Os Paradoxos Da Ciência Oculta

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OS PARADOXOS DA SABEDORIA OCULTA POR ELIPHAS LÉVI (Alphonse-Louis Constant) Paradoxo I RELIGIÃO É MAGIA SANCIONADA PELA AUTORIDADE Magia é a divindade do homem conquistada pela ciência em conjunção com a fé; os verdadeiros magos são Deuses- Homens, em virtude da sua íntima união com o princípio divino. Eles não têm medo nem desejos; não se deixam dominar pela falsidade; não endossam erros; amam sem ilusão e sofrem sem impaciência; pois deixam que as coisas sigam o seu curso, e repousem na quietude do pensamento eterno. Os verdadeiros magos apoiam-se na religião, mas esta não lhes pesa sobre os ombros; a religião é a Esfinge que obedece, sem nunca devorá-los. Eles sabem o que é a religião e sabem ser ela necessária e eterna. Para as almas degradadas, a religião é um grilhão impingido através do interesse rasteiro, da pusilanimidade, do medo e das loucuras da esperança. Para as almas elevadas, a religião é uma força resultante de uma intensa dependência ao amor da humanidade. A Religião é a poesia colectiva das grandes almas. Os seus mitos são mais verdadeiros que a Verdade propriamente dita; mais vastos que o Infinito; mais duradouros que a Eternidade; por outras palavras, são essencialmente paradoxais. Os mitos da religião são o sonho do Infinito no Desconhecido do Possível no Impossível, do Definido no Indefinível, do Progresso no Imutável, do Ser Absoluto no Não-Existente. São a racionalidade derradeira do Absurdo, que se auto- afirma, para negar a dúvida; são a ciência da tolice, o amplexo da Loucura e do Saber. São os gritos da águia rapace acima das nuvens, o urro do leão apocalíptico, que se mune de asas e levanta voo; o gemido do touro sob o cutelo sacrificial e o lamento imperecível da humanidade diante das portas do túmulo.

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Os Paradoxos Da Ciência Oculta

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OS PARADOXOS DA SABEDORIA OCULTA

OS PARADOXOS DA SABEDORIA OCULTA

POR

ELIPHAS LVI

(Alphonse-Louis Constant)

Paradoxo I

RELIGIO MAGIA SANCIONADA PELA AUTORIDADE

Magia a divindade do homem conquistada pela cincia em conjuno com a f; os verdadeiros magos so Deuses-Homens, em virtude da sua ntima unio com o princpio divino. Eles no tm medo nem desejos; no se deixam dominar pela falsidade; no endossam erros; amam sem iluso e sofrem sem impacincia; pois deixam que as coisas sigam o seu curso, e repousem na quietude do pensamento eterno. Os verdadeiros magos apoiam-se na religio, mas esta no lhes pesa sobre os ombros; a religio a Esfinge que obedece, sem nunca devor-los. Eles sabem o que a religio e sabem ser ela necessria e eterna.

Para as almas degradadas, a religio um grilho impingido atravs do interesse rasteiro, da pusilanimidade, do medo e das loucuras da esperana. Para as almas elevadas, a religio uma fora resultante de uma intensa dependncia ao amor da humanidade.

A Religio a poesia colectiva das grandes almas. Os seus mitos so mais verdadeiros que a Verdade propriamente dita; mais vastos que o Infinito; mais duradouros que a Eternidade; por outras palavras, so essencialmente paradoxais.

Os mitos da religio so o sonho do Infinito no Desconhecido do Possvel no Impossvel, do Definido no Indefinvel, do Progresso no Imutvel, do Ser Absoluto no No-Existente.

So a racionalidade derradeira do Absurdo, que se auto-afirma, para negar a dvida; so a cincia da tolice, o amplexo da Loucura e do Saber. So os gritos da guia rapace acima das nuvens, o urro do leo apocalptico, que se mune de asas e levanta voo; o gemido do touro sob o cutelo sacrificial e o lamento imperecvel da humanidade diante das portas do tmulo.

Para o homem, Deus , e s pode ser, o ideal de homem. Em si mesmo ele o desconhecido, mas na sua revelao, a um s tempo divino e humano, ele o homem paradoxal, o substancial sem substncia, o pessoal sem definio, o imutvel que se transforma mas no tem forma, o omnipotente em luta eterna contra a fraqueza do homem, a serenidade que troveja, a misericrdia que amaldioa, a bondade infinita que tortura, a eternidade que perece; uma contradio infinita; o abismo do corao humano, servindo de mundo para um dolo insacivel e aterrador; a crueldade de Nero, a finura de Tibrio bebendo o sangue de Jesus Cristo, um papa imperador ou um imperador antipapa, o rei dos reis, o pontfice dos pontfices, o verdugo dos verdugos, o mdico dos mdicos, o libertador dos homens livres, o inflexvel feitor de escravos.

Deus por toda a parte o ideal de quantos na sua ignorncia o adoram; feroz entre os selvagens, prenhe de paixes humanas entre os gregos, um dspota oriental para os judeus, ciumento e desapiedado como um sacerdote celibatrio para os ultramontanos. Todos e cada um criam um personagem a que atribuem em dose infinita as suas prprias caractersticas e os seus prprios defeitos.

Todo o homem adora o Deus que construiu para si sua prpria imagem ou aquele que as autoridades, mais ou menos interessadas na sua ignorncia e na sua fraqueza, lhe impuseram. Adorar temendo quase o mesmo que "odiar", embora o medo mascare o dio; adorar destemidamente "amar".

A verdadeira piedade, que a base da religio, a exaltao do amor, pois o amor em grau mximo no aceita as barreiras do impossvel; o impossvel o seu sonho e o milagre, para ele, a realidade. Que coisa poderia propiciar uma religio que no nos desse o infinito? O que o Protestantismo com o seu sacramento falto de realidade? Uma tristeza de crio derretido ou de igreja derruda! Como pode o po consagrado pela palavra representar Jesus Cristo se no o prprio Jesus? Que loucura no ser o Cristo a divindade! Bela devoo essa, mastigar um pedao de po - principalmente para aqueles que no sentem a necessidade da presena de um milagre no acto. Pode-se amar um ser humano at morte, at ao abandono de si mesmo, at loucura, mas ser possvel imortaliz-lo e torn-lo divino, imortalizando-nos simultaneamente com ele? Ser possvel incorpor-lo em ns mesmos? Com-lo por inteiro e sentir que ele est mais vivo do que nunca e fora de ns, quando o absorvemos, comungando com o seu ser imenso e o seu amor eterno? Desgraadamente, no o sentimos nem eterno nem imenso! E assim que Deus nos vem, disfarado sob a aparncia do po! Ns o vemos, tocamos, provamos, comemos e a sua eternidade palpita na nossa carne mortal. O sangue que pulsa no nosso corao o dele. O nosso peito infla quando ele respira. Oh! esses Protestantes com o seu bocado de po e o seu gole de vinho. . . belo sacramento tm eles ali!

A F, poeta enamorado do ideal, sorri ante a ridcula realidade, mas o crente fantico exaspera-se. Diz a Razo que nos devemos apiedar dos Protestantes. "No!", retruca, furiosa, a F; "devemos puni-los! O Deus que sinto irar-se dentro de mim condena-os ao inferno; por que no devo mand-los para a pira ardente?" Detm-te msero assassino! Acreditas que por que Deus se fez homem o homem pode transformar-se em tigre? Tu acreditas-te concebido no amor infinito e no entanto move-te o dio. Imaginaste haver comido o Cu, e, v, vomitas o Inferno! Comeste a carne de Cristo no como um Cristo, mas como um canibal. Blasfemo, sacrlego, cala-te e limpa a tua boca, porque os teus lbios esto sujos de sangue.

Sem dvida alguma, responsabilidade no cabe religio pelos crimes que em seu nome foram perpetrados em pocas de barbrie. Numerosos hereges foram ento agentes de conspiraes e sedies. O massacre de S. Bartolomeu foi um recurso extremo cuja perfdia s se explica, talvez, pela necessidade de fazer abortar uma trama no menos prfida.

Assim, pelo menos, que a Rainha Me e Carlos IX procuraram justificar os seus actos. O que certo que naquela poca ambos eram capazes de qualquer coisa. Mas o que o justificava jamais se poder dar para a Inquisio? "Deus se fez homem", poder-se- responder, usando palavras que Pio V interpretou de maneira terrvel e Vicente de Paula de maneira sublime. Segundo a Bblia, Deus no se arrependeu de haver tomado a forma humana? Cruel exagero da iniquidade humana! To gigantesca pareceu ser esta, que Deus chegou a vacilar em seus desgnios! O homem diviniza-se at mesmo nos seus crimes e sonha insurgir-se contra o Eterno.

A revolta irreversvel dos condenados e a consequente e impotente ira de um Deus j sem condies de perdoar.

Bem, at mesmo isto sublime no seu horror, e o dogma catlico admirvel, em toda a sua pavorosa profundidade, para quantos lhe percebem a poesia sem se deixarem enredar pela sua seduo e pelo seu feitio.

Deus parece arrepender-se de haver tomado a forma humana porque o homem de tempos em tempos se arrepende de haver criado um Deus.

As fices divinas sucedem-se umas s outras como as idades. Jpiter destrona Saturno e o Jesus Cristo dos papas reina no lugar do Jeov dos Judeus. O Jesus de S. Domingos , no obstante, o filho do cruel Deus de Moiss, mas as feras de Daniel e do Apocalipse tm, inevitavelmente, que desaparecer para dar lugar pomba e ao cordeiro. Deus ter-se- de facto convertido em homem, quando os homens se tiverem tornado to bons como deve ser Deus. O gnio do homem, ao desenvolver-se atravs dos tempos, vai tecendo a genealogia dos Deuses. no gnio do homem que um Ser Eterno concebe um filho que dever suceder ao pai, e a que, do pai para o filho, transita um esprito de sabedoria e inteligncia que explica os mistrios de ambos. A Trindade no nasce assim das vsceras da humanidade? No a considera o homem eterna em trs pessoas, o pai, a me e o filho? Na trindade humana, o filho no to velho como o pai? Pois o pai tambm filho! No a mulher uma concepo imaculada da natureza e do amor?

E essa sua concepo no pura? Pois o pecado do amor termina onde comea a maternidade. H uma virgindade na santidade da me, e desde que Deus se fez homem, isto , desde que Deus no vive realmente para ns, no se personifica, nem pensa, nem ama, nem fala, a no ser como humano, a mulher tpica, a mulher colectiva, realmente a me de Deus.

Existe a redeno, isto , solidariedade entre os homens; os bons sofrem pelos maus e os justos pagam pelos pecadores. Assim sendo, tudo verdadeiro nos dogmas da religio desde que tenhamos a chave do enigma. O Catolicismo a Esfinge dos tempos modernos. Se nos colocarmos aos seus ps, sem lhe decifrarmos o enigma, seremos devorados por ele; se lhe decifrarmos o enigma sem o dominarmos, ou apenas o decifrarmos pela metade, estaremos, como dipo, condenados desgraa e cegueira autoprovocada.

Um catlico inteligente no deveria abandonar a igreja, deveria permanecer nela; sbio entre ignorantes, homem livre entre escravos, a fim de esclarecer os primeiros e libertar os ltimos, pois, uma vez mais repito, no h religio verdadeira fora do mbito da Catolicidade.

O fundamento lgico de uma religio ser irracional! A sua natureza ser sobrenatural. Deus supersubstancial. O espao e a substncia universal so o Infinito, Deus est neles, pois o conhecimento e a fora do infinito.

O infinito o absurdo inevitvel que se impe cincia. Deus a explicao paradoxal do absurdo que se impe f.

A cincia e a f podem e devem contrabalanar-se reciprocamente produzindo equilbrio; no podem jamais amalgamar-se.

O Padre Eterno judeu; o bom Deus cristo; a divindade de Jesus Cristo, o Papa e o Demnio so catlicos; mas a caridade, que catlica e goza de certa proeminncia, suprimir o Demnio e converter os idlatras do Papa.

O pecado original judeu, o bom senso, cristo, a simplicidade e a inteli-gncia so catlicas, mas a loucura pretensiosa protestante.

Don Juan, Voltaire, o primeiro Napoleo, Venillot, Polichinelo, Pierrot e Arlequim so catlicos, mas Prud'homme protestante, e o que pior, Pedreiro-Livre.

A filosofia Ateia ou Crist, a poesia Catlica e a escassez egosta e mercatria Protestante.

Por isso a Frana Voltairiana mas sempre Catlica, ao passo que os ingleses e os prussianos so protestantes.

- Sim, senhores da Hierarquia Eclesistica - disse o Catlico Galileu; - a Terra fixa, se assim o desejais; o Sol que gira em torno dela. Direi mais, se o desejardes. Direi que a Terra plana e que os Cus so de cristal. Provera a Deus que os vossos crnios fossem do mesmo material, de modo que um pouco de luz pudesse penetrar nos vossos respeitveis miolos. Sois a autoridade, e a cincia obrigada a curvar-se perante vs; ela pode dar-se ao luxo de curvar-se ao encontrar-se convosco; pois ela fica, enquanto vs passais. Vossos sucessores sero obrigados, por sua vez, a curvar-se a ela e a conviver harmoniosamente com ela.

Rabelais, no menos letrado e no menos catlico que Galileu, escreveu o seguinte no prlogo do seu quarto livro de Gargantua:

- Se na minha vida, nos meus escritos, na minha fala - minto, at mesmo nos meus pensamentos -, eu notasse o mais leve vestgio de alguma heresia, com as minhas prprias mos apanharia a lenha e acenderia o fogo com que me queimaria na pira.

Ser possvel ver aqui Rabelais, o inquisidor, queimando-se a si prprio, Rabelais, acusado de heresia?

Isso lembra-nos Deus ocasionando a morte de Deus a fim de aplacar a Deus. inexplicvel, tal como cumpre a um mistrio, mas essencialmente Catlico.

Nada to excitante para a imaginao como um mistrio, e a imaginao electriza e multiplica por dez a vontade. Os homens sensatos so chamados a governar o mundo, mas so os loucos que o convulsionam e metamorfoseiam. Por isso a loucura considerada divina nas naes do Ocidente. De facto, aos olhos de um mortal qualquer, o homem de gnio um louco. Realmente, ele contm, talvez, em si alguns gros de loucura, pois quase sempre esquece o bom senso para atender ao sublime impulso. Moiss sonha com uma Terra Prometida e arrasta para o deserto toda uma horda de pastores e escravos que resmungam, revoltam-se, matam-se mutuamente e morrem de fome e cansao durante quarenta anos. Ele jamais chegar Palestina; morrer, perdido, na montanha, mas o seu pensamento varrer os cus e ele dar ao mundo um Deus, nico, e um cdigo universal; da sombra de Moiss, insepulto, sair a glria imensurvel de Jeov.

Ele criou um povo e comeou um livro; um povo bravamente maldoso na sua tenacidade, soberbo e servil a um s tempo; um livro cheio de sombras e luzes, de uma grandiosidade e absurdo sobre-humanos; esse livro e esse povo resistiro a toda e qualquer fora, toda cincia, todos os esquemas polticos, todas as crticas das naes e ao passar do tempo. Nesse livro a civilizao aprender a adorar; desse povo os reis tomaro os seus tesouros, e quem ousar julgar o homem do Mar Vermelho e do Monte Horeb? Que filsofo racionalista ir cham-lo de sbio? Mas que apreciador das grandes coisas se atrever a cham-lo de tolo?

Podemos falar agora em Jesus Cristo? preciso, porm, que dobremos os Joelhos diante daquele que a metade do mundo adora. Que grande hierofante, que antigo orculo teria podido prever esse Deus? Que astrlogo ou que adivinho poderia ter concebido a ideia de dizer ao Imperador Tibrio:

- Neste instante um Judeu da Galileia, proscrito pelo seu prprio povo, renegado pelos amigos e condenado por um dos vossos Prefeitos, est na agonia da morte. Depois da sua morte ele destronar os Csares e aqueles que promoverem a continuao da sua inconcebvel dinastia reinaro em Roma no vosso lugar. Todos os Deuses do Imprio e do mundo inteiro cairo por terra ante a sua imagem; o instrumento da sua tortura se transformar no smbolo da Salvao.

Que loucura ser o Cristianismo se no for sobre-humano! Que f horrvel, essa f em Jesus Cristo, se ele no for Deus! Ser concebvel uma molstia mental suficientemente contagiosa para fazer delirar atravs de muitos sculos a quase totalidade da humanidade? Que dilvio de sangue fez correr esse extintor dos sacrifcios cruentos! Que dios implacveis, que vinganas, que guerras, que torturas, que massacres, no fomentou esse apologista do perdo? Mas Jesus era mais do que um homem; era uma ideia, um princpio. Eu sou um princpio que fala, disse ele, referindo-se a si mesmo.

Deus fez-se homem; assim se proclama na terra a adorao da humanidade. "Emanuel. Deus est em ns", dizem, abraando-se mutuamente os Irmos na Rosacruz, iniciados no mistrio do Deus-Homem. Sois unos comigo, disse o mestre aos seus discpulos, assim como o meu Pai e Eu somos unos; aquele que vos ouve, ouve-me a mim, e aquele que vos v, v o meu Pai. Triunfo e milagre! Deus j no um desconhecido para os homens, porque o homem conhece o homem. Deus deixa de ser invisvel quando nos dado ver o nosso prximo. Ele o benfeitor que nos ajuda, o pobre que ns ajudamos.

Ele o doente que padece, o mdico que cura. Ele o sofredor que chora e o amigo que consola. E a mulher - como o Cristianismo a exalta! O que dela se presume; a mulher a me de Deus, pois Deus se fez homem! Uma virgem - podemos am-la com todas as nossas aspiraes ao infinito; uma me - j no basta am-la simplesmente, preciso ador-la como adoramos A Graa e a Providncia. Ela tem nos lbios a lei do perdo; ela paz e misericrdia, natureza e vida, obedincia - livre, Liberdade - , submissa. Ela tudo aquilo que devemos amar! Em seu louvor se recitam as Litanias da Me-Virgem; Eu te sado, Porta do Cu, Templo de Marfim, Santurio Dourado, Rosa Misteriosa, Vaso Sacro da Devoo, Vaso Ilustre, Vaso Admirvel, Pxide de Amor, Taa dos Santos Desejos, Estrela Matutina, Arca da Aliana.

Oh! que grito de amor a ti levantam todos esses mrtires, autocondenados a uma eterna viuvez que no compreendem! Oh, suspiro cruel e desesperado o de todos esses sofredores sequiosos por uma imagem sempre ilusria, espicaados nos seus anseios por frutos a seus lbios sempre negados. Sublimes sonhadores! Renunciam mulher para ganhar o cu, como se o cu fosse alguma coisa sem mulher, e como se a mulher no fosse a Rainha do Cu! "Pecado de Ado, glorioso pecado", canta a igreja na sua liturgia, "pecado glorioso que mereceu o prprio Deus como redentor! pecado de Ado, inevitvel entre todos!" Filtram-se, assim, nos cnticos sacros os mais recnditos segredos do Santurio, mas aqueles que repetem estas misteriosas palavras no se do conta do seu verdadeiro sentido, e seus coraes, ardendo talvez sob as cinzas, os acusam de desejos, como se fossem coisa de envergonhar, e de saudades, como se fossem uma infidelidade!

A religio , portanto, a exaltao do homem e a adopo da mulher.

A compreenso da religio a emancipao do esprito e a Bblia dos hierofantes a Bblia da liberdade. Crer sem saber fraqueza; crer por saber poder.

Paradoxo II

LIBERDADE OBEDINCIA LEI

Onde est o esprito de Deus est a Liberdade, dizem as Escrituras Sagradas. Conhecereis a verdade, e a verdade vos far livres, disse Jesus Cristo. Devemos fugir da escravido literal para a liberdade do esprito, disse o grande Apstolo. Diz ele tambm: Foste comprado por preo muito alto, nunca mais te escravizes aos homens. Ns somos filhos e no escravos de Deus. Somos irmos e no escravos de Jesus Cristo.

A lei foi feita para o homem e no o homem para a lei, reiterou o Divino Mestre. A liberdade o objectivo da existncia humana; somente nela podem conciliar-se os direitos e deveres do homem; nela consistem a personalidade e a autonomia, e somente ela pode tornar o homem capaz e digno da Imortalidade.

Libertar-nos da escravido s Paixes, da tirania dos Preconceitos, dos erros da Ignorncia, dos padecimentos do Medo e das ansiedades do Desejo, tal a Obra da Vida.

uma questo de ser ou no ser. Apenas o homem livre homem; os escravos no passam de animais ou crianas.

Sto. Agostinho resume toda a lei neste esplndido dito: - Amai e fazei o que quiserdes. O homem livre no pode desejar seno aquilo que bom, pois todos os maus so escravos. Segundo o esprito dos nossos smbolos (Catlicos), a liberdade do homem a grande obra de Deus; por causa dela, permite Deus que exista o inferno e que a sombra hedionda do Demnio chegue at ao Cu. por isso que a quietude mais do que rgia da Divindade preterida aos sofrimentos da Humanidade acusada. Deus aspira cruz do malfeitor e deseja, para no ser um dspota que abusa da Omnipotncia, conquistar, atravs do sofrimento, o direito de perdoar a insurreio. A mulher foi audaciosa; quis saber; o homem foi sublime, ousando amar. E Deus, que a um s tempo os admira e pune, parece ter ficado enciumado dos seus filhos.

Tudo isto uma revelao, potica e esotrica; tudo isto ocorreu na mente Humana e no corao Humano. O homem percebe a sua alta dignidade quando deseja ser livre; o eterno abutre pode despedaar o fgado de Prometeu, mas a coragem do grande sofredor renova-se e refora com a audcia. Jpiter vinga-se, mas teme, e o homem ir destronar Jpiter, provando ser mais Deus que ele, dando todo o sangue do seu corao para curar as feridas de Prometeu e indo sofrer no lugar deste.

Emancipao, Liberdade, eis a palavra final dos Smbolos. Jesus desceu aos Infernos a fim de matar a escravido da Morte, e, retornando Luz, trouxe consigo cativeiro e cativos.

Um dia, somente a Morte estar morta; somente as maldies sero amaldioadas, e somente a condenao condenada, e o Esprito de Luz que deseja que todos os homens se salvem, todos os homens conheam a verdade, Deus - que, depois de haver responsabilizado a todos os homens em conjunto pelo erro de um nico indivduo, bem poder perdoar a todos em razo dos mritos de um s homem - Deus far que o bem triunfe; e o mal ser destrudo.

Vir o tempo em que se compreender que no existe verdadeira Liberdade sem Religio, no existe verdadeira Religio sem Liberdade, mas, hoje em dia, Religio e Liberdade parecem excluir-se mutuamente e contender sem trgua. Assim como a Religio, a Liberdade tem os seus mrtires, e a Liberdade negar a autoridade enquanto a Igreja negar os direitos da Liberdade.

Devemos conceder aos homens a liberdade de conscincia? perguntaram os nossos Doutores, e Roma decidiu-se pela negativa, mas isto quer dizer simplesmente que a Igreja no renuncia direco daqueles que a escutam.

A Liberdade no dada; tomada, ou melhor, a Natureza no-la d com o auxlio da cincia; indagar se devemos dar aos homens, homens de verdade, a Liberdade de conscincia o mesmo que perguntar se lhes devemos permitir terem cabea e corao. No teria Galileu, mesmo depois de retratar-se, sabido que a Terra se movia? Ir a civilizao recuar em virtude de haver um slabo? Dever o Papa impedir-nos de ir adiante? Saudemos o Papa e caminhemos sempre em frente. Se o Santo Padre deseja fazer-se ouvido, preciso que tambm ele se mexa; hora de levantar-se o pastor quando o seu rebanho se afasta. "Detm-te! diro alguns Tua posio de catlico no te permite falar assim. Se uma autoridade ilegtima me impe silncio, detenho a minha lngua, mas a Terra gira!

A conscincia inviolvel, pois divina, e , de facto, aquilo que no homem essencial e absolutamente livre. Pois fora da conscincia, onde se poder encontrar uma concretizao absoluta desse ideal: a Liberdade?

Desde o bero o homem v-se sujeito a necessidades tirnicas, e, goste ou no, deve, tem de suportar, durante toda a vida, essa cadeia de obrigaes que a sociedade e a natureza se esmeram em lhe impor.

A Verdade e a Justia so mestras severas, e o Amor um dspota, via de regra cruel. Para aquele que no rico surgem as necessidades da existncia; no existe alternativa entre a opresso do trabalho e o pelourinho da misria. Aqueles que so considerados os donos do mundo e da felicidade tm outros inimigos e outros grilhes; vai nisto tanta verdade que Alexandre o Grande tinha quase inveja cnica loucura e indiferena de Digenes; mas Digenes e Alexandre eram dois pontos extremos da vaidade paradoxal; eram ambos escravos do seu Orgulho e no homens livres.

Liberdade o pleno gozo daqueles direitos que no conotam um dever.

atravs do cumprimento do dever que os direitos so adquiridos e preservados. O homem tem o direito de fazer os seus deveres porque obrigado a preservar os seus direitos. A autodevoo apenas uma sublimao do dever, e o mais sublime de todos os direitos. Um homem poder dedicar-se a outro, mas isso no significa que seja escravo desse outro; ele poder empenhar a sua liberdade, mas no pode alien-la sem praticar uma espcie de suicdio moral. Um homem poder dedicar a sua vida ao triunfo de uma ideia, reservando-se, porm, o direito da expanso mental e da adopo de um objecto mais digno. Um voto perptuo uma afirmao do Absoluto no Relativo, do Conhecimento na Ignorncia, do Imutvel no Transitrio, da Contradio em todas as coisas. , portanto, um compromisso, nulo e vazio, por ser precipitado e absurdo, e o arrependi-mento (e a retraco), ao darmo-nos conta da loucura, no apenas um direito, mas tambm um dever.

verdade que a Igreja, cujas decises em matria de F devem ser acatadas por todos os Catlicos, aprova os votos perptuos; mas apenas quando decorrem de uma graa sobrenatural. Tais votos so vazios e antinaturais, mas na ordem sobrenatural so sagrados e inviolveis.

O casamento tambm um compromisso perptuo que nem sempre a natureza ratifica. Da decorrem por igual o rigor justo, porm intil, da moralidade e a deteriorao dos costumes. Da decorrem, em perene contraste, as lgrimas e o sangue da tragdia conjugal e o inexaurvel divertimento dos contos e comdias. Moiss estava terrvel ao descer do Monte Sinai, chifres na testa; mas por que teria chifres? Porque era casado, comentaria decerto algum deslavado gauls; e porque durante quarenta noites se ausentara do leito conjugal! A velha anedota no poupa a ningum.

Os dois maiores livres-pensadores que o mundo jamais conheceu foram Rabelais e Lafontaine, esses dois velhos mestres do esprito e do humor. E, o que de suma importncia, ambos bons Catlicos e acima de qualquer suspeio de heresia. Rebelais havia vestido a sotaina e tivera a habilidade de colocar-se nas boas graas do papa. Lafontaine era casado e no vivia com a mulher; mas que magos do estilo! Que apstolos da mais cristalina Verdade! A obra de Rabelais a Bblia do bom senso e da alegria infalvel; a de Lafontaine o Evangelho da Natureza. Rabelais costumava dizer missa, e se Lafontaine tivesse vivido no seu tempo nunca deixaria de comparecer e ler as profecias de Baruque.

Devemos fazer aquilo de que gostamos, desde que gostemos daquilo que devemos. Essa a Lei da Liberdade! Por outras palavras, todo o homem tem direito a cumprir o seu dever, mas o primeiro dever do homem est estabelecido no primeiro mandamento do Declogo.

Adorars um Deus apenas e apenas a ele obedecers.

E Jesus, ampliando o preceito, a ponto de dar sua explicao um cunho paradoxal, no hesitou em acrescentar: no chamars a ningum neste mundo de senhor ou pai; um apenas o teu pai, o teu senhor, e esse Deus.

E S. Joo, confidente dos pensamentos de Jesus, nos diz que Deus o Verbo ou Razo e que O Verbo Deus.

Por isso temos, e s podemos ter, como senhor a Razo, ou o Verbo que fala.

Pois o Verbo - acrescenta S. Joo - a verdadeira Luz que ilumina todo aquele que vem ao mundo.

Jesus Cristo disse de si mesmo: Eu sou o princpio que fala

E todo aquele que fala de acordo com a Razo pode dizer: "Eu sou a Razo". E devemos fazer e deixar de fazer aquilo que ela determina, pois a Vontade da Razo prevalece sobre o Capricho do homem. O capricho cabe na escolha das diverses. No que tange ao divertimento, podemos escolher entre um e outro, mas tal no se d no caso dos deveres que se nos impem, os quais somos obrigados a aceitar e fazer.

O dever esmaga todo aquele que procura furtar-se a ele, mas acalenta com amor todo aquele que o executa de bom grado.

Querer aquilo que devemos, isto , querer aquilo que Deus quer. E quando a vontade do homem a mesma que a vontade Divina, ela torna-se omnipotente.

ento que os milagres da F se realizam; ento que podermos remover montanhas e fazer que as rvores frutferas se desloquem para dentro do mar - palavras do nosso Salvador que no devem ser tomadas ao p da letra.

A Palavra da Razo eficaz, porque deseja o fim e determina os meios.

certo que nem montanhas nem rvores se deslocaro de moto prprio.

A Fora manipula a Matria e o Pensamento dirige a Fora. A F vale-se do Conhecimento e o Conhecimento dirige a F.

Nem Deus propriamente dito pode fazer alguma coisa contrria Razo, o que vem a ser a Lei da Justia, porque Justia, Lei e Razo so Deus propriamente dito.

Deus no detm o Sol e a Lua apenas para que Josu extermine uns tantos Cannitas; e o anncio de tal milagre no passa, com certeza, de uma figura de hiprbole da poesia Oriental.

Deus no repudia um povo depois de hav-lo eleito, e no muda a sua religio depois de hav-la dado como eterna.

Determinaes arbitrrias, favores, privilgios, ira, repdio, perdo, pertencem apenas fraqueza do homem.

Mas para fazer as crianas compreenderem gradualmente a Razo, preciso s vezes recobri-la com uma aparncia de loucura.

A infncia naturalmente tola; ela tem de ter as suas histrias absurdas e os seus brinquedos sensacionais. Tem de ter as suas bonecas automticas, os seus animais accionados por mecanismos. Verdade que, em pouco tempo, trata de quebrar tais brinquedos para ver o que h dentro deles.

Por essa forma a Humanidade rompe uma aps outra todas as suas Religies infantis.

A verdadeira Religio a Religio eterna.

A verdadeira Piedade a Piedade que independente. A verdadeira F a F absoluta que explica todos os smbolos e paira acima de todos os Dogmas. O verdadeiro Deus o Deus da Razo, e a sua verdadeira adorao Amor e Liberdade.

Os Cristos tinham razo quando quebraram os dolos, porque os homens teimavam em obrig-los a ador-los. Os Protestantes tinham razo quando espezinharam e queimaram as imagens dos Santos porque, a fim de obrig-los a vener-las, os homens estavam a queimar na pira os prprios Protestantes.

No obstante, haver algo mais Divino do que as grandes obras de Fdias e do que as Virgens de Rafael?

A adorao das imagens no ser a adorao da Arte, e a maravilhosa Religio dos gregos no ter sido uma das mais graciosas e esplndidas formas da Religio Universal?

Adoro realmente a Divina Majestade ante o Jpiter de Fdias, a Beleza Imortal na Vnus de Milo, a Divindade do Homem no Cristo de Michelangelo, o Sonho do Paraso na pintura de Fra Anglico

Mas, se para obrigarem-me a adorar uma ou outra dessas obras, me apontarem forcas ou piras ardentes... Eu me encherei de desprezo, ignorarei o carrasco e darei as costas ao dolo. Oh, loucura da tirania humana!

Na Frana, no prprio pas cujo nome significa Liberdade, ergueram-se cadafalsos aos ps do prprio dolo da Liberdade.

Contudo, Robespierre e Marat amaldioaram os Inquisidores da mesma forma pela qual os Inquisidores amaldioaram Nero e Diocleciano, e Marat e Robespierre foram, por sua vez, amaldioados por assassinos posteriores, e a Liberdade continua a ser um sangrento Paradoxo, um dolo faminto de sacrifcios.

At esta data o mundo continua a ser um imenso hospcio. Grupos inteiros aprisionam um s indivduo, exigindo-lhe: - Adora os nossos chinelos; seno, ardes na fogueira!

Sendo esperto, o homem cado nas suas garras finge adorar os chinelos e talvez ao faz-lo no seja nem hipcrita nem idlatra, mas aquele que se torna vtima um sujeito sem perfdia, que toma tudo a srio, resiste e se transforma em Mrtir!

A lassido que sobrevm ao deboche impele os homens loucura do suicdio, e as orgias da Decadncia s poderiam terminar numa epidemia de Martrios. As moas de uma certa poca saltavam para dentro das fogueiras como que numa roda de dana; mes entediadas arrastavam os seus filhos para o massacre. Carrascos, fartos de matar, atiravam longe os seus cutelos e imploravam a morte. "Retirai as vossas golas de rufos e preparai o campo para os verdugos" - escreveu Tertuliano para as mulheres crists. As crianas brincavam ao Martrio, e uma delas foi vista, aquecendo ao rubro um pedao de ferro para segur-lo na mo. A crueldade romana provocou uma reaco, e o gosto da tortura como exibio criou o desejo de experiment-la como sensao nova.

Polignoto e Nearco, ao interromperem uma cerimnia religiosa e deitarem por terra os altares ptrios perante uma assistncia horrorizada, tero agido como seres razoveis? E ento? S. Paulo no ter postulado a loucura da crucificao? E o prprio Jesus no provocou comoo no Templo de Jerusalm? Ele era Deus, diro. Que fosse, mas do ponto de vista humano a sua conduta foi altamente irregular e imprudente, e concordaro comigo neste ponto. . . se tiverem coragem.

Ser vlido, aceite o pretexto, de que, se Deus, pode agir com menos prudncia do que um homem sensato? Essa a indagao que, se no de direito, pelo menos se tem vontade de fazer; ao menos quando se aceitam os Evangelhos como histria. Mas os Evangelhos so mais do que histria; so preceitos e smbolos. Deus condena o comrcio das Coisas Sagradas; no admite transaces no seu Templo e os vendilhes merecem o castigo de serem escorraados a chicote; as suas tendas so derrubadas e as suas moedas so pisadas sob os ps. Isto tudo quanto significa a Lenda (ou Santo Evangelho, se preferirem) dos vendilhes do Templo; curvo-me aqui e calo-me.

Tudo lindo na nossa Religio quando sabemos compreend-la. Toda a nossa Religio verdadeira, e eu ousaria mesmo dizer que toda Religio verdadeira, tirando as omisses, transposies, interpretaes errneas, conjecturas apressadas, adies, imaginaes e incompreenses.

Isto o que os livre-pensadores tm de compreender em ltima instncia se no desejam permanecer em perene combate contra uma das mais poderosas foras da Natureza Humana, o desejo inopinvel de crer, e adorar alguma coisa no Infinito, e ter F numa Humanidade de certa forma maior que a natureza, de modo a alar-se sempre na sua direco, purificar-se nela, a fim de dominar e reinar atravs dela.

Voltaire no desejava destruir a Religio, mas queria reduzi-la a um Desmo puro. O seu lema era: Deus e Liberdade. Ele, que se imaginava poeta, no compreendia contudo o grande Poema pico dos Smbolos, que principia com as Foras cegas e termina com a Inteligncia e a Liberdade, espezinha sis, o fogo sagrado de Zoroastro, permite seja este roubado por Prometeu, num desafio aos raios de Jpiter, adora a fora apresada aos ps da Beleza, atravessa o domnio esplndido e quase infinito dos sonhos e, por fim, realiza a sua sntese na realidade do Homem.

Deus deixa de ser o gigante invisvel, fantstico, solitrio, escondido nas profundezas inescrutveis do Cu; Ele est entre ns, est em ns, nasceu da Mulher, o filhote cujos primeiros vagidos ouvimos, um jovem que pensa e ama, um fora-da-lei que luta e sofre, um livre-pensador que protesta, um reformador que expulsa compradores e vendedores do Templo Sagrado, um amaldioado que abenoa, e se ergue dos mortos, o Homem puro que perdoa a Mulher adltera, o mdico que cura, mas tambm o doente que espera, o paraltico que se levanta e caminha, o cego que abre os olhos. Os outros so em mim, disse o Salvador, e aquele que me v a mim v tambm a meu Pai; tudo o que se fizer a qualquer um deles ser feito a mim, e Deus est em mim, tanto quanto eu estou Nele. Estar ele falando apenas no povo escolhido pertencente bendita raa de Abrao? No! pois ele abenoa por igual o bom Samaritano, o Centurio, a mulher de Cana e a imensa legio das naes, as quais almeja reunir sob um s manto. Assim, aquele que d po aos pobres d po a Deus; aquele que consola um sofredor consola a Deus; aquele que abenoa um infiel abenoa a Deus; aquele que injuria um homem injuria a Deus; aquele que amaldioa um homem amaldioa a Deus; aquele que mata um homem comete Deicdio.

Que teria Jesus pensado dos desapiedados Sacerdote e Levita excomungando e condenando morte o bom Samaritano por herege e o ferido de Jeric por haver recebido com gratido os socorros de um infiel? Qual ser o seu juzo acerca daqueles Inquisidores que prenderam, torturaram e queimaram Deus vivo? Mas o Deus desses homens era o Demnio e a sua Religio, o Anticristo. O homem no tem direito de matar o homem a no ser em legtima defesa. A execuo de um criminoso um infortnio de guerra numa Sociedade ainda no Crist, mas o executado que aceita o castigo o Pai do bom ladro morrendo lado a lado com o Salvador, e preciso vermos nele Deus distinguindo-se do bruto. O crime no um acto humano, mas o sacrifcio Divino quando voluntrio. Homo humcmi a me nil alienum puto. Sou um homem e nada do que humano pode ser estranho a mim. Foi isto o que Deus disse ao mundo no Esprito da Revelao Crist.

Procuremos Deus na Natureza, adoremo-lo em Esprito e na Verdade, amemo-lo e sirvamo-lo na Humanidade. Eis a Religio, eterna e definitiva .

E quando o chefe da Famlia Humana houver trilhado esse caminho, poderemos dizer ento com Voltaire: "Deus Liberdade", pois o homem compreender Deus e merecer ser livre.

Paradoxo III

O AMOR A REALIZAO DO IMPOSSVEL

O Amor a Omnipotncia do Ideal. Atravs do Ideal, a alma exaltada; torna-se maior do que a Natureza, mais viva do que o mundo, mais elevada do que a Cincia, mais imortal do que a Vida.

Quando Jesus Cristo disse: "Ama a Deus com todo o teu corao e ao teu prximo como a ti mesmo, esta a Lei", o que ele queria dizer era: Ama, ama sobre todas as coisas; e mais, ama o teu prximo como a ti mesmo, vale dizer, ama-te a ti mesmo no teu prximo.

O egosmo devidamente ordenado comea com os outros. Amar viver, amar saber, amar ser capaz, amar rezar, Dar ser o Deus-Homem.

A mulher ousou desgraar-se, com o fito de colher a Divindade e ofert-la ao Homem e o Homem, que no tinha sede de Divindade, pois tinha a Mulher, o Homem encarou como coisa muito simples seguir a sua companheira at morte. Comeou a a encarnao de Deus. Eva obrigou Deus a fazer-se homem, pois ela tinha-se tornado me.

A Morte e o Inferno haviam crescido, pejados de terrvel e perene ameaa, e num instante o Amor os vencera.

O Amor mais forte do que a Morte, diz o Cntico dos Cnticos. muito mais insupervel do que o Inferno. O Amor o Fogo Eterno e no h Dilvio capaz de apag-lo.

D por um pouco de amor tudo aquilo que tens, tudo aquilo que almejas, tudo aquilo que prezas, tudo aquilo que s. Teu sangue, teu corao, tua vida e tua alma, e comprars o amor por nada!

Aquele que privar a sua alma do Amor perder a sua alma, e aquele que perder a sua alma por Amor salvar a sua alma.

Muitos pecados sero perdoados ao corao que muito amou; o prprio Jesus assim o disse.

E ele teve Madalena por companheira e amiga, e pediu gua de beber mulher da Samaria, uma pecadora, perdoou a mulher surpreendida em adultrio, e disse que as mulheres livres entrariam mais facilmente no Paraso do que os Fariseus e os Doutores da Lei, porque os erros do Amor so mais desculpveis que os do Orgulho, pois melhor amar erradamente do que no amar.

Na Moralidade Absoluta, o Bem Amor; O Mal dio. O Amor deve ser amado e apenas o dio odiado. Uma nica palavra de dio merece o Inferno, dizem os Evangelhos; e, consequentemente, uma palavra de Amor merece o Cu, duas vezes, pois o Amor gratifica com maior liberalidade do que o dio pune.

Mas o Amor propriamente dito no a sua prpria recompensa? Aquele que ama no ter encontrado a chave do Cu?

Para Sta. Teresa o inferno era a impossibilidade de amar, o que lhe parecia to horrvel que ela tinha pena de Sat. "O infeliz", costumava dizer a santa, "j no pode amar".

A mulher lastimando o Demnio, que mudana na Cristandade! Quando o mundo aprender a amar, o mundo ser salvo. O homem que sabe amar atrai para si todas as almas. Cobiar no amar. Exigir no amar. Escravizar no amar. O desejo excessivo produz enfado; a inexorabilidade merece repdio.

A Tirania suscita a rebelio por parte dos fortes e a traio por parte dos fracos. O Cime odioso e ridculo. Odiar o corao que j no nos ama no o mesmo que puni-lo por nos haver amado? A fria ciumenta uma ingratido furiosa. H, porm, um cime sublime, que no seno o zelo do amor, e que para engrandecimento do Amor propriamente dito exige ser amado. Pois o ser amado sempre o Ideal Supremo da Alma, a miragem do Absoluto.

Simpatias e enfatuamentos passageiros no so Amor. O verdadeiro Amor a apreenso de Deus no homem; a essncia da religio, da honra, da amizade e do casamento. O Amor no apenas imortal, como tambm faz a alma imortal. O amor no envelhece, nem muda. Os coraes podem dele afastar-se, assim como a Terra se afasta do Sol para dormir, e ento que o frio da noite parece abater-se sobre a alma.

No plano fsico o Amor o princpio da vida; no plano espiritual ou metafsico, o princpio da Imortalidade. Voltando origem de todas as coisas e dali se difundindo sobre todos os seres chama-se Piedade, Caridade e Bondade; quando envolve respeito ao dever chama-se Honra; a fonte da Individualidade Humana.

manifestamente imortal, pois no faz concesses Morte; desafia-a, despreza-a e amide transforma-a numa beno e num tributo; que um mrtir seno uma testemunha que reafirma a Vida Eterna apesar das torturas e da morte?

O Amor afirma-se de modo absoluto; onde h Amor, no h Medo. Ele impe suas condies vida e no por esta condicionado. O Amor deve ser livre no homem: na Natureza o filho do Destino. Como o im, tem duas foras: atrai e repele, cria e destri. O Amor o irmo da Morte, mas o irmo mais velho. o Deus de que a Morte o sacerdote, o Deus que ilumina a Morte com o seu fulgor, enquanto a Morte lhe rende tributo com sacrifcios eternos.

O Amor tem uma sombra que os homens chamam de dio, e tal sombra necessria para pr em relevo o seu esplendor. A Beleza o seu sorriso, a felicidade a sua alegria, a deformidade a sua tristeza., a dor a sua prova.

A Guerra a sua grande febre; as Paixes, sua molstia; a Sabedoria, seu triunfo e repouso.

O Amor cego mas carrega consigo um facho; Lcifer, Anjo e Demnio; Condenao e Salvao.

Eros equilibrado por Anteros; S. Miguel tendo Sat por pedestal.

O grande arcano da Magia o mistrio do Amor. O Amor faz com que os anjos morram e imortaliza os Demnios. Ele transforma em mulheres as Slfides, Ondinas e Gnomos e reverte terra o elementar.

O Amor comprometeu Pandora e Prometeu; por Pandora que o corao de Prometeu renasce incessantemente sob os tales do abutre, e por Prometeu que Pandora ainda alimenta esperanas.

O Cu um hino de amor realizado; o Inferno, um grito de Amor frustrado; mas, como disse um grande Poeta, as sombras do Inferno so a escurido visvel, pois h sempre alguma luz na noite.

Se o Inferno no tivesse no amor uma causa vlida de existncia, ele seria o crime de Deus.

O Inferno o laboratrio da Redeno, e eterno, de modo a que a obra da reparao possa ser eterna, pois Deus sempre foi, e sempre ser, aquilo que .

O sofrimento eterno o grito da eterna frutificao.

Ao p da cruz do Salvador, em angelicais representaes, aparecem duas mulheres. Uma delas permanece de p e velada, imvel e plida como uma esttua na majestade da sua dor; a Virgem sem mcula, a me que concebeu sem pecado. A outra, prostrada e chorosa, esgrouviada e desalinhada, os olhos vermelhos de chorar, o peito arfando em soluos: a pecadora, Maria Madalena, exprobrada pelo mundo, abenoada por aquele que morre.

De cada lado de Cristo dois homens contorcem-se na agonia, dois malfeitores um arrependido, outro empedernido.

A um deles disse Jesus: "Eu te perdoo", mas ao outro ele no disse: "Eu te condeno", mas sofreu em silncio com ele e por ele.

A condenao irrevogvel a eterna censura do dio; o sofrimento irremedivel do ser que jamais amar. O Amor involuntrio no um sentimento particularmente humano; o instinto universal de toda a Natureza. O animal no escolhe sedues. Apenas o homem detm na mo a ma dourada destinada pelo Cu aos mais belos. Para ser sbio, ele escolher Minerva; para ter poder, escolher Juno; se, porm, a satisfao dos sentidos lhe bastar, ele escolher Vnus.

Foi o que fez o cobarde Paris. Agamenon teria optado por Juno, e foi assassinado por Clitemnestra. Ulisses admirava apenas Minerva; por isso tinha Penlope por esposa, por isso triunfou sobre as sereias, sobre Calipso e Circe, escapou de Polifemo e Neptuno, esmagou sob os ps seus inimigos e rivais, reconquistando destarte o seu tlamo e o seu trono.

Os poemas de Homero so ensinamentos divinos, cujos personagens so tipos. Agamenon e os dois Ajax so o triplo orgulho do Poder, Valor e Rebelio. Aquiles a Ira; Paris, o Prazer; Nestor, a Experincia que fala; Ulisses a inteligncia que age. Os seus trabalhos so as provaes da iniciao, correspondendo aos de Hrcules, mas Hrcules sucumbiu a um Amor fatal e morreu vitimado por Dejanira. Ulisses desfruta da posse de Calipso e de Circe sem se permitir ser por elas possudo; ele ama o que deve e o que quer amar; a sua ptria a sua esposa, e esse amor nico o conduz vitorioso atravs de tudo.

O Amor a maior fora do homem, quando no a sua mais baixa fraqueza.

O homem fraco se egosta; forte se autodevotado. Hrcules compra aos ps de Onfale as volpias de que escravo. Com os seus olhos, a sua honra e a sua liberdade, Sanso paga os beijos traioeiros de Dalila. Orfeu no deve olhar de novo para Eurdice; dominado pela sede daquela beleza que deseja contemplar uma vez mais, ele se volta, e tudo acaba - jamais poder olhar de novo para ela.

O verdadeiro Amor prende-se no beleza passageira; para ele a beleza eterna e jamais lhe poder fugir, pois ele tem a fora suficiente para cri-la.

O sbio no ama uma mulher porque ela bela; ele considera-a bonita porque a ama, e porque tem boas razes para am-la. O Amor animal pressago. O Amor humano providencial. Ulisses nos braos de Calipso e Circe no foi infiel a Penlope, porque o seu nico pensamento era como fugir delas e voltar para a esposa; ele pecou apenas contra as subtilezas do amor e ser por isso castigado pelo filho de Circe. O gro dos filhos ilegtimos a semente dos parricdios.

Quando no existe a f, ou pelo menos a iluso e o desejo da eternidade, o amor sexual uma indigesto de animalidade ou uma fantasia de deboche.

A luxria uma deturpao do amor que a natureza pune e que o amor ferido vinga. Mais cedo ou mais tarde o D. Juan tem de haver-se com a esttua do comandante. Mas poderemos ns mantermo-nos sempre a salvo desse amor malfadado? Poderemos entregar inapelavelmente o corao apenas aos livres e legtimos? Podemos, atravs do conhecimento e da vontade; quando sabemos aquilo que devemos querer, ento amamos aquilo que devemos amar.

Paradoxo IV

O CONHECIMENTO A IGNORNCIA OU A NEGAO DO MAL

"Perdoai-os, meu Pai, que eles no sabem o que fazem", disse Cristo, orando pelos seus algozes. Ao falar dessa maneira, ele advogava a causa de toda a Humanidade. Todos os homens se enganam porque eles no sabem, e homem algum sabe o que est fazendo quando comete o mal. Como pode um ser racional com um discernimento perfeito praticar o mal? Algum confundir de caso pensado venenos com perfumes, fel com mel, cicuta com salsa, ou arsnico com sal?

A ignorncia a causa de todos os erros, todos os crimes e todos os males que afligem a Raa Humana.

Foi a ignorncia que inventou Deuses caprichosos e vingativos; foi ela que fomentou nos Deuses as piores paixes humanas; foi ela que construiu a partir do princpio inteligente das coisas uma personalidade, distinta, definida e infinita, confundindo assim entre si conceitos os mais contraditrios. Pois no momento em que uma personalidade se torna definida e distinta, deixa de ser possvel conceb-la como infinita.

E por obra da Ignorncia que os homens teimam, ora obrigar outros homens a submeter-se a uma F sem Razo, ora exigir a dependncia a uma Razo sem F, perseguindo-se entre si, acabando por desviar-se para ambos os plos da Loucura.

atravs da Ignorncia das Leis da Natureza que os homens acreditaram haver sido o Sol detido no seu curso, acreditaram em burros falantes, em queixadas de burros transformando-se em fontes e num mundo inteiro de absurdos e quimeras.

a Ignorncia que faz Trimalcio estoirar mesa de refeies, e S. Antnio enlouquecer no deserto e os homens ansiarem por vcios ou virtudes desproporcionais s suas foras humanas. por causa da Ignorncia que Tibrio, em Capri, infligiu-se a si prprio prazeres sensuais mais horrveis do que torturas, e sentiu-se morrer mil vezes ao dia, desgostoso do poder que tinha e da agonia dos seus divertimentos.

Os Ignorantes envenenaram Scrates, crucificaram Jesus Cristo, torturaram os mrtires, queimaram os hereges, massacraram padres, derrubaram e reergueram reiteradamente dolos monstruosos, pregaram por vezes a tirania, por vezes a licenciosidade, negaram por vezes a autoridade, por vezes a liberdade e ignoraram na sua totalidade a Razo, a Verdade e a Justia.

por obra da Ignorncia que o homem se orgulha quando julga receber grandes honrarias ao tornar-se ridculo e desprezvel perante os demais.

por obra da Ignorncia que um homem se torna avarento, pois coloca-se na posio de escravo daquilo que foi feito para servi-lo. por obra da Ignorncia que um homem se torna debochado, pois abusa mortalmente daquilo que deveria servir para propagar a Vida.

Atravs da Ignorncia os homens odeiam-se mutuamente ao invs de se amarem, isolam-se ao invs de se ajudarem uns aos outros, separam-se ao invs de associarem-se, corrompem-se ao invs de se sublimarem, destroem-se ao invs de se preservarem e amolecem no egosmo ao invs de se fortalecerem na caridade universal.

O homem procura naturalmente aquilo que acredita ser bom, e, se quase sempre se engana, tola e cruelmente, porque no sabe. Os dspotas do velho mundo no sabiam que o abuso do Poder envolve a perda do Poder e que, ao cavar a terra para esconder as suas vtimas, estavam cavando as prprias sepulturas. Os Revolucionrios de todos os tempos no sabiam que a anarquia, sendo um conflito de Paixes e o reinado fatal da Violncia, substitui o direito pela fora e aplaina o caminho para o domnio dos maiores criminosos.

Os Inquisidores no sabiam que em nome da Igreja estavam queimando Jesus Cristo, que em nome do Santo Ofcio estavam queimando o Evangelho, e que as cinzas dos seus autos-de-f iriam assinalar indelevelmente a sua testa com a marca de Caim.

Voltaire, ao pregar Deus e Liberdade, no sabia que na mente tacanha do vulgo a Liberdade destri Deus; no sabia que nas bases dos smbolos oculta-se uma luz sublime; que a Bblia uma Babel em cujo topo descansa a Arca da Aliana; e jamais imaginou estar a preparar terreno para as mpias farsas de Chaumette e para os paradoxos de Proudhon.

Rousseau no sabia que entre os herdeiros do seu gnio altaneiro e desassossegado surgiriam um dia Robespierre e Marat.

Pascal mal conhecia a Matemtica pois acreditava nos Jansenistas. Quando a exactido das propores e o equilbrio evidente por toda a parte no Universo lhe estavam a demonstrar a maior justeza possvel, como poderia o inconsequente gemetra admitir sequer a injustia de Deus?

Se os Monges da Idade Mdia tivessem conhecimentos de Fisiologia e Medicina, saberiam que a solido enlouquece os homens, que as viglias inflamam o sangue, que os jejuns privam de sangue o crebro e que o celibato compulsrio provoca delrios anormais.

Se Bossuet e Newton tivessem conhecido a Cabala, no teriam explicado o Apocalipse sem entend-lo

Se Napoleo III conhecesse matemtica no teria atacado a Prssia.

Homem algum se ilude propositadamente a si mesmo, e todo aquele que foge Verdade no sabe o que a Verdade.

Cada qual cede quilo que mais fortemente o atrai, e a predominncia da atraco depende do conhecimento. Viver sofrer; saber viver ser feliz. Amar obedecer; saber amar dominar. Falar fazer rudos; saber falar fazer melodias. Procurar atormentar-se; saber procurar encontrar.

Usar muitas vezes abusar; saber usar desfrutar. Praticar a magia ser charlato; conhecer a magia ser sbio. Crer sem saber ser tolo; saber sem crer ser louco; o verdadeiro conhecimento traz em si a f. O homem que sabe j no tem porque duvidar; quando o Esprito j no dvida, a vontade deixa de hesitar e o homem consegue o que quer.

A esta pergunta: "Por que Deus nos criou?" o Catolicismo responde: "Para am-lo, conhec-lo e servi-lo, conquistando destarte o direito Vida eterna".

Repitamos a mesma coisa com palavras mais simples. Estamos no mundo para amar; quando amamos, amamos a Deus, porque Deus s se manifesta na Natureza e no homem. Estamos no mundo para aprender, vale dizer, conhecer; aprender todas as coisas conhecer a Deus cada vez mais. A verdadeira Teologia a Cincia Universal.

Ns estamos no mundo para servir a Humanidade, o que vem a ser servir a Deus, dedicando a ela a nossa livre actividade. Por essa forma marchamos para o Progresso Eterno.

Ningum conquista a Vida Eterna em razo dos seus mritos; ela impe-se-nos e, mesmo que no saibamos desfrut-la, somos obrigados a aceit-la.

A Sabedoria a primeira fora do Universo inteligente. Deus dono da sabedoria infinita. Aquele que sabe o mestre natural daquele que no sabe. preciso saber, a fim de ser. Aquele que no sabe ser rico no rico; aquele que no sabe ser bom no bom. O Conhecimento proporcional ao ser e, na filosofia, segundo assinalou Kant, ser idntico a conhecer.

Apenas o Conhecimento confere o direito propriedade. Ns interditamos aqueles que no sabem usar a sua riqueza. O abuso decorre de ignorncia, mais ou menos voluntria, de como usar. Aquele que sabe adquirir e conservar tem o direito de usar; ningum tem o direito de abusar.

Como garantia dos direitos do indivduo a propriedade sagrada, pois a expresso do direito de trabalhar e constitui o poder de dar e emprestar que a dignidade do homem; mas ela limitada pelo dever social, cada um devendo-se, e todos a cada um, nos graus preconizados pela Ordem, pela Justia e pela Lei.

Ignor-lo propender a aceitar como Verdade o paradoxo de Proudhon, "La proprit c'est l vol" (a propriedade um roubo). A Ignorncia a me de todas as Revolues, porque a causa de toda a injustia.

Quando um homem sabe, ele mestre de todos aqueles que no sabem.

O estudo a escada do mrito e do poder. O primeiro de entre os estudos mais importantes e necessrios o estudo de si mesmo; vem, a seguir, o estudo das cincias exactas, depois o da Natureza, depois o da Histria. a partir desses estudos preparatrios que se colhem os elementos da Filosofia, os quais sero aperfeioados pela Cincia das Religies.

Um Mago no pode ser ignorante; magia significa maioridade, e maioridade significa emancipao pelo conhecimento.

A palavra latina magister, que significa mestre, deriva-se, bem como a palavra magistrado, das palavras Magia e Mago.

Mago significa mais, maior numa palavra, magia implica superioridade.

por essa razo que a lenda Crist da Epifania confunde os Magos com reis e os leva at a manjedoura do Redentor dos homens, guiados pela misteriosa estrela de Salomo. Jesus no seu bero saudado como Prncipe dos Magos e lhe oferecem incenso de Sab, ouro de Ofir e mirra de Mnfis. Porque ele vem para consagrar novamente o fogo de Zoroastro, renovar os simblicos tesouros do Ira e restaurar as formas mutiladas de Osris com as bandagens de Hermes.

Os Magos, guiados pela estrela do Sabasmo, vieram render tributo infncia da iniciao Crist, depois, a fim de ludibriar a violncia de Herodes, voltaram sua terra por outro caminho. Que caminho esse? o caminho do ocultismo. As foras deste mundo ignoram-no, mas ele conhecido pelos iniciados Joanitas, Adonirantitas, Iluminados e Rosacrucianos.

preciso saber para querermos com razo. Quando queremos com razo, temos o direito e o dever de ousar, mas quando no estamos a salvo de ataques despropositados e perversos, preciso que faamos silncio sobre aquilo que ousamos.

Podemos, mas no devemos, afirmar sempre que sabemos; devemos ser livres e confessar que cremos, mas o Cristo assim no aconselhou ao dizer: "No atireis prolas aos porcos".

A cincia oculta tem, portanto, uma razo para ser secreta, e tal razo foi declarada, e por assim dizer sancionada, por uma autoridade a um s tempo humana e divina.

O prprio Jesus ter seguido o seu preceito? As prolas da sua doutrina no foram calcadas sob os ps dos brutos obscenos que o devoraram e continuam a devorar? No responderemos a essa pergunta, mas com risco do nosso repouso, da nossa reputao, e, se necessrio, da nossa prpria vida, temos lutado, continuamos lutando e lutaremos at o fim para fugir aos porcos com auxlio das prolas do Santo Evangelho.

As cincias Ocultas no representam mais as cincias autorizadas do que a religio dos iniciados representa a do crente comum.

Elas talvez avancem sempre, adivinhando aquilo que no est ainda definido. Elas no desafiam o antema, mas seguem o seu caminho sem tomar conhecimento dele, pois antema algum pode alcan-las.

certo que existem na natureza e no homem foras que at aqui escapam ao domnio das mais sapientes autoridades. O Magnetismo continua sendo um problema que os acadmicos no investigam. A Cabala no conhecida dos Rabinos do segundo Talmude; a prpria meno do nome magia provoca um sorriso no resto dos nossos professores de Fsica e tem-se como certo que a mente de algum que hoje em dia se ocupa da Filosofia Hermtica portadora de alguma anomalia.

Trismegisto, Orfeu, Pitgoras, Apolnio, Porfrio, Paracelso, Tritmio, Pompovnio, Vanemi, Giordano Bruno e tantos outros teriam sido todos loucos?

O Conde Joseph de Maistre, esse altivo Ultramontano, no pensa assim; ele que reconheceu a necessidade de uma nova manifestao voltou os olhos, embora contra a vontade, na direco dos santurios do Ocultismo.

Todas as Religies e todas as Cincias ligam-se com uma nica cincia, sempre fora do alcance dos mortais comuns, e transmitida atravs dos tempos, de iniciado para iniciado, sob o vu da fbula e do smbolo. Tal cincia preserva para um mundo ainda por surgir os segredos de um mundo pretrito. Os Ginosofistas estudavam-na s margens do Ganges; Zoroastro e Hermes preservaram-na no Oriente; Moiss transmitiu-a aos hebreus; Orfeu revelou Grcia os seus mistrios; Pitgoras e Plato adivinharam-na quase. Trata-se da chamada Cincia Pontifical ou Real, porque os seus iniciados eram elevados s alturas dos Pontfices e dos Reis; na Bblia est ela descrita pelo misterioso personagem Melquisedeque, o pacfico rei e doce sacerdote que no tinha pai nem me nem genealogia. Existia por si mesmo como a Verdade. Disseram os iniciados Cristos que Cristo era o mesmo personagem que esse Melquisedeque e o prprio Jesus parece haver adoptado a alegoria ao dizer que j exista antes de Abrao, que o saudara, rejubilando-se sua luz. Essa cincia dos Pontfices e Reis era nesse sentido chamada de Reino Sagrado, Reino dos Cus, Reino de Deus. Nem todos podem alcan-lo; ele acessvel apenas s elites da inteligncia e nesse sentido que, segundo o Evangelho, apenas uns poucos so os escolhidos. Essa cincia esconde-se por ser perseguida. Zoroastro foi queimado, Osris retalhado, Orfeu despedaado pelas Bacantes, Pitgoras assassinado,

Scrates (o mestre de Plato) envenenado, os grandes profetas mortos de diversas maneiras, Jesus crucificado, seus apstolos martirizados; mas a doutrina no morre jamais e, embora desaparea, tem sempre de voltar. nesse sentido que a Lenda, mais verdadeira do que a Histria quando sabemos interpret-la, conta-nos que Elias e Enoque esto vivendo no Cu e voltaro Terra. nesse sentido que Jesus ressurgiu dos mortos e que S. Joo no devia morrer. Estas maneiras de dizer so a essncia do Ocultismo. Elas mostram e ao mesmo tempo escondem a Verdade. Aquilo que o iniciado diz verdadeiro, mas aquilo que o profano compreende uma falsidade criada para ele. A Verdade como a Liberdade e a Virtude; ela no se oferece e tem de ser procurada e conquistada.

Diz-se que por ocasio da morte do Cristo o pano do Templo se rasgou. Significa isso que a cincia oculta j l no estava; continuava viva, mas aos ps da cruz do Mestre que morrera. Um apstolo, aquele que se destinava a permanecer Jovem para sempre, tornou-se o segundo filho de Maria e meditou um livro do qual o seu Evangelho no seno um reflexo e o qual estava fadado a no ser nunca compreendido pela Igreja ortodoxa dos no-iniciados. O Apocalipse de S. Joo um novo vu, mais espesso que o de Moiss, porm rico de filigranas, grandioso, esplndido, desfraldado, para desespero dos usurpadores do Sacerdcio e da Realeza, diante do santurio da Verdade Eterna.

O Apocalipse um livro inteiramente ininteligvel para os no-iniciados por ser um livro da Cabala.

J explicmos noutras obras o que a Cabala e indicamos aos leitores inteligentes a chave dos segredos contidos naquele livro sublime.

O autor do Apocalipse no escreve para os crentes comuns, mas para aqueles que sabem, e amide repete: "Eis a cincia; aquele que tem conhecimento calcule e encontre o nmero". A sua filosofia a da Palavra, vale dizer, da Razo que fala.

Jesus, como todos os grandes Hierofantes, tinha uma doutrina pblica e uma secreta. A sua doutrina pblica apenas na moralidade diferia do Judasmo. Ele pregava a todos a filantropia universal e defendia a Lei de Moiss, ao passo que combatia a influncia brutalizante de um sacerdcio hipcrita e piegas. Mas a sua doutrina secreta ele a revelou apenas ao seu amado apstolo que iria reviv-la aps a sua morte. Tal doutrina no era nova. Um grande judeu, um iniciado, Ezequiel, tinha-a desenvolvido perante S. Joo. Deus na Humanidade e na Natureza, a Igreja Universal dos justos, a emancipao progressiva da humanidade, a adopo da Mulher a ser amada como Virgem, adorada como Me, a destruio do despotismo dos Padres e Reis, o reinado da Verdade e da Justia, a unio da Cincia e da F, o aniquilamento final dos trs odiosos fantasmas: Demnio, Morte e Inferno, os quais S. Joo atira para sempre num lago de fogo e pez, o estabelecimento definitivo na terra de uma Nova Jerusalm, cidade que dispensa os templos por ser ela prpria um templo, onde no se vem padres nem reis porque todos os habitantes so Padres e Reis, cidade ideal porm exequvel onde Liberdade, Igualdade e Fraternidade podem reinar, cidade dos eleitos, dos justos, onde a vil multido jamais por os ps, arqutipo da civilizao humana. Terra a todos prometida mas acessvel apenas aos eleitos, no por privilgio mas pelo trabalho, no pelo capricho de um dolo mas pela justia de Deus.

Esse o ideal da sabedoria.

Paradoxo V

A RAZO DEUS

Isto deve ser posto primeiro. Antecede a tudo: auto-existente, existe at mesmo para aqueles que o no conhecem, como o Sol para o Cego, mas v-lo, senti-lo, compreend-lo, esse o triunfo da compreenso no homem; o resultado definido de toda a obra do pensamento e de todas as aspiraes da F.

No princpio est a Razo, a Razo est em Deus, e Deus a Razo. Tudo feito pela Razo e sem ela nada feito. Ela a verdadeira luz que nos ilumina desde o bero: brilha at mesmo na escurido, mas a escurido no a encerra.

Estas palavras so o orculo da Razo propriamente dita e ocorrem, como todos sabem, no comeo do Evangelho de S. Joo.

Sem a Razo nada existe; tudo tem a sua razo de existir; at mesmo a irracionalidade, que est para a razo assim como a sombra est para a luz.

O crente razovel aquele que acredita numa razo maior do que o conhecimento; pois a razo, ou para sermos mais correctos, o raciocnio de cada um, no sabedoria absoluta.

Quando raciocino mal, deixo de ter razo; no , portanto, a razo que devemos pr em dvida, mas a nossa prpria capacidade de julgamento.

Devo de bom grado recorrer queles que sabem mais do que eu, mas mesmo ento preciso que me assista razo para crer na sua superioridade.

Conjecturar ao acaso aquilo que no sabemos e depois acreditar cegamente nas nossas conjecturas, ou nas de outras pessoas que sabem mais do que ns, agir como loucos. Quando nos dizem que Deus exige o sacrifcio da nossa razo, isso equivale a transformar Deus no dolo desptico e ideal da loucura. A Razo traz convico, mas a crena apressada produz apenas enfatuamento.

deveras razovel acreditar em coisas que no se vem, tocam ou medem, pois o infinito manifestamente existe, e ns podemos dizer no apenas que acreditamos, mas tambm que sabemos existirem muitas coisas alm do nosso alcance.

Sendo o conhecimento progressivo, -me lcito acreditar que um dia saberei aquilo que hoje ignoro. No tenho quaisquer dvidas com relao quilo que conheo cabalmente; talvez duvide daquilo que sei de forma apenas imperfeita, mas no posso em absoluto ter dvidas com relao a alguma coisa de que nada sei, j que me impossvel formular tais dvidas.

Aquele que diz no haver Deus, sem ter definido Deus de uma forma completa e absoluta, est simplesmente sendo tolo. Aguardo a sua definio e, depois que ele a tiver formulado sua maneira, estou de antemo seguro, poderei dizer-lhe: Concordo, esse Deus no existe. Mas com certeza no ser o meu Deus. Se a pessoa me pedir: Defina o seu Deus, eu lhe direi: Cuidarei de no faz-lo, pois Deus definido Deus preterido. Toda a definio positiva contestvel, o Infinito indefinvel. "Acredito to-somente na matria", dir outro; mas o que matria? Em cirurgia reserva-se esse nome para as excrees e pode-se dizer, um tanto paradoxalmente, que em filosofia matria a excreo do pensamento. Os materialistas bem merecem essa definio algo grosseira e carnavalesca, eles que declaram o pensamento uma excreo do crebro material, sem se dar conta de que esse admirvel e passivo instrumento do funcionamento da alma humana a obra-prima de um pensamento que no o nosso.

Se me fosse possvel definir Deus de uma forma certa e positiva, eu deixaria de acreditar em Deus; saberia o que ele ; mas no sendo capaz de sab-lo, acredito simplesmente na sua existncia, porque no me possvel conceber a ausncia de um pensamento director nesta substncia eternamente viva que povoa o espao infinito

Se os crentes nas Religies exclusivas me disserem que Deus se revelou e falou, eu lhes responderei que no creio nisso, mas sei ser assim. Sei que Deus se revela ao corao humano nas belezas da Natureza; sei que ele falou nas vozes de todos os sbios e nos coraes de todos os justos. Leio as suas palavras nos hinos de Cleantes e Orfeu, bem como nos Salmos de David; admiro as pginas grandiosas dos Vedas e do Coro e acho a lenda de Krishna to comovente como um evangelho, mas revolto-me contra Jpiter torturando Prometeu e servindo de pretexto morte de Scrates. Tremo ao ouvir o Cristo, em seus derradeiros suspiros, censurar Jeov por hav-lo abandonado e escondo o rosto com as mos quando Alexandre VI se pretende representante de Jesus Cristo. Os carrascos e algozes da conscincia humana so to odiosos para mim sob o reinado de Pio VI como sob o de Nero. A verdadeira religio Crist a humanidade, sobre-humana na fora de perdoar, e o sacrifcio do ego em prol dos outros.

Os Deuses aos quais se sacrificam homens so Demnios. A Razo deve banir para sempre a adorao desses Demnios; e o dolo do Diabo, que se tornou ridculo por sua causa, uma monstruosidade. Aqueles que acreditam no Diabo adoram o Diabo, pois adoram o seu criador ... e cmplice. J dissemos que o Deus do Diabo, que desaprova o Diabo e ainda assim lhe permite trabalhar para a nossa destruio, uma horrvel fico da maldade e cobardia humanas. Um Deus do Diabo visto s avessas seria um Diabo de Deus. Assim nos diz a razo, mas a superstio continuaria impondo-nos silncio e por isso numerosas pessoas, com bons motivos, deixam, conquanto lastimando-os, Deus e o Diabo aos supersticiosos, passando a no crer em mais nada.

Mas at mesmo a superstio tem a sua razo de ser nas infinidades do intelecto humano. O Clero conseguiu fazer dela uma fora, impondo-lhe a mais cega obedincia. Se retirarmos a superstio de determinadas almas, tacanhas porm ardentes, ns as transformaremos em impiedosos fanticos. preciso mesmo restringir os tolos sua tolice, uma vez que eles no tm vontade de ser sbios.

Ensinamos moral s crianas contando-lhes fbulas e as babs cuidam de no esclarec-las quando elas esto com medo do Bicho-Papo. verdade que algumas mes mais realistas ameaam os seus filhos com o lobo ou o soldado, mas nem o lobo nem o soldado podem estar em toda parte, e a criana, convencida da sua ausncia, ir rir da ameaa, ao passo que o Bicho-Papo, jamais visto em parte alguma, supe-se, tal qual o Demnio, estar em toda parte, e a criana levada a acreditar nele, por tratar-se de uma fico, uma iluso potica, uma fbula - em suma, alguma coisa que toma conta da imaginao; e a imaginao, poderosa nos homens, mxima nas crianas.

O Bicho-Papo o Demnio das crianas, da mesma forma pela qual o Demnio da Idade Mdia era o Bicho-Papo dos homens.

Para alm disso no existe fico que no funcione como disfarce ou mscara para uma realidade. O Bicho-Papo existe e logo a criana ir conhec-lo na pessoa de algum pedante de voz spera e bengala manejada com certa elegncia.

Depois lhe falaro de Deus e do Diabo em termos que facilmente levaro a confundir um e o outro. Poder ela ainda dar-se por satisfeita com o desfecho do drama de Joo-Bobo? Joo-Bobo f-la rir, o Diabo queria faz-la chorar; no seria de desejar que no fim Joo-Bobo, to amiudadamente levado pelo Diabo, no se encarregasse ele prprio de levar consigo o Diabo? Isso seria uma questo de temperamento e audcia.

Os antigos hierofantes afirmavam que o maior dos crimes seria receber as multides para iniciao, pois seria o mesmo que soltar os lobos, abrir o cercado dos tmidos gamos, e mergulhar todos os homens numa batalha cruenta sob o pretexto da igualdade.

Jesus Cristo recomendou aos seus discpulos no atirar prolas aos porcos. Os Pedreiros-Livres ainda hoje em dia juram preservar morte segredos cuja posse j no desfrutam. A igualdade entre os homens s pode existir por meio de graus Hierrquicos; no pode jamais ser absoluta porque a Natureza assim no quer. Tem de haver grandes e pequenos, de modo que os homens possam ajudar-se e necessitar-se mutuamente.

Nada mais difcil para os homens comuns do que viver segundo a razo e fazer o bem pelo bem. O seu motivo quase sempre o desejo ou o medo, e a esperana ou temor que os conduz sempre. Alm disso, preciso que eles sejam contidos para no resvalar para a inrcia e para a desordem. Eles marcham melhor quando formados em regimento; o monge e o soldado do-se bem quando submetidos a uma frrea disciplina; atravs da austeridade e do silncio que a inconstncia da mulher desaparece. Talvez um homem viva corajosamente como Trapista, quando a sua tendncia seria a de tornar-se um assaltante, no fosse o seu anseio do Paraso e o seu medo do Inferno. Ser ele um homem melhor por isso? Talvez no, mas, sem dvida alguma, menos perigoso para a Sociedade.

muito bom dizer a verdade aos homens, mas eles no a compreendem a menos que j a tenham procurado por si prprios e chegado quase a descobri-la. O mundo de Tibrio queria expiaes e austeridades. A era dos Platnicos e Esticos, de Sneca e Epteto, estava condenada a adoptar a Moral Crist. Virglio parece cantar junto da manjedoura do Homem-Deus e os livros Profticos prometiam Cristo Terra!

Lutero no foi movido pelo seu prprio antagonismo a Roma; foi despertado e impelido por uma corrente que tomava conta de toda a Europa. Voltaire no fez o sculo XVIII, foi o sculo XVIII que fez Voltaire. O reinado de Madame de Maintenon e os escndalos do Jansenismo haviam enojado e cansado a Frana em grau mximo; as funreas oraes de Bossuet pareciam haver enterrado a Monarquia Crist e seguiram-se Cardeais como Bernel e Dubois. Voltaire ria-se de tudo e fazia rir as pessoas. Rousseau, no entanto, via ali algum mrito, e as pessoas a um s tempo admiravam-no e perseguiam, porque no seu ntimo o mundo era como o pensador o julgava. Os Revolucionrios proscreveram Rousseau e o bom senso do pas colocou-se ao lado de Chateaubriand, no deixando, contudo, de aplaudir a malcia Voltairiana de Beranger: o progresso que coloca em destaque os grandes homens, e o mundo erradamente atribui-lhes o movimento que os trouxe baila.

A Revoluo Francesa mostrou ao mundo um espectculo estranho e ridculo, ao inaugurar a adorao da Razo, personificada por um danarino de pera. Poder-se-ia imaginar que a nao estava escarnecendo de si prpria e desejava patentear para as demais naes que a razo dos franceses quase sempre a loucura.

Foi ento que Robespierre, para derrubar essa Razo indecente, inventou o seu Ser Supremo, mas a opinio pblica no ratificou a modificao; Deus foi lembrado e viu-se que a Revoluo estava a dar uma guinada. Bonaparte, que veio a seguir, compreendeu que a Religio no estava morta, mas Religio para ele s poderia ser a Catlica, por outras palavras, autoritria; ele reabriu as Igrejas e tentou deitar a mo ao papa, mas o papa, juntamente com o mundo, esquivou-se.

A Razo da Religio superior razo da Poltica porque apenas na Religio que o direito prevalece sobre a fora. Pois o direito de ser inviolvel tem de ser proclamado como Divino. Direito e Dever situam-se acima do homem; Deus salvaguarda o primeiro impondo ao homem o outro; Deus a Suprema Razo.

Um corpo no pode viver sem cabea e a cabea do corpo social Deus. Um corpo muda mas no morre, se a sua cabea for imortal. Deus a Verdade e a Justia que nunca mudam; por essa razo deve o Estado ceder ante as razes religiosas. A Igreja o prottipo da Ptria; a Ptria Universal, e a unidade do mundo Cristo algo mais grandioso do que a unidade nacional da Alemanha ou da Itlia.

A fora moral superior fora fsica e o poder espiritual pode mais que o temporal. Se S. Pedro no houvesse desembainhado a espada, Jesus jamais lhe teria dito: "Quando fores velho estenders as mos e algum te arrastar consigo, quer queiras quer no". O Rei da Itlia tomou Roma do Santo Padre, porque S. Pedro tomou pela fora a orelha de Malco. Malco ou homem significa em hebreu o rei. Seja como for, a capital do mundo Cristo no deveria pertencer com exclusividade Itlia. O supremo representante da Divina Humanidade deveria ser um padre que abenoa e um rei que perdoa. o que nos diz a razo e, se o papa acredita que um pai de famlia deve ser infalvel para os seus filhos, que o cabea da religio no deve ter relaes com o que irreligioso; que a liberdade de conscincia no deve ser permitida; se ele se acredita a si mesmo na obrigao de pr a sociedade de pernas para o ar; se protesta, em suma, contra tudo aquilo que lhe parece contrrio ao dogma, ento, pondo-se de parte o aspecto justeza da questo, o papa est cem por cento certo!

Depois das paixes, o maior inimigo da razo humana so os preconceitos. Ns no examinamos como so as coisas; simplesmente desejamos que elas sejam desta ou daquela forma. Ns recusamo-nos a mudar de opinio porque isso humilha o nosso orgulho, como se o homem nascesse infalvel e no precisasse de instruir-se e aperfeioar-se dia a dia. "Quando eu era criana", disse S. Paulo, "falava como criana, entendia como criana, pensava como criana; mas quando me tornei homem, deixei de lado as coisas infantis". Proclama aqui o apstolo a lei do progresso, chegando mesmo a aplic-la Igreja, mas isto os telogos negam-se obstinadamente a reconhecer.

Devemos desconfiar tanto dos preconceitos devotos quanto dos mpios.

A verdadeira piedade essencialmente independente, mas submete-se razoavelmente s leis e aos costumes, quando no tem esperana - e at mesmo quando tem apenas uma leve esperana - de modific-los.

Jesus no queria que se apanhasse o joio nos trigais, em virtude do risco de arrancar ao mesmo tempo o trigo so; queria que se esperasse a colheita para depois separar o gro da praga. Estamos numa poca de concluses e snteses, na qual a crtica deve estabelecer uma distino entre o verdadeiro e o falso. No estamos a viver uma dessas pocas em que se deve acarinhar preconceitos. No obstante, no devemos ser duros com as pessoas que os alimentem. Mostremos, com brandura e pacincia, a verdade, e as falsidades cairo por si.

Os preconceitos so vcios da mente; decorrem eles da educao, da ignorncia ou da indolncia espiritual, dos interesses da posio, reputao ou fortuna. Estamos sempre prontos a acreditar na veracidade daquilo que nos agrada; os mais nobres sentimentos, at mesmo quando exagerados, tornam-se fontes de preconceitos; o amor da famlia gera o orgulho e a intolerncia da casta; o amor da ptria d lugar arrogncia nacionalista; as pessoas pensam em si mesmas como francesas ou inglesas ao invs de seres humanos; os entusiasmos religiosos conduzem apenas a outros numerosos excessos. As diferente pocas desprezam-se, condenam e execram entre si; os Cristos so ces para os Muulmanos, os Judeus so criaturas obscenas para os Cristos, os Protestantes so Hereges, os Catlicos so Papistas . . . Onde esto os homens razoveis?

A Razo como a Verdade; nua, ela choca-nos.

Ter muita razo no ter razo. A Razo deve persuadir e no impor-se. Pouco poder tem ela sobre as crianas e pouco atractivo para as mulheres.

A Razo uma fora, mas a fora oculta; tem de governar sem se mostrar.

preciso uma mente poderosa e firme para o cultivo, sem riscos, das cincias ocultas, e, acima de tudo, para realizar as experincias que confirmam as suas teorias; o magnetismo, a adivinhao e o espiritualismo continuam a povoar os hospcios, e a Filosofia Hermtica poder acrescentar ainda novas vtimas. Os indivduos mais proficientes nessas cincias tiveram os seus momentos de aberrao. Apolnio de Tiana fez lapidar um mendigo a fim de conter uma epidemia. Paracelso acreditava ter um esprito afim oculto no punho da sua espada. Cardan matou-se de fome para justificar a Astrologia. Duchentau, que reconstruiu e completou o calendrio mgico de Ticho-Brahe, tambm teve morte horrvel ao tentar uma experincia extravagante. Cagliostro comprometeu-se seriamente no caso do colar da Rainha e foi morrer nos calabouos de Roma. O interior da arca no pode ser devassado impunemente e todos quantos se atrevem a faz-lo correm o risco de ser fulminados por um raio.

No estou a falar no medo, na inveja, no dio do vulgo que por toda parte perseguem o Iniciado incapaz de esconder os seus conhecimentos. Os verdadeiros sbios furtam-se a esse perigo. O Abade Tritmio viveu e morreu em paz, ao passo que Agripa, seu imprudente discpulo, terminou prematuramente num hospital uma vida de desassossego e tortura. Agripa antes de morrer blasfemou contra a Cincia, assim como Brutus entre os Filipos havia blasfemado contra a Virtude, mas a despeito do desespero de Brutus, Virtude mais do que um nome vazio, e, a despeito do pessimismo de Agripa, a Cincia uma Verdade.

Hoje em dia as cincias ocultas so pouco estudadas, salvo por presunosos ignorantes ou excntricos sbios; as mulheres fornecem a devida base, nas suas crises histricas e no seu discutvel sonambulismo. As pessoas querem, acima de tudo, prodgios; atirar os dados da Sorte, embaralhar as cartas do Destino, ter filtros e amuletos, enfeitiar os inimigos, adormecer maridos ciumentos, descobrir a panaceia universal de todos os vcios, no reform-los, mas livr-los das duas grandes molstias que os matam - decepo e lassido - fomenta tais coisas, e o caminho da loucura logo se abre para as pessoas. Se o imprudente Aquiles de Homero fosse totalmente invulnervel, ele no teria passado de um cobarde assassino, e o homem que no jogo ganhasse sempre arruinaria todos os outros e mereceria a pecha de trapaceiro. Aquele que por um simples acto de vontade fosse capaz de fazer adoecer ou morrer os outros seria uma calamidade pblica da qual a Sociedade deveria livrar-se; conquistar o amor, a no ser por meios naturais, praticar uma espcie de violao; invocar sombras chamar sobre si as Sombras Eternas. Para lidar com demnios preciso ser um demnio.

O Diabo o esprito do Mal, a corrente fatal das vontades pervertidas e malignas. Entrar nessa corrente mergulhar no abismo. Alm disso, o Esprito Mal s responde a uma curiosidade temerria e insalubre. As vises so fenmenos da dipsomania e do delrio. Ver espritos? Mera quimera! seria o mesmo que tocar na msica e engarrafar os pensamentos. Se os espritos dos mortos se afastaram do nosso meio porque j no podiam aqui permanecer. Como pensar que eles podem voltar?

Dir-se- ento: "Mas qual a utilidade da magia?" Ela capacita os homens a melhor compreender a Verdade e a desejar Deus de uma forma mais saudvel e efectiva. Ela ajuda a curar as almas e a consolar os corpos. Ela no confere o poder de praticar impunemente o mal, mas eleva o homem acima dos apetites animais. Ela torna o homem inacessvel s agonias do desejo e do medo. Ela constitui um centro de irradiao divina, espantando os fantasmas e a escurido, pois sabe, deseja, pode e assegura a paz. Essa a verdadeira magia, no a magia dos Necromantes e Ilusionistas, mas a dos iniciados e dos Magos.

A verdadeira magia uma fora cientfica colocada a servio da Razo. A falsa magia uma fora cega somada aos desatinos e s desordens da Loucura.

Paradoxo VI

A IMAGINAO CONCRETIZA AQUILO QUE INVENTA

Olhai! A grande maga do universo!

ela que faz a memria frutificar, que concebe de antemo o Possvel e at inventa o Impossvel. Para ela os milagres nada custam. Ela transporta pelos ares casas e montanhas, pe baleias no cu e estrelas no mar, oferece o paraso aos tomadores de pio e hachiche, enseja reinos aos bbedos e faz Perette danar de alegria debaixo de um balde de leite. Assim a Imaginao.

Imaginao que devemos a poesia e os sonhos; ela que adorna as fbulas e smbolos nos vus dos Grandes Mistrios. Ela inventa as histrias infantis e as lendas camponesas. Ela faz Deuses trovejantes e anjos exterminadores surgirem sobre as colinas, bem como produz Alvas Donzelas e Virgens junto das fontes. Ela faz predies que so amoldadas aos factos ou reinterpretadas quando no se realizam. Ela nutriz da Esperana e cmplice do Desespero. Ela doura a aurola dos Santos e bronzeia os cornos do Demnio. Ela cura e mata, salva a alguns e condena a outros; casta como a Virgem e impura como Messalina. Ela cria entusiasmo e dilata, at quase o impossvel, o imprio da Vontade. Ela cria uma crena na felicidade e d felicidade, na medida em que o sonho dura.

A imaginao o cristalino da mente. Ela refracte os raios dos nossos pensamentos e amplia as imagens das nossas percepes. O mbito da nossa viso to pequeno que para ver direito neste acanhado mundo preciso que vejamos as coisas maiores do que na natureza.

As pessoas destitudas de imaginao jamais chegam a realizar alguma coisa grandiosa, pois tudo se lhes mostra em propores mesquinhas.

O astrnomo contempla o universo e imagina o Infinito; o crente contempla a Natureza e imagina Deus. Na verdade, a Imaginao maior que o Pensamento. A Cincia est inundada de F e sem F a Cincia seria incerta.

O que a lgebra seno a Imaginao da Matemtica pura, e o que a Cabala seno a lgebra das Ideias? A Imaginao dos Cabalistas transformou a Filosofia numa Cincia exacta, ligando ideias e nmeros; a Cincia das Analogias inteiramente uma Cincia da Imaginao e as grandes naes no so seno conglomerados de frios entusiastas que imaginam a glria com empenho.

As imaginaes colectivas conseguem os resultados do microscpio solar. Os heris, de modo especial, tornam-se maiores depois da morte e as fices das opinies colocam em soberbos pedestais os vultos mais destacados da histria. Quem jamais saber ao certo a exacta grandeza de Alexandre Magno ou de Napoleo I? Marat e Napoleo eram dois homens pequenos, enrgicos e sedentos de fama; o primeiro desejava libertar o mundo que o segundo se propunha escravizar; o primeiro desejava um riacho de sangue, o segundo fez correr rios de sangue e a seguir legou-nos duas invases, o reinado de seu sobrinho e espantosas catstrofes; o primeiro execrado, o segundo adorado; para o primeiro a forca, para o outro o arco do triunfo; ambos so exageros um da infmia, outro da glria.

Isto porque Marat, mais desinteressado e de ntimo mais sincero que Napoleo I, foi um vociferante Tribuno, enquanto Napoleo foi um homem de gnio, vale dizer, um dspota da imaginao humana. Isto porque a poesia das naes prefere os crimes esplndidos s virtudes tacanhas, porque a mscara de Marat um rito que provocaria riso se no causasse horror, ao passo que a medalha de Napoleo uma majestade que se impe adorao da posteridade. Tratam-se de razes concludentes.

Se a imaginao encontra um ponto de apoio real, esse a alavanca de Arquimedes; sem uma base real, ela no passa de um bordo no qual apenas os tolos confiam.

Baseando-se em hipteses razoveis e cientficas, Cristvo Colombo imaginou a Amrica, ousou fazer-se ao mar para descobri-la e encontrou-a. Quando se sabe e quando se quer, deve-se ter a coragem de ousar.

A Imaginao a Fora Criadora. Deus a Imaginao da Natureza.

A Imaginao tem os seus sonhos e os seus pesadelos, o que no impede que a sua epopeia seja gloriosa. Os arquitectos da Idade Mdia delinearam o seu perfil em magnficas catedrais, onde as grgulas, os consolos entalhados e a ornamentao florida concorrem para pr em relevo as linhas puras das ogivas e a placidez dos Santos. Aqueles grandes artistas haviam adivinhado o enigma do bem e do mal; eles compreendiam a luz e as sombras.

a imaginao que opera milagres; atravs de um acto da sua imaginao um punhado de crianas do campo faz com que igrejas sejam erguidas do cho e abalem populaes inteiras; atente-se para as peregrinaes a Lourdes e La Salette. Atravs da imaginao Josu deteve o Sol e fez ruir as muralhas de Jeric ao som das suas trompas; atravs da imaginao o po torna-se Deus e o vinho do clice transforma-se em sangue imortal, e ns no cuidamos de dizer, como bem se pode imaginar, que no assim; mas assim , pois assim imaginamos, em obedincia palavra e F de Cristo.

A imaginao cura os doentes e faz a fortuna de muitos mdicos de renome; cria a homeopatia da qual tantos crentes obtm benefcios; faz mesas falarem e dita aos mdiuns, de cambulhada, pginas e mais pginas de matria erudita juntamente com a mais crassa ignorncia, oraes e pragas. A imaginao coloca chifres em Moiss e nos maridos trados, fazendo o primeiro parecer o Demnio e os ltimos verdadeiros touros furiosos quando no bois pacientes e suaves. A imaginao amplia a sabedoria, exagera a loucura, exige demais da verdade, faz a falsidade parecer verdadeira; e ao mesmo tempo no h falsidade para a imaginao; tudo quanto esta afirma verdadeiro como poesia: e pode l a poesia dizer-nos mentiras? Aquilo que a imaginao inventa ela cria, e tudo aquilo que cria existe. Imaginar a verdade adivinhar, adivinhar exercer o poder Divino. Em latim chama-se ao homem que adivinha de divinus, vale dizer homem Divino, e o poeta denominado vates, vale dizer, profeta.

A F tem por objecto apenas as adivinhaes daqueles que imaginam as Verdades Eternas. Moiss imaginou Jeov e uma nuvem surgiu sobre o tabernculo. Salomo imaginou o templo universal e esse templo, sucessivamente destrudo pelos assrios e pelos romanos, permanece ainda hoje sob o nome de S. Pedro de Roma. Alexandre imaginou a unidade entre as naes, quase concretizada sob Augusto e mais tarde imaginada de novo por Pedro o Grande e Napoleo I, cujos antagonismos continuam mantendo em equilbrio o mundo.

A imaginao o eterno motivo dos amores intempestivos. Via de regra, atravs da imaginao que as mulheres impressionveis e nervosas so conquistadas. Amide, basta a um homem ser estranho ou at mesmo horrvel para ser amado. O Marqus de Sade, Mirabeau, Marat e outros foram amados; Cartouche e Mandrin o haviam sido antes. Mulheres do mundo haviam cado por Lacenaire e sabe-se que na priso Troppmann costumava receber cartas amorosas. Os D. Juans e Lovelaces devem sua m fama boa parte dos seus sucessos; aos senhoriais Barbazuis jamais faltam vtimas e particularmente quando os Lanciotos sacam dos punhais que as Francescas adoram provar o fruto proibido. Aquilo que de forma mais poderosa excita a imaginao, e consequentemente o desejo, o perigo; dai -o Deus da Bblia, desejando que a mulher se tornasse me, t-la proibido terminantemente de tocar o fruto que a faria ceder ao amor.

Na verdade, apenas quando tiveram conhecimento de que estavam condenados a morrer, o homem e a mulher cuidaram de providenciar herdeiros, A Morte ara o solo do Amor, e ali o Amor semeia o gro destinado a desabrochar na Colheita da Morte. proibido sob pena de morte entrar na Vida, pois todos ao nascer so condenados a morrer. Esse o significado do pecado original do qual s temos culpa nas pessoas dos nossos pais, recuando no tempo atravs de todos eles at chegarmos aos primeiros. O pecado do nascimento consequncia do pecado do Amor, que a Natureza finge sempre proibir humanidade a fim de incentiv-la a desej-lo.

A imaginao o Pgaso dos poetas, o Hipogrifo dos Paladinos, a guia de Ganimedes e a pomba de Anacreonte; o carro de fogo de Elias e o anjo que carrega consigo os profetas, arrastando-os pelos cabelos. o querubim munido de uma flamejante torqus cauterizando a gagueira nos trmulos lbios de Hai, o misterioso Proteu que precisa ser imprensado nos domnios da razo a fim de obrig-la a assumir forma humana e dizer a verdade.

Assim como h um calor latente que determina a polarizao molecular dos corpos, assim tambm existe uma luz latente que se manifesta em ns por meio de uma espcie de fosforescncia interna. ela que ilumina e d cor aos fantasmas das nossas vises e dos nossos sonhos e nos exibe, na ausncia absoluta de luz externa, espantosas imagens fotogrficas. por meio dessa luz que lemos na memria da natureza ou no reservatrio geral das impresses e formas os germes rudimentares do Futuro nos arquivos do Passado. O sonambulismo um estado de imerso do pensamento nessa luz invisvel para os olhos despertos, nesse banho universal, no qual esto reflectidos todos os pressentimentos e todas as recordaes e no qual as mentes e as inteligncias se interpenetram. Por essa forma pode uma pessoa adivinhar, traduzir e explicar as ideias de outra. por essa forma que o crebro de uma pessoa se torna como que um livro aberto para outra. As maravilhas do sonambulismo lcido no tm outra causa e so explicadas por uma srie de miragens e reflexes. A luz interior tem a mesma relao com a luz externa que tem a electricidade negativa com a positiva, e por isso que os fantasmas aparecem de preferncia noite e que os feiticeiros precisam da escurido para praticar os seus pretensos milagres; por essa razo que os espritos e os mdiuns no podem produzir os seus fenmenos caractersticos diante de quaisquer pessoas; precisam de um pequeno grupo de simpatizantes, predispostos influncia contagiante daquela fosforescncia interior que faz ver e sentir coisas que no so visveis nem sensveis para outros. A pessoa ento lenta e progressivamente penetrada pela vida do sonho; a moblia desloca-se, canetas escrevem sem ser tocadas, homens erguem-se do solo e pairam suspensos no ar. Ento as realidades ficam loucas e as loucuras tornam-se reais; os videntes so insensveis dor. Os possudos de St. Medard imploravam que fossem surrados com achas de madeira e barras de ferro; os sonmbulos encontram na gua pura os mais variados paladares que o hipnotizador lhes sugere. Mortos aparecem, mos sem corpos vm-nos tocar; mas basta que um homem so, ou um homem sem simpatia pelo meio, entre, e os orculos calam-se, as mos desaparecem, a moblia pra de danar, tudo volta ordem natural e os componentes do grupo ficam estremunhados como se estivessem sendo arrancados subitamente a