Os óculos de_charlita

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Os óculos de Charlita Todas as filhas do sr. Tuarles viam muito mal. Durante o dia, como havia luz do sol, não se notava tanto, mas a partir das cinco e meia da tarde todas elas recusavam jogar às «escondidas» porque tinham medo de não encontrar nenhum dos escondidos. Perto das cinco era hora do lanche. A avó Agnette – ou a tia Maria – vinha até à varanda e gritava o nome de um de nós. Alguém berrava «abuçoitos» e o jogo sofria esse intervalo de irmos beber chá aguado ou comer meia banana com pão. As filhas do sr. Tuarles não lanchavam. Ficavam no muro da casa delas à espera. Se demorássemos muito já não queriam continuar nenhum jogo. A Charlita era a única que tinha uns óculos muito grossos, muito amarelos e muito feios. Elas eram cinco – as filhas do sr. Tuarles. A Charlita além de ser a dona dos óculos era também a única que já tinha ido a Portugal com o próprio sr. Tuarles, numa deslocação que tinha dado muito que falar na Praia do Bispo. Depois do lanche o sol ia embora de repentemente. Os soviéticos abandonavam a obra do Mausoléu e nós ficávamos ali, no muro que dividia a casa da avó Agnette da casa do sr. Tuarles. Passavam também muitos trabalhadores angolanos. Depois passava o camião com uma torneira atrás a jorrar bué de água para acabar com a poeira. A Praia do Bispo era um bairro cheio de camiões: passava esse camião da água, o camião-cisterna que vinha pôr gasolina na bomba, o camião do lixo e o camião do fumo dos mosquitos. Todos esses camiões davam alegria e tinham uma música própria que nós gritávamos enquanto corríamos atrás deles. A noite chegava. A conversa no muro aquecia. Dois ou três ficavam a estigar, os outros riam só. O Paulinho contava filmes do Bruce Lee, do Trinitá e dos ninjas enquanto, num outro muro, atrás da trepadeira, o Gadinho espreitava a nossa infância de riso e atrevimento. O Gadinho era «testemunha», não podia brincar quase nada nem ir a festas. Nem mesmo receber prendas como um bolo de anos que lhe quisemos só oferecer. Se entrássemos por alguma razão na sala do sr. Tuarles, encontrávamos todo o mundo com o rabo afundado nuns cadeirões muito grandes e antigos. A

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Os óculos de Charlita

Todas as filhas do sr. Tuarles viam muito mal. Durante o dia, como havia

luz do sol, não se notava tanto, mas a partir das cinco e meia da tarde todas

elas recusavam jogar às «escondidas» porque tinham medo de não encontrar

nenhum dos escondidos.

Perto das cinco era hora do lanche. A avó Agnette – ou a tia Maria – vinha

até à varanda e gritava o nome de um de nós. Alguém berrava «abuçoitos» e o

jogo sofria esse intervalo de irmos beber chá aguado ou comer meia banana

com pão. As filhas do sr. Tuarles não lanchavam. Ficavam no muro da casa

delas à espera. Se demorássemos muito já não queriam continuar nenhum

jogo.

A Charlita era a única que tinha uns óculos muito grossos, muito amarelos

e muito feios. Elas eram cinco – as filhas do sr. Tuarles. A Charlita além de ser

a dona dos óculos era também a única que já tinha ido a Portugal com o

próprio sr. Tuarles, numa deslocação que tinha dado muito que falar na Praia

do Bispo.

Depois do lanche o sol ia embora de repentemente. Os soviéticos

abandonavam a obra do Mausoléu e nós ficávamos ali, no muro que dividia a

casa da avó Agnette da casa do sr. Tuarles. Passavam também muitos

trabalhadores angolanos. Depois passava o camião com uma torneira atrás a

jorrar bué de água para acabar com a poeira. A Praia do Bispo era um bairro

cheio de camiões: passava esse camião da água, o camião-cisterna que vinha

pôr gasolina na bomba, o camião do lixo e o camião do fumo dos mosquitos.

Todos esses camiões davam alegria e tinham uma música própria que nós

gritávamos enquanto corríamos atrás deles.

A noite chegava. A conversa no muro aquecia. Dois ou três ficavam a

estigar, os outros riam só. O Paulinho contava filmes do Bruce Lee, do Trinitá e

dos ninjas enquanto, num outro muro, atrás da trepadeira, o Gadinho

espreitava a nossa infância de riso e atrevimento. O Gadinho era

«testemunha», não podia brincar quase nada nem ir a festas. Nem mesmo

receber prendas como um bolo de anos que lhe quisemos só oferecer.

Se entrássemos por alguma razão na sala do sr. Tuarles, encontrávamos

todo o mundo com o rabo afundado nuns cadeirões muito grandes e antigos. A

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mulher do sr. Tuarles. Os filhos rapazes do sr. Tuarles e a mãe da mulher do

sr. Tuarles.

As filhas ficavam sentadas perto, muito perto da televisão. Quando digo

perto, estou a falar de dois ou três palmos entre a cara delas e o ecrã. De vez

em quando o sr. Tuarles gritava para se afastarem para os lados:

— Deem espaço, porra. Eu também quero ver.

A mulher do sr. Tuarles, a dona Isabel, não dizia nada. A mãe da mulher

do sr. Tuarles, a avó Maria, dizia alguma coisa em kimbundu e depois ria. Nós

tremíamos.

As filhas passavam os óculos entre elas. Cada uma via dois minutos e os

óculos mudavam de rosto. Era bonito de ver. Quando não tinham os óculos na

cara, tapavam o rosto quase todo e deixavam um buraquinho apenas, «para

ver melhor», diziam. Mas se a novela aquecesse numa parte assim mais

entusiasmante, o sr. Tuarles gritava «deem espaço, porra» e a Charlita, por ser

a dona, voltava a pôr os óculos na cara. E ria.

Todas as filhas do sr. Tuarles viam muito mal. Mas a Charlita – que tinha

os óculos grossos, amarelos e feios – ria de ser a única da casa que conseguia

ver bem as telenovelas e os sorrisos nas bocas nítidas de todas as

personagens.

Ondjaki, Os da Minha Rua,