇO, 1999, p.

14). Em contrapartida, o futuro depende das expectativas e das lembranças dos

momentos vividos, portanto, também está pautado no tempo e na memória. Como a

definição de saudade de Lourenço (1999) ―A saudade é memória, consciência da

essencial temporalidade do ser que não tem nem pode ter sobre si mesmo mais alta

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contemplação que a de si como passado em transe do futuro‖ (LOURENÇO, 1999,

p. 52). E memória é de acordo com Santo Agostinho (2002), a casa da alma, lugar

de todas as experiências vividas que através de seus registros vai desenhando

nossa constituição identitária.

2.3. Um jeito urbano de olhar a comida

“Dize-me o que comes e te direi quem és.” Brillat-Savarin

Laura Graziela Gomes e Livia Barbosa (2004) pesquisaram as publicações

nacionais de culinária entre o início do século XX e o século XXI, resultando em um

banco de dados de 907 livros de cozinha, denominado: ―Culinária de papel‖ – uma

alusão ao livro, para elas o elemento fundamental para o estabelecimento de uma

gastronomia ocidental onde a constituição do gosto dependeu das publicações

impressas:

(...) a culinária de papel acaba por transformar, muitas vezes, a culinária real em uma culinária cuja difusão e circulação poderá vir a se constituir em um paradigma do gosto e, eventualmente, em uma marca identitária de todo um povo, como ocorre, por exemplo, na França, onde a combinação de uma cultura do impresso com a arte de cozinhar gerou um estilo gastronômico emblemático para o Ocidente (GOMES e BARBOSA, 2004, p.4).

Para Belluzzo (2010) São Paulo, historicamente marcada por privações

alimentares, desenvolveu um modelo alimentar modesto, tendo sido reforçado ainda

mais pela influência da cultura dos imigrantes, cuja simplicidade de hábitos

alimentares retratava a fome muitas vezes vivida em seus países de origem. Numa

pesquisa desenvolvida pela autora nos cadernos de receita das austeras senhoras

paulistas no decorrer do século XX, encontrou muitas receitas classificas como

econômicas como o bolo econômico, o biscoito econômico etc. Esse dado adquire

maior importância diante da seguinte afirmação de Laurioux (1998):

A apresentação dos manuscritos e suas possibilidades de leitura sugerem uma resposta extremamente aberta e matizada, em que a

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difusão do sonho tem um papel no mínimo tão importante quanto a transmissão de uma prática. Portanto, cada manuscrito representa um caso particular, a combinação específica de heranças textuais de limitações locais e materiais e finalmente de desejos e gostos (LAURIOUX, 1998, p. 451).

Segundo Belluzzo (2010), o caso brasileiro de difusão do gosto da cozinha

através dos meios de comunicação iniciou-se com a criação da imprensa no país,

em meados do século XIX, e a publicação dos primeiros livros de receitas nacionais

que incluíam regras de comportamento à mesa e técnicas de serviço. Os registros

anteriores, sobre a alimentação no período colonial se resumem a relatos de

cronistas e viajantes que publicaram suas impressões no exterior.

Em 1840, foi editado no Brasil o primeiro livro de cozinha, intitulado, ―O

cozinheiro imperial‖ ou ―Nova arte do cozinheiro e do copeiro em todos os seus

ramos‖, assinado por R.C.M., um autor desconhecido que, para Leila Mezan Algranti

(2005), de acordo com a variedade de temperos que sugere, esse pode ser

considerado um livro de culinária moderna, porém, demonstra pouco vínculo com a

cultura alimentar nacional dedicando maior importância à transmissão do modelo

europeu de conduta à mesa. Segundo a autora:

Não importa se as receitas e os produtos apresentados eram ‗europeus‘ ou ‗brasileiros‘. Tratava-se de instruir as elites na arte de cozinha e de receber bem, o que poderia significar estabelecer uma fronteira bem nítida entre a culinária trivial e diária e a culinária sofisticada destinada aos banquetes. (...) o primeiro livro de cozinha brasileiro não atesta uma ‗culinária brasileira‘, nem indica as transformações ocorridas entre as práticas alimentares portuguesas e aquelas que se desenvolveram na América. Mas pode sugerir a falta de apreço das elites brasileiras pela culinária nacional e a necessidade de importação de modelos de comportamento referentes à mesa, ainda em meados do século XIX (ALGRANTI, 2005)

De acordo com Belluzzo (2010) tratava-se de um livro dirigido às altas classes

sociais, pois fora a corte e a elite, o resto da população apresentava elevado índice

de analfabetismo e deveria se resignar com a transmissão oral de receitas.

Movidas pelo processo modernizador do Segundo Império é que apareceram,

na segunda metade do século XIX, as primeiras publicações para o público feminino,

―O Jornal das Senhoras (1855)‖, ―O Jornal das famílias (1863)‖ e ―Sexo Feminino

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97

(1875)‖ que abordavam assuntos como moda, comportamento, romances, novelas

folhetinescas, economia doméstica e receitas culinárias.

Cozinheiro nacional ou Coleção das melhores receitas das cozinhas

brasileiras e européias, o segundo livro de receitas brasileiro de autoria de Paulo A.

Salles, lançado entre 1874 e 1888 pela Livraria Garnier é uma tentativa de libertação

do gosto europeu com um regresso às regras e costumes medievais, em que

oferece uma compilação de preparações consideradas bárbaras aludidas ao palato

do colonizador ou do indígena e enfatiza também a cozinha regional. Entre as

receitas regionais, a autora destaca ―(...) mingau paulista, peru assado com pinhões,

ensopado com ora-pró-nobis, guisado com mangaritos, anta refogada, ensopado

com cará, (...)‖ (BELLUZZO, 2010, p. 186)

Em 1851 surge o primeiro livro brasileiro dedicado à doçaria, ―Doceira

brasileira‖ ou ―Novo guia manual para se fazerem todas as qualidades de doces, de

d. Constança Oliva de Lima‖, editado por Eduardo & Henrique Laemmert que

contemplava receitas nacionais retiradas de cadernos de receitas familiares e

internacionais apresentando técnicas e ingredientes europeus. De acordo com

Gilberto Freyre:

Se o livro de d. Constança Oliva de Lima, aparecido na corte nos meados do século XIX, vem cheio de receitas de sorvete requintados – sorvetes de violeta, de zéfiro, de marasquino, de baunilha -, é que a figura do confeiteiro francês ou italiano já começava a criar maior importância entre a gente da alta sociedade no Império do que a doceira de casa, Iaiá ou negra gorda (FREYRE, 1997, p. 62).

Freyre (1997) associa o rápido sucesso do sorvete requintado ao apelo dos

anúncios de jornal que convocavam a ―rapaziada‖ insinuando ―com certo gosto de

pecado‖ (FREYRE, Op. cit, p. 62)

Nos anos seguintes foram lançados novos manuais de doçaria, ―A doceira

doméstica‖, ―O doceiro nacional‖ e o ―Dicionário do doceiro brazileiro‖, e a partir do

século XX, de acordo com Belluzzo (2010), a publicação de livros de culinária

cresceu: ―satisfazendo o gosto da burguesia que privilegiava a cultura estrangeira

com receitas de: maionese, molho bechamel, peru à brasilienne, filet de sole,

cassoulettes, pottages e, entre outros doces, sabaione, bavaroises de fruta e

savarin‖ (BELLUZZO, 2010, p. 187)

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No entanto, a partir de 1920 começaram a surgir no país os livros de receitas

regionais, que dizia respeito à valorização da memória das cozinhas típicas e seus

fazeres próprios que para Albuquerque Júnior (2009) tratava-se de uma invenção

das tradições pela quais se buscava estabelecer um equilíbrio, uma conciliação

entre dois processos de universalização que se enfrentam: a globalização através

das relações sociais e econômicas capitalistas e a defesa da manutenção da

nacionalização das relações de poder do passado. Para o autor:

A busca das verdadeiras raízes regionais, no campo da cultura, leva à necessidade de inventar uma tradição. (...) O que esta construção de uma cultura regional institui é a própria idéia de uma solidariedade e de uma homogeneidade entre códigos culturais populares e códigos tradicionais dominantes (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2009, p. 90-92).

De acordo com Gomes e Barbosa (2004) as publicações dessa época, eram

consideradas uma ‗endo‘ cozinha onde os livros de culinária divulgavam receitas

familiares, eram destinados às donas de casa e tinham diferentes sentidos:

Primeiro, faz-se tudo em casa, desde a matéria-prima para se preparar a comida até tipos de comida e alimentos específicos, que hoje são comprados prontos. Portanto, os livros de culinária oferecem uma variedade imensa de opções de receitas e disponibilizam técnicas que hoje nos surpreenderiam. Ensinam a fazer de café a sorvetes, passando por caramelos e balas, e terminando com pães, biscoitos, conservas de frutas e pastilhas. Ensinam até a matar um peru para a ceia de Natal (D. Benta, 2003). Segundo, o foco da cozinha está no lar e na família. Cozinha-se para os familiares e amigos próximos, de acordo com a tradição. Terceiro, a cozinha é um espaço personalizado, tanto para os homens quanto para as mulheres. As receitas não são anônimas, tiradas de quaisquer revistas ou jornais, mas originárias de antigos cadernos de receitas de mães, avós, comadres e outros parentes femininos (GOMES e BARBOSA, 2004, p. 12).

Em São Paulo, entre outros foram lançados os livros, ―Noções de Arte

Culinária‖, de Maria Thereza Costa, cuja primeira edição é de 1915 publicado pela

Officinas Graphicas Cardozo Feilho & Comp reeditado em 1921 e 1923; em 1928, ―A

Cozinha Moderna: Guia das donas de casa, guia do cozinheiro‖. ―A ciência das

donas de casa‖ pela Livraria e Editora Paulicéia; ―Dona Benta: comer bem‖ da

Companhia Editora Nacional, em 1940; ―Dona Zilota: Nosso caderno de receita‖, de

1948 publicado pela editora Lealdade; ―A alegria de cozinhar‖, de Helena B.

Sangirardi de 1949 pela Editora Martins; ―A cozinha tradicional paulista: salgados,

doces, ―bebidas, de 1963 de Jamile Japur, editado pela Folc-Promoções/Bentivegna.

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A política de nacionalização observada a partir de 1930, quando historiadores e

sociólogos passaram a se interessar pela alimentação brasileira e pela cultura

nacional encontrou nas mídias uma grande aliada.

O jeito mais fácil de aprender a cozinhar entre os anos 1950 e 1960 era com

as mulheres mais próximas à mãe, à empregada ou à vizinha. Os livros de cozinha

disponíveis de acordo com Nina Horta (1995) em São Paulo eram os dois volumes

de Rosa Maria, o de Maria Theresa Costa e Marcelino de Carvalho que mesclava

receitas e boas maneiras. De acordo com a autora a comida dos anos 1960 só

precisava se parecer com ela mesma para agradar ao pai, principal vítima das

experiências culinárias das filhas que experimentavam receitas sugeridas por

Helena Sangirardi nas páginas de O Cruzeiro, ou do Ladies´ Home Journal, esse

último uma aventura com resultados imprevisíveis pela desconhecida cozinha

americana. Comer fora não era um hábito comum, para uma comemoração especial

a família ia a uma cantina no Brás. Ainda eram poucas as opções. Segundo ela: ―A

comida símbolo dos anos 60 foi a quiche e a dos 70 o pesto‖ (HORTA, 1995, p.

165).

Em 1967, em plena ditadura, a Editora Abril Cultural lançou a coleção de

fascículos ―Bom Apetite‖, caso de enorme sucesso para a culinária nacional, movida

pelo ideal de democratização do conhecimento que oferecia ao leitor a oportunidade

de adquirir gradativamente a coleção e encadernar posteriormente. Para (PEREIRA,

2005, p. 205) ―Além do eficiente sistema de distribuição, os fascículos e as coleções

da Abril Cultural tiveram amplas campanhas publicitárias.‖

Segundo Gomes e Barbosa (2004) de 1950 a 1970 a cozinha sofreu grandes

transformações sob o ponto de vista físico e tecnológico e a novidade foi o

reaparecimento da relação da cozinha com o corpo e os sentidos. A década de 1970

também foi marcada pela influência do gosto francês reforçado pela chegada de

renomados chefs franceses como Paul Bocuse, Claude Troisgros e Laurent,

inaugurando a gastronomia brasileira com a valorização dos ingredientes nacionais

como: a jabuticaba, a pitanga, a manga, a farinha de mandioca e a mandioquinha.

De acordo com as autoras:

Os títulos e receitas, a partir da década de 1980, sugerem, cada vez mais, a existência de uma exo cozinha nos mesmos três sentidos

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anteriores. Primeiro, grande parte da matéria-prima para a confecção dos alimentos já é comprada pronta, bem como um grande número de alimentos, como bolos, biscoitos, balas, sorvetes, entre outros, antes produzidos em casa e hoje adquiridos em forma industrializada. Segundo, a comensalidade não se restringe apenas à família e ao grupo doméstico. Amigos do casal e colegas de trabalho estão entre aqueles que são convidados para festas, jantares, lanches e aniversários. (...) Terceiro, a culinária não se restringe à tradicional cozinha brasileira. Os livros de hoje se dedicam a apresentar sabores, cheiros e texturas de diferentes países, trazendo o mundo para dentro da casa através da culinária (GOMES E BARBOSA, 2004, p.14).

Desde o fim dos anos 1950, a televisão brasileira em expansão no país,

passou a exibir quadros de culinária em sua programação para o público feminino,

vindo a assumir grandes proporções como a ―Cozinha Maravilhosa de Ofélia‖,

precursor do gênero que permaneceu no ar de segunda a sexta-feira durante 30

anos. Para se ter uma idéia, sua primeira receita no programa foi um tender à

Califórnia numa época em que ainda não havia tender no Brasil, obrigando o dono

da emissora a importar da Argentina. No início o programa era gravado ao vivo,

numa cozinha estúdio e casos como o de Julia Child relatado por HORTA em seu

livro eram comuns. Segundo ela: ―Num programa em que ensinava a virar crepes

numa frigideira sem tocá-los, só com uma virada de pulso, um deles voou e sumiu. A

câmara foi achá-lo dependurado nos fios, no teto‖ (HORTA, 1995, p. 113).

No entanto, logo a TV passou a simular o ambiente comum de uma cozinha

baseada num cenário de estética ideal, estruturado para a realização de uma

complexa mediação da alimentação. Nessa época, a redemocratização em curso no

país implicou também na consolidação de uma cultura televisiva voltada para a

política de consumo acarretando a transformação dos hábitos diários dos

telespectadores.

De acordo com Ana Paula Goulart Ribeiro (2010):

Já durante os anos 1980 houve um reforço do processo de construção de uma cultura de consumo, margeado pelo crescimento de novos produtores do saber (intelectuais midiáticos) ligados à intensificação da indústria cultural no país. Naquele momento a televisão foi o braço aglutinador, pois através de sua grade de programação, incluindo a dramaturgia, ‗se colocou‘ como um lugar importante no processo de construção de uma idéia de Brasil ‗antenada‘ com as transformações culturais, advindas da formulação de uma política que se vinculava cada vez mais a uma economia de mercado globalizada (RIBEIRO, 2010, p. 201-202).

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O formato do programa de Ofélia foi seguido por outros como Ana Maria

Braga na TV Globo e Palmirinha Onofre na TV Gazeta, sempre reforçado pela

publicidade dos produtos e utensílios usados.

2.3.1. Passagens da domesticidade à globalidade

Polly Toynbee (2004) em seu artigo ―Quem tem medo da cultura global?‖

refere-se à cultura global como devastadora do sagrado, do selvagem, do autêntico,

do primitivo, do original e denuncia a apropriação pela cultura global de todos os

seus ícones e idéias culturais que resultam numa mistura exótica de tradições

adaptadas ou reinventadas para atender à demanda cultural ocidental. Coloca-a

ainda como responsável por espalhar o declínio cultural, intelectual e moral das

nações, afirmando que ―a globalização é, em grande parte, a disseminação da

cultura, das idéias, dos produtos, do entretenimento e da política dos Estados

Unidos‖ (TOYNBEE, 2004 p. 272).

Para a autora a globalização cultural é um rico estilo de vida em que a cultura

política e social é regida pelo modelo de vida democrático que pratica a liberdade

das mulheres e o otimismo multicultural. Segundo ela, com o tempo e a erosão da

democracia em suas próprias fronteiras as identidades nacionais podem desbotar,

mas invés da homogeneização ―as fronteiras se tornam difusas devido à agudização

de outras identificações mais fortes que tornam grupos específicos bem mais unidos

através de limites nacionais‖ (TOYNBEE, Idem, p. 278).

Toynbee (2004) alerta para o perigo que pode vir pelos meios de

comunicação de uma única visão do mundo que direcione disputas, como uma

teoria econômica. Destaca o filme como o motor comercialmente mais importante

dos entretenimentos. E, de acordo com a autora ―a comida serve de símbolo do

melhor e do pior da globalização‖ (TOYNBEE, Op. cit., p. 296).

Para Robert Stam (2003) observamos, nas últimas décadas, um

remapeamento das possibilidades culturais e políticas decorrentes do avanço da

globalização e do declínio das esperanças políticas utópicas revolucionárias.

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102

Segundo ele, enquanto a direita interrompe a história e se rende ao capitalismo e à

democracia, a esquerda se vê pulverizada em lutas micropolíticas localizadas. Neste

estudo o termo pós-modernidade é entendido como um discurso, uma matriz

conceitual e está relacionado com a onipresença da cultura de mercado, identificada

como um novo estágio do capitalismo que converte cultura e informação em

estratégias para a luta.

Para reforçar a compreensão deste fenômeno, STAM chama a atenção para

a multiplicidade de sentidos e de contextos capazes de significar o termo pós-

modernismo enumerando definições e exemplos de diversos autores que se

resumem a uma série de palavras cujo prefixo ―des‖ denotam o abandono de antigas

crenças e práticas para adotar termos sugestivos de abertura como: ―multiplicidade,

pluralidade, heterodoxia, contingência e hibridismo‖ (STAM, 2003, p. 329).

Enquanto alguns críticos valorizam o caráter estético da pós-modernidade, o

autor adota o pensamento de Jameson que reconhece como desenredáveis as

conexões entre o econômico e o estético, exemplificadas através da

desmaterialização do capital nas transferências eletrônicas do mundo globalizado.

Porém, Jameson identifica uma ―estetização da vida cotidiana‖22 resultante da

conjunção do econômico com o cultural.

Segundo Stam a principal expressão estética da pós-modernidade é o

pastiche, que considera uma prática neutra denominada por Jameson como

―canibalização randônica de todos os estilos do passado‖23, ele também acredita na

teoria da reflexibilidade para explicar o caráter alienante da televisão:

A arte pós-moderna tende a ser irônica e reflexiva. Pode-se falar, nesse contexto, de uma reflexibilidade pós-moderna da televisão comercial, que se mostra freqüentemente reflexiva e auto-referencial, mas cuja reflexibilidade é, na melhor das hipóteses politicamente ambígua (STAM, 2003, p.331).

Quanto ao cinema pós-moderno, o autor percebe sua contribuição por meio

de um cambio estilístico tanto enriquecendo sua teoria, como contribuindo para a

análise fílmica, marcados pelos múltiplos estilos e pela reciclagem irônica: ―Em uma

22

Aspas do autor (JAMESON apud STAM, 2003, p. 331)

23 Aspas do autor (JAMESON apud STAM, 2003, p. 332)

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103

era de remakes, seqüências e reciclagens, vivemos no reino do já dito, do já lido e

do já visto: já se esteve lá, já se fez isso‖ (STAM, 2003, p.333).

Stam ampara-se em Jean Baudrillard para explicar esse mundo

contemporâneo da comodificação midiática representado pela economia de signos

que, por sua vez, se caracteriza pela proliferação de signos midiáticos. Ele enumera

quatro estágios no caminho da simulação absoluta: no primeiro, o signo reflete a

realidade básica; no segundo, mascara ou distorce a realidade; o seguinte mascara

a ausência de realidade, enquanto o último se converte em simulacro - uma

simulação sem vínculo com a realidade chamada de hiper-realidade. Com ela o

signo ocupa o lugar da realidade tornando-se mais real do que a própria realidade.

Para Kellner (2001), outro estudioso de Jameson e Baudrillard, foi o fatalismo

tecnológico legitimado pelas ideologias políticas, movidas pelos interesses

econômicos da classe capitalista que disputa o controle da sociedade, que deu

origem à chamada cultura de mídia. Para ele, trata-se de ―uma forma de cultura

comercial, e seus produtos são mercadorias que tentam atrair o lucro privado

produzido por empresas gigantescas que estão interessadas na acumulação de

capital‖ (KELLNER, 2001, p.9).

As narrativas e as imagens veiculadas pelos meios de comunicação fornecem

símbolos, mitos e recursos capazes de enredar a vida cotidiana das pessoas

fornecendo modelos de comportamentos sociais, de senso das coisas, de juízo de

valores e opiniões políticas, alterando significados e forjando identidades, dando

origem a uma nova forma de cultura global. Como cultura industrial ela lança seus

produtos no mercado a fim de atrair a massa investindo na adequação de códigos,

fórmulas, e normas convencionais. Como cultura high-tech está sempre atenta às

novidades tecnológicas.

Ainda segundo esse autor, as culturas de mídia e de consumo atuam juntas

―no sentido de gerar pensamentos e comportamentos ajustados aos valores, às

instituições, às crenças e às práticas vigentes‖ (Op.cit., p.11) Kellner (2001) aponta

como resultado de tudo isso a implosão do sujeito, e em seu lugar a emergência de

identidades de constituição teatral baseadas na representação de papéis e na

construção de imagens. São identidades instáveis, fragmentadas, frágeis,

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104

desconexas, sujeitas a constantes atualizações e até questionáveis se não se trata

de um mito ou ilusão. Assim:

O eu televisivo é o indivíduo eletrônico por excelência que retira tudo o que há para retirar do simulacro da mídia: uma identidade mercadológica como consumidor da sociedade do espetáculo: uma galáxia de humores hiperfibrilados... ser serial traumatizado‖(CROKER e COOK apud KELLNER, id, p.299).

Kellner (2006) acredita que ―a experiência e a vida cotidiana são moldadas e

mediadas pelos espetáculos‖ (KELLNER, 2006, p.123) onde a sociedade

espetacular, através de mecanismos culturais de lazer, entretenimento, consumo e

serviços espalha seus bens ditados pelos interesses da publicidade e de uma cultura

voltada para o mercado. Para formular um conceito de espetáculo recorre a Debord

apud Kellner (2006):

(...) o espetáculo é um instrumento para a pacificação e a despolitização: uma guerra do ópio permanente que choca os sujeitos sociais e os distrai da tarefa mais urgente da vida real – recuperar a plenitude dos poderes humanos através da prática criativa (DEBORD apud KELLNER, 2006, p. 123).

Em outras palavras, espetáculo ‖é o momento em que o consumo atingiu a

ocupação total da vida social‖ (KELLNER, 2006, p. 123). O autor reconhece no

cinema um terreno fértil, propício para o espetáculo com ―Hollywood insinuando um

mundo de glamour, publicidade, moda, excessos‖ (KELLNER, Op.cit.). Os

mecanismos que compõem o espetáculo em sua forma, estilo e efeitos especiais

foram incorporados ao cinema contemporâneo. O espetáculo pode ser identificado

nos holofotes das estréias, no glamour da entrega do Oscar, no número de

paparazzi perseguindo o furo de reportagem, no esplendor dos trailers, na utilização

de tecnologia de ponta.

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105

3. A midiatização como base dos processos sociais na cozinha

“Da mesma forma com que a inscrição num dos livros de tombamento de tal escultura, de tal quadro histórico, dum Debret como dum

sambaqui, impede a destruição ou dispersão deles, a fonografia gravando uma canção popular cientificamente ou o filme sonoro

gravando tal versão baiana do Bumba-meu-boi, impedem a perda destas criações, que o progresso, o rádio, o cinema estão matando

com violenta rapidez”.

Mario de Andrade

Apesar da luta de Mario de Andrade para conter os avanços da globalização,

e a devastação que causariam os meios de comunicação de massa, através do seu

Departamento Municipal de Cultura, com atitudes que buscavam salvaguardar os

resquícios da cultura paulista e brasileira, ainda na década de 1930, a cultura

capitalista se consolidou.

O Departamento de Cultura era composto das seguintes divisões, estruturado

pelo ato 1146, de 1936: Expansão cultural, Bibliotecas, Educação e Recreio,

Documentação Histórica e Social, e Turismo e Divertimentos Públicos. De acordo

com Paulo Duarte (1971):

De inicio instalou-se a Discoteca Pública, quer dizer, uma grande coleção de discos á disposição do público, como os livros de uma biblioteca. Ao lado dessa atividade, inaugurou-se também o serviço de gravações que se compunha de três ramos principais: o registro da música erudita paulista, o registro do folclore musical brasileiro e o Arquivo da Palavra, este último abrangendo dois subramos: o registro das vozes dos homens ilustres do Brasil, e os registros destinados diretamente ao estudo fonético. (...) O cinema educativo merecera um cuidado especial. Vesperais concorridíssimos de cinema gratuito foram dados em vários teatros de bairro aos pirralhos dos parques infantis, a troco de favores de empresas cinematográficas (DUARTE, 1971, p. 62-66).

A Divisão de Turismo previa a abertura de um restaurante em São Paulo, no

Viaduto do Chá, ao lado do Teatro Municipal, em que a comida representaria a

evidência do fator cultural em suas formas de preparar os alimentos, desde a

plantação até o momento do cheiro da panela fumegante. Mario de Andrade queria

que o povo aprendesse que não existe povo civilizado no mundo que não tenha sua

própria cozinha:

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106

Que uma boa cozinha representa tão bem a alta cultura de uma sociedade humana como uma grande universidade. A Civilização Latina que se acrisolou principalmente na França demonstra a sua grandeza não só pela alta cultura científica, representada na pesquisa pura, completamente alheia a intenção, que tanto viceja nos laboratórios da França, mas igualmente por esse tantos outros laboratórios de finura e gosto que são os restaurantes de Paris (DUARTE, 1971, p. 110).

O chef suiço Eugène Wessinger, um apaixonado pela verdadeira cozinha

paulista iria dirigir o restaurante. Em uma conversa com Mario e Paulo Duarte

enquanto comiam um cuscuz paulista produzido por ele, confessara que realizava

estudos tentando estilizar os melhores pratos da cozinha paulista porque, para o

chef:

(...) o segredo do grande prato não está somente no sabor agradável mas ainda na dosagem do tempero que sobressai. Esse sabor e ainda na apresentação desse prato, tanto nos olhos como no olfato. A Medicina fez o mesmo com os remédios no sentido de torná-los mais suportáveis, impressionando bem os olhos e o paladar (WESSINGER apud DUARTE, 1971, p. 110).

Foi através dele que Mário tomou conhecimento da existência de grandes

Academias de cozinha na Europa que ofereciam cursos que podiam durar até três

anos e ensinavam desde a arte de por uma mesa, até estudos relativos a vinhos.

Em seguida Duarte (1971) descreve um prato de rara beleza plástica

apresentado a ele e a Mario por Eugène:

(...) cheio de cores que ia do amarelo do ovo e o verde das ervas finas, ao branco de claras cozidas e o negro do feijão. Tratava-se de uma trivial feijoada, esse quitute delicioso que a vista repele e a que os estrangeiros dificilmente se aventuram por causa do aspecto geral. Não era só na apresentação física, o tempero da velha feijoada fora também artisticamente dosado, era uma feijoada, conhecia-se, mas diferente, mais fina, mais agradável, estilizada como só poderia fazer um artista completo. (...) Eugène Wessinger morreu como diretor do Hotel Gloria, do Rio, sem realizar o seu grande sonho de dar um pouco de modos a essa gostosa, inteligente, mas mal educada

cozinha nacional... (DUARTE, 1971, p. 111).

Sobre o assunto, Duarte (1971) deixou a pergunta: ―Onde andarão hoje

apontamentos e fichas sobre a culinária brasileira que algumas vezes eu mesmo

manipulei?‖ (DUARTE, 1971, p. 111).

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107

Ao considerar os apontamentos de Hall, ―A cultura popular é um dos locais

onde a luta a favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada; é também o

prêmio a ser conquistado ou perdido nessa luta. E a arena do consentimento e da

resistência‖ (HALL, 2003, p. 246). Fica a certeza de que Mario de Andrade também

já sabia de tudo isso... pois comungava deste mesmo pensamento,

3.1. Os novos comeres da cozinha contemporânea

“A produção de um prato novo é questão que já abordamos. Voltemos um pouco ao assunto, começando por espantar-nos

com o gosto pela novidade que, nos mais diversos graus, encontramos entre todos os comensais.”

Hervé This

Estudando a evolução das maneiras de comer, Poulain (2004) aponta alguns

estudos que evidenciam as mudanças ocorridas com o desenvolvimento da

alimentação contemporânea. Em primeiro lugar está o artigo de Fischler

―Gastronomie-gastro-anomie‖ que aborda a pluridisciplinaridade da alimentação e

busca interpretar suas mutações partindo de três fatores: 1) a superabundância

alimentar alavancada pelo desenvolvimento econômico e investimentos no

progresso da produção, conservação e abastecimento de alimentos; 2) a diminuição

dos controles sociais como conseqüência da redução das dificuldades com a

alimentação e da autonomia concedida ao indivíduo acarretando uma

desestruturação, desritualização e desregulação das práticas alimentares. Segundo

Fischler ―(...) o comedor moderno deve fazer escolhas, a alimentação tornou-se

objeto de decisões cotidianas e estas decisões caíram na esfera do indivíduo‖

(FISCHLER apud POULAIN, 2004, p. 68); 3) a multiplicidade de discursos e suas

dimensões contraditórias agora segmentados entre discursos dietéticos morais,

identitários, etc característicos da gastro-anomia (significando a ausência do sistema

normativo social e poder de decisão do indivíduo) que corresponde a uma

desregulação social: ―É na brecha da anomia que proliferam as pressões múltiplas e

contraditórias que se exerce sobre o comedor moderno: publicidade, sugestões e

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prescrições diversas, e, sobretudo, cada vez mais, advertências médicas‖

(FISCHLER apud POULAIN, 2004, p. 69).

Em segundo lugar Poulain (2004) defende a permanência do peso das

classes sociais na desestruturação da alimentação partindo da teoria francesa da

modernidade alimentar que segundo Grignon, nada mais é do que a aplicação na

alimentação ―de um cenário global da mudança social derivada de teorias do

crescimento que acompanharam a expansão e as políticas econômicas dos anos

1960. Se a produção de massa pôde, no século XIX, suscitar as classes e a luta de

classes, o consumo da massa as abarca e as reúne‖ (AYMAD, GRIGNON e

SABBAN apud POULAIN, 2004, p. 70).

Em terceiro lugar Poulain (2004) partindo de estudos sobre comportamentos

observados ou reconstruídos, confirma a existência de mudança das práticas

alimentares a partir de dois resultados: uma simplificação das formas de refeição e

um aumento da importância da ingestão de alimentos fora das refeições

evidenciando uma contradição entre as normas sociais alimentares e as práticas

empregadas.

Em quarto lugar Poulain (2004) discute a defasagem entre as normas e as

práticas alimentares e sua relação com o nível de urbanização estudada através de

trabalhos antropológicos que em seus resultados apresentaram uma coabitação da

alimentação fortemente institucionaliza com os petiscos.

A crise de legitimação do aparelho normativo sobre a anomia representa a

quinta conseqüência da evolução da maneira de comer apontada por Poulain

(2004). De acordo com ele: ―A gastro-anomia não remete apenas para uma crise do

aparelho normativo, mas também para a inflação de conjunturas contraditórias‖

(POULAIN, 2004, p. 89). O excesso de discursos (higienistas, estéticos, identitários),

as crises, etc. acabam arrastando a situação para uma cacofonia alimentar que ele

observa como: ―Flutações e contradições do discurso dietético; reducionismo

corporal da vulgata médica; incapacidade de controlar as práticas e hábitos da

cadeia agroalimentar, que, de salgadinhos industrializados à vala vaca louca

confunde o lugar do homem na natureza e no âmbito das espécies animais; crise

dos esteticismos culinários, que se exacerba na oposição jornalística entre ‗cozinha

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109

internacional‘ e ‗nacionalismo alimentar‘; imperatividade do modelo de estética

corporal, que coloca uma normalidade magérrima e bate de frente com a

reivindicação do prazer alimentar‘ (POULAIN, 2004, p. 89).

Por último, Poulain (2004) destaca em meio à abundância alimentar a

emergência de uma nova pobreza nos países denominados quarto mundo que

justifica a necessidade de programas de inclusão social promovidos pelos governos

e entidades filantrópicas, mas que parecem ir além da falta de alimento uma vez que

nos países desenvolvidos se colocam no domínio das aspirações quanto à aquisição

de alimentos de qualidade.

3.1.1. Os comeres domésticos e públicos

Para Henrique Carneiro (2003) ao mesmo tempo em que a indústria e as

novas tecnologias da alimentação foram um processo histórico de racionalização,

industrialização e funcionalização da alimentação, trouxe também conseqüências

negativas como: contaminação ambiental, o uso de aditivos químicos, padronização

dos gostos alimentares, controle oligopólico dos mercados, relações comerciais

desvantajosas para os países subdesenvolvidos, além das enfermidades causadas

pela abundância de alimento, enumeradas por ele: anorexia, bulimia e obesidade.

Para ele a expansão do fast-food (McDonald‘s) e da indústria de refrigerantes (Coca-

cola) representam uma alteração dos padrões alimentares:

Estes fenômenos exemplificam o significado das alterações mais recentes nos padrões alimentares dos países desenvolvidos, causados pela penetração da grande indústria no espaço das cozinhas, melhor dizendo, substituindo esse espaço pelos drive-thrus (onde o McDonald‘s vende 50% de seu faturamento), pela alimentação rápida, gordurosa, cheia de açúcar (CARNEIRO, op. cit., p. 104).

E elenca as relações do capitalismo no segundo pós-guerra com o prototípico

do McDonald‘s:

(...) cultura do automóvel, ascensão das classes médias, consumo em massa de produtos descartáveis como símbolo do modo de vida, expansão do sistema de franquias, predomínio do setor de serviços, mas submetido a uma administração de características fabris, ou seja, a industrialização do entretenimento e do lazer, padronização da alimentação, importância crescente da propaganda (a era do

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marketing), o nome da marca tornando-se mais significativo do que o próprio produto. (...) a imagem passou a ser o sustentáculo principal de um capitalismo pós-moderno com base em uma ‗economia simbólica‘, em que a fetichização geral da cultura anunciada pelos filósofos da Escola de Franckfurt tornou-se geral e completa (CARNEIRO, op. cit., p. 105-106).

Os estudos de Poulain (2004) indicaram que pairava, nessa época, uma idéia

ameaçadora de que a modernização alimentar poderia vir de baixo, ou seja, um

processo de massificação anuladora das particularidades regionais e nacionais, com

o gosto da massa por alimentos instantâneos e junk food sobrepondo-se à cozinha

honesta e artesanal. A segunda ameaça (prolongamento dos trabalhos da Escola de

Frankfurt) viria da indústria da cultura própria do capitalismo, isto é, de cima, e seria

o que Mennell chama de ―manipulação dos gostos e dos desejos‖ do consumidor por

uma ―indústria capitalista à procura de lucro‖ (MENNELL apud POULAIN, 2004, p.

43) utilizando recursos de marketing e da mídia.

Entretanto, ele recusa as duas leituras e apela para os mecanismos

identificados nos trabalhos de Adorno relativos aos efeitos da cultura de massa

sobre a música: fetichismo e a regressão da escuta. Endossando o pensamento de

MENNELL apud POULAIN, 2002, acredita no movimento de fetichização da cozinha

contemporânea que aponta para um número limitado de pratos clássicos que

aparecem agora como ―obras interpretadas‖ reduzidas a algumas dezenas de best-

sellers. A regressão do gosto pode ser exemplificada com o fast-food ou a

diminuição do consumo de produtos considerados masculinos como miúdos de

animais e embutidos, e o sucesso de produtos considerados femininos ou infantis

como iogurte e sobremesas lácteas. Finalmente conclui com a observação da

diminuição dos contrastes e o aumento da variedade como duas faces do mesmo

processo de homogeneização (MENNELL apud POULAIN, 2002, p. 43).

A leitura de POULAIN (2002) reforça os postulados de Fischler e Corbeau de

que a mundialização dos mercados gera três movimentos antagônicos:

desaparecem alguns particularismos das cozinhas regionais, surgem novas formas

alimentares resultantes do processo de mestiçagem e a difusão de produtos e

práticas alimentares em escala transcultural. Nessa perspectiva;

A mundialização dos mercados, as mestiçagens das populações (pelas migrações e pelo desenvolvimento do turismo internacional) favorecem as trocas de produtos e de técnicas culinárias e

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111

participam de uma vasta mestiçagem de modelos alimentares, criadores da diversidade (POULAIN, 2004, p.44).

Ao mesmo tempo em que nivela as diferenças, a mundialização permite a

apropriação de produtos e técnicas transculturais e a criação de um espaço comum.

Carneiro (2003) percebe esta uniformização global da alimentação (baseada

no American way life) promovida pela indústria alimentar como um ―sincretismo

culinário‖ ambivalente que suprime as identidades locais e homogeneíza o gosto

mundial, mas, ao mesmo tempo, divulga e espalha as culinárias regionais pelo

mundo sob a forma de um fast-food que ele chama de étnico, determinando as

refeições fora de casa e suprimindo os rituais de sociabilidade familiares e

comunitários. E conclui dizendo que ―O pastiche culinário impera então nessa

paisagem pós-moderna de restaurantes étnicos padronizados, como os tacos e

burritos do ‗tex-mex‘ ou os fast-foods chinenes, tailandeses ou japoneses‖

(CARNEIRO, 2003, p. 109).

A industrialização da alimentação é o segundo paradigma da gastronomia

contemporânea apontado por POULAIN que é aqui definido como um corte do

vínculo entre o alimento e a natureza. Subdividida em duas vertentes: produção e

transformação propõem produtos que minimizem o tempo de preparo e abreviem a

espera para o consumo. O setor do mercado acaba por assumir grande número de

tarefas que antes pertenciam ao espaço doméstico diminuindo assim, a importância

da atividade produtiva do lar.

Sobre a produção Carneiro (2003) observa o mercado agrícola cada vez mais

controlado pelos principais produtores e formadores de preços, gerando disputas

comerciais cujo foco é a obtenção de superlucros por meio de superproduções,

como ―pano de fundo econômico da situação global atual no que se refere à

alimentação da humanidade‖. (CARNEIRO, 2003, p. 110).

Contextualizando, Marcelo Carvalho (2007) recorda a transição provocada

pelo início da industrialização e da urbanização no Brasil, particularmente em São

Paulo entre as décadas de 1950-1960:

O que caracteriza a sociedade contemporânea é a formação de um capitalismo que apresenta dois aspectos: o primeiro vou chamar de universalização do valor de troca – transformação de tudo em

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mercadoria. Por conseguinte, nesse processo de universalização a nossa experiência alimentar também vai virar mercadoria, então vai surgir a contradição entre mercadoria e cultura; e o segundo seria a constituição de uma identidade urbana (CARVALHO, 2007, p. 93).

Segundo esse autor:

Os moradores de São Paulo, por exemplo, conseguem comprar produtos agrícolas que não são produzidos na região, advindos de regiões distantes, e para que isso seja viabilizado há toda uma estrutura econômica e comercial, hoje já globalizada, que não era o caso do período inicial da formação cultural em questão. Então, naquele contexto a questão econômica é fundamental e vai regionalizar a alimentação. É necessário ter uma alimentação adequada ao perfil agrícola, à pecuária, ao clima de cada região CARVALHO, 2007, p. 87-88).

E conclui que:

[...] há uma certa relação antropofágica com as culturas que vão compondo esse desenho diverso. [...] É esse processo de apropriação que vai ser encontrado no caso da alimentação em geral e que provoca uma profunda transformação na identidade cultural. [...] A alimentação vai se igualar, na qualidade de mercadoria a todo o restante das mercadorias dentro do supermercado, conseqüentemente deixando de ser espaço de produção de cultura (CARVALHO, 2007, p. 91-93-95).

Em suas pesquisas, Carvalho (2007) observou a relação cultural entre

produção agrícola e o abastecimento, no caso paulista, focalizando a

descaracterização do regional diante da experiência provocada pelo franco acesso a

uma multiplicidade e diversidade de alimentos com preços também acessíveis.

3.2. Os caminhos para uma cozinha científica

“Quando não mais houver cozinha no mundo, não mais haverá conhecimento literário,

Inteligência superior e rápida, relações afáveis, não mais haverá unidade social.”

Marie-Antoine Carême

De acordo com Manfred Weber-Lambedière (2008), a haute cuisine foi

assassinada em primeiro de outubro de 1973 por um artigo histórico divulgado na

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113

Revista Gault Millau, escrito pelos jornalistas parisienses especialistas em culinária,

Henri Gault e Christian Millau: ―Viva a nouvelle cuisine. Os dez (novos)

mandamentos‖ (WEBER-LAMBEDIÈRE, 2008, p. 44) em que delineavam os

contornos de uma nova escola que estava sendo praticada por alguns chefs

famosos.

Para Ariovaldo Franco (2001) esses dez mandamentos24 eram o resultado de

um pensamento surgido em meado dos anos 1960, mas cujas raízes antecediam a

Segunda Guerra Mundial25, que defendia a cozinha como uma extensão da natureza,

com preparações simplificadas e tempos de cocção reduzidos, também tentava

atender exigências características da época como diminuir o impasse entre a

gastronomia e a dietética, e a associação do porte esbelto, símbolo de status e bom

gosto da época, á juventude, saúde, educação, disciplina, etc. Segundo o autor a

relação alimentação-saúde não implicava exatamente em novidade:

A novidade é a fonte de onde provém essa informação e os seus termos. Até os anos 1960, eram sobretudo os usos sociais que condicionavam a maneira de comer. Desde então o marketing, a publicidade e os meios de comunicação de massa têm papel decisivo nesse terreno. A indústria de alimentação, ao criar e acompanhar novas tendências alimentares, tem sabido explorar a moda da esbeltez, lançando produtos com aura de leveza (FRANC0, 2001, p. 255).

Enquanto o termo nouvelle cuisine cunhado no século XVIII por La Chapelle,

Manon e Marin, usado para designar a cozinha de Escoffier no século XIX, retornava

para identificar as tendências individuais observadas do novo estilo de trabalho de

Paul Bocuse, Jean e Pierre Troigros, Michel Guérard, Roger Vergé E Raymond

Olivier.

24

―1. Oposição às complicações desnecessárias; 2. redução dos tempos de cocção e redescoberta da utilização do vapor, método de cozimento tradicionalmente empregado pelos chineses; 3. prática do que Bocuse denomina de cuisine du marché , ou seja, utilização dos ingredientes mais frescos que o Mercado oferece a cada dia; 4. rejeição dos menus extensos nos quais figuram pratos preparados com antecedência em favor dos menus pequenos, compostos em função dos ingredientes disponíveis no mercado a cada dia; 5. supressão de marinadas fortes para carne e caça; 6. desaprovação de molhos ―pesados‖, inclusive dos molhos à base roux3; 7. interesse pelas cozinhas regionais e abandono da haute cuisine parisiense como única fonte de inspiração; 8. receptividade com relação as novas técnicas e equipamentos avant-garde; 9. preocupação dietética; 10. Inventividade ―(FRANC0, 2001, p. 251-252).

25

O Chef Fernand Point mestre de Paul Bocuse é considerado o precursor desse movimento (FRANC0, 2001, p. 251).

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114

Para o autor:

A nouvelle cuisine, expressão do confronto entre o tradicionalismo e a inventividade, pôs termo ao dogmatismo que dominou a gastronomia durante tanto tempo. Com ela a criação culinária se liberou. Esse talvez seja o seu grande mérito (FRANCO, 2001, p. 257).

De acordo com Weber-Lambedière (2008) vinte anos depois da morte da

nouvelle cuisine, enquanto seus precursores e seguidores tentavam se desligar e

romper com aquele movimento, Ferran Adriá, um jovem chef catalão de 22 anos

afirmou se sentir filiado a ele. Em sua concepção o novo recorreria ao mínimo:

minimizar o tempo de cocção e de conservação dos ingredientes, minimizar a

porção e o percentual calórico e revolucionar com uma apresentação atraente,

aroma e paladar intensificados que prometiam a felicidade. Em suas primeiras

experiências o chef transformou esteticamente uma perdiz em lagosta e o sorvete

pode ser salgado ou quente na perseguição da idéia de surpreender seus clientes

através da multiplicação do sabor. Segundo Adriá (2009), ―Tudo o que queríamos

era inventar novas histórias, e também um novo estilo narrativo, portanto tínhamos

também que redefinir a nossa opinião em relação aos ingredientes‖ (ADRIÁ apud

WEBER-LAMBEDIÈRE, 2008, p. 84). Recorrendo à química dos alimentos adotou a

pesquisa científica exaustiva com sua equipe na cozinha-laboratório buscando

responder a questão: ―Como modificar um ingrediente de modo a obter o melhor do

seu sabor?‖ (WEBER-LAMBEDIÈRE, 2008, p. 86)

O químico francês Hervé This buscou explorar com suas pesquisas científicas

os fenômenos da cozinha dando origem à gastronomia molecular que segundo ele:

É a atividade que observa os fenômenos e busca propor mecanismos, explicações, sob forma do que denominamos modelos ou teorias. Para a gastronomia molecular, trata-se de buscar os mecanismos das transformações culinárias, que são essencialmente de natureza química, física ou biológica (THIS, 2009, p. 30).

A pesquisa de This (2009) questiona as definições e testa as precisões do

saber tradicional do patrimônio culinário em suas receitas, práticas, crendices,

macetes, máximas e habilidades. Verifica os resultados observando os fenômenos

e apontando os mecanismos com o intuito de renovar essa herança reinventando-a

pela linguagem da ciência. De acordo com o autor:

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115

Lavoisier, em seu Tratado elementar de química, estava certo ao declarar que a ciência só será aperfeiçoada quando a linguagem for aperfeiçoada; o mesmo acontece com a cozinha, onde o domínio das transformações dificilmente se fará baseado em idéias falsas, logo, em palavras falsas (THIS, 2009, p. 72-73).

Segundo This (2009), a arte da música e da pintura, por exemplo, não

reproduzem apenas a natureza, mas resultam da organização de notas musicais ou

da composição e da construção de uma tela. Assim, a refeição deveria perder seu

caráter amadorístico para ser elaborada a partir da construção dos alimentos que a

compõem. Por isso questiona:

Como na literatura, como na escultura, como no cinema... Não existe nada pior do que fotografias de amadores, pinturas de amadores, músicas de amadores. Então por que a cozinha de amadores seria uma exceção? (THIS, 2009, p. 77)

Adepto do construtivismo culinário em oposição ao princípio da

desconstrução, This (2009) relembra Carême com suas esculturas que reproduziam

castelos mirabolantes introduzindo a arquitetura numa cozinha monumental, para

enfatizar que escultura não é cozinha e justificar que cozinha é para comer, daí a

construção de pratos para servir-se ao invés de serem executados no prato

individual.

Porém, ADRIÁ26 em recente declaração à imprensa afirmou que a

gastronomia molecular foi um movimento de alguns cientistas fãs da gastronomia

que buscava elucidar o motivo das reações químicas e físicas que ocorriam na

cozinha chegando a publicar alguns trabalhos, mas sem maior repercussão entre os

cozinheiros. Recusa-se a aceitar que sua cozinha seja molecular, o que chega a

considerar uma jogada de marketing, pelo simples fato de suas pesquisas não terem

base científica ou porque os hidrocoloides - base de sua cozinha, jamais ter sido

resultado das pesquisas desses cientistas. Ele não reconhece a cozinha molecular

como um tipo de culinária, embora acredite que a cozinha necessite da pesquisa e

de outros tantos conhecimentos para se apoiar e confessa as dificuldades que

encontrou na Fundación Alicia27 de estabelecer um diálogo entre a ciência e a

26

Leia manifesto de Ferran Adrià sobre a cozinha molecular , Caderno Comida. Folha. com. São Paulo, 04/08/2011: http://www1.folha.uol.com.br/comida/953397-leia-manifesto-de-ferran-adria-sobre-a-cozinha-molecular.shtml Acesso em: 09/08/2011. 27

http://www.elbulli.com/historia/index.php?lang=es&seccion=6&subseccion=3 Acessado em: 20/07/2011

Page 116: Os processos de midiatização da cozinha paulista: do arraial à ...

116

gastronomia o que resultou na publicação do ―Léxico Científico Gastronômico‖ que

considera uma ferramenta com esta finalidade.

Em uma matéria publicada pelo Portal Terra em 2006 sob o título: ―Cozinha

molecular é a nova moda da gastronomia‖28, o discurso era exatamente o contrário.

Falava-se de um conselho composto por 560 cozinheiros e críticos culinários em que

Ferran Adriá puxava a lista, que proclamaram em Londres a cozinha molecular

praticada nos melhores restaurantes do planeta, cozinha que por sinal, investia nos

espaços gastronômicos dos principais meios de comunicação arrebanhando a

população, e que também se traduzia nos altos valores cobrados pelas contas

desses restaurantes.

3.2.1. A cozinha cientifica paulistana como movimento gastronômico

No Brasil, as primeiras celebridades da gastronomia nacional só começaram

a aparecer na última década com a explosão de cursos superiores de gastronomia e

a expansão do mercado de comida. Verdadeiros mitos, esses chefs costumam

cozinhar atentos às novidades da cozinha européia alinhando seus menus e preços,

Em São Paulo está sediado o maior expoente brasileiro da gastronomia

contemporânea, Alex Atala, do Restaurante D.O.M. que se encontra hoje em sétimo

lugar entre os 50 melhores restaurantes do mundo. Alex Atala tem formação de

cozinha na Europa, mas se considera adepto da cozinha técnica com emoção

(tecnoemocional) prezando pela valorização do ingrediente nacional.

Para Alex Atala (2008) como reação da nouvelle cuisine ocorreu, em primeiro

lugar, o movimento de sofisticação da cozinha do terroir (regional); o segundo

aconteceu a partir dos anos 1980 quando os chefs franceses partiram para o Novo

Mundo e Oriente com o objetivo de fecundar a modernidade da cozinha francesa. O

terceiro, a partir da década de 1990 refere-se à aliança da cozinha com as ciências

28

http://noticias.terra.com.br/ciencia/interna/0,,OI963819-EI298,00.html Acessado em: 20/07/2011

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117

contemporâneas que marca o fim da hegemonia da culinária francesa. De acordo

com o autor:

Todo mundo que acompanha as discussões modernas sobre gastronomia sabe que um dos pilares das novas concepções está em tomar a cozinha como um espaço diferenciado onde se processam fenômenos físicos e químicos que nos esforçamos para compreender, tornando o ato de cozinhar algo mais racional para que a criatividade possa ser ainda mais valorizada pelos gestos conscientes, ligados à preparação dos alimentos (ATALA, 2008, p.255).

Grande pesquisador e reconhecidamente criativo, o chef se inspira em Adriá

para elaborar seus cardápios sempre recheados de novidades. Para ele:

Quando os chefs modernos enfatizam os processos químicos e físicos apresentando a cozinha como um laboratório, na verdade inovam muito pouco. As mães, as avós, já faziam isso sem tanto alarde. A inovação está, ao contrário, em trazer para a cozinha a compreensão das reações químicas (em nível molecular), além de novos processos (isso sim, são ‗novas‘ reações químicas) e novos produtos que não pertenciam a esse universo. É o caso do alginato sódico, um sal orgânico extraído de algas e utilizado na indústria de alimentos como aditivo em geléias e sorvetes por seu poder geleificante, espessante e estabilizante: a geleificação em presença de sais de cálcio fez que Ferran Adriá desenvolvesse, em 2003, a técnica de esferificação (geleificação externa). Eis um exemplo claro de criatividade que nasce de conhecimentos antes incomuns entre profissionais de cozinha (ATALA, 2008, p. 256-257).

De acordo com ATALA todo cozinheiro para produzir um prato digno de

silêncio relevante precisa cumprir três etapas: conhecer e obter melhores

ingredientes; dominar técnicas de preparo dos alimentos; e racionalizar no sentido

de sistematizar o seu processo gastronômico. Logo, pode-se compreender que para

ele o que diferencia hoje a cozinha doméstica da cozinha do restaurante é o tipo de

criação. Enquanto a cozinha doméstica busca compreender os processos químicos

e físicos para explicar as reações das criações, a cozinha do restaurante

contemporâneo pressupõe uma criação pautada no conhecimento prévio de

diversos produtos químicos e do domínio de reações químicas (moleculares).

Na tentativa de definir uma cozinha atual o autor explica que apesar de

trilharem diferentes caminhos os chefs contemporâneos buscam filosofias e

posicionamentos diante da natureza, dos processos de transformação e das

sensações provocadas, tendo em comum a percepção cada vez maior de que o

resultado da criação depende da pesquisa. Pesquisa para elaborar novos conceitos

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118

aliado ao domínio técnico sobre a matéria-prima do terroir que também resulta da

dedicação à pesquisa. Segundo ele, trata-se, portanto, de uma cadeia de

conhecimentos em que, o conhecimento científico aplicado ao conhecimento

gastronômico resultou em uma nova cultura gastronômica que nada mais é do que

uma postura inovadora de intelectualização da cozinha.

Para Atala (2008):

O planejamento racional do prato e a experimentação dão ao conjunto um caráter mais intelectualizado ao ato de cozinhar. Anteriormente, num domínio técnico praticamente estável e inflexível, uma boa formação clássica bastava ao chef para entregar-se de corpo e alma apenas aos aspectos sensíveis e harmônicos da criação. Atualmente, isso já não basta. É preciso, também, que o chef questione as várias possibilidades técnicas que possam conduzi-lo ao resultado pretendido. Ele precisa informar-se sobre avanços técnicos e tecnológicos compatíveis com o esforço de criação: ambos estão claramente ligados – o que não era perceptível até alguns anos atrás antes dos históricos seminários de Erice29 (ATALA, 2008, p. 142).

Alex Atala difundiu suas idéias pelo país, sobretudo, quando freqüentou

semanalmente os lares brasileiros, em 2005, através da TV pelo Canal GNT durante

o período em que dividia o programa ―Mesa para dois‖ com a chef carioca Flavia

Quaresma. No programa, ao mesmo tempo em que a Chef Flavia Quaresma visitava

locais e lugares ligados ao universo da alimentação, falando de um ingrediente,

privilegiando a matéria-prima nacional e a cultura brasileira. Na cozinha-estúdio, o

Chef Alex Atala preparava alguns pratos desenvolvidos a partir desse produto

enfatizando a importância da técnica e do aparato tecnológico para o sucesso do

resultado.

3.2.2. A atualização da cozinha regional

Danilo José Zioni Ferreti (2007) parte do princípio de que a cidade de São

Paulo cria seus mitos diariamente e que ―na fugacidade característica de se

reconstruir, alimenta-se de sua própria memória impregnada nos tijolos demolidos

29

Os Seminários de Erice realizados na Sicilia foram idealizados pelo professor Antonio Zichichi e organizados por Hervé This (físico-químico) e NicholasKurti (físico). (ATALA, 2008)

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119

do outrora novo‖ ao mesmo tempo em que ―[...] é última, é tendência, o quase

amanhã― (FERRETI, 2007, p.97).

Segundo o autor, a identidade paulistana é constituída também por seus

espaços de lazer e entretenimento, apesar do estereótipo de que o paulistano vive

apenas para trabalhar e comer. Para comprovar sua premissa Ferreti (2007) recorda

que tanto o armazém, quanto a mercearia e o boteco das primeiras décadas do

século XX, também serviam de lazer. E apóia-se no registro deixado por Alcântara

Machado de 1927:

Aviso às excelentíssimas mães de família: o armazém Progresso, de São Paulo, de Natalie Peinoto, tem artigos de todas as qualidades. Dá-se um conto de réis a quem provar o contrário. E nas entrelinhas informa que oferece o serviço de jogo de bocha com restaurante nos fundos (MACHADO apud FERRETI, 2007, p.99).

De acordo com o autor, a partir de 1925 as mercearias como a ―Casa da Sé‖

foram se especializando em alimentos importados, sobretudo, italianos como o

presunto de Milano e a mortadela de Bologna, tipo de negócio continuado até hoje

pela importadora La Pastina e o Empório Chiapetta.

Os botecos – uma instituição paulista - ofereciam bebida alcoólica e alimentos

europeus (como queijo provolone e parmesão, mortadela, salame, copa, azeitonas,

pastas e pães franceses e italianos) se estabelecendo como espaço de convívio e

de lazer da classe operária depois do expediente na fábrica e nos fins de semana.

Nos anos 1970 começaram a perder espaço para os bares (de influência

americana), lanchonetes e boates em decorrência da globalização. Porém, na última

década pode-se observar uma mudança de hábitos com um forte apelo ―retro‖ em

que os botecos foram resgatados em seus espaços, mobílias e alimentos, e

repaginados, o mesmo fenômeno que transformou as mercearias em empórios e

delicatessens. Essa é a era do renascimento dos clássicos, de acordo com o autor:

―As ressignificaçãos continuaram alimentadas por outras oportunidades, outra gente,

outras necessidades‖ (FERRETI, 2007, p. 99).

Para Gomes e Barbosa (2004) os livros de cozinha editados no Brasil a partir

de meados da década de 1980, período em que se observa a passagem da culinária

para a gastronomia, enfatizado a partir da nova relação entre viagem e culinária, e

turismo e culinária, apresentam a culinária como uma forma de se relacionar com o

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120

outro e consigo mesmo permitindo a aquisição de capital cultural como um elemento

de distinção em que está implícito o contato e o desfrute de sensações gustativas

únicas, inclusive gerando curiosidade para a descoberta de novas cozinhas.

Segundo as autoras:

O interessante é que, à medida que os livros exploram explicitamente a relação entre viagens e culinária ou gastronomia e turismo, verifica-se uma ressignifcação do espaço da cozinha nas casas brasileiras (em camadas médias), além de um retorno e de um redescobrimento das

cozinhas regionais brasileiras (GOMES E BARBOSA, 2004, p. 33).

Para Carlos Alberto Dória (2009) a cozinha brasileira, hoje, está voltada para

um enfoque moderno onde o ingrediente nacional (nativo ou aclimatado) é

apresentando sob uma nova estética, com enfoque eminentemente lúdico e

divorciado de qualquer vínculo dietético ou identitário, cujo objetivo se restringe a

―reencantar‖ o mundo atual. Esse momento evidencia o abandono do mito

modernista que deu, segundo ele, origem à cozinha brasileira, e, ao mesmo tempo

em que aproxima o cozinheiro dos ingredientes nacionais, também o liberta de

modelos estrangeiros e os instiga à criatividade, à pesquisa e à experimentação

dando origem a novos estilos culinários.

Segundo o autor, as cinco tendências de estilização da culinária brasileira

identificadas por ele não se restringem apenas às formas populares ou históricas de

consumir os alimentos, mas estão pautadas em uma reinterpretação que atualiza e

universaliza essa cozinha. São elas: 1) Estilo Naïf: a seleção do cardápio é feita em

cima da concepção espontânea da alimentação, de acordo com preferências

populares consagradas propiciando uma nova experiência do público a partir da

reinterpretação do chef. Exemplo: Restaurante Mocotó (Vila Medeiros/São Paulo); 2)

Estilo Etnográfico: pretende perseguir a identidade da cozinha brasileira através da

pesquisa etnográfica de receitas, ingredientes e modos de preparo tradicionais que

são reproduzidos a pretexto de um resgate cultural. Exemplo: Restaurante

Tordesilhas (Bela Vista/São Paulo) e Restaurante Surui (Sumaré/São Paulo). 3)

Estilo Alegórico: a reinterpretação se manifesta na materialização de idéias e

pensamentos figurativos em que a realidade brasileira é apresentada de forma

estilizada. Com ênfase na alegoria, esse estilo busca uma equivalência estética da

cozinha com outras manifestações culturais do país. Exemplo: Brasil a Gosto

(Cerqueira César/São Paulo); 4) Estilo Experimental: refere-se a uma nova forma de

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tratar o ingrediente nacional através de modernas técnicas culinárias, baseada no

movimento iniciado por Ferran Adrià, na Espanha. O autor exemplifica esse estilo de

cozinha com o sorvete criado por Alex Atala de jabuticaba e wasabi, em que a

cozinha paulista possibilita o diálogo da cultura brasileira com a japonesa. Exemplo:

Dom Restaurante (Cerqueira César/São Paulo) e Restaurante Dois (Vila

Madalena/São Paulo); 5) Estilo Juscelinista: repleto de brasilidade, esse estilo diz

respeito à valorização do cardápio brasileiro enraizado no gosto das elites nacionais

e na culinária urbana dos anos 50-60 que ressalta um certo desprezo pelas

influências européias ou norte-americanas. Segundo o autor: ―Constitui um estilo de

cujo sucesso pode depender o reconhecimento mais amplo do ‗gosto‘ dessa

metrópole que, à mesa, perdeu suas referências nacionais‖ (DÓRIA, 2009, p. 83).

Exemplo: Restaurante Dalva e Dito (Cerqueira César/São Paulo).

3.3. A cozinha de celebridades na TV

―Adoro esta cidade

São Paulo é conforme ao meu coração Aqui nenhuma tradição”

Blaise Cendrars

De acordo com Marina de Camargo Heck (2004) foi o movimento desse

grande número de pessoas que come fora que acabou influenciando a explosão em

número e diversidade os restaurantes e serviços relativos à comida que vão desde

os fast-foods aos templos de alta gastronomia motivando assim a competição entre

eles para atração de público. Segundo ela:

Restaurantes competem para atrair consumidores, e a mídia transforma os "cozinheiros" - chefs - em celebridades glamourosas. Restaurantes recebem prêmios (estrelas), e surge a comida de griffe, que compete com a industrializada nas prateleiras dos supermercados. Comer deixa de ter apenas a sua função biológica óbvia, de nutrição para sobreviver, e entra para a categoria de lazer e entretenimento, assim como também passa a ser indicador de status e classe social, classificando e distinguindo gostos culinários (HECK, 2004, p. 137).

Chris Rojek (2008) acredita que as celebridades contemporâneas são

fabricações culturais resultantes de três grandes processos históricos inter-

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122

relacionados: a democratização da sociedade; o declínio da religião organizada e a

transformação do cotidiano em mercadoria. Segundo o autor:

Celebridades são fabricações culturais. O seu impacto sobre o público pode parecer íntimo e espontâneo. De fato, as celebridades são cuidadosamente mediadas pelo que se poderia chamar de correntes de atração. Hoje nenhuma celebridade adquire reconhecimento público sem a ajuda de intermediários culturais como diretores de cena da sua presença aos olhos do público. ‗Intermediários culturais‘ é o termo coletivo para agentes, publicitários, pessoal de marketing, promoters, fotógrafos, fitness trainers, figurisnistas, especialistas em cosméticos e assistentes pessoais. A tarefa deles é planejar uma apresentação em público de personalidades célebres que resultará num encanto permanente para uma platéia de fãs (ROJEK, 2008, p.12-13).

De acordo com ele a Revolução Americana foi responsável por derrubar as

instituições do colonialismo e a própria ideologia do poder monárquico que foi

cuidadosamente substituída por uma ideologia alternativa tão imperfeita quanto

fantástica: a ideologia do homem comum, capaz de legitimar o sistema político e

sustentar o comércio e a indústria e de contribuir para a transformação da

celebridade em mercadoria. Celebridades são os novos símbolos de

reconhecimento e pertencimento (em substituição à monarquia) e imortalidade, (uma

vez que Deus perdeu espaço). Para o autor:

A organização capitalista requer que os indivíduos sejam ao mesmo tempo objetos desejantes e de desejo. Pois o crescimento econômico depende do consumo de mercadorias, e a integração cultural depende da renovação dos vínculos de atração social. Celebridades humanizam o processo de consumo de mercadorias. A cultura da celebridade tem aflorado como um mecanismo central na estruturação do mercado de sentimentos humanos. Celebridades são mercadorias no sentido de que os consumidores desejam possuí-las. (ROJEK, 2008, p. 17).

Segundo Rojek (2008), a lógica da acumulação capitalista necessita de

consumidores para alimentar o intercâmbio constante de suas necessidades. A

inquietação e o atrito são atributos da cultura industrial resultantes da exigência de

lançamentos constantes de marcas e mercadorias. Esse desejo alienável do

individuo deve ser substituído constantemente para que as necessidades sejam

substituídas de acordo com a evolução do mercado. Para ele:

As celebridades simultaneamente encarnam tipos sociais e proporcionam modelos de papéis. O fato de a representação da mídia ser a base da celebridade é o núcleo central tanto da questão da

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misteriosa persistência como do poder da celebridade quanto de peculiar fraqueza da sua presença. Pelo ponto de vista da platéia, ela faz as celebridades parecerem simultaneamente confrades íntimos e quase sobre-humanos. A presença encenada através da mídia inevitavelmente levanta a questão da autenticidade. Esse é um perpétuo dilema, tanto para a celebridade quanto para a platéia (ROJEK, 2008, p. 19).

O autor percebe ainda a importância do caráter ubíquo da celebridade no

cotidiano, uma vez que o crescimento dos mercados unificados e a generalização do

sistema de comunicação de massa implica na transformação para uma cultura

mediagênica. Ele aponta os estilos, pontos de vistas, agenda e pauta para

conversas como influências e modelos oferecidos pela mídia para utilização no

intercâmbio social e cultural. Para o autor: ―Daí que a celebridade deve ser

compreendida como um fenômeno moderno, um fenômeno de jornais, televisão,

rádios e filmes de circulação de massa‖ (ROJEK, 2008, p. 19).

A aplicação desse estudo de Rojek (2008) na cozinha coincide com o

resultado de outro estudo pioneiro de Joanne Finkelstein (1989), apontado por

HECK (2004). De acordo com Finkelstein (2004), ―as interações sociais que ocorrem

dentro de um restaurante produzem uma sociabilidade não civilizada‖

(FINKELSTEIN apud HECK, 2004, p. 140) porque comer no restaurante, segundo a

autora, pressupõe uma conduta regida por normas, portanto, sujeita a ações

predeterminadas que vão refletir comportamentos da moda, e que

conseqüentemente enfraquecem a participação individual na arena social. De

acordo com Heck (2004):

[...] observa, no entanto, que, devido à importância econômica do eating business em nossa sociedade, ‗comer fora‘ se transformou em uma mercadoria e que os desejos dos indivíduos gerados por uma lógica econômica não são espontâneos. Assim, o ato de ‗jantar fora‘, da mesma maneira que proporciona prazer, tem a capacidade de transformar emoções em mercadorias e oferecê-las como itens de consumo (FINKELSTEIN apud HECK, 2004, p. 140).

A edição 1682 da Revista Veja de 10 de janeiro de 2001 traz a seguinte

manchete: ―Tempero e glamour: Não basta cozinhar. Chef de sucesso agora

aparece na TV, dá aulas e provoca suspiros.‖30 A autora da matéria, Aida Veiga,

afirma que:

30

http://veja.abril.com.br/100101/p_066.html acesso em 30/07/2011

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124

[...] para atingir o estrelato, os chefs fazem muito mais do que pilotar um fogão. Alguns comandam escolas próprias de gastronomia ou dão palestras sobre o metiê. Os mais desinibidos e com sotaque menos impeditivo participam de programas de televisão, dando dicas e receitas. Assinar um belo livro de capa dura, do tipo que serve mais para decorar a mesinha de centro da sala do que para ser consultado na cozinha, é imprescindível. A parte mais difícil do cotidiano dos chefs-celebridades acaba sendo o trivial: inventar novas receitas e manter a qualidade das antigas (VEIGA, 2001, p. ).

Mais adiante a autora da matéria demonstra que já reconhece a importância

da celebridade para o negócio e até arrisca uma previsão do futuro:

Não há quem negue, porém, que a celebridade fermenta os negócios. ‗Somos uma placa de anúncio de nossos restaurantes‘, defende-se Atala. Dono de restaurante em São Paulo, Alessandro Segato faz risotos maravilhosos, mas boa parte de sua clientela é formada por moças que salivam pelo italiano de voz mansa e rabo-de-cavalo. ‗Aprendi a driblar as mais afoitas‘, conta Segato, que se casou com uma freguesa assídua do restaurante em que era chef. ‗Minha mulher é uma fera e morre de ciúmes‘, alerta. O fascínio exercido pelos chefs é mundial, como atesta o enorme sucesso, em TVs a cabo de diversos países, de Iron Chef, programa gravado no Japão que promove, em cada episódio, um desafio entre dois cozinheiros, que ganham pontos pela qualidade da sua comida e pelo entretenimento que proporcionam. Fazer gracinhas e ser uma gracinha acaba contando tanto quanto o tempero. O Brasil teria bons candidatos à competição (VEIGA, 2001)

O número 43 da Revista Go Where Gastronomia de 2011 traz a matéria: ―Luz,

câmara, fogão!‖ exibindo na capa o apelo: ―TV Cozinha: Chefs celebridades

assumem o lugar das antigas culinaristas nos programas que pegam o espectador

pelo estômago‖ e que decreta o fim das culinaristas nos programas de TV,

substituídas por chefs consagrados que agora brilham diante das câmaras. Sua

autora, Cintia Oliveira, inicia a matéria recordando Ofélia Anunciato que com seu

―jeitão de dona de casa prendada‖ conduziu seu programa diariamente por mais de

três décadas. Lembra Palmirinha Onofre, sucessora e herdeira do estilo de Ofélia

que deixou a TV em agosto de 2010. A partir de então, escreveu ela:

[...] chefs famosos entraram em cena. Exímios em técnicas gastronômicas, os atuais astros da TV Cozinha tiveram de aprender a se posicionar diante das câmaras e se comunicar com o telespectador – não mais a dona de casa que queria agradar o marido, mas um público gourmet e heterogêneo, que também busca conhecimento sobre o vasto tema da enogastronomia. Um dos exemplos desta nova

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fase televisiva é o novo canal da Fox no Brasil: o BemSimples, que estreou no ano passado como parte da programação do canal pago Fox Life. O conceito do ‗faça você mesmo‘ ganhou canal próprio e os programas de culinária comandados por chefs como Rogerio Shimura e Carole Crema ocupam uma boa fatia das 24 horas de programação do canal (OLIVEIRA, 2011, p.28).

A matéria registra alguns sets de filmagem transformados em cozinhas de

sonhos: laboratórios, domésticas ou rurais com ares de fazenda, entrevistando chefs

nacionais e estrangeiros equiparados na TV pela celebritização. Detalhes da

atividade, Cintia passa alguns como o timing da TV:

Quando se faz uma receita na TV, existe o fator tempo. Timing é um ingrediente essencial. É uma arte olhar para as câmeras, conversar com o público e, ao mesmo tempo, não deixar a receita desandar. Diz Allan Espejo ‗é como passar batom e dirigir um carro; com o tempo é possível juntar as duas ações‘. Para isso dar certo ele aprendeu um truque. ‗Tenho de saber o tempo exato que vou levar para executar cada passo da receita, caso contrário me atrapalho‘ (OLIVEIRA, 2011, p. 30).

A linha do tempo preparada pela matéria tem inicio em 1958 com a estréia de

Ofélia na TV Santos; década de 1960, Etty Fraser apresenta na TV Gazeta ―Boca de

forno‖ e ―A moda da casa‖; em 1993 com a estréia do ―Note e Anote‖ com Ana Maria

Braga em que culinaristas ensinavam receitas; 1996 é a vez do chef francês, Olivier

Anquier que apresentava um programa no estilo road movie; 2010 termina o ―TV

Culinária‖ de Palmirinha Onofre e começa o BemSimples com chefs brasileiros

ensinando receitas no canal Fox Life; em 2011 estréia o canal ―Chef TV‖ o primeiro

canal brasileiro dedicado exclusivamente a gastronomia.

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CONCLUSÃO

A cozinha foi o último setor da sociedade de consumo a ser contaminado pelas

mídias. No entanto, ao longo de suas transformações, observou-se na cidade de

São Paulo, uma mudança do conceito de comida. À medida que a cidade se

urbanizava, a comida colonial foi perdendo suas características rurais para ganhar

contornos urbanos. O primeiro traço de urbanidade da cozinha paulista, resultante

da convergência da necessidade prática do comer com a tecnização, se deu com o

surgimento do fogão a gás.

Com o aparecimento das primeiras fábricas básicas de embutidos e

macarrão, no final do século XIX, de influência italiana, a mentalidade industrial foi

se construindo tornando-se ao longo do processo inicial de urbanização, capaz de

modificar esse modo colonial de ver e de fazer a comida, ao mesmo tempo em que o

modo urbano de viver passa a estar relacionado com esse jogo. Também

influenciado pelos imigrantes, despontaram na cidade algumas confeitarias – os

primeiros restaurantes paulistanos – alavancando na cidade o hábito de sair para

comer fora, ampliando a vida noturna paulistana, o que leva a concluir que a

imigração teve um papel preponderante na conformação de muitos aspectos da

urbanização da cozinha paulista.

Lentamente, a cidade foi ganhando feições de civilidade, em que o fazer

culinário instintivo foi sendo substituído pela racionalização, enquanto se constituía

um padrão industrial de comida, porém, sem perder completamente seus resquícios

de colonialidade. A idéia de civilização da cozinha paulistana passou a ser

representada pela predominância de um olhar simétrico sobre os fazeres culinários,

diretamente relacionados com a adoção de métodos práticos, higiênicos e científicos

exibidos a partir dos programas de culinária da televisão, que tiveram início na

década de 1960, com a culinarista Ofélia Anunciato, como estratégias de

apresentação midiática.

A agudização da oferta de equipamentos e utensílios, ingredientes e produtos

industrializados desse período, graças à expansão da indústria alimentar e,

posteriormente, a explosão da indústria de eletrodomésticos, a abertura de templos

de consumo como supermercados e shopping centers, permitiu uma democratização

do acesso a um número cada vez maior de mercadorias. Acesso esse facilitado

também pela abertura de linhas de crédito adotada pela nova política econômica do

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país. Todo esse aparato tecnológico culinário acabou impulsionando a

transformação das práticas do fazer culinário através do redimensionamento de

receitas, em suas medidas, técnicas e tempo de preparo, além de introduzir novas

possibilidades de produção e estabelecer um novo padrão de comida.

A mediação do olhar sobre a comida, em conseqüência do processo de

massificação e homogeneização da compreensão do mundo foi imprescindível para

a conformação de um novo sentido do modo de ser, de compreender as

sociabilidades, e do que comer. O mercado de alimentação ganhou a construção de

um espaço urbano alimentar alinhado pela massificação do paladar e do gosto, em

que os fast-foods representaram a emergência desse novo momento gastronômico.

As inúmeras possibilidades de sabores que constituem o multiculturalismo

alimentar paulistano evidenciam a vocação da metrópole para o momento

contemporâneo, que exige múltiplas identidades. E, ao mesmo tempo em que se

mistura como um ―caldeirão antropofágico‖ amalgamado pela convergência cultural

– graças ao espaço midiático – a cozinha paulistana é segmentada, com gêneros

distintos, onde figuram as cozinhas (típicas) paulistanas: italiana, japonesa ou

contemporânea, perfiladas com a caipira ou a tropeira, tipificando o ―gosto‖ coletivo

urbano contemporâneo. Muito embora nesse momento o ―gosto‖ globalizado parece

empreender seu caminho de volta. Vivencia-se um processo de valorização dos

modos de comer brasileiros que ressalta, porém, o aspecto lúdico, em detrimento de

seu enraizamento cultural. Esse apelo nacionalista pretende superar o descaso com

a nossa cozinha típica (até então de caráter apenas turístico), e atrair para o país, e

em especial para São Paulo – a cidade que melhor representa esse movimento – a

atenção para uma cozinha brasileira ―reencantada‖, que emerge da racionalização

(investigação, criatividade e estilização) de modos de preparo históricos e

ingredientes nacionais (como uma vantagem competitiva), e evoca, a partir desse

seu novo enfoque, um lugar de destaque na gastronomia universal.

A recente proliferação dos programas e canais de televisão, revistas, livros e

cadernos de jornais, blogs e sites da internet, e de cursos de gastronomia indicam

que o momento favorece o mercado de alimentação. São Paulo, hoje, é palco desse

novo cenário exacerbado de cultura e entretenimento gastronômico, em que um

determinado restaurante da moda ou chef celebridade pode conferir status aos

comensais, uma distinção tão cara quanto àquela que a burguesia francesa buscava

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no mercado de artes do século XIX. A cozinha de agora não é apenas arte, mas

também espetáculo.

Toda essa revolução da cozinha paulistana que caracteriza a metrópole atual

me remete à instituição do padrão francês do gosto, a partir do século XVII em que o

livro de cozinha mediou a cultura francesa pelos principais países europeus, quando

a ―cuisine‖ se tornou a cozinha francesa. Contrariamente, os paulistanos não estão

promovendo o padrão paulista do gosto através das mídias, apesar de todo o

aparato tecnológico envolvido, mas as mídias promovem o seu próprio.

Page 129: Os processos de midiatização da cozinha paulista: do arraial à ...

129

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Filmes e documentários

Gaijin

Título no Brasil: Gaijin, Os Caminhos da Liberdade

Título Original: Gaijin, Os Caminhos da Liberdade

País de Origem: Brasil

Gênero: Drama

Tempo de Duração: 112 minutos

Ano de Lançamento: 1980

Direção: Tizuka Yamasaki

São Paulo: Sinfonia da metrópole

Titulo: São Paulo a Symphonia da Metrópole

Gênero: documentário

Tempo de Duração: 90 minutos

Ano de Lançamento (Brasil): 1929

Direção: Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny

Minissérie Um Só Coração

Título; Um só coração

TV Globo

Ano de lançamento 2004

Autor: Maria Adelaide Amaral e

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Alcides Nogueira

Direção: Carlos Araújo

Um homem de moral

Diretor: Ricardo Dias

Duração: 84 min.

Ano: 2008

País: Brasil

Gênero: Documentário

São Paulo Sociedade Anônima

Duração: 107 min

Ano: 1965

Cidade: São Paulo

Gênero: Ficção

O caldeirão Antropofágico – Série Mesa Brasileira

Direção: Ricardo Miranda

Duração: 55 minutos

Idioma: Português

Gênero: Documentário

Ano de Produção: 2002

Brasil caipira – Série O Povo Brasileiro

Direção: Isa Grinspum Ferraz

Duração: 26 minutos

Idioma: Português

Gênero: Documentário

Ano de produção: 2000

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ANEXOS

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GLOSSÁRIO

A cuisine – refere-se ao padrão francês de cozinha

American way life – modelo de vida americano

Bananes flambées – bananas flambadas

Bavaroises de fruta – a bavarese é uma sobremesa gelada leve, porém, ligeiramente mais densa que o mousse

Cassoulettes - uma espécie de feijoada francesa feita com feijão branco, carnes diversas salgadas e embutidos

Cuisine bourgeoise – cozinha burguesa

Cuisine française – cozinha francesa

Filet de sole - filé de linguado

Gueridon – mesa de apoio para o serviço de restaurante

Haute cuisine – alta cozinha

Junk food – comida pouco saudável

Le grand siècle – o século XVII é chamado de grande século devido ao desenvolvimento e progresso da França durante esse período, inclusive, da cozinha francesa

Magasin de bouche – boutique de carnes

Maitre – responsável pelo serviço de pratos e bebidas, e chefe da equipe de garçons

Manuel des amphitryons – Manual dos anfitriões

Molho bechamel - molho branco

Nouvelle cuisine – movimento de chefs franceses que tentou modernizar a cozinha, durante os anos 1970

Peru à brasilienne - peru à brasileira

Pottages - sopas

Reynière –Grimond de La Reynière - critico gastronômico francês, inventor da literatura gastronômica, dos guias e dos signos de qualidade.

Sabaione - creme delicado composto por gemas, açúcar e uma bebida alcoólica

Savarin- tum tipo de pão doce mais leve servido como sobremesa com frutas e chantilly

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Savoir faire – conhecimento, a mesma coisa que know how

Traiteurs – delicatessen