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OS MUNICÍPIOS E OS DESAFIOS DA FEDERAÇÃO NO BRASIL

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OS MUNICÍPIOS E OS DESAFIOS DA FEDERAÇÃO NO BRASIL

Rui AffonsoDiretor técnico-científico do Instituto de Economia do Setor Público da Fundap, Professor do IE-Unicamp

urante os anos 80, os municípios passaram a de-sempenhar um papel de destaque na Federaçãobrasileira. A luta dos governos subnacionais pela

descentralização tributária iniciou-se no final dos anos 70,com a emergência da crise econômica e com o processode redemocratização do país.

A crise econômica teve um duplo efeito sobre o pro-cesso de descentralização tributária: por um lado, impul-sionou esse processo, pois contribuiu para a desagrega-ção do pacto de poder sobre o qual se assentava o regimepolítico instaurado em 1964, e, por outro, constituiu-seem freio às tendências descentralizadoras, uma vez queimpunha riscos maiores para a implementação de umaestratégia de “transição por cima” ou “abertura gradual”do regime militar, sob o controle das forças, na época he-gemônicas.

O avanço da abertura estabeleceu uma contradição entrea ampliação do espaço de liberdade política – e, portanto,da importância das eleições como forma de acesso e pre-servação do poder – e a dependência financeira de esta-dos e municípios em relação ao Governo central. Essacontradição alimentou, em grande medida, o movimentomunicipalista, que cresceu vigorosamente no período,abrangendo setores de todo o espectro partidário.

A descentralização deu-se, principalmente, através desucessivas emendas constitucionais que ampliaram ospercentuais dos Fundos de Participação dos Estados eMunicípios.1 As Emendas Constitucionais no 23/83 e no

79/84, de autoria, respectivamente, do senador PassosPorto (PDS-CE) e do deputado Airton Sandoval (PMDB-SP), fizeram parte desses avanços descentralizadores an-teriores à Constituição de 1988, que ratificou e aprofundouesse movimento.2 A Tabela 1 mostra a progressiva am-

pliação da participação dos estados e municípios na re-ceita do IR e do IPI.

Os principais beneficiários da descentralização fiscalforam os municípios, que ampliaram sua participação nareceita disponível (consideradas as transferências inter-governamentais) de 9%, em 1980, para 15% em 1994. Aevolução da participação da receita própria dos governosmunicipais no mesmo período (de 3% para 5%) eviden-cia que a ampliação da sua participação no bolo fiscaldecorreu, principalmente, das transferências federais(Tabela 2).

Os estados aumentaram sua participação relativa nototal das receitas fiscais ao longo dos anos 80, com suareceita própria evoluindo de 22% para 26% e sua receitadisponível de 22% para 27%, entre 1980 e 1988.

A nova Constituição propiciou as condições para umaelevação de 3 pontos percentuais na receita própria dosgovernos estaduais. Entretanto, ao aumentar também assuas transferências obrigatórias aos municípios, pratica-mente congelou os resultados líquidos alcançados nos anosanteriores (a participação da receita disponível dos esta-dos no agregado das três esferas permaneceu constante).Em suma, pode-se afirmar que os municípios obtiveramseus ganhos fiscais basicamente com a vigência da Cons-tituição de 1988, enquanto os estados os alcançaram an-tes de 1988.

A União perdeu posição relativa em todo o período,uma vez que a sua participação na receita própria caiu de75% em 1980 para 66% em 1994 e a sua participação nareceita disponível reduziu-se de 69% para 58%, no mes-mo período.

Verificou-se, também, uma descentralização inter-re-gional da receita disponível, a qual cresceu a taxas mais

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TABELA 1

Destinação Constitucional da Arrecadação do IR e IPI para os Fundos de Participação

Brasil – 1968-1993Em porcentagem

Arrecadação IR + IPI IPI Total

FPE FPM FEF FFR FPEx IR IPI

1968 10,0 10,0 - - - 20,0 20,0

1969/1975 5,0 5,0 2,0 - - 12,0 12,0

1976 6,0 6,0 2,0 - - 14,0 14,0

1977 7,0 7,0 2,0 - - 16,0 16,0

1978 8,0 8,0 2,0 - - 18,0 18,0

1979/80 9,0 9,0 2,0 - - 20,0 20,0

1981 10,0 10,0 2,0 - - 22,0 22,0

1982/83 10,5 10,5 2,0 - - 23,0 23,0

1984 12,5 13,5 2,0 - - 28,0 28,0

1985 14,0 16,0 2,0 - - 32,0 32,0

1986/set. 88 14,0 17,0 2,0 - - 33,0 33,0

Out.-Dez./1988 18,0 20,0 - 3,0 10,0 41,0 51,0

1988 19,0 20,5 - 3,0 10,0 42,5 52,5

1990 19,5 21,0 - 3,0 10,0 43,5 53,5

1991 20,0 21,5 - 3,0 10,0 44,5 54,5

1992 20,5 22,0 - 3,0 10,0 45,5 55,5

A partir de 1993 21,5 22,5 - 3,0 10,0 47,0 57,0

Fonte: Serra e Afonso (1991).Nota: O FPE – Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal incluía, até 1988, tam-bém territórios federais.

elevadas nas regiões menos desenvolvidas do país. Entre1988 e 1994, a receita tributária disponível dos estados emunicípios da região Norte cresceu 42% e a do Nordestecresceu 13%, enquanto a de São Paulo, por exemplo, de-cresceu 2%.

Em virtude da ampliação da capacidade financeira dosgovernos subnacionais, aumentou significativamente a suaparticipação na despesa pública. De fato, os estados emunicípios respondiam, em 1994, por cerca de 78% dainversão pública (FBKF) e por 62% do consumo corrente(excluindo-se, evidentemente, as empresas estatais).

O governo federal, por sua vez, concentrava a respon-sabilidade dos gastos com a Previdência Social (83,1%do total) e com o pagamento dos juros das dívidas internae externa (93,8% do total).

Mesmo computando todas as despesas correntes e decapital (incluindo os juros da dívida pública e os benefí-cios previdenciários, mas excluindo as amortizações dadívida), os estados e municípios respondiam por quasemetade da despesa total do setor público (49%), na mé-dia do período 1990-92, alcançando ou até superando aparticipação dos governos subnacionais de países maisdesenvolvidos e com longa tradição de descentralização.

Embora a avaliação do gasto por funções não seja fácildevido à carência de estatísticas, os indicadores físicos efinanceiros disponíveis mostram uma elevação importan-te da participação dos estados e municípios no gasto so-cial total e uma diminuição da participação da União. Noperíodo 1989 a 1991, essa participação foi de cerca de 44%dos gastos com saúde e de 69% dos gastos com educação.3

Deve-se ainda ressaltar que, embora a descentraliza-ção fiscal tenha se apoiado fortemente no aumento dastransferências federais da União para os estados e muni-cípios, essas transferências não possuem o mesmo cará-ter de dependência financeira em relação ao governo fe-deral, como o tiveram no passado, pois atualmenteaproximadamente 65% desses recursos são “livres” oucom escassa vinculação de aplicações.4

Em apoio à hipótese de que concomitantemente à des-centralização de recursos fiscais em favor dos estados emunicípios teria havido, também, uma absorção maior deencargos por parte destes níveis de governo, pode-se enu-merar a evolução, pós-constituinte, dos indicadores físi-cos de prestação de serviços tipicamente locais. Estasevidências no caso da Educação, Saúde e Saneamentocorroboram a percepção financeira de que as esferas sub-nacionais de governo passaram a assumir maiores encar-gos, embora de maneira descoordenada e diferenciada emcada uma das regiões.5

A característica central do processo de descentraliza-ção no Brasil é a sua descoordenação. Ao contrário deoutros países da América Latina, a descentralização brasi-

Períodos

TABELA 2

Distribuição de Receitas Entre as Três Esferas de GovernoBrasil – 1980-1994

Em porcentagem

Esferas de Governo 1980 1988 1994

Receita Própria 100,0 100,0 100,0

União 75,0 71,0 66,0

Estados 22,0 26,0 29,0

Municípios 3,0 3,0 5,0

Receita Disponível 100,0 100,0 100,0

União 69,0 62,0 58,0

Estados 22,0 27,0 27,0

Municípios 9,0 11,0 15,0

Fonte : Afonso e Senra (1994).

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como um todo. Essa fragilização o torna cada vez maisdependente dos adiantamentos de capital privado para arealização de investimentos, aumentando sobremaneira ocomando privado sobre o gasto público, o que constitui,para alguns autores, uma das facetas da “privatização doEstado” e contribui para ampliar a sua descoordenação.6

Tudo se passa como se os capitais privados trouxessem asua lógica de mercado para dentro do Estado, passando aconcorrer através de suas estruturas, privatizando-o einviabilizando qualquer planejamento.

Como resultado desse movimento e contribuindo paraacentuá-lo, assistiu-se, ao longo dos anos 80 e principal-mente no começo dos 90, a uma desestruturação dos me-canismos tradicionais de planejamento e regulação fede-rativa, como a Sarem, o IBGE, o Ipea e o Confaz. Algosemelhante ocorreu no âmbito da relação dos estados comos seus municípios, com a desarticulação dos diferentesarranjos institucionais que, nos anos 80, foram responsá-veis pela coordenação da ação dos estados junto aos mu-nicípios.7

Por outro lado, assiste-se a uma progressiva generali-zação do conflito federativo. Enquanto nos anos 80 oconflito federativo, tanto em sua dimensão vertical (rela-ção entre a União e os estados e municípios) como emsua dimensão horizontal (relação entre estados ou muni-cípios entre si), esteve centrado na disputa por recursostributários, nos anos recentes passou a manifestar-se emvárias outras dimensões, do âmbito do aparelho estatalao da representação política.

No campo do setor produtivo estatal, proliferaram osatritos entre as holdings federais e as concessionárias es-taduais, entre os quais cabe destacar o que envolveu atarifação das empresas elétricas. Em termos prospectivos,os interesses em conflito não são menores. Os grandesprojetos estratégicos dos sistemas de transporte e sanea-mento, assim como as alternativas de privatização, pos-suem importantes e diferenciados impactos regionais elocais, ensejando reações diversas.

No que diz respeito ao sistema financeiro público, des-tacam-se as discussões em torno das condições de exis-tência e operação dos bancos estaduais e regionais. Re-centemente, o Banco Central tem ampliado as formas decontrole sobre essas instituições, reduzindo a autonomiaque gozavam no financiamento de seus governos. Nessemesmo sentido, o governo federal tornou as condições derolagem das dívidas dos estados mais restritivas, exigin-do como contrapartida programas de saneamento fiscaldos governos subnacionais. Em termos mais gerais, odebate sobre a necessária reestruturação dos bancos esta-duais pressupõe uma determinada visão acerca do graude autonomia financeira que devem possuir as esferassubnacionais de governo e sobre a extensão das funções

TABELA 3

Receita Tributária Disponível dos Estados e MunicípiosBrasil – 1988-1994

Variação (%)1994/1988

Brasil 47.472 52.544 11

Menos Desenvolvidas 13.613 16.480 21Norte 2.257 3.214 42Nordeste 8.469 9.557 13Centro-Oeste 2.887 3.708 28

Mais Desenvolvidas 33.859 36.064 7Sudeste 26.381 27.500 4São Paulo 16.992 16.661 -2Sul 7.479 8.564 15

Fonte: Ministério da Fazenda/STN; Confaz.(1) Em milhões de reais.

Regiões 1988 (1) 1994 (1)

leira não foi obra do Governo federal, mas sim dos esta-dos e, principalmente, dos municípios. Em outros países,a descentralização decorreu da crise fiscal do Estado ouda perda acentuada de governabilidade, o que levou ogoverno federal a desfazer-se de parte de seus encargos,transferindo-os a estados e municípios, na tentativa de in-corporar setores à margem do poder estatal com a promessada descentralização (como na Colômbia, por exemplo).

No caso do Brasil, a descentralização veio com a rede-mocratização, em meio ao aprofundamento da crise eco-nômica. O fato decisivo, e que torna singular a experiên-cia brasileira, é que a redemocratização ocorreu primeironos governos subnacionais, com a eleição para governa-dores e prefeitos no início dos anos 80, e somente em 1988chegou ao núcleo central do Estado, com a AssembléiaNacional Constituinte e, em 1989, com a eleição diretapara presidente da República.

Dessa forma, ocorreu uma identificação entre a lutacontra o autoritarismo e a luta pela descentralização. AUnião ficou sem defensores durante a elaboração da Cons-tituição de 1988 e a descentralização processou-se de for-ma descoordenada, sem um projeto articulador.

É interessante notar que no Brasil, no período recente,o termo “Federação” associa-se aos governos subnacio-nais – estados e municípios – e não ao conjunto das trêsesferas de governo.

Em suma, no Brasil, a descentralização não foi coman-dada pelo Governo federal, ao contrário, esse se opôs a ela oquanto pôde. Dessa forma, não existiu um plano nacionalpara a descentralização e, mais do que isso, o processo en-contra-se inconcluso e eivado de conflitos.

A descentralização ocorre, ademais, em um contextode progressiva fragilização financeira do setor público

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reguladoras do governo federal. Ou seja, supõe um deter-minado projeto de Federação.

No plano político, as meras constatações acadêmicassobre a desproporcionalidade da representação dos esta-dos no Congresso Nacional deram lugar a diferentes ini-ciativas de reforma.

No âmbito cultural e ideológico, a explicitação do se-paratismo como alternativa à crise federativa deixa de serencarada como um tabu e passa a assumir manifestaçõesvariadas.

Com relação à divisão de competências, observa-se umaintensa disputa entre o Executivo federal, o Legislativofederal e os governos subnacionais pelo poder de coman-do sobre o gasto público no varejo, o qual tem grandeimportância político-eleitoral.

No que diz respeito às receitas fiscais, o conflito queantes se restringia à disputa entre o governo federal,de um lado, e os estados e municípios, de outro, am-plia-se para uma disputa entre estados e entre municí-pios de diferentes regiões, através da guerra fiscal. Pre-midos pela dificuldade de manter a arrecadaçãotributária como conseqüência da recessão, da inflaçãoe da sonegação, os governos estaduais lançaram-se emuma guerra de incentivos e benefícios fiscais atravésdo ICMS para atrair indústrias para suas regiões e fo-mentar a atividade econômica.

Mais preocupante do que a constatação da ampliaçãodos conflitos federativos é o fato das atuais tendênciassocioeconômicas, tanto internas como internacionais,apontarem para o reforço da descoordenação federativa.De fato, o aumento da heterogeneidade intra-regional, aglobalização das economias, a privatização, a desregula-mentação dos mercados e a descentralização extremadatendem, através de seus impactos muito diferenciadossobre as regiões, a ampliar as forças fragmentadoras ecentrífugas no espaço nacional.

Nos últimos anos, em parte como decorrência dastransformações na dinâmica econômica inter e intra-re-gional,8 generalizaram-se iniciativas que tinham o ob-jetivo de redesenhar as fronteiras geopolíticas internas,tanto dos estados quanto, e principalmente, dos muni-cípios.

Além das tendências antes descritas, o estímulo à eman-cipação decorre :- da possibilidade, facultada pela Constituição de 1988,das novas unidades federativas passarem a dispor dos re-cursos dos fundos de participação (FPEM), repartindo-oscom o estado ou município dos quais se separaram;

- da opção pela solução fragmentadora e isolacionista. Antea dificuldade de enfrentar os problemas sociais coloca-dos pela prolongada crise econômica, marcada por umainflação renitente, pela crise financeira do Estado e pelas

transformações estruturais em curso, algumas localidadesmais ricas optam por seccionar-se para, com isto, equa-cionar seus problemas sem o fardo da complexidade daNação ou mesmo da região.9 A generalização de políticasde segregação ativa, proibindo ou dificultando o acessode imigrantes pobres, ou sem as qualificações estipula-das, constitui uma manifestação preocupante que apontana mesma direção;

- da tentativa de alguns setores de ampliarem o seu espa-ço de controle político-eleitoral, através do redesenho dasunidades federativas e da conseqüente criação de novasmáquinas político-administrativas.

As principais alterações nas fronteiras geopolíticas dosníveis intermediários de governo foram: criação dos es-tados de Tocantins (a partir do desmembramento do Es-tado de Goiás), Amapá e Roraima (antigos territó-rios fe-derais). Além destas, foram apresentadas as propostas decriação dos estados do Triângulo Mineiro, Maranhão doSul, Carajás (a partir do Pará), Alto Solimões, Tapajós eAlto Rio Negro (a partir do Amazonas) e Iguaçu (que seriadesmembrado dos estados do Paraná e Santa Catarina).

Se os fatores apontados anteriormente ensejaram umprocesso de redesenho das fronteiras estaduais, com muitomaior intensidade determinaram um verdadeiro “furor”emancipatório municipal.

De fato, entre 1980 e 1993, foram criados 1.000 novosmunicípios, especialmente após a Constituição de 1988,que não estabeleceu critérios para a criação de municí-pios e deu amplos poderes aos estados para legislaremsobre a matéria.

Como se pode observar no Gráfico 1, a maior partedas unidades municipais concentram-se nos estados maisricos da Federação (MG, SP, RS, PR). Um fato preocu-pante é a participação dos pequenos municípios no total.Em 1993, haviam 1.067 municípios (21,45%) com me-nos de 5.000 habitantes, sendo que 109 não chegavam ater 2.000 habitantes (Tabela 4).

A possibilidade de acesso a uma receita não gerada nolocal, ou seja, a dissociação dos atos de gastar e de tribu-tar estimula a tendência à emancipação irresponsável,fazendo com que se criem municípios sem base econô-mica própria, integralmente dependentes das transferên-cias federais e/ou estaduais (Rezende, 1992).

A proliferação de municípios com estas característi-cas dificulta a divisão adequada de competências, bemcomo a coordenação federativa.

O atual debate acerca do papel desempenhado pelosestados e municípios após a Constituição de 1988 suscitatrês ordens de questões referentes à relação da descentra-lização com a democracia, o desenvolvimento e a eficiên-cia e eqüidade.

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GRÁFICO 1

Número de Municípios por EstadoBrasil – 1993

Fonte: Fundação IBGE. Anuário Estatístico do Brasil – 1994. Rio de Janeiro, 1995 (dados de 1º de julho de 1993).

Minas Gerais

São Paulo

Rio Grande do Sul

Bahia

Paraná

Santa Catarina

Goiás

Ceará

Pernambuco

Paraíba

Rio Grande do Norte

Piauí

Maranhão

Pará

Tocantins

Mato Grosso

Alagoas

Rio de Janeiro

Mato Grosso do Sul

Sergipe

Espírito Santo

Amazonas

Rondônia

Acre

Amapá

Roraima

Distrito Federal 1

8

15

22

40

62

71

75

77

81

100

117

123

128

136

148

152

171

177

184

232

260

371

415

427

625

756

se alcançar o desenvolvimento em favor das maioriassociais, mediante a redistribuição espacial de recursos;para outros, entretanto, a descentralização representariao abandono de qualquer pretensão de equilibrar o desen-volvimento entre regiões e no interior delas. A descen-tralização seria, sob este ponto de vista, um dos eixos deuma estratégia neoliberal de assignação de recursos, con-trária, portanto, às políticas redistributivas.

A relação entre descentralização, eficiência e eqüida-de está permeada por complexas redes de causalidade.

Em primeiro lugar, deve-se observar que ainda nãodispomos de uma avaliação acurada dos impactos da des-centralização sobre a efetividade do funcionamento do

No que se refere à relação entre a descentralizaçãoe a democracia, encontram-se dois pólos de opiniões:para alguns, a descentralização seria um mecanismo deredistribuição do poder político que permeabilizaria oEstado às pressões e à participação dos setores popu-lares; para outros, entretanto, a descentralização repre-sentaria uma estratégia de deslocamento da alternativapopular para o plano local, macroeconômico, enquan-to permanecem centralizados, com uma lógica trans-nacional, os espaços das principais decisões políticas.10

Quanto à relação entre descentralização e desenvolvi-mento, a polarização de posições é análoga. Para alguns,a descentralização seria o instrumento por excelência para

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TABELA 4

Número de Municípios e Participação no Total, Segundo o Tamanho

Brasil - 1940-1993

Tamanho dos Número de MunicípiosMunicípios(Em habitantes) 1940 1950 1960 1970 1980 1993

Total 1.574 1.889 2.766 3.952 3.974 4.974

Até 5.000Nos Abs. 31 68 278 658 665 1.067Participação (%) 1,97 3,60 10,05 16,64 16,73 21,45

De 5.000 a 10.000Nos Abs. 249 348 651 1.058 951 1.206Participação (%) 15,82 18,42 23,54 26,77 23,93 24,24

De 10.000 a 20.000Nos Abs. 577 615 847 1.159 1.102 1.338Participação (%) 36,66 32,56 30,62 29,33 27,73 26,89

De 20.000 a 50.000Nos Abs. 597 691 783 826 872 903Participação (%) 37,93 36,58 28,31 20,90 21,94 18,15

De 50.000 a 100.000Nos Abs. 97 129 143 157 241 281Participação (%) 6,16 6,83 5,17 3,92 6,07 5,65

De 100.000 a 500.000Nos Abs. 21 35 57 83 125 154Participação (%) 1,33 1,85 2,06 2,10 3,15 3,10

De 500.000 a 1.000.000Nos Abs. 0 1 5 6 8 14Participação (%) - 0,05 0,18 0,15 0,20 0,30

Mais de 1.000.000Nos Abs. 2 2 2 5 10 11Participação (%) 0,13 0,11 0,07 0,12 0,25 0,22

Fonte: Fundação IBGE. Anuário Estatístico do Brasil - 1994. Rio de Janeiro, 1995 (dados de1º de julho de 1993).

rências implicaria desestímulo à exploração de bases pró-prias de arrecadação, uma vez que estas possuem um ele-vado custo político. Entre 1988 e 1995, a receita própriados governos municipais cresceu 16,5% ao ano, em ter-mos reais, enquanto as transferências para este nível degoverno (da União e dos estados) aumentaram 11,6% a.a.Com este crescimento, a arrecadação própria dos muni-cípios, que em 1988 era de apenas 0,66% do PIB, passoua corresponder a 1,7% do PIB em 1995. Como mostra aTabela 5, a performance municipal superou o esforço re-lativo de arrecadação dos governos federal e estadual, queapresentaram taxas de crescimento da receita própria in-feriores às dos municípios (respectivamente 5,3% e 7,9%ao ano, entre 1988 e 1995).

Alguns analistas argumentam que o desempenho dosgovernos municipais deve ser relativizado, uma vez queo patamar do qual se parte é muito baixo (menos de 1%do PIB, contra 15,82% do Governo central e 5,95% dosestados). O esforço relativo de arrecadação dos municí-pios, entretanto, possui uma importância política em si,ou seja, o fato de estas esferas de governo passarem acobrar os impostos a elas atribuídos pela Constituição, semse “acomodarem” ao benefício do acréscimo de transfe-rências estaduais e federais.12

A questão da eficiência dos governos subnacionais naadministração de seus gastos alude, em grande medida, à

aparelho de Estado e dos serviços por ele prestados, bemcomo sobre os seus impactos redistributivos, em termostanto pessoais quanto inter-regionais. Contudo, as evidên-cias existentes indicam que, em um país continental comoo Brasil, marcado por profundas disparidades regionais,os custos de distribuição, intermediação e controle supe-ram largamente os hipotéticos ganhos de escala da admi-nistração centralizada.11

No que se refere à eficiência na arrecadação das recei-tas tributárias, os dados disponíveis apontam uma melhoriana performance dos governos municipais. De fato, osmunicípios ampliaram expressivamente suas receitas pró-prias, contrariando a tese da “preguiça fiscal”, segundo aqual a descentralização apoiada fortemente em transfe-

TABELA 5

Receita Tributária Global, Segundo o Nível de Governo (Conceito das Contas Nacionais)

Brasil – 1988-1995Em porcentagem

Variação naNível de Em % do PIB Participação VariaçãoGoverno do PIB (1) Real a.a.

1988 1995 (1) 1995-1988 1995/1988

Receita Própria 22,43 30,58 8,15 6,4Central 15,82 20,09 4,27 5,3

Estadual 5,95 8,81 2,86 7,9

Local 0,66 1,68 1,02 16,5

Repartição de ReceitasConcedidas pela União 1,84 3,04 1,20 8,0Concedidas pelos Estados 0,09 (-)0,42 (-)0,51 -232,6

Recebidas pelos Municípios 1,76 3,46 1,70 11,6

Receita Disponível (2) 22,43 30,58 8,15 6,4Central 13,98 17,05 3,07 4,9

Estadual 6,04 8,39 2,35 6,7

Local 2,41 5,14 2,73 13,0

Fonte: Afonso (1996).(1) Projeções preliminares para 1995.(2) Arrecadação própria mais/menos transferências constitucionais para outros níveis de governo.

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OS MUNICÍPIOS E OS DESAFIOS DA FEDERAÇÃO NO BRASIL

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problemática da divisão de competências entre os três ní-veis de governo.

A Constituição de 1988 não foi suficientemente explícitana atribuição de encargos. Isto decorreu da des-coordenação do processo de descentralização e dadificuldade de se estabelecer uma divisão estrita deresponsabilidades em uma federação tão heterogêneaquanto a nossa. Tal fato implicou a coexistência de lacunasem alguns setores de diferentes regiões e a superposiçãode funções em outras. Durante o período em que pre-valeceu uma coordenação federativa centralizada (eautoritária), as transferências negociadas ou não-cons-titucionais, os gastos diretos da União nas regiões, assimcomo os dispêndios do setor produtivo estatal desem-penharam o papel de soldagem dos interesses regionais. Como advento da descentralização fiscal e o processo deprivatização das empresas estatais, a União perde parte dessesinstrumentos e a divisão de competências torna-se umprocesso intrincado que supõe negociações complexas enovas formas não-centralizadas de coordenação federativa.13

Como foi visto, apesar da indefinição da Constituiçãoquanto à divisão de competências, os estados e municí-pios acabaram assumindo novas responsabilidades emdecorrência do maior volume de recursos disponíveis eda omissão da União em relação a alguns programas tra-dicionalmente administrados por ela (como conseqüên-cia da sua menor disponibilidade de recursos) e, em últi-ma instância, devido às pressões de uma sociedade civilmais organizada, que pode expressar com maior liberda-de seus interesses.

A observação recorrente de que a reforma constitucio-nal propiciou grandes ganhos fiscais aos estados e muni-cípios, os quais foram absorvidos pelo aumento das des-pesas com pessoal, também deve ser ponderada. Estasesferas de governo assumiram maiores responsabilidadesnas áreas da educação, saúde, habitação, saneamento esegurança pública e seria de se esperar que aumentassemos seus gastos relativos com pessoal, uma vez que estassão áreas intensivas em mão-de-obra.

No que diz respeito à relação da descentralização coma eqüidade, existem poucas evidências do impacto redis-tributivo do gasto público. Ao contrário de outros paíseslatino-americanos, pouca atenção é dada ao tema e asparcas estatísticas disponíveis refletem esta lacuna emnossa agenda de pesquisas.

Como já mencionado, a descentralização fiscal entreesferas de governo também redundou em uma descentra-lização “horizontal”, das regiões mais desenvolvidas dopaís para as menos desenvolvidas. Contudo, a ampliaçãoda receita e do gasto descentralizado nas regiões maiscarentes do país não significa, necessariamente, uma dis-tribuição mais equitativa do dispêndio público.

O avanço na direção da maior eqüidade e eficiênciado gasto público requer, com certeza, mudanças insti-tucionais mais profundas nas estruturas dos poderes dasesferas subnacionais de governo, bem como na sua inter-relação. Alguns estudos recentes evidenciam, de formaeloqüente, a hipertrofia centralista do Executivo dosestados e municípios em detrimento dos poderes Legis-lativo e Judiciário.14 Este fato, aliado às carências decapacitação técnica dos governos subnacionais paraassumirem funções antes executadas pela União, àinexistência de continuidade nas políticas desenvolvidase à ausência de mecanismos de avaliação, acentuam aineficiência e a iniqüidade do gasto público. A pul-verização do dispêndio público, na ausência de meca-nismos eficazes de coordenação, acarreta, por sua vez,superposições ou, ainda, a impossibilidade de arcar comobras e/ou atividades cuja escala supera a capacidade definanciamento local.

Grande parte dos desafios enfrentados hoje pelos esta-dos e municípios decorre da forma descoordenada pelaqual se efetivou a descentralização no Brasil, o que acen-tuou os problemas estruturais de uma federação consti-tuída por gigantescas desigualdades socioeconômicas, in-ter e intra-regionalmente.

Normalmente, as arquiteturas federativas pressupõemou a existência de entes federados equipotentes (emboracom estruturas socioeconômicas diversificadas), o quepossibilita uma coordenação federativa mais descentrali-zada, ou então, no caso de entes federados muito desi-guais e na presença de acentuada heterogeneidade estru-tural, uma coordenação federativa mais centralizada e, nãoraro, autoritária (como foi o caso do Brasil na maior par-te de sua história recente). Assistimos, nas últimas déca-das, a um aumento das disparidades socioeconômicas e,simulta-neamente, a uma descentralização descoordenada.Desta forma, o nosso desafio consiste em construir me-canismos de coordenação descentralizados e democrá-ticos de maneira a enfrentar eficazmente as disparida-des sociais que obstaculizam o desenvolvimento emnosso país.

NOTAS

1. Uma análise detalhada a respeito é desenvolvida em Affonso (1988).

2. Além da elevação dos percentuais do IR e do IPI destinados aos Fundos deParticipação dos Municípios (FPM) e dos Estados (FPE) e da criação de um fun-do de ressarcimento à isenção do ICMS concedido pelos estados exportadores(10% do IPI), a nova Constituição concedeu ampla liberdade para cada estadofixar, por leis próprias, as alíquotas do ICMS incidentes sobre as operações in-ternas, antes limitadas pelo Senado Federal. Além disto, incorporou à base decálculo do ICMS as operações relativas ao transporte interestadual e intermuni-cipal e as operações referentes às comunicações, antes abarcadas pelos impostos

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únicos. A elevação da base do ICMS também beneficiou os municípios, uma vezque as transferências deste imposto para os governos municipais aumentaram de20% para 25%.

3. Estes dados apóiam-se em estimativas realizadas no âmbito do projeto ”Ba-lanço e perspectivas do federalismo no Brasil”, em Affonso (1994).

4. Segundo Shah (1994:40-42), o Brasil teria, em 1988, um dos maioresíndices de autonomia fiscal do mundo, acima dos vigentes nos EstadosUnidos, Alemanha e Canadá. Em Tanzi et alii (1992:11-16), considera-se que “While Brazil is not the only country to have a federal structure,it is unique in that Municipalities are granted full autonomy where asthey are under state tutelage in all other countries – at least in a legalsense...the extent of fiscal federalism in Brazil is also unique amongcountries at similar leves of income.”

5. Ver a respeito Afonso e Senra (1994).

6. Argumentação nesse sentido é desenvolvida em Affonso (1990).

7. Para uma avaliação das regiões administrativas e das regiões de governo verProença Soares (1986).

8. Ver Guimarães Neto (1993); Diniz e Santos (1993); Diniz e Oliveira (1993).

9. Esta posição tem ensejado, inclusive, algumas manifestações de cunho sepa-ratista nos últimos anos. Ver a respeito Molon (1994).

10. Ver, a respeito Restrepo (1992).

11. Os casos da merenda escolar e da compra de material didático sãoemblemáticos a respeito.

12. É particularmente significativo o fato de o crescimento das receitas própriasdos estados das três regiões menos desenvolvidas do país ter superado tanto ocrescimento das transferências a elas destinadas pela União, quanto a arrecada-ção própria nas regiões mais desenvolvidas (8,4% a.a.; 6,6% a.a. e 5,5% a.a.respectivamente, entre 1988 e junho de 1995). Ver Afonso (1996).

13. Ver Afonso (1996:49).

14. Ver a respeito Abrucio (1994).

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CRISE FEDERATIVA, GUERRA FISCAL E “HOBBESIANISMO MUNICIPAL” ...

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CRISE FEDERATIVA, GUERRA FISCAL E“HOBBESIANISMO MUNICIPAL”

efeitos perversos da descentralização?

pós uma década de experiências descentra-lizantes, a agenda de discussão em torno do temaadquiriu um novo formato. O debate público vem

assumindo um caráter menos apologético, típico doconsenso em que foi produzida a agenda da descentra-lização nas décadas de 70 e 80. Os constrangimentos evicissitudes da descentralização são postos agora emdiscussão e os efeitos perversos de reformas passam aser apontados.

Observa-se forte polarização no debate público emtorno da questão. De um lado, estão aqueles que enten-dem o fortalecimento dos níveis subnacionais de gover-no como um processo virtuoso que não só robustece ademocracia, como também produz uma maior eficiênciaalocativa no sistema de governo. A competição entre uni-dades federadas é vista como geradora de inovações nosistema público. De outro lado, estão aqueles para quem osestados e municípios são loci de clientelismo e ineficiência,sendo que sua autonomização representa fonte importan-te de ingovernabilidade. Além disso, argumentam que airresponsabilidade fiscal nesses níveis compromete osesforços de estabilização do Governo central. Nessa pers-pectiva, a guerra fiscal entre estados e municípios expres-saria a perda de rumo e a ausência de coordenação quan-to à estratégia nacional de desenvolvimento.

O presente texto mapeia essa mudança recente na agen-da pública, explorando analiticamente – embora de for-ma preliminar – os termos do debate. Na primeira partedo texto algumas das principais mudanças de agenda teó-rica em torno da questão da descentralização são perfila-das, com referências preliminares e rápidas à experiênciainternacional. Na segunda parte, focaliza-se o caso brasi-leiro e discute-se a questão dos efeitos perversos da

descentralização. Na terceira parte, as relações entre fe-deralismo e seguridade social são discutidas de formabastante breve e à luz dos efeitos perversos da descen-tralização.

DESCENTRALIZAÇÃO E MUDANÇASESTRUTURAIS NA GESTÃO PÚBLICA

A partir da década de 80, a descentralização consti-tuiu-se num princípio ordenador de reformas do setor pú-blico, que tiveram efetivamente abrangência internacio-nal, difundindo-se dos países capitalistas avançados paraaqueles do mundo subdesenvolvido. A bandeira da des-centralização passou assim a expressar um virtual con-senso, sendo advogada simultaneamente por governosconservadores e social-democratas. Nos países egressosde experiências autoritárias – como é o caso da maioriados países latino-americanos – a descentralização passoua ser entendida enquanto dimensão essencial da demo-cratização.

Com efeito, a genealogia da descentralização enquantoprincípio político tem uma longa trajetória no pensamentoliberal. Desde Tocqueville, as virtudes do local self-government, entendido sobretudo em relação à intervençãodo Estado central, tem sido reiteradamente enaltecida porliberais. No campo do pensamento econômico, a descen-tralização, ao ser assimilada à idéia de mercado, tambémé advogada por economistas conservadores, de Hayek aBuchanan. A teoria organizacional contemporâneatambém aponta para a emergência de um paradigma pós-burocrático, que enfatiza estruturas horizontalizadas ecooperativas de governance em lugar de estruturashierarquizadas (Barzelay, 1992).

A

MARCUS ANDRÉ MELO

Professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco

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Na esteira do pensamento político, a idéia da descen-tralização também encontra guarida na tradição social-democrata. No conjunto das ideologias socialistas, a ques-tão da descentralização e autogestão comunal, e na unidadede produção, representavam noções programáticas con-solidadas de longa data. A idéia de socialismo municipalse constituiu numa estratégia importante no início do sé-culo nos países europeus, da mesma forma que as virtu-des de modelos autogestionários também foram aponta-das por teóricos importantes do movimento socialista,sobretudo no contexto das críticas ao modelo soviético.Em seu conjunto, no entanto, a esquerda sempre privile-giou a centralização e não a descentralização.

A idéia de um setor público centralizado e interven-cionista está efetivamente associada à tradição social-de-mocrata, consubstanciando-se no chamado estadokeynesiano de bem-estar social do pós-guerra (com a ex-ceção dos países escandinavos onde foram privilegiadosarranjos institucionais descentralizados ).1 Nesse tipo deintervenção acreditava-se que a centralização era um re-quisito para a superação de problemas como desigual-dade e pobreza. Como assinala Ashford, a história doswelfare states, até pelo menos a década de 70, represen-tou um movimento brutal de centralização administrati-va e política, no qual os governos locais foram sendo pro-gressivamente destituídos de seu (embora limitado) papelde provedores de serviços sociais. Os dois pilares da se-guridade social (a previdência social e a atenção à saúde)exigiram para sua viabilização estruturas e mecanismosnacionais centralizados de financiamento. Estes mecanis-mos permitem transferências horizontais e verticais(intergeracionais) de renda que constituem, em parte, aprópria razão de ser das políticas sociais. 2

Vale lembrar que a descentralização tem sido advoga-da também no quadro da valorização recente de formasde democracia direta e de mecanismos de controle socialmais efetivos, para além das instituições representativasdo chamado modelo de Westminster. Essa tendência tam-bém evidencia-se, ainda, na convergência que se obser-va, quanto a esse ponto, entre as tradições social-demo-crata e liberal. A descentralização é também um princípioimportante no quadro da renovação do pensamento polí-tico de esquerda, sobretudo da chamada nova esquerdapós-industrial, além de ser consistente com a idéia de frag-mentação social que informa o chamado pós-modernis-mo na teoria política.

A partir da década de 70, o paradigma centralizado deorganização do setor público mostrou sinais de esgota-mento. Não é possível discutir neste artigo, em detalhes,as razões desse processo. Interessa assinalar, entretanto,que é nesse contexto que emerge o consenso em torno daidéia de descentralização. Em alguns países, como na Fran-

ça, Itália e Espanha, importantes reformas descentraliza-doras foram implementadas por governos socialistas. Oleitmotif do processo era o caráter democratizante dasreformas que estariam associadas à promoção da demo-cracia direta e do fortalecimento de mecanismos deaccountability. Na Espanha, o ímpeto descentralizante foialimentado por clivagens étnicas ancoradas em fortes iden-tidades territoriais. Na França, uma coalizão descentra-lizante formou-se entre setores da burocracia, socialistase notáveis locais, buscando-se desmontar estruturascentralizadas criadas durante o período Napoleônico(Rosanvallon, 1993). Na Itália, o processo de descentra-lização teve início em 1970 com a criação de 15 gover-nos regionais e culminou com a reforma constitucionalde 1991, que extinguiu cerca de metade dos ministériosnacionais do país – transferindo suas funções para enti-dades regionais – e com simultânea elevação da partici-pação dessas entidades na receita nacional de 30% paraquase 70%. Este movimento descentralizante foi patro-cinado pelos socialistas e setores reformistas moder-nizadores, levando a uma das mais audaciosas experiên-cias de reorganização territorial em todo o mundo(Putnam, 1993).

A idéia da descentralização também foi ingredienteimportante do elenco de reformas advogadas por gover-nos neoliberais a partir da década dos 80. Com efeito, acentralização é uma peça central do repertório políticoconservador, que localiza no Governo central o objeto deseu anti-estatismo. As instituições multilaterais, tais comoo Banco Mundial e o FMI e mais recentemente o BancoInteramericano de Desenvolvimento, passaram a se cons-tituir em veículos importantes de difusão em escala glo-bal da descentralização. O processo de descentralizaçãoganhou forte ímpeto especialmente na América Lati-na, que se tornou um laboratório de experiências re-formistas. Na Europa – deve-se lembrar – o debate emtorno da União Européia alimentou a discussão em tornodas questões relativas à descentralização e ao federa-lismo, que passaram a ocupar uma parte importante daagenda política.

A RATIONALE DA DESCENTRALIZAÇÃO

Embora as justificativas para as reformas descen-tralizantes na última década estejam informadas funda-mentalmente pelo neoliberalismo, no qual, como assina-lado, a descentralização é assimilada à idéia de desmontedo estado central e de redução de sua atividade regulató-ria e produtiva, o consenso referido anteriormente estáancorado num diagnóstico das patologias institucionaisencontradas em estruturas centralizadas e nas virtudeseconômicas da descentralização.

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Antes de discutir esse ponto cabe fazer aqui rapidamenteuma explicitação sobre o conceito de descentralização.Com efeito, o conceito recentemente tem sido desagrega-do em várias dimensões ou noções correlatas, tais como:desconcentração, delegação e devolução (IDB, 1994). Nosentido amplo, e que envolve as três dimensões, a devolu-ção pode ser definida como a transferência ao nível inter-governamental de poder decisório sobre as esferas finan-ceira, administrativa e programática. Neste sentido sediferencia – e amplia – o conceito de desconcentração, quedescreve mecanismos de transferência de encargos e tare-fas entre unidades administrativas ou políticas subnacio-nais; ou de delegação quando apenas algum grau de poderdecisório é transferido. Quando a descentralização ocorreno âmbito de empresas, ou entre empresas e setor públi-co, verifica-se um processo de terceirização.

Entendida enquanto transferência de poder decisórioa municípios ou entidades e órgãos locais, a descentrali-zação expressa, por um lado, tendências democratizantes,participativas e de responsabilização e, por outro, proces-sos de modernização gerencial da gestão pública – em queapenas a questão da eficiência é considerada. Essas duasdimensões complementares estão presentes nos proces-sos de descentralização, mas a importância relativa assu-mida por esses dois vetores depende da natureza da coa-lizão política que dá suporte às reformas. Coalizões compredomínio de forças políticas liberais/conservadorasenfatizam os aspectos relativos aos ganhos de eficiênciae de redução do setor público. Coalizões social-democra-tas, por outro lado, privilegiam os aspectos relativos aocontrole social e democratização da gestão local.

As justificativas de ordem política para a descentrali-zação envolvem fatores políticos relacionados não só àpromoção da democracia participativa, como assinalado,mas também à preservação de identidades territoriais,sobretudo em países que apresentam importantes cliva-gens étnicas e culturais. Este argumento tem sido reitera-do sobretudo nos países de tamanho continental e organi-zados em estruturas federalistas, tais como Brasil, China,Índia, ou Canadá; e também nas chamadas “democraciasconsorciativas” (Países Baixos).

As justificativas de ordem econômica para a descen-tralização estão relacionadas aos ganhos em termos deeficiência alocativa que ela permite. A descentralizaçãointra-organizacional em agências ou setores possibilitaganhos tais como: maior heterogeneidade e variabilidadena provisão de serviços; maiores possibilidades de gera-ção de inovações; e aprendizado organizacional devido àcompetição intra-organizacional entre unidades adminis-trativas. Neste último caso, a descentralização seria ummarket ou competition surrogate, ou seja, criaria, à seme-lhança do mercado, incentivos que promovem competi-

ção e eficiência alocativa (Israel, 1989). A descentraliza-ção no sentido amplo permite o surgimento de mecanis-mos de controle sobre o governo que não estão presentesno caso da descentralização intra-organizacional. A com-petição política funciona como um desses mecanismos decontrole, além de promover local policy entrepreneurship.

As vantagens da devolução e da promoção da autono-mia local, inclusive financeira, são apontadas pelo mo-delo do federalismo fiscal. Segundo este modelo norma-tivo das finanças públicas, cada tipo de bem público deveser provido pelo nível de governo que tiver maior vanta-gem comparativa em responder à diversidade de prefe-rências dos grupos da população. A provisão centraliza-da de um pacote uniforme de bens e serviços públicos paratoda a população poderia levar a uma oferta inferior ousuperior ao nível Pareto-eficiente, que expressasse as pre-ferências dos consumidores. Recentemente, surgiu naEuropa uma versão constitucional e administrativa dessateoria no debate em torno do princípio da subsidiariedadeque deve presidir as relações entre níveis de governo –inclusive num nível supranacional.

Do ponto de vista do financiamento, a teoria dofederalismo fiscal tem como pressuposto que os benspúblicos possuem incidência espacial delimitada, circuns-crevendo clientelas territorialmente definidas. Assim asegurança nacional tem impacto nacional, enquanto ailuminação pública tem impacto local. A incidência dataxação para o financiamento desses bens deveriacorresponder ao impacto territorial dos benefíciosproporcionados com a provisão dos bens (nos exemplosem pauta incidência nacional e local, respectivamente).3

A teoria do federalismo fiscal, portanto, justifica aexistência de um grande número de governos subnacionais,de forma a expressar adequadamente a variedade depreferências por bens públicos. Portanto, uma estruturagovernamental descentralizada minimizaria os riscos deos tipos ou quantum de bens públicos ofertados nãocorresponderem às preferências dos cidadãos ou ainda deos benefícios relativos por um grupo (jurisdição) seremarcados por outro grupo (jurisdição).4

Estes modelos teóricos oferecem uma justificativa con-ceitual e normativa para a superioridade alocativa de es-truturas descentralizadas. Na seção que se segue são ana-lisados os limites e constrangimentos à implantação dereformas descentralizantes, bem como os efeitos perver-sos que podem resultar de estratégias reformistas.

LIMITES E POSSIBILIDADES DADESCENTRALIZAÇÃO

Após uma década de experimentos descentralizantesem vários países e continentes, tornou-se possível reali-

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zar uma avaliação mais realista e sistemática da descen-tralização. Embora a maioria das contribuições sobre aquestão ainda tendam a enfatizar as virtudes da descen-tralização, muitos trabalhos recentes têm explorado oslimites e os efeitos não antecipados das estratégiasdescentralizantes. Alguns documentos analíticos das agên-cias multilaterais têm adotado um tom mais cauteloso emenos laudatório em relação a esse processo. Para o BancoInteramericano, por exemplo, em seu Relatório sobre oProgresso Sócio-Econômico na América Latina, “a ques-tão central é ... sob que condições a opção descentraliza-da acarreta uma melhoria na qualidade da governança econtribui para um gasto mais efetivo em bens públicoslocais como educação e saúde” (IDB, 1994:175-176).

Por sua vez, para o diretor de Assuntos Fiscais do FMI,Victor Tanzi, “a questão central da discussão não é refu-tar a conclusão que a descentralização pode trazer bene-fícios, mas identificar situações nas quais essa políticapode não trazer os resultados esperados a menos que mu-danças importantes sejam promovidas nas condições exis-tentes” (Tanzi, 1995:8, grifo do autor).

Mais recentemente, a literatura produzida pelas agên-cias multilaterais tem procurado identificar seqüênciasvirtuosas que poderiam explicar o sucesso de algumasexperiências. Assim, os processos de descentralizaçãoimplementados após programas de estabilização teriammais chances de ser exitosos.

Em síntese, a literatura tem destacado um conjunto deefeitos não antecipados e perversos da descentralizaçãonão só para o caso de países do Terceiro Mundo, mas tam-bém do Primeiro. Esses efeitos perversos são produzidosem virtude da ausência de certos pré-requisitos para acentralização e resultam de um conjunto de fatores apre-sentados a seguir:- burocracias locais de baixa qualificação. Na maioria dospaíses e especialmente na América Latina existe um hia-to muito largo entre a qualificação das burocracias cen-trais e locais (provinciais e municipais) (Haggard, 1995 eTanzi, 1995). Da mesma forma, existe um contraste mar-cado entre a qualificação dos burocratas da área fazendáriae de planejamento e os da área social. O argumento fre-qüentemente utilizado é que as transferências de funçõese atribuições da esfera federal para os níveis subnacio-nais significaram, em muitos casos, perda de eficiênciagerencial. Os efeitos da descentralização seriam perver-sos à medida que as burocracias locais não têm capacida-de institucional de prover adequadamente bens e servi-ços sociais;

- transferência de receitas públicas sem responsabilida-des de geração de receitas, o que rompe o vínculo entre obenefício (representado pela disponibilidade de recursospara gasto) e o custo (o ônus político e administrativo de

gerar receita). O argumento é que recursos de transferên-cias tendem a ser menos monitorados por atores locais doque aqueles resultantes da taxação no nível local. Por outrolado, as transferências de recursos, em muitos casos, teri-am ocorrido antes que se fortalecesse a capacidade fiscallocal. As próprias transferências passariam assim a seconstituir em desincentivo ao esforço fiscal local (efeitoreferido na literatura americana como o “flypaper effect”).Ademais, os governos locais se mostram incapazes de ar-car com o ônus político de gerar receita fiscal (IDB, 1994e Tanzi, 1995). Esse ponto, para o caso brasileiro, temsido objeto de grande controvérsia;5

- indefinição e ambigüidade quanto à definição de com-petências entre esferas de governo, devido à generaliza-ção de competências concorrentes (Almeida, 1995 eAghon, 1995). Tal indefinição tenderia a gerar inércia eparalisia institucional, uma vez que os mecanismos de res-ponsabilização tornar-se-iam inoperantes;

- perda de capacidade regulatória e de formulação de po-líticas por parte do governo central pelo desmonte de es-truturas setoriais centralizadas e relativamente insuladasda competição política. O argumento central é que taisestruturas constituem-se em loci de expertise e de memó-ria técnica em políticas públicas (Melo, 1993b e Almeida,1995) e dificilmente podem ser encontradas ou mesmoconstruídas no nível local.

- descentralização fiscal com transferência de impostosimportantes para o nível dos estados e províncias, o queminou a capacidade do Governo central de levar a cabopolíticas de estabilização e reformas fiscais. Incapacida-de de ajuste fiscal a nível local (através de bancos con-trolados pelos governos locais) devido aos incentivosexistentes (bail out pelos bancos centrais) para a indis-ciplina fiscal (IDB, 1994; Afonso, 1995 e Tanzi, 1995).Na literatura internacional os casos de endividamentomunicipal e provincial de maior visibilidade são o argen-tino (Idep, 1995) e o brasileiro. No caso brasileiro, no en-tanto, as relações entre processo de estabilização e des-centralização são bastante particulares devido à seqüênciados processos no Brasil, onde a descentralização prece-deu a estabilização (Afonso, 1996). Ademais, no planoda arrecadação, observa-se aumento da receita local e nãoredução. O que se nota, por outro lado, é que o processode estabilização acarretou um aumento sustentado da dí-vida mobiliária dos estados, convertendo-se, ele próprio,em fator de agravamento dessa dívida (Afonso, 1996);

- porosidade do governo local em relação a elites locais eprovinciais, acarretando maior corrupção e clientelismo.O risco de captura do Estado por elites locais também émuito grande. Tais fenômenos foram assinalados parapaíses distintos como França (Rosanvallon, 1993) e Bra-

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sil. A idéia de que decisões e controle social não são no-ções que se equivalem foi apontada por Rosanvallon.6 Osatores centrais nos processos de responsabilização políti-ca – como a imprensa, o Legislativo e Judiciário – são maisefetivos e independentes no nível nacional. A representa-ção de minorias também ocorre de forma mais efetivano plano nacional (sobretudo nos sistemas de voto pro-porcional);

- fragmentação institucional. Proliferação de municipali-dades ou entes administrativos no âmbito local (Almeida,1995). Esta tendência, segundo vários analistas, poderiaser observada com grande força no Brasil, como serádiscutido a seguir.

DESCENTRALIZAÇÃO E POLÍTICAS SOCIAISNO BRASIL PÓS-CONSTITUINTE

A descentralização constituiu-se numa peça central daagenda reformista da Nova República em virtude de doisdesenvolvimentos. Em primeiro lugar, a centralização ca-racterística do autoritarismo burocrático do regime mili-tar converteu a descentralização num princípio ordenadordas mudanças para os setores de esquerda. No caso espe-cífico da Nova República, também cumpriram um papeldestacado para certas elites intelectuais as experiênciasespanhola e francesa de descentralização, devido à fortevisibilidade política que alcançaram. Para a descentrali-zação da política de atenção à saúde – a política setorialemblemática desse processo –, o modelo compreendeu asreformas que ocorreram na Europa na década de 70.7 Poroutro lado, a descentralização constituía-se numa peçatambém importante do pensamento liberal de oposição aoregime. Na Nova República, as duas matrizes – a esquer-da e a direita – engendraram uma coalizão frouxamentearticulada, mas que logrou conferir um forte viés munici-palista não só à Constituição de 1988, como também àsdiversas propostas de políticas. O mais significativo a serdestacado aqui é que o denominador comum às duas po-sições é a visão de que a descentralização era um instru-mento eficiente de engenharia político-institucional dademocracia emergente (Silva, 1995).

Efeitos Perversos da Descentralização:Neolocalismo, Exclusão Social eDesorganização Institucional

A cultura política fortemente municipalista da décadados 80 produziu, como amplamente estudado, um ciclovirtuoso de inovações na gestão pública, sobretudo naesfera das políticas sociais. Importantes iniciativas ino-vadoras e democráticas surgiram em função da eleiçãode prefeitos da oposição em vários municípios. A ques-

tão da gestão municipal converteu-se num ponto centralda agenda democrática. A oportunidade da discussão pú-blica das Constituições estaduais e municipais (leis orgâ-nicas municipais) e dos planos diretores (que se tornaramobrigatórios após a Constituição) permitiu que fossemaglutinadas forças que haviam se fragmentado.

As grandes iniciativas nesse plano são os mecanismosinstitucionais criados para a participação popular, alémde novas práticas de gestão.8 Tais experiências adquiriramgrande visibilidade e colocaram em segundo plano naagenda pública os efeitos perversos que o neomuni-cipalismo – ou mais acertadamente o “neolocalismo” –produziu. Esse ponto, sobretudo a sua dimensão fiscal,tem sido bastante enfatizado nas discussões sobre oprocesso de estabilização. Observa-se, no quadro atual,forte polarização do debate.

O neolocalismo tem repercussões predatórias sobre acidadania social, ou seja, o hobbesianismo municipal, quese expressa, entre outras coisas, na disputa entre localida-des por investimentos industriais – deslegitimando as pri-oridades sociais em lugar de benefícios fiscais e isençõestributárias –, nas estratégias de exclusão e apartheid so-cial, em que mendigos são expulsos ou impedidos de en-trarem em municípios afluentes, etc. Pelos seus própriospressupostos, o neolocalismo consagra vantagens com-parativas locais e as reproduz ou potencializa. Além dis-so, converte todas as questões relativas à desigualdade econcentração de renda em questões ilegítimas: elas pas-sam a ser vistas como obstáculos ao progresso.9 Investi-mentos sociais compensatórios tendem a ser pensadoscomo custos e/ou desincentivos à localização de empre-sas, o que debilita sua viabilidade política. Por outro lado,tais incentivos enfraquecem as frágeis bases fiscais de taislocalidades, inviabilizando o financiamento de políticassociais. A geração de empregos no quadro de reestrutura-ção produtiva não tem compensado as perdas ocorridas.

Os Efeitos Perversos do Federalismo Fiscal

A agenda atual da discussão pública sobre a questãoda autonomia dos estados e municípios contrasta forte-mente com aquela que balizou as reformas de meados dadécada de 80 (Lobo, 1993). Com a nova Constituição, osgovernos locais aumentaram sua participação na receitafiscal significativamente. A participação dos municípiosna receita total disponível aumentou de 9,5% em 1980para 16,9% em 1992, enquanto para os estados elevou-sede 24,3% para 31,0%, no mesmo período. A receita tri-butária disponível (inclusive transferências) dos municí-pios passou de 2,5% em 1980 para 4,1% do PIB já em1990. Essa situação levou a União, num movimento de-fensivo, a criar impostos (na realidade impostos sob a

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forma de contribuições sociais) que não estão sujeitos apartilha com estados e municípios através dos Fundos deParticipação de Estados e Municípios (FPM e FPE) (Dain,1993 e 1994). A União vem tentando também criar me-canismos que rompam a rigidez orçamentária e permitama ampliação dos graus de liberdade no plano fiscal e tri-butário resultante das chamadas “vinculações” do orça-mento (recursos com destinação determinada). Desde1990, a União entrou em guerra não-declarada com as en-tidades subnacionais, visando ampliar seu espaço fiscal etributário.

A história contemporânea da política de estabilizaçãobrasileira tem sido permeada por tentativas de garantirmaior liberdade alocativa à União e coibir o gasto deestados e municípios. As tentativas de revisão cons-titucional (o chamado “Emendão” do Governo Collor), acriação do Fundo Social de Emergência e a revisãoconstitucional de 1993-94 são exemplos dessas iniciativas.Vale lembrar que, em geral, tais iniciativas malograramdevido às resistências do Congresso Nacional, sobretudodo Senado Federal. Atualmente, a disputa federativa nopaís atingiu um novo patamar e se expressa na bancarrotafiscal dos estados e de alguns municípios. O plano deestabilização iniciado no Governo Itamar Franco – e quetem tido continuidade no Governo Fernando HenriqueCardoso – tem implicado perdas significativas para estadose municípios (devido inter alia ao desaparecimento do“imposto inflacionário”). O Governo federal vem utili-zando o reescalonamento da dívida de estados e municí-pios como moeda de troca na aprovação de reformasconstitucionais.

Portanto, o issue destacado na agenda dos anos 90 – eem forte contraste com a década de 80 – constitui-se nosefeitos perversos, até mesmo perversos para alguns, dadescentralização fiscal brasileira. A revisão constitucio-nal em curso está claramente informada por uma estraté-gia global de recentralização, com base em supostos ex-cessos descentralizatórios ocorridos.

Tais efeitos perversos expressam-se de várias formas.Em primeiro lugar pela proliferação de municípios, poisa nova Constituição brasileira transferiu a responsabili-dade legal pela definição dos critérios de criação de no-vos municípios – que até era prerrogativa federal – parao âmbito estadual. Em seu artigo 18, inciso 4o, a Consti-tuição estabelece que as regras para a criação, a incorpo-ração, a fusão e o desmembramento de municípios serãoobjeto de lei estadual, e dependerão de consulta, median-te plebiscito, às populações diretamente interessadas. Oprocesso de emancipação de novos municípios adquiriuum ritmo desenfreado nos últimos anos. Até fevereiro de1995, cerca de 1.200 municípios haviam sido criados ecentenas de novos municípios estão sendo objeto de cria-

ção em todo o país. A questão adquiriu forte visibili-dade política no período recente sinalizada em pronun-ciamentos recorrentes dos ministros da Justiça e do Pla-nejamento em torno da necessidade do estabelecimentode medidas que contenham a proliferação dos novosmunicípios. A questão também foi objeto de projeto deemenda constitucional do Executivo em 1994 e de doisprojetos em tramitação de emenda constitucional deparlamentares. A multiplicação dos municípios no paísdeve merecer reflexão sistemática por duas ordens deconsideração: pelo impacto fiscal causado pela multi-plicação de estruturas administrativas e instâncias po-lítico-institucionais (secretarias municipais, câmaras devereadores, etc.) no âmbito local sem a contrapartidade geração de riquezas; e pela existência de um núme-ro extremamente elevado de unidades subnacionaissupostamente potencializaria as dificuldades de coor-denação federativa no país.

Esses dois argumentos, no entanto, devem ser rela-tivizados ao se considerar que, do ponto de vista com-parativo, o Brasil apresenta um número extremamentereduzido não só de municípios per capita, como tam-bém de representantes no Legislativo local (Nickson1995). Em relação à América Latina, observa-se fortediscrepância em relação à média no que se refere ape-nas às duas grandes metrópoles (Rio de Janeiro e SãoPaulo). Os dados, no entanto, não autorizam a conclu-são de que o número de cargos políticos é excessivo.Porém, em comparação à situação dos países desenvol-vidos, os dados para o Brasil revelam contrastes ex-cepcionais, em que o número de representantes no paísmostra-se extremamente baixo (Tabela 2) . A crítica,portanto, tem algum fundamento no caso de emancipa-ção de alguns tipos de distritos: os muito pobres e os dedimensão muito reduzida. Esse ponto exige minuciosolevantamento empírico para que generalizações maisamplas possam ser feitas.

TABELA 1

Criação de MunicípiosBrasil – 1940-1994

Décadas Total de Municípios Municípios Criados Crescimento (%)

1940 1.574 - -

1950 1.889 315 20,0

1960 2.760 877 46,4

1970 3.952 1.186 42,8

1980 3.974 22 0,5

1990 4.491 715 13,0

1994 4.974 483 10,7

Fonte: Fundação IBGE. Anuário Estatístico do Brasil 1995. Rio de Janeiro, 1996.

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Outro ponto que é objeto de forte controvérsia diz res-peito à questão do balanço entre encargos e atribuiçõesdos estados e municípios e à nova repartição da receitapública ocorrida. A crítica de que houve distribuição derecursos a essas entidades sem a contrapartida de novosencargos tem sido fortemente contestada por Affonso(1993) e Afonso (1993). A redução da participação daUnião no gasto social tem efetivamente levado os esta-dos e municípios a atuarem de forma a suplementar essalacuna. O problema da perda da qualidade do gasto, noentanto, permanece como uma questão aberta (Afonso,1996).

Outro efeito perverso decorrente da maior autonomiadesfrutada por estados refere-se à “guerra fiscal”, queadquiriu grande visibilidade recentemente (Azevedo eMelo, 1996; Piancastelli e Perobelli, 1996 e Negri Neto,1995). Com a Constituição de 1988, os estados passarama dispor de autonomia para fixar as bases dos impostosde competência estadual, notadamente um imposto sobrevalor adicionado (o ICMS). Nos últimos anos, os estadospassaram a praticar a renúncia fiscal em escala massiva,numa tentativa de atrair novos investimentos. A magni-tude dessa “renúncia fiscal” e o que ela representa comomecanismo diminuidor da carga tributária agregada, aimportância do ICMS (que representa quase um terço dareceita tributária do país), além da impossibilidade deformulação de uma política de desenvolvimento regionalpor parte do Governo federal apontam para a irraciona-lidade coletiva desse tipo de situação.

A SEGURIDADE SOCIAL E ADESCENTRALIZAÇÃO NO BRASIL

No Brasil, na segunda metade da década de 80, umaampla reestruturação da seguridade social teve lugar.Mudanças constitucionais em 1988 e programáticas en-tre 1987 e 1993 consagraram um projeto reformista am-bicioso para a área da saúde e previdência social. Nosprincipais textos legais que regulamentaram tardiamentea implementação do projeto reformista – as Leis Orgâni-cas da Saúde (1990), da Seguridade Social (1991) e a daAssistência Social (1993) –, o acesso universal à seguri-dade social e à saúde foi consagrado.

No entanto, o processo de implementação da descen-tralização da saúde, que foi deslanchado em 1987 com oSistema Único e Unificado de Saúde (Suds) – que com anova Constituição passa a ser denominado Sistema Úni-co de Saúde (SUS) –, foi tortuoso por várias razões. Aimplementação do SUS implicava uma transferência mas-siva de recursos humanos e instalações físicas da redepública a cargo do Governo federal e dos estados para aesfera municipal. O até então poderoso Instituto Nacio-

TABELA 2

Número de Vereadores, segundo Países Selecionados1989-1991

Número de Habitantes/Vereadores Vereadores

Brasil (1991)Recife 41 32.707São Paulo 53 181.640Porto Alegre 33 41.818Rio de Janeiro 42 130.331

Chile (1991)La Florida 10 39.125Vina del Mar 10 31.231Concepcion 10 31.154

México (1990)Guadalajara 20 81.431Nezahualcoyotl 20 62.977Ecapetec 20 60.962

Argentina (1989)Buenos Aires 60 48.347

Uruguai (1985)Montevidéu 31 40.210

França (1) ... 110

EUA (1) ... 490

Japão (1) ... 1.600

Inglaterra (1) ... 1.800

Fonte: Nickson (1995:65).(1) Os dados referem-se à década de 80.

O federalismo fiscal brasileiro também apresentou al-gumas patologias associadas supostamente à indisciplinafiscal de estados e municípios. Com efeito, o nível deendividamento de estados e municípios, que atingiu 15%do PIB, tem sido entendido como um impedimento im-portante para o programa de estabilização da economia.Afonso (1996) argumentou, com bastante perspicácia, queessa indisciplina fiscal é um mito. Na realidade, observa-se, no plano da arrecadação, aumento da receita local enão sua redução. Além disso, o aumento do endividamentode estados recentemente não tem origem fiscal, devendo-se ao crescimento das taxas de juros durante o Plano Real.

A capacidade de os governos estaduais se autofinan-ciarem através da compra de papéis do Tesouro Estadualpelos seus bancos públicos – ou visto de outra forma asdificuldades de controle dos bancos estaduais pelas auto-ridades monetárias – tem sido vista como um obstáculode grande monta para os programas de estabilização eco-nômica (Banco Mundial, 1996). No entanto, embora o usoclientelístico e político dos bancos seja um fato inegável,o agravamento da crise dos bancos também está associa-do ao processo de estabilização.

Países

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nal de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps)foi extinto e os recursos que comandava deveriam, segun-do o modelo, ser transferidos automaticamente para osmunicípios, segundo critérios de população e carências,e com a plena implementação do SUS, com base no perfilepidemiológico das comunidades. A gestão dos recursosdo SUS estaria a cargo de comissões tripartites locais,permitindo o controle social e a transparência das deci-sões de gasto.

Importa assinalar para os propósitos desse texto que oprojeto reformista passou a ser fortemente combatido, apartir, sobretudo, de 1991, como uma das fontes de ingo-vernabilidade crescente do país. As iniciativas de refor-ma no campo social, em particular da previdência social,que tiveram lugar nos últimos anos estão assentadas emum diagnóstico comum. Em linhas gerais este diagnósti-co aponta para os seguintes aspectos:- inconsistência entre o princípio de seguridade social e ode seguro que informam simultaneamente o capítulo so-cial da Constituição. Se propõe, portanto, que os benefí-cios que não tenham base contributiva – a renda mensalvitalícia e a saúde – sejam separados dos que tem um per-fil contributivo, conforme plano atuarial. Nesse sentido,preconiza-se uma especialização das fontes de financia-mento do sistema: as contribuições sobre a folha de salá-rio para as aposentadorias; e as contribuições sobre o lu-cro e o faturamento das empresas para a saúde e aassistência social. Propõe-se também a expansão dos pla-nos privados de saúde no modelo health maintenanceorganizations (HMO), de forma a segmentar as cliente-las dos sistemas público e privado, em que o primeiroestaria voltado para a população de baixa renda. A uni-versalização da cobertura e a equalização de benefíciosprevidenciários urbanos e rurais (estes sem base contri-butiva), permitindo a incorporação de cerca de 40 milhõesde indivíduos à medicina previdenciária, são amplamen-te citadas como fontes de desequilíbrio fiscal de propor-ções gigantescas;10

- propostas de restrições à “generosidade pública” na con-cessão de benefícios sociais (auxílio maternidade de 120dias, renda vitalícia de um salário mínimo, aposentadoriapor tempo de serviço, elegibilidades com tempo de con-tribuição exíguo, entre outros);

- na linha da redefinição de direitos sociais, busca-se a“desconstitucionalização” de matérias sociais, que pas-sariam a ser tratadas por lei ordinária, obtendo-se maiorflexibilidade no tratamento dos problemas afetos a essasáreas de intervenção;

- redução da carga tributária global e dos encargos so-ciais num tratamento unificado das questões do mercadode trabalho, da previdência social e da política tributária

e fiscal, tendo em vista processos em curso de reestrutu-ração produtiva.

A área da saúde foi a mais afetada no quadro da im-plementação do novo modelo de seguridade social. Con-testações no Judiciário sobre as contribuições previstasna Constituição (sobre o faturamento das empresas) le-varam à contestação por via judicial de valores corres-pondentes a mais de 2,0% do PIB (US$14 bilhões). Poroutro lado, esse problema foi exacerbado porque a carac-terística incomprimível das aposentadorias e pensões –pela sua natureza contratual – significou que a saúde foisendo fortemente marginalizada no gasto social federal.A efetiva implantação do SUS enfrentou grandes obstá-culos devido ao passo errático de desembolso – ou reten-ção de repasses pelo Tesouro.

A agenda da discussão pública em torno das questõesrelacionadas à descentralização da seguridade social en-volve fundamentalmente três pontos que são discutidos aseguir: a perda de qualidade do gasto social em virtudeda descentralização; ambigüidades na definição de atri-buições da seguridade social por nível de governo; e difi-culdades de compatibilização entre a estrutura federativae a transferência automática de recursos da seguridade paramunicípios.

Esses aspectos dizem respeito basicamente à saúde e àassistência social, uma vez que a área previdenciária é nasua quase totalidade centralizada. Registre-se, no entanto,que a Constituição de 1988 permitiu a criação de entidadesmunicipais de previdência social, o que levou à criação decerca de 1.300 entidades municipais de previdência –, a vastamaioria das quais sem bases atuariais. Na proposta de re-visão constitucional em tramitação no Congresso Nacio-nal, está proibida a criação dessas entidades. Os dadosescassos divulgados sobre essas entidades, revelam fortesdesequilíbrios atuariais e irregularidades administrativas.

Perda de Qualidade do Gasto Social

Com a nova Constituição de 1988, os governos locaisaumentaram significativamente sua participação na receitafiscal. Os municípios tiveram sua participação na receitatotal disponível aumentada de 9,5% em 1980 para 16,9%em 1992. Para os estados, estes valores correspondiam a24,3% e 31,0%, respectivamente. Essa expansão contras-ta fortemente com a reconhecida deterioração na quali-dade dos serviços sociais. A receita tributária disponível(inclusive transferências) dos municípios, que havia per-manecido estável na década de 80 em 2,5% do PIB, atin-giu 4,1% do PIB já em 1990. A expansão observada quantoao gasto local refere-se às despesas com pessoal, que atin-giram 6,8% do PIB em 1990 (enquanto este valor para oGoverno federal se reduziu). Os pontos controversos da

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discussão recente em torno do tema referem-se ao signi-ficado dessa expansão. Para analistas do Governo, no pla-no federal, ela revelaria o aumento do emprego públicode base clientelista e perda de qualidade do gasto públi-co. Argumenta-se, em contrário, que o crescimento dogasto em custeio e pessoal expressa, na realidade, a ex-pansão do papel dos municípios enquanto provedores deserviços sociais, em resposta à retirada da União. Affonso(1993), com base na expansão observada da formaçãobruta de capital fixo nos municípios, no período recente,também critica o argumento. Em síntese, a questão acer-ca de qual a qualidade do gasto municipal, para além danatureza da despesa, se custeio ou capital permanece semuma resposta conclusiva.

Após a aprovação da Lei Orgânica da Assistência So-cial em 1991, iniciou-se a um amplo processo de descen-tralização dos convênios de assistência social mantidospelo Governo federal (em particular por duas entidadesque foram extintas pelo governo Fernando Henrique Car-doso: a Fundação de Bem-Estar do Menor e a Legião Bra-sileira de Assistência). Os cerca de 8.000 convênios man-tidos por essas entidades apresentavam graves distorçõese irregularidades, sendo que sua descentralização apre-sentou-se como a solução (Brasil, 1996). Nesse sentido,à luz da experiência desses convênios, o questionamentosobre a perda da qualidade do gasto social local pareceestar perdendo credibilidade.

Ambigüidades na Definição de Atribuiçõesda Seguridade Social

Em larga medida, a estratégia do SUS, no Brasil, foiclaramente municipalista. Os estados, a despeito de suacentralidade no arranjo político-institucional brasileiro,não tiveram atribuições claramente definidas. A excep-cional heterogeneidade dos cerca de 5 mil municípios bra-sileiros, no plano socioeconômico e no que se refere àcapacidade de gestão das prefeituras quanto a recursoshumanos, infra-estrutura material, tamanho e renda, cons-titui-se num impedimento formidável para a implantaçãode um modelo único. Uma grande parcela desses municí-pios não tem condições de organizar isoladamente ou emconsórcios um sistema local de saúde, salvo com a inter-veniência dos estados.

Compatibilização entre a Estrutura Federativa e aTransferência Automática de Recursos

As dificuldades administrativas, informacionais e téc-nicas para a organização de distritos sanitários definidossegundo perfis epidemiológicos da população mostraram-se quase intransponíveis. A transferência automática de

recursos para os municípios é inconsistente com a distri-buição espacial da rede de saúde. As localidades cujoshabitantes se dirigem a estabelecimentos de saúde emmunicípios vizinhos recebem muitas vezes aportes de re-cursos no mesmo nível que estes últimos.

Embora circunscrita a alguns aspectos selecionados, adiscussão anterior sugere que a questão das relações en-tre estrutura federativa e políticas sociais é muito maiscomplexa do que é freqüentemente apresentado na mídiae nas propostas governamentais recentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A descentralização em curso em escala global, e maisparticularmente na América Latina e no Brasil, apresen-ta-se como uma idéia força importante e certamente cons-titui-se em processo irreversível. No entanto, decorridauma década de experiências descentralizantes, esse pro-cesso passa a ser visto com mais cautela. Essa mudançaocorre em virtude da visibilidade que vem ganhando al-guns efeitos perversos observados a partir de processosde descentralização. No caso brasileiro, observa-se sobre-tudo no plano fiscal e tributário uma forte tendência dereversão da descentralização alcançada. A agenda públi-ca hoje está fortemente polarizada em torno dos efeitosda descentralização – ao contrário do consenso ocorridona Nova República. A discussão também tornou-se ideo-logizada num claro esforço por parte do Governo centralde transferir os custos políticos do processo de descen-tralização para os estados e municípios. Os constrangi-mentos do jogo político e institucional democrático, noentanto, têm limitado fortemente as tentativas do Gover-no federal de efetuar mudanças em um sentido recen-tralizante. A experiência descentralizante num contextodemocrático tem permitido, no entanto, um processo deaprendizagem social em que seus limites e possibilidadespodem ser efetivamente compreendidos. A conjugaçãoentre reformas descentralizantes (que ocorrem em escalaglobal) e uma crise do pacto federativo confere ao casobrasileiro singularidades que tornam esse país um ricolaboratório de experiências político-institucionais.

NOTAS

Esse artigo foi escrito no âmbito do projeto Federalismo no Brasil, desenvolvidono Instituto de Economia do Setor Público da Fundap.

1. Numa análise das tendências descentralizantes, Ashford (1992) aponta tam-bém para uma dimensão tecnológica da questão, ou seja, o recurso a entes locaisse faz necessário como um imperativo organizacional e técnico: “na medida emque os welfare states se tornam mais avançados, é provável que eles também setornarão cada vez mais localizados. Enquanto as necessidades se tornam maisdiversificadas, os serviços se tornam cada vez mais especializados”. Ou seja,progressivamente se faz necessário uma personalização dos serviços sociais, quepor sua natureza demandam uma esfera de governo próxima ao usuário para a

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sua provisão. Essa explicação se aplica em larga medida aos casos dos países detradição social-democrata. A especificidade dos vários casos de descentraliza-ção dos welfare states exigiria uma análise fina que não pode ser feita aqui. Parauma discussão analiticamente sofisticada da relação estado/mercado, verPrzeworski (1995).

2. Com efeito, o welfare state pode ser adequadamente representado como uma gi-gantesca engrenagem de risk pooling e de transferências intergrupos. Vale assinalarque a viabilidade política destas transferências requereu historicamente a solidificaçãodos mecanismos de produção de identidades e solidariedades sociais (Melo, 1996).

3. No limite, o benefício marginal decorrente da provisão do bem deveria se igualarao seu custo marginal.

4. Os pressupostos sob as quais se assentam a teoria do federalismo fiscal sãofrágeis. Em primeiro lugar,as jurisdições territoriais existentes não são histori-camente criadas para refletir a incidência dos bens públicos. Em segundo lugar,estas jurisdições não podem ser modificadas ao longo do tempo para refletirmudanças na tecnologia de provisão dos bens públicos, ou no próprio tipo debem em questão (Tanzi, 1995). Uma variante clássica de um modelo de federa-lismo fiscal é aquela oferecida pelo conhecido modelo de Tiebout. Neste mode-lo, as preferências dos consumidores são reveladas pelo comportamento loca-cional dos consumidores de bens públicos entre localidades. Uma situação deótimo Paretiano é obtida quando os consumidores votando com seus pés esco-lhem localidades em que o mix benefício-taxas locais é maximizado.

5. Uma refutação bastante consistente desse argumento pode ser encontrada emAfonso (1996).

6. Rosanvallon (1993) argumenta de forma bastante arguta que “en décentralisanton augmente aussi la capacité d’interférences corporatistes et d’intérêts particuliersdans le champ de la décision”. E continua : “on s’aperçoit en outre qu’il ne faut pasconfondre à tout coup proximité et décentralisation. Un service public de l’Étatpeut être organisé de façon à être proche de l’usager. La proximité est aujourd’huiun enjeu centrale pour l’État comme pour les collectivités locales. Il faut bien serendre compte à ces propos qu’on ne peut plus assimiler les collectivités locales etla societé civile (ce que faisait de facto l’ideologie décentralisatrice en reduisanttoutes les questions à un grand affrontement entre ‘État et la societé civile).” Parauma discussão refinada deste ponto, ver Arretche (1996).

7. Cabe assinalar, de passagem, que malgrado a centralização, a ideologia munici-palista está fortemente enraizada no país e representava uma espécie de Leito deProcusto, no qual fórmulas políticas distintas – e não raro antinômicas – se aco-modavam (Melo, 1993c).

8. No caso brasileiro tais práticas e mecanismos têm sido analisados em muitostrabalhos. As mais citadas são: experiências de orçamento participativo introdu-zidas em algumas cidades – particularmente Porto Alegre; experiências de de-mocratização ampla da gestão (prefeitura nos bairros em Recife); práticas diver-sas em Icapuí (Ceará) e Janduís (Rio Grande do Norte); experiências novas degestão de áreas de favelas (Prezeis em Recife, etc.); experiências e práticas no-vas nas políticas públicas incluindo consórcios municipais, etc. em Santo André,Santos (São Paulo) (Figueiredo e Lamounier, 1996).

9. Como assinalou Peterson (1995), para o caso americano, estruturas muito des-centralizadas dificultam a implementação de programas redistributivos (cujavocação é eminentemente nacional) voltados para a redução de desigualdadesentre regiões e grupos sociais. Para este autor o federalismo acentuado nos Esta-dos Unidos constituiu-se num dos óbices mais relevantes para a implementaçãode um estado amplo de bem-estar social.

10. Dos 14 milhões de benefícios pagos pela previdência social em 1994, cercade 8 milhões têm caráter de seguro social e 6 milhões têm caráter assistencial.

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O

GOVERNABILIDADE E DESCENTRALIZAÇÃO

LADISLAU DOWBOR

Economista, Professor da PUC-SP. Autor do livro O que é Poder Local?

e com algumas outras medidas, poderiam ser economiza-dos uns 30% ou mais para aplicações mais amplas? E istosignifica dezenas de bilhões de dólares.

Porém, podemos também ir para um setor essencial-mente privado, como o dos bancos, e constataremos quea intermediação financeira nos custa cerca de 50 bilhõesde dólares por ano. Vamos clarificar isso: para estocar,gerir, aplicar os recursos de todos nós, os bancos têmcustos que incluem desde salários até computadores elucros dos banqueiros. É o custo da máquina que ultra-passa 50 bilhões de dólares, algo entre 12% e 15% do PIBdo país, mais do que o valor total da produção agrícolanacional. O banqueiro, para cobrir estes custos, cobra ju-ros, pagos pelas empresas que tomam empréstimos. Es-tas, por sua vez, incluem os custos financeiros ao calcu-lar o preço de venda dos seus produtos. Isto significa quea massa de consumidores do país paga, ao comprar qual-quer produto, os custos financeiros correspondentes, sus-tentando a gigantesca máquina de intermediação. Estes12% a 15% de "imposto" financeiro cobrados pelos ban-cos encarecem todos os produtos, reduzem a capacidadede investimentos do país e constituem uma gigantesca es-terilização de poupança. É um cálculo conservador esti-mar que 30 bilhões de dólares são desperdiçados anual-mente no Brasil por irracionalidades do sistema deintermediação financeira.3

Vamos tomar o exemplo dos transportes em São Pau-lo. São 4,3 milhões de automóveis particulares em circu-lação na cidade e qualquer motorista que se encontre narua num dia de chuva pode constatar o alcance da nossaincapacidade de gestão urbana: conseguimos nos parali-sar por excesso de meios de transporte. Se calcularmosque um carro vale em média 5 mil dólares, são 20 bilhões

Na prática, tanto o Estado como o mercado são freqüentemente dominados pelas mesmas estruturas

de poder. Isto sugere uma terceira opção pragmática:a de que o povo deveria guiar tanto o Estado como o

mercado, que precisam funcionar de maneira articulada, com o povo recuperando suficiente poderpara exercer uma influência mais efetiva sobre ambos.

Nações Unidas,Relatório sobre o Desenvolvimento Humano1

Brasil gasta mal. Só na área social gastam-se maisde 100 bilhões de dólares por ano, entre recursospúblicos e privados, e muita coisa pode ser feita

com recursos deste porte. A desproporção entre o que segasta e os resultados levou o Banco Mundial a realizaruma pesquisa no Brasil: "A proporção do PIB brasileirodestinada aos serviços sociais parece ser mais elevada doque a dos outros países em desenvolvimento de rendamédia. Em comparação com os mesmos países, os indi-cadores do bem-estar social no Brasil são surpreendente-mente inferiores".2

Não há dúvida de que temos recursos insuficientes, mastambém não há dúvida de que estes recursos encontram-se, antes de tudo, mal utilizados. Imaginar que se trata deuma característica do setor público é ilusão. Nas cifrascitadas anteriormente estão os gastos privados; e o estu-do do Banco Mundial constata, por exemplo, que no con-junto cerca de 80% dos gastos em saúde situam-se na áreada saúde curativa, o que é simplesmente absurdo. Quetécnico com experiência em planejamento social duvida-ria que, com prioridade à saúde preventiva, à educaçãobásica, à descentralização da gestão da seguridade social

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de dólares imobilizados. É claro que não estamos com-putando o valor do combustível, dos pneus que se gastame da sinalização das ruas, nem os custos dos hospitais. Sóo valor dos carros permitiria construir mais de 500km demetrô na cidade, resolvendo todos estes problemas. Masa nossa mão invisível é sábia: São Paulo tem apenas 40kmde metrô, sendo que o custo por quilômetro é duas vezese meia superior ao que custou a construção do metrô deMontreal, no Canadá, para dar um exemplo. Podemosfazer outro cálculo: a opção metrô em grande escala po-deria economizar, em média, meia hora do tempo de trans-porte do trabalhador paulistano, e estamos sendo come-didos. Cinco milhões de trabalhadores, a meia hora pordia, são 2,5 milhões de horas economizadas diariamente.Como a produtividade média da hora de trabalho do bra-sileiro é da ordem de 3 dólares, teríamos uma economiade 7,5 milhões de dólares por dia, ou 2,1 bilhões por ano,suficiente para construir por ano o dobro de toda a redede metrô da cidade. Entretanto, a opção é derrubar maiscasas na Avenida Faria Lima para conseguir mais espaçopara carros, abrir túneis para o Morumbi, enquanto o pro-jeto metrô surge em Brasília...

Outra área? Na área das infra-estruturas, em que asdecisões são dominantemente públicas, mas com influên-cia determinante das empreiteiras, acumulamos gastosgigantescos (a nossa dívida externa é hoje da ordem de120 bilhões de dólares) para desenvolver um programaatômico sem nenhum sentido, uma rodovia Transamazônicaentre o nada e o nada, uma ferrovia do aço que tem maistúneis e pontes do que trechos normais e uma central hi-drelétrica que arcou com todos os sobrecustos de quererser a maior do mundo. Só na central foram 18 bilhões dedólares, dinheiro suficiente para comprar bons estabeleci-mentos agrícolas para todos os sem terra do país.4 O estu-do do Banco Mundial sobre gestão de infra-estruturas nomundo mostra que o sistema utilizado, em geral, é o cha-mado BOT, pelo qual empresas privadas constroem(Build), por exemplo, uma estrada, depois operam(Operate) durante algum tempo para recuperar o investi-mento e realizar lucros e, finalmente, transferem a estra-da de volta ao setor público (Transfer). No nosso caso,construímos a estrada com dinheiro público e depois en-tregamos para empresas privadas para que cobrem pedá-gio (Banco Mundial, 1994).

Na área agrícola, tão importante e tão subestimada,temos no país 370 milhões de hectares de boa terra agrí-cola, lavramos anualmente cerca de 60 milhões e apre-sentamos um gigantesco desperdício de terra através doque tem sido chamado pudicamente de pecuária extensi-va (média nacional de 3 hectares por cabeça), enquantona realidade temos sólidos dois terços do nosso potencialem terras imobilizados como reserva de valor, com pro-

prietários que nem cultivam nem deixam cultivar. Isto semfalar das impressionantes estruturas de atravessadores queprovocam viagens absurdas dos produtos agrícolas entrediversas "praças", simplesmente para pagar pedágio co-mercial. Trata-se, aqui também, da área privada, e não doEstado. Em 1996, os produtores de tomate destruíram cai-xas de 30 quilos do produto por não conseguirem 3 reaispor caixa, que viabilizariam a produção. Na época, o qui-lo do tomate na feira estava a um real. Não se fala aqui demargens de 30% ou 40% para os atravessadores, o que jáseria muito, mas de margens da ordem de mais de 600%e de uma população que passa fome enquanto se destro-em alimentos.5

Na área dos recursos humanos, em números redondos,o Brasil tem uma população total da ordem de 160 mi-lhões de pessoas, das quais cerca de 100 milhões em ida-de ativa. Destas, cerca de 65 milhões constituem a popu-lação economicamente ativa, ou seja, que trabalha ou estáprocurando emprego, e cerca de 60 milhões trabalhamefetivamente, correspondendo à população ocupada. Bastaver, pelos números, que mantemos uma gigantesca subu-tilização dos recursos humanos, da ordem de dezenas demilhões de pessoas, isto em termos estritamente quanti-tativos, sem falar da imensa perda de produtividade re-presentada pelo fato de a metade da nossa mão-de-obrater completado, no máximo, até o quarto ano primário,formando uma gigantesca massa de analfabetos funcio-nais.6 Note-se bem que é o emprego que falta no país, enão o trabalho: continuamos com dezenas de milhões depessoas sem comida, enquanto a terra está parada; comum gigantesco déficit de habitações, que precisam serconstruídas; insuficiências dramáticas nas áreas de sane-amento, educação e em tantas outras. Quando, por um lado,há tanto trabalho por fazer no país e, por outro, tantas pes-soas paradas, o problema é claramente institucional, deorganização política e social.

Um último exemplo relativo às telecomunicações: parase obter uma linha telefônica no país, o custo médio é deUS$1.500 por linha, para usar uma cifra bem conserva-dora e do mercado oficial. O preço correspondente naArgentina é de US$182, no Canadá de US$31, naVenezuela de US$36 e em New York de US$136. Ao fi-xar um preço elevadíssimo para se adquirir uma linha, osistema exclui a ampla maioria da população, o que, emtermos de produtividade da Telebrás, é ótimo: a empresapassa a trabalhar apenas com clientes de renda média ealta, que usam interurbanos e outros serviços. Porém, emtermos de produtividade social, é uma catástrofe: paramarcar uma hora com um médico, ou para resolver qual-quer pequeno problema familiar, o habitante pobre dacidade de São Paulo perde, no mínimo, meio dia de tra-balho, ocupa desnecessariamente lugar num ônibus e em

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outros meios de transporte, transportando a si mesmoquando poderia transportar alguns impulsos por fio tele-fônico. Estima-se que a demanda reprimida em São Pau-lo é de 6,4 milhões de linhas telefônicas (3,4 milhões deconvencionais e 3 milhões de celulares).7 Segundo o BancoMundial (1992b:vii e 44) “a imposição de taxas de insta-lação extremamente elevadas serviu claramente para ex-cluir domicílios de baixa renda da obtenção de serviçostelefônicos, ainda que pudessem financiar a amortizaçãomensal equivalente.” Estes exemplos, tomados isolada-mente, levam a explicações parciais e a culpas fáceis.Tomados no seu conjunto, demonstram:- que os volumes desperdiçados são simplesmente gigan-tescos, da ordem dos 100 bilhões de dólares ou mais, oque representa um quarto do PIB anual. Em conseqüên-cia, nosso problema central não é levantar recursos no-vos, mas sim utilizar corretamente o que temos, inclusiverecursos físicos subutilizados, como o solo e, sobretudo,os recursos humanos;

- o problema não é de maneira nenhuma característico dosetor público, podendo ser constatado no conjunto da eco-nomia, permeando a cultura dos grandes grupos empre-sariais privados e criando uma situação global de baixaprodutividade social;

- como os diversos agentes econômicos, públicos ou pri-vados, não sofrem de uma perversão generalizada de que-rer o seu próprio mal, o problema resulta essencialmentede uma desordem institucional, que leva a uma culturaorganizacional centrada no curto prazo e no canibalismoeconômico;

- quando numerosos atores sociais buscam a vantagem acurto prazo e a qualquer custo, inviabilizando o processode desenvolvimento em seu conjunto, as soluções devemser buscadas na recuperação da governabilidade no seusentido mais amplo, nas dinâmicas institucionais do país.

Estas constatações, por óbvias que sejam, são impor-tantes para deixar claro que a racionalização institucio-nal faz parte de um processo mais amplo, ultrapassandoas simplificações da privatização. Por outro lado, mos-tram que a reorganização do contexto institucional donosso desenvolvimento e a recuperação da governabili-dade do país constituem um eixo de ação absolutamentevital. Não se trata, portanto, de organogramas, mas simda lógica do processo, da cultura político-administrativaherdada pela nação.

GERIR A MUDANÇA

É importante definir antes de tudo os grandes eixos demudança que atingem a sociedade neste fim de século eque definem os parâmetros das novas formas de gestão.8

A Revolução Tecnológica em Curso

As transformações mais significativas podem ser re-sumidas em alguns grandes eixos. A informática, que estárevolucionando todas as áreas – em particular as que li-dam com informação e conhecimento –, multiplicou suacapacidade por 100 em 10 anos. As telecomunicações, queconhecem uma revolução tecnológica ainda mais profundae dinâmica do que a da informática, estão tornando pos-sível e cada vez mais barato transmitir tudo – textos, ima-gens, som – em grandes volumes e com rapidez. Em 10anos, estima-se que a capacidade foi multiplicada por milnos setores mais tradicionais e por um milhão nas áreasque passaram para os sistemas óticos.9 As biotecnologiasainda não invadiram nosso cotidiano, mas deverão cons-tituir a principal força de transformação na agricultura,na indústria farmacêutica e em outros setores na próximadécada. As novas formas de energia, em particular o la-ser, permitem aplicações que estão se generalizando namedicina, no comércio, no setor de eletrodomésticos e emoutros. Finalmente, surge uma ampla gama de novos ma-teriais, que incluem as novas cerâmicas, os supercon-dutores, novas formas de plástico, etc., que, por sua vez,permitem novos avanços na eletrônica e na informática,nas telecomunicações e assim por diante.

Não há provavelmente nada de novo nesta enumera-ção para o leitor; o que é novo é este ritmo de transforma-ção. Basta lembrar que há uma estimativa de que nos últi-mos 20 anos dobraram nossos conhecimentos científicos,relativamente à totalidade de conhecimentos técnicos acu-mulados ao longo da história da humanidade.

Por precárias que sejam avaliações deste tipo, o fato éque estamos no meio de um gigantesco turbilhão de re-novação científica e isto deve ocupar um lugar central nasnossas reflexões sobre as formas de gestão econômica esocial. Acabou-se o tempo em que se geria uma realidaderelativamente estática. E gerir a mudança implica gerirum processo permanente de ajustes dos diversos segmen-tos da reprodução social, que poderíamos definir comogestão dinâmica.

A Globalização10

O processo de globalização ou internacionalização doespaço mundial resulta, em grande parte, dos avanços tec-nológicos mencionados. Basta dizer que se transferemhoje, diariamente, mais de 1 trilhão de dólares entre di-versos países, por meios eletrônicos, para ver a que pon-to a terra se transformou na "aldeia global".11 Hoje ve-mos as mesmas imagens na TV, compramos os mesmoscarros, lemos os mesmos artigos – ou quase – em qual-quer lugar do mundo.

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O movimento centrado na Qualidade e Produtividadeincide em todos os espaços econômicos do mundo, e nin-guém pode se permitir ignorar seu impacto.

Uma implicação evidente para todos nós é que já nãohá espaços para "ilhas" culturais ou econômicas, para"Albânias" com experiências isoladas. Temos que fazerfrente à internacionalização, dado objetivo que indepen-de dos nossos gostos, e dimensionar nossas propostas emfunção desta realidade. Variações de cotação na bolsa decereais de Chicago provocam rápidas mudanças de com-portamento de agentes econômicos de qualquer municí-pio, por distante que seja. A maior parte dos países, acomeçar pelos Estados Unidos, estão empreendendo es-forços amplos de modernização administrativa. Atrasosnesta área são hoje mortais para a produtividade compa-rada dos países.

Por outro lado, é o conjunto da referência espacial dodesenvolvimento que hoje encontra-se deslocada, com aredução do papel dos governos nacionais, reforço dos"blocos" e do espaço supranacional em geral e um novopapel das cidades na gestão descentralizada da socieda-de.12

A Urbanização

Os fenômenos demográficos são discretos porque osprocessos regulares de mudança, que envolvem algunspoucos percentuais ao ano, não chamam nossa atenção.Porém, a realidade é que, em meio século, nossas socie-dades deixaram de ser rurais para se tornarem urbanas, eum país não é mais uma capital onde se tomam decisões,cercado por massas rurais dispersas. Estamos apenas co-meçando a avaliar o gigantesco impacto social e políticodesta transformação. Basta lembrar que hoje no Brasilquase 80% da população vive em cidades, invertendo asproporções do início dos anos 50.

Uma implicação imediata desta nova realidade é quenão precisamos mais de um Estado tão centralizado, jáque a população que vive em núcleos urbanos pode re-solver localmente grande parte dos seus problemas.

Esta nova realidade é que levou os países desenvolvi-dos a adotar uma estrutura de Estado profundamente di-ferente da nossa, com ampla participação dos governoslocais.

Isso significa, em outro nível, que já não podemosnos deixar acuar pela eterna dicotomia entre privatizare estatizar, uma vez que adquire peso fundamental, emtermos de perspectivas, o espaço público comunitário,refletindo a evolução da democracia representativa parasistemas descentralizados e participativos, a chamadademocracia participativa. Voltaremos mais adiante aesta questão central.

As Polarizações

A polarização entre ricos e pobres atinge neste fim deséculo uma profundidade e um ritmo desconhecidos emeras anteriores. Os dados do Relatório sobre o Desenvol-vimento Mundial de 1992, do Banco Mundial, indicamque éramos, em 1990, 5,3 bilhões de habitantes, para umPIB mundial de 22 trilhões de dólares, o que significa4.200 dólares de bens e serviços por ano e por habitante:o planeta já produz amplamente o suficiente para uma vidadigna para toda a população mundial. No entanto, 16 tri-lhões destes recursos (72%) ficam com 800 milhões dehabitantes dos países do "Norte", que representam 15%da população mundial. O efeito prático é que o nosso pla-neta tem 3 bilhões de pessoas com uma renda média de350 dólares por ano e por pessoa, menos de metade dosalário mínimo brasileiro. O cidadão do "Norte" dispõe,em média, de 60 vezes mais recursos do que os 3 bilhõesde pobres do planeta, ainda que, seguramente, não tenha60 vezes mais filhos para educar. É fácil entender comoesta diferença, já catastrófica, se aprofunda: em 1990, porexemplo, a renda per capita dos pobres aumentou 2,4%,ou seja, 8 dólares, enquanto a dos ricos cresceu de 1,6%,ou seja, 338 dólares. A população dos ricos tem um au-mento de 4 milhões de habitantes por ano, enquanto a dospobres, de 59 milhões (Banco Mundial, 1992a:196).

Temos de encarar com frieza estas cifras. O impactosobre o mundo da educação, por exemplo, é imediato. Osgastos mundiais em educação em 1988 foram de 1.024bilhões de dólares, cerca de 5,5% do produto mundial. Ospaíses desenvolvidos gastaram 898 bilhões destes recur-sos, enquanto os países subdesenvolvidos se limitaram a126 bilhões. Como a população dos países subdesenvol-vidos ultrapassa 4 bilhões de habitantes, o resultado práticoé que, em 1988, o gasto médio anual por aluno foi de 2.888dólares nos países ricos e de 129 dólares nos países subde-senvolvidos, ou seja, 22 vezes menos, quando quem tem querecuperar o atraso somos nós (Unesco, 1992:36 e 40).

Em outros termos, a busca da produtividade social eda gestão mais racional dos nossos parcos recursos não éum luxo. Para os países do Terceiro Mundo, é uma con-dição vital para o desenvolvimento. Por outro lado, a po-larização interna criou duas sociedades no país. As cifrasaqui são dramáticas: 1% das famílias mais ricas do paísdispõem de 17% da renda, cerca de 68 bilhões de dóla-res, algo como 45.000 dólares por ano por membro dafamília. Enquanto isso, os 50% mais pobres, 75 milhõesde pessoas, sobrevivem com 12% da renda, algo como640 dólares, 70 vezes menos que os mais ricos na médiae com um nível absoluto da ordem de 50 dólares por mês.Só a mais completa cegueira social pode explicar a tran-qüilidade com a qual as classes dirigentes do país limi-

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tam-se a contratar mais policiais, quando o Brasil já atin-giu o primeiro lugar no mundo em injustiça social. NoRio de Janeiro, são assassinadas, diariamente, 21 pessoase em São Paulo esse número chega a cerca de 25. Os 400automóveis roubados por dia em São Paulo representamuma fila de 2km de veículos que têm de ser guardados,transformados, documentados e revendidos, o que impli-ca uma indústria envolvendo esferas policiais, adminis-trativas, bancárias, além da própria criminalidade. Em1993, os vigilantes, guardas e policiais militares ultrapas-savam 160 mil só no Estado de São Paulo, custando-nos,para atividades improdutivas, mais de um bilhão de dóla-res, para não falar de outras implicações.13

Formas patológicas de desenvolvimento econômicolevam a mecanismos perversos de sobrevivência e nãopodemos voltar as costas para esta evidência. A reinser-ção digna das massas oprimidas deste país constitui umobjetivo central de qualquer reforma realista da forma degovernarmos. Não se pode gerir uma nação como se fos-sem dois países.

Vimos anteriormente a mudança profunda do contextoda administração. A mudança tecnológica impõe uma ges-tão dinâmica que redimensiona em permanência os seus es-paços; a globalização exige uma interação muito mais ágilcom o resto do mundo; a urbanização abre perspectivas parauma reformulação global do funcionamento na forma comoa sociedade se governa; enquanto as polarizações econômi-cas nos colocam em situação de desigualdade em termosinternacionais e em situações explosivas em termos inter-nos.

A FUNÇÃO DO ESTADO

Com a força natural que possuem os lugares comuns,generalizou-se a visão de que a dimensão institucionaldesta modernização se resume em privatizar. "A privati-zação não é uma panacéia", adverte o próprio BancoMundial, instituição insuspeita de "Estatismo" (Tabela 1).

Constatamos a forte progressão global da participaçãodo Estado, particularmente na fase mais recente, apesarde todos os discursos em contrário. A progressão é muitoforte, inclusive nos Estados Unidos, depois de cinco anosde governo Reagan, e no Reino Unido, numa fase que in-clui quase 10 anos de governo de Margareth Thatcher.Em termos de ordem de grandeza, nos países desenvolvi-dos o governo administra hoje a metade do produto so-cial. Os dados mais recentes do Labor Department dosEstados Unidos mostram o rápido crescimento do núme-ro de funcionários públicos nos últimos anos, ainda quehaja um forte deslocamento do peso principal do nívelfederal de governo (cerca de 3 milhões de funcionáriosem 1994) para o nível local (cerca de 16 milhões)(Business Week, 1995:31).14

Apresentar este quadro é importante, na medida em seg-mentos significativos da sociedade passaram a raciocinarem termos de um "Estado pequeno e eficiente", justifi-cando na realidade um processo caótico de privatizações,engavetando a questão essencial de como e a quem serveo Estado. A realidade com a qual temos de trabalhar paraenfrentar os processos de mudança que vimos anterior-mente é a de um Estado amplo, mas que tem de passar afuncionar de forma diferente. É o conjunto dos espaçosdiferenciados do desenvolvimento que têm de ser repen-sados em sua dimensão institucional.

Se as sociedades desenvolvidas se modernizaram defato (mesmo quando não no discurso), reforçando o Es-tado, e os dados acima não deixam dúvidas a respeito, oeixo principal de ação não consiste em cortar segmentosda administração pública, mas em buscar um melhor fun-cionamento e com outras finalidades. A uma pessoa gor-da que se move mal não se corta a perna para que fiquemais leve: busca-se melhorar seu modo de vida. No nos-so caso, trata-se de buscar soluções institucionais maisflexíveis e sobretudo mais democráticas.15

Em termos da eficiência global com que a sociedadegere seus recursos, um diretor da ENA (Ecole Nationaled'Administration) de Paris tirava das cifras citadas ante-riormente uma lição simples: se o Estado nas sociedadesmodernas gere cerca de metade do produto social, racio-nalizar suas atividades constitui a maneira mais eficaz dese elevar a produtividade do conjunto da sociedade.

ESTADO DO SÉCULO XIX,PROBLEMAS DO SÉCULO XXI

É importante levar em conta que somos um país deurbanização tardia. Ademais, não se trata, como foi o casoem grande parte nos países desenvolvidos, de uma urba-nização por atração dos empregos gerados nas cidades,mas sim por expulsão do campo. Nosso mundo rural foi

TABELA 1

Participação dos Gastos do Governo no PIB ou PNBPaíses Industrializados – 1880-1985

Em porcentagem

Anos Alemanha EUA França Japão Suécia ReinoUnido

1880 10 8 15 11 6 10

1929 31 10 19 19 8 24

1960 32 28 35 18 31 32

1985 47 37 52 33 65 48

Fonte: Banco Mundial. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1991. Washington, 1991.

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atravessado por uma poderosa corrente modernizadora,que implantou a monocultura e a mecanização, reduzin-do drasticamente o emprego, e por outra corrente pro-fundamente conservadora, que transformou o solo agrí-cola em reserva de valor, que os proprietários não usam enem deixam usar. Sem emprego no campo, ou quandomuito com emprego sazonal característico da monocul-tura, e sem alternativa de acesso à terra, a população foiliteralmente expulsa para as cidades, originando perife-rias miseráveis, com bairros que tiveram freqüentementetaxas de crescimento superiores a 10% ao ano. Este pro-cesso de expulsão é hoje agravado pelo impacto das no-vas tecnologias sobre a indústria e os serviços urbanos,que se vêem obrigados a reduzir a mão-de-obra empre-gada, deixando para estes dois terços da população brasi-leira a alternativa do setor informal, do desemprego, dosserviços domésticos, da segurança dos mais variados ti-pos e de outras atividades em que se sabe cada vez menosquem está cuidando de quem.

Esta situação implica o surgimento de milhões de pe-quenos dramas locais no conjunto do país, problemas gra-ves de habitação, saúde, poluição, necessidades adicio-nais de escolas, organização de sistemas de abastecimento,programas especiais para pobreza crítica, elaboração deprojetos de saneamento básico e assim por diante.16

Desse modo, os municípios se vêem na linha de frentede uma situação explosiva que exige intervenções ágeisem áreas que extrapolam as tradicionais rotinas de cos-mética urbana, já que se trata de amplos projetos de infra-estruturas, de políticas sociais e de programas de empre-go, envolvendo inclusive estratégias locais de dinamizaçãodas atividades econômicas.

Os municípios situam-se na linha de frente dos pro-blemas, mas no último escalão da administração pública.O deslocamento generalizado dos problemas para a esfe-ra local, enquanto as estruturas político-administrativascontinuam centralizadas, criou um tipo de impotênciainstitucional, que dificulta dramaticamente qualquer mo-dernização da gestão local, enquanto favorece o tradicio-nal caciquismo articulado com relações fisiológicas nosescalões superiores.

Na Suécia, conforme vimos, o Estado gere dois terçosdo produto social. Porém, o trabalho de Agne Gustafssonsobre governo local na Suécia mostra que o governo geremuito pouco no nível central. O país tem 9 milhões dehabitantes, dos quais cerca de 4,5 milhões ativos, sendoque destes 1,2 milhão são funcionários públicos de mu-nicípios e condados. Ou seja, cerca de um trabalhadorem cada quatro é funcionário local. O resultado prático éque o governo central na Suécia se contenta com 28% dosrecursos públicos do país, enquanto as estruturas locaisde gestão, que permitem participação muito mais direta

do cidadão, controlam cerca de 72%. Esta cifra corres-ponde a 5% na Costa Rica, 4% no Panamá e prováveis13% no Brasil.

Quando um país era constituído por uma capital e maisalgumas cidades, rodeadas por uma massa dispersa decamponeses, era natural que todas as decisões significa-tivas e, sobretudo, o controle dos financiamentos passas-sem pelo nível central de governo. Com o processo deurbanização, os problemas deslocaram-se, mas não o sis-tema de decisão correspondente. Assim, o que temos hojeé um conjunto de problemas modernos e uma máquinade governo característica das necessidades institucionaisda primeira metade do século.

UM NOVO PARADIGMA DE ESTADO

Uma das vantagens que resulta da desestruturação dosregimes de partido único é o deslocamento da atenção paraas formas práticas de se democratizar o Estado realmenteexistente, sem esperar a grande alternativa.

Não há muitas novidades no que tange à forma básicade estruturação dos poderes em torno do Executivo, Le-gislativo e Judiciário. No entanto, há indiscutivelmenteuma compreensão diferente das formas como a socieda-de civil se organiza para assegurar a sustentação políticado conjunto.

Estamos acostumados a ver o funcionamento do Esta-do embasado na organização partidária. Este eixo políti-co-partidário de organização da sociedade em torno dosseus interesses veiculou, em geral, as posições dos gran-des grupos econômicos, da burguesia.17 Nos países doLeste Europeu, com a agravante da opção pelo partidoúnico, ficou mais patente ainda que este eixo não é sufi-ciente para sustentar um poder democrático.

O desenvolvimento dos sindicatos, instância de nego-ciação do acesso ao produto social, fortaleceu outro eixode organização: o sindical-trabalhista, baseado no espa-ço de organização que constitui a empresa e centrado naredistribuição mais justa do produto social. Quando ana-lisamos países caracteristicamente social-democráticos,constatamos que eles souberam desenvolver este segun-do eixo, criando sistemas mais democráticos. Em termospráticos, não há dúvida de que o fato de os agricultores,metalúrgicos, bancários e outros segmentos estarem soli-damente organizados permite que a sociedade se demo-cratize e que negociações de cúpula características dospartidos encontrem um contrapeso democrático nos di-versos interesses profissionais organizados. Passamosassim da democracia marcadamente burguesa para a so-cial-democracia.

A organização dos interesses profissionais foi semdúvida facilitada pelo fato de os trabalhadores terem pas-

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sado a trabalhar agrupados no espaço empresarial, conhe-cendo-se e constatando o que têm em comum. Tambémnão é surpreendente que as grandes empresas apresentemem geral organizações de classe mais sólidas. Podemosestender o mesmo raciocínio para os impactos do proces-so moderno de urbanização. É bom lembrar que a histó-ria da humanidade é essencialmente rural, que a forma-ção de grandes espaços empresariais data de pouco maisde um século e que a urbanização generalizada é aindamais recente. A idéia que queremos trazer aqui é que umasociedade, quando deixa de constituir um tecido descon-tínuo de trabalhadores rurais e passa a viver numa pirâ-mide complexa de vilas e cidades, começa naturalmentea se organizar em torno dos "espaços locais", do local deresidência, do que John Friedmann chamou de "life space",ou espaço de vida.

O impacto político da formação deste terceiro eixo deorganização da sociedade em torno dos seus interesses –o eixo comunitário – marca a evolução de uma sociedadegovernada por "representantes" para um sistema no quala participação direta do cidadão adquire um peso muitomais importante.

O cidadão sueco participa hoje, em média, de quatroorganizações comunitárias. Participa da gestão da esco-la, do seu bairro, de decisões do seu município, de gru-pos culturais, etc. A descentralização dos recursos públi-cos constitui assim um processo articulado com umaevolução do funcionamento do Estado: quando 72% dosrecursos financeiros do governo têm a decisão sobre seuuso formulada no nível local de poder, as pessoas partici-pam efetivamente, pois não vão numa reunião política parabater palmas para um candidato, mas sim para decidir ondeficará a escola, que tipos de centros de saúde serão cria-dos, como será utilizado o solo da cidade e assim pordiante.

Não se trata, naturalmente, de reduzir a sociedade ao"espaço local", na linha poética de um "small isbeautiful" generalizado. Trata-se, isto sim, de enten-der a evolução das formas de organização política quedão sustento ao Estado: a modernidade exige, além dospartidos, sindicatos organizados em torno dos seus in-teresses e comunidades organizadas para gerir o nossodia-a-dia. Este "tripé" de sustentação da gestão dos in-teresses públicos, que pode ser caracterizado como"democracia participativa", é indiscutivelmente maisfirme do que o equilíbrio precário centrado apenas empartidos políticos.18

Em outros termos, estamos assistindo a um proces-so amplo de deslocamento dos espaços de administra-ção pública e, portanto, devemos repensar de formageral a hierarquia de decisões que concernem ao nossodesenvolvimento.

ESTILOS DE GOVERNO

As simplificações que consistem em gerir o espaçopúblico como se fosse uma empresa privada não têm muitosentido, uma vez que o cliente da área pública, a popula-ção, é proprietário legítimo da empresa. A administraçãopública tem de ser, por definição, democrática.

No entanto, é essencial hoje conhecer o que está acon-tecendo na administração empresarial e utilizar as expe-riências positivas que possam melhorar o desempenho daadministração pública. Tal como a administração públi-ca, a área empresarial defronta-se com um universo emmudança, envolvendo maior diversidade e maior comple-xidade no ambiente externo. Em termos empresariais, istoimplica sistemas de gestão muito mais flexíveis, com gran-de agilidade para se adaptar a situações novas, o que, porsua vez, exige muito mais autonomia dos diferentes sub-sistemas da empresa, circulação muito mais ampla dasinformações e redução do leque de hierarquias.

Em termos simplificados, gerir a mudança de formaágil implica uma descentralização ampla das decisões. Paraevitar a desarticulação e a falta de coordenação que adescentralização pode gerar, a empresa passa a trabalharem "times" identificados com os objetivos globais, crian-do uma dinâmica participativa. Uma empresa moderna jánão pode trabalhar com a divisão tradicional entre a ge-rência que conhece e ordena e o peão que executa.

Porém, as empresas trabalham também inseridas numtecido econômico muito mais interativo. Como trabalharem sistema "just in time", por exemplo, com níveis deestoques de algumas horas, se a empresa não está articu-lada de forma muito precisa com os seus fornecedores?Na prática, o que ocorre é a gradual substituição do merca-do por um sistema articulado de dependências interempre-sariais, criando um contexto novo de organização da pro-dução.

A tendência vai no sentido de um sistema complexode relações horizontais entre empresas e segmentos em-presariais, as "redes interempresariais", em que unidadesformalmente independentes fazem parte de um tecidoeconômico complexo, articuladas através de acordos tec-nológicos, propriedade cruzada de ações, financiamentosconjuntos, etc.19

O gigantesco potencial que este tipo de transformaçõesrepresenta na área da administração pública é estudadoem detalhe, por exemplo, em Friedmann (1992) e emOsborne e Gaebler (1992), trabalhos que estudam inclu-sive experiências práticas das novas tendências adminis-trativas nas mais variadas áreas.

Trata-se evidentemente de repassar muito mais recur-sos públicos para o âmbito local, mas trata-se também dedeixar a sociedade gerir-se de forma mais flexível segun-

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dústria e as atividades portuárias –, constituindo hoje umgigantesco cogumelo demográfico sem a base econômi-ca correspondente. Bem antes da atual implosão social,que torna qualquer alternativa difícil, a cidade devia rea-lizar os investimentos de longo prazo e mobilização so-cial para se tornar grande capital turística, preparandoassim um eixo econômico de desenvolvimento de maislongo prazo. Não podemos mais continuar com adminis-trações locais que se limitam à cosmética urbana e a al-gumas atividades sociais;

- organização dos atores sociais: a concepção de que ascâmaras de vereadores, que representam o aspecto políti-co de alguns segmentos da sociedade local, podem repre-sentar efetivamente os interesses complexos e em plenatransformação dos principais atores sociais do municípioé demasiado estreita. As administrações locais devem criarforos de elaboração de consensos em torno dos proble-mas-chave do desenvolvimento, incluindo nestes forosrepresentações das empresas, dos sindicatos, das organi-zações comunitárias, das organizações não-governamen-tais, das instituições de pesquisa, dos diversos níveis deadministração pública presentes no município, de formaa assegurar que a gestão se torne mais participativa. Osexemplos bem-sucedidos de administrações locais mos-tram, antes de tudo, uma grande capacidade de "engenhariasocial", no sentido de elaborar sistemas flexíveis de par-cerias nos mais diversos níveis;

- enfoque da inovação: neste fim de século, que apresen-ta transformações tecnológicas profundas, com inovaçõesinformáticas que permitem modernizar e dar transparên-cia à administração, com a telemática que possibilita aomunícipe o acesso instantâneo a dados de gestão referen-tes à sua cidade, com as fotos de satélite digitalizadas quepermitem o seguimento da situação ambiental, com no-vas tecnologias de reciclagem de resíduos sólidos oubiodegradação de esgotos, com novos enfoques organi-zacionais mais horizontais e flexíveis, as administraçõesdevem perder o medo de inovar, ou ainda de introduzirsoluções em caráter experimental, deixando a própriasociedade pronunciar-se sobre o acerto de determinadasinovações;

- enfoque de eixos críticos de ação: além das rotinas se-toriais, que asseguram a gestão dos serviços básicos, éimportante que as administrações locais trabalhem a de-finição dos eixos críticos de ação que permitam desenca-dear uma mobilização da sociedade em torno dos seus inte-resses de médio e longo prazos. Ações "desencadeadoras"deste tipo podem ser vistas em Santos, com a recupera-ção da balneabilidade das praias, que vem mobilizando oconjunto da sociedade em torno da modernização do tu-rismo e da economia local; ou, em Penápolis, o programa

do as características de cada município. O novo estilopassa, portanto, pela criação de mecanismos participati-vos simplificados e muito mais diretos dos atores-chavedo município, empresários, sindicatos, organizações co-munitárias, instituições científicas e de informação e ou-tros. Passa também pela criação de mecanismos de co-municação mais ágeis com a população, porque umasociedade tem de estar bem informada para poder parti-cipar. Passa pela flexibilização dos mecanismos financei-ros, com menos regras e fiscais e mais controle direto decomitês e conselhos da comunidade interessada. Passa pelaampliação do espaço de interesse da prefeitura, que de-verá ultrapassar as preocupações com a cosmética urba-na e algumas áreas sociais, para se tornar o catalisadordas forças econômicas e sociais da região. Passa, final-mente, pela organização de redes horizontais de coorde-nação e cooperação entre municípios, tanto no plano ge-ral como, sobretudo, em torno de programas setoriais.

Assim, mais do que discutir simplesmente a privatiza-ção, torna-se necessário ampliar o debate, na linha daexcelente formulação do estudo Ipea/Ibam (1993b:12). "Aquestão da privatização deve ser compreendida num sen-tido mais amplo, qual seja, no papel do poder público localem mobilizar os agentes da sociedade civil local – priva-dos e comunitários – como um caminho para nova articu-lação Estado e sociedade. Por essa abordagem, democra-tização e privatização em serviços a nível local setransformam em vertentes básicas para a descentraliza-ção e municipalização".

Resumindo, os principais pontos que poderiam carac-terizar os enfoques propostos são os seguintes:- o princípio da descentralização: na dúvida, ou salvonecessidades claramente definidas de que as decisõespertençam a escalões superiores na pirâmide da adminis-tração, estas devem ser tomadas no nível mais próximopossível da população interessada. Referimo-nos aqui àcapacidade real de decisão, com descentralização dos en-cargos, atribuição de recursos e flexibilidade de aplica-ção. Este princípio da "proximidade" vale tanto para aadministração pública como para autarquias e o setor pri-vado. Não se trata de dotar as administrações centrais de"dedos mais longos", com a criação de representações lo-cais, mas sim de deixar as administrações locais geriremefetivamente as atividades;

- papel mobilizador da administração local: independen-temente das atribuições próprias nas áreas dos serviçosbásicos, como limpeza urbana e serviços sociais, a admi-nistração local tem de assumir um papel catalisador dasforças sociais em torno dos grandes objetivos de médio elongo prazos da comunidade. Para dar um exemplo, o Riode Janeiro perdeu espaço em três eixos-chave da sua so-brevivência econômica – a administração federal, a in-

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de saúde que resultou em forte estruturação local dosmunicípios em torno dos seus interesses; ou ainda emCuritiba, com o programa ambiental, que teve um grandepoder de agregação dos principais atores sociais da cida-de em torno da modernização urbana em geral;

- enfoque dos recursos subutilizados: se temos no país370 milhões de hectares de terras agrícolas, mas lavra-mos anualmente não mais que 60 milhões, em que pesemas culturas permanentes e as necessidades da pecuária,conhecemos uma impressionante subutilização do solo,que se manifesta município por município. Conceito tra-balhado por Ignacy Sachs e hoje desenvolvido pelo Ban-co Mundial, o enfoque da subutilização de recursos, im-plicando o esforço sistemático de identificação dosrecursos naturais, humanos e de capital, que poderiam sermelhor mobilizados em nível local, constitui um eixo detrabalho essencial para numerosas administrações;

- enfoque da pesquisa do potencial local: a mobilizaçãodos recursos subutilizados e a racionalização geral dasatividades locais implicam um esforço sistemático deestudos e organização do conhecimento sobre o potencialexistente, enfocando o ciclo completo de atividades queasseguram o desenvolvimento econômico e social. Trata-se de ordenar o conhecimento das atividades de produção,dos serviços de intermediação comercial e financeira, cujaorganização racional assegura vantagens indiscutíveis àeconomia local, das infra-estruturas econômicas, que gerameconomias externas (transportes, telecomunicações, energiae água), das infra-estruturas sociais – como saúde, educação,cultura, comunicação e lazer –, que permitem o investi-mento adequado no homem e na qualidade de vida,constituindo hoje provavelmente o investimento maisprodutivo que possa ser realizado, e da própria capacidadede gestão de desenvolvimento, identificando os pontos deestrangulamento, as áreas de inércia administrativa e assimpor diante. A sólida organização do conhecimento dacomunidade sobre si mesma pode ser uma alavancapoderosa para o desenvolvimento e é uma das maissubestimadas;

- trabalhar a matriz de decisões: já é tempo de ultrapas-sarmos simplificações em torno da dicotomia estatização/planejamento versus privatização/mercado. Para dar umexemplo, a educação constitui hoje um sistema comple-xo e diversificado de espaços do conhecimento, como: aformação nas empresas, hoje em pleno desenvolvimentoe que exige parcerias entre o setor público e o privado; aformação em tecnologias emergentes, como cursos deinformática, de qualidade total, etc., que assumem gran-de importância com a dinâmica atual de inovação e exi-gem flexibilidade na aplicação, podendo-se organizarparcerias entre universidade e setor privado; a formação

comunitária, particularmente visando a reintegração debairros pobres, que solicitam hoje apoio de formação emauto-organização, tecnologias alternativas, cursos paratrabalho doméstico ou reinserção no mercado de traba-lho e outros, constituindo uma alavanca fundamental do"ensinar a pescar" e que representam hoje um espaço pri-vilegiado de parcerias da administração municipal comorganizações comunitárias, ONGs e programas de âmbi-to nacional, como a campanha de combate à fome e ou-tros; a criação de meios locais de comunicação, seguindoa tendência moderna que hoje envolve televisões locais eoutros meios modernos de articulação comunicação/edu-cação, exige parcerias que envolvem o município com asfaculdades, escolas e agentes de comunicação; a própriaeducação formal, que foge hoje do modelo centralizado,devendo basear-se cada vez mais na gestão participativadas comunidades, na linha, por exemplo, do sistema jáimplantado na cidade de São Paulo na gestão de PauloFreire na Secretaria da Educação. Na realidade, tanto aeducação como as outras áreas de desenvolvimento exi-gem a articulação flexível das áreas pública, privada e co-munitária e dos três níveis de administração pública;

- enfoque da gestão intergovernamental: cruzam-se hojeno espaço do município esferas administrativas de diver-sos níveis, cada uma reportando-se ao seu âmbito cen-tral. É freqüente que 30% a 40% dos funcionários públi-cos de um município pertençam a outras instâncias degoverno, sem que o prefeito tenha sequer condições deconhecer o que as agências programaram para o municí-pio e sem que estas mesmas agências se coordenem entresi. A racionalização da gestão intergovernamental, sob acoordenação da autoridade efetivamente eleita pela po-pulação local, que é o prefeito, é essencial, pois não érealista esperar que decisões tomadas em instâncias inde-pendentes e de diferentes níveis de governo formem es-pontaneamente programas coerentes no âmbito local. Comisso, perdem-se as sinergias possíveis entre, por exem-plo, programas de infra-estruturas de saneamento básicocom educação ambiental e programas locais de saúde, alémde desestimular a participação da comunidade local, trans-formada em espectadora de burocracias que não a con-sultam;

- recentrar as atividades nos objetivos humanos: o Rela-tório sobre o Desenvolvimento Humano de 1992 colocaclaramente o problema: "É possível que os mercados im-pressionem do ponto de vista econômico e tecnológico.No entanto, são de pouco valor se não servem para me-lhorar o desenvolvimento humano. Os mercados consti-tuem meios. O desenvolvimento humano é o fim" (PNUD,1992). Por óbvio que possa parecer, é preciso lembrar ain-da que toda a nossa atividade profissional, as atividadesadministrativas e os esforços das comunidades não repre-

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sentam nada se não se traduzem em última instância emqualidade de vida, harmonia social, riqueza de convívio,no que tem sido às vezes qualificado de Felicidade Inter-na Bruta, em oposição ao PIB. Não é mais possível resu-mir o desenvolvimento a fatores econômicos e tecnológi-cos, ficando as empresas livres de fazerem o que bementendem, esperando-se que o interesse humano seja con-templado por ações compensatórias da administraçãopública, com coleta de lixo, policiamento repressivo eassistência social. A organização das parcerias sociaisna gestão do nosso desenvolvimento implica justamenteque todos os atores sociais busquem na gestão compar-tilhada, e desde o início das ações, o objetivo humanomaior;20

- a visão da sustentabilidade: demasiadas regiões hoje têmo seu turismo e atividades econômicas comprometidas poruma contabilidade que não contempla os custos ambien-tais, várias regiões têm seus solos esgotados pela mono-cultura predatória, muitas comunidades vivem um cli-ma de fome, doença e insegurança. O município deCubatão é um exemplo destes absurdos, com uma in-dústria dependente do bombeamento dos esgotos do rioTietê, enfrentando hoje a escolha absurda entre o de-semprego e a poluição da Baixada. Entre a "ecochatice"e o "anarcocapitalismo", existe amplo espaço de açãocoordenada e planejada, envolvendo o conjunto dosatores da comunidade local em torno dos interesses delongo prazo;

- enfoque da comunicação e da informação: a informa-ção, a cultura, a educação, a mídia e as diversas formasde acesso ao conhecimento constituem um eixo essencialde recuperação da democracia. Não se pode esperar par-ticipação efetiva por parte de uma população à qual sevedou o acesso aos instrumentos – educação, informação– correspondentes. Em outros termos, o conjunto das áreasque formam os novos espaços do conhecimento devemassumir, numa gestão moderna, um papel essencial, tra-duzindo-se em programas ativos e dinâmicos, com osmeios correspondentes.

Visamos, neste artigo, desdobrar algumas implicaçõesmais amplas das propostas simplificadas da privatização.A modernidade não se conquista com passes de mágica.Implica uma visão política, de que participar na constru-ção do seu espaço de vida, mais do que receber presentesdas "autoridades", constitui uma condição essencial dacidadania. Implica uma visão institucional, menos cen-trada nas "pirâmides" de autoridade e mais aberta para acolaboração, as redes, os espaços de elaboração de con-sensos e os processos horizontais de interação. Implica,finalmente, uma visão centrada no homem, na qualidadede vida, na felicidade do cotidiano e um pouco menos nas

taxas imediatas de retorno. Estamos vivendo uma profundarevolução tecnológica. Por um lado, este avanço nos abrenovos instrumentos de modernização, se formos capazesde orientá-lo. Por outro lado, é inviável a manutenção dapresente desordem política, quando o ser humano dispõede tecnologias de impacto planetário, de moto-serras,agrotóxicos, armas atômicas, capacidade de manipulaçãogenética, química fina para produção de drogas letais emfundos de quintal, navios pesqueiros capazes de limpar abiomassa de gigantescas regiões marítimas, impériosde mídia capazes de atingir os nossos filhos dentro danossa casa. Sem um sólido reforço da nossa capacida-de de organização social, é o próprio planeta que setorna inviável.

Em outros termos, o ser humano, que demonstrouuma impressionante capacidade técnica, e uma igual-mente impressionante incapacidade de convívio civi-lizado, precisa buscar no espaço local organizado olastro político que lhe permita recuperar as rédeas doseu desenvolvimento.

NOTAS

Versão atualizada e ampliada do artigo com o mesmo nome publicado na Revis-ta do Serviço Público, Enap, Brasília, 1994.

1. Ver: UNDP (1993:4).

2. Banco Mundial (1988:ii). O Banco Mundial calcula os gastos com a área so-cial no Brasil em cerca de 25% do PIB, o que significaria 100 bilhões de dólarespara um PIB de 400 bilhões.

3. Ver o excelente artigo de capa da Veja, de 11 de agosto de 1993, Caixa Altana Terra da Inflação, bem como o estudo do caderno especial da Folha de S.Paulo,de 26 de agosto de 1993, intitulado O Sistema Financeiro Mergulha nos Lucros.Os custos da máquina de intermediação financeira têm oscilado em torno dos10% do PIB. Com a drástica redução da inflação, os bancos perderam uma fonteimportante de lucros, mas a recuperaram com a elevação da taxa de juros e avenda dos serviços. Em 1996, os juros reais brasileiros são cerca de 7 vezes maio-res do que os dos países desenvolvidos. As tarifas cobradas dos clientes por ser-viços diversos custaram 6,5 bilhões de reais em 1995, cifra que deve aumentarcom a liberação das tarifas em agosto de 1996. Os lucros do primeiro semes-tre de 1996 aumentaram na faixa de 50% a 60% para uma série de grandesbancos, relativamente a igual período de 1995. Isto não impede os banquei-ros de ameaçar o governo com o caos financeiro de uma eventual quebradei-ra, choro que lhes valeu subvenções situadas na casa de dezenas de bilhõesde reais. Estas subvenções aumentam a dívida interna e obrigam o governo amanter juros altos para empurrar os seus títulos, o que por sua vez melhoraainda a rentabilidade dos bancos. A “ciranda” financeira nunca esteve tãoanimada.

4. Existiam na época várias alternativas para a construção de hidrelétricasde porte médio, acompanhando assim o aumento da demanda de energia deforma gradual.

5. Ver IBGE (1993:143) para dados do potencial dos solos. Para os dados do usoagrícola do solo, ver IBGE (1990:292). (A partir desse ano o IBGE interrompeua publicação da informação básica sobre a estrutura agrária). Os 50.000 grandesestabelecimentos agrícolas do país, que controlam 44% do solo, cultivam emmédia 5% da área dos seus estabelecimentos, enquanto os pequenos proprietá-rios cultivam 65%. A destruição das caixas de tomate e os dados corresponden-tes foram apresentados em vários jornais de televisão.

6. Para o debate desta situação, ver Dowbor (1991) e IBGE (1993:27l; 359 esegs.).

7. Os dados referentes a São Paulo são de Morais (1996).

8. Os cinco pontos apresentados a seguir, referentes a explosão tecnológica, glo-balização, polarização entre ricos e pobres, urbanização e mudança do peso do

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Estado, foram por nós estudados em detalhe em vários outros trabalhos, sendoaqui reapresentados porque fazem também parte essencial do novo referencialda governabilidade.

9. Os dados referentes à informática e telecomunicações são do relatório Pace(Programme for Advanced Communications in Europe) da OCDE.

10. Ver Dowbor (1995).

11. Dados da Business Week; ver também o interessante estudo de Kurtzmann(1993), que mostra como os governos e Bancos Centrais estão totalmente ultra-passados pela mundialização dos fluxos financeiros, enquanto a legislação e osinstrumentos de regulação continuam sendo de âmbito nacional.

12. Ver a este respeito o artigo precursor de Friedmann (1986); ver também osestudos de Samir Amin sobre esta grande contradição do fim de século: a econo-mia se mundializou enquanto os instrumentos de regulação continuam sendonacionais, e portanto cada vez menos operantes. O estudo do deslocamento dosespaços do desenvolvimento não se presta a simplificações: uma cidade comoShanghai hoje prepara ativamente a sua inserção no espaço mundial, onde gran-des centros urbanos terão papel mais forte, enquanto minorias culturais freqüen-temente encontram mais condições para florescer no espaço global do que noespaço cultural mais homogêneo de uma nação.

13. É interessante o estudo de Teixeira (1995), que estima que os gastos das em-presas brasileiras com segurança atingem algo da ordem de 28 bilhões de dólares.

14. O artigo ressalta que a distância entre o firme discurso de redução do Estado eos resultados continua ampla (“Indeed, the gulf between bold downsizing talk andresults remains wide”). Dados da OCDE na Business Week de 9 de outubro de1995 mostram que o emprego público como porcentagem do emprego total é de24,6% na França, 16,5% na Grã-Bretanha, 16,1% na Itália, e 14,5% nos EstadosUnidos, para dar alguns exemplos. No Brasil a cifra deve ser da ordem de 10%.

15. Ver Osborne e Gaebler (1994). Este estudo está causando uma pequena re-volução nos Estados Unidos, em particular porque mostra que o problema não secoloca em termos de privatizar/estatizar, mas sim de forma bem mais ampla, deuma nova hierarquia de decisões, envolvendo, entre outros, a dimensão do espa-ço público-comunitário.

16. Um exemplo da área de saneamento: "A população beneficiada com serviço deesgotamento sanitário no Brasil, em 1989, pelo sistema Planasa, era constituída de28,8 milhões de pessoas, ou seja, 20,6% da população urbana. Segundo pesqui-sa do IBGE, em 1989, 2.092 municípios brasileiros, correspondentes a 47,2%,possuíam rede coletora de esgotos e, desse total, cerca de 350, isto é, 8%, pos-suíam algum tipo de tratamento. Em apenas 51 municípios existia estação detratamento. O dado mais alarmante, todavia, é que 45,4% dos domicílios brasi-leiros não possuíam rede coletora ou fossa séptica" (Ipea/Ibam, 1993a:37, citan-do estudo de Edgard Bastos de Souza).

17. Adam Smith, em A Riqueza das Nações já atentava para este desequilíbrio,constatando que pela facilidade de sua organização, as áreas empresariais ad-quiriam peso desproporcional nas decisões políticas. No caso brasileiro, pelomenos cinco setores econômicos dispõem de poderosas estruturas permanentesde intervenção nos partidos e no próprio aparelho estatal: as empreiteiras, osgrandes bancos, os grandes proprietários rurais e usineiros, os grandes gruposda mídia e as montadoras do setor automobilístico.

18. Na realidade, desponta com força um quarto eixo, cada dia mais importantepara uma forma madura de sustento do Estado: a descentralização e democrati-zação dos meios de comunicação. Com partidos múltiplos, sindicatos represen-tativos, fortes organizações comunitárias e uma mídia democratizada, teremosbases institucionais razoáveis para uma gestão política equilibrada.

19. Um excelente estudo destas tendências pode ser encontrado em Gerlach (1992).Ao analisar as redes interempresariais ("intercoporate networks") que se constitu-

íram no Japão e, em menor escala, nos Estados Unidos, o autor conclui que o am-biente de funcionamento da empresa moderna deslocou-se "do mundo anônimo damão invisível" para "as esferas concretas do planejamento e da coordenação".

20. A área empresarial brasileira tem, de forma geral, pouca cultura de parceriae é bastante avessa às formas modernas de trabalho baseadas no que o Centrodas Nações Unidas para Empresas Transnacionais (UNCTC) qualifica de"collaborative arrangements". No entanto, surge já uma forte corrente moderni-zadora, na linha do PNBE e outros, que aponta novos rumos.

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PODER LOCAL, DESCENTRALIZAÇÃOE DEMOCRATIZAÇÃO

um encontro difícil

EDISON NUNES

Professor do Departamento de Política da PUC-SP, Editor da revista Margem

Um poderoso consenso em torno de descentrali-zar e desconcentrar os Estados está formado.Contudo, os participantes deste acordo nem sem-

pre concordam quanto aos fins pretendidos e, curioso,falam de descentralização apenas em relação a processosem que há também, concomitantemente, centralização ere-centralização.1 A pretensão deste artigo é provocar umpequeno ruído neste consenso: é com ele, e não com adescentralização em si, que se põe em desacordo. Suapreocupação central é tematizar as relações de poder e asdificuldades do aprofundamento da democratização nomundo contemporâneo.

O PODER LOCAL NA TEORIADO ESTADO MODERNO

O papel das unidades subnacionais como parte da or-dem política tem sido sistematicamente subestimado. Asconseqüências disto se fazem sentir na enorme Babel queconstituem os escritos sobre municípios e regiões e, so-bretudo, na facilidade com que a maioria dos analistas –teóricos e práticos – aceitam como verdades os refrões damoda. E o presente está povoado de slogans convergen-tes, ditados pelo desespero de uma esquerda sem pers-pectivas e pela euforia – se não irracional, de má-fé – deuma direita neoliberal que já se depara com “as duras ré-plicas da história”. A valorização do poder local e da des-centralização é o problemático consenso atual.

As dificuldades do tema são, todavia, enormes e estãoassociadas às formas de fazer e analisar a política consti-tutiva da modernidade, quando esta, por seu lado, produzdissonâncias e incongruências de vasta latitude, em umtempo em que transformações globais se impõem às cons-

ciências. Este é um tempo de ousar, em que o pensamen-to deve acertar as contas com sua própria instituição e opensador aceitar o risco do abandono do Caminho Suaveda ortodoxia em voga.

A incompreensão básica decorre diretamente do nãolugar das unidades subnacionais, em particular do muni-cípio ou comuna, no pensamento político moderno. Estaciência, cuja paternidade é freqüentemente atribuída aMaquiavel, surge precisamente nos albores do EstadoModerno, respondendo à necessidade de refletir na ques-tão prática da construção de um poder soberano capaz dedominar um vasto território e imperar sobre um povo.Nesse diapasão, os poderes locais são naturalmente vis-tos como inimigos, já que a soberania significa a reuniãode toda a potestas – sempre um atributo popular – nafigura do Estado nacional. Este poder reunido e incontras-tável é, por sua vez, condição do império de lei isonômicoe, conseqüentemente, do sistema de cidadania baseado naliberdade negativa dos modernos. Assim, a racionaliza-ção necessária da associação política moderna implica asoberania popular, ao menos como fonte primeira de le-gitimidade, e encarna a promessa de que, por seu inter-médio, o particular não oprimirá nem obrigará o particu-lar pelo uso do seu poder privado.2

A construção do Estado Moderno implicou uma lutapermanente para a despotencialização dos poderosos lo-cais, liberando os indivíduos das dominações tradicionais,vistas agora como privadas, e submetendo-os apenas e,igualmente de forma ideal, ao poder público. Note-se quea imensa maioria das explicações do movimento políticodas sociedades latino-americanas neste século chamam aatenção precisamente para a passagem de uma sociedadeoligárquica, fundada no domínio que a propriedade da terra

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confere, para uma sociedade massiva, com o fortalecimen-to das estruturas do poder estatal. O processo de subsunçãodos poderes locais apresenta, inclusive, exemplos relati-vamente recentes em estados bastante consolidados. ACampanha dos Direitos Civis nos Estados Unidos dos anos50 e 60 é bastante eloqüente: nela a Federação empregaseu poder, inclusive manu militari, contra as autoridadese sociedades locais racistas. Mais recentemente, tem-se a“ação afirmativa”, que visa resultados semelhantes poroutros meios. Da mesma forma devem ser entendidos pro-jetos como os de “renda mínima”, inclusive no Brasil,voltados ao combate de formas abjetas de exploração, comoo trabalho infantil. Nesses casos, o Estado intervém alte-rando a correlação de forças entre indivíduos da socieda-de local através da atribuição de recursos de poder.

A “teoria do Estado” não se limita a figurar os podereslocais como inimigos. Eles aparecem também como cons-tituídos por uma natureza diferente, membros de outraordem que se quer ou pretérita, ou subordinada. Isto querdizer que a luta pela construção da soberania é vista comoum jogo de soma zero. Assim, a imagem teoricamenteconstelada do Estado exclui a tematização do poder localenquanto poder político: é um atavismo condenado a de-saparecer com o advento da modernização. O seu lugar éo lado negativo das dicotomias herdadas da RevoluçãoFrancesa: particularismos, relações pessoais; domínio tra-dicional, comunidade; folclore, etc.

Se as teorias do Estado não constituem lugares parapensar as unidades subnacionais – e mesmo os federalis-tas norte-americanos não fogem à regra, posto que seuinteresse maior é fundar a necessidade da União –as teo-rias do governo representativo apresentam um lugar su-bordinado para os municípios, mais freqüentemente comoníveis meramente administrativos. É o que se lê claramenteem Stuart Mill que defende, como os conservadores bra-sileiros, centralização política com descentralização ad-ministrativa. Tal conjunção, fundada na utilidade, teria omérito de aliar a coerência governamental a uma maioreficiência e focalização dos atos administrativos. Assim,a única tarefa claramente política das unidades subnacio-nais é a composição dos distritos eleitorais, sendo que osmandatários oriundos destes devem orientar-se pela for-mação do governo nacional.

Mesmo Tocqueville, provavelmente o mais entusiastadefensor do papel político do município na materializa-ção da soberania popular, dentre os igualmente defenso-res da república representativa, não escapa à tentação deminorar seu alcance teórico. Em primeiro lugar, porque a“liberdade comunal” desenvolve-se no seio de uma co-munidade “semibárbara”, escapando “por assim dizer aoesforço do homem”. Ela é antitética à civilização e talvezpossa ser mantida se incorporada às leis e aos costumes,

somente o tempo dando-lhe solidez. Por outro lado, podeser facilmente destruída. Em segundo lugar, e mais im-portante, Tocqueville reconhece nos Estados Unidos umextremo grau de centralização política, já que “a legislaturade cada Estado não tem diante de si poder algum capazde lhe opor resistência”. Assim, a comuna de A Demo-cracia na América é um caso raro e extremado de des-centralização administrativa sob a centralização políticados Estados, convergindo com os desejos de Stuart Mill.

A visão tocquevilleana da comuna, mesmo apresenta-da como subordinada, é bastante sugestiva para a análisedos municípios no contexto de uma república representa-tiva, em pelo menos dois pontos. O primeiro diz respeitoà formação do cidadão ativo que conhece os mecanismosdo governo por seu intermédio. Trata-se, então, da metá-fora da escola primária da liberdade, contrapeso pode-roso ao individualismo da sociedade democrática ou, comose diz contemporaneamente, de massas. Esse argumentotem sido retomado com alguma freqüência, algumas ve-zes com explícito reconhecimento da origem. O segundoargumento refere-se a uma debilidade congênita da cen-tralização administrativa: se ela pode reunir todas as for-ças da nação num dado momento e num dado projeto, elaentrava a reprodução dessas forças. Esta idéia é um coro-lário de sua concepção de soberania popular e remete aofato de que a liberdade comunal fornece um consentimentoativo da cidadania, construindo força pública.

Como pode-se ver, o poder local comparece, de formageral, na teoria política moderna, – ou como um poderprivado atávico ou como esfera meramente administrati-va. Esse corpus teórico, por isso mesmo, deixa de consi-derar importantes conseqüências da necessária territo-rialização do poder político. Carece-se, portanto, de umateoria capaz de explicar, no plano do Estado, a “irrigaçãodos efeitos de poder por todo o corpo social, até mesmoem suas menores partículas”.3 De uma teoria que ilumineo papel das práticas políticas locais na construção da or-dem.

Um efeito desastroso dessas matrizes analíticas podeser observado, nos dias atuais, nas dificuldades de trata-mento do “clientelismo”. Note-se, primeiramente, que amaioria dos estudos de caso sobre poder local constatamsua existência, e não apenas em países pobres ou em de-senvolvimento. Esta recorrência deveria conduzir à sus-peita de que se está diante de um fenômeno, se não cons-titutivo do governo representativo em geral, ao menos deformas específicas deste. Mas essas constatações empíri-cas teimam com assustadora freqüência em empregar oadvérbio “ainda”, conotando estranheza com o tempopresente. Frases como “o clientelismo permanecerá ain-da por um bom tempo...” são bastante comuns na litera-tura, querendo dizer que, apesar dos incontáveis atesta-

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dos de óbito, passados sempre por especialistas compe-tentes, o finado ainda respira... e influencia decisões.4

Não sendo representado pela imagem do Estado (mes-mo porque o clientelismo é apresentação e não represen-tação), o fenômeno torna-se teoricamente invisível, comopertence a outra ordem: quem olha um não vê o outro. Eo clientelismo só é notado no caso particular ou apenasde soslaio nos estudos de maior grau de generalização. Adificuldade teórica encontra-se, então, com um imperati-vo metodológico: só pode ser generalizado o que é legíti-mo para a teoria e, portanto, a observação concreta e aprática sensível dos atores – por definição particulares –tornam-se irrelevantes como fonte de explicações gerais.

Não deixa de ser curioso que apenas nas vertentes crí-ticas da teoria política e do Estado, desgraçadamente hojeem desuso, se possa encontrar a afirmação de um papelessencial das unidades subnacionais na construção da li-berdade, um embrião de teoria da capilaridade do poderenquanto dimensão analítica do Estado, bem como umprojeto normativamente orientado. Trata-se do “federa-lismo”, esboçado por Proudhon e que recebe forma maisacabada em Bakunine, que predica um complexo institu-cional baseado na autonomia comunal (Bakunine, 1975:219-223). Esta forma de organização política orienta-separa a dissolução do aparato repressor do Estado – todoEstado é máquina de repressão e poder de classe organi-zado nessa tradição – na sociedade. Tal ponto de vistateórico é o único que apresenta uma real consubs-tancialidade entre descentralização política e administra-tiva e liberdade, mas interessa assinalar que ela só sematerializa na recusa das soluções republicanas ao pro-blema do poder.

DUAS FIGURAS DA DESCENTRALIZAÇÃO

Pelo que foi visto, deve-se descartar duas imagens pa-ralelas bastante difundidas nos discursos sobre poder lo-cal. A primeira sustenta que por ser “mais próximo” docidadão, o poder local é mais factível de ser democratiza-do e de servir de palco a uma maior participação.5 Os maisradicais argumentam, inclusive, que o município é a rea-lidade onde o povo vive, enquanto o poder central meraabstração. Aparece aqui uma confusão entre diversas or-dens de problemas: – primeiramente, o município não énem mais nem menos abstrato que os demais níveis degoverno. O que acontece mais freqüentemente é que suaspautas, geralmente administrativas, são mais concretasapenas no sentido em que são mais facilmente compreen-didas pela maioria da população, através da vivência co-tidiana do meio urbano, que os problemas políticos sub-metidos a escrutínio em outras esferas de poder. Pode-seargumentar, na melhor das hipóteses seguindo Tocque-

ville, que este é um bom estágio para os estudos primári-os, mas que eles necessariamente prosseguirão em outraparte; – reduz-se a submissão política a influência exer-cida diretamente sobre uma esfera de governo, de resto amais particularizada. Ocorre que, como se vive tambémem um estado (ou região), em um país e no planeta si-multaneamente, a real democratização depende, cada vezmais, das decisões mais universais. Nas teorias do gover-no representativo, a função de canalizar capilarmente aparticipação em esferas mais abrangentes cabe em primei-ro lugar aos partidos políticos e, secundariamente, a ou-tras macro instituições. Na vida prática, também movi-mentos de opinião e organizações não-governamentaisdesempenham o papel de articuladores de interesses eorganizadores de demandas, capazes de estimular a par-ticipação; – finalmente, a proximidade do poder é no mí-nimo ambígua, pois é também o lugar da reprodução dopoder discricionário das oligarquias.

A segunda imagem que se deve deletar, bastante ade-rente à anterior, apresenta a descentralização e a demo-cracia como partícipes da mesma substância. Essa ima-gem, apresentada por Jordi Borja, encontra-se bastantedifundida entre estudiosos latino-americanos e apresentao mérito de certa sofisticação teórica e muita precauçãocom a crítica. Sua validade limita-se à atual situação decrise econômica e do Estado e a relação entre os dois ter-mos respalda-se na cômoda frase “hoje parece serconsubstancial... (Borja, 1989:70)”. Borja lembra tambémque nem sempre foi assim, rememorando o papel da cen-tralização política para o desenvolvimento da democrati-zação, concluindo que “el planteamiento moderno de ladescentralización tiende a integrar los benefícios del cen-tralismo y a superar las tendencias autárquicas delautonomismo tradicional”(p.92). Como o alcance da teo-ria pretende abranger apenas a fase mais contemporâneado desenvolvimento do Estado Moderno, sua crítica deve-se concentrar nas possibilidades presentes de integrar osbenefícios da centralização, bem como na superação dastendências autárquicas tradicionais. Trata-se de uma ques-tão histórica.

O momento presente marca, de fato, uma ruptura comos padrões políticos da modernidade. Infelizmente, numadireção pouco desejada pela maioria. Simultaneamente àelaboração da teoria do Estado, apresentada acima de for-ma muito resumida, o poder político real lança-se nummovimento de afirmação de um desenvolvimento desi-gual e assimétrico que privilegia certos setores da socie-dade e certas localidades em detrimento de outros. Para-lelamente, cria condições de mobilização social crescente,fazendo comparecerem, com cada vez mais força, reivin-dicações de “direitos iguais” por parte das camadas mar-ginalizadas. “É óbvio que existe uma contradição básica

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entre a tendência ao desenvolvimento desigual e a ten-dência ao aprofundamento da igualização” (Sakamoto,1991:132). As tensões daí oriundas caracterizam a histó-ria política moderna, a balança pendendo para um doslados segundo coordenadas de espaço e tempo.

A conjuntura do pós-guerra assistiu a um incrementoconsiderável da democratização exatamente por estarsubditada pelo conflito entre dois blocos internacionais,ambos disputando concepções distintas da única fonte delegitimação viável: a “democracia”. Mas esse incremen-to é também a intensificação da contradição bipolar entreo desenvolvimento econômico e tecnológico desigual, eo político, tendente à igualização. Nesse contexto, afinitude dos “recursos do planeta” torna-se evidente, en-quanto o desenvolvimento das duas faces da modernida-de provoca “aumentos sem precedentes nas demandaspolítico-econômicas por recursos”. Com o fim da guerra-fria, esvanecem-se os suportes da democratização, expli-citando-se as disputas por recursos. Difícil deixar de con-cordar que “as forças a favor do desenvolvimento globaldesigual, como se exemplifica pelas empresas transnacio-nais, estão muito mais adiante das forças democráticas,tentando colocar os recursos da Terra sob seu controle.Não há dúvida de que as forças a favor da democratiza-ção, que tendem a aprofundar a democracia localmente(sic), como resultado da penetração global das idéiasdemocráticas, estão ficando para trás” (Sakamoto,1991:144).

Nesse registro cabem praticamente todas as tendênci-as que conduzem à descentralização segundo o diagnós-tico de Borja. São elas: 1) crise de representação políticado Estado moderno, apresentando-se demasiados estrei-tos os mecanismos representativos tradicionais, os parti-dos e os sindicatos; 2) caráter tecnocrático das adminis-trações públicas; 3) desigualdades territoriais, sendo quea demanda por descentralização parte de regiões em crisee que não acreditam que possam ser atendidas pela auto-ridade central; 4) reação de culturas locais frente à uni-formização da modernidade, exponenciada pelos meiosmassivos de comunicação; 5) e a reação dos corporati-vismos (sic) sociais e territoriais sob a intensificação dacompetição em situação de crise econômica (Borja,1989:74-77). Com um certo espanto, conclui-se que es-tas são causas que induzem à forte erosão dos “benefíci-os da centralização”, mais que sua integração com as van-tagens do poder descentralizado, desautorizando ootimismo desavisado!

A análise coerente das cinco razões para o atual pro-cesso de descentralização, como entendidas por Borja,indica uma série de tensões com a teoria e ação do Estadoe do governo representativo. Comparece em primeiro lu-gar o diagnóstico das promessas não cumpridas: sentimen-

to de exclusão das decisões e da representação (argumen-tos 1, 2 e 3); do favorecimento desigual da ação estatalem relação às várias partes do território, “devido à espe-cialização funcional e à segregação social no espaço” (ar-gumento 3); assimilação das comunidades locais aos pro-dutos culturais e pautas de comportamento massificados,pela potência das novas tecnologias de comunicação e,implicitamente, a idéia de que o Estado central favoreceesta última, por ação ou omissão (argumento 4). Por fim,faz-se presente o diagnóstico de que a competição entreunidades subnacionais, na situação da presente crise eco-nômica, requer “um representante e um interlocutor pró-ximo e diversificado” (argumento 5). Resta saber até queponto pode-se esperar que a descentralização venha, defato, a superar as mesmas tensões da forma Estado que aimpulsionam neste final de século. Saber se as esperan-ças depositadas na descentralização são realmente fun-damentadas ou se ela é apenas parte dos efeitos da apli-cação de uma força irresistível.

A resposta deve enfrentar o fato de que o diagnósticoformulado por Borja apenas reitera o argumento deSakamoto: as forças em prol do desenvolvimento desi-gual levam vantagem. Essa vantagem pode ser, então,contra-arrestada nas arenas subnacionais e, mais particu-larmente, nos municípios? Uma questão importante quesobressai neste quadro diz respeito à distribuição dos re-cursos de poder na sociedade contemporânea.

A DISTRIBUIÇÃO DO PODER

A premissa de Tocqueville, depois repetida incansa-velmente,6 de que “a igualdade é inevitável e está aumen-tando”, mostrou-se inteiramente equivocada. O “sistemade capitalismo comercial e industrial... gerou enormesdesigualdades em riqueza, renda, status e poder”, de for-ma que constitui uma ameaça à igualdade política e àdemocracia (Dahl, 1990:46). O problema do poder, con-gênito ao desenvolvimento desigual, torna-se mais agu-do na medida em que se apresenta “uma disjuntiva entrea autoridade formal do Estado e o sistema vigente de pro-dução, distribuição e comércio que limita de várias ma-neiras o poder ou âmbito de ação das autoridades políti-cas nacionais” (Held, 1991:166). Isto é, quando o graude interconexão global das empresas econômicas puse-ram-nas em situação de quase exterioridade em relação àjurisdição do poder público.

O problema assume uma dupla dimensão: uma quanti-tativa, referente à desigualdade na distribuição de recur-sos de poder entre as empresas, o Estado e seus cidadãos;outra qualitativa, de explicitação mais recente, que dizrespeito aos limites territoriais da jurisdição estatal versusa ação globalizada do capital. As duas dimensões rela-

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tivizam a soberania dos Estados nacionais, sendo que asegunda se destaca pela possibilidade de alocação de ca-pitais, produtivos ou especulativos, entre fronteiras e con-forme decisões exclusivas de seus gestores, transformaos Estados, de reguladores, em competidores entre seussemelhantes. A dificuldade reside no fato de a tramitaçãopolítica dos conflitos distributivos, pelas vias estatais, foio que permitiu o ritmo acelerado da democratização emescala global neste século.

O lastimável quadro apresentado pela disputa entremunicípios brasileiros pela alocação de novas indústriasé bem ilustrativo da real capacidade dos municípios, talcomo dos estados, de regular e planejar o desenvolvimentode suas respectivas comunidades, face ao poder e à liber-dade das grandes empresas. A guerra fiscal entre cidadespela instalação de uma nova unidade da Volkswagen con-figurou-se como um verdadeiro leilão de incentivos fis-cais e outros recursos públicos, contemplando muito maisos interesses da empresa do que qualquer racionalidadeproduzida pelas instituições políticas. Obviamente, osgovernos que entraram na disputa não dispunham de po-der sequer para negociar em bases iguais com a empresa,que se manteve soberana como foro decisório. O queimporta enfatizar é que, contrariamente ao que aconte-cia, ao menos em parte, no “período desenvolvimentis-ta”, o destino da comunidade local, regional e nacionalescapou-lhe das mãos. Mas “a crença de que os destinoscomunitários repousam nas mãos da cidadania não é, pre-cisamente, um dos pressupostos da teoria do Estado e,conseqüentemente, da democracia (Held, 1991)? Situa-ção similar aconteceu em relação à decisão de se instalaruma nova refinaria da Petrobrás na região Norte-Nordes-te, se bem, neste caso, que a natureza dos recursos de po-der para o exercício da influência tenham sido mais polí-ticos, estando a decisão subordinada aos representantesda cidadania.

A descentralização não pode, portanto, substituir comvantagem, o combalido Estado nacional no que respeita ànova correlação de forças entre agentes públicos e priva-dos. Pode agir e, de fato, age em conformidade com o 5o

argumento de Borja, acima descrito: o da competição entreos corporativismos sociais e territoriais. Não admira, pois,que os defensores intransigentes da descentralizaçãoelidam sistematicamente o tema do poder. Enquanto isso,aumentam a polarização e a marginalização sociais, in-clusive no contexto de países com alto PIB per capita(Mingione, 1988; Boter et alii, 1988).

É bastante sintomático que as mesmas pessoas que háduas décadas valorizavam, no plano socioeconômico, ascondições de reprodução da “força de trabalho” e de vidada população, priorizem agora o tema do “desenvolvimentoeconômico local”, da “economia social”, da “negociação

e cooperação entre atores públicos e privados”, etc. (Borja,1989:76). Em outras palavras, ainda que a intenção sejafavorecer a população via a criação de empregos, atematização é refeita, levando-se em conta, priorita-riamente, as necessidades do capital. Alguém suficien-temente maldoso pode concluir que se confirma a tese dosteóricos da “urbanização capitalista”, segundo a qual “aprogressiva concentração do capital e a subordinação maisimediata da Administração aos objetivos deste... dá lugara uma política urbana... ao serviço cada vez mais exclusivoe explícito das necessidades de acumulação capitalista eem detrimento das condições... de vida da população(Borja, 1975:14).

As razões apresentadas por Borja para a descentrali-zação conduzem ainda a um problema mais delicado.Trata-se da questão das “culturas locais” que desconfiamda intervenção centralizada e burocrática do Estado e,conseqüentemente, buscam autonomia (“autogestão, au-togoverno”), inclusive conquistando posições no poderlocal. Esta é, de fato, a questão central no pensamentodeste autor e é o que se depreende de sua definição dedescentralização como “um processo de caráter global quesupõe, por uma parte, o reconhecimento da existência deum sujeito – uma sociedade ou coletividade de base terri-torial – capaz de assumir a gestão de interesse coletivos edotada de personalidade sociocultural e político-adminis-trativa e, por outra parte, a transferência a este sujeito deum conjunto de competência e recursos... que poderá ge-rir autonomamente, nos marcos da legalidade vigente(Borja, 1989:78).

Ressalte-se, primeiramente, que a definição é profun-damente ambígua quanto ao entendimento de que umasociedade local possa ser um sujeito. A dinâmica da so-ciedade contemporânea é crescentemente fragmentária,complexa e multifacetada. A subsunção da complexidadeà idéia de um sujeito é, no mínimo, discutível. A confusãoaprofunda-se, pois em poucas linhas não se precisa se estesujeito é a “sociedade” ou seu símile representado na fi-gura de um Estado Local, e seu governo representativo.Neste caso, estar-se-ia falando de uma nação dentro deum Estado plurinacional e se poderia entender suas posi-ções como as do deputado no Parlament de Catalunya (queexerceu esse mandato entre 1980 e 1984, assumindo de-pois a função de teniente de alcalde de Barcelona), massua pretensão à universalidade, sua militância intelectualna América Latina e a aceitação de suas teses no subcon-tinente vetam, em alguma medida, tal entendimento.

Cabe então a pergunta sobre se a descentralização, as-sim entendida, não estaria fadada a reproduzir as mesmasmazelas da forma Estado quanto à sua atual crise de po-der e representação. Afinal, retoma o tradicional argumen-to da representação de todo o povo de um território, in-

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PODER LOCAL, DESCENTRALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO...

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dependentemente de suas reais clivagens, e reivindica partedos recursos de poder para o exercício da soberania emsua jurisdição, somente respeitados os limites consti-tucionais. Terá esta esfera mais poder e legitimidade paracombater as causas do debilitamento dos Estados nacio-nais, como o seu próprio exemplo, a “rebelião fiscal”?Mesmo em Estados latino-americanos descentralizados,nos quais os municípios gozam de forte autonomia polí-tica e administrativa – e nesse aspecto, ao que se podesaber, nenhum país supera o Brasil7 – apresenta-se comigual força a “crise de representação” das autoridades lo-cais e dos partidos políticos atuantes nesse nível de go-verno. As causas apontadas para essa crise estão associa-das a uma certa oligarquização constitucional do poderlocal, que faculta sistemas decisórios sem consulta popu-lar, mesmo nos casos em que um legislativo eleito tem ascondições institucionais para tanto (Nunes, 1994:191-194).

A CONSTITUIÇÃO POLÍTICADAS IDENTIDADES

A questão parece, então, ter raízes mais profundas, umadas mais importantes o célebre argumento de RobertMichells. Sua teoria das organizações políticas concluipela inevitável formação de oligarquias políticas por in-termédio das instituições democráticas, quando a partici-pação é franqueada às classes subalternas. É que o nãoproprietário, por isso mesmo relativamente débil em re-cursos de poder, só pode fazer valer seus interesses e opi-niões no espaço público através do número, massivamente.Como quem diz reunião de muitos, diz organização, apresença destes “cidadãos dependentes” na política im-plica, de forma necessária, organização. Esta, por sua vez,exige burocracia, que se diferenciará fatalmente dos “nos-sos” e de suas aspirações precisamente devido à sua situ-ação específica na divisão do trabalho. Ao maximizar seusinteresses de grupo, a burocracia sindical e partidária criauma relação assimétrica em relação às bases, de supre-macia. O argumento de Michells, inconveniente e por issomesmo pouco lembrado, retoma a crítica do pensamentomarginal do século XIX, demonstrando a necessária nãouniversalidade do governo representativo. A constataçãode Borja do caráter tecnocrático das administrações pú-blicas, bem como o paradoxo de Bobbio entre democra-cia representativa e burocracia (que ele relativiza mas nãoresolve), recebe uma explicação que deveria ser objetode maior meditação.

Isto posto, pode-se precisar a delicadeza do problemaque a definição de descentralização de Borja suscita. Arepresentação política supõe, em sociedades de massa, aorganização. (Nem sempre foi assim! Vale lembrar a re-

presentação de notáveis anterior aos partidos de massa).Pensar um sujeito territorial na sua dupla face de “povo egoverno” pressupõe, então, pensar a organização dessesdois elementos, bem como a instituição do corpo repre-sentativo e a conseqüente formação ou ampliação de umgrupo social particularizado: os novos profissionais dapolítica. Até aqui, nada de novo. Apenas a retomada dasquestões relativas ao Estado nacional em outra dimensão.Ocorre que os recortes territoriais não são dados da reali-dade social, mas antes construções políticas. Da mesmaforma, a instituição de representantes através de regrasque devem ser estabelecidas – as escritas e as implícitasna dinâmica criada – não são “naturais”. De forma que oresultado do processo fica na dependência das soluçõesescolhidas: a geração de interesses coletivos, suas moda-lidades de expressão, a latitude dos conflitos legítimosnessas novas arenas, etc.

Uma pesquisa sobre governos locais em cidades deporte médio, realizada em sete países da América Latina(Nunes, 1994), observou uma transformação bastanteacentuada na natureza dos “sujeitos” políticos após pro-cessos de descentralização em países unitários (Bolívia,Colômbia, Chile, Equador e Peru). Sólidas instituiçõesrepresentativas nacionais esvaneceram-se, ainda que tam-bém por outras razões, abrindo espaço para a prolifera-ção de novos atores locais, descentralizando-se tambémos conflitos sociais e a força relativa dos atores subalter-nos sendo pulverizada.

Em países já federativos (Argentina e Brasil), pode-senotar também a presença de “sujeitos” em grande medidacondicionados pelas maneiras específicas dos processosdecisórios locais; em outras palavras o que, quem, como,onde e quando se decide causa um impacto sensivelmen-te sobre quem se organiza e o que constitui uma pauta dereivindicações.

Essas constatações empíricas ressonam em um saberpolítico esquecido pelos modernos – o de que o caráterdo cidadão é atributo das leis fundamentais do corpo po-lítico e da maneira como estas são observadas no tempo.Mas trata-se de uma amnésia necessária, pois é incom-patível com a idéia mesma de representação: a de que osinteresses e opiniões são dados pré-políticos, atributos dos“indivíduos naturais” e de suas associações voluntárias,criadas pelas afinidades livremente identificadas. E sãoprecisamente estas que devem ser reapresentadas no con-texto de um pacto voluntário. Esta é, talvez, a maior difi-culdade da tradição “liberal democrática”, hoje hegemô-nica, em se conciliar com a experiência vivida e observada.É esta dificuldade que obriga o liberal a sacrificar a liber-dade política pela liberdade econômica, como faz Hayck.E que impulsiona Dahl no caminho inverso: ambos sãoincapazes de enxergar que a aporia não se resolve num

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plano metafísico. E ambos fazem opções políticas, isto é,de valor.

DESCENTRALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO

Algumas conclusões emergem do que foi dito aqui eapontam para a complexidade dos fenômenos entendidospelo termo “descentralização”. Complexidade quedesautoriza simplificações tanto analíticas como norma-tivas. Infelizmente, ambas comparecem com descon-certante freqüência, fazendo crer que a adesão aos encan-tos supersticiosos está intimamente relacionada à fortunadesfavorável e à incapacidade dos homens de dirigir seusdestinos, como ensinou Spinoza.

A teoria política e a fala do poder constelaram na figu-ra do Estado-Nação exatamente a idéia de uma “comuni-dade de destino”, construída pela vontade e pela forçahumanas, através da qual os indivíduos se habilitam atomar decisões sobre o seu futuro comum. Sem tal pontode partida, a teoria da democracia, enquanto forma degoverno, careceria de sentido. Ocorre que a ação dos Es-tados, neste tempo de relação de poder crescentementeglobalizadas, é fundamentalmente constrangida. Os de-terminismos, expiados milenaristicamente por uma esquer-da que vê o fim do seu mundo e renasce purificada, en-gordam rijos e fortes dos discursos de chefes de Estado.Estes, piedosamente abençoados pelos economistas, ver-dadeiros sacerdotes modernos, sacramentam a impotên-cia dos homens e de seus representantes. Assim, aparececomo necessidade que, mesmo nações com cerca de trin-ta mil dólares de PIB per capita, sejam forçadas à redu-ção de gastos sociais (ainda que o montante do gasto pú-blico não decresça!).

O primeiro acerto de contas a ser feito é o reconheci-mento de que a atual onda de descentralização decorreprecisamente desse processo de crise das instituições pú-blicas. Nesse sentido, rima com temas como “reforma doEstado”, “diminuição dos gastos sociais”, “estado míni-mo”, etc. Isto não significa que a descentralização nãotenha dimensões importantes para a retomada da demo-cratização. Mas, certamente, acarreta a necessidade im-periosa, para quem esteja interessado nessa retomada, detentar responder às questões difíceis.

A primeira diz respeito à assimetria e à incongruên-cia entre os poderes públicos e privados. A não se pen-sar conjuntamente um grau de centralização planetá-ria, paralela ao reforço do poder local, aprofunda-seum desequilíbrio apenas em prol do desenvolvimentodesigual.

Conexa a esta, uma segunda questão diz respeito ànatureza dos vínculos entre o local, o regional, o nacio-nal e o global, permeados matricialmente em suas esferas

públicas e privadas. O trabalho, aqui, é o repensar o sis-tema representativo, na tentativa de pavimentar o atualfosso entre representantes e representados. Dois autoresaqui comentados – Dahl e Held – preocupam-se precisa-mente com essas questões. Resta saber se o problema é,de fato, equacionável nos marcos da teoria do governorepresentativo.

Finalmente, é preciso uma maior compreensão concei-tual dos mecanismos de difusão e capilaridade dos efei-tos de poder nas dimensões territoriais. Existe muita teo-ria sobre “as leis como devem ser”, mas muito pouca sobre“os homens tais quais são”. Talvez com isso descubra-semais centralização na descentralização (e vice-versa) doque se estaria disposto a admitir.

O pior serviço que se pode prestar à causa da demo-cratização hoje é operar a metonímia que reduz um todocomplexo a uma solução unilateral e a uma panacéia uni-versal.

NOTAS

1. Um estudo acerca da descentralização de Londres revela um processo com-plexo que envolve também novas centralizações e recentralização de atividadesantes descentralizadas (Levy, p.262).

2. Parte da crítica de Marx ao “estado burguês”, talvez a fundamental, situa-seprecisamente neste ponto: a propriedade privada obriga e domina, sem que hajarecurso possível à comunidade política, convertida em “um comitê que adminis-tra os negócios comuns de toda a burguesia”. Numa vertente liberal contempo-rânea, realmente liberal, Robert Dahl recoloca o problema nos seguintes termos:“...temos que nos esforçar para diminuir os efeitos adversos sobre a democraciae a igualdade política que resultam quando a liberdade econômica engendra grandedesigualdade nas distribuições de recursos, e assim, direta e indiretamente, depoder” (Dall, 1990:47). Contrariamente a algumas correntes, como por exem-plo, a representada por Hayck, Dahl jamais consentiria em sacrificar a liberdadepolítica em nome do liberalismo.

3. “A burguesia compreende perfeitamente que uma nova legislação ou uma novaconstituição não serão suficientes para garantir sua hegemonia; ela compreendeque deve inventar uma nova tecnologia que assegurará a irrigação dos efeitos dopoder por todo o corpo social” (Foucault, 1984:220).

4. Mesmo um autor que procura entender o clientelismo e relativizar suas dife-renças sem relação a uma institucionalidade público-representativa, conferindo-lhe “alguma dignidade”, não supera a lógica bipolar ao apresentá-la sob a formade um continuum e sugerindo que se analisem suas interpenetrações. A explica-ção continua a operar ex machina em decorrência de particularismo das socieda-des onde o fenômeno é observado. Não escapa, pois, do “ainda” (Avelino,1994:228 e 240).

5. “O municipalismo, que se sintetiza no princípio segundo o qual ‘o que podeser feito pelo município não deve ser feito nem pela União, nem pelo Estado’,fundamenta-se na desconcentração do poder e na descentralização das decisõese realizações, pressupondo, portanto (sic!), a completa democratização da socie-dade e a participação efetiva da comunidade...” (Quércia, 1986:10).

6. A mesma premissa encontra-se desenvolvida em Marshall (1967), que enxer-ga uma “guerra” entre a cidadania e o sistema de classe capitalista. Também emBobbio (1979), que predica a democracia como o único caminho lícito ao socia-lismo, com o que concorda Weffort (1984). Nesses autores da segunda metadedo século XX, a premissa tocquevilleana é retrabalhada no sentido de conferirmaior importância ao Estado nos processos de igualitarização. O pressupostobásico, portanto, é o de um estado crescentemente fortalecido e soberano.

7. As constituições brasileiras dotam os municípios de autonomia política ím-par, dando-lhes a capacidade legislativa em sentido próprio e consentindo que,no caso do interesse específico municipal, a lei do município prevaleça à estaduale, inclusive à federal, respeitada somente a constituição. Ele é virtualmente umente da federação que se desdobra, assim, em três níveis, contrariamente ao queocorre nos Estados Unidos, Argentina e México, cujos ordenamentos supõemapenas dois: os Estados e a União (Grossi, 1989:87). Como se vê, a descentrali-zação não garante nem democracia, nem participação, nem solidez na represen-tação.

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A REDEFINIÇÃO DO PAPEL DO ESTADONO ÂMBITO LOCAL

objetivo deste artigo é discutir o novo papel aser assumido pelos municípios brasileiros dian-te das mudanças por que passa o Estado nacio-

nal, no que se refere tanto à redefinição das funções dosetor público quanto à construção de um novo arranjofederativo, delimitado pelas regras da Constituição de1988. Os municípios hoje enfrentam um duplo desafio:precisam assumir políticas antes a cargo da União ou,secundariamente, dos estados, tanto para assegurar con-dições mínimas de bem-estar social às suas populações(função de Welfare) como para promover o desenvol-vimento econômico com base em ações de âmbito lo-cal, o que envolve o estabelecimento de um novo tipode relacionamento com o setor privado (função desen-volvimentista).

O enfrentamento desse duplo desafio está condiciona-do por três parâmetros: a estrutura fiscal da federaçãobrasileira; as diferentes características socioeconômicasde cada ente local; e a dinâmica política interna aos mu-nicípios. Será discutido o quanto estes fatores influenciam aconstrução de um novo modelo de Estado, no qual a esfe-ra municipal passa a ter papel protagônico, no que istotem de potencial criador e de sérias limitações.

O NOVO PAPEL DO ESTADONO ÂMBITO MUNICIPAL

O Estado brasileiro vem sofrendo duas ordens de pro-blemas com implicações para a redefinição de seus pa-péis. Por um lado, no início da década de 80, entra emcrise o chamado Estado nacional-desenvolvimentista,design estatal que vigorou por cerca de meio século e cujacaracterística principal era alavancar o processo de de-

senvolvimento econômico. Para que se tenha uma idéiada importância do papel estatal na alavancagem do in-vestimento global, basta dizer que até 1983 cerca de 30%a 50% das inversões totais cabiam ao setor público – semconsiderar a intermediação de “grande parte do investi-mento privado através da administração de importantesfundos compulsórios de poupança” (Carneiro e Modiano,1992:331). Com a crise financeira do Estado – vigente,em grande medida, até os dias atuais –, o setor públicofederal está redefinindo suas tarefas, com conseqüênciaspara os outros níveis de governo.

Por outro lado, a partir da Constituição de 1988, a Uniãoperdeu boa parte de seus recursos financeiros para esta-dos e municípios. Desta forma, sua capacidade de atua-ção na área das políticas públicas é reduzida drasticamente,de modo que importantes tarefas, antes assumidas pelopoder central, têm de ser incorporadas ao âmbito gover-namental subnacional, não só no que concerne às políti-cas sociais – como é freqüentemente levantado – mas tam-bém em outras esferas, como será discutido adiante.

Diante dessas duas ordens de fatores e num momentoem que ganha força a idéia de um Estado mais enxuto eeficiente – cada vez mais próximo do modelo liberal do“Estado mínimo” –, as políticas que ainda são tidas comode responsabilidade governamental são justamente aque-las mais compatíveis às esferas subnacionais de governo,especialmente no âmbito municipal: as áreas de saúde,educação, saneamento, habitação, transporte público, etc.Entretanto, mesmo as políticas governamentais postas delado pelo Governo federal em razão do desmantelamentodas bases do Estado nacional-desenvolvimentista não são,em sua maior parte, simplesmente abandonadas, princi-palmente por conta da pressão social, e acabam sendo

FERNANDO LUIZ ABRUCIO

Professor do Departamento de Política da PUC-SP e da FGV-SP, Pesquisador do Cedec

CLÁUDIO GONÇALVES COUTO

Professor do Departamento de Política da PUC-SP, Pesquisador do Cedec

O

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A REDEFINIÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NO ÂMBITO LOCAL

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incorporadas à nova dinâmica de governo assumida pe-las esferas subnacionais. Trata-se agora não de um de-senvolvimentismo como fora tipicamente o modelovarguista, voltado à construção autárquica de uma estru-tura industrial de grande porte; o que se constitui, atual-mente, no âmbito estadual e, sobretudo, no municipal éum tipo de política de cunho redistributivo e/ou anticíclicopara garantir, minimamente, a renda e o emprego doshabitantes destas regiões.

Os municípios, portanto, precisam redesenhar sua ati-vidade estatal. Na área social, ao contrário da impressãogeral presente na opinião pública, estados e, sobretudo,municípios assumiram boa parte da responsabilidade porestas políticas, que, de maneira geral, antes cabiam àUnião. Aumentaram significativamente os gastos dosmunicípios com saúde e educação, o que demonstra oquanto essas unidades têm cada vez mais assumido o pa-pel de welfare. A União, inversamente, tem se distancia-do paulatinamente de sua atuação nesta área, exceto emalgumas políticas no setor educacional ou através de ini-ciativas isoladas, as quais, no mais das vezes, estão sen-do malsucedidas no que se propõem, como é o caso doPrograma Comunidade Solidária (Pralon, 1996). E mes-mo no caso da educação, os municípios e os estados gas-taram, em 1995, um volume de recursos superior ao daUnião, como mostra a Tabela 1.

Para assumir de forma mais abrangente as funções dewelfare, os municípios precisam modificar sua estruturaadministrativa e recapacitar-se financeiramente, alteran-do suas áreas de ação prioritária e incorporando estrutu-ras de serviços antes pertencentes aos níveis superioresde governo – este é o caso, por exemplo, da municipali-zação da saúde. Esta mudança ocorre de tal forma que aárea social ganha relevância no debate eleitoral munici-pal, como pôde ser visto na campanha à prefeitura de SãoPaulo em 1996. Apesar do volume de recursos destina-dos pelo então prefeito Paulo Maluf à área social ter sidobem menor do que o direcionado às obras viárias, os car-ros-chefes da campanha do candidato situacionista foramdois programas sociais, um na área de saúde e outro nade habitação popular – respectivamente, o Programa de

Assistência à Saúde (PAS) e o Projeto Cingapura, ambosausentes da campanha malufista à prefeitura em 1992.1

As funções de welfare, no entanto, estão ganhandoimportância nos municípios ao lado de iniciativas em proldo desenvolvimento econômico local, especialmente di-recionadas à geração de emprego de renda. Talvez sejaessa a maior novidade em termos de redesenho do Estadono nível local. Entre os bons exemplos desse tipo de po-lítica, podem ser citados os programas de renda mínima ede fomento ao desenvolvimento e à geração de empre-gos. No caso da renda mínima, Campinas já obteve umgrande sucesso em sua implementação, constituindo-senum exemplo que já vem sendo seguido por outros muni-cípios. No que diz respeito a políticas anticíclicas (ou dedesenvolvimento), pode-se citar o “Banco do Povo”, dePorto Alegre, voltado ao financiamento de pequenos ne-gócios, ou ainda a cidade cearense de Quixadá e seu “Pro-grama de Geração de Emprego e Renda”, voltado à capa-citação de mão-de-obra, financiamento de pequenosempreendimentos e formação de associações e coopera-tivas. Segundo o jornal Folha de S.Paulo (17/08/96:1-7),esse programa já logrou reduzir pela metade o desempre-go verificado na cidade em três anos, “capacitou 900 tra-balhadores, fomentou a criação de 40 associações e umacooperativa e financiou 196 negócios”. Além disso, oenvolvimento dos trabalhadores participantes do progra-ma nas obras da prefeitura reduziu o seu custo em até 50%,segundo a secretária municipal de Ação Social.

Este tipo de atuação voltado ao desenvolvimento localé, ao menos no caso brasileiro, uma ruptura com formastradicionais de ação governamental nos municípios. Tra-ta-se de uma verdadeira reinvenção do governo,2 que en-volve novos padrões de relacionamento entre o Estado ea sociedade, superando as formas limitadas, porém indis-pensáveis de representação política da democracia libe-ral, através da criação de outros dispositivos políticos paraa agregação e a articulação de interesses – é o caso demecanismos de democracia direta, como o do orçamentoparticipativo (de grande sucesso em Porto Alegre), bemcomo de arranjos neocorporativos (como em Sertãozinho),os quais permitem conciliar os múltiplos interesses seto-riais relevantes na sociedade local – o capital privado, ostrabalhadores e o setor público.

Para compreender melhor a redefinição do papel doEstado no âmbito municipal, é preciso considerar nãoapenas os casos vistos individualmente. Mais do que isso,é necessário ter em vista as condições mais globais quedão suporte à transformação do papel do governo no ní-vel local, considerando de que maneira torna-se viável aexpansão de experiências isoladas para os municípios deum modo geral. Caso contrário, a consideração de expe-riências inovadoras será a exaltação de sucessos gover-

TABELA 1

Gastos com Educação nas Três Esferas de GovernoBrasil – 1995

Esferas de Governo Em R$ bilhões Em %

União 5.423 22,34Estados 11.659 48,03Municípios 7.192 29,63

Fonte: Ministério da Educação, apud Gazeta Mercantil, São Paulo, 11/09/96, p.A-7.

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namentais em um ou outro município e não um passo paraque se efetive uma reforma do Estado em nível munici-pal. Essas condições dizem respeito à estrutura fiscal fe-derativa, às diferenças socioeconômicas entre os municí-pios e à dinâmica política típica do âmbito municipal.

O CENÁRIO FINANCEIRO DA FEDERAÇÃO

Com o regime militar iniciado em 1964, ocorreu umagrande centralização fiscal juntamente com o aumento dopoder da União relativamente aos outros entes federati-vos. Entre os atos implementados pelo Governo central,podem ser destacados o Código Tributário Nacional(1966), a nova Constituição (outorgada em 1967) e o AtoComplementar no 40 (AC-40) de 1968. A Tabela 2 mos-tra o impacto das mudanças na distribuição de receitanacional entre 1965 e 1974, quando o regime militar es-tava em seu apogeu.

O principal ponto é o significativo incremento da re-ceita da União (11,5%), às expensas dos estados-mem-bros (que perderam cerca de 12%), ao passo que os mu-nicípios permaneceram com quase a mesma fatia ao longodo período – exceto para 1968, quando os ganhos ante-riores dos governos locais foram reduzidos pelo AC-40,o qual diminuiu em aproximadamente 50% a participa-ção dos governos subnacionais em seus respectivos fun-dos de participação.

Juntamente com as mudanças apontadas na Tabela 2,duas outras medidas contribuíram para aumentar a cen-tralização financeira: em primeiro lugar, o aumento dastransferências vinculadas aos governos subnacionais; e, emsegundo, a restrição da autonomia tributária dos estados,que deu ao Senado poder de definir as alíquotas do ICM(Imposto sobre Circulação de Mercadorias). Uma vez queo Senado, assim como todo o Congresso, era fortementecontrolado pelo Executivo Federal, tornou-se mais fácilpara a União determinar a política tributária dos estados.

Com a distensão política, o modelo de financiamentovigente foi, pouco a pouco, perdendo força: os mecanis-mos centralizadores foram gradualmente erodidos, uma vezque o Governo central era obrigado a barganhar com aselites estaduais para obter apoio no Congresso, de modoque estados e municípios obtiveram maior poder para de-terminar seus próprios tributos e políticas orçamentárias.Este processo foi dramaticamente acelerado em 1982,quando candidatos oposicionistas venceram a eleição paragovernador nos principais estados. Nesse sentido, umamudança emblemática foi a aprovação da Emenda PassosPorto, em 1983, que aumentou a participação dos gover-nos subnacionais no bolo de recursos tributários do país.

De 1980 a 1986, durante o processo de transição, aparticipação das entidades subnacionais nos fundos fede-rais cresceu substancialmente. Os municípios aumenta-ram sua parcela de 9% para 17%, enquanto a participa-ção dos estados passou de 9% para 14% no total dastransferências de recursos tributários (Serra e Affonso,1991:48). A nova Constituição, promulgada em 1988,gradualmente aprofundou a descentralização fiscal, já queo novo sistema tributário foi implementado passo a passoaté 1993. É importante assinalar que a distribuição daReceita Total da União entre 1980 e 1993 foi reduzidaem 16%, ao passo que a participação de estados e muni-cípios aumentou em 18% e 78%, respectivamente(Giambiagi, 1991:64). Após 1988, a União tentou rever-ter esta tendência sem obter sucesso.

As principais conseqüências das mudanças constitucio-nais com relação à taxação são o aumento do poder tribu-tário das unidades subnacionais em sua própria jurisdi-ção e o aumento dos recursos disponíveis de forma nãovinculada para os estados e municípios, como resultadodo incremento das transferências constitucionais. No quese refere ao segundo aspecto, é importante observar quea participação dos estados-membros no montante nacio-nal de recursos é uma das mais descentralizadas entre ossistemas federativos. De acordo com dados o Fundo Mo-netário Internacional (FMI), a participação dos estados-membros brasileiros nos recursos nacionais é de 30%,menor que a do Canadá (40%), mas superior à dos esta-dos-membros dos EUA e da Alemanha – 20% e 22% res-pectivamente (Lageman e Bordin, 1993:29).

Após a promulgação da nova Constituição, aumenta-ram as transferências da União e dos estados para osmunicípios. Incluindo o Fundo de Participação dos Mu-nicípios e a participação destes na receita do ICMS, astransferências municipais passaram de R$ 9,84 bilhões,em 1988, para R$ 21,20 bilhões, em 1995. Neste proces-so, a participação das receitas municipais em relação aoPIB passou de 1,76%, em 1988, para 3,21%, em 1990,atingindo 3,36%, em 1995.3

TABELA 2

Participação na Receita Líquida dos Três Níveis de GovernoBrasil – 1965-1974

Em porcentagem

Anos Receita da Receita dos Receita dosUnião(1) Estados(2) Municípios (3)

1965 39,0 48,1 12,91968 40,2 42,9 16,91970 45,0 40,7 14,31972 48,8 37,5 13,71974 50,5 36,0 13,5

Fonte: Oliveira, 1980:51.(1) Exclui transferências intergovernamentais para estados e municípios.(2) Exclui transferências intergovernamentais para municípios mais ajudas da União.(3) Inclui transferências intergovernamentais para União e estados.

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Mais importante ainda para a discussão aqui é o fatode que o volume de recursos obtidos pela arrecadação detributos municipais próprios aumentou consideravelmente.Em 1988, esse volume representava 0,66% do PIB, aopasso que em 1995 passou a perfazer 1,70% (Folha deS.Paulo, 31/08/96:1-7). A principal fonte arrecadadora derecursos próprios é o ISS, o qual, em 1991, representavaum terço da receita municipal em nível nacional, 20% amais do que o segundo mais importante imposto munici-pal, o IPTU. A maior parte do ISS é coletada nas capitaise nas grandes cidades, com os pequenos municípios ten-do apenas uma pequena parte de sua receita composta peloISS, porque esse imposto, incidindo sobre a prestação deserviços, tende a encontrar uma maior base tributária naslocalidades economicamente mais dinâmicas. As cidadesmais pobres não têm aí, portanto, uma fonte significativade seus recursos.

Houve um considerável incremento também na arre-cadação do IPTU desde 1988, mas este imposto aindaarrecada menos do que o seu potencial permitiria. Comoo incremento verificado ocorreu por conta da elevaçãode alíquotas e estas eram extremamente baixas, aindaexiste uma grande margem de crescimento. Há uma cau-sa política que explica as baixas alíquotas do IPTU: ele éum imposto direto e existe uma tendência das autorida-des locais a mantê-lo num nível baixo, uma vez que qual-quer incremento em impostos diretos é facilmente perce-bido pela população – isto é, pelos eleitores –, sendoportanto uma medida, no mais das vezes, impopular.

Contudo, essa tendência tem sido atenuada nos últi-mos anos. Nas palavras do ex-secretário de Planejamentode São Paulo, o economista Paul Singer, “os prefeitos‘perderam o pudor’ de cobrar os impostos municipais”.

“Quando os valores do IPTU foram atualizados emSão Paulo durante o governo Jânio Quadros, houvegritaria geral. Depois, houve uma tendência geral nopaís de rever os valores dos impostos” (Folha deS.Paulo, 31/08/96:1-7).

A causa dessa mudança reside na necessidade econô-mica dos municípios de fazer frente às duas dificuldadesque a eles se apresentam. Primeiro, a crise do Estado na-cional-desenvolvimentista tornou inviável aos governoslocais recorrer à União em busca de ajuda financeira – avelha política do “pires na mão” –, pois o Governo fede-ral já não dispõe dos recursos de outrora, sequer para fa-zer frente a seus próprios problemas. Segundo, os esta-dos estão imersos numa séria crise econômica desde 1995,cuja maior evidência é o montante de sua dívida – nessemesmo ano ela perfazia o total de R$ 97 bilhões, segundoo Banco Mundial ( Abrucio e Couto, 1996:18).

Diante desse quadro, torna-se imperioso aos municí-pios colocarem em prática uma política de responsabili-

dade fiscal, elevando sua arrecadação própria. Como éprerrogativa do próprio poder local legislar sobre seustributos, a autonomia municipal não é obtida através daperegrinação dos prefeitos aos níveis superiores de go-verno – quando estes últimos são os donos da “chave docofre”. A autonomia municipal é obtida transformando-se a arrecadação local no próprio cofre, possível atravésdo estabelecimento de uma relação cooperativa entre asautoridades executivas e legislativas municipais – o quepode se dar nos moldes tradicionais ou através de um re-lacionamento de cunho republicano, como será discutidomais adiante.

Embora boa parte dos municípios tenha aumentado suacapacidade fiscal e também seus gastos na área social, esseprocesso não ocorreu de forma homogênea em toda a fe-deração e mesmo em municípios de um mesmo estado.Tal fato indica que a mera municipalização dos proble-mas pode reproduzir a desigualdade social já existente,ao invés de criar mecanismos para solucioná-la.

AS CONDIÇÕES DESIGUAISDA DESCENTRALIZAÇÃO

Mesmo ganhando novos recursos com a Constituiçãode 1988, o fato é que os municípios brasileiros não par-tem de um mesmo patamar para a assunção dos encargosantes de responsabilidade da União ou dos estados. Umagravante a isto é a insuficiência dos mecanismos redis-tributivos existentes, sobretudo para o nível municipal.O primeiro desses dispositivos é constituído pelos Fun-dos de Participação de Estados e Municípios. O Gráfico1 indica a distribuição de recursos entre as regiões do país.

Através do Gráfico 1, verifica-se que o FPE é maisefetivo no seu papel redistributivo entre as regiões. Istose deve ao fato de que o FPE considera a renda per capitade cada estado como o principal critério de distribuiçãodos recursos, ao passo que o FPM considera o critério derenda apenas para as grandes cidades e as capitais esta-duais, as quais representam somente 13,6% dos municí-pios brasileiros. Para os assim chamados “pequenos mu-nicípios” (aqueles que têm menos de 156.216 habitantes),o FPM é distribuído considerando apenas a magnitude dapopulação. Esse conjunto de “pequenos municípios”, porsua vez, é subdividido em diversas faixas, de acordo como tamanho da população: quanto maior a população, maiora fatia de recursos. Isto significa que os estados com omaior número de municípios deste tipo tendem a receberuma fatia maior do bolo de recursos. Tendo em vista queos estados mais ricos têm um número maior de “peque-nos municípios” compreendidos pelas faixas populacio-nais mais altas, eles provavelmente receberão uma par-cela proporcionalmente maior do FPM.

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cursos, alternativa preferida às tentativas de coordenar adescentralização de responsabilidades. Ainda assim, qua-se todas as iniciativas recentralizadoras foram infrutífe-ras. Isso pode ser constatado nas fracassadas negociaçõesdas dívidas estaduais e nos esforços em vão para reduzir osrecursos de estados e municípios em seus respectivos Fun-dos de Participação. Não obstante todas essas restrições paramudar a atual distribuição de recursos, o Governo centraltem obtido um relativo sucesso por meio do aumento dasalíquotas das Contribuições Sociais, do decréscimo do mon-tante de transferências negociadas,4 da criação do FundoSocial de Emergência (FSE) em 1994 – cuja aprovação foiuma das maiores vitórias fiscais da União nos últimos anos– e a sua recriação com novo nome em 1995.

Dado que não há mecanismos institucionais capazesde tornar a descentralização mais eqüitativa e como oGoverno federal não possui uma política nacional volta-da para este fim, uma reforma global do Estado nos mu-nicípios passaria pelo estabelecimento de uma ação coor-denada entre eles com vistas a diminuir as disparidades.O problema é que não há incentivos à cooperação entreos municípios; ao contrário, o que vem ocorrendo é umaacirrada competição por recursos e a configuração de umrelacionamento não-cooperativo entre as municipalidades.Um exemplo disto é a multiplicação de unidades munici-pais através do país. Uma vez que cada novo municípiotem direito a receber uma parte do FPM e uma quota doICMS, torna-se interessante a certos distritos transforma-rem-se em municípios – o que é facilitado pela legislaçãopermissiva. A Tabela 3 mostra a multiplicação de muni-cípios desde 1988.

Além da permissividade legislativa no que diz respei-to ao desmembramento de municípios, atualmenteinexistem mecanismos efetivos que propiciem a associa-ção entre os entes locais. A formação de consórcios in-termunicipais, por exemplo, encontra obstáculos na le-gislação, que os prevê apenas como instituição de direitoprivado. Como para instituições de direito privado é in-viável a obtenção de empréstimos junto a organismos in-ternacionais de fomento, o instrumento do consórcio so-fre enormes limitações, a não ser que a União dê o avalaos participantes do consórcio. Aqui surge o primeiro nópolítico: será que o presidente avalizaria um consórcioformado por prefeitos adversários? Além disso, como afigura do consórcio é um instrumento jurídico “fraco” (suadissolução pode ocorrer facilmente), os prefeitos não op-tam por consorciar-se com outros municípios, pois tememque, com a troca de governo, a associação se desfaça.

Municípios que compõem regiões metropolitanas têmna formação de um ente supramunicipal de governo ou-tra forma de cooperação federativa de grande importân-cia, pois há uma série de problemas nestas áreas cuja re-

GRÁFICO 1

Participação das Regiões no Fundo de Participação dos Estados (FPE) e no Fundo de Participação dos Municípios (FPM)

Brasil - 1991

Fonte: Barrera e Roarelli, 1995.

FPE

FPM

A menor eficiência redistributiva do FPM é acentuadapela inexistência de um mecanismo com a mesma finali-dade dentro dos estados. Embora uma pequena parte doICMS arrecadado seja destinado de forma não proporcionalà contribuição fiscal dos vários municípios de um estado,atuando como um mecanismo de redistribuição, a lógicapreponderante desse imposto é a de premiar os municí-pios economicamente mais bem-sucedidos. Desta forma,aqueles que já partem de uma condição econômica me-lhor são beneficiados também pela partilha do principaltributo estadual. Concluindo, no que se refere aos muni-cípios, a lógica tributária brasileira, tanto no âmbito inte-restadual como no intra-estadual, mostra-se de baixa efi-cácia redistributiva.

Uma forma de amenizar o caráter desigual da descen-tralização brasileira seria o Governo Federal assumir, defato, a coordenação desse processo. Todavia, a União temsido incapaz de coordenar o processo de descentralização.A principal preocupação do Executivo, desde o governodo presidente José Sarney, tem sido recentralizar os re-

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TABELA 3

Evolução do Número de MunicípiosBrasil – 1988-1995

Número de Municípios

Estados

1988 1995

Total 4.189 5.437

Amapá 5 16

Acre 12 22

Rondônia 19 48

Roraima 2 8

Amazonas 60 62

Pará 88 137

Tocantins 83 148

Distrito Federal 1 1

Goiás 184 234

Mato Grosso 93 130

Mato Grosso do Sul 72 77

Piauí 48 148

Maranhão 136 213

Ceará 170 184

Rio Grande do Norte 152 166

Alagoas 97 102

Sergipe 74 74

Paraíba 171 221

Pernambuco 168 185

Bahia 367 460

Minas Gerais 722 853

Espírito Santo 58 71

Rio de Janeiro 66 93

São Paulo 572 636

Paraná 297 396

Santa Catarina 199 287

Rio Grande do Sul 273 465

Fonte: Gazeta Mercantil, 17/12/1995.

Estes incentivos à fragmentação presentes na federa-ção brasileira vão contra a corrente internacional em prolda descentralização que ganha força a partir da década de80. Ao contrário da multiplicação dos municípios, o ins-trumento utilizado para fortalecer o poder local tem sidoo da redução do número de municipalidades. Países fede-rativos, como a Alemanha, ou unitários, como a Suécia,adotaram essa estratégia. Neste último, por exemplo, hou-ve uma redução de 2.000 para 284 municípios (Mendoza,1996:77). Caso os consórcios e outras formas associativasintermunicipais tivessem maior efetividade no Brasil, se-ria possível obter um resultado semelhante ao da reduçãodos entes locais; afinal de contas a unidade de ação al-cançada por meio destes instrumentos, potencializando ascapacidades administrativas e financeiras de diversasmunicipalidades – antes dispersas –, é o que se obteveatravés da diminuição do número de municípios em vá-rios países.

A DINÂMICA POLÍTICA INTRAMUNICIPAL

Como foi dito anteriormente, uma das condições paraque os municípios obtenham sua autonomia financeira éo estabelecimento de uma relação cooperativa entre osatores políticos relevantes. Isto tem implicações não ape-nas para o relacionamento entre os Poderes Executivo eLegislativo,5 mas também para a interação entre as auto-ridades governamentais (prefeito, secretários, vereadores,etc.) e a sociedade civil. A obtenção de maioria na Câma-ra é uma condição necessária, porém insuficiente para queo prefeito aprove as medidas que pretende implementar –em nosso caso, o incremento tributário municipal. Se osparlamentares sofrerem uma pressão muito grande de suasbases no sentido de vetar a política de incremento tribu-tário, dificilmente essa política logrará êxito. Por isso,torna-se necessária também a institucionalização de for-mas de negociação que incorporem diretamente à discus-são os setores a serem atingidos pelas políticas munici-pais, não apenas para que não ocorra o seu veto às políticasde incremento tributário, mas também para incorporar suacontribuição à designação e à formulação das políticaspúblicas que serão encampadas pelo município.

Nesse sentido, a experiência do orçamento participati-vo mostra-se bastante positiva, assim como o são os con-selhos municipais e outros eventuais fóruns de consultadireta, seja à população de um modo geral, seja a setoresespecíficos – em particular àqueles dotados de grande po-der de pressão. Note-se que se trata de implementar nomunicípio não apenas formas mais democráticas de ges-tão, mas também mais eficazes para a tomada e imple-mentação de decisões de governo. Se por vezes o funcio-namento normal de um regime democrático pode constituir

solução só pode se dar tendo em vista o seu caráter sistê-mico. Entidades previstas na Constituição, as regiõesmetropolitanas não se constituem, contudo, em organis-mos de cooperação efetiva entre os entes federativos. Estasregiões acabaram tornando-se meras circunscrições ad-ministrativas, com as quais não se comprometem nem osgovernos estaduais e tampouco os municípios que as com-preendem. Em resumo, não há governos metropolitanos,com autonomia política, administrativa e financeira paraatuar em termos de políticas públicas, assim como não hádispositivos institucionais que incentivem a formação deuma estrutura desse tipo por parte dos municípios.

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um obstáculo à eficácia decisória, em parte devido à ca-pacidade de constrangimento que têm as pressões exerci-das sobre as autoridades governamentais, a instituição demecanismos de concertação com a sociedade cria condi-ções para a redução das pressões.6 Assim, tanto o pro-cesso decisório ocorre de forma menos turbulenta, comoa implementação das políticas encontra menores resis-tências.

A transformação política do município envolve, ain-da, o estabelecimento de uma nova relação entre o Esta-do e o setor privado. Mesmo àqueles municípios que ob-tiveram significativos ganhos com a Constituição de 1988– em particular as capitais –, a necessidade de não só as-sumir a função de welfare, mas também o estímulo aodesenvolvimento econômico local, torna fundamental oincremento das parcerias com a iniciativa privada. Porém,para acrescentar recursos privados à receita municipal, épreciso tornar republicana a relação entre os empresáriose o poder público, caracterizada historicamente por pa-drões patrimonialistas. Setores como os de coleta de lixoe de transporte público são, na maior parte dos casos,controlados nas capitais do país por seus próprios con-cessionários. Episódio recente na cidade do Rio de Janei-ro ilustra bem essa situação. Lá, tanto o governadorMarcello Alencar como o prefeito César Maia admitiram,resignadamente, que há um cartel de empresários de ôni-bus que controla as licitações públicas.7

Modificar a relação entre o empresariado local e a pre-feitura, na verdade, poderia aumentar o número de inte-ressados em realizar parcerias com o setor público, os quaisnão o fazem hoje por conhecerem a forma tradicional eexcludente de relacionamento entre o setor público e ainiciativa privada. Considerando principalmente a escas-sez de recursos públicos destinados ao investimento, es-tabelecer parcerias significa viabilizar inúmeros projetosde interesse da sociedade.

CONCLUSÃO

Demasiadamente centrado na discussão sobre os pro-cessos de mudança do aparato estatal da União, o de-bate acerca da reforma do Estado tem deixado de lado,de um modo geral, o estudo da dimensão municipaldesse processo. Considerá-la sob este prisma não sig-nifica apenas transplantar para o âmbito municipal di-agnósticos e soluções aplicados a outras esferas depoder. Afinal de contas, é preciso lembrar que o Esta-do não se resume à sua dimensão central, de modo quereformá-lo significa também redistribuir suas atribui-ções entre os três níveis de governo. Isto permite ir alémdo maniqueísmo presente na opção entre Estado míni-mo e Estado máximo.

A partir da análise das condições para a reforma doEstado no nível municipal, constatamos que o enfrenta-mento do duplo desafio – o cumprimento das funções debem-estar e de desenvolvimento local – tende a ocorrerde forma desigual ao longo do país. Isto, que pode pare-cer um truísmo, ocorre pela forma pouco cuidadosa comque se vem realizando (ou se pretende realizar) o proces-so de descentralização. O debate em torno deste assuntoou se concentrou de forma ideológica, por um lado, nassupostas virtudes da descentralização e, por outro em seusdefeitos inatos; ou então se restringiu à discussão acercado caráter democrático e/ou eficaz desse processo. O quese pretende ressaltar aqui é que, em primeiro lugar, a pro-funda crise financeira por que passam a União e os esta-dos não permite mais pensar de forma realista em qual-quer política de recentralização. É por isso que osmunicípios assumem um papel tão relevante. Porém, emsegundo lugar, a descentralização, embora passe pelas dis-cussões da democratização e da eficácia, tem como pata-mar inicial a necessidade de serem criados instrumentosque coloquem os municípios em condições minimamen-te equânimes para execução das políticas que lhes são re-passadas.

Os dois primeiros parâmetros da reforma do Estadono âmbito municipal – a questão fiscal federativa e adesigualdade econômica entre os municípios – apon-tam para a exigência de serem estabelecidos mecanis-mos de cooperação entre as unidades de governo. O fatoé que a atual escassez de recursos tem sido enfrentadanão através da cooperação, mas sim pela busca com-petitiva – e até mesmo predatória – de recursos. A úni-ca forma pela qual torna-se possível alterar este qua-dro é a institucionalização de mecanismos que incentivema ação cooperativa.

Para realizar uma reforma do Estado em âmbito mu-nicipal que garanta a eqüidade, é preciso fazê-la deforma coordenada – conciliando as diferenças e carên-cias locais, mas de um modo minimamente coerente.A criação desses meios somente é possível através danegociação política entre os entes federativos. É aí quereside o maior obstáculo, pois mesmo com a retomadada capacidade de investimento do Estado, não serápossível empreender projetos minimamente eficientescaso não haja acordo sobre certos pontos. E, para cons-truir tal acordo, são necessárias instituições políticas queo permitam.

Esse problema institucional de ordem nacional tam-bém está presente no interior dos municípios. A emprei-tada política requer formas cooperativas e republicanasde interação entre os agentes locais – as autoridades go-vernamentais, o setor privado e os cidadãos de um modogeral. A cooperação, aliás, é elemento central na viabili-

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zação da reforma, uma vez que o cenário atual é caracte-rizado pela fragmentação, pela competição não-coopera-tiva, pelos padrões predatórios e pela combinação de es-forços no mais das vezes precária, dentro e fora dosmunicípios. E diante de um cenário como esse, o duplodesafio dos municípios torna-se ainda maior.

NOTAS

1. Segundo o Ministério Público paulista, a prefeitura de São Paulo gastou seisvezes mais com vias públicas do que com programas sociais entre 1994 e 1995.O novo discurso em prol da área social, adotado pelo malufismo, torna-se aindamais frágil quando se considera que o governo paulistano “deixou de construirem dois anos 577 escolas previstas nos Orçamentos”, há “um déficit de 2 milprofessores e as escolas municipais não estão dando 20% das aulas previstas”,ao passo que “em sete obras viárias foram gastos 738% a mais do que as previ-sões [orçamentárias]”. (Jornal da Tarde, 05/09/96:18-A).

2. A expressão “reinventar o governo” foi cunhada originalmente por (Osbornee Gaebler, 1994), cujo trabalho é constituído basicamente pela análise de expe-riências municipais nos Estados Unidos.

3. Dados de pesquisa feita pelo economista José Roberto Afonso, do BNDES, epublicados no jornal Folha de S.Paulo (31/08/96:1-7).

4. É importante frisar que a União não é constitucionalmente obrigada a conce-der transferências negociadas aos governos subnacionais. Em virtude da atualcrise financeira por que passa o Governo federal, a diminuição do montante des-sas transferências tem sido uma das estratégias adotadas para minimizar os pro-blemas de caixa da União. No período 1988-90, a participação das transferên-cias negociadas em relação ao PIB foi reduzida de 0,69% para 0,28% (Serra eAffonso, 1991:40). Historicamente, essas transferências têm sido importantespara obter apoio político no Congresso, quase sempre não obedecendo a critériostécnicos. Muito embora tenha ocorrido a diminuição supramencionada, as ca-racterísticas políticas ainda permanecem. Por exemplo, em 1992, os estados maisfavorecidos com as transferências negociadas foram Bahia e Pernambuco, cujosgovernadores foram importantes aliados do presidente Fernando Collor de Mello– Antônio Carlos Magalhães e Joaquim Francisco, ambos do PFL.

5. A este respeito ver Couto e Abrucio (1995).

6. Também a fragmentação de interesses existentes entre as autoridades gover-namentais num regime democrático de tipo consociativo (Lijphart, 1989) podese constituir num obstáculo à eficácia decisória. Neste caso, o estabelecimentode formas de concertação societária pode contribuir de forma indireta, uma vezque permite aos representantes de interesses sociais específicos formular acor-dos contando com um maior respaldo de suas bases.

7. O seguinte trecho de uma entrevista do prefeito César Maia dá uma demons-tração desse fato (Jornal do Brasil, 09/04/1996).

“– Como o senhor avalia a influência dos empresários de ônibus no Legislativoe no Executivo?

– A preocupação deles é maior com o Legislativo. Não querem nenhuma lei,apenas o poder do veto.

– O senhor já tentou mudar a medida que reduziu a incidência do ISS sobre ofaturamento das empresas de ônibus?

– Já se tentou por várias vezes, mas na Câmara Municipal o jogo é pesado.Se fizermos uma proposta dessas à Câmara, poderemos expor a instituiçãoao vexame.”

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EXPERIÊNCIAS MUNICIPAIS EDESENVOLVIMENTO LOCAL

SILVIA REGINA DA COSTA SALGADO

Coordenadora de Documentação e Informação da Fundação Prefeito Faria Lima

s discussões e os debates, há poucos anos, tinhamcomo objeto a mudança da situação do municí-pio quanto ao seu papel no desenvolvimento do

país. Discutia-se, então, como os municípios participariamdo processo, já que o desenvolvimento deixara de estarexclusivamente associado ao aumento do PIB, aos gran-des projetos de construção de infra-estrutura básica, àexecução de obras e, sobretudo, ao crescimento da pro-dução industrial, do comércio e do setor de serviços. Ouseja, concluía-se que havia caído por terra a concepçãode que o crescimento econômico – sob a idéia do “desen-volvimento” – modificaria as condições de saúde, educa-ção, habitação, transportes e outros serviços indicadoresda melhoria de vida das pessoas. Afinal, como a própriarealidade havia demonstrado, os resultados dessa concep-ção apontaram para uma imensa dívida social, a qual, aindahoje, está longe de ser resgatada.

Era comum, nesse contexto, a idéia de que o municípioviria a ter função importante no desenvolvimento com arealização de projetos de “menor porte”, o que, na práti-ca, estaria representado pela prioridade nos investimentossociais como forma para sua ação: o governo municipaldeveria voltar suas atenções para a área social. Combate àpobreza, atendimento à saúde, educação para o povo, habi-tação para os pobres e outros temas deveriam passar a ser,progressivamente, a preocupação dos dirigentes municipais.O “conceito” do desenvolvimento já não era mais o mesmo.Era preciso também e, sobretudo, satisfazer as necessidadesbásicas do ser humano. A acumulação deixava de ser, ne-cessariamente, um indicador de desenvolvimento.

A própria Constituição de 1988, ao repartir as competên-cias, deixou patenteado – muito mais que as anteriores – queos municípios têm responsabilidade na prestação de alguns

serviços, bem como competência para atuar em determina-das áreas que representam maior enfoque no social.

É evidente que essa discussão não está invalidada hoje.Porém, é apropriado, ou melhor, é atual o discurso que apostana administração municipal como a instância de governo quesó pode fazer aquilo que não está sujeito à interferência/de-cisão “de cima”. Para quem conhece um pouco (que seja!) avida municipal e tem compreensão da crescente complexi-dade que atinge a organização e o gerenciamento do muni-cípio, é muito difícil praticar o raciocínio do “social”, comoocorria há poucos anos, sem considerá-lo reducionista.

Haveria lucidez em apresentar uma atuação “limitada”da gestão local quando ela faz parte de um mundo que assis-te a progressos inimagináveis, em que temas misteriosos sãoagora corriqueiros? Pode-se continuar tratando a adminis-tração do município com uma certa singeleza e muita boavontade, quando as telecomunicações respaldam uma “al-deia global”, muito menos romântica do que aquela des-crita pelo filósofo da comunicação, há algumas décadas?Pode-se esquecer que o mundo é, hoje, uma grande aldeia,produto da internacionalização da economia, que prome-te cooperação internacional e ampliação de mercados?Como pensar a relação do município com o desenvolvi-mento sem considerar situações “macro”, como o fato deo mundo ser, hoje, feito de contrastes: a paz choca-se coma intolerância; o progresso com a ameaça de destruiçãodo planeta; a riqueza com a exclusão?

UM PESO NA BALANÇA

A realidade é que o país que se acostumou a pensarem ser o país do futuro, como já disse alguém, apresentaindicadores econômicos que o situam entre as maiores

A

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economias do mundo e indicadores sociais que o enqua-dram no conjunto dos países mais pobres da Terra. En-tretanto, o país que se acostumou a pensar em ser o paísdo futuro parece estar tentando enxergar os problemas sobo enfoque do desenvolvimento humano, diferentementedo que ocorreu até há pouco tempo. E é aí que o papel domunicípio pode/deve ser muito maior no que se refere aodesenvolvimento, inclusive econômico.

O município é a instância em que se torna mais viávela implementação de processo de gestão que gere bem-estar, que permita acesso aos bens culturais, que melhorea qualidade de vida, focalizando toda a atenção no cida-dão. É no município que fica mais clara a estranha distri-buição de riquezas, o papel deficiente do Estado/PoderPúblico e a falta de articulação das políticas econômicase sociais. Foi no município que primeiramente deixou-sede falar em confronto entre o Estado e a sociedade civil.É nele que se tem buscado, com mais força, formas de inter-relação para aumentar a capacidade de gestão efetiva.

Considerando essa situação como pano de fundo, nãose pode perder de vista que a questão do desenvolvimen-to econômico coloca-se para o município de maneira di-ferente, nesta década, implicando problemas e soluçõesmuito diversos daqueles que foram discutidos há poucotempo. Desenvolver o município, hoje, é gerenciar osproblemas fazendo frente à complexidade e à incerteza, émelhorar a qualidade dos serviços aos cidadãos e procu-rar o desenvolvimento humano ao mesmo tempo em queo econômico.

Atuar dessa forma e, simultaneamente, contribuir paraa melhoria dos mecanismos democráticos, harmonizan-do o que é feito com uma maior transparência, mais aparticipação da sociedade civil, significa “construir” umconjunto de ações distinto daquele praticado em outrossetores, que também estão enfrentando as atuais condi-ções da economia. O papel do município não pode serrevestido da pretensão de realizar o desenvolvimento. Eleé um articulador que reconhece a existência de uma so-ciedade interessada na melhoria da qualidade de vida.Nunca valeu tanto, nunca ficou tão “concreto” que se deverepensar o modelo convencional de gestão baseado nadivisão do trabalho entre os que identificam os proble-mas e definem soluções e aqueles que sofrem as conse-qüências de tais decisões.

Isso não significa que a administração municipal este-ja isenta de suas responsabilidades e/ou possa funcionarsem uma “profissionalização” de seus processos de gestão,sobretudo nas questões complexas, como exercer seu papelde articulador do desenvolvimento. Trata-se, aqui, do mu-nicípio assumir que houve incorporação ativa de um novoator social regulador nos processos econômicos tanto quan-to nos processos políticos: a sociedade civil organizada.

A situação está exigindo respostas/soluções rápidaspara questões complexas e as informações sobre as expe-riências de gestão local, veiculadas, inclusive, pelos meiosde comunicação de massa, indicam que os poderes muni-cipais estão compreendendo a dimensão de seu papel eobtendo êxito em suas intervenções no desenvolvimentolocal.

Considera-se, portanto, que são apropriadas algumasreflexões sobre as denominadas experiências municipais,que, se não são absoluta novidade, têm passado por trans-formações que as colocam como peso na balança da dis-cussão “Novo Município: economia e política local”.

DESENVOLVIMENTO: DA TEORIA ÀPRÁTICA MUNICIPAL

Principalmente para quem trabalha junto às adminis-trações municipais, experiências de gestão fazem partedo cotidiano. Estamos sempre atentos para ações que pos-sam melhorar a administração, otimizar a máquina públi-ca e atender às demandas. Há muito que os dirigentespercebiam não ser possível a continuidade dos instrumen-tos e processos de gestão existentes em face das deman-das da comunidade, que se organiza cada vez mais, e dasnovas condições de comunicação geradas pelo avançotécnico-científico e tecnológico.

O atual contexto passa a exigir novas soluções. Ne-cessidade de reformas no plano constitucional, tributárioou político-eleitoral tem sido debatida amplamente. Agre-ga-se a essa discussão a premência da introdução de prá-ticas gerenciais diferentes, centradas na procura de qua-lidade e no exercício da participação. As experiênciasmunicipais passam, sem dúvida, por aí.

Poder-se-ia dizer que as experiências municipais cons-tituem um aspecto prático que emerge dos inúmeros de-bates, cujo centro é a transformação do Estado raciona-lista tecnocrático-autoritário em Estado democrático,principalmente como reflexo de uma nova realidade eco-nômica, política e social que evidencia, por um lado, ofracasso do modelo centralizado e excludente dos regi-mes autoritários e, por outro, o crescente movimento debusca de respostas que levem em consideração os “no-vos” objetivos do Estado, sua forma de organização egestão. Mas, seria este o caminho para as discussões? Se-ria, ainda, sob este enfoque que as ações locais e sua rela-ção com o desenvolvimento dos municípios deveriam es-tar sendo apreendidas?

Até o final dos anos 70, o debate sobre a descentrali-zação político-administrativa caracterizava-se muito maispela denúncia do centralismo como um aspecto do poderautoritário do Executivo federal do que por ações con-cretas em favor da descentralização. É bem verdade que

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a partir de 1978 podem ser observadas propostas isola-das, principalmente no Estado de São Paulo, no sentidoda adoção de alternativas ao modelo econômico vigentee às políticas públicas distanciadas da realidade local edecididas por tecnocratas. O processo de redemocratiza-ção, que tem as eleições diretas de 1982 como um marco,conduziu a mudanças significativas, exigindo a descen-tralização e a municipalização como alternativas para aconsistência e a competência – eficácia técnica e eqüida-de social – no atendimento das demandas. Porém, é discu-tindo a descentralização que se pode compreender as açõeslocais no sentido de identificar e aproveitar a capacidadeque os municípios têm demonstrado em dar respostas aoamplo conjunto de problemas, cujas soluções têm inter-vindo no desenvolvimento?

Seria, então, sob o aspecto do novo ordenamento jurídi-co, traduzido pela Constituição de 1988, que se poderia ana-lisar o conjunto de experiências que têm ocorrido, uma vezque se considere que a nova Constituição Federal definiucaminhos para o processo de descentralização do municí-pio, definindo-o como uma esfera autônoma da Federação?

Independentemente das discussões teóricas, apesar denão existir uma sistematização sobre o que é e como podeocorrer a intervenção do município numa área tão ligadaa variáveis macroeconômicas, as experiências municipaistêm demonstrado que ela tem sido empreendida, consti-tuindo uma referência da capacidade local de dar respos-tas aos problemas de desenvolvimento, de colaborar como setor privado e com as organizações sociais e de influirde forma significativa em ações aparentemente fora doalcance dos governos locais, como é o caso, por exem-plo, da adoção de programas que garantem uma rendamínima, implicando mudanças na distribuição de renda.

A Fundação Prefeito Faria Lima (Cepam), que possuicomo uma de suas diretrizes a promoção da qualidade devida das comunidades por meio de ações que propiciemo desenvolvimento econômico-social e a melhoria dascondições ambientais, tem estado atenta para essas açõesno âmbito municipal, que contribuem para as mudançasobservadas na vida local/regional. O Cepam tem um acer-vo1 de experiências municipais que demonstra ter ocorri-do uma transformação nos objetivos, métodos e geren-ciamento dessas iniciativas. A comparação entre asocorrências dos anos 80 e as coletadas mais recentemen-te indica que hoje a instância municipal tem empreendi-do projetos que representam respostas às exigências con-temporâneas de mudanças socioeconômicas.

Melhoria da qualidade de vida, democratização dopoder e defesa do meio ambiente constituem-se bandei-ras que estão sendo assumidas com maior consistência,gerando transformações na ação municipal. Observa-se,primeiramente, maiores disposição e preocupação em atuar

nas políticas públicas e não apenas no pontual: a gestãomunicipal na área de saúde é emblemática dessa “inova-ção” dos anos 90. Por outro lado, se há duas décadas dis-cutia-se a melhoria da administração pública do ponto devista de sua organização, hoje a modernização dos pro-cessos gerenciais e administrativos pretende atingir obje-tivos mais amplos, como a eficácia na solução dos pro-blemas e a democratização dos processos de gestão:instrumentos como Conselhos Municipais e ConsórciosIntermunicipais são implementados nesse contexto. Umoutro aspecto que merece destaque refere-se ao foco nachamada participação comunitária como processo – in-dependentemente dos resultados –, que está sendo “subs-tituído” por formas mais “amadurecidas” de cooperaçãocom organizações sociais e com a iniciativa privada.

Sem preocupação em “teorizar” sobre esses pontos ouordená-los, são apresentados, a seguir, alguns aspectos emrelação às experiências municipais.

Em primeiro lugar, por mais que se deva considerarque ser eficiente/eficaz no atendimento das demandas sejaobrigação do poder público em qualquer esfera, não sepode negar que a realidade brasileira fundamentou umaprática e uma visão patrimonialistas em relação à gestãoda coisa pública, em que a “boa” ou a “má” gestão dosnegócios públicos tem sido mais relacionada ao perfil dosque administram do que à aplicação de princípios de ad-ministração. Assim, o fato das atuais experiências de ges-tão caminharem para o abandono de uma cultura admi-nistrativa baseada no poder autoritário e centralizado ena concepção da função pública “desprofissionalizada” éuma característica a ser considerada.

Essa nova postura é fundamental para que o municí-pio possa assumir seu papel de agente articulador do de-senvolvimento, principalmente se não for reduzida à idéiade que a gestão local deve seguir “cegamente” “fórmu-las” da empresa privada. Os objetivos e, sobretudo, amissão da administração municipal são diferentes. Issonão quer dizer que não se deva absorver métodos e técni-cas de gestão que melhorem o desempenho para atenderàs novas exigências, inclusive utilizando tecnologia deinformação e comunicação.

As experiências municipais têm demonstrado que existepreocupação em atender a princípios como racionaliza-ção das atividades em função da presteza, da eficiência eda economia de tempo e dinheiro; planejamento de ativi-dades que atendam às peculiaridades locais; identifica-ção da melhor forma para execução de obras e serviçospúblicos; adoção de esquemas para prestação de serviçospúblicos visando maior eficiência e redução de custosoperacionais; e outros fatores que distinguem o processode gestão dos municípios e facilitam seus procedimentoscomo agente promotor de desenvolvimento.

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Outra “lição” proporcionada pelas iniciativas locaisrefere-se ao fato de que a administração municipal estáultrapassando os limites das chamadas atribuições pró-prias – muito mais ligadas a serviços de “maquiagem” ur-bana – e assumindo questões de maior complexidade, quetambém “lhes” são próprias. Exemplo disso são experiên-cias significativas na área do abastecimento: das mais sim-ples, como a feira do produtor, às mais complexas – al-gumas envolvendo produção, circulação, transformação,comercialização e consumo. A relação direta entre o con-sumidor e o produtor melhora a qualidade de vida dascomunidades urbana e rural, interferindo, inclusive, nadistribuição de renda.

O abastecimento começa a ser concebido como com-ponente da política de desenvolvimento municipal, que éresponsável pelas funções sociais das cidades e pela ga-rantia do bem-estar de seus habitantes. Tende a passar aser foco da administração municipal, que tem autonomiapara legislar sobre ele e geri-lo, de forma complementaràs esferas estadual e federal, como ocorre com qualqueroutro assunto de interesse local. As experiências estãoevoluindo no sentido de não considerá-lo exclusivamen-te como um problema social de alimentação, mesmo quese reconheça que grande parte da população tem acessoineficiente aos alimentos básicos pelos mecanismos demercado. Para muitos municípios, a combinação entre aspolíticas de abastecimento e as medidas de apoio à pro-dução agrícola local, por exemplo, está significando in-tervenção de impacto no desenvolvimento.

A atuação local na área do abastecimento é apenas umdos inúmeros exemplos de intervenções que indicam aampliação de ações que estão contribuindo com odesenvolvimento local/regional. É importante salientar,inclusive, que há um declínio da idéia de que desenvol-vimento econômico é a industrialização. Parece haverreconhecimento de que muitos dos “negócios” atraídosaos municípios estão mais ligados ao aumento do lucrodas empresas do que à geração ou ampliação da renda dacomunidade. Agricultura, comércio ou atividades turís-ticas passam a ser identificadas como “vocações” possíveisde serem aproveitadas, sendo que o acesso ao emprego ea distribuição de renda são fatores cada vez maisconsiderados na perspectiva de melhoria da qualidade devida. Isso cria programas de geração de emprego e rendaque apóiam o trabalho de forma autônoma, em cooperação,ou mesmo as empresas familiares de produção de bens eserviços, fortalecendo a economia local.

Nesse contexto, tem surgido também um outro enfo-que para a preservação do meio ambiente como fator dedesenvolvimento. Ainda de forma discreta, as experiên-cias têm apresentado ações que contabilizam os custos dadegradação ambiental e atuam no sentido de evitá-la. Por

outro lado, há iniciativas específicas de projetos de defe-sa do meio ambiente marcados, principalmente, pelo fatode o município estar sendo “pensado” além de sua limita-ção geográfica: bacias hidrográficas são adotadas comounidade físico-territorial de planejamento e gerenciamentoe o consórcio intermunicipal passa a ser o principal ins-trumento dessas iniciativas.

O objetivo, aqui, é “enxergar” o papel do municípiono desenvolvimento – conceituado além da visão econo-micista –, a partir das experiências municipais. Muitosoutros aspectos poderiam ser elencados (ou melhor, de-veriam!), mas, para finalizar, é importante apontar acaracterística principal dessas iniciativas: apresentam umacomunidade com papel mais ativo frente à agenda públi-ca. Ou seja, elas passam pela inserção de conceitos comoator social e parceria e pelo fortalecimento da idéia dopoder público como um dos agentes do desenvolvimentolocal, que deve ser, para maior eficácia, compartilhadopor toda a comunidade.

O projeto deve envolver desde outras instâncias degoverno que atuam no espaço local até representaçõesorganizadas da sociedade civil, passando por institui-ções de pesquisa, empresários, etc.

“Olho clínico” para identificar as carências/necessida-des e as potencialidades/viabilidades é meio caminho paraobtenção de parcerias nos mais diversos níveis – é o que“ensinam” as experiências. As parcerias, nessas iniciati-vas, não têm como finalidade apenas obter recursos.Muitas vezes, a parceria não está só na implantação/cons-trução de um empreendimento, mas também em seu fun-cionamento e continuidade. O estabelecimento de parce-ria pressupõe que haja benefícios para a totalidade deparceiros e demonstra que o setor público é capaz de tercredibilidade e atrair a iniciativa privada como forma decaptar recursos e transformá-los em serviços.

SEM PASSE DE MÁGICA

Seria, no mínimo, ingênuo considerar que os gover-nos municipais estejam produzindo interferências quemudem completamente as condições locais, principalmen-te no que se refere à economia, fazendo desaparecer osproblemas da vida dos cidadãos. A crise é profunda e,entre outras conseqüências, diminui os possíveis inves-timentos do poder público e tem impacto determinantena questão da geração de emprego e renda. No entan-to, é inegável que há ações que promovem o desenvol-vimento e buscam a melhoria de condições de vida dapopulação, transformando a relação de dependência dosocial ao financeiro e, ao mesmo tempo, procurandoimplantar formas de intervenção no desenvolvimentoeconômico.

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Fatores como os citados são diferenciais que precisamser compreendidos no conjunto de iniciativas que ofere-cem soluções aos problemas de desenvolvimento local eregional. É importante que esses subsídios sejam difun-didos, ampliando, ao máximo, a ocorrência de ações quemelhorem o desempenho local e regional em questões que,há pouco tempo, estavam totalmente atreladas ao sistemamacroeconômico.

As práticas municipais têm ocorrido continuamente,sendo que conhecê-las, ao se buscar soluções para os pro-blemas, pode levar ao maior êxito na resolução das ques-tões de desenvolvimento local/regional, incluindo o eco-nômico. Talvez não seja exagero dizer também que essasações “localizadas” colocam-nos mais aptos como Esta-do, como Federação, a enfrentar, inclusive, o tal sistemaeconômico mundial, bem como alimentam nossa capacida-de de interagir com o mundo no contexto da globalização.

NOTAS

1. Base de Dados: Rede de Comunicação de Experiências Municipais – Recem.Neste ano, está sendo realizada coleta de informações das gestões 1993-1996,que deverá resultar em catálogo a ser divulgado para as próximas gestões. AFundação Getúlio Vargas, que realizou, neste ano, o Concurso Gestão Pública eCidadania, e o Instituto Polis também possuem Banco de Dados de Experiênciasde Gestão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LOBO, T.L. “Descentralização: cenários e perspectivas”. Revista do ServiçoPúblico. Brasília, Enap, v.118, n.3, set./dez. 1994, p.123-127.

SILVA, S. “Descentralização e cidadania: desafio do poder local”. Revista doServiço Público. Brasília, Enap, v.118, n.3, set./dez. 1994, p.129-136.

FIGUEIREDO, R. e LAMOUNIER, B. As cidades que dão certo: experiênciasinovadoras na administração pública brasileira. Brasília, MH Comunica-ção, 1996, p.214. (As cidades que dão certo, 1).

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DESENVOLVIMENTO LOCAL: UMA ALTERNATIVA PARA A CRISE SOCIAL?

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DESENVOLVIMENTO LOCALuma alternativa para a crise social?

último encontro promovido pelas Nações Uni-das para debater uma agenda social – o HabitatII – fecha um ciclo de discussões que têm por

pano de fundo um processo de globalização dominado pelaintegração mundial de mercados e pela progressiva dete-rioração da qualidade de vida que afeta os cidadãos, tan-to nos países centrais do capitalismo quanto no hemisfé-rio sul. Evidentemente, são diferentes os patamares dedireitos sociais reconhecidos no norte e no sul.

Esse processo de integração de mercados e de exclu-são social é marcado também por uma tendência de urba-nização que se mostra mais intensa justamente onde apobreza é mais acentuada: no hemisfério sul.

A problemática que se configura nesse cenário é a de tentargarantir uma qualidade de vida que assegure formas solidá-rias de sociabilidade e de dignidade a todos os cidadãos,principalmente àqueles que hoje encontram-se destituídosde direitos e ameaçados pelos males decorrentes da pobreza.

UMA AGENDA EMERGENTENO CENÁRIO INTERNACIONAL

Na passagem dos seus 50 anos de existência, as Na-ções Unidas tentam construir uma agenda social mundiale chamar para si um novo papel, centrado na procura denovos paradigmas para o desenvolvimento. A busca des-se objetivo ocorre por meio da realização das cúpulasmundiais, que se iniciaram com a Rio 92, passando peladiscussão de temas como população, direitos da mulher edesenvolvimento social e se encerram agora, na reuniãodo Habitat II, em Istambul.

Tomando como referência a discussão sobre as alter-nativas de desenvolvimento nesse cenário mundial de cres-

cente urbanização, alguns eventos preparatórios da reu-nião de Istambul sugerem os limites e as possibilidadespresentes nesse debate.

A reunião internacional realizada no Recife e patroci-nada pela ONU1 trouxe especialistas de todos os conti-nentes para debater as alternativas de combate à pobrezaurbana no cenário da globalização. O encontro delibera-damente evitou as discussões relativas às causas da po-breza urbana, buscando identificar, a partir de experiên-cias pontuais e localizadas, exemplos de como asiniciativas de governos locais associadas à participaçãoda sociedade civil podem enfrentar os problemas da ex-clusão social e da pobreza.

Uma contradição está presente nessa reunião: um or-ganismo internacional integrado por governos nacionaisnão pode atribuir a esses a responsabilidade pela execu-ção de políticas que são geradoras da pobreza e da exclu-são social.

Como resultado da reunião do Recife, surge a propo-sição de que cabe aos governos locais o maior papel nocombate à pobreza e à exclusão social. Arrolando umconjunto de sugestões que incluem o fortalecimento doprocesso de descentralização, o chamamento à participa-ção da sociedade civil e o intercâmbio de experiências ebest practices que possam generalizar-se a partir de re-des de informação, passa-se a atribuir às prefeituras umnovo papel, que tem uma marcada visão assistencialista,orientada para uma ação pontual e dirigida aos principaisbolsões de pobreza nos seus municípios. Programas degeração de emprego e renda, ações de solidariedade nocombate à fome, investimentos em infra-estrutura urba-na, etc. aparecem como o novo caminho de resgate dadignidade dos cidadãos.

O

SILVIO CACCIA BAVA

Sociólogo, Diretor do Pólis, Presidente da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais

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Curiosamente, não há qualquer menção às responsa-bilidades dos governos nacionais no que diz respeito apolíticas tão importantes como a de emprego, previdên-cia, assistência à saúde, educação e relações de trabalho.

Outra reunião preparatória ao Habitat II, realizada emMiami e promovida pelo Banco Mundial,2 congregou umimportante conjunto de prefeitos da América Latina. Tam-bém nesse encontro os efeitos sociais perversos do pro-cesso de globalização são reconhecidos. Aprofunda-se adiscussão da revolução tecnológica que dispensa um vo-lume cada vez maior de mão-de-obra, reconhece-se a inca-pacidade crescente dos Estados nacionais de implementa-rem políticas públicas que garantam a qualidade de vidade todos os cidadãos, além da continuidade na AméricaLatina de um processo intenso de urbanização, com to-das as implicações de deterioração do meio ambiente,colapso nos serviços públicos, aumento da violência e dacriminalidade, desagregação do tecido social e das formasde solidariedade no âmbito da sociedade civil.

Novamente o diagnóstico identifica os efeitos, mas nãosão discutidas as causas do aprofundamento da crise so-cial. Algumas poucas vozes que identificam, por exem-plo, a questão do pagamento da dívida externa dos paísesdo sul aos países do norte como um dos problemas gera-dores dessa crise não encontram eco no conjunto dos pre-feitos e nos representantes do Banco Mundial.

Como resultado desse encontro, tem-se a indicação deque cabe ao Banco Mundial e aos organismos multilate-rais de financiamento desenvolver linhas de crédito dire-to aos municípios, no sentido de reforçar sua capacidadede enfrentar os desafios que lhes são crescentemente atri-buídos em face da desobrigação dos Estados nacionais noque diz respeito aos direitos sociais. Além dessa impor-tante indicação, novamente se vê a preocupação em des-tacar as best practices e a capacidade de inovação dosgovernos municipais em seus novos papéis.

Estes eventos preparatórios ao Habitat II já indicamos resultados de Istambul. Discussões que se iniciaramna Rio 92 reafirmam a importância de se buscar interna-cionalmente novos paradigmas para o desenvolvimento,mas que é ainda entendido como crescimento econômi-co. Tais discussões também reforçam a perspectiva dadescentralização, que transfere dos governos centrais paraos governos locais a responsabilidade de gestão do habi-tat. Além disso, reafirmam uma perspectiva de tratamen-to pontual dos problemas sociais a partir dos municípios,novamente negligenciando que esses problemas são ge-rados por uma lógica que escapa à governabilidade dasprefeituras.

Discussões como a que questiona se o direito à mora-dia é um direito humano ou não, que podem parecer bi-zarras à primeira vista, têm sua razão de ser. Em países

como os Estados Unidos e o Japão, o reconhecimentoformal desse direito possibilitaria a todo cidadão reque-rer que o Estado efetivamente lhe garantisse um teto.

O saldo desse encontro mundial foi uma declaração dedireitos, indicativa para os governos nacionais, sustenta-da basicamente pelos países do hemisfério sul. É de senotar que, como bem observou Fidel Castro em seu dis-curso na ocasião, os chefes de Estado do G-7 – os setepaíses mais ricos do mundo – não se fizeram presentes aoevento.

Este conjunto de observações tem sua utilidade paratentar situar as razões pelas quais o tema do desenvolvi-mento local ganha destaque no plano internacional e pas-sa a constituir ponto importante das agendas das agên-cias multilaterais e nacionais de desenvolvimento.

O modelo atual de organização global dos mercados eda produção desconhece a importância de uma agendasocial. Esse fenômeno pode ser identificado também naorganização do Mercosul, que se estrutura a partir de tra-tados de livre comércio sem atentar para os efeitos so-ciais que sua implementação está a gerar. O que resultadesse modelo é um projeto de reforma dos Estados na-cionais que busca eximi-los das responsabilidades de aten-der conquistas sociais que se afirmaram como direitosuniversais, consagrados inclusive na nossa Constituição.Um dos traços dessa conjuntura e da hegemonia do pen-samento neoliberal é que se vive sob o signo de um pro-cesso de destituição de direitos sociais.

Analisando os processos de descentralização ocorri-dos recentemente na América Latina, verifica-se que ain-da é muito pequeno o repasse dos recursos federais e es-taduais para que os municípios possam desempenhar osnovos papéis que lhes são atribuídos (Oficina Regionalpara América Latina y El Caribe, 1995). Dessa perspecti-va, a proposta do desenvolvimento local pode ser enten-dida como uma transferência de responsabilidades sem ocorrespondente suporte financeiro e de capacidade degestão.

Uma leitura possível desse processo é que os Estadosnacionais passam a transferir a gestão do conflito social edas carências para os governos municipais. Reconhece-seassim como inexorável um sacrifício da qualidade de vidadecorrente do processo de globalização, a destituição dedireitos sociais e a deterioração da qualidade de vida.

O corte nos gastos públicos sociais e a destituição dedireitos provocam reações da parte da sociedade civil,principalmente dos setores organizados que representamas camadas mais pobres da população. Para impor umareforma do Estado com esse caráter, os governos nacio-nais confrontam-se com os movimentos sociais e buscama deslegitimação dos atores sociais coletivos, que repre-sentam os distintos interesses e demandas sociais. Dessa

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forma, compreende-se a recusa, por parte dos governos,da instituição de espaços públicos de negociação. Tem-se, portanto, outra característica da conjuntura: a frag-mentação do espaço público e o retrocesso democrático.

AS CONSEQÜÊNCIAS SOCIAIS DO PROJETODE DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO

O modelo de desenvolvimento que o Brasil implementa,e que agora entra em sua fase de ajuste estrutural e demaior integração ao processo de globalização das ativi-dades econômicas e dos mercados, é de uma moderniza-ção perversa. Na busca de maior produtividade e compe-titividade internacionais, aprofunda a dualização de nossasociedade, a concentração da riqueza e a disseminaçãoda pobreza, o desemprego estrutural, a exclusão social, adegradação ambiental, a perda das identidades culturaisda população, entre tantas outras nefastas conseqüênciaspara as maiorias.

Tomando como referência a dimensão do trabalho,vive-se o impacto de transformações de ordem interna-cional que, combinadas com a violação histórica de di-reitos sociais, produzem uma situação que coloca o Bra-sil entre os mais injustos e desiguais países do mundo. Odesemprego hoje, mais do que os baixos salários, é a maiorpreocupação do trabalhador brasileiro.

Dados gerais sobre o mercado de trabalho no Brasilmostram uma contração brutal do emprego industrial. De1989 a 1995, de cada quatro trabalhadores na indústria,um foi demitido. Os postos de trabalho reduziram-se em26% neste setor. Atualmente, os trabalhadores no merca-do informal já são 57% do conjunto dos trabalhadoresbrasileiros (Campos, 1996).

Ao se tomar a indústria automobilística como referên-cia, verifica-se que sua produção, nos últimos dez anos,aumentou em 54,8%, enquanto o número de empregosdiminuiu 15,2%. Processos semelhantes ocorreram tam-bém no setor de serviços, em que os grandes bancos pri-vados nacionais, por exemplo, ampliaram enormementeseus serviços, reduzindo nesse mesmo período seus pos-tos de trabalho em mais de 40%. O aumento do desem-prego, no entanto, não impede que, nas cadeias produti-vas da indústria automobilística, por exemplo, se utilizeintensivamente o trabalho infantil. As crianças compõem22% da força de trabalho em nosso país.

Em razão dessa lógica que impõe as razões de merca-do e da fragilidade dos atores coletivos populares na de-fesa de seus salários e condições de trabalho, esta é a re-gião do mundo, à exceção da China, que apresenta a maiormargem de lucro bruto para as empresas (Singer, 1995).Como conseqüência deste processo, magnificam-se osproblemas sociais.

É preciso reconhecer que esta situação poderia ser outrase o projeto de desenvolvimento estivesse centrado nabusca do bem-estar e da participação dos cidadãos. AoEstado caberia disciplinar o processo de acumulação docapital, garantir direitos sociais, e, frente à situação atual,promover uma política redistributivista, capaz de enfren-tar os problemas sociais.

Apenas para ilustrar a amplitude das possibilidades deque o governo federal dispõe se quiser enfrentar essesproblemas, com apenas 0,8% do PIB eliminar-se-ia a po-breza absoluta no país. Utilizando como referência a ren-da nacional, isto significaria transferir cerca de 12% darenda dos 10% mais ricos para atender aos mais pobres(Camargo, 1995). Os 32 milhões de miseráveis que o mapada fome produzido pelo Ipea identificou superariam essacondição, passando a ter o suficiente para sobreviver.

Mesmo na aplicação dos escassos recursos destinadosà área social, pode-se observar o tratamento privilegiadodas elites. Em recente estudo do Banco Mundial sobre apobreza no Brasil, suas conclusões são de que “todo osistema é enviesado em favor dos mais ricos... dividindo-se a população em cinco fatias, conforme a renda, a maispobre fica com 16% dos gastos, a segunda com 18%, aterceira com 20%, a quarta com 22% e a quinta com 24%”(Pinto, 1996). Se já não bastasse a distribuição desigualque favorece justamente aqueles que menos necessitam,os cortes no orçamento federal não deixam dúvidas quantoaos propósitos do governo. De 1989 a 1993, os orçamen-tos das áreas de educação e saúde foram cortados, emvalores absolutos, em 27% e 22%, respectivamente. En-tretanto, quando considerados como porcentagens do PIB,seus valores foram reduzidos à metade nesse período.

O Plano Real melhorou um pouco a posição relativados mais pobres. De setembro de 1994 a setembro de 1995,os 50% mais pobres aumentaram 1,2% sua participaçãona renda nacional e os 20% mais ricos perderam 2,3%.Porém, considerando a concentração de renda nos anos90, “o resultado líquido foi uma brutal deterioração dosníveis de pobreza” (Revista Veja, 06/03/96). No que dizrespeito às políticas sociais, os dados de 1995 indicamum maior investimento nessas áreas, mas ainda muitoaquém do que o governo federal destinou à saúde e à edu-cação no final da década de 80.

Em recente discurso proferido no México, o presidenteFernando Henrique Cardoso, analisando as conseqüênciasda globalização, diz que não somente esse processo é ine-vitável, como “também são inevitáveis suas conseqüên-cias, seus desastres, a exclusão e a regressão social. Nessasituação, não surpreende que sua conclusão seja uma frus-tração. O presidente descreve uma pré-catástrofe, mas nãoesboça um plano para evitá-la. Sua sugestão é ‘revitalizaros valores do humanismo’. Outra proposta é ‘retomar os

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valores comunitários’ e também ‘recriar uma ética da so-lidariedade’, retomar ‘utopias parciais’. É difícil encon-trar alguém que não aprecie a solidariedade e o humanis-mo. Mas é impossível imaginar que um sociólogo cultiveisso como saída, muito menos como ‘utopia parcial’. Sãopalavras, além de ocas e vãs, tenebrosas, já que o pressu-posto, devidamente oculto, é uma visão excludente dosexcluídos que afirma que a miséria e o padecimento doshumildes não têm solução na política” (Leite, 1996).

O programa de reformas encaminhado ao Congressopor FHC ratifica e consolida a proposta de ajuste estrutu-ral de nossa economia defendida pelo FMI e traz consigoa decisão de aceitar o alto custo social decorrente dessasmedidas.

CIDADANIA E OS NOVOS PARADIGMASDO DESENVOLVIMENTO

As críticas ao modelo neoliberal de reforma do Estadoreconhecem na esfera estatal um papel redistributivista eregulador dos conflitos sociais que a lógica do mercadojamais seria capaz de realizar.

“Pretende-se uma visão de desenvolvimento que colo-que o ser humano e os interesses coletivos e das maioriascomo ponto central, convergindo para a possibilidade depotencialização das capacidades de todos os indivíduos”(Dowbor, 1995).

Assumir essa definição implica reconhecer a necessi-dade da regulação democrática da sociedade na defesa dedireitos sociais universais que devem ser garantidos peloEstado e que não se resumem ao atendimento de carên-cias materiais. Ao alargar o exercício da cidadania, asnecessidades sociais são formuladas pelos próprios ato-res do processo de desenvolvimento e não se circunscre-vem ao atendimento das demandas sociais básicas.

“A dinâmica democrática não está unicamente, nemfundamentalmente, centrada na resolução de demandassociais, mas sim na criação destas demandas. Uma mo-dalidade de regulação política democrática se sustenta noprincípio de que o universo das necessidades sociais nãoestá fechado, mas sim aberto” (Marsiglia, 1995). Dessaperspectiva, a cidadania é um processo em permanenteconstrução, que amplia suas demandas a partir do pata-mar de conquistas sociais já consolidado. É, portanto, umprocesso histórico, datado no tempo e no espaço.

Segundo Amartya Sen (1993), “o desenvolvimento tempor objetivo último melhorar os tipos de vida que os se-res humanos estão vivendo. Tanto em teoria quanto naprática o desenvolvimento deve ser definido em relaçãoàquilo que os seres humanos podem ser e devem fazer.”

Sen utiliza o termo efetivações para designar os dife-rentes modos de ser e atividades. Uma efetivação é uma

conquista (ativa) de uma pessoa – é o que ela conseguefazer ou ser, e qualquer efetivação reflete uma parte doestado dessa pessoa. As efetivações podem variar desdeas elementares (vitais), como alimentar-se adequadamentee evitar doenças ou mortalidade precoce, até as mais com-plexas, como desenvolver o auto-respeito, participar davida da comunidade ou apresentar-se em público sem seenvergonhar. A vida é entendida como a combinação devárias atividades e modos de ser. A capacidade reflete aliberdade pessoal de escolher entre vários modos de ser/viver.

O desenvolvimento é, então, “a expansão das capaci-dades humanas de efetivar formas de existência e de ati-vidade. O objeto da ação pública pode ser entendido comoa ampliação da capacidade das pessoas de serem respon-sáveis por atividades e estados valiosos e valorizados”(Amartya, 1993).

CIDADANIA E DESENVOLVIMENTO LOCAL

A discussão sobre um modelo alternativo de desenvol-vimento que possa se contrapor ao atual modelo neolibe-ral talvez seja um dos maiores desafios de nossa época.Envolve um complexo campo de relações e competências,que requerem a combinação de políticas de âmbito na-cional com projetos de desenvolvimento regionais e lo-cais. Por essas razões, muitos não acreditam na possibili-dade de realização de projetos de desenvolvimento local,considerando as atuais determinações das políticas nacio-nais insuperáveis.

Essa visão crítica, que se baseia em uma análise ma-cro da dinâmica de nossa economia e sociedade, desco-nhece um importante conjunto de iniciativas de governosmunicipais e mesmo de consórcios intermunicipais que,ao promoverem a melhoria da qualidade de vida e a valo-rização da ação cidadã, estão contribuindo também paraa constituição de novos atores coletivos e espaços públi-cos de negociação.

As reformas estruturais de âmbito nacional orientadaspara atender aos interesses coletivos e das maiorias sãoações desestabilizadoras do status quo, que necessitamde atores sociais coletivos e alianças políticas com tama-nha força e capacidade de mobilização que não surgemnem se constituem da noite para o dia.

São de extrema relevância para esse processo de trans-formação social as práticas cotidianas de defesa da cida-dania, o fortalecimento dos atores sociais coletivos en-quanto agentes promotores do desenvolvimento, oprocesso de descentralização das políticas públicas, o for-talecimento dos municípios enquanto esferas autônomasde governo, etc. E isso em um duplo sentido: tais açõesarticulam iniciativas que permitem uma efetiva melhora

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na qualidade de vida dos cidadãos, ainda que sejam me-lhorias de um reduzido impacto social, e são também umaescola de cidadania.

“As inovações na gestão municipal se devem à crisedo Estado de Bem-Estar e a uma atitude de maiorprotagonismo de distintos atores da sociedade civil, des-de empresários até distintas organizações de base territo-rial vinculadas a questões como moradia, saúde, consu-mo, recreação, etc. A dinâmica da descentralização emnosso país é fundamentalmente o resultado da emergên-cia de novos atores políticos paralelamente ao progressi-vo enfraquecimento da capacidade governativa do governofederal” (Draibe e Arretche, 1995).

O fato é que os municípios já começam a enfrentar odesafio de atender urgências sociais que transcendem, porsuas características, as intervenções limitadas e pontuaisque assumiam anteriormente. Os problemas de habita-ção, saúde, educação, emprego, alimentação, etc. co-meçam a constituir preocupações cotidianas de muitasprefeituras. As soluções que estão aparecendo, as ini-ciativas inovadoras que partem de governos muni-cipais e os consórcios de municípios comprometidoscom os interesses das maiorias, que em muitos casosincorporam a participação da sociedade civil, são umademonstração de que a questão do desenvolvimento,vista de uma nova forma, não é de domínio exclusivodo governo central nem está determinada por uma ló-gica nacional que desconhece as oportunidades locaise neutraliza a ação cidadã.

É de se notar, no Brasil, a constituição de órgãos cole-tivos de representação de prefeitos e secretários munici-pais – Frente Nacional de Prefeitos, Fórum Nacional deSecretários de Finanças, etc. –, que passam a negociarcoletivamente com outras instâncias governamentais, as-sumindo compromissos de fortalecimento da democraciae da cidadania. Isso vem sensibilizando um número cadavez maior de municípios para experiências exitosas, comoa do Orçamento Participativo.

“Os governos locais, em boa medida, entendem tradi-cionalmente sua função como uma fiscalização de nor-mas que definem um projeto físico de cidade. Será fun-damental transformar esta atitude burocrática controladorapor uma de promoção do desenvolvimento, mobilizadorae de articulação de atores em prol de objetivos dinâmi-cos, entendendo que a construção da cidade é uma tarefapermanente que requer o concurso e a participação dacidadania e de todos os atores relevantes.” (PGU, 1995).

O tema do desenvolvimento local, por definir uma baseterritorial, já chama a atenção para a questão das particu-laridades. Ao se considerar por local a menor unidadepolítica da federação, tem-se então que a base territorialé o município.

A REALIDADE DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS

Hoje, no Brasil, de cada quatro pessoas, três vivem nascidades. O intenso processo de urbanização continua a seafirmar como tendência. A população urbana passou de50%, em 1970, para 75%, em 1991, esperando-se que noano 2000 atinja a marca dos 80%.

Nesse mundo urbano brasileiro – que compreendia cer-ca de 5 mil cidades em 1992 –, os espaços que mais cres-cem são os municípios médios e as periferias das regiõesmetropolitanas.

A concentração populacional nas regiões metropolita-nas é um fenômeno que tende a diminuir, mas já é extre-mamente elevada. Nas nove regiões metropolitanas exis-tentes, vivem 43 milhões de pessoas, 29% do total debrasileiros e 40% da população urbana. São 187 os muni-cípios com mais de 100 mil habitantes, dos quais 55 inte-gram as regiões metropolitanas. Embora representem ape-nas 4% do total, abrigam 48% da população brasileira.As cidades com menos de 50 mil habitantes representam90% do total de municípios e abrigam 36,2% do conjun-to das famílias brasileiras.

Em 1989, 40% dos domicílios urbanos eram habita-dos por famílias pobres, sendo que 3,2 milhões de domi-cílios estavam abaixo da linha da pobreza absoluta (12,5%)e, portanto, tinham suas necessidades básicas insatisfei-tas; 5,4 milhões (21%) concentravam a pobreza recente,ou seja, aquelas pessoas que, apesar da insuficiência darenda, tinham alguma ou todas as necessidades básicas,além da alimentar, satisfeitas; 1,6 milhão de domicílios(6,3%) abrigavam famílias que, apesar de estarem acimada linha da pobreza, encontravam-se em insuficientes con-dições básicas de vida. Nas cidades com menos de 50 milhabitantes, concentravam-se 54,6% do total das famíliasindigentes brasileiras. Ao todo, eram cerca de 45 milhõesde brasileiros vivendo nos limites ou abaixo da linha dapobreza nas cidades.

A pobreza é um fenômeno que se disseminou na socie-dade e hoje é distribuída de maneira equilibrada entre omeio urbano e o rural, com tendência a se concentrar nazona rural nordestina e periferias das regiões metropolita-nas e com incidência mais forte nos pequenos municípios.3

Há, além da renda, outros indicadores que permitemidentificar a deterioração da qualidade de vida nas cidades:condições de moradia; quantidade e qualidade da ofertade equipamentos e serviços públicos de caráter coletivo –como os serviços de transporte, saneamento básico, co-leta de lixo, saúde e educação –; violência urbana;congestionamento de trânsito; contaminação hídrica,atmosférica e sonora; destruição dos recursos naturais; desin-tegração social; desemprego; perda da identidade culturale da produtividade econômica; ingovernabilidade, etc.

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Considerando-se que 75% da população brasileira é ur-bana e que a dinâmica do desenvolvimento local se define apartir do locus e das condições em que vivem as pessoas,um novo paradigma de desenvolvimento só pode ser cons-truído se for assumida como central a vida nas cidades.

O DESENVOLVIMENTO LOCAL COMOPROJETO DE MUDANÇA SOCIAL

O tema do desenvolvimento local está sendo elabora-do, ultimamente, como uma possível resposta ao aprofun-damento da dualização e da exclusão social no país. Essadiscussão é difícil e complexa porque envolve projetospolíticos em disputa, começando pela própria noção dedesenvolvimento, passando pela reforma do Estado e des-centralização e terminando pela discussão dos limites ecompetências dos governos locais. Seu ponto nevrálgico,de uma perspectiva democrática, está no fato de que elatoca a questão da concentração da propriedade e da ren-da. Até agora, as forças conservadoras que continuamcontrolando este país não se dispuseram a viabilizar – apartir do Estado – políticas redistributivistas.

Na verdade, os projetos de desenvolvimento que exis-tiram até hoje submeteram a ação do Estado aos interes-ses privados e predatórios de distintos setores das classesdominantes, cada um à sua época, imprimindo suas mar-cas na configuração da sociedade brasileira. Os governoslocais foram – e continuam sendo, em sua avassaladoramaioria – instrumentos de apropriação privada do espaçopúblico e de manutenção das oligarquias regionais e mu-nicipais no poder.

O tema do desenvolvimento local ganha importânciano cenário de redemocratização do país como uma alter-nativa de intervenção articulada de novos atores sociais epolíticos na reorientação da ação do Estado, no sentidode atender aos objetivos de construção da cidadania e damelhoria da qualidade de vida dos brasileiros. Nesse sen-tido, coloca-se como um novo patamar de um processo delutas sociais.

Trata-se de um esforço de mobilização de energias so-ciais que sejam capazes de enfrentar, de uma maneira com-binada, por um lado, as violações históricas dos direitos so-ciais e, por outro, as conseqüências do ajuste estrutural daeconomia brasileira e da reforma neoliberal do Estado.

CIDADE E CIDADANIA

Pensadores modernos como Italo Calvino e FélixGuatari falam de uma cidade subjetiva que cada um levadentro de si e que se acomoda ou se rebela em contatocom a cidade objetiva construída pela sociedade, tocan-do assim a delicada relação subjetividade-objetividade,

na qual se assenta o sentido de pertencimento das pes-soas em relação à cidade, isto é, o sentido de cidadania(Alva, 1995).

O grande desafio está em estabelecer uma relação en-tre a cidade subjetiva (o desejo, a utopia) e as condiçõesreais de produção e reprodução da vida em cidades con-cretas, com problemas particulares.

É importante assumir que o desenvolvimento local éendógeno, nasce das forças internas da sociedade; eleconstitui um todo, com dimensões ecológicas, culturais,sociais, econômicas, institucionais e políticas, sendo quea ação a seu serviço deve integrar todas essas dimensões.Qualidade de vida, socialização do poder, distribuição derenda e acesso aos serviços públicos e aos benefícios datecnologia precisam ser considerados de forma integrada(Araújo, Medeiros e Pontes, 1995).

Para construir propostas de intervenção, isto é, operarno campo das políticas públicas, não basta o desejo, autopia. É preciso promover o diagnóstico das situaçõesconcretas, reconhecer o que Franklin Dias Coelho chamade espaço herdado, ou seja, as identidades regionais, ahistória, o padrão de organização do território, a divisãointer-regional do trabalho, as desigualdades sociais exis-tentes, etc. (Coelho, 1995).

O que se destaca num projeto de desenvolvimento lo-cal é a possibilidade, por um lado, de articular, a partir deiniciativas dos governos locais, um conjunto heterogêneode forças sociais locais em torno de um projeto comum e,por outro, de direcionar essa energia para o aproveitamentodas oportunidades locais, viabilizando a produção despecialities, eliminando atravessadores, estimulando mi-cro e pequenas empresas, formas cooperadas de produ-ção e comercialização de produtos e serviços, enfim, ar-ticulando e estimulando uma série de iniciativas que abramnovas oportunidades de trabalho, distribuição de renda,mercado.

É importante identificar o município como essa uni-dade política que atua sobre uma base territorial por con-ta da questão da governabilidade. Um projeto de desen-volvimento local, que articule e mobilize os atores dodesenvolvimento, precisa se apoiar nas iniciativas da so-ciedade civil, mas necessita do estímulo e da articulaçãodos governos locais para se viabilizar.

OS VÁRIOS SIGNIFICADOS POSSÍVEIS DOPROJETO DE DESENVOLVIMENTO LOCAL

O fato de o tema desenvolvimento local estar em evi-dência não significa que haja uma compreensão unívocaem torno do seu sentido. Das discussões internacionais,pode-se depreender uma expectativa de que, com a refor-ma neoliberal do Estado – que supõe o colapso da capa-

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cidade de os Estados nacionais suprirem as demandassociais – possa se transferir essa responsabilidade para osmunicípios. A timidez, entretanto, com que se promovemos processos de descentralização, seja do ponto de vistada governabilidade dos projetos, seja do financeiro, co-loca sérios limites para que os governos municipais pos-sam cumprir o papel que lhes é atribuído.

Se não se trata de enfrentar efetivamente o desafio deresgatar a dívida social, o objetivo oculto desse projeto étransferir para os governos locais as relações de conflitosocial geradas a partir das demandas insatisfeitas.

Nesse projeto há um reconhecimento de que o proces-so de globalização leva inexoravelmente a um aprofun-damento da dualização em nossa sociedade, com o cres-cimento da pobreza e da exclusão social.

Da perspectiva de um projeto de desenvolvimento hu-mano e sustentável, a reforma do Estado coloca-se fun-damentalmente no sentido da reorientação de seus obje-tivos e de sua ação. A discussão sobre sua organização eseu tamanho está condicionada ao papel que os órgãospúblicos devem desempenhar na garantia dos direitossociais universais.

Francisco de Oliveira, com muita propriedade, apontaa existência de um processo de reforma do Estado,orientado de baixo para cima, a partir das pressões dasociedade civil organizada que, quando encontra gover-nos municipais sensíveis aos interesses populares ecomprometidos com uma abertura à participação popular,desenvolve iniciativas que atestam a possibilidade de,apesar dos escassos recursos disponíveis, serem promo-vidas, conjuntamente entre sociedade civil e governoslocais, iniciativas de alto impacto na melhoria da qualidadede vida dos cidadãos.

Levando em conta que as possibilidades do desenvol-vimento são substancialmente endógenas e requerem amobilização das forças sociais presentes localmente, épreciso reconhecer que não existem modelos capazes deorientar um governo nos aspectos específicos de cada rea-lidade local. Tampouco é possível atribuir aos governoslocais uma capacidade que estes não têm. Como, por exem-plo, enfrentar a questão do desemprego ou dos baixos sa-lários? Como enfrentar o limite de crédito aos pequenos emicroempresários? Como enfrentar as políticas de preçospraticadas, por exemplo, pelos serviços públicos? Comoenfrentar a ação organizada de cartéis e monopólios queimpõem preços abusivos a insumos de produção ou bensde consumo indispensáveis?

Essas perguntas levam a uma consideração final. Asexperiências que estão em curso em alguns grandes e pe-quenos municípios brasileiros apresentam um horizonteotimista nos seus resultados. Essas experiências confron-tam-se com os interesses conservadores que buscam rea-

firmar seus privilégios e suas vantagens frente à coletivi-dade. As possibilidades de ampla disseminação dessasexperiências dependem de um cenário nacional em que ademocracia não seja apenas entendida como o direito àorganização política e ao voto, mas também ganhe umconteúdo econômico voltado para a redistribuição da ri-queza e da renda. Daí o porquê de não poder adotar emuma ótica democratizante a perspectiva de procurar ape-nas generalizar as best practices. Estas precisam de umcenário que as potencialize e dissemine, o que implica umanecessária relação entre o local e o nacional, em que ainteração das vontades possa criar novas condições de seorganizar um projeto de desenvolvimento democrático esustentável, que incida sobre o conjunto das políticaspúblicas em todos os níveis.

NOTAS

1. Recife International Meeting on Urban Poverty; promovido pelo United Centerfor Human Settlements de 17 a 21 de março de 1996.

2. Segunda Conferencia Interamericana de Alcaldes – una agenda emergente depoliticas para los gobiernos locales; promovido por Usaid/IAF/OEA/BID/Birdem Miami, de 17 a 19 de abril de 1996.

3. Os dados apresentados aqui sobre as tendências da urbanização e da pobrezaforam extraídos de Draibe e Arretche (1995).

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AMBIENTE E CIDADESem direção a uma nova agenda

literatura acerca do debate em torno da questãodo Estado e da problemática ambiental (Lester,1989; Paehlke, 1989; Milbrath, 1989; Porter e

Brown, 1991; Orr, 1994; Vig e Kraft, 1994; Cahn,1995)demonstra a importância da atuação de vários atores so-ciais no processo de formulação e implementação de po-líticas ambientais para a tentativa de buscas de soluções.

Entretanto, deve-se salientar que este debate é controverso.Tendo em vista o objeto específico de análise – a políticaambiental – e a complexidade da temática, parece que so-mente a possibilidade de ação de diferentes atores sociaisnão solucionaria a questão (Olphus, 1977 e Cahn, 1995).

Na última década, a dinâmica da ordem mundial temsido profundamente marcada, do ponto de vista ecológi-co, pela emergência ou intensificação dos problemassocioambientais globais e locais (Porter e Brown, 1991;Newton e Dillingham, 1994; Lanier-Grahan, 1993 e Vio-la, 1992). Estes autores enfatizam que o processo de con-solidação do ambientalismo como movimento histó-rico produz impacto nas clivagens do sistema mundial.Para Viola (1992), por exemplo, pode-se definir duas li-nhas na dinâmica da política internacional: a primeirasendo as forças cujos interesses e orientação localizam-se dentro do Estado-Nação (nacionalistas) versus as for-ças cujos interesses e orientação localizam-se na escalamundial (globalistas); a segunda sendo entre as forças queassumem a proteção ambiental como uma dimensão fun-damental (globalistas ambientalistas) versus as forças in-diferentes à proteção ambiental.

Vários autores têm analisado as políticas ambientais apartir desta perspectiva (Lester, 1989; Vig e Kraft, 1994;Newton e Dillingham, 1994; Cahn, 1995; Ferreira e Vio-la, 1996; dentre outros).

Contudo, a análise das políticas ambientais no nívellocal é ainda bastante recente. Segundo Amy (1994),estes estudos refletem o desenvolvimento do “estadoda arte”, ou seja, após algumas décadas de implemen-tação de políticas ambientais, faz-se necessária a análisepormenorizada deste processo, sendo que os estudosno âmbito local são sugestivos para isto. Examinando-se o desenvolvimento nas décadas de 70 e 80, pode-seafirmar que os Estados Unidos e outros países altamenteindustrializados adotaram dezenas de políticas ambien-tais e criaram novas instituições para desenvolverprogramas na área. Entretanto, para os anos 90, a agendaambiental parece tornar-se mais complexa (Vig e Kraft,1994).

Quando se considera a continuidade das políticas am-bientais nesta década, é necessária uma avaliação cuida-dosa. Na verdade, vários governos ainda não estão sufi-cientemente equipados para resolver os problemasambientais globais e principalmente locais. Segundo Cahn(1995), reformas institucionais e, principalmente, novosmétodos nos processos de decisão para buscas de novasformas de gestão serão fundamentais para o real sucessodestas políticas.

É importante definir, antes de tudo, os grandes eixosde mudança que atingem a sociedade neste fim de séculoe que deveriam influenciar os parâmetros de novas for-mas de gestão do Estado. As tranformações mais sig-nificativas podem ser resumidas em alguns grandeseixos: a informática, que está revolucionando todas asáreas e, em particular, aquelas que lidam com o conhe-cimento; a biotecnologia, que ainda não invadiu o nos-so conhecimento, mas que deverá constituir a forçaprincipal de transformação na agricultura, indústria

A

LEILA DA COSTA FERREIRA

Professora do Departamento de Sociologia e Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Ambientais da Unicamp

SIMONE DE OLIVEIRA SIVIERO

Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Ambientais da Unicamp

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AMBIENTE E CIDADES: EM DIREÇÃO A UMA NOVA AGENDA

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farmacêutica e outros setores na próxima década; asnovas formas de energia, as telecomunicações, queconhecem uma revolução tecnológica ainda mais pro-funda e dinâmica do que a informática; e, finalmente,os novos materiais, que permitem avanços na eletrôni-ca e na informática e assim por diante.

O que é realmente novo neste processo é o ritmo des-tas transformações. Basta lembrar que um estudo da Co-munidade Européia considera que, nos últimos 20 anos,dobraram os conhecimentos científicos, relativamente àtotalidade de conhecimentos técnicos acumulados durantea história da humanidade (Lidstone, 1995).

Por precárias que sejam avaliações deste tipo, o fato éque se está no meio de uma gigantesca renovação cientí-fica. Isto deve ocupar um lugar central nas nossas refle-xões sobre as formas de gestão econômica, social e am-biental. Acabou-se o tempo em que se geria uma realidaderelativamente estática. E gerir a mudança implica gerirum processo permanente de ajustes dos diversos segmen-tos da reprodução social, que poderia ser definido comogestão dinâmica.

O processo de globalização ou internacionalização doespaço mundial resulta, em grande parte, dos avanços tec-nológicos mencionados. Hoje são vistas as mesmas ima-gens na TV, compram-se os mesmos carros, lêem-se osmesmos artigos (ou quase) em qualquer lugar do mundo.

No final do século XX, percebe-se que os problemassocioambientais encontram-se interligados. Problemas deordem global atingem o cotidiano.

À primeira vista, uma reflexão sobre globalização emeio ambiente, devido à sua amplitude, sugere que estase afaste das particularidades. Entretanto, ocorre justamen-te o contrário: uma reflexão sobre globalização e meioambiente, muitas vezes, revela-se exatamente através docotidiano. Este é um dos fios condutores deste trabalho.Pode-se encontrar, ao longo da discussão sobre globali-zação e sustentabilidade, além das discussões mais ge-rais sobre globalização, um conjunto de problemas quesão muito familiares: a questão do poder local; a proble-mática das águas e dos diferentes tipos de poluição; aquestão da qualidade de vida; a questão do espaço públi-co; a discussão sobre desenvolvimento; etc.

Na verdade, há várias interpretações sobre globa-lização, o que é mais um indício importante da origina-lidade,complexidade e urgência desta problemática.(MacLuan e Bruce, 1989; Modelski, 1987; MacGrew eLewis, 1992, dentre outros).

Pensar a globalização das sociedades é afirmar aexistência de processos que envolvem os grupos, asclasses sociais, as nações e os indivíduos. A questãoque se coloca é como compreender este quadro tãocomplexo e como caracterizá-lo.

Ao lado das dificuldades existentes, o tema daglobalização exige ainda contornar algumas armadilhas,principalmente quando se fala de meio ambiente. Algunsobstáculos deveriam ser evitados. Um é de naturezametodológica, outro de cunho ideológico.

Na literatura existente sobre meio ambiente e globali-zação (Porter e Brown,1991, dentre outros) é comun en-contrar, sob diversas formas, a problemática da homo-geinização da questão ambiental. Por exemplo, a utilizaçãode um mesmo sistema tecnológico, em escala planetária,poderia levar à homogeinização dos problemas ambien-tais. Este prognóstico pode articular-se segundo uma hie-rarquia distinta de valores. A visão otimista vê no pro-gresso tecnológico a possibilidade de soluções de nossosproblemas ambientais.

O ponto de vista contrário revela uma outra dimensão.Uma economia globalizada e o desenvolvimento tecno-lógico homogêneo eliminariam definitivamente possibi-lidades de modelos de sustentabilidade. Perspectiva comunentre os analistas de mercado, para eles a globalização daeconomia implicaria a emergência de uma sociedade naqual os homens se comportam de maneira idêntica.

Esta visão coabita, porém, com outra, ou seja, a suanegação. Agora, já não se trata mais da unidimensionali-dade, mas sim da multiplicidade. Daí a insistência sobreo ressurgimento das reivindicações locais, específicas,movimento que atestaria o antagonismo a qualquer prin-cípio unificador.

Poder-se-ia tentar aqui romper com esta visão dicotô-mica do processo de globalização, como se fossem doismovimentos distintos, um tendendo para a totalidade,outro para o particular.

Quando se fala de uma “sociedade global”, está-se re-ferindo a uma totalidade que penetra, atravessa, as diver-sas formações sociais do planeta. Os limites “dentro” e“fora” tornam-se assim insuficientes para a compreensãodesta nova realidade social. Há uma certa diluição dasfronteiras, fazendo com que as especificidades nacionaise culturais sejam, de maneira diferenciada, atravessadaspela modernidade-mundo (Ortiz, 1995).

É necessário entender que a modernidade-mundo rea-liza-se através da diversidade. Enquanto modernidade, estaprivilegia a individualização das relações sociais, a auto-nomia e a afirmação de aspectos específicos. No entanto,esses elementos, aparentemente desconexos, serão envol-vidos por uma malha mais ampla. A modernidade é cons-tituída por um conjunto no qual o todo se expressa na in-dividualidade das partes. A característica do momentoatual é que esta modernidade, que no século XIX confi-nava-se a alguns países, torna-se planetária.

A outra armadilha é fundamentalmente de caráter ideo-lógico. Normalmente, a literatura que se ocupa da globa-

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lização tende a compreendê-la de forma oblíqua, parcial.Tudo se passa como se a expansão do mercado e da tec-nologia obedecesse a uma lógica inexorável, levando aspessoas a se conformarem com o quadro atual dos pro-blemas que as envolvem. Globalização torna-se assim si-nônimo de modernidade. Tudo o que não se encaixar den-tro deste princípio torna-se suspeito, revelando um certogosto de arcaico.

A pergunta que se coloca é a seguinte: como reagirdiante dessas forças? Uma forma seria retroceder,identificando globalização a uma visão de cunho pura-mente ideológico. Outra é considerá-la expressão damundialidade. Com isso sugere-se que a estrutura damodernidade-mundo engloba os fatores de ordem política,articulando, num processo histórico complexo, osdiferentes níveis da realidade social. Dentro destaperspectiva, os grupos transnacionais são vistos comoatores políticos cujo campo de atuação é o planeta. Suasidéias parecem impositivas porque traduzem a prevalênciade uma ideologia que se vincula às forças dominantes doprocesso de globalização. Resta saber se essas idéiasdevem ou não permanecer como se fossem a únicaalternativa para o convívio entre os homens. Neste artigo,considera-se que não e, portanto, neste caso, a política jánão pode ser mais pensada em base exclusivamentenacional ou local.

Uma implicação evidente é que já não há espaço parailhas culturais ou econômicas. Variações de cotação nabolsa americana provocam rápidas mudanças de compor-tamento de agentes econômicos de qualquer cidade, pormais distante que seja.

Neste sentido, a maior parte dos países, a começar pelosEstados Unidos, está empreendendo esforços amplos demodernização nas formas de gestão do Estado (Ghai, 1995).

É o conjunto da referência espacial do desenvolvimentoque hoje encontra-se deslocado, com a redução do papeldos governos nacionais, reforço dos “blocos” e do espa-ço supranacional em geral e um novo papel das cidadesna gestão descentralizada da sociedade.

Na verdade, os fenômenos demográficos são discretosporque os processos regulares de mudança, que envolvemalguns poucos percentuais ao ano, não chamam a aten-ção. Porém, a realidade é que em meio século as socieda-des deixaram de ser rurais para se tornarem urbanas, eum país não é mais uma capital, onde se tomam decisões,cercada por massas rurais dispersas. Este é apenas o co-meço da avaliação do impacto social desta transforma-ção. Basta lembrar que hoje, no Brasil, 80% da popula-ção vive em cidades, invertendo as proporções do iníciodos anos 50 (Faria, 1984).

Uma implicação imediata desta nova realidade é quenão é mais necessário um Estado tão centralizado, já que

a população que vive em núcleos urbanos pode resolverlocalmente grande parte de seus problemas. Esta novarealidade é que levou os países altamente industrializa-dos a adotarem uma estrutura de Estado profundamentediferente da brasileira, com ampla participação dos go-vernos locais (Castells, 1983; Wilson, 1994 e Cahn, 1995).Isso significa, em outro nível, que já não se pode deixaracuar diante da eterna dicotomia entre descentralizaçãoou não, uma vez que adquire peso fundamental, em ter-mos de perspectivas, o espaço público comunitário, re-fletindo a evolução da democracia representativa parasistemas descentralizados e participativos.

Do ponto de vista mais geral, esta literatura, no quediz respeito à problemática ambiental, salienta a impor-tância da construção de instituições de governabilidadeinternacional e de uma forte redefinição do Estado, como objetivo de liderar uma transição gradual para uma so-ciedade sustentável e mais democrática, baseada na idéiada convergência entre desenvolvimento econômico e pro-teção ambiental, através de novas tecnologias de eficiên-cia energética, reciclagem de materiais e controle de po-luição. A redefinição do Estado implicaria a redução desuas funções econômicas e o fortalecimento de suas fun-ções sociais e ambientais nos diferentes níveis, além deum profundo processo de descentralização política.

Nesta perspectiva, a qualidade ambiental torna-se essen-cialmente um bem público que somente pode ser mantidoatravés de uma incisiva intervenção normativa e regulatóriado Estado complementada com incentivos de mercado.

De acordo com esta abordagem, os ambientalistas de-veriam construir uma ampla coalisão sociopolítica. Sus-tenta-se ainda que as considerações de eqüidade devemser equilibradas com aquelas referentes à eficiência eco-nômico-ambiental.

No caso brasileiro, certamente este processo é maisrecente e tem implicações políticas mais complexas, dadoque, só com o processo de democratização pelo qual pas-sa a sociedade brasileira, o poder local tem conseguidoimplementar iniciativas inovadoras, que incluem as polí-ticas ambientais.

POLÍTICAS SIMBÓLICAS: CRIANDO EACOMODANDO DEMANDAS PÚBLICAS

Os rumos do desenvolvimento urbano têm sido alvocrescente da atenção de órgãos governamentais, agênciasfinanciadoras, entidades da sociedade civil e especialistasde diversas áreas de conhecimento. Têm estimulado im-portantes articulações para uma gestão democrática dascidades, um planejamento urbano ético, o direito à cida-dania, ou seja, condições de vida urbana dignas para to-dos os cidadãos.

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O que tem se apresentado como inovador, nos últimosanos, é o tratamento destas questões específicas de formaintegrada e sistêmica, tendo a dinâmica urbana como eixode referência. Nessa perspectiva, o enfoque do sistemaurbano, como parte do ecossistema global, coloca em pautaa discussão de como garantir o desenvolvimento urbanosustentável. Essa visão, muito embora venha conquistan-do maior espaço, ainda deverá passar por um intenso em-bate com a concepção mais tradicional de desenvolvimen-to urbano, que trata a realidade de forma setorizada efragmentada.

As áreas urbanas em todo o mundo são consideradaslocais privilegiados para geração de emprego, inovação eampliação das oportunidades econômicas. Os centros ur-banos revelam enorme agilidade na construção de umarede de relações no plano da economia, da política e dacultura, conectando zonas rurais, pequenas, médias e gran-des cidades. No marco destas transformações uma parce-la significativa da população mundial passou a ter acessoa um nível de consumo e riquezas sem precedentes(Milbrath, 1989).

Obviamente, esta parcela da população que desfru-ta de um nível alto de consumo e a outra que desfrutade um consumo moderado (satisfazendo suas necessi-dades básicas) devem às cidades o padrão de vida quepossuem.

Na outra face do espaço urbano estão os excluídos,aqueles que não satisfazem suas necessidades materiaisbásicas. Ainda que de forma diferenciada, cidades domundo inteiro defrontam-se com este quadro de inclusão-exclusão (Orr, 1994; Cahn, 1995).

Por um lado, criam-se espaços públicos e se socializa avida urbana e, por outro, crescem as zonas privatizadas.Aumenta-se a oferta de serviços públicos e de equipamen-tos coletivos, mas também cresce o número de pessoas quevivem ilhadas em áreas degradadas e periféricas, sem meiospara informar-se e ter acesso a estes equipamentos.

Neste sentido, muito importantes são as redes que in-tegram representantes do movimento popular, sindical eambientalista e/ou incorporam em suas plataformas de lutaa questão socioambiental, tentando influenciar a imple-mentação de políticas públicas.

Essa parceria expressa um avanço na compreensão daproblemática urbana, no sentido de superar a visão queatribui estatuto diferenciado para a questão da pobreza eda deterioração ambiental – quando ambos, na verdade,originam-se de um estilo de desenvolvimento que geradesigualdades sociais e desequilíbrio ambiental.

Ao abordar estes temas aqui, tenta-se direcionar a aná-lise para o legado da racionalidade moderna, em que avida cotidiana, a reflexão, a ciência e a técnica confun-dem-se e, muitas vezes, nos confundem a ponto de duvi-

darmos da herança iluminista que tanto pregamos (Best eKeller, 1991).

Boaventura (1995) comenta que talvez seja inútil con-vocar as promessas da modernidade para abrir os cami-nhos democráticos e emancipatórios da crise contempo-rânea deste final do século, pois não se trata, a seu ver, de“mais uma” crise do mundo moderno. Na verdade, há umasimultânea crise dos processos de regulação social e deseu possível potencial emancipador, incluindo-se aí asformas consagradas de se conceber e pensar a sua tensãono interior das categorias da modernidade.

Concretamente, isto quer dizer que as soluções de com-promisso já experimentadas historicamente entre Estado,mercado e comunidade – e suas correspondentes racio-nalidades – levaram-nos invariavelmente a um oceano deirracionalidades acumuladas, do qual são testemunhas adegradação ambiental, o aumento da população, as dis-paridades e desigualdades entre centro e periferia, a mi-séria e a fome que convivem com a abundância, as guer-ras étnicas e religiosas, a dependência do indivíduo emrelação ao consumo mercantil, os modos selvagens dedestinação dos direitos do mercado de trabalho – a lista ,na verdade, é enorme. Entretanto, há novas formas de açãosocial que podem abrir caminho para alternativascognitivas, políticas e subjetivas no contexto contempo-râneo.

No que diz respeito às alternativas políticas, o princí-pio único do mercado confina o Estado e deslegitima asformas de sociabilidade. Porém, este movimento ao mes-mo tempo oculta outras sociabilidades, práticas e cultu-ras que a modernidade marginalizou, revelando-as comoespaços politizados (basicamente pelos movimentos so-ciais contemporâneos). São os espaços domésticos, o daprodução, o da cidadania, o espaço mundial, cada um delesconstituindo um feixe de relações sociais que, conectando-se em suas várias interfaces pela ação política, rompemcom seu lugar amorfo e meramente interativo que o cam-po político institucional lhes havia designado. Em con-junto, tornam visível uma multiculturalidade atuante, quese torna capaz, no tempo, de identificar relações de podere imaginar formas de transformá-las em relações de au-toridade partilhada.

Reconhecer que estes campos de negociação e conflitopodem formar um “novo senso comum político” implicareconhecer que não há saída no fortalecimento do princí-pio único do Estado, mas sim na sua relativa desregula-ção. Nem esta saída está na predominância do mercadoou da comunidade, incapazes por si só de garantir umaregulação social que não seja fragmentada e dispersa.

Nesta perspectiva, a política já não mais pode ser pen-sada em base exclusivamente nacional ou local. Deve-seimaginar o mundo como um “espaço público” (como su-

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ciamento dos recursos naturais, como ar e solo, enquantoos municípios estão mais inclinados para o tratamento daágua, resíduos, parques e reservas (Vig e Kraft, 1994;Newton e Dillingham, 1994; e Cahn, 1995). Um pequenonúmero de programas envolvem a sobreposição de res-ponsabilidades, como por exemplo, programas de polui-ção atmosférica.

Nas últimas décadas, internacionalmente, um crescen-te número de legislações têm sido aprovadas para regularo uso do solo nos governos locais (Agatiello, 1995;Schoenbaum e Rosenberg, 1991).

Como conseqüência, tem-se um aumento na tensão econflito entre estados e governos locais sobre questõesde uso prioritário e autonomia decisória. Em cada caso, aquestão da implementação das políticas esbarra nos con-flitos entre os diferentes níveis de governos e, principal-mente, entre os diversos atores envolvidos.

No caso dos Estados Unidos (Newton e Dillingham,1994), observa-se que as áreas de conflitos mais signifi-cativos poderiam ser localizadas na questão da ocupaçãodo solo. Para os autores, as autoridades tendem a priorizaro aspecto econômico do desenvolvimento em detrimentoda conservação dos recursos.

O caso brasileiro não se diferencia muito deste pro-cesso. Os programas federais e estaduais (Guimarães,1986; Viola, 1992 e Ferreira, 1992) têm priorizado as açõesvoltadas aos aspectos mais conservacionistas da questãoambiental e aos programas de controle de poluição do ar,exatamente por estes não envolverem conflitos mais sig-nificativos nas relações entre os atores.

A montagem das agências públicas voltadas especial-mente para a questão ambiental e a formulação da políti-ca ambiental são recentes no Brasil. A Secretaria Espe-cial de Meio Ambiente, vinculada ao Ministério doInterior, foi criada em 1973, tendo atribuições voltadaspara a conservação ambiental e o uso racional dos recur-sos naturais (Guimarães, 1986). Em 1981, foi promulga-da a Política Nacional de Meio Ambiente. Esta políticamarca um avanço na ação estatal porque explicita a ne-cessidade de responsabilização dos causadores ambien-tais (Ferreira, 1992). Em 1985 é criado o Ministério doDesenvolvimento Urbano e Meio Ambiente. Cria-se tam-bém o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) eo Sistema Nacional de Meio Ambiente.

O principal marco da ação pública para a área ambien-tal é a Constituição Federal de 1988, pois foi resultado deforte conscientização da população brasileira e mobiliza-ção. O capítulo de meio ambiente é inovador e avançado.Considera-se que a efetividade dos direitos deve ser ga-rantida pelo poder público e pela coletividade. É novida-de também a ação concorrente entre as três esferas daFederação: União, estados e municípios, como co-respon-

gere Habermas), uma sociedade civil na qual se defron-tam projetos e visões distintas, antagônicas ou comple-mentares.

Habermas (1989) afirma que a razão e a verdade re-sultam da interação do indivíduo com o mundo dos obje-tos, das pessoas e da vida interior. Por isso, a razão e averdade só podem decorrer da organização social dos ato-res interagindo em situações dialógicas. A razão não temsua sede no sujeito epistêmico, como queria Kant, nemno ser antropológico, ao mesmo tempo pulsional e razoá-vel, como imaginava Marcuse, mas sim na organizaçãointer-subjetiva da fala. O que é razoável, para os indiví-duos e a sociedade, brota portanto de um consenso, re-sultante da razão dialógica. O conceito de razão resultanaquilo que em um contexto social, vivido e comparti-lhado por atores lingüisticamente competentes, pode serelaborado como querido e aceitado por todos.

Nessa acepção, razão e verdade deixam de ser valoresabsolutos para se transformarem em valores temporaria-mente válidos, de acordo com o veredito dos atores en-volvidos na situação, os quais estabelecem consensual-mente o processo pelo qual a verdade e a razão podemser conquistadas em um contexto válido.

Reconhecer várias formas de conhecimento e práticasque recusam o império da fragmentação e dispersão, ouseja, a busca de alternativas políticas, cognitivas e subje-tivas, como sugerido anteriormente, é um exercício so-ciológico que está presente em várias modalidades dasações sociais, inclusive no campo das disputas institucio-nais, principalmente quando relacionadas à problemáticaecológica, por estar aí presente um campo simbólico queinclui uma gama de valores, inclusive valores pós-mate-rialistas, e portanto cria e acomoda novas demandas pú-blicas bastante sofisticadas (Wallace e Alison, 1995; Roe,1995).

Na opinião de Ortiz (1995), a questão ecológicaheuristicamente revela esse mundo que está se forman-do. A ecologia, não apenas o movimento, é um tema glo-bal, que revela algo a respeito de uma sociedade civilmundial. Nesse sentido, o movimento perpassa países,grupos e classes sociais articulados a um outro conceitode natureza.

A PERSPECTIVA AMBIENTALNA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

Para muitos programas ambientais, no âmbito interna-cional, a questão da coordenação entre programas ambien-tais federais, estaduais e locais é discutível. Cada níveltem mantido sob jurisdição propostas específicas. Os pro-gramas federais e estaduais, nos Estados Unidos, porexemplo, têm enfatizado o desenvolvimento e o geren-

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guns casos, o tratamento dos rumos do desenvolvimentourbano foi discutido de forma mais integrada e sistêmica,sendo que a política ambiental no nível local apresentou-se mais realista com o quadro de exclusão social que ca-racteriza várias cidades do mundo, inclusive as brasileiras.

O crescimento das cidades está intrinsicamente rela-cionado ao aumento do número de pessoas que as esco-lhem para viver. A crescente concentração de populaçãono urbano vem acompanhada pela deterioração da quali-dade de vida, especialmente em cidades da América La-tina, África e Ásia (Lidstone, 1995). Por outro lado, a re-estruturação da dinâmica urbana é um aspecto a serconsiderado, o que nos remete à questão da gestão dascidades (Wilson, 1994).

Em algumas cidades do mundo já existem iniciativasno sentido de promover um gerenciamento integrado dasatividades urbanas que aumente a qualidade de vida dapopulação e preserve o equilíbrio ambiental (Vig e Kraft,1994).

Além disso, residir e trabalhar fora das grandes cida-des vem se tornando possível para um maior número depessoas nos países centrais do processo de globalização,graças às mudanças significativas nas estruturas de pro-dução e consumo. Avanços nas áreas de comunicação etransporte estariam permitindo esquemas mais ágeis edescentralizados de participação no processo produtivo.

Mantidas as devidas proporções, poder-se-ia sugerirque os padrões de redistribuição populacional e descon-centração industrial (Martine, 1995), recentemente obser-vados na região Sudeste brasileira e particularmente emtorno de São Paulo, apresentam algumas característicasanálogas às que prevalecem nos países do Norte.

Com a chegada das indústrias, tem-se também o des-locamento de populações. Os dados do Censo Demográ-fico de 1991 mostram que a Região Metropolitana de SãoPaulo passa a integrar o conjunto das regiões com taxasnegativas de migração, revertendo o sinal de seus saldosmigratórios. Seu parque industrial perde em força de atra-ção populacional para os novos “paraísos” urbano indus-triais do interior.

A Região Administrativa de Campinas é a que apre-senta a maior taxa de crescimento dos anos 80. Sua popu-lação registra um alto grau de urbanização, com mais de90% de seus habitantes instalados no perímetro urbano.

Entretanto, no caso brasileiro, pelas características his-tóricas, o processo de industrialização e urbanização trou-xe para a Região Metropolitana de São Paulo – e atual-mente, dado o processo de “contrametropolização”, vemtrazendo para a Região de Campinas e para a BaixadaSantista – a ampliação das carências sociais e dos servi-ços públicos, bem como a falência das políticas adminis-trativas. Trouxe também a deterioração ambiental (prin-

sáveis pela garantia da qualidade ambiental. Na verdadeamplia o papel dos estados e municípios para exercita-rem políticas ambientais.

O Estado de São Paulo foi precursor das ações volta-das para a questão ambiental (Ferreira, 1992). No âmbitomunicipal, o crescimento expressivo da ação específicapara o meio ambiente ocorre após 1988. As leis orgâni-cas refletem este amadurecimento do tema nas agendasdos governos locais.

A criação da maioria das agências governamentais dastrês esferas de governo e da legislação fundamental, vol-tada para a questão ambiental, data dos anos 80. Contu-do, foram criadas num período de crise do Estado, o quesignificou escassez de recursos orçamentários e dificul-dades de coordenação das diferentes políticas públicas.

No início dos anos 90, há uma séria crise de continui-dade na política ambiental no âmbito federal, inscrita nacrise geral de governabilidade do país produzida peloprocesso de impeachment de Collor. A principal mani-festação desta crise foi a existência de quatro secretáriosde meio ambiente (Ferreira e Viola, 1996).

Com a ascensão de Itamar Franco à presidência, foicriado o Ministério de Meio Ambiente, o que em nadacontribuiu para aumentar a importância da questão nogoverno.

No governo Fernando Henrique Cardoso, o que ocor-re, infelizmente, é que a política ambiental ainda não éconsiderada uma política social – e, portanto, está desvin-culada das demais políticas públicas – e nem mesmo umapolítica de desenvolvimento – e conseqüentemente estátambém desvinculada das demais políticas econômicas.

Todavia, na história recente, vários acontecimentos naárea das políticas ambientais podem ser considerados re-levantes. O que tem se apresentado como inovador, naárea das políticas ambientais em nosso país, é o que vemocorrendo no âmbito do poder local.

Enquanto a política ambiental, no nível federal, decli-nou-se em termos de importância política, ocorreram, noâmbito municipal, experiências de buscas de modelos desustentabilidade, em vários estados brasileiros.

Vários casos já são considerados emblemáticos, comoo da cidade de Curitiba, por exemplo. Contudo, pareceque o que é realmente inovador é que este processo es-tende-se por várias outras cidades brasileiras, podendo-se citar aqui o caso do Estado de São Paulo, como umexemplo importante neste processo (Ferreira, 1996).

Sem o mesmo acesso aos recursos que Curitiba, emvárias cidades do Estado de São Paulo, tanto de pequenoquanto de médio e grande portes, foram formuladas eimplementadas políticas municipais ambientais.

Neste processo, obviamente os conflitos entre os dife-rentes atores também foram acirrados, entretanto, em al-

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No entanto, no âmbito municipal (Ferreira, 1996;Jacobi, 1994), já existem vários mecanismos legais e ins-titucionais para o poder local enfrentar o processo de de-gradação socioambiental, como visto anteriormente. Alémdisso, o processo de democratização pelo qual passa asociedade brasileira permite experiências de planejamentoparticipativo, que no caso dos Estados Unidos (Vig e Kraft,1994) por exemplo, facilitaram significativamente a im-plementação de políticas públicas com característicassocioambientais no nível local.

A reconstituição do processo de participação dos mo-vimentos sociais organizados no âmbito do Executivo eLegislativo municipais permite, em primeiro lugar, am-pliar os dados para uma análise mais aprofundada sobreo processo de “reconhecimento” na construção de novossujeitos coletivos e na ampliação dos espaços públicos.Estes elementos possibilitam a construção de uma insti-tucionalidade ampliada, cujos reflexos podem nos levar asuperar o ciclo de fluxos e refluxos, normalmente presentesnas lutas pela superação de carências imediatas.

Em uma sociedade extremamente excludente, como abrasileira, não deixa de ter grande significado político ofato de as entidades populares e ambientalistas estaremsempre em pauta na grande imprensa, mesmo quando aagenda refere-se tanto às questões urbanas imediatas quan-to a propostas de mudanças mais estruturais. A base des-ta legitimidade encontra-se em largo sentido em funçãodo nível de reconhecimento em campos diversos (cultu-rais, políticos e econômicos) que moldam a disputa pelopoder local.

Do estágio de reconhecimento como interlocutor dasadministrações, que marcam social e administrativamen-te a implementação de políticas ambientais municipais, omovimento social poderia conseguir espaço para além dosproblemas urbanos mais imediatos.

Nesta direção, ao mesmo tempo em que exige umamaior organicidade, a participação junto ao Legislativo eao Executivo abre perspectivas de amadurecimento polí-tico, possibilitando a combinação entre os limites dasdemandas imediatas e um patamar que envolve diretrizese políticas estruturadoras mais gerais e, portanto, sujeitasàs oposições mais explicitadoras.

O jogo de reconhecimento nesta dimensão passa entãopor filtros políticos mais sofisticados, que traduzem oenvolvimento de categorias mais amplas, como formado-res de opinião, classes médias urbanas, técnicos do apa-relho estatal, intelectuais, grupos e partidos políticos, li-deranças políticas individuais, igreja, grupos empresariais,imprensa e etc.

Neste confronto, os atores sociais precisariam adqui-rir uma organicidade capaz de ultrapassar os limites dosconflitos localizados, para proporem programas e controles

cipalmente dos recursos hídricos) e o estrangulamento dainfra-estrutura das cidades (principalmente nos setores desaneamento, habitação e transporte).

É importante levar em conta que o Brasil é um país deurbanização tardia. Além disso, não se trata, como o foiem grande parte no caso dos países do Norte, de uma ur-banização por atração dos empregos gerados nas cidades,mas sim por expulsão do campo. O mundo rural brasilei-ro foi atravessado por uma poderosa corrente moderniza-dora, que implantou a monocultura e a mecanização, re-duzindo drasticamente o emprego e, por outra correnteprofundamente conservadora, transformando o solo agrí-cola em reserva de valor.

Sem emprego no campo ou, quando muito, com em-prego sazonal característico da monocultura e sem alter-nativa de acesso à terra, a população foi expulsa para ascidades, originando periferias miseráveis, com bairros quetiveram freqüentemente taxas de crescimento superioresa 10% ao ano (Ipea, 1995).

Este processo é hoje agravado pelo impacto das novastecnologias sobre a indústria e os serviços urbanos, que sevêem obrigados a reduzir a mão-de-obra empregada, dei-xando para parte da população brasileira a alternativa dosetor informal, do desemprego e dos serviços domésticos.

Esta situação implica o surgimento de milhões de pe-quenos dramas locais no conjunto do país, problemas gra-ves de habitação, saúde, poluição, necessidades adicio-nais de escolas, organização de sistemas de abastecimento,programas especiais para pobreza crítica, elaboração deprojetos de saneamento básico e assim por diante.

Desse modo, os municípios passam a se defrontar comuma situação grave que exige intervenções ágeis em áreasque extrapolam as tradicionais políticas na área urbana.Trata-se de amplos projetos de infra-estrutura, políticassociais, programas de emprego e políticas ambientais,envolvendo inclusive estratégias locais de dinamizaçãodas atividades econômicas.

Os municípios situam-se na linha de frente dos pro-blemas, mas estão no último escalão da administraçãopública. Há um deslocamento generalizado dos proble-mas para a esfera local, enquanto as estruturas político-administrativas continuam centralizadas.

Este processo criou um tipo de impotência institucio-nal que dificulta dramaticamente qualquer modernizaçãoda gestão local, enquanto favorece o tradicional “caci-quismo” articulado com relações fisiológicas nos esca-lões superiores.

Com o processo de urbanização, os problemas deslo-caram-se, mas não o sistema de decisão correspondente.Assim, o que se tem hoje é um conjunto de problemasmodernos e uma máquina de governo característica dasnecessidades institucionais dos anos 50.

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cidades com mais de 4 milhões da habitantes que deve-rão existir no ano 2000, 81 estarão em países da AméricaLatina, África e Ásia; das 23 megacidades com mais de10 milhões que existirão naquele ano, 17 serão nestespaíses; e dentre as dez maiores cidades do mundo só fi-gurarão duas (Tóquio e Nova York) do Norte.

Portanto, o que está ocorrendo é um processo de urba-nização que pode acarretar pobreza e concentração derenda e não fruto de desenvolvimento tecnológico que geradesenvolvimento econômico sadio e equilibrado. Obvia-mente, essa não é uma questão só demográfica; ela estáinserida num contexto macroeconômico.

Segundo o documento do comitê preparatório da ONUpara a Conferência de 1992, no Rio de Janeiro, reunidoem Genebra em 1991, para os países em desenvolvimen-to, a década de 80 caracterizou-se por diminuição do flu-xo de recursos externos, declínio no preço de seus produ-tos de exportação, aumento do peso da dívida externa ecrescentes barreiras alfandegárias para seus produtos(ONU, 1991).

Isso fez com que, a partir de meados dos anos 80, se-gundo o mesmo documento, houvesse uma drenagem derecursos dos países do Sul para os países do Norte, cau-sada por uma conjunção de fatores, dentre os quais as ta-xas de juros dos países desenvolvidos. Neste sentido, adiscussão do ambiente urbano, principalmente dos paísesdo sul, adquire importância crucial para a Agenda 21. Daítambém a importância de se discutir os problemas am-bientais e as estratégias para suas soluções nas cidadesbrasileiras.

Em âmbito mais geral, poder-se-ia indicar algumasquestões que nortearam a reflexão sobre cidades e meioambiente, através das categorias de análise globalização,descentralização e sustentabilidade.

Em primeiro lugar, uma parte da literatura acerca dodebate em torno da análise de modelos de sustentabilida-de indica claramente a importância dos processos de des-centralização na realidade contemporânea de um mundoglobalizado (Buttel e Larson, 1980; Friedman, 1987; Ghai,1995; Morrison, 1995).

Estamos vivendo profundas transformações sociais. Porum lado, este avanço abre novos instrumentos de moder-nização, se formos capazes de orientá-lo. Por outro, é in-viável a manutenção da presente ordem política quandoo ser humano dispõe de tecnologias de impacto planetá-rio. Sem um sólido reforço da nossa capacidade de orga-nização social, é o próprio Planeta que se torna inviável.

Em outros termos, o ser humano, que demonstrou im-pressionante capacidade técnica e impotência em termosde convívio civilizado, poderia buscar no espaço localorganizado o lastro político que lhe permitiria recuperaras rédeas do seu desenvolvimento.

redefinidores da natureza dos mecanismos inerentes àspolíticas públicas tradicionais.

Isso implicaria mudanças da natureza dos movimen-tos sociais, que, por suas características cíclicas, teriamque transpor as condições de agentes meramente reativospara se firmarem como sujeitos, também responsáveis pelaconstrução de uma sociedade social e politicamente de-mocrática. Este processo é ainda bastante incipiente, in-dicando, entretanto, avanços políticos significativos noprocesso de formulação e implementação das políticasambientais brasileiras.

Diferentemente da política ambiental estadual (Ferreira,1992), em alguns municípios do Estado de São Paulohouve uma real preocupação de vincular a questão am-biental à questão social, pelo menos no nível da formula-ção de seus Planos Diretores, ou ainda na formulação desuas Leis Orgânicas. Além disso, a implementação deConsórcios Intermunicipais em termos sociológicos epolíticos é muito relevante. Há aqui claramente a possi-bilidade empírica de um acordo político/social que ultra-passe a visão corporativista, geralmente presente nos par-tidos políticos, e que trabalhe em uma perspectiva maisglobal.

Nos casos de pequenas cidades não deixa de ser inte-ressante o fato de, legalmente, estas já estarem providasde instrumentos para poderem implementar políticas am-bientais a curto prazo.

O surpreendente é o caso da cidade de São Paulo, ondehaveria condições, inclusive em termos de recursos téc-nicos e humanos, para realmente se implementar umapolítica municipal de meio ambiente. Entretanto, em umacidade globalizada, com Universidades altamente quali-ficadas, uma classe média intelectualizada, que tem umaconsciência ecológica bastante refinada, a questão ambien-tal tem tido papel totalmente secundário, como se os pro-blemas sociais “prioritários”, segundo os “policy makers”locais, não estivessem totalmente vinculados ao processode degradação ambiental da metrópole.

Na verdade, os problemas ambientais da cidade de SãoPaulo são, ao mesmo tempo, particulares, pois localizam-se numa determinada porção do território brasileiro muitoespecífico em função das características geográficas e desua herança histórica e social, e gerais, porque ilustramum processo em curso em diversas partes do mundo.

O processo de urbanização em curso nessas últimasdécadas tem se concentrado particularmente na AméricaLatina. A taxa anual de crescimento da população urbananesses países é de 3,7% ao ano, enquanto na maioria dospaíses do Norte é de 1,1% ao ano, segundo dados da ONU(Lidstone, 1995).

Por outro lado, é principalmente nas grandes cidadesque esse processo demográfico está ocorrendo: das 82

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Contudo, dada a complexidade de nosso objeto de es-tudo (políticas ambientais), somente a descentralização ea participação de vários atores em ação não soluciona-riam o problema, como dito na introdução deste artigo.

O conceito de sociedade sustentável foi elaborado ori-ginalmente pelo Worldwatch Institute, liderado por LesterBrown, no começo da década de 80. O conceito foi dis-seminado mundialmente pelos Relatórios Anuais sobre oEstado do Mundo, produzidos pelo Worldwatch desde1984, e pelo Relatório “Nosso Futuro Comum”, elabora-do pela Comissão das Nações Unidas para o Meio Am-biente e Desenvolvimento, liderada por Brundtland, em1987.

A partir da convocatória da Unced, em 1989, o con-ceito torna-se um ponto de referência obrigatório dosdebates acadêmicos, políticos e culturais. Na verdade,passa a ser uma idéia com força poderosa sobre a ordemsocial desejável e um campo de batalha simbólico sobreo significado desse ideal normativo.

Neste sentido, o presente artigo associa fortemente aidéia de sustentabilidade com outras três dimensões so-ciais já consagradas dentro do pensamento político doséculo XX: democracia, eqüidade e eficiência (Ferreira eViola, 1996).

Em uma sociedade democrática, o governo é eleito emeleições livres competitivas e as regras escritas da socie-dade na forma de lei regulam efetivamente as relaçõessociais. Numa sociedade democrática, os direitos indivi-duais têm correlatos nos direitos coletivos e estes têmpredomínio sobre os interesses individuais.

Em uma sociedade equitativa, todos os indivíduos (in-dependente de gênero, origem social, raça, idade, credo eideologia) têm as mesmas oportunidades para desenvol-verem-se enquanto tais. Numa sociedade equitativa, oherdado tem uma importância mínima e o adquirido temuma importância máxima.

As dimensões fundamentais da sociedade eficiente são:a avaliação de custo-benefício na tomada de decisões, umaequilibrada combinação de competição e cooperação nasregras de jogo e uma promoção contínua do desenvolvi-mento tecnológico.

Uma sociedade sustentável é aquela que mantém o es-toque de capital natural ou que compensa, pelo desenvol-vimento tecnológico, uma redução do capital natural, per-mitindo assim o desenvolvimento das gerações futuras.Numa sociedade sustentável, o progresso é medido pelaqualidade de vida (saúde, longevidade, maturidade psico-lógica, educação, ambiente limpo, espírito comunitário elazer criativo), ao invés do puro consumo material.

No início dos anos 90, no Brasil, as questões ambien-tais estavam bastante presentes nos debates da socieda-de, entretanto, paradoxalmente, isso não acontecia no

âmbito dos partidos políticos. Parece que, para os parti-dos políticos brasileiros, a discussão sobre processos desustentabilidade, obviamente, acarretaria questionamen-tos mais profundos do nosso processo de democratizaçãoe, portanto, não fazem parte de suas agendas.

Não há muitas novidades no que tange à forma básicade estruturação dos poderes, em torno do Executivo, Le-gislativo e Judiciário. No entanto, há indiscutivelmenteuma compreensão diferente das formas como a socieda-de civil organiza-se para assegurar a sustentação políticado conjunto.

Estamos acostumados a ver o funcionamento do Esta-do embasado na organização partidária. Este eixo políti-co-partidário de organização da sociedade em torno dosseus interesses veiculou, em geral, as posições dos gru-pos mais conservadores da sociedade.

O desenvolvimento dos sindicatos, instâncias de ne-gociação do acesso ao produto social, fortaleceu outro eixode organização: sindical-trabalhista, baseado no espaçode organização que constitui a empresa e centrado na re-distribuição mais justa do produto social. Quando sãoanalisados os países caracteristicamente social-democrá-ticos, constata-se que estes souberam desenvolver tal eixopolítico, criando sistemas mais democráticos.

Em termos práticos, não há dúvida de que o fato de osagricultores, metalúrgicos, bancários e outros segmentosestarem solidamente organizados permite que a socieda-de se democratize e que negociações de cúpula, caracte-rísticas dos partidos, encontrem um contrapeso democrá-tico nos diversos interesses profissionais organizados.

Pode-se estender o mesmo raciocínio para os impac-tos do processo moderno de urbanização. Quando umasociedade deixa de constituir um tecido descontínuo detrabalhadores rurais e passa a viver em cidades, começanaturalmente a se organizar em torno dos “espaços locais”,do local de residência, do que Friedmann (1987) chamoude “life space”, ou espaço da vida.

O impacto político da formação deste tipo de organi-zação da sociedade em torno dos seus interesses (o eixocomunitário) marca a evolução de uma sociedade gover-nada por “representantes” para um sistema no qual a par-ticipação direta do cidadão adquire um peso mais impor-tante.

O cidadão americano, por exemplo, participa hoje, emmédia, de três ou quatro organizações comunitárias. Par-ticipa da gestão da escola, do seu bairro, de grupos cultu-rais, de decisões do município, etc. A descentralizaçãodos recursos públicos constitui também um processo ar-ticulado com uma evolução do funcionamento do Esta-do. As pessoas participam efetivamente, pois não vãonuma reunião política para bater palmas para um candi-dato, mas sim para decidir onde ficará a escola, como re-

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AMBIENTE E CIDADES: EM DIREÇÃO A UMA NOVA AGENDA

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ciclar o lixo do seu bairro, como será utilizado o solo dacidade e assim por diante.

Não se trata naturalmente de reduzir a sociedade ao“espaço local”, como uma volta aos anos 60, do “small isbeautiful” generalizado. Trata-se de entender a evoluçãodas formas de organização política que dão sustento aoEstado: a modernidade exige – além dos partidos – sindi-catos organizados em torno dos seus interesses e comu-nidades organizadas para gerir o nosso dia-a-dia.

Este tipo de sustentação da gestão dos interesses pú-blicos é indiscutivelmente mais firme do que o equilíbrioprecário centrado apenas nos partidos políticos. Tambémé cada vez mais importante para uma forma madura desustento do Estado: a descentralização e a democratiza-ção dos meios de comunicação. Com partidos múltiplos,sindicatos representativos, fortes organizações comuni-tárias e uma “mídia” democratizada, serão obtidas as ba-ses institucionais razoáveis para uma gestão política equi-librada (LaMay e Dennis, 1991).

Friedmann (1992) e Osborne e Gaebler (1992) estuda-ram experiências práticas e implicações teóricas das no-vas tendências administrativas nas mais diversas áreas daadministração pública na era da globalização. Segundoestes autores, trata-se evidentemente de repassar muitomais recursos para o nível local, mas trata-se também dedeixar a sociedade gerir-se de forma mais flexível segun-do as características de cada município.

O novo estilo passa, portanto, pela criação de meca-nismos participativos simplificados e muito mais diretosdos atores-chave das cidades: empresários, sindicatos,organizações não-governamentais, instituições científicase de informação e outros. Passa também pela criação demecanismos de comunicação mais ágeis com a popula-ção, porque uma sociedade tem que estar bem informadapara poder participar. Passa pela flexibilização dos me-canismos financeiros, com menos regras, e mais controledireto de comitês e conselhos da comunidade interessa-da. Passa pela ampliação do espaço de interesse da pre-feitura, que deverá ultrapassar as preocupações com acosmética urbana para se tornar o catalisador das forçaseconômicas e sociais da região. Passa, finalmente, pelaorganização de redes horizontais de coordenação e coo-peração entre municípios, tanto no plano geral quanto,sobretudo, em torno de programas setoriais.

Neste sentido, a intenção maior deste artigo é justa-mente incorporar novos elementos a esta discussão, numatentativa de ampliar o mapeamento realizado por traba-lhos recentes que se debruçam sobre o tema das políticasambientais, em patamares que contemplam reconhecimen-tos capazes de legitimar um novo recorte nas decisõespolíticas, ou seja, participação que requer dos atores vin-culados à problemática ecológica a capacidade de

incidirem sobre a definição de políticas públicas e do aces-so direto à gestão do Estado.

Certamente, há problemas a serem enfrentados, no en-tanto, poder-se-ia dizer que muito se avançou, sendo queas políticas municipais de meio ambiente são um exem-plo disso.

NOTA

Agradeçemos a Eduardo Viola pelos comentários críticos à versão original destetexto.

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s Diretrizes do Plano do Governo Covas enfati-zam o papel do Estado como articulador eformulador de políticas, particularmente no se-

tor social, preconizando a desconcentração e a descentra-lização. A estratégia implica a redistribuição das respon-sabilidades entre o Estado e os agentes sociais e a delega-ção, onde couber, da prestação de serviços ao público.

Com o objetivo de reduzir a desigualdade social, vêmsendo desenvolvidas reformas que visam maximizar re-cursos, privilegiar um novo padrão de relacionamento como poder municipal e incentivar a indispensável participa-ção municipal na promoção de soluções para os proble-mas da educação básica.

Para esta administração, municipalizar significa criare fortalecer a parceria com os governos municipais.Estabelecidas as diretrizes gerais norteadoras da relaçãoEstado-Município e as específicas na prestação do serviçoao cidadão, a relação direta com a população demandatáriacompete ao município. Municipalizar, pois, vai além dedescentralizar, de desconcentrar: o município compartilharesponsabilidades a partir de negociações estabelecidascaso a caso. Desconcentrar, descentralizar e municipalizarsão formas que se complementam, na distribuição do podere da decisão sobre os recursos financeiros que o sustentam.

A Educação constitui-se numa das áreas em que é maispremente a necessidade, hoje, de descentralizar edesconcentrar. O esforço de atender a todas as crianças ejovens em idade de escolarização obrigatória traduziu-se,nas administrações passadas, na expansão quantitativa darede de ensino estadual, que atualmente conta com cercade 6.700 escolas e 240 mil professores, atendendo maisde 6,5 milhões de alunos. Do total dos alunos no Estadode São Paulo, 80% estudam em escolas do Estado, o que,

por si só, representa, para a Secretaria de Estado da Edu-cação, uma realidade inadministrável, independentementedo volume de recursos disponíveis.

Universalizou-se o acesso à escola, porém, a políticade construção de salas de aula e a multiplicação de turnos,com jornada escolar reduzida, tiveram um preço alto parao aluno, para o professor e para a administração central.

O processo de ensino-aprendizagem foi seriamenteprejudicado, como o demonstram as altas taxas de eva-são e reprovação – com problemas no fluxo escolar – eos baixos índices de conclusão da escolarização bási-ca. As medidas para melhorar a qualidade do ensino –implantação do Ciclo Básico, e da Jornada Única noCiclo Básico, criação de Cefams, de Oficinas Pedagó-gicas e de Escolas-Padrão –, embora importantes, tra-duziram-se em ações que não afetaram o modelo ado-tado de gestão centralizada.

Não houve, também, a necessária modernização dosmecanismos de gerenciamento da educação, com vistas aaumentar a produtividade, a eficiência e a eficácia dosserviços prestados. Ao contrário, o que se verificava erao crescimento de órgãos ligados ao sistema, por meio dacriação de estruturas paralelas, que competiam entre sipara alcançar os seus objetivos.1 Exemplo disso era asuperposição de ações de capacitação através da Coorde-nadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (Cenp) e daFundação para o Desenvolvimento da Educação. Tambémocorreu a autonomização de órgãos da estrutura da Se-cretaria. Foi o caso da Fundação para o Desenvolvimentoda Educação (FDE), que, encarregada das construçõesescolares, atendia a solicitações de obras independente-mente de um planejamento racional de demanda, coorde-nado pelo Gabinete.

A

ROSE NEUBAUER

Secretária de Estado da Educação

ESTADO E MUNICÍPIOSparceiros na educação

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Além disso, tendo em vista que a rede estadual cres-ceu de forma desmesurada e adquiriu proporções gigan-tescas, tornou-se impossível resolver, no âmbito central,todos os problemas que povoam o cotidiano do trabalhoescolar. Conseqüentemente, a descentralização, na medi-da em que permite um controle maior da escola pelascomunidades locais, torna-se o caminho mais seguro paraaumentar significativamente a eficiência e a eficácia dasações que estão sendo desencadeadas, com o objetivo desuperar a superposição de competências dos órgãos ad-ministrativos, bem como a ausência de mecanismos decontrole e a avaliação.

O governo do Estado e a Secretaria da Educação sa-bem que a descentralização não irá resolver todos os pro-blemas do ensino público. Acredita-se também que o ca-minho da descentralização não dispensa o Estado e aSecretaria da Educação de trabalharem pela melhoria daeducação básica. Ao contrário, o Estado deverá potencia-lizar seu papel de planejador e coordenador de políticaspúblicas, através do estabelecimento de diretrizes sobreconteúdos curriculares básicos, uso racional dos recursos,avaliação dos resultados de ensino, transferência de re-cursos e garantia de eqüidade, para compensar as desi-gualdades entre os municípios.

Nesta administração, o processo de descentralizaçãodo ensino público tem origem na busca de se equacionaros graves problemas que desqualificam a oferta da edu-cação fundamental. Partiu-se do pressuposto de que o alu-no não possui vinculação administrativa – não é alunomunicipal ou estadual – e tem o direito constitucional deser atendido pelos poderes públicos, de preferência emregime de colaboração. Essa postura realçou a evidênciade que o envolver a representação municipal é essencialno processo de melhoria do ensino. Assim, foi institucio-nalizado o Programa de Ação de Parceria Estado-Muni-cípio (Decreto no 40.673, de 16/02/96) para Atendimentoao Ensino Fundamental, envolvendo um processo de ne-gociação na alocação dos recursos públicos estadual emunicipal. Este compromisso tem o propósito de esten-der o acesso de toda a população infanto-juvenil ao Ensi-no Fundamental, de ampliar os anos de permanência doaluno na escola e de priorizar a melhoria da qualidade doprocesso ensino-aprendizagem.

A parceria negociada tem propiciado, através da dis-cussão com os administradores municipais, um processode implementação das propostas de mudança. O signifi-cativo número de convênios firmados nos primeiros seismeses de negociação mostrou a convicção, de ambas aspartes, de que somente a ação conjunta Estado/Municí-pio possibilitará a melhoria da qualidade do ensino.

Antes de apresentar maiores detalhes sobre o processode municipalização, serão brevemente descritas algumas

ações da Secretaria de Educação desencadeadas a partirde 1995, que se constituíram indispensáveis facilitadorespara a parceria Estado-Município.

CONDIÇÕES PARA ADESCENTRALIZAÇÃO DO ENSINO

Uma proposta consistente de descentralização nãopoderia lograr êxito em uma estrutura marcadamentecentralizada – clientelista – onde conviviam estruturas“paralelas”, desempenhando as mesmas funções. Paraimplementar uma proposta conseqüente de descen-tralização do ensino, era necessário iniciar um processo designificativas mudanças nos padrões de gestão da máquinapública e de organização da rede escolar, isto é, criarcondições à estruturação da política educacional do Estado.

Mudanças nos Padrões de Gestão

A atual administração tem buscado evitar a superposi-ção de atribuições e competências entre órgãos adminis-trativos, encurtar as distâncias decisórias, reduzir os ní-veis intermediários, desconcentrando recursos e decisõesno âmbito regional. O novo padrão de gestão tem comoprincípio a desconcentração do poder decisório, com for-talecimento da autonomia da escola.

Nesse sentido, várias ações foram desencadeadas,como, por exemplo, a extinção das dezoito Divisões Re-gionais de Ensino – instâncias intermediárias entre as Co-ordenadorias e as Delegacias de Ensino –, que ocorreuno primeiro dia da gestão Mário Covas. Foram tambéminstaurados critérios democráticos para escolha dos 146delegados de ensino. Além disso, órgãos centrais comfunções duplicadas ou praticamente “autônomas” sofre-ram um processo de enxugamento e tiveram suas açõeseventualmente redirecionadas.

Iniciou-se a reestruturação da Secretaria, visando adescentralização e conseqüente aumento da agilidade nasdecisões decorrentes da diminuição de escalões hierárqui-cos. Alterações importantes na estrutura de poder e dedecisão da Secretaria ocorreram. Um exemplo: o Gabi-nete recuperou o papel de coordenação e articulação dasações a serem desenvolvidas em conjunto com os órgãoscentrais, envolvendo as Delegacias de Ensino. Enquantoisso a Fundação para o Desenvolvimento da Educação(FDE), que vinha, inadequadamente, dividindo o poderdecisório com o Gabinete, assumiu o papel de executorde políticas.

Nesse cenário remodelado, foi possível à Secretaria deEstado da Educação dirigir suas ações para a questão pe-dagógica e para a estrutural. Priorizam-se a parceria edu-cacional e a reforma institucional, que situam a Delega-

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ESTADO E MUNICÍPIOS: PARCEIROS NA EDUCAÇÃO

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cia de Ensino como a unidade regional mais apta a assis-tir tecnicamente à unidade de gerência dos sistemas mu-nicipais de ensino. Da mesma forma, o repasse de recur-sos financeiros diretamente à escola para aquisição deequipamentos e materiais de ensino e para conservação ereparos aumentou a autonomia da unidade escolar na im-plementação de seu projeto pedagógico.

A autonomia, no âmbito da escola, deve reproduzir adesconcentração do poder decisório, o que significa en-volver a comunidade na gestão da qualidade do ensino.A Secretaria de Educação vem repassando recursos paraa escola, parte dos quais são administrados diretamentepela Associação de Pais e Mestres, a quem compete, emconjunto com a equipe técnica, definir as prioridades deaplicação dos mesmos: manutenção e reparação do pré-dio, aquisição de equipamentos e materiais pedagógicos.

Também o Conselho Estadual de Educação, ao disci-plinar a aplicação dos gastos dos municípios com manu-tenção do ensino – limitando as possibilidades de aplica-ções oblíquas, em merenda, ações de saúde e construçãode quadras esportivas fora das escolas –, vem estimulan-do os municípios a despender com maior eficácia os re-cursos obrigatoriamente destinados ao ensino.

Essas mudanças no padrão de gestão sinalizam um novocaminho e criam a credibilidade necessária para que osgovernos municipais sintam-se motivados a aderir ao Pro-grama de Parceria e, em regime de colaboração, possamaperfeiçoar o atendimento às necessidades de educaçãobásica.

A Reorganização do Ensino

A unificação dos antigos primário e ginásio, feita emmeados da década de 70, não garantiu a escola de oitoanos para todos os alunos. Houve duplicação de trabalhoe recursos. Estudos feitos na Secretaria da Educação arespeito das políticas de atendimento à demanda encon-tram no documento “Exercício Analítico de Política Edu-cacional: o caso do Estado de São Paulo” (Perez, 1991)os elementos demonstrativos da irracionalidade da cons-trução e ocupação dos prédios escolares, gerando des-perdício de recursos materiais e humanos. Havia tantoum excesso de turnos, pela ausência de planejamento edistribuição mais adequada das classes e dos alunos, quan-to uma pulverização de classes da mesma série em dife-rentes estabelecimentos escolares. Isso contribuía forte-mente para a crescente dificuldade de os professorescompletarem a jornada normal de trabalho num único es-tabelecimento. Um prédio de pequeno porte (e este tipode construção passou a ser o mais freqüente) atendia aosvários tipos de ensino: pré-escolar, educação especial,1o grau completo (de 1ª à 8ª série), 2o grau. Não raro, a

TABELA 1

Número de Escolas e de Salas e Relação Sala/Escola,segundo Data de Criação do Estabelecimento da Rede Estadual

Estado de São Paulo – 1969-90

Data de Criação Escolas Salas Salas/Escola

Até 1969 3.167 38.703 12,21970 a 1974 213 2.475 11,61975 a 1979 744 8.042 10,81980 a 1984 766 6.378 8,31985 a Março/1990 1.440 8.558 5,9

Fonte: Secretaria de Estado da Educação.

pequena distância, outra escola oferecia as mesmasoportunidades de acesso (Tabela 1). Esse modelo peda-gógico, que atendia numa mesma escola diferentes mo-dalidades e níveis de ensino, vinha exigindo, de modo con-tínuo, mais espaço físico e mais recursos materiais ehumanos.

O que a Secretaria propôs (e implementou a partir de1995) foi um modelo de escola especializada no atendi-mento às crianças menores (1ª à 4ª série), separada fisi-camente da outra escola onde se concentram os alunos de5ª à 8ª série e do 2º grau (Secretaria de Estado da Educa-ção, 1995).

Este modelo, uma vez implantado, permite a otimiza-ção de recursos pedagógicos, equipamentos didáticos,material de instrução adequado a cada faixa etária, pro-gramas específicos de aperfeiçoamento de pessoal e maiorhomogeneidade dos alunos, proporcionando ganhos fa-voráveis à melhoria da qualidade do ensino. Além disso,tais medidas de racionalização geram economia em equi-pamentos físicos e infra-estrutura e permitem canalizarmaiores somas de recursos para melhor remunerar o pro-fessor e equipar salas de aula. As modificações promovi-das na estrutura das escolas da rede pública estadualpossibilitam:- melhoria das condições de realização do trabalho peda-gógico – maior adequação do processo de ensino às fai-xas etárias dos alunos;

- composição da jornada de trabalho do professor emuma única escola e conseqüente maior fixação do corpodocente;

- adequação dos espaços físicos e equipamentos a cada ní-vel de ensino, segundo a faixa etária da clientela atendida;

- funcionamento da maioria das escolas em dois turnosdiurnos e, no caso de 5ª à 8ª série e 2º grau, também uti-lizando o noturno. As escolas que mantêm classes de Ci-clo Básico à 4ª série funcionando, preferencialmente, emdois turnos diurnos garantem a ampliação da jornada dosalunos de quatro para cinco horas de trabalho diário.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996

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TABELA 2

Número de Escolas e Classes no Programa de Reorganização da Rede Pública Estadual, segundo o Número de Turnos

Estado de São Paulo – 1995-96

Situação SituaçãoNúmero de em 1995 em 1996 (1) Diferença (%)Turnos

Escolas Classes Escolas Classes Escolas Classes

Total 6.783 186.223 6.706 178.207

5 214 8.429 150 6.682 -30 -21

4 825 30.569 388 15.316 -53 -50

3 Diurnos 254 3.732 124 2.720 -51 -27

2 Diurnos +Noturno 4.344 133.594 3.385 115.377 -22 -14

2 999 8.935 2.360 36.577 +136 +309

1 147 964 299 1.535 +103 +59

Fonte: Secretaria de Estado da Educação.(1) Situação em 14/05/96.

Esta situação tem sua origem no poderio econômico doEstado de São Paulo, em que o processo de urbanização,a industrialização e a modernização contribuíram decisi-vamente para que a educação, em geral, ficasse centrali-zada quase integralmente nas mãos do governo estadual.2

Avaliando, talvez, que a municipalização só ocorreriaem São Paulo por um processo de negociação que inclui-ria repasse de recursos, os diferentes governos de SãoPaulo nunca abdicaram da responsabilidade de cuidar doensino de 1o grau. Ao mesmo tempo – gradativamente,no início, e totalmente, mais tarde – incentivaram os mu-nicípios a assumirem a responsabilidade pela oferta e ma-nutenção de educação pré-escolar.

Em 1995, apenas 72 dos 625 municípios paulistasmantinham rede de escolas de Ensino Fundamental. Aparticipação dos municípios nesse grau de ensino não atin-gia 10% do alunado do Estado de São Paulo, e sua distri-buição era irregular no conjunto dos municípios. A Pre-feitura de São Paulo, tomada isoladamente, atendia a77,5% de todos os alunos “municipais” do Estado. Dosdemais 71 municípios, Campinas, Santos, São José dosCampos, Guarujá, Cubatão e Ribeirão Preto atendiam a14,8% da demanda, somando, com o município de SãoPaulo, 92,3% do universo do alunado no Ensino Funda-mental municipal. Dos 65 restantes, quatro municípiosmantinham, exclusivamente, escola unidocente e atendiam,somados, a uma centena de alunos.

Não obstante a exigüidade das experiências de mu-nicipalização e uma certa “resistência” cultural dos edu-cadores paulistas em tratar do tema, é possível afirmarque, na década de 80, em certos aspectos, ocorreramalguns avanços.

Até o advento da Lei no 5.692/71, Estado e Municí-pios respondiam, na mesma proporção, pela insignificanteoferta de vagas na educação pré-escolar, ao mesmo tem-po em que o governo estadual respondia quase integral-mente pelo Ensino Fundamental, cujo ritmo de expansãoera intenso. A questão da descentralização da EducaçãoBásica no Estado de São Paulo só começa a ganhar forçaa partir dos anos 80.

Por um lado, tiveram lugar amplas discussões sobre otema. Conceitos, propostas de participação e políticas dedescentralização foram colocados em debate. Houve, nessebreve período, uma socialização da temática da descen-tralização para amplos segmentos da sociedade civil. Poroutro lado, em muitos municípios do estado, foram insti-tuídas as Comissões Municipais de Educação, apontandopara a necessidade de se descentralizar o ensino e de re-distribuir o poder local, com maior envolvimento da so-ciedade civil. Como diz Azanha (1990), este foi o mo-mento de “municipalizar a preocupação com o problemaeducacional”, e ele foi especialmente importante porque

A redução significativa no número de escolas que fun-cionavam com mais de três turnos e a ampliação das quepassaram a contar com dois e mesmo um turno terão ine-gáveis reflexos positivos sobre as condições de ensino(Tabela 2).

A reorganização da rede pública estadual, dentro docontexto de um modelo pedagógico de separação físicade crianças e jovens pré-adolescentes e adolescentes, re-sultou em condições mais propícias à municipalização doensino de 1ª à 4ª série do 1o grau.

Além disso, a reorganização tornou possível transferiraos municípios uma escola mais bem organizada, comcorpo docente fixo, recursos materiais e didáticos adequa-dos e salas ambiente apropriadas às crianças de 1ª à 4ª série.Uma escola na qual o município pode dar continuidade aotrabalho que já vem desenvolvendo na pré-escola.

A unidade pedagógica representada por este segmentoe as primeiras séries do 1º grau é uma realidade em nú-mero significativo de países. Para o governo estadual,passar para o município uma escola bem estruturada éessencial para alicerçar as pré-condições necessárias àconsolidação de uma parceria eficiente e eficaz, que re-sulte na melhoria qualitativa da educação básica.

A INCIPIENTE MUNICIPALIZAÇÃODO ENSINO OCORRIDA ATÉ 1994

A responsabilidade pela manutenção e gestão do En-sino Fundamental coube, historicamente, ao governo es-tadual, que tem arcado, ao longo dos últimos anos, compraticamente 80% das matrículas desse grau de ensino.

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ESTADO E MUNICÍPIOS: PARCEIROS NA EDUCAÇÃO

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a municipalização só terá êxito, ou seja, só possibilitaráum salto de qualidade nos atuais padrões de ensino, sefor discutida e assumida responsavelmente pelas comu-nidades locais.

Entretanto, a natureza intrínseca dos programas colo-cados em prática, nas décadas de 80 e 90, bem como afalta de “vontade política” das autoridades estaduais emtransferir, de fato, recursos e responsabilidades, fizeramcom que a descentralização do ensino de 1o grau cami-nhasse a passos lentos. Os resultados alcançados até finalde 1994 podem ser considerados decepcionantes. Entre-tanto, pequenos avanços merecem ser destacados:- em 1984, foi criado o Programa de Municipalização daMerenda Escolar (Decreto no 4.021, de 22/05/84), únicoprograma deste período universalizado em mais de 90%dos municípios, com o objetivo de fornecer alimentaçãoescolar a todos os alunos das redes estadual e municipal;

- em 1989, foi instituído o Programa de Municipalizaçãodo Ensino Oficial no Estado de São Paulo – PME (Decre-to no 30.375, de 13/09/89), expressando em suas conside-rações iniciais que o Estado devia participar do esforçocooperativo para criar condições reais para melhorar oensino. Reconhecia também que a ação integrada Esta-do-Prefeitura e Comunidade poderia melhorar, significa-tivamente, a aplicação dos seus recursos na escola públi-ca, em razão da maior agilidade na identificação dosproblemas, proposição de soluções e tomada de decisãoem nível local. Foram assinados 346 convênios, em geralcom pequenos municípios. Por outro lado, foi implanta-do em 165 dos municípios que celebraram Termo de Adi-tamento ao Convênio do PME, o Centro Integral de Ma-terial de Apoio Didático e Pedagógico – CIMADP. Apermissão de uso, pelas prefeituras municipais, dos equi-pamentos e materiais didático-pedagógicos foi realizadaa título precário, sem qualquer ônus para o Estado. Cabiaao município a responsabilidade pelos encargos advindosde assistência técnica e de pessoal necessário à utilizaçãodos mesmos. Com a exceção da distribuição desses “kitspedagógicos”, nada foi feito para resolver as questões re-lativas ao ensino propriamente dito. Os convênios assi-nados contemplaram, basicamente, construções escolares.Mesmo assim, é possível afirmar que algum ganho resul-tou no que concerne à idéia de descentralização, ou seja,passou a existir um maior envolvimento das autoridadesmunicipais, em parceria com o Estado, na construção,reforma e ampliação dos prédios escolares;

- em 1990, a Secretaria criou o Termo de CooperaçãoIntergovernamental – TCI (Decreto no 32.292, de 24/09/90),visando integrar e articular as relações governamentais.Caberia ao Município providenciar terreno de suapropriedade enquanto o Estado executaria a construçãodo prédio e equiparia a escola para atender à demanda de

Ensino Fundamental. Caberia ao Estado, ainda, prestarorientação técnico-pedagógica e administrativa para aimplantação e/ou desenvolvimento dos sistemas munici-pais de educação. O TCI, de fato, tal como proposto,caminhava no sentido de estimular e encorajar osmunicípios a assumirem as suas responsabilidadesconstitucionais. O fato de ter sido concebido em final degoverno fez com que nascesse praticamente morto.Nenhum convênio foi assinado, apesar do interesse dedezenas de municípios. Por fim, em 15 de março de 1991,a Comissão Especial para Cooperação, encarregada deanalisar os pedidos dos municípios, formada por repre-sentantes dos diferentes órgãos da Secretaria, teve os seustrabalhos suspensos em razão da mudança de governo;

- por fim, em 1993, foi instituído o Programa de AçãoCooperativa Estado-Município – PAC (Decreto no 36.546,de 15/03/93) para construções escolares. O objetivo prin-cipal do Programa era o de contribuir para a expansão emelhoria do ensino e propiciar a todas as crianças condi-ções reais de acesso à escola, assim como nela garantirsua permanência e progressão.

O PAC e o PME eram muito semelhantes, pois na es-sência os dois possuíam como foco principal as constru-ções escolares. O PAC, entretanto, significou um retro-cesso em relação ao TCI, que tinha um caráter maisabrangente e municipalizante.

As propostas de municipalização, colocadas em práti-ca a partir de 1989, isto é, a partir das recomendações daConstituição de 1988 relativas à responsabilidade doMunicípio pelo Ensino Fundamental, ao limitarem a des-centralização da educação básica a repasses de recursospara construções, reformas e/ou ampliações de prédiosescolares, coadunavam-se muito mais com práticas clien-telistas e de troca de favores do que com novos modelosde gestão mais ágeis e efetivos, que se faziam necessá-rios no cenário educacional.

As críticas a tais propostas são muitas e de diferentesordens. Elas dizem respeito ao fato de que o processoocorreu de forma desarticulada, pois não existia um Pla-no de Educação que estabelecesse as diretrizes mais ge-rais da política educacional e articulasse as ações do Es-tado e dos Municípios paulistas. Apontam, também, o fatode que os Programas de Municipalização do Ensino nãoconseguiram ir além do repasse de recursos para as pre-feituras.

Tais propostas, portanto, não redundaram na amplia-ção de tarefas e responsabilidades pelos municípios, paraas atividades-fins da educação fundamental e tampoucofortaleceram seu poder de decisão sobre a gestão dasescolas. Restringiram a ações típicas de função-meio –merenda, construção, reforma, ampliação –, não atin-gindo a finalidade substantiva, ou seja, o ensino. As

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propostas eram, portanto, parciais, com efeitos pontu-ais e não promoviam a assunção integral das escolaspelos municípios.

O NOVO PADRÃO DE PARCERIAPROPOSTO A PARTIR DE 1995

Segundo as diretrizes da Secretaria de Estado da Edu-cação, todo o processo de transferência para os municí-pios da responsabilidade gerencial e financeira quanto àoferta de ensino de 1a à 4a série do 1o grau deve levar emconta as profundas desigualdades entre os municípios doEstado de São Paulo. Tais desigualdades evidenciam-senos indicadores demográficos, sociais, econômicos e edu-cacionais e nas condições técnico-administrativas e finan-ceiras dos municípios.

O Programa de Parceria Estado-Município está pauta-do pelo princípio básico da flexibilidade: negociar a de-cisão “caso a caso“, dialogando com os prefeitos e/ouautoridades municipais e considerando sempre a realida-de local. Para ampliar o conhecimento das realidadesmunicipais, estruturou-se um banco de dados, por muni-cípio, contendo as informações essenciais que devemembasar o processo de negociação. Isto foi conseguidograças aos dados provenientes da Fundação Estadual deAnálise de Dados – Seade e aos estudos analíticos sob aresponsabilidade da Fundação do Desenvolvimento Ad-ministrativo – Fundap.

Com tais elementos, foi possível identificar municípioscom capacidade técnica, administrativa e financeira paraassumir integral ou parcialmente o ensino das primeirasséries do Ensino Fundamental e, inversamente, municí-pios sem infra-estrutura técnico-administrativa e, portanto,com enormes dificuldades para participar da parceria.Ficou claro, desde o início, que para estes últimos, ao in-vés de se transferir “encargos”, seria necessário repassarmais recursos, além de oferecer assistência técnico-peda-gógica permanente. Pouco sentido faria municipalizar oensino se, sob a gestão municipal, por carências técnicas,financeiras e administrativas, houvesse o risco de se de-gradar o serviço oferecido.

A descentralização, portanto, só poderia desenvolver-sepor etapas, isto é, de maneira gradual e flexível, de modo apermitir que a Secretaria e os municípios se organizassempara enfrentar conjuntamente esse desafio. Em todas as eta-pas do processo, considera-se que as ações ocorrem no âm-bito de dois poderes públicos autônomos. Por isso, ao inici-ar o processo, a Secretaria ofereceu um leque amplo de formasde parceria, contemplando as desigualdades socioeconômi-cas e culturais entre os municípios, sua capacidade financei-ra e de arrecadação, além da “vontade política” municipalpara assumir as quatro primeiras séries do 1o grau.

Dessa maneira, incentivam-se as ações e os esforçosmunicipais que já caminhavam no sentido da descentraliza-ção e, ao mesmo tempo, os demais municípios são conven-cidos e encorajados e assumirem responsabilidades cada vezmaiores quanto à gestão do Ensino Fundamental.

Da Proposta à Ação

Ao implementar o Programa de Parceria Estado-Município para o atendimento das quatro primeiras sériesdo 1o grau, a Secretaria estava ciente dos desafios a seremsuperados: administrativos, gerenciais, financeiros,pedagógicos, além dos desafios políticos propriamenteditos. Para enfrentá-los, foi desenvolvido um trabalhosistemático de divulgação e discussão do Programa deParceria, no contexto das mudanças dos padrões de gestãopropostos pela nova política educacional. Era precisocolocar em discussão a importância da gestão descen-tralizada numa máquina administrativa em processo deenxugamento, objetivando torná-la ágil e moderna.

A administração iniciou diálogo com prefeitos, secre-tários municipais de Educação, deputados e vereadores,visando esclarecer o objetivo do Programa. Paralelamen-te, buscou assegurar instrumentos normativos consisten-tes, técnica e legalmente, que possuíssem credibilidadepara os parceiros ao assumirem os novos encargos edu-cacionais. Dessa forma, a Secretaria da Educação passoua conhecer melhor as realidades municipais, bem como asexpectativas dos prefeitos em relação à municipalização.

O processo de negociação, por um lado, constituiu-seem instrumento essencial para reverter a imagem negati-va que muitos prefeitos tinham da municipalização doensino e, por outro, foi fundamental para a Secretaria as-segurar aos prefeitos e/ou outras autoridades locais de quea municipalização não se restringia a acertos de gabinete.Ao contrário, o assunto deveria ser público e abranger acomunidade local. Com isso, a futura escola municipali-zada teria melhores condições de se transformar em umorganismo vivo e atuante na vida dos seus cidadãos.

Esse procedimento possibilitou divulgar o Programade Parceria a cerca de 60% dos municípios do Estado deSão Paulo, esclarecendo-os acerca das suas novas res-ponsabilidades e encargos educacionais, e apontando so-luções para problemas administrativo-operacionais.

Formalização da Parceria Estado-Município

A necessidade de realizar estudos preliminares e le-vantamentos socioeconômicos, definir instrumentospara apoiar e sistematizar o processo de negociação, alémde implementar a reorganização da rede de ensino, fezcom que o Programa de Municipalização do Ensino fosse

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ESTADO E MUNICÍPIOS: PARCEIROS NA EDUCAÇÃO

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TABELA 4

Número de Escolas, Classes e Alunos, segundo os Municípios doPrograma de Ação de Parceria Educacional Estado-Município para o

Atendimento ao Ensino Fudamental, com Ônus para o Governo do EstadoEstado de São Paulo – 1996 (1)

Municípios Escolas Classes Alunos

Total 96 1.225 42.157

1 Ariranha 1 18 630

2 Bady Bassitt 1 21 761

3 Bertioga 6 33 1.180

4 Braúna 1 13 455

5 Brodósqui 3 45 1.456

6 Canitar 1 11 346

7 Cardoso 1 10 314

8 Coroados 1 13 369

9 Descalvado 4 62 2.004

10 Glicério 1 14 388

11 Ilha Comprida 1 5 175

12 Ilha Solteira 2 53 1.820

13 Irapuã 2 22 706

14 Itajobi 1 8 280

15 Itapevi 5 63 2.123

16 Itatiba 72 108 3.639

17 Jales 1 6 210

18 Jundiaí 27 381 14.010

19 Lençóis Paulista 1 6 427

20 Marapoama 1 6 180

21 Mesópolis 1 6 187

22 Miguelópolis 2 52 1.783

23 Miracatu 1 4 150

24 Orindiúva 1 12 399

25 Palmares Paulista 2 12 420

26 Palmeira d’Oeste 2 31 894

27 Pontes Gestal 1 6 192

28 Restinga 1 12 280

29 Rubinéia 1 7 207

30 Sales 1 8 256

31 Santa Rita d’Oeste 1 9 233

32 Santos 10 136 4.706

33 Tabapuã 2 22 632

34 Tarumã 2 10 345

Fonte: Secretaria de Estado da Educação.(1) Refere-se ao primeiro semestre.

TABELA 3

Municípios Conveniados no Programa de Ação de ParceriaEducacional Estado-Município para o Atendimento ao Ensino

Fundamental, segundo Porte dos MunicípiosEstado de São Paulo – 1996 (1)

Municípios

Porte do Municípios Total Conveniados

(habitantes)

Nos Abs. % Nos Abs. %

Total 625 100,0 46 100,0

Muito Grandes (mais de 100 mil) 48 7,7 7 15,2

Grandes (de 50 a 100 mil) 54 8,6 1 2,2

Médios (de 20 a 50 mil) 108 17,3 7 15,2

Pequenos (de 10 a 20 mil) 128 20,5 11 23,9

Muito Pequenos (até 10 mil) 287 45,9 20 43,5

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 1991. Rio de Janeiro, 1992; Secretaria de Esta-do da Educação.(1) Refere-se ao primeiro semestre.

instituído formalmente somente no dia 25 de março de1996. Nessa ocasião, foram prestados esclarecimentossobre o Programa e sua sistemática e assinados convêni-os com os municípios de Jundiaí, Santos e Ilha Solteira.Além disso, 90 prefeitos manifestaram sua adesão, firman-do Protocolo de Intenção.

Dessa data até 28 de junho, foram firmados 46 con-vênios (Tabela 3).Tendo em vista que a Lei Eleitoralimpede a transferência de recursos de qualquer nature-za aos municípios no período de 90 dias antes e apósas eleições, vários municípios defrontaram-se com umprazo exíguo para completarem todas as etapas relati-vas à assinatura de convênios. Isto impossibilitou a exe-cução de novos convênios com várias Prefeituras inte-ressadas.

Nas 46 prefeituras onde a parceria já está firmada, fo-ram municipalizadas 151 escolas, que oferecem EnsinoFundamental de Ciclo Básico até a 4a série. Ou seja, 1.460classes com cerca de 50 mil alunos já passaram para osmunicípios, envolvendo a cessão de cerca de mil profes-sores I efetivos. Nesta etapa, os compromissos financei-ros do Estado neste Programa, concernentes a 34 municí-pios, somam R$ 13,2 milhões e aqueles referentes àsprefeituras totalizam R$ 17,1 milhões (Tabela 3). Os de-mais (doze) aderiram ao Programa, assumindo escolas –ainda que fosse apenas uma – sem qualquer ônus para oEstado, o que indica o sucesso da proposta, iniciando areversão da política até hoje praticada de concentração,no Estado, das responsabilidades pelo atendimento à edu-cação básica, em que pese as recomendações da Consti-tuição de trabalhar em regime de parceria.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996

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- quanto aos objetivos:• estabelecer um processo de parceria técnico-admi-

nistrativa entre o Estado e os municípios, para que estespossam assumir integral ou parcialmente os serviçosconcernentes à condução do Ensino Fundamental;

• fortalecer a autonomia do poder local na busca de umaescola pública de qualidade para todos.

- quanto às obrigações do Estado:• cooperar com os municípios, quanto a recursos hu-

manos, materiais e financeiros, para que os mesmosassumam de forma integrada e racional as responsa-bilidades pelo Ensino Fundamental;

• prestar assistência técnica, pedagógica, administrati-va e gerencial aos municípios, para que os mesmosassumam o Ensino Fundamental com o máximo decompetência;

• supervisionar as redes municipais de ensino, visandoa manutenção de um padrão de qualidade de ensino eeqüidade para todas as escolas;

• capacitar os municípios para o planejamento, a gestãoe a avaliação dos sistemas municipais de educação;

• criar mecanismos de compensação que superem as de-sigualdades financeiras, administrativas e técnicas dosmunicípios na implementação dos seus programas edu-cacionais;

• instituir uma sistemática de avaliação do sistema deensino com a finalidade de proceder às correções ne-cessárias.

- quanto às obrigações do Município:• criar e instalar o Conselho Municipal de Educação;• providenciar a elaboração do Plano Municipal de Edu-

cação;• elaborar o Estatuto do Magistério Municipal e o Pla-

no de Carreira;• realizar concurso público para ingresso em quadros

próprios do Município, de profissionais do magisté-rio e pessoal técnico e administrativo;

• garantir a continuidade da Associação de Pais e Mes-tres ou associação similar.

- quanto ao processo de implantação:• o processo de implantação do Programa será gradati-

vo, conforme a adesão dos municípios, para a assun-ção total ou parcial do Ensino Fundamental da RedePública estadual e da gestão educacional;

- quanto à pactuação:• o processo levará em conta as peculiaridades locais e

regionais, adequando-se à capacidade técnico-admi-nistrativo-financeira de cada município;

- quanto a outras parcerias:• garantir a possibilidade de sua realização quando se

fizerem necessárias, para o pleno cumprimento das ati-vidades educacionais.

TABELA 5

Número de Escolas, Classes e Alunos, segundo os Municípios doPrograma de Ação de Parceria Educacional Estado-Município para o

Atendimento ao Ensino Fundamental, Sem Ônus para o Governo do EstadoEstado de São Paulo – 1996 (1)

Municípios Escolas Classes Alunos

Total 55 235 7.267

1 Barueri 2 60 2.050

2 Embu 1 8 280

3 Itatinga 13 16 394

4 Mogi das Cruzes 20 29 653

5 Paranapanema 1 1 30

6 Paulínia 1 6 136

7 Pedreira 1 16 500

8 Porto Ferreira 1 20 800

9 Santa Gertrudes 1 8 280

10 São Caetano 3 60 2.040

11 São José do Barreiro 10 10 94

12 Silveiras 1 1 10

Fonte: Secretaria de Estado da Educação.(1) Refere-se ao primeiro semestre.

Os Termos da Parceria

Desde o início do processo de municipalização, a Se-cretaria procurou obter informações seguras sobre as ca-racterísticas socioeconômicas e educacionais municipais.Sem isso, era praticamente impossível pensar em transfe-rência do patrimônio, ou em garantir a situação funcionaldos recursos humanos. Essas precauções, embora neces-sárias, não eram suficientes para garantir a qualidade daproposta de municipalização da atual gestão.

No campo jurídico-legal, peça fundamental, aadministração encontrou tudo por fazer. Como trans-ferir o patrimônio? Como transferir o pessoal? Comoequacionar a carreira do magistério com o ensinomunicipalizado? Caberia aos municípios realizaremconcursos públicos para o magistério e demais cargostécnicos e administrativos? Respostas a essas questõeseram fundamentais para realizar a transferência deserviços, encargos e recursos aos municípios. Erapreciso garantir que o Sistema de Ensino Públicomunicipalizado fosse resguardado de práticas quepudessem colocar em risco a qualidade do ensino e osdireitos dos alunos.

Neste sentido, o Termo de Convênio, que entre si ce-lebram o Município e o Estado de São Paulo – este repre-sentado pela Secretaria da Educação – objetivando a im-plantação e o desenvolvimento do referido Programa deAção, contempla os seguintes itens:

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O Programa de Ação de Parceria Educacional Estado-Município para atendimento ao Ensino Fundamental apre-senta a característica de flexibilidade porque respeita asdiversidades socioeconômicas, institucionais e culturaisexistentes entre os municípios.

É preciso ressaltar que o Termo assegura a obrigaçãoda Secretaria de Estado da Educação de prestar assistên-cia técnica ao Município para a gestão da rede escolar,estruturação do órgão municipal de educação e do Con-selho Municipal de Educação, elaboração do Plano Mu-nicipal de Educação, Estatuto do Magistério Municipal ePlano de Carreira.

Finalmente, cabe lembrar que o Termo de Convênioreforça o entendimento de que o Programa possibilitará,às comunidades locais, maior controle sobre a escola esobre o trabalho dos educadores.

A continuidade da implantação dos demais programasda Secretaria de Estado da Educação é garantida pelo com-promisso município-parceiro, de observar as medidas de-correntes da reorganização da Rede Pública estadual.

A CONTINUIDADE DO TRABALHO EM 1996

A operacionalização do Programa de Municipalização,até o final do primeiro semestre de 1996, o processo dedesconcentração administrativa e a reorganização da redeescolar, visando o novo modelo pedagógico estabelecidopela Secretaria, representam passos de um longo cami-nho em direção à descentralização da gestão do ensinobásico e à autonomia da escola. Abrangem algumas con-dições que permeiam todas as etapas de um processo quebusca a melhoria do ensino público, em forte medida an-corada na municipalização do Ensino Fundamental. Aseguir são apresentadas ações que continuarão a ser im-plementadas até o final de 1996.

Sensibilização dos Futuros Parceiros

Este amplo programa de esclarecimentos visa a mobi-lização das autoridades municipais (inclusive os futurosprefeitos e vereadores) e de grupos organizados de muní-cipes para o Programa de Parceria e Municipalização doEnsino Fundamental. Para tanto, dados e informações sãooferecidos aos diferentes atores municipais, para sensi-bilizá-los a participarem, instalarem e ampliarem o deba-te local e com outras agências e instituições em âmbitoregional, sobre a temática da municipalização e descen-tralização. As ações de sensibilização enfatizam, entreoutros:

- o redimensionamento e a reorganização das forçaspolítico-institucionais, na defesa da melhoria da gestãoda escola pública, através do fortalecimento do conceito

e da prática da descentralização, num processo participa-tivo;- a ampla divulgação das condições de parceria entre osprincipais interessados: novos prefeitos, autoridades lo-cais e regionais, entidades ligadas à educação e aos inte-resses municipalistas.

Apoio Institucional e Gerencial

O objetivo deste programa é fornecer subsídios para ogerenciamento do processo de descentralização, envol-vendo todos os órgãos da estrutura central e descentrali-zada da Secretaria, com a finalidade, em última instân-cia, de definir recursos, meios e procedimentos paraassessorar, implantar, acompanhar e avaliar a assistênciatécnica aos municípios:- aperfeiçoar as condições de planejamento, prosseguindonos estudos de caracterização do atendimento educacionaldos municípios, com vistas à definição de prioridades, comobase para negociação e acompanhamento dos resultados;

- demandar e dar prosseguimento a estudos para o apoioinstitucional e gerencial aos municípios, bem como in-corporar seus resultados na construção do processo degerenciamento da Rede Pública municipalizada;

- preparar a máquina administrativa para, no âmbito cen-tral e descentralizado, promover, acompanhar e dar as-sistência técnica aos municípios parceiros.

1997 E OS IMPACTOS DO FUNDO

Em 1997, as negociações da parceria Estado-Municí-pio irão prosseguir em um novo contexto institucional,mais favorável à adesão dos municípios, devido a mudan-ças na Constituição federal.

Visando corrigir as grandes desigualdades existentes nopaís quanto ao atendimento ao ensino fundamental, a Pro-posta de Emenda à Constituição (PEC, no 233), recém-apro-vada pela Câmara Federal e Senado, cria um Fundo de De-senvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização doMagistério,3 para homogeneizar a redistribuição de recur-sos entre o Estado e os municípios, levando em conta o nú-mero de alunos existentes nas respectivas redes de ensino.

A efetivação da Proposta de Emenda à Constituição4

irá ampliar as verbas aplicadas no Ensino Fundamentalao redistribuir os recursos fiscais estaduais e municipaisa ele destinados. Por um período de dez anos, a aplicaçãoobrigatória, hoje de 50%, será estendida para 60%. Umaparte dessa receita será administrada através de um Fun-do, a ser instituído em cada estado e seus municípios. Apartir dos recursos do Fundo, será estabelecido o valordo investimento estadual mínimo por aluno, a ser obtido

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des ocorra sem tropeços, e aperfeiçoando os serviçoseducacionais oferecidos. Além disso, o Estado deverácomprometer-se a realizar, periodicamente, a avalia-ção da aprendizagem em todas as escolas públicas, oque lhe permitirá definir parâmetros para a implemen-tação de ações de equalização.

Pretende-se alcançar, a médio prazo, um ensino públi-co de qualidade, sob responsabilidade das autoridades lo-cais e com apoio do Estado. Estamos convictos de que amaioria dos problemas costuma ter soluções mais rápidasquando enfrentados na base. Dificilmente uma organiza-ção gigantesca, como a rede estadual atual, tem condiçõesde oferecer respostas ágeis e adequadas às demandas lo-cais. Ao Estado caberá estruturar os meios e efetivar acoordenação de políticas e diretrizes que embasem a as-sistência técnica, administrativa, pedagógica aos municípios.A escola municipalizada, com maior presença na e da co-munidade e maior liberdade de utilização dos recursos paraenriquecer a sua proposta pedagógica, deverá representar oponto de partida e de chegada do processo educacional.

NOTAS

Texto baseado no relatório preliminar Estado e municípios: parceiros na Edu-cação – municipalização: avaliação do processo. São Paulo, Secretaria Esta-dual de Educação, Assessoria Técnica de Planejamento e Controle Educacional,Grupo de Estudos e Análises, agosto 1996.

Colaboraram, neste artigo, Luiz Antonio Carvalho Franco, Lia Reismann Pruks,Alice Irene Hirschberg.

1. Vide estudos realizados pelo Núcleo de Políticas Públicas (NEPP) da Uni-camp, contendo diagnósticos sobre a máquina administrativa da Secretaria deEstado da Educação, acompanhamento e desempenho no âmbito do Projeto Ino-vações do Ensino Básico (IEB), financiado pelo Banco Mundial (Bird).

2. Não é por acaso que o Estado de São Paulo mantém três Universidades Públicas.

3. Ver, a esse respeito, Costa (1996) e Souza e Maluf (1995).

4. PEC 233, que altera, entre outros, a redação do Art.60 das Disposições Tran-sitórias.

5. Trata-se dos seguintes: ICMS, FPE, FPM, IPI-Exportação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZANHA, J.M.P. Uma idéia sobre a municipalização do ensino. São Paulo,Fundap, v.3, 1990 (Relatório Final).

COSTA, V.L.C. “O Fundo para o Desenvolvimento do Ensino Fundamental eValorização do Magistério: questões federativas e impactos no Estado deSão Paulo”. Boletim de Conjuntura/Política Social. São Paulo, Fundap, n.21, jan./abr. 1996, p.81-86.

PEREZ, M.C.R.C. (coord.). Exercício analítico da política educacional: o casodo Estado de São Paulo. São Paulo, SEE, ATPCE/Centro de InformaçõesEducacionais, 1991.

SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO. “Uma escola para a criança,outra para o adolescente”. Educação paulista: corrigindo rumos - mudarpara melhorar. São Paulo, novembro 1995.

SOUZA, A.N e MALUF, M.M.B. “Plano de Desenvolvimento do Ensino Fun-damental e de Valorização do Magistério”. Boletim de Conjuntura/PolíticaSocial. São Paulo, Fundap, n.20, out./dez. 1995, p.18-26.

mediante a divisão do montante do Fundo pelo total dealunos públicos no estado. Do total do Fundo, 60%, pelomenos, deverão ser destinados ao pagamento do pessoaldo magistério.

Os recursos do Fundo serão constituídos por 15%do total de transferências federais a estados e municí-pios e de transferências estaduais a municípios.5 Defi-nido um custo-aluno/ano eqüitativo, independente darede mantenedora ser municipal ou estadual, retira re-cursos do Fundo quem estiver administrando o ensinofundamental.

Os municípios, atualmente, vêm aplicando uma partede seus recursos vinculados na educação fundamental,embora não tenham sua própria rede. Na maioria das vezes,despendem esses recursos, ao sabor das demandas dasescolas estaduais ou de outra natureza, cedendo funcio-nários, realizando pequenas reformas ou reparos, efornecendo transporte escolar. Com a aprovação do Fundo,terão o desafio de aplicar 60% em educação fundamental,porém num programa integrado e contínuo, com opropósito definido de cuidar da educação de suas crianças,numa rede própria, observando de perto os resultados dosucesso de seus alunos munícipes.

A operacionalização do Fundo, conseqüentemente, viráao encontro da proposta de municipalização apresentadapela Secretaria de Educação e reforçará ainda mais a par-ceria Estado-Município, recém-iniciada.

Neste novo cenário, o governo do Estado e a Secreta-ria de Educação, a partir da institucionalização do Fun-do, pretendem:- desenvolver estudos com as áreas competentes visandoa aplicação dos recursos do Fundo e verificar sua reper-cussão nos diversos municípios, agrupando-os segundocertas características pertinentes às questões de receita eseus reflexos;

- dar prosseguimento à mobilização para a parceria, esta-belecendo, como meta, a adesão de 40% a 50% dos mu-nicípios paulistas, até o final de 1997;

- fornecer assistência técnica necessária aos municípiosque já assinaram o Termo de Parceria, nos diferentes as-pectos que envolvem tanto a administração da educaçãoquanto os seus aspectos pedagógicos.

O processo de parceria deverá promover, a médioprazo, a construção de uma administração autônoma darede escolar de 1o grau, liberando paulatinamente oEstado da tutela dessas escolas. Enquanto esse cami-nho vai sendo construído, é necessário acompanhar osprocedimentos legais, administrativos e as ações reali-zadas, para que o repasse de recursos e responsabilida-

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O MUNICÍPIO E A DESCENTRALIZAÇÃO DA SAÚDE

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O MUNICÍPIO E A DESCENTRALIZAÇÃODA SAÚDE

ZILDA PEREIRA DA SILVA

Socióloga, Analista da Fundação Seade

como sinônimos da descentralização, outros como formasou etapas do processo de descentralização. Aqui, serãotratadas apenas as condições que interessam ao tema.

Há consenso de que o conceito da descentralização écomplexo, pois envolve uma série de aspectos comple-mentares e interdependentes – a direcionalidade do pro-cesso, a condição de meio ou fim e a participação social –e deve ser sempre analisado a partir de sua associação aum determinado objeto. “Se esse objeto é a administra-ção pública, ou ainda, as políticas sociais, e estas são ad-ministradas/executadas por níveis ou esferas de Governo(Central, Intermediário e Local), a descentralização podeser traduzida como a transmissão do comando, execuçãoou financiamento desta política do nível Central para oIntermediário ou Local” (Medici, 1994), com correspon-dente autonomia política, financeira e institucional.

O termo desconcentração traz em si também a idéia dedeslocamento do centro: transferir competências paraautoridades subordinadas, dentro da mesma esfera degoverno; ou retirar do centro as tarefas de execução, semque seja transferida a correspondente autonomia paraoutras esferas de governo. Na área de saúde, esse modelopode ser traduzido como aquele em que, embora a execu-ção dos serviços e as ações estejam a cargo da esfera re-gional ou local, os recursos, sejam financeiros ou geren-ciais, continuam nas mãos do Governo central.

O importante a ressaltar é que a descentralização re-fere-se à redistribuição de poder político, ou seja, a trans-ferência do centro das decisões para outras esferas, compersonalidades jurídicas distintas e autoridades eleitaslocalmente, enquanto a desconcentração diz respeito àdistribuição territorial de atividades, com a delegação deatribuições sem o deslocamento do poder decisório sobre

redefinição do papel do Estado, nas últimas déca-das, tem como uma de suas características a reva-lorização do poder local, através de inúmeras pro-

postas de descentralização, que assumiram contornos di-ferentes em cada um dos países em que foram implanta-das. De forma geral, a descentralização pode ser definidacomo a transferência de poder do nível nacional para ins-tâncias subnacionais, para planejar, gerir, executar e to-mar decisões. No âmbito das políticas públicas, a descen-tralização significa um processo de reestruturação internaao aparelho de Estado, que perpassa as várias esferas degoverno, envolvendo aspectos políticos, administrativos,técnicos e financeiros. Como parte desse processo, a mu-nicipalização tem ocupado espaço privilegiado nessa dis-cussão, marcadamente na área de saúde.

Nesse sentido, cresce, cada vez mais, a idéia de que épreciso conferir mais poder àqueles que estão perto doscidadãos e de suas necessidades. O município tem sidoidentificado como espaço privilegiado para a satisfaçãodas demandas locais.

Compreender o papel que o município vem assumin-do hoje, no Estado de São Paulo, requer o conhecimentodas características do processo de descentralização e osantecedentes históricos na experiência brasileira.

O PROCESSO DE DESCENTRALIZAÇÃO

O termo descentralização tem sido usado com diferen-tes significados, sendo preocupação de alguns autores1

tentar precisar o conceito. O termo tem sido relacionado,com certa divergência, a outros conceitos como descon-centração, delegação, privatização, estadualização e mu-nicipalização. Alguns autores utilizam essas expressões

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as mesmas. Pode-se dizer que a primeira tem, intrinseca-mente, um caráter mais político e a segunda mais admi-nistrativo. Nesse sentido, do ponto de vista formal, amunicipalização se ajusta perfeitamente ao conceito dedescentralização.

Outra questão em que há concordância é quanto a des-cartar a dicotomia entre descentralização e centralização,considerando-se mais útil tratar o processo como movi-mento entre dois pólos.

Em qualquer sistema de saúde, por exemplo, são ne-cessários elementos centrais e locais; o que é preciso éestabelecer o equilíbrio que convém conseguir, a direçãoem que determinado país deve avançar e os meios de quedispõe para alterar o equilíbrio existente (Mills, 1990).Difícil é demarcar as tarefas dos diferentes níveis de go-verno. Não há muita dúvida sobre a atribuição às esferaslocais dos serviços de prevenção, promoção e atenção àsaúde, porém, no Brasil, ainda permanece alguma discus-são sobre quem deva gerenciar os serviços que envolvemconsultas, exames e internações em especialidades médi-cas de alta complexidade. Muitos defendem que estes fi-quem como atribuição das esferas regionais, no geral sobo comando dos governos estaduais, apesar de algunsmunicípios terem capacidade para geri-los. O que vemcrescendo como tendência é a visão de que à União devaficar o papel de “regular, fiscalizar e financiar o investi-mento e a eqüidade quanto ao custeio, fixando padrõesde cobertura e qualidade e evitando que Estados e Muni-cípios sem recursos não tenham como realizar as açõesbásicas exigidas pelo nível central do sistema de saúde”(Medici, 1994).

A questão da autonomia financeira é outro fator im-portante na análise dos processos de descentralização, umavez que a forma como se darão as transferências determi-na o grau de liberdade que os níveis locais têm para aoperacionalização das políticas envolvidas.

Medici (1994) acrescenta alguns conceitos para a clas-sificação dos processos de financiamento da política desaúde. A desconcentração financeira significa que a res-ponsabilidade pelo gasto mantém-se sob o poder da esfe-ra central, embora a execução é feita por uma agência suano nível local. A descentralização, que ocorre quando háa passagem de responsabilidade do Governo federal parao estadual ou municipal, pode ser classificada em doistipos quanto ao financiamento: a dependente e a autôno-ma. Na primeira, os recursos arrecadados pela esfera cen-tral são transferidos para a regional ou local e, na segun-da, os recursos para financiar as ações descentralizadassão próprios da esfera que irá executá-las. Nessa situa-ção, obviamente, há maior flexibilidade para a utilizaçãodos recursos. Ainda em relação à descentralização de-pendente, esta pode ser de duas formas: a tutelada, ou

seja, quando as transferências são negociadas; e a vincula-da, com transferências automáticas, em que os recursosestão vinculados a critérios legalmente estabelecidos naslegislações constitucional, complementar e ordinária.

Estas formas são complementares e, no geral, ocorremsimultaneamente. No caso dos municípios, dificilmenteeles têm deixado de colocar recursos próprios, apesar dosrepasses da União e dos Estados.

A DESCENTRALIZAÇÃO NA ÁREA DE SAÚDEE A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

A descentralização tem sido colocada como uma ques-tão-chave para os países que desejam atingir a meta desaúde para todos no ano 2000. A transferência e o con-trole dos serviços de saúde para os níveis locais vêm sen-do recomendados como uma das principais estratégias parao aumento da cobertura assistencial. A OrganizaçãoPanamericana de Saúde – OPS (1994) tem incentivadoos governos membros para que “continuem e reforcemsuas definições de política, estratégias, programas e ati-vidades tendentes à transformação dos sistemas nacionaiscom base no desenvolvimento de sistemas locais de saú-de”, com vistas a conseguir a eqüidade, a qualidade e aeficiência nos sistemas de saúde.

A avaliação da OPS conclui que quase todos os paísesdas Américas organizaram Sistemas Locais de Saúde (Si-los), com significativos progressos, adequando o nível deação às divisões político-administrativas mínimas da or-ganização do Estado (OPS, 1994). Em alguns países, comoo Brasil, os processos recentes de descentralização privi-legiaram o fortalecimento e o desenvolvimento das esfe-ras municipais.

A Constituição Federal de 1988 estabelece as baseslegais quanto ao novo papel do município no cenário ins-titucional brasileiro. No seu art. 18, o texto constitucio-nal evidencia a autonomia municipal, quando define que“a organização político-administrativa da República Fe-derativa do Brasil compreende a União, os Estados, oDistrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nostermos desta Constituição”. O mesmo texto define a saú-de como direito de todos e dever do Estado (art. 196) eatribui aos municípios a competência de “prestar, com acooperação técnica e financeira da União e do Estado,serviços de atendimento à saúde da população” (art. 30,VII).

A idéia de descentralização, de uma forma geral, per-meia esta Constituição, diferentemente da anterior (1967e emenda de 1969), que tinha uma vocação centralizado-ra, própria do regime político em que foi imposta. Nesteparticular, na área de saúde, a atual Lei Magna estabele-ce, no art. 198, inciso I, que “as ações e serviços públicos

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de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquiza-da e constituem um sistema único (...)” que tem como umade suas diretrizes “a descentralização, com direção únicaem cada esfera de governo”. Isto conjuga, de forma lógi-ca e sem conflito com outros dispositivos constitucionais,o sistema de saúde com uma estrutura de federação inte-grada por esferas autônomas. Neste caso, a instituição dadescentralização da gestão e execução dos serviços, en-quanto um dispositivo legal, consolida uma das bandei-ras do movimento da Reforma Sanitária no Brasil.

Os caminhos que levaram à consolidação do atual sis-tema de saúde, o SUS, foram traçados de longa data, bus-cando modificar radicalmente o modelo assistencial an-terior. A sobreposição de clientelas e de competências,com pulverização de recursos, foi uma das principais ca-racterísticas das políticas sociais em geral, e da saúde emespecial, nas últimas décadas. O Sistema Nacional deSaúde2 não se configurava exatamente como um sistema,uma vez que se apresentava como um conjunto de partesque não se inter-relacionavam, nem se articulavam. Nãoera nacional, porque as organizações e práticas de saúdenão atingiam o país como um todo; o atendimento eradiferenciado para a população urbana e rural; e existiamórgãos que atendiam clientelas específicas. Outra carac-terística do sistema era o enfoque no atendimento médi-co-hospitalar, não trabalhando com o epidemiológico. Doponto de vista político-administrativo, era centralizado,com a decisão e a execução concentradas nos âmbitosfederal e estadual.

A partir de 1963, quando foi levantada a bandeira damunicipalização dos serviços de saúde, na III Conferên-cia Nacional de Saúde, o pensamento de uma reforma nosistema de saúde foi crescendo. Diversas foram as forçassociais que, nas décadas seguintes, continuaram lutandopor uma Reforma Sanitária, contribuindo para a forma-ção de uma consciência sanitária no Brasil. Departamen-tos universitários ligados à medicina social e à saúde pú-blica, associações de profissionais de saúde, movimentospopulares e um conjunto de prefeitos com atuação volta-da para as áreas sociais foram importantes atores nessaluta (Carvalho, 1993).

A década de 80 foi particularmente efervescente. Idéiase práticas foram crescendo e constituíram o que ficouconhecida como a Proposta da Reforma Sanitária. Legíti-ma pela sua origem de baixo para cima, foi consagradana VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986,que foi precedida por amplo processo de discussão – ino-vador em relação às conferências anteriores –, com pré-conferências estaduais realizadas em 23 estados. A VIIIConferência – um marco importante nos caminhos per-corridos pelo movimento sanitário – tinha como finalida-de contribuir para a reformulação do Sistema Nacional

de Saúde e proporcionar subsídios para a Assembléia Na-cional Constituinte. “A VIII CNS aponta para a garantiada saúde como direito inerente à cidadania; e em relaçãoà organização dos serviços propõe: descentralização dagestão; integralidade das ações; regionalização e hierar-quização; participação da comunidade e fortalecimentodo Município. Em relação ao financiamento propõe a cria-ção dos Fundos Únicos de Saúde – federal, estadual e mu-nicipal – geridos com participação da comunidade; e pré-fixação de um percentual mínimo sobre as receitaspúblicas, sendo que o Estado deveria financiar integral-mente o setor, e os recursos da Previdência deveriam des-tinar-se exclusivamente para custear o seguro social dostrabalhadores” (Pimenta, 1993). Intensas atividades, commobilização de forças políticas, durante a Constituinte de1987, levaram à consolidação dessas propostas, com ex-ceção do financiamento, numa seção exclusiva destinadaà área de saúde e integrante do capítulo que trata da Se-guridade Social na Constituição de 1988.

Algumas iniciativas do Governo federal ocorriam pa-ralelamente, no sentido de alterar o sistema de saúde. Nestamesma década, tem destaque a implantação das AçõesIntegradas de Saúde (AIS), em 1983, e do Sistema Unifi-cado e Descentralizado de Saúde (Suds), em 1987.

As AIS propunham a integração e a descentralizaçãodos serviços, com a expansão da cobertura assistencial eo redirecionamento dos recursos para estados e municí-pios. A sua implantação foi diferenciada, dependendo dasrealidades regionais e municipais, obtendo maior êxitonaqueles municípios com experiência acumulada na or-ganização dos serviços de saúde.

O Suds, “criado com o objetivo de contribuir para aconsolidação e o desenvolvimento qualitativo das AIS”,3

avançava em relação à idéia de descentralização, na me-dida em que propunha a “estadualização” do Inamps,unificando as suas agências regionais com as SecretariasEstaduais de Saúde, criando, assim, condições objetivaspara que a política de saúde tivesse um comando únicono nível estadual. Outro objetivo era a “municipalização”dos serviços básicos de saúde. A implantação dessas di-retrizes, nos âmbitos estadual e municipal, também foidistinta. Houve situações em que nada se alterou e ou-tras, como o caso do Estado de São Paulo, em que foramassumidas integralmente as estruturas do Inamps emunicipalizou-se grande parte da rede básica estadual.

A transferência de recursos, no caso das AIS e do Suds,dava-se através da assinatura de convênios, negociadosentre as esferas de governo.

A criação do SUS, em 1988, com as características jácitadas, representou avanços institucionais no sentido dadescentralização. No entanto, na questão dos recursos fi-nanceiros, a Constituição estabelece que o financiamen-

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to, por um lado, passa a ser co-responsabilidade das trêsesferas de poder, com contrapartida de estados e municí-pios, sem, no entanto, definir regras para garantir essaparticipação; e, por outro, que os recursos para a área desaúde serão aqueles integrantes do Orçamento da Seguri-dade Social, sem a vinculação de fontes de custeio para asaúde e nem critérios para a partilha dos recursos entresaúde, assistência e previdência social. Estes fatos causa-ram, posteriormente, alguns entraves no financiamento dasações do setor saúde.

Em 1990, as Leis Orgânicas de Saúde (nos 8.080 e8.142) vêm regulamentar os dispositivos constitucionais,definindo as atribuições comuns e exclusivas de cada es-fera de governo, sem, no entanto, avançar na definiçãode critérios para a divisão dos recursos da SeguridadeSocial.

O Inamps estabeleceu, em 1991, a Norma Operacio-nal Básica (NOB 01/91) que definia nova sistemática derepasse para estados e municípios, através do pagamentopor produção de serviços, a partir da assinatura de con-vênios. Com esta norma, os municípios passam a ser tra-tados como meros prestadores de serviços (Pimenta, 1993).

Na década de 90, apesar das conquistas, faltavam osinstrumentos e as estratégias mais adequados para a im-plementação do que já estava amplamente definido emlei. Em 1992, depois de muito postergada, realizou-se aIX CNS, convocada com o tema “Municipalização é oCaminho”, onde foram reafirmadas as linhas macroestru-turais para a política de saúde nacional, procurando cen-trar a discussão na busca dos caminhos para o avanço damunicipalização da saúde e exigindo o estrito cumprimen-to da lei na implementação do SUS.

Os novos papéis atribuídos a cada esfera de governoexigiam ajustes institucionais e reformulação de práticas.No final de 1992, o Ministério da Saúde tomou a decisãode procurar os caminhos para a real implantação do SUS,debatendo suas propostas pelo Brasil afora. É apresenta-do, pelo Ministério, o documento A Descentralização dasAções e Serviços de Saúde – A Ousadia de Cumprir e Fa-zer Cumprir a Lei, que retoma os princípios constitucio-nais e propõe mecanismos para se efetivar a descentrali-zação das ações e serviços, levando em consideração asdiferentes realidades dos estados e municípios brasilei-ros. A proposta prevê a descentralização de maneira gra-dual, com responsabilidades e formas de financiamentodiferentes, rumo a uma gestão plena em cada esfera degoverno.

As bases dessa proposta, com a aprovação do Conse-lho Nacional de Saúde, são consolidadas na Norma Ope-racional Básica do SUS (NOB 01/93),4 em que se reco-nhece a construção do SUS como um processo, bem comoas complexas dimensões que a descentralização das ações

e serviços de saúde vêm assumindo. Diagnostica-se quea implantação do SUS é heterogênea, que estados e mu-nicípios, e até mesmo os próprios órgãos do Ministérioda Saúde, encontram-se em estágios e condições diferen-tes de descentralização do sistema e que, portanto, sãonecessários procedimentos e instrumentos operacionaisdiferenciados para que possam ser ampliadas e aprimora-das as condições de gestão, visando a efetivação do co-mando único do SUS, em cada esfera de governo.

A norma fundamenta-se no pressuposto de que a des-centralização é um processo que implica redistribuiçãode poder, redefinição de papéis e de novas relações entreas três esferas de governo, com reorganização institucio-nal, reformulação de práticas e controle social. Para tan-to, reformula os instrumentos existentes, cria mecanismosde articulação entre estados e municípios (as comissõesbipartites), incentiva a criação dos Conselhos de Saúdeparitários e deliberativos e define sistemáticas diferencia-das de gestão e financiamento. No âmbito municipal, issosignifica criar condições para que o município passe deum simples prestador de serviços para um gestor plenodas ações e serviços de saúde, transitando por três tiposde sistemática de relacionamento entre as esferas de go-verno: incipiente, parcial e semiplena.

Na condição de gestão incipiente, os municípios pas-sam a ampliar seu nível de gerenciamento, assumindo,imediata ou progressivamente, a responsabilidade sobrea rede de serviços no que diz respeito ao planejamento, àprogramação, à contratação, ao controle e à avaliação dosserviços ambulatoriais e hospitalares. Além disso, mos-tram disposição e condições de assumir as unidadesambulatoriais públicas, bem como incorporar à rede asações básicas e de vigilância à saúde, inclusive a do tra-balhador. Numa segunda fase, a parcial, os municípiosassumem de imediato as responsabilidades da fase ante-rior e recebem mensalmente recursos financeiros corres-pondentes à diferença entre o teto financeiro estabeleci-do e o pagamento efetuado diretamente pela esfera federalàs unidades hospitalares e ambulatoriais públicas e pri-vadas. Na semiplena, a Secretaria Municipal de Saúdepassa a ter a completa responsabilidade sobre a gestão daprestação de serviços – do planejamento à contratação epagamento dos prestadores da rede ambulatorial e hospi-talar –, assumindo o gerenciamento de toda a rede públi-ca, exceto hospitais de referência sob gestão estadual, erecebendo mensalmente o total de recursos financeirospara custeio correspondentes aos tetos ambulatorial ehospitalar estabelecidos.

A adesão por parte dos Governos estaduais e munici-pais começou em 1993. Dados do Ministério da Saúdemostram a distribuição dos municípios brasileiros, por re-gião, segundo os modelos de gestão no período de 1994-96

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O MUNICÍPIO E A DESCENTRALIZAÇÃO DA SAÚDE

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(Tabela 1). Em 1994, estavam habilitados 2.397 municí-pios, passando para 2.962, em junho de 1996, o que sig-nifica 60% dos 4.974 municípios brasileiros. Dos habili-tados, a concentração, por gestão, está na incipiente (76%)e, por região, no Sudeste (38%), sendo que neste últimocaso, os 1.125 municípios que optaram por algum tipo degestão representam 73% dos municípios da região.

O modelo vigente (NOB 01/93) de descentralização emunicipalização apresenta as situações progressivas degestão de estados e municípios, no Sistema Único de Saú-de, convivendo simultaneamente. Atualmente, o Minis-tério da Saúde tem promovido a discussão de uma novaNorma Operacional, que procura avançar em relação àanterior.

UM OLHAR SOBRE OSMUNICÍPIOS PAULISTAS

Alguns dados referentes ao Estado de São Paulo mos-tram a participação das esferas municipais na área de saú-de. Dados sobre a rede ambulatorial cadastrada em 1980e 1985 indicam o crescimento da rede mantida pelas pre-feituras municipais, com significativa expansão no inte-rior paulista. Em 1980, das 123 unidades municipais ca-dastrados como ambulatórios e prontos-socorros isolados,91 estavam na Região Metropolitana de São Paulo e 32no interior. Em 1985, esses números subiram para 144 e215, respectivamente, perfazendo um total de 359 unida-des de saúde municipais no estado (Fundação Seade, 1981e 1987).

Passados quase dez anos, o número de unidades muni-cipais cadastradas junto ao SUS, em 1994, mostra não sóa extraordinária expansão da rede de serviços no estado,como também a direção do processo de descentralização,com a municipalização das unidades estaduais e federais(Tabela 2). Predominam sob o comando do poder muni-cipal as unidades destinadas aos atendimentos básicos e,com menor participação, os serviços médicos especiali-zados, os de apoio à diagnose e terapia e os referentes àrecuperação e reabilitação.

As mais de 3.000 unidades da rede municipal têm sidoresponsáveis por parcela significativa do atendimentoambulatorial prestado pelo SUS. Em 1994, foram reali-zados 55 milhões de atendimentos médicos e 18 milhõesde atendimentos odontológicos por prestadores munici-pais, no Estado de São Paulo, representando 56% e 87%,respectivamente, do total de atendimentos efetuados. Es-ses dados evidenciam o predomínio do município na exe-cução desses serviços no âmbito do SUS.5

Quanto ao financiamento, dados da Fundação Seade,disponíveis para alguns municípios do Estado de São Pau-lo, mostram que o percentual de gasto no programa saú-

TABELA 1

Número de Municípios Habilitados, por Condição de Gestão Municipal do Sistema de Saúde(1)

Brasil – 1994-96

Regiões Anos Incipiente Parcial Semiplena Total

Total 1994(2) 1.836 537 24 2.3971995(2) 2.131 612 56 2.7991996(3) 2.240 620 102 2.962

Norte 1994(2) 20 11 0 311995(2) 25 14 1 401996(3) 28 14 2 44

Nordeste 1994(2) 595 26 7 6281995(2) 733 34 17 7841996(3) 811 39 25 875

Sudeste 1994(2) 724 248 13 9851995(2) 800 270 29 1.0991996(3) 804 261 60 1.125

Sul 1994(2) 373 192 4 5691995(2) 429 228 7 6641996(3) 438 239 9 686

Centro-Oeste 1994(2) 124 60 0 1841995(2) 144 66 2 2121996(3) 159 67 6 232

Fonte: Ministério da Saúde – MS, 1996.(1) Referentes à habilitação definida na NOB 01/93.(2) Situação em dezembro.(3) Situação em junho.

TABELA 2

Unidades Ambulatoriais Municipais Cadastradas no Sistema Único de Saúde de São Paulo – SUS/SP, segundo o Tipo

Estado de São Paulo – 1994

Prestador Municipal TotalTipos deUnidades Números % Números %

Absolutos Absolutos

Posto de Saúde 455 91,73 496 100,00

Centro de Saúde 2.054 89,50 2.295 100,00

Posto de

Assistência Médica 94 87,85 107 100,00

Policlínica 91 53,22 171 100,00

Clínica Especializada 78 42,86 182 100,00

Clínica de Psiquiatria 10 66,67 15 100,00

Unidade Mista de Saúde 71 97,26 73 100,00

Pronto-Socorro 182 81,61 223 100,00

Clínica/Consultório

Odontológico 152 69,09 220 100,00

Centro/Núcleo

de Reabilitação 26 65,00 40 100,00

Serviço Auxiliar de

Diagnose e Terapia 62 14,25 435 100,00

Fonte: Secretaria de Estado da Saúde/Centro de Informações de Saúde – CIS; Fundação Seade.

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de – abrangendo todas as fontes de recursos, inclusive astransferências estaduais e federais – vem aumentando(Tabela 3). Na Região Metropolitana de São Paulo, ob-serva-se uma elevação do percentual das despesas efetua-das em saúde, em relação ao gasto total das prefeituras, de7,07%, em 1985, para 12,98%, em 1991. O mesmo fenô-meno pode ser verificado quanto aos gastos em saúde percapita. A média para a Região Metropolitana – síntese demuitas disparidades – passou de R$19,00, em 1985, paraR$54,59, em 1991. Apesar da variação do ritmo de cres-cimento, todos os municípios-sede das regiões administrati-vas apresentaram crescimento no período, em relação tantoao gasto per capita quanto à participação percentual, comúnica exceção, neste último caso, de São José do Rio Preto.

Análise feita por Medici (1994) destaca o predomíniodos recursos da União nos gastos públicos totais do setorsaúde no Brasil, que, onde entre 1980 e 1992, tiveramparticipação nunca inferior a 70%. Observa também quea participação dos recursos dos estados tem ficado esta-cionária e em alguns casos até diminuída, enquanto a par-

ticipação dos recursos próprios dos municípios no finan-ciamento da saúde tem aumentado. Entre 1980 e 1990, “aparticipação dos gastos municipais com saúde, como per-centagens das receitas próprias destas esferas (incluindoo FPM), passou de 6,3% para 8,2%. Essa participaçãoaumentou num contexto onde as receitas próprias muni-cipais e estaduais se expandiam como resultado dos dis-positivos tributários contidos na Constituição de 1988”(Medici, 1994).

Sabe-se que os municípios, dependendo de suas recei-tas e prioridades políticas, têm capacidade financeira di-ferenciada para alocar recursos na área de saúde e podeminvestir maior ou menor parcela dos seus recursos próprios.

O setor saúde tem passado por fortes turbulências e aquestão do financiamento é sempre recorrente. Autorida-des diversas, federais, estaduais e municipais têm dito queos recursos são insuficientes e reinvidicam um maior apor-te dos mesmos, causando intenso debate. Nesse sentido,várias propostas de financiamento para a área de saúdeestão em curso, com estratégias diferenciadas de arreca-dação, vinculação e redistribuição dos recursos.

Quanto à adesão à NOB 01/93, no Estado de São Pau-lo, 55% dos 625 municípios estão habilitados em um dosmodelos de gestão – cobrindo 45% da população residen-te –, sendo 45 em semiplena, que permite maior flexibilida-de no uso dos recursos repassados pela União (Tabela 4).

EXPERIÊNCIAS MUNICIPAIS

Diversos municípios têm conseguido avanços na áreade saúde, desempenhando papel relevante no desenvol-vimento de programas destinados à melhoria da qualida-de de vida de sua população. Há uma diversidade de si-tuações que permitem o surgimento de experiências

TABELA 4

Número de Municípios Habilitados e População, por Condição de Gestão Municipal do Sistema de Saúde (1)

Estado de São Paulo – 1996 (2)

Municípios População (3)Condição de Gestão Números % Números %

Absolutos Absolutos

Total 349 100,00 15.104.383 100,00

Semiplena 45 12,89 6.655.974 44,07Parcial 44 12,61 2.319.793 15,36Incipiente 260 74,50 6.128.616 40,57

Fonte: Secretaria de Estado da Saúde/Centro de Informações de Saúde - CIS; FundaçãoSeade.(1) Referentes à habilitação definida na NOB 01/93.(2) Situação em julho.(3) Refere-se à população projetada para 01/07/95.

TABELA 3

Gasto Municipal em SaúdeRegião Metropolitana de São Paulo e Municípios-

Sedes das Regiões Administrativas (1) – 1985-1991

Gasto em Gasto MunicipalRegião Metropolitana Saúde (%) per Capita (2)e Municípios-Sedes

1985 1988 1991 1985 1988 1991

Região Metropolitana

de São Paulo 7,07 8,63 12,98 19,00 30,15 54,59

São Paulo 7,69 9,04 13,98 23,58 37,86 63,84

Santos 4,55 3,09 9,61 11,94 8,39 47,27

São José dos Campos 5,52 8,51 15,69 15,86 28,02 69,33

Sorocaba 2,89 ... 10,16 5,33 ... 32,37

Campinas 4,29 3,08 14,28 10,73 19,09 52,40

Ribeirão Preto 5,90 12,01 13,48 7,43 18,10 31,04

Bauru 2,34 8,44 12,06 2,84 12,09 26,51

São José do Rio Preto 8,82 4,00 5,88 14,27 6,50 18,41

Araçatuba 4,43 9,94 6,94 7,67 18,44 22,75

Presidente Prudente 0,37 7,91 6,52 0,52 14,67 14,32

Marília 1,68 6,97 6,62 2,06 10,63 13,49

Araraquara 4,87 6,89 14,29 9,99 12,65 34,37

São Carlos 2,99 ... 5,56 4,85 ... 16,43

Barretos 2,24 4,87 10,99 3,14 7,27 17,83

Franca 5,13 12,16 11,95 5,62 15,19 22,27

Fonte: Fundação Seade.(1) Excluem o município de Registro.(2) Em reais. Os valores monetários estão a preços de dezembro de 1994, atualizados peloÍndice Geral de Preços – Disponibilidade Interna – IGP-DI, da Fundação Getúlio Vargas .Nota: Inclui recursos oriundos de todas as fontes.

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O MUNICÍPIO E A DESCENTRALIZAÇÃO DA SAÚDE

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diferenciadas, algumas com características inovadoras.São expressões de governantes e comunidades que de-monstram maior clareza do papel do município enquantoinstância de governo, com novas atribuições, e como es-paço para exercício da cidadania. Não são poucas as ad-ministrações municipais que foram capazes de produzirexperiências na área de saúde, com impacto na atençãofinal e nos mecanismos de controle social.

São muitos os exemplos de programas visando redu-zir a mortalidade infantil e aprimorar a saúde bucal, decriação de comitês para a redução da mortalidade mater-na, da melhor utilização de recursos, com a criação deconsórcios intermunicipais, do incentivo à participaçãopopular, entre outros. No Estado de São Paulo, podem serdestacados alguns casos.

A cidade de Santos, antes considerada a capital brasi-leira da Aids, conseguiu, através de programas de pre-venção e campanhas de esclarecimento, reduzir o núme-ro de casos da doença. Participa também, junto com oMinistério da Saúde, de projeto pioneiro que visa reduziro número de bebês com Aids. Além disso, teve vários deseus projetos selecionados para a 2a Conferência das Na-ções Unidas sobre Assentamentos Humanos – o HabitatII –, dos quais destacam-se o programa de vigilância aorecém-nascido de risco e o de saúde bucal, que já obtive-ram impacto na melhoria dos seus indicadores.

Campinas, como outros municípios brasileiros, fazparte da Rede Município Saudável, programa desenvol-vido em parceria com a OPS, em que o foco não está nasações exclusivas dos serviços de saúde, mas sim na pro-moção da saúde como um conjunto de ações inter-seto-riais, que visam repercutir na qualidade de vida dos mu-nícipes. A associação entre autoridades e a sociedade,fortalecendo a participação comunitária, tem papel estra-tégico na concepção desse projeto.

As dificuldades encontradas quanto à disponibilidadede recursos e utilização de serviços têm sido enfrentadascom a parceria entre prefeituras, através da constituiçãode consórcios intermunicipais. Pioneiro, já em 1986, omunicípio de Penapólis teve a iniciativa de propor a maisseis municípios6 da sua região um plano de ação conjun-ta, tendo a saúde como prioridade. Criado em 1987, oConsórcio Intermunicipal de Saúde (Cisa) assumia a res-ponsabilidade pelos serviços secundários de referênciapara os municípios integrantes.

Em 1995, dados do SIA/SUS permitem observar a dis-seminação dessa prática. Estavam cadastradas 13 unida-

des7 de serviços de referência (ambulatórios de hospitais,clínicas especializadas e laboratórios), cujas entidadesmantenedoras eram consórcios.

A extrema centralização das políticas sociais vivida nopaís por muitos anos impediu o desenvolvimento de ca-pacidades técnicas-gerenciais em grande parte dos muni-cípios brasileiros. No entanto, processos como os que vêmocorrendo na área de saúde têm mostrado a viabilidadede as esferas municipais assumirem o comando dessaspolíticas. Nesse sentido, o apoio da União e do Estado éfundamental para que, com co-responsabilidade das es-feras governamentais, a saúde se viabilize como um bempúblico.

NOTAS

1. Ver a respeito Dallari (1992), Medici (1994), Mills (1990), Teixeira (1991) eTobar (1991).

2. A Lei no 6.229, de 17/07/75, dispõe sobre sua organização.

3. Ver Decreto no 94.657, de 20/07/87.

4. Estabelecida pela Portaria MS no 545, de 20/05/93.

5. Dados obtidos através do Sistema de Informações Ambulatoriais do SistemaÚnico de Saúde – SIA/SUS, divulgados pela Secretaria de Estado da Saúde.

6. Alto Alegre, Avanhandava, Barbosa, Braúna, Glicério e Luiziânia.

7. Localizadas nos municípios de Capão Bonito, Conchas, Divinolândia, Embu,Itapetininga, Lupércio, Pariquera-Açu, Registro, além de Penapólis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, G. “O momento atual do SUS... A ousadia de cumprir e fazercumprir a lei”. Saúde e Sociedade. São Paulo, FSP/APSP, v.2, n.1, 1993,p.9-24.

DALLARI, S.G. “Descentralização versus municipalização”. Saúde em Debate.Londrina, Cebes, n.35, jul. 1992, p.39-42.

FUNDAÇÃO SEADE. Anuário Estatístico do Estado de São Paulo – 1980 e1986. São Paulo, 1981 e 1987.

MEDICI, A.C. Economia e financiamento do setor saúde no Brasil: balanços eperspectivas do processo de descentralização. São Paulo, Faculdade de Saú-de Pública/USP, 1994.

MILLS, A. et alii. Descentralización de los sistemas de salud: conceptos, as-pectos y experiencias nacionales. Genebra, OMS, 1990.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Construindo um modelo de atenção à saúde para aqualidade de vida. Brasília, 1996.

OPS. Las condiciones de salud en las Américas. Publicação Científica n. 549.Washington, OPS, 1994, v.1, p.342-45.

PIMENTA, A.L. “O SUS e a municipalização: à luz da experiência concreta”.Saúde e Sociedade. São Paulo, FSP/APSP, v.2, n.1, 1993, p.25-40.

TEIXEIRA, C. F. “Municipalização da saúde: os caminhos do labirinto”. Saúdeem Debate. Londrina, Cebes, n.33, dez. 1991, p.27-32.

TOBAR, F. O conceito de descentralização: usos e abusos. Planejamento e Po-líticas Públicas. Brasília, Ipea, n.5, jun. 1991, p.31-51.

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O MUNICÍPIO E A GESTÃO URBANAnovas exigências

discussão que se coloca hoje com relação ao pla-nejamento urbano passa pela necessidade de ge-rir espaços cada vez mais complexos, cuja velo-

cidade de mudança e transformações geradas pelo avan-ço tecnológico e pela evolução econômica mundial atro-pela a maioria das administrações municipais.

O reconhecimento da complexidade da cidade e da di-versidade de que ela é constituída, bem como da necessi-dade da participação da população nas decisões sobre suaevolução, garantindo as salvaguardas ambientais e a qua-lidade necessária dos serviços urbanos, é o desafio a serenfrentado não só pelos governos locais, mas também portoda a comunidade.

No Brasil, com a Constituição Federal de 1988, o mu-nicípio cresce em importância, tendo seu papel valoriza-do frente às demais esferas de poder. A atividade de pla-nejamento urbano, embora tratada em apenas dois artigos,foi revalorizada. Retomou-se o discurso do Plano Dire-tor, definido na Constituição como instrumento básicoda política de desenvolvimento e expansão urbana, tor-nando-se obrigatório para cidades com mais de 20.000habitantes e devendo fixar diretrizes gerais a serem exe-cutadas pelo poder municipal, com o objetivo de "or-denar o pleno desenvolvimento das funções sociais dacidade e garantir o bem-estar de seus habitantes". Apartir de então, muitos municípios retomaram, ou ini-ciaram, a atividade de planejamento, com ênfase naaplicação dos novos instrumentos urbanísticos defini-dos na Constituição. A exigência constitucional atin-giu muitos municípios com pequena capacidade técni-ca e financeira. Os meios acadêmicos externaram seutemor de um retorno à produção em larga escala de pla-nos diretores tecnocráticos e vazios de objetividade e

aplicabilidade, quase sempre elaborados por equipestécnicas externas às prefeituras.

Com efeito, muitos municípios brasileiros ressentemda precariedade das informações existentes em suas pre-feituras e passam a se preocupar em organizá-las esistematizá-las, ao se defrontarem com a tarefa de gerir acidade e com a necessidade de elaborar ou rever a legis-lação urbanística e de formular planos para orientar suasações.

Neste artigo, procura-se discutir a importância da sis-tematização e organização de informações municipais,exemplificando a situação dos municípios paulistas quantoà existência de informações sistematizadas em cadastros(físico-territoriais e cadastros de serviços) e de legisla-ção municipal, com base nos dados da Pesquisa Munici-pal Unificada, realizada pela Fundação Seade em 1993 –ano base 1992.

PLANEJAMENTO E GESTÃOMUNICIPAL NO BRASIL

A prática do planejamento municipal no Brasil estevemarcada, nas últimas três décadas, por diferentes formasde abordagem dos problemas locais, a saber: “a elabora-ção de planos diretores da cidade, o planejamento localintegrado e os planos de desenvolvimento com participa-ção da comunidade” (Oliveira, 1991:17).

Nos anos 60 e 70, tanto os planos diretores urbanos,elaborados quase sempre por equipes de profissionais ex-ternos às prefeituras, como os PDLI (Planos de Desen-volvimento Local Integrado) eram tratados freqüentemen-te apenas como instrumentos tecnocráticos para obtençãode financiamentos, sem rebatimentos na realidade do pla-

A

SARAH MARIA MONTEIRO DOS SANTOS

Engenheira, Analista da Fundação Seade

MARIA CONCEIÇÃO SILVÉRIO PIRES

Arquiteta, Analista da Fundação Seade

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O MUNICÍPIO E A GESTÃO URBANA: NOVAS EXIGÊNCIAS

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nejamento e da gestão municipal. As experiências de pla-nejamento democrático, com participação popular, noâmbito municipal, surgiram em meados dos anos 70 e atéhoje constituem um número reduzido em relação ao totalde municípios brasileiros.

A questão do planejamento urbano, nos anos 80, ficourelegada a uma questão menor, enquanto os planos dire-tores cederam lugar a projetos setoriais e esparsos na pautadas administrações municipais.

A discussão que ganha corpo, nos anos 90, passa peloentendimento do planejamento urbano enquanto um pro-cesso e do plano diretor com uma nova configuração, nãomais identificado com as experiências passadas, mas simencarado como uma atividade cíclica, de aproximaçõessucessivas. "O plano não mais o território onde tudo es-tava previsto e tinha lugar. O plano é cada vez mais umconjunto de lugares disponíveis para aquilo que se venhadiscutir e negociar mais tarde" (Portas, 1993).

Coloca-se a necessidade de uma gestão urbana demo-crática que articule a participação dos diferentes atoresque produzem e vivem no espaço urbano e, especialmen-te no caso de nossas cidades, a premência de incorporar acidade "ilegal" nas formulações de propostas que busquematingir "a função social da cidade".

Entretanto, para grande parte dos municípios brasilei-ros, a legislação urbanística resume-se aos códigos deobras, de posturas e tributário, muitas vezes desatualizados.Por outro lado, as preocupações com a elaboração e adefinição de novos instrumentos de controle urbanísticoe de intervenção urbana nem sempre estão acompanha-das da implementação das condições necessárias para suaaplicação à realidade do município.1

Na maioria das prefeituras brasileiras, as informaçõesexistentes são produzidas e armazenadas em diferentessetores da administração municipal e trabalhadas comvistas a atender aos objetivos imediatos de cada setor, quaissejam: arrecadação, controle, planejamento, etc. Quandoestes dados estão organizados, muitas vezes a estruturaempregada dificulta sua utilização para outros fins quenão aqueles para os quais foram produzidos.

As dificuldades no tratamento de informações dis-persas, não articuláveis, de difícil manuseio, muitasvezes não mapeadas, e o desconhecimento das infor-mações existentes nos diversos setores da administra-ção municipal engendram freqüentemente longos pra-zos nas respostas a demandas de informações, poucaobjetividade no estabelecimento de prioridades, metase alocação de recursos e sobreposição de esforços e al-tos custos com a produção de informações já existen-tes, notadamente quando da elaboração de diagnósti-cos dos problemas municipais, da programação dasações e da elaboração da legislação urbanística.2

As prefeituras funcionam quase sempre com base noconhecimento e na memória acumulada do corpo técni-co, sendo muitos procedimentos cativos da condução defuncionários antigos com conhecimento histórico dos mes-mos. Cada setor organiza-se como pode, com basescartográficas que não são compatíveis, mapeamentos quenão se sobrepõem, trabalhos que se duplicam.

AS INFORMAÇÕES MUNICIPAISNO ESTADO DE SÃO PAULO

A dificuldade por parte das prefeituras em organizar emanter atualizadas informações relevantes sobre os pro-blemas e demandas municipais e sobre as ações públicasvoltadas para o seu equacionamento torna a pesquisa dedados com base municipal uma tarefa problemática nãosó para as prefeituras e secretarias de Estado, mas tam-bém para instituições tais como universidades, fundaçõese institutos especializados que produzem informaçõesmunicipais e regionais de interesse para a gestão munici-pal, e que podem contribuir para completar um sistemade informações para o planejamento municipal.

As mudanças na dinâmica econômica, social e urbanados municípios paulistas, e ainda as exigências oriundasda Constituição Federal de 1988 e da Constituição Esta-dual, têm obrigado a investigação de novos temas e a re-organização da produção de dados de base municipal, comvistas à compreensão dos processos estruturadores da reali-dade atual dos municípios do Estado de São Paulo.

A Fundação Seade tem realizado, ao longo dos últi-mos anos, um grande número de pesquisas municipais,acumulando experiência relevante no levantamento dedados e informações, bem como na produção de estatísti-cas sobre os municípios do Estado de São Paulo.

Dois são os objetivos básicos que têm norteado atual-mente as pesquisas municipais da Fundação Seade: “a)obter dados e informações reveladores da capacidade or-ganizacional, administrativa e financeira das PrefeiturasMunicipais para definir, implantar e gerir políticas públi-cas globais e/ou setoriais; b) pesquisar dados e informa-ções que indiquem a realidade socioeconômica e urbanamunicipal, possibilitando um cotejamento das políticas eações municipais com as demandas sociais urbanas emer-gentes em municípios de diferentes portes e também comdinâmicas econômicas, sociais e urbanas distintas” (Fun-dação Seade, 1995).

Nesse sentido, a rotinização das pesquisas municipais,visando a montagem e a manutenção de um banco de da-dos básico sobre todos os municípios paulistas, passoutambém a ser um desafio.

Em 1993, realizou-se a Pesquisa Municipal Unificada– PMU que procurou coletar dados e informações bási-

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cas relativos às estruturas administrativas e de recursos hu-manos e financeiros das administrações municipais, bemcomo captar elementos referentes à gestão municipal daspolíticas e dos serviços públicos para o ano base de 1992.

Esta pesquisa, de caráter censitário, investiga umaampla gama de temas: estrutura administrativa, estruturaurbana, habitação, saneamento básico, limpeza pública,transporte municipal, saúde, educação, cultura, esporte,turismo, abastecimento e finanças municipais, devendoser aplicada a cada três anos.3

A partir da PMU, criou-se um instrumento de coleta elançou-se mão de métodos de investigação que deramsuporte ao equacionamento de duas preocupações defundo, a saber: “a) apreender o aprofundamento dapronunciada diferenciação econômica, social e urbana dosmunicípios paulistas, os quais foram afetados de maneiradiversa pelo processo de desenvolvimento econômico dasúltimas duas décadas e pelo conseqüente processo deurbanização; b) captar a capacidade de resposta dosmunicípios diante da tendência de descentralizaçãopolítico-institucional, que vem ocorrendo em direção dosmunicípios e que tem como raiz a perda de expressãohistórica do centralismo federal, reforçada pela Cons-tituição de 1988” (Fundação Seade, 1995).

Estas duas dimensões tornaram estratégicas as pesqui-sas de âmbito municipal, seja no sentido de contemplar aprofunda diferenciação das realidades municipais, sejapela emergência da instância municipal na gestão daspolíticas públicas.

Uma primeira exploração de alguns dados da PMU/93,relativos à política urbana, que serão apresentados a seguir,ainda que limitada apenas às informações consistidas e jádisponibilizadas em produto eletrônico pela Fundação Sea-de, mostra o potencial desta pesquisa para o conhecimento ea análise da realidade dos municípios paulistas.

Buscando identificar o nível de organização das pre-feituras para o enfrentamento das novas exigências da ges-tão urbana, dois grupos de informações foram analisados:legislação municipal e cadastros técnicos municipais, fí-sico-territoriais e de serviços.

A Tabela 1 apresenta o número de municípios por classede tamanho, segundo a existência das seguintes leis mu-nicipais: Lei Orgânica; Plano Diretor; Código de Obras;Lei de Zoneamento; Lei de Parcelamento e Lei de Perí-metro Urbano.4

Observa-se que a lei mais freqüente nos municípios doEstado de São Paulo é a Lei Orgânica Municipal, exis-tente em 71,3% dos mesmos, sendo que apenas 14 muni-cípios (2,4%) não a possuem.5

Somente dois municípios de porte significativo, Biri-güi e Poá, com população em torno de 70 mil habitantes,afirmam não possuir Lei Orgânica, que existe em mais de

TABELA 1

Distribuição dos Municípios, por Classe de Tamanho, segundo a Existência de Legislação Municipal

Estado de São Paulo – 1992

Classes de Tamanho(número de habitantes)

LegislaçãoMunicipal Menos 20 a 50 50 a 100 100 a 500 Mais de Total

de 20 Mil Mil Mil Mil 500 Mil

Nº de MunicípiosTotal (Nº Abs.) 367 106 50 43 6 572NR (1) (Em %) 2,2 1,9 0,0 0,0 0,0 1,7

LegislaçãoMunicipal (Em %)Lei Orgânica

Sim 69,2 71,7 76,0 79,1 100,0 71,3Não 3,0 0,9 4,0 0,0 0,0 2,4ND(2) 25,6 25,5 20,0 20,9 0,0 24,5

Plano DiretorSim 7,6 18,9 36,0 46,5 33,3 15,4Não 59,4 49,1 46,0 25,6 66,7 53,8ND(2) 30,8 30,2 18,0 27,9 0,0 29,0

Código de ObrasSim 15,3 51,9 54,0 58,1 83,3 29,4Não 52,3 21,7 26,0 18,6 0,0 41,3ND(2) 30,2 24,5 20,0 23,3 16,7 27,6

ZoneamentoSim 8,7 34,0 46,0 69,8 100,0 22,2Não 58,6 35,8 38,0 9,3 0,0 48,3ND(2) 30,5 28,3 16,0 20,9 0,0 27,8

ParcelamentoSim 13,9 49,1 64,0 65,1 66,7 29,2Não 52,0 21,7 20,0 11,6 16,7 40,2ND(2) 31,9 27,4 16,0 23,3 16,7 28,8

Perímetro UrbanoSim 51,5 62,3 76,0 65,1 66,7 56,8Não 15,8 10,4 8,0 7,0 0,0 13,3ND(2) 30,5 25,5 16,0 27,9 33,3 28,1

Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada 1993 – PMU/93 (ano base 1992).(1) Municípios que não responderam à PMU.(2) Dado não disponível.

70% dos municípios da Região Metropolitana de SãoPaulo e dos municípios de oito das 14 regiões adminis-trativas do Estado, a saber: Registro, Santos, Campinas,Bauru, Presidente Prudente, Marília, Central e Barretos.Nas outras RAs, o percentual de municípios com Lei Or-gânica nunca é inferior a 55%.

Com relação às demais leis pesquisadas, verifica-se que,em geral, as regiões mais urbanizadas e em processo demetropolização destacam-se no conjunto do estado.

O Plano Diretor, exigido pela Constituição Federal de1988 para os municípios com população superior a 20 mil

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O MUNICÍPIO E A GESTÃO URBANA: NOVAS EXIGÊNCIAS

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habitantes e pela Constituição do Estado de São Paulo paratodos os municípios paulistas, existe apenas em 15,4%dos municípios do estado. Mais da metade (53,8%) dosmunicípios afirmaram não possuir e quase 30% respon-deram dado não disponível.

Dos seis municípios com mais de 500 mil habitantes,apenas dois afirmaram ter Plano Diretor em 1992. NaRegião Metropolitana de São Paulo e nas RAs de Santose de Campinas, encontram-se os maiores percentuais demunicípios com Planos Diretores (42,1%, 37,5% e 28,9%,respectivamente).6 Ao se destacar a RG de Campinas, ve-rifica-se que 12 dos 18 municípios possuem Planos Dire-tores. Vale lembrar que vários Planos Diretores em vigornos municípios paulistas são anteriores à Constituição de1988.

Essas três regiões também se destacam com relação àsleis de zoneamento e parcelamento, com percentuais quevariam entre 52,6% dos municípios da RMSP com Lei deParcelamento e 87,5% dos municípios da região de San-tos com Lei de Zoneamento (sete dos oito municípios daregião).

Do conjunto dos municípios paulistas, 29,2% possuemLei de Parcelamento e 22,2% Lei de Zoneamento, sendoque 230 municípios (40,2%) afirmaram não possuir a pri-meira e cerca de 50% não possuir a segunda.

É baixo o percentual de municípios com população até20 mil habitantes que possuem essas duas leis, cuja fre-qüência aumenta para os municípios maiores, atingindo64% dos municípios com população superior a 100 milhabitantes. Na verdade, em muitos municípios, as normasde parcelamento e de zoneamento aparecem em capítu-los de outras leis, tais como o código de obras. O surgi-mento de legislação específica está freqüentemente asso-ciado à complexificação dos problemas da cidade e àexigência de maior controle.

A lei de Perímetro Urbano, exigência da Lei federalno 6.766/79, que regulamenta o parcelamento do solo ur-bano, está presente em 56,8% dos municípios paulistas,sendo alto o percentual de respostas de dado não disponí-vel para essa questão (28,1%). A distribuição por classede tamanho dos municípios acompanha aquelas das de-mais leis e, quanto à distribuição regional, observa-se que70% dos municípios da Região Metropolitana e das RAsde Campinas, Central, Bauru e Barretos possuem tal lei.Verifica-se que com a aceleração do crescimento urbanonos anos 70, em muitos municípios, a expansão da ocu-pação extrapolou os limites urbanos então definidos, cri-ando a necessidade de revisão do perímetro urbano parapossibilitar a cobrança de impostos e taxas urbanas e con-seqüentemente aumentar a arrecadação municipal.

O Código de Obras, que tradicionalmente serviu comolegislação urbanística básica, agrupando, muitas vezes,

não só as regras relativas às edificações mas também aque-las de parcelamento e zoneamento, existe em apenas29,4% dos municípios do estado, com grandes diferençassegundo as classes de tamanho. Nos municípios com po-pulação inferior a 20 mil habitantes, apenas 15,3% afir-maram possuir Código de Obras. Dos seis municípiosmaiores, com mais de 500 mil habitantes, cinco (83,3%)possuem o referido código e um apresenta dado não dis-ponível. Para as outras classes de tamanho de municípios,o percentual de respostas positivas é sempre superior a50% e as negativas não ultrapassam 26%. Não foi possí-vel disponibilizar o dado para 158 municípios, ou seja,27,6% do total do estado, o que contribui para a distorçãodo resultado.

A Tabela 2 mostra o número de municípios por classe detamanho, segundo a existência dos seguintes instrumentosurbanísticos: intervenção urbana, lei do solo criado, conces-são de direito real de uso, imposto progressivo sobre vaziosurbanos e leis de proteção e controle ambiental.

Com efeito, a Constituição Federal de 1988, no Capí-tulo de Desenvolvimento Urbano, abre novas possibili-dades para a gestão urbana dos municípios. No entanto, aintrodução de novos instrumentos legais baseados naConstituição ocorreu em poucos municípios do Estado dePaulo, bem como ainda é incipiente a existência de no-vos instrumentos de intervenção urbana. De fato, essesinstrumentos dependem, para sua aplicação, de uma pre-paração das prefeituras, notadamente com relação à or-ganização das informações e à capacitação técnica.

Segundo as respostas das prefeituras, a legislação mu-nicipal de proteção e controle ambiental existe apenas em46 municípios (8%), sendo a mais freqüente do conjuntode instrumentos da Tabela 2. Mais da metade dos muni-cípios paulistas (57,5%) não possuem legislação ambien-tal de nível municipal. No entanto, normas relativas a estetema existem, ainda que de forma genérica, em algumasleis de parcelamento, leis de uso e ocupação e em PlanosDiretores.

A legislação específica de proteção e controle ambientalaparece em 14 municípios com população entre 100 e 500mil habitantes e em dez com população entre 50 e 100mil habitantes. Apenas um município com mais de 500mil possui lei municipal de proteção e controle ambien-tal. Nos pequenos municípios, apenas oito (2,2%) respon-deram positivamente.

Destaca-se a RA de Campinas, onde 21,7% dos muni-cípios possuem leis de proteção e controle ambiental e,em seguida, as RAs de São José dos Campos, Santos e aRMSP, onde este tipo de lei está presente, em média, em17% dos municípios. Nas RAs de Registro, PresidentePrudente e Central, nenhum município declarou possuiresse tipo de legislação.7

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996

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naqueles com mais de 500 mil habitantes (dois municí-pios). Nessa faixa, metade dos municípios declararam odado não disponível. Nas faixas entre 50 e 100 mil e en-tre 100 e 500 mil habitantes, a resposta é afirmativa emcerca de 16% dos municípios.

Já o imposto progressivo sobre vazios urbanos, émais freqüente nos municípios com população entre 50e 500 mil habitantes, em torno de 11%. Nas faixas in-feriores, não atinge 5% dos municípios e nenhum mu-nicípio com população acima de 500 mil afirmou pos-suí-lo. Este imposto está presente entre 10% e 13% dosmunicípios das RAs Santos, Araçatuba e Franca, sen-do que apenas na RA de Registro nenhum municípiorespondeu afirmativamente.

Apenas dez municípios (1,7%) do estado afirmarampossuir instrumento de intervenção urbana, sendo dois comaté 20 mil habitantes (0,5%), um na faixa entre 20 e 50mil (0,9%), três em cada uma das faixas seguintes (6% e7%, respectivamente) e um município com mais de 500mil habitantes (16,7%).

Instrumentos de intervenção urbana só constam emcinco regiões – RMSP e RAs de Santos, Campinas, SãoJosé do Rio Preto e Marília –, sendo que apenas nas duasprimeiras em mais de 10% dos municípios. A pesquisaconsiderou leis de intervenção urbana aquelas que trata-vam de operações urbanas, operações interligadas e ins-trumentos semelhantes.

A lei do solo criado estava presente em apenas quatromunicípios do estado (0,7%), distribuídos em quatro clas-ses de tamanho, com exceção da faixa de municípios compopulação acima de 500 mil. Esses municípios encontram-se na RMSP e nas RAs de Santos, Sorocaba e RibeirãoPreto. Mais de 60% dos municípios afirmaram não pos-suir esta lei e entre 26% e 34% declararam dado não dis-ponível. Entretanto, algumas prefeituras adotam práticasque já utilizam o princípio do solo criado, ainda que nãoregulamentadas e muitas vezes de difícil regulamentação.

O segundo grupo de informações analisado diz respei-to aos cadastros técnicos municipais. Na grande maioriadas prefeituras, não existe a organização das informaçõesem “cadastros” temáticos, gerando dificuldades na obten-ção de séries históricas.

A Tabela 3 mostra o número de municípios paulistas,por classe de tamanho, que possuem os seguintes Cadas-tros Técnicos Físico-Territoriais: Aerolevantamento, Lo-gradouros, Próprios Municipais, Estradas Municipais eCadastro Imobiliário.

Do total de municípios do estado, somente 49 (8,6%)declararam possuir todos os cinco cadastros físico-terri-toriais, sendo a proporção dos mesmos crescente segun-do as classes de tamanho. Dos 31 municípios que afir-mam não possuir nenhum cadastro, 27 têm população

TABELA 2

Distribuição dos Municípios, por Classe de Tamanho,segundo a Existência de Legislação Municipal

Estado de São Paulo – 1992

Classes de Tamanho(número de habitantes)

LegislaçãoMunicipal Menos 20 a 50 50 a 100 100 a 500 Mais de Total

de 20 Mil Mil Mil Mil 500 Mil

Nº de MunicípiosTotal (Nº Abs.) 367 106 50 43 6 572NR (1) (Em %) 2,2 1,9 0,0 0,0 0,0 1,7

LegislaçãoMunicipal (Em %)Direito Real Uso

Sim 1,9 5,7 16,0 16,3 33,3 5,2Não 61,6 55,7 62,0 48,8 16,7 59,1ND(2) 34,3 36,8 22,0 34,9 50,0 33,9

Imposto Progressivosobre Vazios

Sim 4,1 4,7 10,0 11,6 0,0 5,2Não 59,9 59,4 66,0 51,2 50,0 59,6ND(2) 33,8 34,0 24,0 37,2 50,0 33,4

Proteção eControle Ambiental

Sim 2,2 12,3 20,0 32,6 16,7 8,0Não 61,6 54,7 54,0 34,9 50,0 57,5ND(2) 34,1 31,1 26,0 32,6 33,3 32,7

Intervenção UrbanaSim 0,5 0,9 6,0 7,0 16,7 1,7Não 63,2 63,2 72,0 58,1 66,7 63,6ND(2) 34,1 34,0 22,0 34,9 16,7 32,9

Solo CriadoSim 0,3 0,9 2,0 2,3 0,0 0,7Não 63,5 63,2 72,0 65,1 66,7 64,3ND(2) 34,1 34,0 26,0 32,6 33,3 33,2

Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada 1993 – PMU/93 (ano base 1992).(1) Municípios que não responderam à PMU.(2) Dado não disponível.

A concessão de direito real de uso e o imposto pro-gressivo sobre vazios urbanos estão presentes em ape-nas 5,2% dos municípios do Estado de São Paulo. Adistribuição regional mostra que, com relação à con-cessão de direito real de uso, a RMSP e as RAs de San-tos e Campinas destacam-se com 15,8%, 12,5% e 10%dos municípios possuindo essa lei. Nas RAs de Regis-tro, Central, Barretos e Franca nenhum município de-clarou possuir esse instrumento.

A existência de concessão de direito real de uso au-menta à medida que cresce a classe de tamanho dos mu-nicípios: está presente em apenas 1,9% daqueles compopulação inferior a 20 mil habitantes e chega a 33,3%

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O MUNICÍPIO E A GESTÃO URBANA: NOVAS EXIGÊNCIAS

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TABELA 3

Distribuição dos Municípios, por Classe de Tamanho, segundo a Existência de Cadastros Técnicos Físico-Territoriais

Estado de São Paulo – 1992

Classes de TamanhoCadastros (número de habitantes)TécnicosFísico- Menos 20 a 50 50 a 100 100 a 500 Mais de TotalTerritoriais de 20 Mil Mil Mil Mil 500 Mil

Nº de MunicípiosTotal (Nº Abs.) 367 106 50 43 6 572NR (1) (Em %) 2,2 1,9 0,0 0,0 0,0 1,7

CadastrosTécnicos (Em %)Aerolevantamento

Sim 6,3 25,5 54,0 72,1 83,3 19,8Não 57,8 38,7 22,0 4,7 0,0 46,5ND(2) 33,8 34,0 24,0 23,3 16,7 32,0

LogradourosSim 43,9 39,6 50,0 67,4 66,7 45,6Não 33,8 16,0 24,0 4,7 0,0 27,1ND(2) 20,2 42,5 26,0 27,9 33,3 25,5

Próprios MunicipaisSim 29,4 38,7 50,0 55,8 33,3 35,0Não 36,2 19,8 24,0 11,6 33,3 30,2ND(2) 32,2 39,6 26,0 32,6 33,3 33,0

Estradas MunicipaisSim 34,6 41,5 48,0 44,2 33,3 37,8Não 30,2 19,8 28,0 23,3 16,7 27,4ND(2) 33,0 36,8 24,0 32,6 50,0 33,0

ImobiliárioSim 56,4 54,7 66,0 67,4 66,7 57,9Não 11,7 6,6 2,0 2,3 0,0 9,1ND(2) 29,7 36,8 32,0 30,2 33,3 31,3

Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada 1993 – PMU/93 (ano base 1992).(1) Municípios que não responderam à PMU.(2) Dado não disponível.

inferior a 20 mil habitantes. Para mais de um quarto dosmunicípios, o dado foi declarado não disponível para to-dos os cadastros, o que pode ser um indício do baixo graude atualização, acesso e utilização dos mesmos.

O cadastro imobiliário, que na maioria das vezes émontado apenas para fins tributários, está presente emquase 60% dos municípios paulistas, em todas as classesde tamanho. Nos municípios com menos de 20 mil habi-tantes, 43 (11,7%) não possuem cadastro imobiliário. Naclasse de tamanho imediatamente acima, apenas sete de-clararam a ausência deste cadastro. Dos municípios com po-pulação entre 50 e 500 mil habitantes, somente Várzea Pau-lista (da classe de 50 a 100 mil) e Mogi-Guaçu (da classe de100 a 500 mil ) não têm cadastro imobiliário. Em todas asfaixas, mais de 30% responderam dado não disponível.

Para os demais cadastros apresentados na Tabela 3, afreqüência é significativamente menor. Apenas 19,8% dosmunicípios afirmaram possuir aerolevantamento, sendoque os cadastros de logradouros, estradas municipais epróprios municipais existem em 45%, 38% e 36% dosmunicípios, respectivamente.

A situação quanto à sistematização dos dados físi-co-territoriais é mais precária nos municípios menores,o que deve estar relacionado ao menor volume e com-plexidade das informações neles produzidas. Obter in-formações nesses municípios depende, em maior graudo que nos municípios maiores, de funcionários anti-gos que detêm a memória de várias administrações.Mesmo assim, não deixa de ser uma situação preocu-pante, tendo em vista que muitos municípios pequenostêm crescido a uma taxa bastante elevada, correndo orisco de, além de não registrarem a memória das trans-formações físico-territoriais, encontrarem maiores di-ficuldades para se organizar quando aumentar o volu-me de informações e quando os problemas tornarem-semais complexos.

É bom lembrar que, mesmo nos municípios maiores, ofato de terem cadastros técnicos não significa, em geral,que os mesmos sejam atualizados e amplamente utiliza-dos para fins de planejamento.

A Tabela 4 mostra o número de municípios por classede tamanho que possuem os seguintes cadastros de servi-ços urbanos: águas pluviais, abastecimento de água, redede esgoto, energia elétrica, sistema viário e iluminaçãopública.

Do total de municípios do Estado de São Paulo, queresponderam a este questionário da PMU/93, 26%possuem cadastro de abastecimento de água, sendo essaa maior freqüência entre os cadastros de serviços urba-nos. Segue o cadastro de rede de esgoto, com 23%, o desistema viário, com 22%, ficando os demais cadastros compercentuais variando entre 11% e 13%.

A distribuição por classe de tamanho dos municípiosmostra que, para aqueles com até 50 mil habitantes, aexistência de cadastros de serviços urbanos é mais rara,sendo que os percentuais maiores são registrados para oscadastros de abastecimento de água e coleta de esgoto,com cerca de 25% dos municípios possuindo tais cadas-tros. Destaca-se, para os municípios com população su-perior a 500 mil habitantes, que o cadastro de abasteci-mento de água atinge 100% dos municípios.

Vale lembrar que para os municípios menores, anecessidade de cadastros nem sempre é colocada pelarotina da administração. De acordo com os resultados dapesquisa, a existência ou não de cadastros técnicos físico-territoriais está menos relacionada ao porte do municípiodo que à existência dos cadastros de serviços.

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TABELA 4

Distribuição dos Municípios, por Classe de Tamanho,segundo a Existência de Cadastros de Serviços Urbanos

Estado de São Paulo – 1992

Classes de TamanhoCadastros de (número de habitantes)ServiçosUrbanos Menos 20 a 50 50 a 100 100 a 500 Mais de Total

de 20 Mil Mil Mil Mil 500 Mil

Nº de MunicípiosTotal (Nº Abs.) 367 106 50 43 6 572NR (1) (Em %) 2,2 1,9 0,0 0,0 0,0 1,7

Cadastros de ServiçosUrbanos (Em %)Águas Pluviais

Sim 8,0 10,4 22,0 23,3 33,3 13,0Não 57,0 50,9 52,0 41,9 33,3 52,0ND(2) 33,0 36,8 26,0 34,9 33,3 33,0

Abastecimentode Água

Sim 22,0 25,5 34,0 41,9 100,0 28,0Não 44,0 32,1 40,0 23,3 0,0 37,0ND(2) 32,0 40,6 26,0 34,9 0,0 33,0

Rede de EsgotoSim 18,0 26,4 34,0 39,5 83,3 26,0Não 47,0 33,0 40,0 25,6 16,7 40,0ND(2) 33,0 38,7 26,0 34,9 0,0 33,0

Energia ElétricaSim 8,0 17,0 30,0 23,3 33,3 16,0Não 57,0 42,5 46,0 37,2 50,0 49,0ND(2) 33,0 38,7 24,0 39,5 16,7 34,0

Sistema ViárioSim 17,0 23,6 40,0 39,5 66,7 25,0Não 47,0 34,9 36,0 23,3 33,3 39,0ND(2) 34,0 39,6 24,0 37,2 0,0 34,0

Iluminação PúblicaSim 7,0 16,0 34,0 28,0 50,0 17,0Não 57,0 43,4 42,0 34,9 33,3 49,0ND(2) 33,0 39,0 24,0 37,0 17,0 33,0

Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada 1993 – PMU/93 (ano base 1992).(1) Municípios que não responderam à PMU.(2) Dado não disponível.

O cadastro imobiliário existe em pelo menos 47% dosmunicípios de todas as regiões do estado, enquanto parao aerolevantamento existe uma grande variação: de 5,6%a 36,1% para o conjunto das regiões, exceto a RegiãoMetropolitana de São Paulo, com 57,9% dos municípiospossuindo aerolevantamento, e a RA de Santos, onde 75%dos municípios o possuem.

Quanto aos cadastros de serviços urbanos, vale ressal-tar as RGs de Itapeva (RA de Sorocaba) e Catanduva (RAde São José do Rio Preto), que não possuem nenhum doscadastros pesquisados.

Essa primeira abordagem da situação dos municípiospaulistas relativa à existência de legislação municipale de cadastros técnicos municipais, físico-territoriais ede serviços indica que, embora os mais altos percentuaisde respostas afirmativas correspondam aos municípiosmaiores e mais urbanizados, muitos dados destesmesmos municípios não puderam ser disponibilizados.Somente para um pequeno número dentre eles registra-se a existência das leis mais tradicionais. A introduçãode novos instrumentos urbanísticos é ainda incipiente.

A prática de sistematizar informações através de ca-dastros, apesar de ser mais freqüente do que a legislação,não existe em parcela significativa dos municípios doestado. Por outro lado, a utilização desses cadastros parao planejamento e sua atualização periódica nem sempreestão presentes na rotina das administrações municipais.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A análise, ainda que embrionária e exploratória, des-ses dados obtidos na PMU/93 mostra um amplo lequede possibilidades que a pesquisa hoje oferece com re-lação à análise dos municípios e das regiões do Estadode São Paulo e que ainda pode vir a oferecer quandoda sua rotinização, possibilitando a elaboração de sé-ries históricas sobre os diferentes temas pesquisados.A amplitude dos temas e das questões investigadospermite vários desdobramentos, análises setoriais,bem como recortes analíticos temporais sobre a açãomunicipal.8

Vale ressaltar que a vasta gama de informações pro-duzidas nas prefeituras, em geral, está dispersa em dife-rentes setores. São dados que não se articulam e poucosestão mapeados. Também as informações produzidas eorganizadas em outras esferas são pouco exploradas, ouutilizadas apenas de maneira pontual e parcial pelas ad-ministrações municipais.

Essas informações, se forem organizadas e sistemati-zadas, podem tornar-se extremamente úteis e fundamen-tais para o planejamento das ações públicas. Nesse pro-cesso, a introdução da informática e a possibilidade de

Os cadastros de serviços são de grande importânciapara a manutenção e a programação da expansão dasredes, evitando superposição de esforços e gastos des-necessários.

A Região Metropolitana de São Paulo destaca-se na distri-buição dos municípios que possuem cadastros. Os percen-tuais de respostas positivas na RMSP são, em geral, superi-ores a 50% para os cadastros físico-territoriais e maiores que26% para os cadastros de serviços urbanos. A performancedos municípios da Região Metropolitana de São Paulo é sem-pre superior à média estadual.

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5. Exigência constitucional - artigo 29 da Constituição Federal e artigo 144 daConstituição do Estado de São Paulo.

6. A Região Metropolitana de Santos foi instituída recentemente e o projeto delei transformando a RG de Campinas em região metropolitana está em tramita-ção.

7. Vale lembrar que muitos municípios paulistas possuem unidades de proteçãoambiental (APAs, Reservas, Parques, etc.) regidos por legislação federal e esta-dual.

8. A Pesquisa Municipal Unificada/96 referente ao ano base de 1995, atualmen-te em campo teve seus instrumentos de coleta reestruturados e aperfeiçoados combase na avaliação da PMU/93 e em necessidades novas colocadas pela dinâmicada realidade do planejamento municipal, a exemplo das questões sobre informá-tica que foram acrescidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VILLAÇA, F. “A crise do planejamento urbano”. São Paulo em Perspectiva.São Paulo, Fundação Seade, v.9, n.2, abr./jun.1995, p.45-51.

utilização de sistemas georeferenciados na análise dasinformações para o planejamento podem ser ferramentasvaliosas, permitindo melhorar a capacidade de gestão eplanejamento das administrações municipais, não sendo,no entanto, uma solução em si mesmo (Santos e Pires,1996).

Enfrentar o desafio de assumir o planejamento urbanoenquanto um processo que permita acompanhar a dinâ-mica de transformação da cidade exige, hoje, ainda maisdo que no passado, o apoio de um sistema de informa-ções que auxilie no acompanhamento da evolução da rea-lidade urbana e registre as ações/decisões do poder pú-blico, no sentido de informar e subsidiar o planejamentode novas ações e o gerenciamento da cidade. Entretanto,a despeito da crescente demanda por informações noâmbito municipal, principalmente pelas próprias prefei-turas, são poucos os administradores municipais que in-vestem nessa área.

Neste sentido, verifica-se que a PMU tem desempe-nhado também o papel de fomentar nas prefeituras o in-teresse pela organização, sistematização e constante atua-lização dos dados produzidos.

NOTAS

1. Ver a esse respeito Lima (1993) e Smolka (1994).

2. Ver a respeito Santos e Pires (1996). Neste encontro, várias foram as comuni-cações que exemplificam situações de carência de organização das informaçõesem diferentes prefeituras brasileiras, bem como exposições que mostraram ex-periências municipais exitosas e inovadoras nesta área.

3. Vale ressaltar que dos 572 municípios pesquisados em 1993, apenas dez nãoresponderam os questionários da pesquisa, sendo oito deles com população infe-rior a 20 mil habitantes e dois com população entre 20 a 50 mil habitantes.

4. Vale destacar que os dados não disponíveis, que para algumas questões alcan-çam percentuais elevados, dizem respeito a informações reprovadas no processode crítica e consistência da pesquisa e que dependem de avaliação mais apurada.Esta situação contribui para mostrar as dificuldades de muitas prefeituras emdispor de dados e informações atualizadas.

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ORÇAMENTOS MUNICIPAIS PAULISTAS

capítulo tributário da Constituição de 1988 deunovo reforço às finanças municipais e esta-duais, consolidando o longo processo de des-

centralização tributária iniciado na segunda metade dosanos 70. O atual texto constitucional repassou aos mu-nicípios a competência sobre dois novos impostos eampliou as participações municipais nas receitas esta-duais do ICMS e do IPI-exportações e nas receitas fe-derais através do FPM. Os impostos únicos, o impostosobre os serviços de telecomunicações e aquele sobreos serviços de transportes interestaduais foram retira-dos da esfera federal e incorporados à base tributadapelo ICM, sendo ampliada a participação estadual nasreceitas da União através do FPE.

Estas mudanças diminuíram a receita tributária efe-tivamente disponível para a União e aumentaram os re-cursos colocados à disposição dos estados e municí-pios. Em 1990, a receita tributária federal, apósconcretizadas as transferências intergovernamentais,passou a representar 54% do total da receita tributárianacional, contra 57% no biênio 1988-89. No mesmoperíodo, a receita municipal aumentou de 14% para 16%e a estadual passou de 29% para 30%. Contudo, a re-ceita real efetivamente disponível para a União nãodiminuiu, ao contrário, experimentou inclusive umpequeno aumento devido à expansão da carga tributá-ria geral que saltou de 21,9% do PIB para 27,4%, man-tendo-se neste patamar até o presente.1

Com os reforços das receitas estaduais e municipais,o sistema tributário nacional transformou-se num dosmais descentralizados do mundo, conforme têm desta-cado diversos autores, dentre eles Dain (1994) e Afonsoe Raimundo (1995). Esta descentralização, porém, co-

meçou a ser contestada antes mesmo de entrar plena-mente em vigência. Por um lado, o governo federalbuscou imediatamente desincumbir-se de dispêndios atéentão sob sua responsabilidade, usando para issoinstrumentos administrativos (operação desmonte). Poroutro lado, diante da falta de respaldo das forçaspolíticas locais e regionais, as propostas federais parareversão ou atenuação da descentralização passaram aser veiculadas camufladamente dentro de proposiçõesmais abrangentes. Exemplos marcantes desta camu-flagem são os projetos de simplificação da estruturatributária.

Apesar de a história recente de nosso sistema tribu-tário registrar sucessivas alternâncias entre desenhoscentralizados e descentralizados, esta última reaçãofederal contrária à descentralização foi inédita tantopela rapidez com que se apresentou quanto pela fragi-lidade das forças políticas que a apoiaram (e em parteainda a apóiam). Mesmo antes da vigência dos novosdispositivos constitucionais, forças do governo central,que haviam se mantido no mais absoluto silêncio du-rante todo o processo constituinte, passaram a clamarcontra o que consideraram “excessos descentralizan-tes”, “o mesmo erro da centralização com sinal troca-do”, “ingovernabilidade provocada pela descentraliza-ção exagerada”, etc.

Diversas são as razões que explicam a fragilidadedas forças políticas e sociais defensoras da re-centrali-zação da receita tributária, mas pode-se destacar a au-sência de um projeto amplo capaz de aglutinar interes-ses diversos, como ocorreu nas centralizações dos anos30 e 60. De fato, enquanto estas centralizações resul-taram de rupturas políticas, nas quais a concentração

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GUSTAVO ZIMMERMANN

Economista, Professor do Instituto de Economia da Unicamp, Consultor da Fundação Seade

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de recursos na esfera federal respondia a objetivosamplos que catalisaram politicamente expressivos seg-mentos sociais, as atuais propostas não apontam paranenhum projeto de longo alcance.

EVOLUÇÃO E PERFIL ATUAL DA RECEITA

As principais características da receita pública mu-nicipal em nossos dias são a pequena dimensão dos re-cursos próprios e o grande peso que os recursos trans-feridos têm na maioria dos orçamentos municipais.Estas características foram implementadas em 1966 como objetivo de transformar o sistema tributário num ins-trumento para o planejamento e orientação do proces-so de industrialização.2 Para o sucesso deste objetivoseria fundamental criar mecanismos que compelissemas esferas inferiores do governo a seguirem as deter-minações centrais. Exatamente para isso, a autonomiafinanceira dos governos estaduais e municipais foi re-duzida e, para compensá-los pela perda de receitas,foram incrementados os recursos a eles transferidos e,coerentemente com o projeto e implantação do plane-jamento centralizado, estas transferências passaram ater destinações determinadas pelo governo federal, atra-vés de vinculações compulsórias.3

Ademais, de seu caráter compensatório e das vincu-lações a que foram submetidas, as transferências fede-rais para estados e municípios referentes aos Fundosde Participação dos Estados e Municípios (FPE e FPM)ganharam ainda funções mitigadoras das diferenças in-terestaduais e intermunicipais de renda, passando aprivilegiar os estados economicamente mais atrasadose, dentro dos estados, os municípios menores. Por seuturno, as receitas estaduais do Imposto sobre a Circu-lação de Mercadorias – ICM passaram a ser partilha-das com os municípios onde foram arrecadadas, bus-cando propiciar adequado e permanente financiamentoà infra-estrutura dos espaços nos quais se localizava aprodução industrial ou comercialização.

Consolidadas as alterações introduzidas no sistema tri-butário e ampliada a carga tributária geral, a distribuiçãodos recursos adicionais entre os municípios paulistas fi-cou assim disposta: à capital coube a maior parcela de in-cremento; aos municípios pequenos (justamente os queperdiam ou vinham mantendo relativamente constantesseus contingentes populacionais) couberam os maioresacréscimos de recursos;4 aos maiores centros urbanos dointerior (aqueles com mais de 100.000 moradores e querecebiam os maiores fluxos migratórios dentro do estado)foram reservados os menores incrementos de recursos.

Em suma, a distribuição final dos recursos aos mu-nicípios paulistas foi paradoxal. Por um lado, os maio-

res incrementos contemplaram os municípios menoresque, em geral, estavam perdendo ou vinham mantendorelativamente estáveis suas populações e para os quaiseram estáveis ou declinantes suas respectivas deman-das sociais urbanas. Por outro lado, aos grandes muni-cípios que, na sua maioria, experimentavam aumentospopulacionais explosivos e conseqüentemente sofriamaumentos em suas demandas sociais urbanas couberamos menores incrementos.5 Convém ainda salientar queeste é um período no qual a modernização industrial,que vinha ocorrendo desde o início dos anos 50, au-mentava a pressão sobre a infra-estrutura das cidadese alterava substancialmente a natureza da demandasocial urbana.6

Rapidamente este desencontro gerou protestos e, de-vido à posição destes centros urbanos no cenário polí-tico nacional, suas manifestações passaram a ecoar portoda sociedade. Num primeiro momento, exatamentenestas grandes cidades do interior paulista, as forçaspolíticas do regime militar passaram a sofrer derrotaseleitorais que se reproduziram nos grandes centros deoutros estados, comprometendo a legitimidade do re-gime.

Na primeira metade dos anos 70, a insatisfação nascapitais estaduais e nos grandes centros interioranos ga-nhou nova dimensão devido à falta de investimentosem saneamento básico, o que provocou a proliferaçãode surtos de doenças infecto-contagiosas, como a me-ningite, a paralisia infantil, etc., e pela falta de investi-mentos em alternativas para o transporte de massa as-sociados e pela deterioração da malha ferroviáriasuburbana, que ensejaram depredações de estações detrens e terminais de ônibus (principalmente em SãoPaulo e no Rio de Janeiro).

Estas reações inegavelmente contribuíram para ace-lerar o processo de abertura da fechada estrutura polí-tica do regime. Neste processo, a busca por maior res-paldo político promoveu a alteração dos critérios dasrepresentações estaduais no Legislativo federal em fa-vor das regiões economicamente mais atrasadas, nasquais as forças políticas do regime ainda contabiliza-vam vitórias eleitorais.

Dentre os desdobramentos provocados pela abertu-ra, interessa destacar a progressiva desvinculação dosrecursos transferidos e a descentralização da receitatributária através do aumento dos montantes repassa-dos pelo Fundo de Participação dos Estados e Municí-pios, privilegiando exatamente as regiões cujas repre-sentações haviam ganho peso no Congresso Nacional.

O esvaziamento das finanças federais continuou àmedida que o regime militar foi perdendo poder frenteao esgotamento da capacidade de ação do Estado Na-

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cional. Para tanto, contribuíram as pressões das mes-mas elites regionais sobre-representadas no CongressoNacional, às quais se juntaram as pressões de repre-sentantes das regiões economicamente mais adiantadas.

Esta junção de interesses parece ter sido subprodu-to do progressivo esgotamento da capacidade de açãodo Estado central, frente ao qual a descentralização dareceita, via aumentos das transferências do Fundo deParticipação dos Estados e do Fundo de Participaçãodos Municípios, constituía-se uma opção para garantirinvestimentos regionais. Independente desta conside-ração, o certo é que o reforço das finanças locais e re-gionais, por esta via, passou a catalisar os interessesde todos os representantes das regiões menos desen-volvidas, pois estas seriam as maiores beneficiadas peloincremento dos montantes federais transferidos atravésdo FPE.

Em outra vertente do mesmo movimento, os aumen-tos nas transferências do FPM beneficiavam privilegi-adamente os menores municípios, independentementedo estado no qual se situassem. Este fato explica porque os representantes ligados aos pequenos centros dasregiões mais desenvolvidas também aderiram a este ca-minho para promoverem a descentralização. Contra estaaliança, os representantes legislativos dos grandes cen-tros das regiões mais desenvolvidas pouco teriam afazer, senão apoiá-la.7 E, de fato, ganha força o “movi-mento” municipalista formado por parlamentares detodas as regiões, notadamente aqueles ligados a basesinterioranas de seus estados.

Nesta “demarche” do sistema de repartição da re-ceita pública, os municípios de menor porte foram osmais beneficiados, pois as transferências do FPM res-pondiam por cerca de 30% de suas receitas, enquantonos orçamentos das grandes cidades este peso reduzia-se para menos de 3%. Isto ajuda a entender por que,apesar de os municípios em geral beneficiarem-se comos novos recursos, persistia a demanda dos maiorescentros por mais reforços.8

Paralelamente a este processo de âmbito nacional,ocorria no território paulista um importante desloca-mento da produção industrial da capital para outroscentros urbanos, fazendo com que a participação dovalor adicionado pela produção e circulação de bensna capital caísse de 45,4% do total estadual, em 1970,para 34,2%, em 1982.

O governo estadual, visando recompor o orçamentopaulistano sem comprometer seus próprios recursos,submeteu à Assembléia Legislativa uma proposta de al-teração dos critérios de distribuição do ICM, privile-giando a capital em detrimento dos grandes municípios.Para viabilizar politicamente o projeto, além do muni-

cípio de São Paulo, foram contemplados também osmicros e pequenos centros, reproduzindo assim (inter-namente no estado) o mesmo movimento de aumentodas transferências para os pequenos municípios. Nocaso paulista, o favorecimento aos pequenos municí-pios teve a agravante de diminuir concomitantemente,em termos absolutos, os recursos destinados aos gran-des centros urbanos do interior.

Em abril de 1982, exclusivamente por conta destasalterações, o índice de participação da capital no ICMaumentou 9,4%, passando de 34,3% para 37,5% do to-tal estadual, sendo que a participação dos municípiosmenores saltou 85,7% (de 0,8% para 1,5% do total es-tadual), enquanto a dos maiores municípios sofria umabrusca redução de 42,5% para 38,5%.

Concluindo, entre 1980 e 1988, a distribuição dasreceitas municipais no Estado de São Paulo sofreu mu-danças produzidas concomitantemente pelas transferên-cias federais e pelas estaduais, ambas reforçando os or-çamentos dos menores municípios. Em 1988, as receitasefetivamente disponíveis, isto é, as receitas totais ex-clusive os empréstimos obtidos, dos micromunicípiospaulistas correspondiam a quase o dobro do valor de1980. As dos municípios médios cresceram em média36% e as dos grandes centros e da capital eram respec-tivamente 5% e 23% menores. Ou seja, a descentrali-zação, nos anos 80 anteriores à reforma constitucional,não alterou o perfil da distribuição intermunicipal dareceita, mas apenas acentuou os traços definidos, em1966, e o desencontro entre os recursos e a demandasocial urbana.

O processo constituinte de 1988 aumentou as recei-tas estaduais e municipais, incrementando tanto os re-cursos para eles transferidos quanto suas receitas pró-prias. Os principais impactos destas alterações nosmunicípios paulistas, vistos em termos per capita entrea média dos triênios anterior e posterior a reforma(1986-88 e 1989-91), foram os seguintes:- os ganhos na receita efetiva total (receita total menosos empréstimos realizados) no estado foram em médiade 31%. À capital coube um incremento de cerca de45%, o maior dentre os centros urbanos. Os percentuaisde ganho dos outros municípios foram menores, comacréscimos decrescentes e proporcionais à população.Os maiores centros urbanos tiveram incrementos daordem de 35% e as menores localidades foram de 16%;

- a ampliação da base tributada pelo ICM/ICMS e o au-mento de 20% para 25% da participação municipal nasua receita fizeram com que, pela primeira vez desdeos anos 60, os acréscimos nas transferências contem-plassem principalmente os grandes municípios. À ca-pital coube um acréscimo de 30% e aos centros com

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mais de 250.000 habitantes de 25% em média. Os cen-tros com população entre 10.000 e 50.000 tiveram ga-nhos de, em média, 18% e para aqueles com menos de10.000 moradores o aumento médio correspondeu a12%;

- os incrementos propiciados nas arrecadações própriaspela ampliação das competências tributárias municipais,de um modo geral, fortaleceram privilegiadamente aslocalidades menores. Contudo, dado que no geral erampequenas as participações destas receitas nos respecti-vos orçamentos e pequenos foram os acréscimos nasarrecadações próprias, igualmente pequenos foram osimpactos nas respectivas receitas disponíveis.

TRAÇOS RELEVANTES DOSGASTOS MUNICIPAIS

Estas modificações aparentemente esgotaram a des-centralização através de ampliações das participaçõesestaduais e municipais nas receitas federais e desper-taram críticas diversas e reações contrárias à descen-tralização. Dentre estas, destacam-se, não pela rapidezcom que foram formuladas, mas sim pelo caráter ofi-cial que assumiram, as realizadas pela comissão exe-cutiva nomeada em 1992, pelo presidente FernandoCollor, para apresentar uma proposta de reforma fiscala ser encaminhada ao Congresso Nacional.

O relatório final desta comissão enfatizou as incon-veniências da grande variedade de tributos então vi-gentes e propôs a eliminação de alguns deles, que de-veria ser acompanhada de uma nova repartição dareceita tributária em favor da União, ou da transferên-cia para os estados e municípios de vários encargos atéentão sob responsabilidade federal, ou de uma combi-nação das duas alternativas. Estas propostas foram, emgrande medida, justificadas pela rigidez orçamentáriaque os elevados gastos com o funcionalismo públicoprovocava. Esta rigidez foi identificada como um dosmaiores entraves para a realocação dos recursos e re-direcionamento dos gastos governamentais e para umamaior eficácia da ação estatal sobre as carências so-ciais (Mattos Filho, s.d.). Segundo a comissão, estecomprometimento e seus prejuízos à ação governamen-tal seriam particularmente danosos na esfera munici-pal, cujos gastos com pessoal haviam passado de 0,99%do PIB em 1980 para 1,25% em 1987 e para 1,84% em1990.9

De fato, para os municípios paulistas os gastos compessoal aumentaram significativamente, em termos re-ais, entre 1980 e 1994. O total dos gastos com pessoale com os bens e serviços de consumo corrente aumen-tou em média 47% entre 1980 e 1988 e duplicou deste

último ano até 1994, passando a comprometer cerca de80% das receitas disponíveis para os municípios pau-listas, exclusive a capital, para a qual este comprome-timento ficou perto de 65%.10 No entanto, apesar destecomprometimento, as despesas diversificaram-se sig-nificativamente, apresentando expressivo dinamismo,como se constata nos dados dos balanços no período.

Durante todo o período analisado, o conjunto dosbens e serviços públicos e a infra-estrutura colocada àdisposição dos munícipes aumentaram ininterruptamen-te. Os níveis dos investimentos mantiveram-se, nos 15anos estudados, em patamares elevados e semelhantesaos do início da década. Por duas vezes somente elesse retraíram: a primeira durante a crise 1982-85 e asegunda em 1989, frente ao alarmante descontrole in-flacionário do último ano do governo Sarney.

Ainda através dos dados agregados, observa-se ni-tidamente que, apesar do progressivo comprometimentoorçamentário com despesa de pessoal, a partir de 1985,diminuíram em termos percentuais os recursos desti-nados a cobrir o funcionamento da “máquina pública”,ou seja, as atividades administrativas e de planejamentodas prefeituras em geral absorveram, em 1993-94, par-celas menores das receitas disponíveis do que as ab-sorvidas em meados da década de 80 ou no ano da re-forma constitucional.

Também de um modo geral, os municípios aumen-taram seus dispêndios com atividades sociais (educa-ção/cultura e saúde/saneamento) e com atividades li-gadas a segurança pública, comunicações, agricultura,indústria, comércio e serviços e relações de trabalho.Em contrapartida, acompanhando a queda nas taxas decrescimento demográfico, ocorreram discretas reduçõesnos recursos orçamentários dedicados ao urbanismo eao sistema de transportes.

Dados um pouco mais detalhados, extraídos de umaamostra selecionada de municípios,11 permitem conclu-sões ligeiramente diferentes, porém, perfeitamente com-patíveis com estas obtidas a partir das despesas agre-gadas para o total dos municípios agrupados segundoseus portes populacionais.

O investimento per capita (apesar de apresentar va-riações) manteve-se em patamares próximos aos de1980-82 em cerca de metade dos balanços. Para 20%dos balanços, os investimentos declinaram ligeiramentee para os restantes 30% diminuíram acentuadamente,nos últimos anos.

Na mesma amostra, para o conjunto dos municípiosque, na década passada, perderam população ou cujaspopulações mantiveram-se relativamente estáveis, no-tou-se uma discreta preponderância de níveis mais bai-xos de investimentos do que os prevalecentes nos muni-

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Dos municípios selecionados para esta análise maisdetalhada, 40% despenderam mais de 5% de seus or-çamentos com atividades atípicas ou não tradicionaisda esfera municipal, pouco mais de 15% gastaram algosuperior a 10%, nestas mesmas atividades, enquantoapenas dois, dos 60 municípios selecionados, despen-deram seus recursos exclusivamente em programas ti-picamente municipais.

As atividades educacionais e de saúde atípicas fo-ram as que mais absorveram recursos orçamentários.Na saúde, provavelmente foram destinados recursospara alimentação e nutrição infantil, ou ainda para adistribuição de remédios e outros produtos farmacêu-ticos. Nos programas educacionais atípicos, provavel-mente foram implementados o ensino médio, estimu-laram a formação superior, forneceram ensino supletivoou educação para excepcionais, ou cursos profissiona-lizantes, ou ainda foram concedidas bolsas de estudoou ajuda para a locomoção de estudantes.

Cerca de 10% dos municípios selecionados aplica-ram mais de 5% de seus recursos em programas atípi-cos de transportes, ou seja, em transportes não urba-nos. Possivelmente em terminais de ônibus interurbanosou campos de pouso para aviação de pequeno alcance.Pouco mais de 1/3 das localidades da amostra fomen-taram as atividades industriais, comerciais e de servi-ços. Em 10% destas localidades, os gastos desta natu-reza absorveram mais de 3% de seus orçamentos.

Dos municípios estudados, cerca de 30% destinarammais do que o mínimo legal aos programas educacio-nais que constitucionalmente cabem à esfera munici-pal, em 5% estes gastos superaram 30% do total orça-mentário. Igual número de municípios (grandes, médiose pequenos) dedicaram mais de 1% de seus orçamen-tos para atividades estritamente culturais.

Finalmente, vale destacar que 23, dos 60 municípiosselecionados, dedicaram, em 1992, mais de 20% de seusrecursos em suas malhas viárias, isto é, em infra-estru-tura física. Destes municípios, 19 vinham registrandocrescimento populacional acima da média estadual eem nove deles a taxa de crescimento superou o dobroda estadual. Os maiores gastos com saneamento bási-co também foram majoritariamente realizados por mu-nicípios com elevado crescimento populacional, e dis-cretamente menores nas localidades populacionalmentemais estáveis.

Em suma, com diferenças devido ao tamanho e àdinâmica populacional, foi possível para uma parcelasignificativa de municípios paulistas, entre 1980 e 1994,manterem relativamente estáveis os patamares de seusinvestimentos, diminuírem (frente ao aumento de suasreceitas) o peso de suas atividades legislativas, judiciárias

cípios com elevado crescimento populacional.12 Nos mu-nicípios mais estáveis do ponto de vista populacional, àmenor propensão a investir correspondeu maiores gastosna área social (saúde, proteção ao meio ambiente, educa-ção e cultura, abastecimento agrícola, etc.).

Entre os municípios selecionados, a diminuição dasparcelas orçamentárias destinadas a cobrir despesas coma administração e planejamento das atividades públi-cas predominou nos maiores centros (aqueles com po-pulação superior a 250.000 habitantes, inclusive a ca-pital), justamente os que mais têm comprometidos seusgastos com pessoal. Nos menores centros, o peso da“máquina administrativa” manteve-se aproximadamen-te nos mesmos patamares anteriores ou aumentou.

Em 1993-94, para pouco mais de 80% dos centrosda amostra, os totais per capita destinados às funçõesde educação, cultura, saúde e saneamento eram maisde 30% superiores aos destinados em 1980-81.

Esta reordenação dos gastos em favor das ativida-des predominantemente sociais, além de generalizadafoi acompanhada de discreta contração de gastos eminfra-estrutura urbana. Com certa coerência, esta con-tração dos gastos com a infra-estrutura urbana foi dis-cretamente mais elevada nos municípios cujas popula-ções apresentaram menores taxas de crescimento eforam discretamente menores nos municípios que ga-nharam população. O município de Santos, por exem-plo, que cresceu apenas 2,7% na década de 80, apre-sentou gastos orçamentários com infra-estrutura urbanapermanentemente decrescentes entre 1980 e 1994.

Estes mesmos indicadores podem ser um pouco maisrefinados para 1992 (único ano para o qual há dadosmais desagregados por função).13 A análise destes da-dos mostra que os municípios paulistas cumprem umasérie de funções que não são constitucionalmente desua responsabilidade.14 Em uma determinada função,estas atividades, atípicas ou não tradicionais aqui con-sideradas, tiveram seus montantes estimados subtrain-do-se, do total das despesas contabilizadas, aquelasdespendidas com atividades constitucionalmente defi-nidas como de responsabilidade dos governos munici-pais. Por exemplo, do total referente à função educa-ção e cultura, foram subtraídas as despesas referentesaos programas de educação da criança de 0 a 6 anos eao ensino fundamental.

Com isso restaram como gastos de educação consi-derados atípicos ou não tradicionais, os gastos com oensino médio, o ensino superior, o ensino supletivo, oensino especial, os subprogramas referentes ao desportoamador e profissional, a bolsas de estudo, a residênciapara educandos, ao transporte escolar e ao restauranteuniversitário.

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O que os dados mostram é uma diversidade de com-portamentos ditada pelas diferentes dinâmicas populacio-nais e pelos diversos portes urbanos. Assim sendo, aoscríticos da descentralização da receita pública, que cla-mam serem desordenados os gastos municipais, fica de-monstrado que, numa sociedade extremamente heterogê-nea e desigual como a brasileira, a centralização do poderpolítico e da receita pública é que teria dificuldades paraimplementar uma racionalidade tão diversa.

Com a centralização é que se perdem a agudeza, asensibilidade local e a capacidade de apreensão das me-lhores formas de atendimento apropriado das demandasespecíficas. É exatamente isso que resulta da maioria dasanálises feitas sobre os planos nacionais que objetivaramequacionar problemas locais como habitação, saneamen-to, analfabetismo, mortalidade infantil e geral, etc.

NOTAS

1. Dados extraídos de Mattos Filho (s.d.:32).

2. Detalhes em Oliveira (1981).

3. Detalhes em Varsano (1982:568).

4. Comumente é ignorado o fato de as modificações introduzidas em 66 nas trans-ferências federais compensatórias praticamente não terem alterado a distribui-ção horizontal dos recursos, isto é, a distribuição entre municípios dentro de ummesmo estado. Apesar da retórica racionalizadora e redistributivista dos mento-res da reforma, parece ter prevalecido a necessidade de diminuir os atritos comos governos locais em favor de uma menor resistência ao projeto centralizador.

5. A título de ilustração, na década de 70, o impacto populacional provocado pelosaldo migratório no município de Campinas foi exatamente o dobro do experimen-tado pela metrópole paulista, enquanto o incremento de recursos atribuído ao mu-nicípio foi, proporcionalmente, cerca de metade do destinado à capital.

6. Entre inúmeros exemplos do que foi dito, destacam-se as pressões exercidassobre a malha viária urbana, pela produção automobilística, e sobre as redes deabastecimento de água e de esgotos, pelo fluxo migratório.

7. Para entender estas alianças deve-se lembrar que, via de regra, quanto menoro município, mais fortes são os laços que unem a representação legislativa e osexecutivos locais (“currais eleitorais”). Inversamente, quanto maior a localidademais tênues são estes laços e menor o poder de influência dos executivos dosgrandes municípios sobre a representação legislativa de sua base territorial. Porconseqüência, este caminho da descentralização era o que menos resistênciaencontrava e o que mais amplo espectro de forças aglutinava.

8. Mais detalhes em Zimmermann (1989).

9. FGV/Ibre/CEF (até 1987) e IBGE/Decma (de 1988 a 1990), citados por MattosFilho, s.d.

10. Os dados referentes à evolução dos gastos, entre 1980 e 1994, foram extraí-dos de uma versão do produto “Finanças Públicas dos Municípios Paulistas 1980-1994”, da Fundação Seade, que se encontra em etapa final de testes, devendotornar-se pública nos próximos meses.

11. Os dados de despesas citados nesta parte referem-se a uma amostra com osseguintes 60 municípios: Alto Alegre, Álvares Florence, Araras, Arujá, BadyBassitt, Buritizal, Campo Limpo Paulista, Capão Bonito, Capivari, Cubatão,Espírito Santo do Pinhal, Fernando Prestes, Flórida Paulista, Francisco Morato,General Salgado, Guaimbê, Guarulhos, Inúbia Paulista, Itaquaquecetuba, Itupeva,Jundiaí, Junqueirópolis, Juquiá, Lençóis Paulista, Limeira, Luís Antônio, Marí-lia, Monte Alegre do Sul, Nhandeara, Nova Luzitânia, Nuporanga, Palestina,Piracaia, Pirajuí, Pongaí, Presidente Prudente, Rinópolis, Sales, Santa Bárbarad’Oeste, Santana de Parnaíba, Santo Anastácio, Santo André, Santos, São Ber-nardo do Campo, São Caetano do Sul, São José dos Campos, São Paulo, SudMenucci, Sumaré, Tabatinga, Tarabaí, Tatuí, Taubaté, Tupã. Para compor estaamostra, os municípios paulistas foram divididos por faixas de tamanho popula-cional e, dentro delas, subdivididos pela evolução demográfica da década de 80.Finalmente, para cada faixa e tipo de comportamento foram selecionados, sem-pre que possível, dois municípios.

e administrativas e aumentarem os recursos destinadosàs atividades educacionais, culturais, de saúde esaneamento básico. Parte significativa de seus orça-mentos (5,7% do total dos orçamentos da amostra) foidespendida em atividades que extrapolam as compe-tências locais definidas na Constituição, tais comosegurança pública, relações trabalhistas, estímulos àsatividades industriais, comerciais ou de serviços emgeral.

Enfim, ficou patente certa flexibilidade na destina-ção dos recursos que variaram segundo os tamanhos edinâmicas populacionais dos diversos centros analisa-dos e certamente, em alguma medida, em função deatendimento aos desejos e reclamos específicos de cadacomunidade. Neste sentido, foram expressivas as cor-relações entre crescimento populacional e despesas coma infra-estrutura física e rede de abastecimento e sane-amento básico. É, portanto, razoável se supor que osinvestimentos seguiram, em grande parte dos municí-pios, o ritmo da demanda social urbana específica decada centro urbano.

Esta performance, no entanto, elevou o comprome-timento dos orçamentos com as dívidas fundadas, prin-cipalmente no final do período analisado. Em 1993-94,o total dos desembolsos com amortizações e encargosdos empréstimos tomados voltou para o mesmo pata-mar que se encontrava no início da década. Tais resul-tados, porém, escondem déficits orçamentários crescen-tes que em 1994 foram, em média, cerca de cinco vezessuperiores aos de 1980, tendo dobrado de volume en-tre 1988 e 1994.

Contudo, não há como dissociar este comportamen-to explosivo daquele inflacionário, das indexações (for-mais ou não) estabelecidas por pressões trabalhistas oudos principais fornecedores e da liberalidade com queforam tratados os limites de endividamento municipal,principalmente, a partir das vésperas da Constituinte ena luta do presidente Sarney para ampliar em um anoseu próprio mandato.

Em 1988, as operações de crédito ampliaram em 25%a receita efetiva dos municípios paulistas. O déficit glo-bal dos municípios paulistas, que representava 8% dareceita disponível em 1988, saltou para 24% em 1994,mantendo-se, na média, num patamar três vezes supe-rior ao prevalecente de 1980 a 1987.

Em suma, pelos mais diversos itens orçamentáriosdas administrações municipais paulistas, é possível sevislumbrar a fragilidade dos argumentos baseados emsuposta incongruência dos gastos realizados sem dire-trizes comuns, como se as demandas, ou vontades lo-cais e específicas, fossem insuficientes para o atendi-mento das necessidades locais.

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12. Na amostra, 17 municípios perderam população ou apresentaram saldo popula-cional positivo menor que 1,5% durante a década de 80. Em dez deles, não houveinvestimento em saneamento básico, em 1992, único ano para o qual há dados maisabertos por função. Em dois destes municípios, o total gasto não ultrapassa 1% deseus orçamentos. Por outro lado, nos orçamentos de oito dos 11 municípios commais de 100.000 habitantes e cujas populações cresceram substancialmente, maisde 10% dos orçamentos destinaram-se a gastos com saneamento.

13. As referências mais detalhadas das despesas em 1992 foram extraídas deresumos dos balanços anuais, levantados, a partir de 1994, pela Fundação Seadeatravés da Pesquisa Municipal Unificada – PMU. Nesta pesquisa, além de ummaior detalhamento das informações fiscais, também passaram a ser coletadasinformações gerais sobre as administrações direta e indireta. Estes últimos da-dos já estão disponíveis, numa versão simplificada e informatizada, no produto“Pesquisa Municipal Unificada – 1992”.

14. As atividades atípicas ou não tradicionais aqui consideradas são as obtidassubtraindo-se do total das despesas contabilizadas numa função, aquelas despe-sas despendidas com atividades constitucionalmente definidas como de respon-sabilidade dos governos municipais. Por exemplo, na do total referente à funçãoeducação e cultura, foram subtraídas as despesas com os programas de educaçãoda criança de 0 a 6 anos, ensino fundamental. Com isso, restaram como gastosde educação considerados como atípicos ou não tradicionais aqueles com os en-sinos médio, superior, supletivo e especial, os subprogramas referentes ao des-porto amador e profissional, a bolsas de estudo, residência para educandos, trans-porte escolar e restaurante universitário.

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REINVENTANDO O PODER LOCALlimites e possibilidades do federalismo

e da descentralização

esde a democratização e a promulgação da Cons-tituição de 1988, o Brasil passou a ser um dospaíses mais descentralizados na distribuição de

recursos tributários e de poder político (Souza, 1992 e1994). A Constituição também expressou um compromis-so com a institucionalização de valores democráticos, emque a descentralização política, financeira e administrati-va assumiu papel relevante. Essas questões emergiram noBrasil e na América Latina no momento em que as cha-madas democracias ocidentais começavam a questionara capacidade de seus sistemas políticos de encontraremsoluções para crescentes problemas políticos, econômi-cos e sociais, como discutido por Dunleavy (1980).

Apesar dos compromissos assumidos no Brasil a fa-vor de valores voltados para a democracia política e so-cial e onde a descentralização se inscreve, inúmeros cons-trangimentos têm dificultado o alcance dos objetivosconstitucionais e o equacionamento dos vários problemasque a Constituição procurou enfrentar. Além disso, pro-fundas mudanças estão transformando o papel do Estadocomo provedor de políticas econômicas e sociais, ao mes-mo tempo em que se enfatiza a importância dos mecanis-mos de mercado. Completando esse ciclo de transforma-ções, reformas econômicas, especialmente as voltadas parao controle da inflação, têm reduzido o apoio do governofederal na provisão de infra-estrutura e de serviços públi-cos locais e regionais. Na esfera federal, os resultados dadescentralização são bastante visíveis: o governo federaltem sido particularmente afetado por dificuldades finan-ceiras e tem encontrado impedimentos, embora não in-transponíveis, para a montagem e sustentação de coali-zões que lhe permitam governar. Na esfera subnacional,todavia, os resultados da descentralização são menos cla-

ros, especialmente o conhecimento sobre como a descen-tralização afetou cada município e cada estado em parti-cular, bem como o comportamento de suas lideranças emface do aumento de recursos financeiros e de poder políti-co. Como resultado desse quadro, gera-se um novo ciclode transformações, que reescrevem as tradicionais formasfederativas de distribuição de poder político e financeiro.Esse novo formato do Estado modifica a agenda tradicio-nal de integração social e regional e de coesão política,especialmente o papel de cada nível de governo no pactofederativo, gerando o desafio de redesenhar novas formasde organização e de gestão públicas. Tais mudanças apon-tam para a necessidade de reinventar o federalismo, ao mes-mo tempo em que trazem novas tensões no arranjo fede-rativo desenhado pela Constituição de 1988.

Este artigo objetiva investigar se a descentralização ea democratização introduzidas no Brasil na última déca-da mudaram a forma como os bens locais (políticos emateriais) e os serviços são distribuídos entre diferentesgrupos sociais e políticos. Indaga-se se a descentraliza-ção praticada dentro das regras democráticas mudou aagenda da despesa pública na esfera local.

O artigo apresenta, primeiramente, uma sucinta revi-são da literatura internacional, principalmente anglo-saxônica, sobre o federalismo e a descentralização. Emseguida, faz-se uma retrospectiva do desenvolvimento po-lítico e financeiro dos municípios brasileiros. As seçõesseguintes discutem os casos de Salvador e Camaçari, como objetivo de investigar os efeitos da descentralizaçãopolítica e tributária sobre o processo político local e so-bre a alocação de recursos orçamentários, tomando comobase os resultados dos balanços desses dois municípiosno período 1981-91.

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CELINA SOUZA

Professora do Departamento de Finanças e Políticas Públicas e doNúcleo de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal da Bahia

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FEDERALISMO E DESCENTRALIZAÇÃO:BREVE QUADRO TEÓRICO

Em países federais é de fundamental importância dis-cutir a questão do poder local, tomando como base ospostulados teóricos que conformam o federalismo e adescentralização. Sistemas políticos federais baseiam-seem teorias políticas e sociais do federalismo. A existên-cia de um sistema federal implica cooperação política efinanceira entre o governo federal e as demais esferas dafederação. Esta é a razão pela qual o grau de descentrali-zação entre unidades governamentais é de importânciacrucial para o entendimento de como um dado sistemafederal funciona na prática. Por isso, a ciência política ea administração passaram a dedicar atenção não apenasàs teorias do federalismo e à aplicação dos princípios fe-derativos nas constituições e na legislação, mas tambémà forma pela qual os diferentes sistemas federais são ope-racionalizados.

Apesar de o federalismo estar, em geral, acompanha-do da descentralização, isto é, de substancial autonomiaentre os membros da federação, a descentralização não éuma condição necessária nem suficiente para o federalis-mo, como discutido por Lijphart (1984).

O federalismo, no seu conceito amplo, refere-se aoslaços constitutivos de um povo e de suas instituições cons-truídos através de consentimento mútuo e voltados paraobjetivos específicos, sem, contudo, significar a perda deidentidades individuais (Harman, 1992:337). O conceitode federalismo tem sido exaustivamente discutido na li-teratura, bem como existe acirrada disputa sobre as suasprincipais características.1 Nesse terreno de disputas con-ceituais, optou-se por tomar como referência a visão deBurgess (1993a:8), em que o federalismo é tratado comoum conceito de valor, como a recomendação e a promo-ção de apoio à federação. Partindo-se dessa visão, pode-se concluir que a lógica das federações é o federalismo,que é a percepção ideológica do que deve acontecer apósa federalização. Mais do que uma distinção semântica, aimportância de se distinguir federação de federalismodeve-se a dois fatores: a emergência de formas federati-vas em países e em instituições que não são uma federa-ção, sendo a Bélgica e a Comunidade Européia os exem-plos mais citados; e a existência de grande variedade naprática dos princípios federais dentro de cada federação.Assim, para os propósitos deste artigo, a dimensão ado-tada é a do federalismo como ideologia política, tal comodesenvolvido por Burgess. Essa visão preenche uma im-portante lacuna na literatura sobre federalismo, mais usu-almente preocupada com as praticalidades dos arranjosterritoriais e governamentais, ou então excessivamenteformalista. Burgess definiu a ideologia política do fede-

ralismo como valores, atitudes, crenças e interesses quese articulam no sentido de fazer com que ações sejamapoiadas em propósitos e compromissos (Burgess, 1993b:104). A importância de se incorporar na discussão sobrefederalismo a abordagem da ideologia política deve-se aofato de que mudanças e práticas diversas dentro de cadafederação têm se constituído no aspecto mais difícil paraexplicar e compreender o funcionamento dos sistemaspolíticos federais para além de seus aspectos meramenteformais e legais.

A contribuição de Burgess ao debate sobre federalis-mo abre caminho para a investigação das motivações queembasam a existência de cada federação em particular.Cada federalismo – e também cada federação – incorporaum número variado de atributos econômicos, políticos esocioculturais, que se inter-relacionam para produzirempadrões complexos de interesses e identidades. Assim,cada federalismo é guiado por um leitmotif, que tambémpode se expressar de diferentes formas de acordo com aspeculiaridades de cada tempo histórico. O federalismonorte-americano foi, e continua sendo, dominado pelabusca de mecanismos de “pesos e contrapesos” (os“checks-and-balances”). No Canadá, Índia, Paquistão,Malásia, Nigéria e Suíça, a razão de ser do federalismotem sido a preservação de minorias lingüísticas, étnicas ereligiosas, conforme discutido por Gagnon (1993). NaAlemanha, o impulso federativo voltou-se primeiramen-te para a construção e depois para a consolidação de ins-tituições capazes de evitar as duas derrotas da democra-cia naquele país: a primeira em 1933 e a segunda peladitadura nazista (Sontheimer, 1988). O federalismo daAustrália tem sido creditado às vantagens comerciais ad-vindas de um mercado unificado (Else-Mitchell, 1983) e/ou à necessidade de contrabalançar, via os estados, as ten-dências centralistas do governo federal (Rydon, 1993).Para os argentinos, como sugerido por Shapira (1992), ofederalismo legitima a luta das províncias contra o ex-cessivo poder da capital. Argumenta-se, neste artigo, quea razão de ser do federalismo brasileiro sempre foi, e con-tinua sendo, uma forma de acomodação das demandas deelites com objetivos conflitantes, bem como um meio paraamortecer as enormes disparidades regionais.

No que se refere à descentralização, apesar de políti-cas descentralizadas estarem em voga na maioria dospaíses, o conceito de descentralização é vago e ambíguo.A popularidade da descentralização respalda-se em vá-rios fatores, como, por exemplo, nos ataques da direita eda esquerda contra o poder excessivo dos governos cen-trais e na capacidade que o conceito traz embutida de pro-meter mais do que pode cumprir. Enquanto alguns auto-res enfatizam a desconcentração administrativa, outrosvêem a descentralização como uma questão política que

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envolve uma efetiva transferência de autoridade para se-tores, parcelas da população ou espaços territoriais antesexcluídos do processo decisório.

Vários são os problemas que envolvem as formulaçõesteóricas sobre a descentralização. O primeiro encontra-se no fato de que a literatura passou a enfatizar o slogan“pense global e aja localmente”, ignorando a importân-cia de outras esferas, tais como, no caso dos países fede-rais, os estados-membros.2 O segundo problema é que adescentralização tem significado, especialmente na lite-ratura anglo-saxônica, um redirecionamento para o mer-cado e para os atores locais, reduzindo as instâncias depolitização.3

Em terceiro lugar, as formulações teóricas sobre a des-centralização levam em conta a realidade dos países in-dustrializados, tornando suas bases conceituais e meto-dológicas difíceis de serem aplicadas em outros países.Como exemplo dessa limitação, pode-se apontar o fatode que as formulações marxistas sobre a descentraliza-ção explicam a centralização e a descentralização comocorrespondentes aos movimentos mundiais do capitalis-mo. Tal explicação encontra-se hoje sem base empírica,dado que tendências divergentes não estão claramente li-gadas aos atuais regimes políticos. Este é o caso de paí-ses como a França e os EUA, que vêm mostrando umatendência à descentralização, enquanto a Grã-Bretanhaestá tomando o caminho de maior centralização. Para ateoria oposta ao marxismo – a da escolha pública (publicchoice) –, a descentralização é vista como fator impor-tante na limitação da voracidade dos burocratas comomaximizadores de despesas, estimulando a opção dosconsumidores em escolherem livremente suas priorida-des. Assim, se um município não atende às demandas deum consumidor, este se muda para outro onde suas prefe-rências serão melhor atendidas. Essas duas visões da des-centralização são difíceis de se aplicar em países em de-senvolvimento. A visão marxista por causa do papelproeminente que o Estado sempre teve nos países em de-senvolvimento e, também, porque, como lembrado porMouzelis (1986), a teoria marxista é de difícil aplicaçãono mundo em desenvolvimento, uma vez que não consi-dera o papel do clientelismo na configuração do sistemapolítico. Já a teoria da escolha pública também se mostrade difícil aplicação porque cidadãos (ou consumidores)pobres não parecem ter o direito de escolha de moradiabaseado em nada além do que a disponibilidade de em-prego. Os estudos sobre migrações no Terceiro Mundotêm mostrado, com exaustão, a importância central doemprego na decisão de migrar.

A descentralização tem sido o foco central da literatu-ra sobre desenvolvimento. Dentro dessa ótica, é vista comoum dos principais instrumentos do desenvolvimento e

como estratégia para a redução do papel do Estado. Vá-rios problemas teóricos não-resolvidos pela literatura so-bre desenvolvimento podem ser apontados, tais como:- para cada princípio a favor da descentralização, pode-se igualmente identificar outro que o contrarie;

- as vantagens e as limitações da descentralização são, emgeral, apresentadas em termos normativos sem relacioná-las com contextos políticos e econômicos mais amplos,gerando, portanto, uma despolitização do debate;

- a linguagem usada na literatura é a da “eficiência”, “efe-tividade” e “controle”, sugerindo, implicitamente, quepaíses centralizados carecem dessas três capacidades;

- a literatura trata a descentralização como uma políticaconcedida do centro para as esferas subnacionais, o quenão se aplica a países como o Brasil, onde a decisão deexpandir a descentralização foi tomada pelos parlamen-tares durante a Constituinte de 1986-88;

- a literatura tende a ignorar níveis intermediários de go-verno, focalizando apenas nas relações entre o centro eas esferas locais;

- não existem garantias de que os benefícios de políticasdescentralizadoras serão eqüitativamente distribuídos,como argumentam Prud’homme (1994), Slater (1989) eSmith (1985).

O sumário aqui apresentado sobre o tratamento con-ceitual e teórico da literatura sobre descentralização teveo objetivo de apoiar o argumento de que discutir a des-centralização em termos gerais parece não significar muitonos dias atuais. Torna-se fundamental refletir sobre a des-centralização a partir de experiências concretas. É por estarazão que o estudo dos municípios de Salvador e Cama-çari são aqui apresentados como ilustrativos dos limites edas possibilidades do federalismo e da descentralizaçãono Brasil pós-1988.

O objetivo dos estudos de caso é analisar o impacto dadescentralização em dois níveis: o político e o financei-ro. Assim, a descentralização não é tratada, na sua dimen-são administrativa ou econômica, nem como uma políti-ca decidida pelo centro – como em geral a trata a literaturainternacional –, nem como uma questão de prestação deserviços públicos. Este artigo limita a discussão das ques-tões teóricas da descentralização através da busca domelhor entendimento de dois aspectos: as mudanças po-líticas ocorridas nesses municípios como resultado dademocratização e da descentralização; e a alocação derecursos públicos na esfera local. Esses dois aspectos dadescentralização podem ajudar o entendimento sobre aestrutura do poder local e da cota de poder à disposiçãode cada esfera de governo. A necessidade dessa aborda-gem justifica-se pelo fato de que a descentralização não

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ocorre em um vazio político-institucional. Além disso, adescentralização promove novos conflitos entre diferen-tes grupos sociais e afeta a distribuição de poder políticoe de bens a diferentes grupos da sociedade local. Dessaforma, análises baseadas em evidências empíricas sobreo desenvolvimento político e tributário das esferas sub-nacionais na última década podem contribuir para o de-senvolvimento de questões mais precisas sobre as conse-qüências da descentralização e da democratização no pactofederativo brasileiro.

MUNICÍPIOS NO BRASIL

Uma breve retrospectiva sobre o desenvolvimento dasmunicipalidades torna-se necessária para um melhor en-tendimento de suas posições atuais e tendências. Muitosestudos trataram do papel histórico do governo e da polí-tica locais, mas poucos consideram sua posição nos anosrecentes. Esses estudos podem ser agrupados em três con-juntos. O primeiro grupo enfatiza a hegemonia da políti-ca local e dos grupos privados na estrutura de poder doBrasil. Alinham-se, nesse grupo, os trabalhos de NestorDuarte (1939), Gilberto Freyre (1964), Oliveira Viana(1949) e Maria Isaura Queiroz (1976). Uma variante des-se grupo é representada pelo estudo clássico de VictorNunes Leal (1975), que mostrou as contradições entre aadoção de formas modernas de representação política, taiscomo o sufrágio universal, num contexto de pobreza, cen-tralização de poder e de recursos nas esferas estadual efederal, e de um poder privado local, o dos coronéis, quejá estava em decadência. O segundo grupo assume que ogoverno central sempre desempenhou o papel principalna política brasileira. O maior expoente desse grupo é otrabalho, também clássico, de Raymundo Faoro (1958).As interpretações de ambos os grupos levavam o debatesobre a inserção do governo local vis-à-vis o central parao terreno da polarização.

Nos anos 80, uma posição intermediária foi assumidapor um terceiro grupo, representado pelos trabalhos deAmes (1987), Bursztyn (1985), Medeiros (1986) eSchwartzman (1988), que concluíram que a polarizaçãodesse debate era apenas aparente. Esses autores identifi-caram uma forte interdependência entre os níveis local ecentral geradora de uma mútua legitimidade. Argumen-ta-se, todavia, que essa interdependência, apropriadamenteidentificada pelos estudos que integram o terceiro grupo,deve ser agora relativizada. A relação entre a esfera fede-ral e as subnacionais mudou com a nova correlação deforças promovida pela democratização e pela descentra-lização. A política e a federação brasileiras, assim comoas relações intergovernamentais, apresentam hoje um ca-ráter difuso, gerador de uma fragmentação de poder, em

que os políticos locais, principalmente os das capitais, eos políticos estaduais têm espaço de manobra próprio esão parcialmente responsáveis pela capacidade de gover-nar do governo federal. Esta constatação, todavia, não seaplica a todos os municípios nem a todos os estados bra-sileiros, como se verá adiante.

Do ponto de vista tributário, a literatura sobre descen-tralização fiscal argumenta que, apesar do desenvolvimen-to de vários métodos para medir o grau de centralização/descentralização dos recursos públicos, ainda existemreservas quanto ao rigor dessas mensurações (Levin,1991). Apesar desse reconhecimento, não existem dúvi-das quanto ao fato de que os municípios brasileiros fo-ram, do ponto de vista estritamente tributário, os maioresbeneficiários da descentralização promovida pela aber-tura política do final dos anos 70 e, posteriormente, pelasmedidas descentralizadoras introduzidas pela Constitui-ção de 1988. Além do mais, os municípios possuem umamargem relativa de liberdade para determinar a alocaçãode seus recursos próprios e para financiar e administrarseus recursos, especialmente a partir de 1988.4 Os muni-cípios brasileiros são também relativamente capitalizadosquando comparados com outros, de países em desenvol-vimento. Em 1992, a estimativa era a de que nenhummunicípio brasileiro teria recebido menos de US$ 400 milpor ano apenas por conta do FPM (Bremaeker, 1994). NaAmérica Latina, no entanto, grande número de municí-pios tem um orçamento anual que varia entre US$ 5.000e US$ 20.000 (Lordello de Mello, 1991). No Brasil, so-mente a transferência de recursos federais representou,em 1993, US$ 5,5 bilhões (Bremaeker, 1994).

Apesar dessa força política e tributária, nem todos osmunicípios e estados brasileiros encontram-se em posi-ção mais favorável a partir da descentralização. Trabalhorealizado pelo Ipea/Ibam (1994) mostrou que cinco esta-dos brasileiros arrecadam menos de 0,5% de todo o ICMScoletado no país. Bremaeker (1994) mostrou que mais deduzentos municípios do Nordeste não têm condições dearrecadar recursos próprios. Tais situações mostram que,em função da inexistência de indústrias e/ou do tamanhoda população pobre, esses estados e municípios não po-dem prescindir de ajuda financeira externa. As profundasdesigualdades regionais do Brasil desnudam uma das prin-cipais limitações da descentralização, qual seja, a de re-duzir o papel do governo federal de transferir recursosdas regiões mais desenvolvidas para as menos desenvol-vidas. Mesmo em países como o Brasil, onde existemmecanismos de distribuição vertical da receita pública tipoFPE e FPM, tais mecanismos mostram-se insuficientes emface das sérias desigualdades inter e intra-regionais. Talconstatação expõe os limites da descentralização finan-ceira em países marcados por profundas desigualdades

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regionais. Assim, os casos de Salvador e Camaçari ins-crevem-se dentre aqueles em que a descentralização po-lítica e tributária teve escassa capacidade de transforma-ção, seja nas práticas políticas, seja na alocação de recursoslocais para a melhoria das condições de vida de suas co-munidades.

O CASO DE SALVADOR

Salvador é a terceira cidade mais populosa do Brasil,com 2,1 milhões de habitantes, e acumulou um númeroconsiderável de problemas, para os quais não tem conse-guido encaminhar soluções. Em 1991, apenas 23% dapopulação tinha acesso a serviços de esgoto e metade àcoleta de lixo; 39% eram analfabetos e 300 mil eramdesempregados. Apesar desses números, Salvador estáse transformando em importante cidade turística, coma visita de aproximadamente 400 mil turistas, em cadaverão.

Financeiramente, Salvador apresenta-se como umadas capitais mais problemáticas do país, devido à au-sência de indústrias e ao tamanho da sua população debaixa renda. A contribuição da cidade para a renda e areceita do Estado da Bahia é baixa, de acordo com osdados da Abrasf (1992). A estrutura da receita refletea dependência da cidade das transferências intergo-vernamentais. Os dados dos balanços da prefeitura deSalvador, entre 1981 e 1991, mostram que apenas 38%dos recursos da cidade provêm de receitas próprias. Aprincipal receita era extraída das transferências esta-duais do ICMS, a segunda de receitas próprias do ISSe a terceira de transferências do FPM.

As capitais brasileiras, em geral, aumentaram suas re-ceitas a partir de 1988, não apenas via transferências fe-deral e estadual, mas também através do aumento da re-ceita própria e ajustamento de suas finanças, mas Salvadorpermanece como uma exceção. As possibilidades da ci-dade de superar suas limitações financeiras são bloquea-das por três fatores.

O primeiro é o tamanho da folha de pagamento. Em1991, com a implantação de um plano de carreira para oservidor público municipal, Salvador gastou entre 80% a90% da receita total com a folha de pagamento, enquantoa média histórica anterior era de 50%, segundo dados daGazeta Mercantil (1993). Apesar desse significativo au-mento, a despesa per capita com a folha de pessoal (US$24) era a mais baixa dentre as principais capitais, inclusi-ve nordestinas: Recife, com US$ 56, e Aracaju, com US$70 (Abrasf, 1992). A pequena participação da folha depessoal na despesa per capita mostra que os salários rece-bidos pelos funcionários municipais são baixos. Em 1994,a prefeitura tinha 21.660 funcionários e o salário médio

mensal era de US$ 440. Valores médios, todavia, escon-dem desigualdades salariais entre os funcionários pú-blicos, já que os fiscais tinham um salário médio deUS$ 1.360, enquanto o dos professores ficava em tor-no de US$ 360.5

O segundo problema é o bloqueio de parte da receitamunicipal autorizado pela Justiça para pagamento dedébitos contraídos junto a empreiteiras. A dívida deSalvador com as empreiteiras só deve terminar em 2014e estava estimada em US$ 200 milhões. Em 1991, seteempreiteiras conseguiram da Justiça o reconhecimento deum acordo por elas firmado com o prefeito Mário Kertész,possibilitando-lhes o bloqueio de 20% da quota mensaldo FPM. Negociações para encontrar uma forma depagamento que diminuísse esse bloqueio foram abertasem 1993, conseguindo a prefeitura a redução do bloqueiode 20% para 5% do FPM (Gazeta Mercantil, 1993).

O terceiro refere-se ao débito total. O problema nãoestá no tamanho do débito, mas sim na relação entre dé-bito e receita líquida. O débito de Salvador representava453% da receita líquida da prefeitura em 1989, 220% em1988, 200% em 1987 e 37% em 1986.6 Esses númerosmostram um aumento exponencial do débito na gestão doprefeito Mário Kertész. Entre 1989 e 1988, a taxa de au-mento anual da dívida da prefeitura de Salvador situou-se em 45%, o que coloca a cidade na posição de quartacapital com a maior taxa de aumento de débito (MeneghettiNeto, 1991).

As tentativas da cidade de aumentar a arrecadação derecursos próprios são bloqueadas por razões não apenaseconômicas, mas também políticas. Os prefeitos encon-tram dificuldades para aumentar o IPTU devido a resis-tências da Câmara de Vereadores e da imprensa local.Assim, Salvador tornou-se a cidade onde o aumento doIPTU foi o mais baixo dentre as capitais das regiões me-tropolitanas. Entre 1988 e 1991, o aumento do IPTU deSalvador foi de 34% ao ano, enquanto a média das capi-tais foi de 51% (Abrasf, 1992).

Constrangimentos legais e políticos, aliados à ausên-cia de indústrias e ao tamanho da população pobre, fa-zem com que a arrecadação de impostos locais em Salva-dor represente 2,5% do total da receita arrecadada nascapitais brasileiras, número muito abaixo de cidades compopulação menor do que Salvador, como Belo Horizontee Recife (Abrasf, 1992). Como a margem de aumento daarrecadação é baixa, a cidade vem usando duas formasperversas para financiar o pagamento de suas despesas: atomada de empréstimos junto a bancos privados a jurosde mercado, que são, como se sabe, extremamente altos;e o apelo à “boa vontade” do governador do estado para aantecipação da quota mensal do ICMS ou até mesmo paraa assunção de serviços eminentemente locais. A primeira

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forma é parcialmente responsável pelo aumento da dívi-da e a segunda significa que os prefeitos têm que se sub-meter aos governadores para poderem arcar com as des-pesas cotidianas da cidade, gerando a dependência dacapital à administração estadual para gerir minimamentea cidade.

Esse lamentável quadro financeiro faz com que Salva-dor tenha uma receita per capita de recursos próprios daordem de US$ 34, menor do que Fortaleza, e abaixo decidades com população semelhante, tais como Belo Ho-rizonte, que tem uma receita per capita de recursos pró-prios em torno de US$ 68 e bastante distante de capitaiscomo Rio de Janeiro, com US$ 139, Florianópolis, comUS$ 122, São Paulo e Vitória, ambas com US$ 114, eCuritiba, com US$ 77 (Abrasf, 1992), cidades que abri-gam um número significativo de moradores de classemédia, bem como indústrias. Em 1993, a receita total deSalvador foi de US$ 229,8 milhões e a receita per capitade US$ 106.7

Do lado da despesa, os dados dos balanços entre 1981e 1991 mostram que Salvador apresenta um quadro mar-cado pela pulverização de recursos em diversos itensde despesas, contrário ao observado nas demais capi-tais.8 A prioridade de despesa mais clara em Salvadorestá no item habitação e urbanismo, especialmente emanos eleitorais. Os dados também mostram que a des-centralização financeira introduzida nos anos 80 e avolta das eleições diretas não afetaram o padrão dadespesa pública em Salvador.

Apesar de registrar uma tendência à pulverização dosrecursos, algumas funções registraram um aumento rela-tivo no período, como é o caso das despesas com o Le-gislativo e com Assistência e Previdência, tendência quetambém foi registrada nas demais capitais. Diferentementedas demais capitais, onde o perfil da despesa mostra umatensão, de um lado, entre as funções habitação e urbanis-mo e, de outro, com serviços sociais, Salvador não regis-tra essa tensão, uma vez que a despesa com serviços so-ciais tem sido historicamente baixa.

Entre 1970 e final dos anos 80, Salvador teve cincoprefeitos. Entre 1979 e 1982, a cidade foi governada porMário Kertész e Renan Baleeiro; de 1983 a 1985 porManuel Castro; em 1986, Kertész, então no MDB, retor-nou ao cargo de prefeito pelo voto direto. Em 1989Fernando José, um ex-radialista, foi eleito prefeito peloPMDB e nas eleições de 1992 os eleitores elegeram Lidiceda Mata, ex-membro do PC do B e agora no PSDB. Ape-sar de pertencerem a grupos políticos relativamente dis-tintos, os prefeitos de Salvador têm uma marca comumtrazida pela precariedade das finanças públicas locais: elestêm pouca margem para tomar decisões próprias e paradefinir a agenda política e administrativa da cidade, já que

a situação financeira faz com que a prefeitura tenha querecorrer a financiadores externos, ora aos governos esta-dual e federal, ora às empreiteiras.

A fragilidade financeira de Salvador faz com que sejaimpossível administrar a cidade sem a ajuda financeirade atores externos, tais como os governadores, as emprei-teiras e o aparato das agências federais. Esse ônus temselado o destino dos políticos locais, qual seja, o de per-derem o controle das decisões sobre a cidade e o de tor-narem-se prisioneiros dos seus financiadores.

Apesar de sua importância política como capital doestado, os líderes políticos locais são limitados porconstrangimentos tributários.9 A falta de recursos fi-nanceiros impede os prefeitos de governarem, o quetorna o eleitorado insatisfeito e volátil. Isto é confir-mado pelo fato de todo prefeito que governou Salva-dor, nos últimos vinte anos, estar fora da cena política,apesar de tentativas de retorno. A única exceção é An-tônio Carlos Magalhães.10

Sintetizando, Salvador é uma cidade que apresentaprofundos e recorrentes problemas políticos e financei-ros. Os constrangimentos financeiros são responsáveis pelaperda de controle dos prefeitos sobre os destinos da cida-de e também estão impedindo a cidade de ter uma facepolítica própria, apesar de o eleitorado ter, até agora,mostrado uma vontade de romper com os laços de depen-dência da cidade com o principal grupo político estadualrepresentado pelo atual senador Antônio Carlos Maga-lhães.

Diferentemente das outras capitais, Salvador não sebeneficiou da descentralização política e financeira quetem caracterizado o Brasil na democratização. A ausênciade aporte de recursos federais via transferências nego-ciadas tem forçado a cidade a aumentar sua dependênciado governo do estado e das empreiteiras. O caso deSalvador apresenta-se como uma exceção à regra de quea descentralização financeira promoveu efeitos positivosnas capitais brasileiras. Assim, Salvador pode ser apontadacomo uma das cidades que não podem sobreviver sem oaporte de recursos adicionais e onde a descentralizaçãofinanceira provou ter pouco impacto no aumento daeficiência dos prefeitos e na sua capacidade de governar.O caso de Salvador mostra que existem fatores políticose econômicos que influenciam os resultados da des-centralização, mostrando, assim, os limites da descentrali-zação em situações de grande disparidade inter e intra-regional.

O CASO DE CAMAÇARI

Até os anos 70, Camaçari era um município isoladoque mantinha escassa ligação com as demais cidades da

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região metropolitana de Salvador. Quatro acontecimen-tos mudaram substancialmente a face da cidade: a implan-tação do parque petroquímico de Camaçari (Copec); aconstrução da Estrada do Coco, que liga Salvador à áreacosteira de Camaçari, transformando-a na principal fontede turismo e veraneio para os moradores de classe médiade Salvador e do seu entorno; a estipulação do municí-pio, em 1972, como área de segurança nacional, o quetrouxe para a prefeitura um prefeito nomeado, que go-vernou a cidade durante 11 anos; e a delegação do plane-jamento das áreas industrial e urbana de Camaçari aoEstado, que passou a tomar decisões em nome do muni-cípio.

Em 1991, Camaçari tinha 108.865 habitantes. Do pontode vista físico, a cidade mostra as contradições e a faltade relação entre as diferentes ocupações urbanas. Partedo município é ocupado por indústrias, a área costeira porconfortáveis casas de veraneio e a sede do município éhabitada por uma população pobre de trabalhadores semqualificação que chagaram nos anos 70 para a construçãodas fábricas. Essas três “cidades” não são visíveis entresi, o que faz de Camaçari um território de mundos desco-nexos e contraditórios. No Copec existem indústrias so-fisticadas e com alta tecnologia, que fornecem ao Estadoa sua principal fonte de arrecadação de tributos. Essasindústrias, intensivas em capital, empregam pouca mão-de-obra constituída de trabalhadores qualificados e bem-pagos, que moram em Salvador devido à pequena distân-cia entre os dois municípios. Na área costeira estão grandesloteamentos, com excelente infra-estrutura usada em ge-ral apenas durante o verão. Na sede do município, 52%da PEA está empregada no setor informal. Os que estãono mercado formal são funcionários públicos ou empre-gados de empresas que prestam serviços não-especiali-zados ao Copec. Em 1989, 90% da população da sede domunicípio tinha uma renda mensal máxima de três salá-rios mínimos e 90% eram ou analfabetos ou não tinhamcompletado o segundo grau (Prefeitura Municipal de Ca-maçari, 1992).

Devido à presença das indústrias petroquímicas, Ca-maçari é um município financeiramente privilegiado secomparado com as demais cidades baianas, mas tem porresidentes regulares uma população pobre e de baixa es-colaridade. A principal fonte de receita do município é atransferência do ICMS devido às indústrias do Copec. Em1993 a receita per capita total era de US$ 406, bastantedistante da de Salvador (US$ 106). Apesar de ser ummunicípio privilegiado financeiramente, o orçamento deCamaçari foi deficitário na maior parte do período estu-dado. O desequilíbrio fiscal foi provocado por uma agres-siva política de investimentos e pelo tamanho da folha depessoal. Em 1993 Camaçari tinha aproximadamente 5 mil

funcionários, significando 5% da população da cidade. Osalário médio era de US$ 300, semelhante ao de Salva-dor.11

A despesa por função extraída dos balanços entre1981 e 1991 mostra que nos últimos dois anos da dé-cada analisada a despesa com administração e planeja-mento decresceu em termos relativos, o que sugere quea prefeitura diminuiu o ritmo dos empréstimos. Apóscinco anos de baixa despesa em educação, a adminis-tração de Luiz Caetano aumentou o item em quase 50%,uma tendência que se manteve constante a partir de1986. As despesas com habitação e urbanismo apresen-tam a mesma tendência de Salvador, ou seja, crescemexponencialmente em anos eleitorais. Despesas comsaúde e saneamento também cresceram na gestão deCaetano, mas diminuíram depois.

Diferentemente de Salvador, a distribuição percentualdos itens de despesa de Camaçari mantém-se relativamenteconstante. Essa estabilidade mostra que o padrão do gas-to público local não foi afetado pela natureza do regimepolítico, ou seja, pelo fim do regime militar e retorno daseleições diretas, nem por mudanças nos grupos políticosque governaram a cidade durante a década analisada. Adescentralização financeira e o retorno das eleições dire-tas aumentaram relativamente a despesa com educação esaúde.

Três prefeitos governaram Camaçari na década anali-sada: Humberto Ellery, um militar reformado, a gover-nou até 1985; Luiz Caetano, então no PMDB, mas mi-litante do PC do B, foi eleito diretamente para o período1986-88; e José Tude, do PFL, para 1989-92. Poste-riormente, Ellery foi eleito pelo voto direto, com o apoiode Caetano e de uma coligação de 19 partidos. A cadaeleição, o eleitor de Camaçari demonstrava sua desa-provação à gestão do prefeito através da eleição de umopositor.

Apesar de pertencerem a grupos políticos divergentes,todos os prefeitos de Camaçari tiveram que administrar acidade promovendo políticas clientelistas e assistencia-listas, a fim de proverem seus eleitores com condiçõesmínimas de sobrevivência. Do depoimento dos prefeitos,conclui-se que as demandas dos eleitores não passavampela melhoria dos serviços públicos, mas sim pelo em-prego público e pela ajuda financeira pessoal para a me-lhoria de suas precárias habitações.12 Também através dodepoimento dos prefeitos, verifica-se que eles tinhampouca margem de manobra para realizar seus projetosadministrativos e mudar a agenda política local, devidoàs pressões da comunidade por ações voltadas para a suasobrevivência imediata.

O caso de Camaçari mostra que a falta de soluçõesnacionais capazes de minimizar a pobreza no Brasil

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promove um ciclo vicioso que conserva os pobres emsituação de dependência dos governos locais a fim deconseguirem um patamar mínimo de sobrevivência.Como os recursos são limitados, mesmo uma prefeitu-ra financeiramente privilegiada não consegue imporuma agenda de despesa que priorize melhoria das con-dições de vida da população, devido ao tamanho da suapopulação pobre.

CONCLUSÕES

Os casos de Salvador e de Camaçari trazem para o de-bate da descentralização e do federalismo dois parado-xos. Em Salvador, a força política da cidade não tem sidosuficiente para libertar seus políticos da dependência deoutros níveis de governo e das empreiteiras. Em Cama-çari, a força financeira da cidade não é suficiente paralivrá-la do papel de provedor de emprego público para asua população sem escolaridade. Apesar de o Brasil serum país de contrastes, as experiências desses dois mu-nicípios apresentam padrões comuns, que são encontra-dos nos aspectos econômicos, nas relações intergo-vernamentais, nos efeitos da descentralização sobre opadrão da despesa pública e na forma de funcionamentodo sistema político.

Do ponto de vista econômico, as duas cidades bene-ficiaram-se da desconcentração econômica do Sudes-te. Ambas receberam um aporte considerável de recur-sos federais e privados nas duas últimas décadas.Camaçari foi beneficiada pela instalação do Copec eSalvador por seu papel de centro terciário. Apesar dis-so, essas mudanças não foram suficientes para melho-rar as condições de vida e de trabalho das populaçõeshistoricamente excluídas dos benefícios do crescimen-to econômico. A distância entre os resultados econô-micos positivos e as condições de vida da maioria dapopulação não só penaliza os excluídos do processo decrescimento, como também impede a ação dos políti-cos locais. Eles têm que renunciar a objetivos de longoprazo, tais como a melhoria dos serviços sociais locaispara atender às demandas de curto prazo dos seus elei-tores voltadas para a sobrevivência imediata. As de-mandas dos eleitores são, portanto, por ações de so-brevivência, deixando os políticos locais diante doseguinte paradoxo: eles não têm condições nem de criarempregos na economia, nem de diretamente enfrentaros fatores que impulsionam a população para a pobre-za, mas são obrigados a despender recursos para pro-ver seus eleitores com empregos e com a melhoria desuas habitações.

No campo das relações intergovernamentais, o gover-no do estado tem tido uma presença marcante em ambas

as cidades, sendo, na maior parte das vezes, o principaldecisor. Entretanto, e como uma corrente da literaturasobre governo local sugere, os políticos locais estão maispróximos das demandas das comunidades. Como os mu-nicípios analisados são constituídos de eleitores pobres,de baixa escolaridade e baixa qualificação profissional,os prefeitos passam a ser responsáveis por provê-los comos meios de sobrevivência e não com o acesso a bens eserviços públicos, enquanto o governo do estado provéma infra-estrutura para o crescimento econômico. Portan-to, acesso a bens e serviços públicos locais permanece emum limbo governamental.

Em relação aos efeitos da descentralização no padrãoda despesa pública local, embora Camaçari tenha aumen-tado a despesa em educação, saúde e saneamento, o per-centual de cada item de despesa em relação ao gasto totalnão mudou substancialmente. A despesa local é prova-velmente mais afetada pelas eleições e por objetivos decurto prazo do que por compromissos em prover serviçossociais à população. Em Salvador, nenhuma mudançaqualitativa foi observada.

Na operacionalização do sistema político, duas carac-terísticas podem ser apontadas. Primeiro, os políticos lo-cais têm escasso controle sobre os destinos da cidade, sejaporque são prisioneiros de outras instituições, seja por-que a população local é tão pobre que a única políticapossível é a de prover os eleitores com os meios de so-brevivência. Segundo, a política é vista pela populaçãocomo pertencendo ao território do estado, mas, ao mes-mo tempo, a população espera que os políticos locais re-solvam seus problemas de desemprego e pobreza. Essascaracterísticas reforçam o argumento de que os políticoslocais têm poucas chances de atuarem como líderesdefinidores e implementadores de uma agenda políticalocal própria.

Este artigo investigou alguns dos resultados da de-mocratização e da descentralização na esfera local.Ambos os processos fortaleceram o poder político e osrecursos financeiros dos governos subnacionais, espe-cialmente dos estados e de suas capitais. Apesar dessefortalecimento, isso não significa que os benefícios dadescentralização distribuem-se uniformemente. Ade-mais, em um país de vasta dimensão territorial e mar-cado por desigualdades sociais e regionais, o compro-misso com a implementação da descentralização podevariar substancialmente e vai depender, em muitos ca-sos, das forças políticas locais. A diversidade política,econômica e social do Brasil pode provocar grandesdiferenças entre os municípios, que acabam prejudican-do os próprios objetivos da descentralização, uma vezque a descentralização financeira a favor das esferassubnacionais reduz as possibilidades de ajuda federal

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a estas esferas com o objetivo de minimizar os efeitosdas referidas desigualdades.

Os casos de Salvador e de Camaçari mostram que po-líticas como a descentralização não podem ser vistas comopanacéia para a solução de problemas que ultrapassam suaspossibilidades. A descentralização no Brasil parece tercontribuído para os avanços da democracia e do pluralis-mo político pela incorporação de diferentes grupos na cenapolítica local, mas seu impacto sobre as políticas públi-cas é ainda limitado e não se faz sentir em todas as cida-des, inclusive em algumas de importância regional, comoSalvador e Camaçari. As evidências apontam para o fatode que a descentralização e a democratização trazem umafragmentação do poder sem necessariamente mudar qua-litativamente a alocação dos recursos públicos locais.Pode-se concluir, a partir daí, que existem vários fatorespolíticos e econômicos que influenciam os resultados dadescentralização e que afetam o pacto federativo, refor-çando, assim, o argumento desenvolvido inicialmenteneste artigo sobre a importância de tais fatores nos resul-tados das políticas públicas, aspecto em geral pouco con-siderado na literatura.

NOTAS

1. Stewart (1984) mapeou a existência de 497 representações tanto literais quan-to figurativas do federalismo. No território da ciência política, os trabalhos maisdivulgados são os desenvolvidos nos EUA, tais como os de Elazar (1984) eDuchacek (1987).

2. Para uma análise do papel dos estados-membros no Brasil após a Constituiçãode 1988, ver Souza (1996b).

3. A literatura francesa sobre descentralização segue caminho diverso, tratandoo tema como parte da discussão sobre a reestruturação do papel do Estado. Ver,a respeito, Preteceille (1991).

4. A única restrição nas transferências constitucionais imposta aos municí-pios é o percentual de 25% da sua receita total que deve ser despendido emeducação.

5. Números fornecidos pela Secretaria de Administração da Prefeitura de Sal-vador.

6. Dados de relatório não-publicado da Secretaria de Finanças de Salvador.

7. Dados de 1993 calculados por José Pinheiro.

8. Para maiores detalhes sobre a despesa de Salvador e das demais capitais, verSouza (1996a).

9. Do ponto de vista do papel do legislativo local no debate sobre as políticas eos destinos da cidade, os casos de Salvador e de Camaçari guardam alguma si-milaridade com a tipologia desenvolvida por Couto e Abrucio (1995). No entan-to, apenas em momentos de alta divergência ideológica entre o prefeito e a maioriada Câmara de Vereadores, é que os vereadores assumiram um papel mais agres-sivo. Tais momentos ocorreram, em Salvador, durante o mandato de ManoelCastro e, em Camaçari, na gestão de Luiz Caetano. Para maiores detalhes, verSouza (1996a).

10. Depois de ter sido prefeito nomeado, Manoel Castro foi várias vezes eleitopara a Câmara Federal, mas foi derrotado nas duas vezes em que concorreu àprefeitura pelo voto direto. Os votos de Manoel Castro para a Câmara devem sercreditados mais ao apoio de Antônio Carlos Magalhães do que ao eleitorado deSalvador.

11. Dados de Camaçari fornecidos pelo servidor Paulo Silva.

12. As entrevistas com os três prefeitos mencionados foram realizadas em1992.

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A RESSIGNIFICAÇÃO DO LOCAL: O IMAGINÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO PÓS-80

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Nas últimas duas décadas, operou-se no imaginá-rio político brasileiro uma ressignificação do esta-tuto das estruturas de poder local. De espaço por

excelência das relações coronelísticas de poder no âmbi-to dos pequenos e médios municípios, de relações clien-telísticas e populistas nas médias e grandes cidades, asestruturas de poder local passaram a espaço de possibili-dades de experimentos democráticos inovadores e do exer-cício da cidadania ativa. Da condição de importância dian-te do crescente desafio de oferecer bens e serviços públicoseficientes e de qualidade e da incapacidade de formularsaídas econômicas, o poder local passou a ser portadorde possibilidades de gerenciamento eficiente dos recur-sos públicos e protagonista de iniciativas de desenvolvi-mento da vida econômica e social.

Essa mudança da imagem do local é evidenciada noscrescentes estudos de experiências de gestões municipaisinovadoras e na reflexão sobre as possibilidades de açãodas estruturas locais de poder, no sentido de viabilizarmudanças políticas, econômicas, sociais e culturais. Mu-dança que traduz a descoberta do local como portadorde positividades, no momento em que solidificam-seuma percepção mais aguda do processo de mundiali-zação e uma crescente descrença na capacidade de res-postas políticas e econômicas globais a partir dos Es-tados nacionais.

Como toda significação imaginária, a nova imagem dopoder local no Brasil contemporâneo é a expressão sim-bólica instituída e instituinte de um longo processomultifacetado, não linear, com ambigüidades e diferen-ças a partir das situações e multiplicidade de cenários queapresentam as localidades brasileiras. Este processo, queespera por um balanço crítico, é perceptível num conjun-

A RESSIGNIFICAÇÃO DO LOCALo imaginário político brasileiro pós-80

JOÃO BOSCO ARAUJO DA COSTA

Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Regional do Rio Grande do Norte

to de mudanças ocorridas em diversos níveis, em relaçãoaos sistemas de poder local.

Este artigo objetiva discutir, em linhas gerais, os di-versos aspectos constitutivos da descoberta do poder lo-cal como espaço privilegiado para a realização da demo-cracia, da participação cidadã e de iniciativas econômicase sociais, bem como sua ressonância nos atores políticos.Para tanto, são levantados os aspectos que configuram esteprocesso no cenário político nacional. Além disso, sãoapontadas as especificidades desta ressignificação nasformas concretas de realização da política no Rio Grandedo Norte, no sentido de refletir sobre a circulação de sig-nificantes entre os distintos discursos políticos e a capa-cidade dos atores dominantes em desarticular e absorverformulações discursivas adversárias.

A partir de experiências de gestões municipais, demo-cratização, participação e inversão de prioridades são pro-posições que passam a compor o discurso da esquerda. Nooposto do espectro ideológico, ocorre uma reapropriaçãopelos atores oriundos do regime militar, que passam a ad-quirir um discurso “democrático e participativo”, mesmoque reproduzindo práticas políticas tradicionais. Com isso,têm-se tanto um consenso em relação às virtualidades dopoder local, quanto uma disputa de sentido no que se refe-re ao tema da democracia e da participação.

A RESSIGNIFICAÇÃO DO PODER LOCAL

O tema do poder local tem sido recorrente no pensa-mento político brasileiro. As significações instituídas em cadaquadra histórica estão articuladas às conjunturas teórico-políticas, ou seja, ao tema que ocupa a centralidade daagenda política de cada momento histórico. São exem-

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plos dessa situação a constituição da nação, o tema dodesenvolvimento e, a partir dos anos 70, a questão dademocracia (Costa, 1993). Em cada fase do nosso pro-cesso histórico, o estatuto do local é instituído de formadicotômica em relação ao nacional, ressonando em pola-ridades tais como centralização/descentralização, públi-co/privado, desenvolvimento/subdesenvolvimento, Esta-do/sociedade civil, moderno/tradicional.

Até os anos 80, no imaginário e no discurso político,nas elaborações acadêmicas e nos meios de comunicação,a imagem do local, geralmente ancorada numa percepçãoda realidade dos pequenos e médios municípios, tinha oestatuto instituído pela negatividade: lugar de captura daesfera pública pela esfera privada, de práticas coro-nelísticas, patrimonialistas e clientelísticas, do primado dasrelações de reciprocidades hierárquicas.

As elaborações acadêmicas e os estudos sobre poder lo-cal no Brasil, até os anos 80, têm em comum, não obstantediferentes registros e distintas perspectivas de abordagens,a confirmação dessa imagem de negatividade do local.

Esta situação parecia imanente à própria realidade pre-sente na maioria dos municípios, pois, como apontaDaMatta (1990), se a sociedade brasileira é permeada pordois domínios distintos de relações, um impessoal, racio-nal e das leis e outro de lealdades pessoais, de amizades,de favores e relações familiares, nos pequenos e médiosmunicípios as segundas relações parecem predominar.

Autores antifederalistas, como Oliveira Viana (1930)e Nestor Duarte (1966), são marcos nesta elaboração ne-gativa do poder local e instituem uma tradição que foi rea-firmando-se até os estudos mais recentes, da década de 80.

Mesmo que Nunes Leal (1978) tenha desmontado anoção de dicotomia, apontando existência de um binô-mio, de uma simbiose entre o local e o nacional a partirdas alianças políticas entre os chefes locais e as elitespolíticas urbanas, regionais e nacional, o local continua aser o espaço do coronel, das relações privadas e do clien-telismo político, em detrimento do sistema representati-vo republicano. O estudo de Nunes Leal, apesar de seconstituir num importante avanço, ao apontar para umaanálise não simplificadora do papel dos chefes políticoslocais, reafirma, no entanto, a imagem do local como ne-gatividade, uma vez que não o reconhece como palco ondeatuam forças e interesses conflitivos, sendo este pensadocomo entrave ao desenvolvimento político e econômico.

Os estudos influenciados pela sociologia urbana dematriz marxista deslocam para os centros urbanos o focoempírico de suas elaborações. Com isso, as estruturas depoder local são pensadas a partir das determinações ge-rais do Estado capitalista, da reprodução espacial do ca-pital, produzindo análises globalizantes, que identificamno espaço local apenas a forma específica da reprodução

da sociedade capitalista. O local era pensado a partir dasdeterminações gerais da consolidação do capitalismo noBrasil, de suas formas de reprodução desiguais e combi-nadas, configuradoras dos cenários urbanos.

A partir dos anos 80, o local passa a ter uma imagemrepresentativa ancorada na positividade, expressandomudanças em diversas áreas: um novo estatuto jurídico-institucional com a Constituição de 1989; na discur-sividade dos atores políticos; nas abordagens teórico-meto-dológicas que, se não constituem ainda um novo paradigma,apresentam importantes deslocamentos nas matérias veicu-ladas pelos órgãos da mídia, que têm destacado as inova-ções e soluções criativas das prefeituras nos campos da saú-de, educação, moradia e participação cidadã.

A gênese dessa ressignificação ocorreu durante a tran-sição do regime autoritário para a democracia política, emque, impulsionado pelos novos atores sociais e políticosque emergiram no período, o tema do poder local incor-porou-se à agenda política, articulado aos temas da demo-cracia, da descentralização e da participação popular. Coma emergência de novos atores na década de 70 – comunida-des eclesiais de base da Igreja Católica, novo sindicalismodo ABC paulista, associações de moradores disseminadospelo país –, verifica-se uma polarização entre o Estado au-toritário e estes atores, que expressam uma sociedade civilemergente e instituem novas práticas e espaços da política(Sader, 1989). As demandas e proposições destes atores te-rão ressonância na emergência de gestões democratizadorase fomentadoras da participação popular, a exemplo de BoaEsperança (ES), Lages (SC) e Piracicaba (SP).

O esgotamento do regime autoritário, as imensas con-tradições urbanas geradas pelo ciclo do próprio regime eum Estado pouco acessível às demandas das classes po-pulares compõem o contexto de emergência de uma fasede mobilização e reivindicações, originando o que ficouconhecido, pela literatura acadêmica, como “novos mo-vimentos sociais”. Como aponta Doimo (1995:27), “ain-da que tais movimentos tenham frustrado o prognósticotransformador de muitas análises (...) é inegável que de-ram origem a um expressivo campo ético-político, comimportantes rebatimentos no processo político brasileiro”.

Um desses rebatimentos foi a influência desses “no-vos movimentos sociais” no atual significado do poderlocal no Brasil: primeiro, porque deram visibilidade àsdemandas que instituíram a trilogia democracia, descen-tralização e participação popular; segundo porque esta-vam presentes nas disputas em torno do estatuto jurídico-político do município, na elaboração da Constituição de1988, e na “febre de constituintes municipais, quandoforam elaboradas as leis orgânicas municipais; terceiro,pela influência no acolhimento do tema da participaçãopelos partidos políticos.

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Não se trata de afirmar a primazia destes movimentospara a constituição de uma nova imagem do local, poisoutros fatores foram se incorporando neste processo. Par-ticularmente as experiências de gestões democráticas ino-vadoras, através de um número significativo de adminis-trações petistas a partir de 1989, vão constituir-se numnovo patamar para a reflexão sobre o poder local. São estesnovos atores que vão flexionar a agenda política da resis-tência ao regime autoritário, deslocando para o nível dasestruturas de poder local o debate sobre o tema da demo-cracia. É a partir de suas demandas que os espaços e asestruturas de poder local passam a ser vistos como arenasde disputas entre atores distintos, espaços de virtualida-des transformativas, quebrando a imagem homogênea dopoder local que terminava favorecendo as elites locais aoidentificá-las com a história e a vida das localidades.

Ao longo de nossa história, tanto na constituição daNação e do Estado quanto no Império e na história repu-blicana, as reivindicações de autonomia política, jurídicae financeira para os municípios expressaram, quase sem-pre, interesses e lógicas oligárquicas e localistas, em queas elites reafirmavam a sua percepção de “portadoras dastradições locais, responsáveis por sua condução e futu-ro” (Daniel, 1994: 30). Das lutas reivindicativas dos anos70 e 80, resultaram as recentes reflexões sobre as estrutu-ras de poder local, que passam a ser reconhecidas, comopalco onde agem atores em relação de conflitividade, pro-duzindo alteridades e identidades políticas.

Quando a Constituição de 1988 afirmou os princípiosdescentralizadores, ampliando, de forma significativa emrelação ao passado constitucional, a autonomia jurídico-política e financeira dos municípios brasileiros, pareceuà primeira vista reafirmar a imagem de uma história pen-dular de nossos ordenamentos constitucionais, em queconstituições “centralizadoras” são sucedidas por “des-centralizadoras”. No entanto, uma análise mais atenta emenos formalista mostrará que a Constituição de 1988 éemblemática de um deslocamento mais profundo, ou seja,de mudanças que vinham ocorrendo na sociedade brasi-leira em relação ao poder local.

Sadek aponta para o fato de que a Constituição de 1988,quando comparada às anteriores, “reflete mais que umanova ordem jurídica, podendo ser entendida como resul-tante de uma realidade complexa, em tudo distante do paísque fundou a república ou o período redemocratizante apóso término do Estado Novo (...) apenas formalmente se apro-xima dos parâmetros descentralizadores das Constituiçõesde 1891 e de 1946” (Sadek, 1991:9).

A Constituição de 1988, ao consagrar nos capítulosreferentes ao ordenamento jurídico-político dos municí-pios mudanças qualitativas em relação às Constituiçõesanteriores que ficaram conhecidas como “descentraliza-

doras” ou “municipalistas”, expressou alterações impor-tantes no que se refere à questão da autonomia político-administrativa e ao reconhecimento do local como esferasubstantiva de poder. Considerando o fato de que mudan-ças nos ordenamentos institucionais de uma sociedadeexpressam alterações materiais e simbólicas que vêm seprocessando em diversas esferas da realidade, traduzin-do um certo consenso alcançado entre os atores políticosrelevantes, a Constituição de 1988 manifestou e poten-cializou um processo mais amplo, do qual a própria alte-ração constitucional foi parte.

Historicamente, o processo de constituição da nação eprincipalmente do Estado, reproduzindo a lógica clássicado processo de instituição das sociedades capitalistas,imprimiu um progressivo esvaziamento dos municípios elocalidades. Assim, a capital e o interior, o coronel e oempresário, o caipira e o citadino não apenas remetempara hierarquias de status e diferenciação espacial, mastambém inscrevem-se no simbólico, nas formas diferen-ciadas de sociabilidades e relações de contratualidades,permeando as imagens instituintes de nossa identidadefragmentada. As diversas constituições acabam refletin-do esse processo e expressando as polarizações de cadaconjuntura. É nesse sentido que a Constituição de 1988deve ser considerada parte de um processo mais amplode mudanças sociais e políticas ocorrido na sociedade eda ressignificação do poder local no Brasil. Isso fica evi-dente quando se faz uma rápida recuperação histórica doestatuto jurídico-político do município nas Constituiçõesbrasileiras, em que se verificam tanto a insuficiência deuma análise que se atenha ao ordenamento institucionalquanto as mudanças qualitativas ocorridas na sociedadebrasileira em relação ao poder local. Deste ponto de vis-ta, o texto constitucional de 1988 distancia-se dos ante-riores, que consagram prerrogativas de autonomia aos mu-nicípios.

No período colonial as câmaras municipais, não obs-tante as ordenações legais, “chegavam a exercer grandepoder, à margem dos textos legais ou mesmo contra eles”(Sadek, 1991:10). No Império, mesmo que a Constitui-ção de 1824 previsse eleições nas vilas e cidades, as ins-tituições locais eram subordinadas aos presidentes dasprovíncias e ao governo central, não tendo autonomia.Porém, mesmo assim, os chefes políticos locais, com imen-so poderio privado, tornavam o governo central do Impé-rio impotente para exercer de fato maiores controles so-bre o mando dos chefes locais.

A Constituição republicana de 1891, inspirada pelasidéias liberais-federativas, procurava ter como princípioa autonomia dos municípios. Entretanto, na maioria dosmunicípios o prefeito era nomeado pelos governadoresestaduais, acarretando concentração de poder na esfera

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estadual e tutela dos municípios. No entanto, estranhatutela e concentração, pois este é o período em que NunesLeal aponta a simbiose entre sistema representativo e or-denamento jurídico republicano, sobreposto ao mandoprivado dos coronéis como base de apoio e sustentaçãopolítica dos governadores. Os governos estaduais não in-tervinham na política local, tendo como seu aliado a fa-mosa figura do coronel, que determinava desde a nomea-ção do delegado de polícia até a do pequeno funcionáriodas repartições estaduais nos municípios.

A Constituição de 1934, contraditoriamente defendiaa autonomia municipal, mas através do departamento dasmunicipalidades exercia forte controle político-adminis-trativo sobre os prefeitos. Com o Estado Novo, asubordinação ao Estado central foi ostensiva, ampliandoa centralização, pois “não apenas se conservavam os depar-tamentos de municipalidades como a estes se acrescentavaum departamento administrativo, destinado a controlar osgovernos estaduais e municipais” (Sadek, 1991:10).

A Constituição democratizante de 1946 fez um movi-mento de recuperação da autonomia, reduzindo as situa-ções em que poderia haver intervenção nos municípios.Com o regime militar, volta o pêndulo para a centraliza-ção: criação de novos municípios, ampliação de possibi-lidades de intervenção e dependência dos fundos fede-rais foram emblemáticos desse movimento centralizador.

O importante a ser retido é que todos esses momentosde afrouxamento e centralização institucional do estatutojurídico-político dos municípios não afetaram o que nes-te artigo está sendo apontado como principal: as estrutu-ras de poder, as formas de sociabilidades e lealdades e omando privado das elites locais sobreposto aos orde-namentos constitucionais, que foi uma constante, ao ladodo seu esvaziamento enquanto palco substantivo da polí-tica, de protagonista econômico e social e do aumento dopeso do Estado central.

Por esse motivo na esfera do ordenamento institucio-nal, na Constituição de 1988, a discussão sobre descen-tralização e autonomia dos municípios, diferentemente detemas como reforma agrária, nacionalização do subsoloe estatização, pareceu menos polêmica e disputada, devi-do ao consenso alcançado. Dessa forma, expressaram-seno ordenamento institucional mudanças concretas na per-cepção política no âmbito local, com a visibilidade do queantes era percebido como passivo pelos estudos e ima-gens do local: a pluralidade de atores sociais e políticosque compõem a vida local.

Nestes meados dos anos 90, é visível um longo e mul-tifacetado processo, que acumulou uma série de experi-ências e colocou novas e complexas questões em relaçãoao tema do poder local. Ao longo desse processo, ope-rou-se uma série de desdobramentos: a mudança na cen-

tralidade da agenda política, ganhando destaque a ques-tão do esgotamento do Estado e da inserção no mercadomundial; refluxo da fase movimentalista dos movimen-tos sociais e sua reavaliação crítica; experiências demo-cráticas e inovadoras de gestões municipais capitaneadaspela esquerda; incorporação pelos diversos atores do es-pectro político do discurso centrado no local; reavaliaçãodo tema da participação nos termos antes colocados nosanos 70 e início dos 80; e tratamento positivo nos meiosde comunicação. Quando estes elementos se fazem pre-sentes, quando aumenta a descrença na capacidade de oEstado responder aos desafios da inclusão social, quandohá o descrédito nos grandes atores e macroestruturas equando se percebe uma crescente mundialização dos pro-cessos econômicos, políticos e culturais, é no âmbito dopoder local que desenham-se espaços de manobra e des-cobrem-se virtualidades para projetos democráticos, departicipação e desenvolvimento.

Outro aspecto deste processo de descoberta do poderlocal refere-se aos impactos que as experiências governativasmunicipais produziram nas práticas e na cultura políticada esquerda brasileira. É verdade que uma série de questi-onamentos já vinha se avolumando desde os anos 70, emrelação à cultura tradicional da esquerda de matriz mar-xista-leninista. Porém, ao assumirem a gestão de várias eimportantes cidades brasileiras, as esquerdas, especialmen-te o Partido dos Trabalhadores, sofrem dois tipos de impac-tos: uma reelaboração da ótica pela qual eram tratados ostemas da democracia, da institucionalidade, da participaçãopopular, da negociação e da governabilidade; e a obrigato-riedade de passarem para uma fase propositiva, de respostasaos desafios colocados pela condição de governo.

Já os atores políticos dominantes – desde os oriundosdo regime militar que constituíram o setor liberalizantedeste, até os da oposição conservadora ao regime – in-corporaram em seus discursos de proposições e noçõesem relação ao poder local que originalmente foram for-muladas pelos atores e no contexto antes discutido. Nes-tas eleições municipais, percebe-se a circularidade de pro-posições em relação aos programas de governo, que àprimeira vista não se diferenciam muito entre atores dis-tintos do espectro político ideológico.

Os Desdobramentos da Ressignificaçãodo Local no Rio Grande do Norte

Diferente das regiões Sul e Sudeste, onde os movimen-tos sociais e populares que se constituíram nos processosde mobilização, reivindicação e resistência ao regime au-toritário adquiriram maior visibilidade e referência políti-ca, no Nordeste, e particularmente no Rio Grande do Nor-te, a fragilidade da sociedade civil e a pouca expressividade

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dos movimentos sociais e populares facilitaram a tarefados setores liberalizantes do regime militar, posto que sãoestes que, em grande medida, vão implementar “governosparticipativos”. É o caso de José Agripino Maia que, no-meado prefeito de Natal em 1979, construiu para sua ad-ministração a imagem de uma gestão participativa.

O Nordeste, durante o regime militar, vivenciou a cha-mada fase pós-Sudene de sua economia, a qual, comoaponta Oliveira (1990), caracterizou-se pelo financiamen-to do setor privado através dos fundos públicos estatais.Deu-se, então, a “desregionalização” da economia nor-destina, que passou a produzir insumos intermediáriosdestinados aos mercados nacional e internacional, geran-do algumas ilhas de industrialização de ponta. Dessa for-ma, ocorre uma redefinição espacial, com um aceleradoprocesso de urbanização. Na esfera política, a reprodu-ção das práticas tradicionais foi favorecida devido à re-pressão sobre as experiências de organização popularanteriores a 1964, sendo o Nordeste a região onde a Are-na obteve maior apoio popular.

O Rio Grande do Norte situa-se numa posição inter-média, pois, apesar de os impactos da fase pós-Sudenenão terem ocorrido de forma tão intensa como na Bahia eem Pernambuco, o estado não deixou de passar por mu-danças econômicas e sociais importantes (Costa, 1993).No entanto, as alterações econômicas e sociais verifica-das não refletiram-se na esfera política, em que a tradi-ção familiar e a polaridade entre famílias aprisionadorada instituição da esfera pública e constrangedora da cons-tituição de novas identidades e alteridades políticas cons-tituem realidade ainda hoje presente.

No final dos anos 70, acompanhando os movimentosmobilizadores das regiões mais desenvolvidas, o Rio Gran-de do Norte vivenciou a emergência da organização e demovimentos reivindicativos de algumas categorias, qua-se exclusivamente das camadas médias urbanas circuns-critas a Natal, de pouca relevância no sentido de alterar opadrão da política local (Domingos Sobrinho, 1987).

O tema da participação e as questões apontadas anterior-mente em relação ao poder local, no Rio Grande do Norte,circunscrevem-se a Natal, a capital do estado, e a uma expe-riência de gestão democrática na pequena cidade interiora-na de Janduis, administrada por um ex-membro do PCB eposteriormente pelo PT. Entretanto, termos como participa-ção e organização comunitária vão se apresentar no discur-so político como iniciativa dos governos de Lavoisier Maiae de José Agripino Maia, respectivamente, governador eprefeito da capital indicados pelo regime militar.

Em Natal, até os anos 50, as experiências associativasdas classes subalternas não tiveram maiores expressões.Foram vivenciados uma fase associativa impulsionada pelaigreja, conhecida como “movimento de Natal”, e um pro-

cesso de mobilização e de constituições de associaçõescomunitárias populares na gestão do prefeito DjalmaMaranhão, da esquerda nacionalista dos anos 60. Essasexperiências foram interrompidas com o golpe de 64.

Foi a partir de programas econômicos e sociais do go-verno federal, que previam a integração e a participaçãoda população através do chamado planejamento parti-cipativo, que surgiram os “governos participativos” emvárias capitais do Nordeste, antecipando-se ao cenário demobilizações, reivindicações e instituições de formasorganizativas, que vinham ocorrendo nas regiões maisdesenvolvidas. Como assinala Paiva (1994:35), surgem“na arena política os prefeitos, indicados para as capitaisnordestinas. Estes teriam que atender aos requisitos pre-vistos para a execução do planejamento participativo”.

O governo estadual de Lavoisier Maia e, particular-mente, a gestão municipal de José Agripino Maia em Natalforam marcadas por programas de criação de associaçõesde bairros, conselhos comunitários e pelo discurso parti-cipativo. Como aponta Azevedo (1996:62), “esta concep-ção de participação (...) não concebia outro lugar de parti-cipação que não aqueles legitimados e sob controle doestado”. Trata-se da antecipação da virtualidade de iniciati-vas da população, de legitimar-se como moderno, demo-crático e empreendedor, preparando-se para as disputaseleitorais com a liberação do regime. Além disso, consti-tui uma estratégia de legitimação e antecipação que tor-nou-se vitoriosa devido à fragilidade dos movimentossociais e da oposição não oligárquica no Estado. ParaAndrade, “a relação estado comunidade na experiênciade Natal não contemplava a idéia de automonia das co-munidades envolvidas(...) o que existia era um forte con-trole da situação pelo aparato governamental (...) dessaforma realizava-se uma pseudoparticipação e legitimava-se através dela as ações do governo” (Andrade, 1994:185).

A especificidade que surge no Rio Grande do Norte emrelação ao Sul e ao Sudeste refere-se ao fato de que, nes-tas duas regiões, os agentes liberalizantes do regime oumesmo os primeiros governos da oposição parlamentar (doPMDB), quando tentaram patrocinar experiências partici-pativas com graus variados de instrumentalização, encon-traram um acúmulo de organização e elaboração dos movi-mentos sociais. Já no Rio Grande do Norte, por precariedadedestes, foi mais fácil para os agentes oriundos do regimeconstituírem-se em promotores de “governos participativos”,interpelando um discurso democrático e participativo, quese instituiu a partir da sociedade civil, reproduzindo as prá-ticas da política tradicional do Nordeste.

A discussão feita até aqui, de forma bastante parcial,aponta para duas questões sinalizadas no início deste arti-go. Em primeiro lugar, quando todos os atores políticosrelevantes passam a adotar um mesmo dispositivo discursi-

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listas –, mais que nos grandes centros urbanos, as gestõesde esquerda, apesar dos limites estruturais do aporte derecursos (a maioria tem apenas o FPM como fonte de re-ceita), têm modificado o cenário local no sentido da de-mocratização, da eficiência administrativa, do encaminha-mento de soluções para as carências mais urgentes dapopulação e principalmente na funcionalidade do sistemarepresentativo, incorporando novos padrões de relacionamen-to entre público e privado, administração e população.

Entretanto, se esse processo nomeado como ressig-nificação do poder local no Brasil aponta, em vários ní-veis, elementos extremamente importantes para o fortale-cimento da democracia e de uma cultura democrática,torna-se necessário um balanço crítico tanto das experiênci-as em curso quanto das próprias virtualidades celebradas,sob o risco de tornar-se prisioneiro da apologia. Não era in-tenção fazer esse balanço aqui, mas apenas apontar para essenovo lugar do local no imaginário político brasileiro.

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CONCLUSÕES

Como mostra Castells, tem ocorrido a nível mundial,nas últimas décadas, a descoberta das cidades como “prota-gonista na vida política, econômica, social, cultural e nosmeios de comunicação”, sendo que “a inovação democráti-ca é, provavelmente, o aspecto mais excitante do papel as-sumido, progressivamente pelos governos locais” (Castellse Borja, 1996:160), o que aponta um processo que extrapolaas nossas fronteiras. Porém, o que se procura sinalizar é aespecificidade no Brasil, pois trata-se de uma mudança sig-nificativa na imagem do local na nossa cultura política.

As experiências em curso de gestões democráticas e re-formadoras, como Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio Bran-co e Santos entre outras, têm apontado que no âmbito lo-cal vem ocorrendo uma prática crítica referente à fetichizaçãotanto do mercado quanto do Estado, viabilizando alterna-tivas concretas e exeqüíveis de gestão eficientes dos ser-viços públicos, de exercício da cidadania ativa.

Tem também causado impacto a cultura da esquerdabrasileira, pois como mostra Utzig (1996:210) “O governodo PT em Porto Alegre aprendeu que o grande desafio(é) operar políticas práticas capazes de reformar asociedade e o estado existentes sem esperar a grandemudança”. A esquerda no exercício do poder local temdesenvolvido, não sem tensões e conflitos, uma novasensibilidade para o tema da democracia (Costa, 1995).

Ao mesmo tempo, e o exemplo do Rio Grande do Norteexpressa isso, quando a noção de participação e de políti-ca local é acolhida pelo conjunto dos atores políticos re-levantes, ganha centralidade a disputa pelo seu sentido.Ou seja, se deve ser entendido como instrumento de me-lhoria da eficiência dos governos, aceitação das políticaspúblicas e legitimação dos governantes, ou se é “o centrode uma estratégia de reforma e democratização radical doestado e da sociedade” (Utzig, 1996:124).

Nos pequenos municípios – em especial do Nordeste,geralmente dominados por práticas políticas patrimonia-

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ORÇAMENTO PARTICIPATIVOco-responsabilidade na gestão das cidades

reflexão em torno do tema da participação po-pular tem uma estreita vinculação com os pro-cessos de descentralização político-administra-

tiva e de ampliação das possibilidades de democratiza-ção da gestão local.

O tema da participação converge com o debate sobre adescentralização que, por sua vez, tem se tornado cadavez mais fundamental ao processo de democratização daação do Estado e das suas práticas institucionalizadoras.A descentralização representa em teoria a possibilidadede ampliação para o exercício dos direitos dos cidadãos,a autonomia da gestão, a participação cotidiana dos cida-dãos na gestão pública e uma potencialização de instru-mentos adequados para um uso e redistribuição mais efi-cientes dos recursos públicos.

No contexto brasileiro, o tema da participação e daintegração da comunidade no processo de tomada de de-cisões vem assumindo importância crescente na compa-tibilização entre as transformações político-institucionaise o fortalecimento dos direitos de cidadania.

O objetivo principal é o de concretizar de forma maisdireta e cotidiana o contato entre os cidadãos e as insti-tuições públicas, de forma a possibilitar que essas consi-derem os interesses e as concepções político-sociais noprocesso decisório. O que está em jogo neste processo éo estímulo ao protagonismo crescente da população, emgeral, e dos setores mais carentes, em especial.

O desafio é ampliar as condições de apropriação dosbens e serviços públicos para uma vasta parcela da popu-lação, notadamente aquela que habita as regiões periféri-cas. Entretanto, a administração pública deve estar volta-da para a implantação de canais de participação que permitamum amplo envolvimento de todos os grupos sociais.

A legitimação do Orçamento Participativo no cotidia-no da gestão de um número crescente de prefeituras pro-gressistas no Brasil, que inclusive reelegem o partido oucoalizão no poder, abre um estimulante campo de refle-xão em torno do tema da participação popular e sua es-treita vinculação com os processos de descentralizaçãoadministrativa e de ampliação das possibilidades de de-mocratização da gestão local.

Ao se falar em participação, fica explícita a potencialruptura com a distância quase sempre existente entre o po-der centralizado e as realidades sociais mutantes e hetero-gêneas, que evidenciam os limites dos mecanismos exis-tentes – formais, verticais, corporativos e clientelistas,construídos para dificultar ou desestimular e inclusive nãopermitir a participação dos cidadãos nos assuntos públicos.

A institucionalização da participação popular represen-ta mudanças político-culturais que envolvem a própriaprática do movimento popular na sua relação com o Po-der Executivo e o Poder Legislativo.

Estes limites vêm sendo crescentemente mostrados etransgredidos pelos diversos e heterogêneos movimentossociais e pelos novos atores políticos que desafiam a tu-tela e lutam pelos seus direitos e pela possibilidade deintervir na construção de novas formas de representação,organização e cooperação.

PORTO ALEGRE: O ÊXITO, O SALTOQUALITATIVO E SEU EFEITO MULTIPLICADOR

O Contexto da Experiência

A cidade de Porto Alegre, com uma população esti-mada em 1.400.000 habitantes, tornou-se emblemática

A

PEDRO JACOBI

Sociólogo, Professor da Faculdade de Educação da USP, Pesquisador do Cedec

MARCO ANTONIO CARVALHO TEIXEIRA

Sociólogo, Pesquisador do Cedec

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pela importância do processo implantado e pela legitimi-dade obtida. Desde 1989, o governo municipal implan-tou o Orçamento Participativo enfrentando sérias resis-tências dos setores conservadores da cidade.

O caso de Porto Alegre é referência nacional, pela im-portância que assume o processo de reeleição numa pre-feitura progressista no Brasil. O PT está às vésperas decompletar oito anos à frente da prefeitura municipal e, deacordo com os dados de pesquisas eleitorais, tem grandespossibilidades de reeleger-se para mais um mandato dequatro anos. Trata-se de uma experiência que mostra umefetivo equacionamento da relação partido-governo-so-ciedade, uma vez que a gestão ampliou sua base de apoiojunto aos setores médios e empresariais. Os resultados depesquisas de opinião mostram uma avaliação muito posi-tiva da gestão.

Deve lembrar-se que o início da gestão, de um partidode esquerda que chegou ao governo com 35% dos votos,foi tenso, marcado pelas demandas da população, pelodesafio de controlar a máquina burocrática e definir umapriorização das ações de governo baseadas numa pers-pectiva de “inversão de prioridades”, conforme o ideárioprogramático do partido. Assim como em outras cidadesem que o PT foi vitorioso, assumiu-se o governo, mas nãose detinha o poder.

O sucesso da experiência tem a ver não só com a histó-ria oposicionista da cidade, mas principalmente com acapacidade de definição de uma nova esfera pública não-estatal, como elemento central para a ampliação da parti-cipação da população na gestão da coisa pública.

Desde o início existiu um enorme esforço no sentidode estruturar tendo como referencial o Orçamento Partici-pativo, um processo político-administrativo de fortaleci-mento da cidadania e de concretização de um ideário dedemocratização da gestão local e de participação da co-munidade. Em 1989, o governo municipal de Porto Ale-gre implantou o Orçamento Participativo e diversos fó-runs de debate sobre os problemas da cidade com apopulação. Há uma preocupação, por parte da Adminis-tração, voltada para a motivação dos cidadãos, através desessões plenárias abertas à participação direta junto ao po-der público, para discutir a receita e a despesa do município.

A equipe de governo considerou que a inexistência desistemas de acompanhamento e de controle das reivindi-cações populares só poderia ser revertida a partir de umprocesso que atraísse a sociedade civil para a arenadecisória, através da discussão pública do Orçamento edos recursos destinados a investimentos.

A estratégia pautou-se pela implantação de diversasformas de debate com a população. Trata-se de um com-plexo e demorado processo, uma corrente de participa-ção que deveria engajar diversos atores representativos e

que propiciaria a constituição de uma nova esfera públi-ca de controle e pressão sobre o Estado.

A principal dificuldade no primeiro ano referia-se à faltade metodologia e à incapacidade do Estado em atender àsdemandas, quando o processo era coordenado pela Secreta-ria do Planejamento Municipal. A partir do segundo ano,em virtude das deficiências percebidas na relação com apopulação, passou a ser responsabilidade da Coordenaçãode Relações com a Comunidade (CRC) conjuntamente como Gabinete de Planejamento. O grande desafio era abrir a“caixa preta” do orçamento e alterar as estruturas preexis-tentes – tanto internas quanto de organização de canais deinteração entre a administração e o poder público.

A introdução da proposta ocorreu a partir do objetivode se criar as condições para pôr em prática um ideáriode democratização e participação popular, rompendo comuma relação instrumentalizada, que se baseava na repro-dução do clientelismo. Se bem existiam obstáculos muitograndes para viabilizar uma proposta inovadora, princi-palmente a necessidade de enfrentar a inexperiência, aausência de um projeto mais global e o comprometimen-to de mais de 90% do orçamento no pagamento do qua-dro de pessoal; a cidade tinha uma tradição participativaque tinha potencialidade de ser canalizada. A opção foi adescentralização do processo decisório, sendo que o pri-meiro passo foi substituir a organização existente.

Tratava-se de criar uma nova forma de relacionamen-to com uma sociedade organizada, segundo Genro(1995:20), “sob os moldes de um clientelismo altamentearticulado, eficiente e populista e que trazia, inclusive,respostas para ansiedades e necessidades de determina-dos setores da população”.

O grande problema que se colocava era a forma deorganização político-administrativa da cidade, que, segun-do o Plano Diretor, estava dividida em quatro regiões (zo-nas comunitárias), sendo considerada por todos uma re-gionalização artificial. Após debates com liderançascomunitárias com o objetivo de definir uma nova regio-nalização que não fosse apenas uma medida de superfí-cie, mas sim uma configuração territorial-espacial, polí-tica e administrativamente, e ainda no plano das intenções,a administração pensou em ampliar para cinco as regiõesda cidade. Entretanto, esta proposta foi rejeitada pelas li-deranças populares, pois não correspondia às necessida-des de organização e participação da comunidade.

Depois de um longo processo de discussão e negocia-ção com as lideranças comunitárias, chegou-se a um de-nominador comum, fixando-se a divisão da cidade em 16regiões e sua subdivisão em 28 microrregiões, dentro deuma perspectiva de levar em conta os fatores territoriais,sociopolíticos e de acesso aos bens públicos, garantindouma representatividade adequada. Aproximadamente 400

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pessoas participaram nas 16 assembléias regionais queescolheram os dois representantes e os dois suplentes decada região da cidade para serem membros do Conselhodo Orçamento Participativo (COP), que tem reuniões pe-riódicas e que é composto por representantes da adminis-tração e da comunidade.

No primeiro ano, a implementação do processo eraextremamente adversa, pois 98% do orçamento do muni-cípio estava comprometido com o pagamento do quadrode pessoal. A administração enfrentou o desafio e formu-lou um método de elaboração do Plano de Investimentosbaseado em critérios gerais para a distribuição de recur-sos. As assembléias de 1989 reuniram 403 participantesque representavam 250 entidades. A comunidade come-çou então a eleger prioridades, mesmo sabendo das res-trições orçamentárias. Criaram-se enormes expectativas,uma vez que a administração, imprevidentemente, reco-lheu as demandas represadas ao longo dos anos, sem cri-térios e metodologia adequados de seleção.

A Engenharia Institucional Inovadora

A comunidade tinha a expectativa de que a adminis-tração pudesse priorizar demandas e realizar obras, o quenão ocorreu. Isto provocou uma tensão na relação com acomunidade, resultando num refluxo de 80% na partici-pação em 1990, colocando em risco a consolidação de umaproposta inovadora. A administração buscou respostas emudanças, visando legitimar a proposta de governo. Nesseano, a condução do processo saiu da Secretaria do Plane-jamento e, através de alterações organizacionais signifi-cativas, passou para a Coordenação das Relações com aComunidade (CRC) sustentada numa concepção de aten-dimento global. No segundo semestre de 1990, a admi-nistração criou o Gabinete de Planejamento (Gaplan) que,junto com o CRC, é vinculado ao Gabinete do Prefeito.Dessa forma, passaram a trabalhar de maneira integrada,demonstrando a importância dada ao Orçamento Partici-pativo. À CRC cabia coordenar todo o processo políticoorganizativo com as comunidades e ao Gaplan a elabora-ção do Plano de Investimentos.

A engenharia institucional proposta representava umaescolha por criar condições políticas e administrativas paralegitimar uma discussão pública e participativa, possibi-litando um salto de qualidade à medida que existia umaestrutura para garantir a legitimidade do processo. A pre-feitura definiu a função de Coordenador Regional do Or-çamento Participativo (Crop), que é um representante dopoder público que acompanha cada uma das 16 regiões,com o objetivo de garantir intervenções integradas nasregiões dando sustentação política e desenvolvendo umacompanhamento das práticas cotidianas das comunida-

des. O trabalho desenvolvido pelos coordenadores regio-nais contribuiu para a implantação gradual do Programade Descentralização Administrativa.

A dinâmica implantada vai sendo modificada, buscan-do-se um aperfeiçoamento da complexa engenharia ins-titucional que está sendo posta em prática. Ainda no se-gundo semestre, são estabelecidos os primeiros critériospara a eleição dos delegados das regiões junto ao Orça-mento Participativo – um para cada cinco pessoas pre-sentes nas assembléias. Em 1992 a proporção foi alteradapara um delegado para cada dez participantes, enquantocanal de articulação das demandas da comunidade e fis-calizador da aplicação das verbas públicas em obras prio-rizadas pelo Orçamento Participativo para cada região.

Em 1989, a prefeitura realizou uma reforma tributária,destacando-se o polêmico projeto que introduziu a progres-sividade no pagamento do IPTU, o que acarretou umcrescimento de 132% em relação ao ano anterior, pos-sibilitando o saneamento financeiro e elevando a capacidadede investimento. Entre 1990 e 1991, aumentou-se acapacidade de investimento para 13% do orçamento, criando,assim, condições de credibilidade para sustentar as propostasda administração, o que repercutiu positivamente, poismaterializou-se uma inversão de prioridades visando atenderà população mais carente da cidade, que representa 40% dapopulação total. No terceiro ano de governo, começam a setornar visíveis as obras pautadas pelo primeiro ano departicipação e o início das obras do segundo ano, sendo quea partir desse momento o processo começou a se reverter. Adiscussão do Orçamento Participativo tornou-se pública. Em1990, participaram 976 pessoas nas Plenárias Regionais,representando 467 entidades. Este número subiu para 3.694(representando 503 entidades), em 1991, e para 7.610participantes (representando 572 entidades), em 1992, últimoano da gestão de Olívio Dutra na prefeitura. O desafio quese colocava desde o princípio referia-se ao fato de que adiscussão do orçamento, ao mesmo tempo em que permitiaa emergência de disputas entre a população, tambémestimulava a busca de negociações como solução políticade caráter distributivista.

A metodologia é consolidada em três etapas. Inicial-mente, a prefeitura elaborou uma proposta, discutiu comas regiões de forma descentralizada e definiu as priorida-des para o investimento. Numa segunda etapa, a admi-nistração formulou a compatibilização entre as priorida-des e os recursos previstos para cada Secretaria numaplenária geral com todos os delegados representantes das16 regiões e, finalmente, foi elaborado um amplo planode investimentos e obras que seriam supervisionados porum Fórum Regional do Orçamento, constituído como umcanal de controle e fiscalização da população organizadasobre os investimentos da cidade. Os fóruns assumiram

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um papel estratégico tanto na articulação como na nego-ciação das demandas de cada região, tendo um papel de-cisivo enquanto instância de pressão sobre a administra-ção. O orçamento passou a ser a mola propulsora de todosos embates populares, sendo que o processo implantadofoi sofrendo mudanças em virtude dos problemas quesurgiram na engenharia institucional proposta na buscade sua legitimação.

A frustração de expectativas no primeiro ano de fun-cionamento provocou questionamentos e uma retraçãopopular. Na busca do aperfeiçoamento da proposta, a pre-feitura agilizou o trabalho da estrutura administrativa eutilizou instrumentos de comunicação mais amplos paraenvolver a população, buscando um maior nível de parti-cipação nos diversos fóruns. Já em 1990, o Conselho doOrçamento Participativo optou por uma política de con-centração dos investimentos, sendo que cinco regiões fi-caram com 70% dos investimentos, o que gerou contro-vérsias no próprio Conselho. Em 1991, foi implantada umanova sistemática, adotando-se a distribuição dos recur-sos por setor de atividade no lugar da política de concen-tração dos investimentos nas áreas de carência máxima.Em 1994, o Plano de Investimentos representou 22,67%do total da despesa da prefeitura, sendo que 75% dos re-cursos foram destinados à regularização fundiária/habi-tação, áreas de risco, pavimentação e saneamento básicoe os outros 25% para investimentos em educação, saúde,transporte e outras atividades. As mudanças na dinâmicade funcionamento são a marca do processo. O crescimentodas Plenárias Temáticas abriram um outro campo de dis-cussão do Orçamento, aprofundando o debate do plane-jamento estratégico tanto nas obras como nas políticassetoriais. As plenárias temáticas foram introduzidas em1994, visando incluir os setores – sindicatos, movimen-tos sociais específicos e instituições da sociedade civil –que não se sentiam atraídos pelo processo existente nasregiões, composto basicamente por moradores, associa-ções comunitárias e instituições locais.

Em 1996, as quatro principais prioridades foram pavi-mentação comunitária, saneamento básico, habitação eregularização fundiária e equipamentos sociais.

O Orçamento Participativo vai gradualmente adquirin-do legitimidade como um instrumento de controle, fisca-lização e indução das práticas do Executivo na definiçãodas prioridades de investimento, apoiado numa estraté-gia fortemente ancorada na valorização dos instrumentosde comunicação com os munícipes. Os diversos meios dedivulgação e de informação sobre as atividades progra-madas, os resultados obtidos e o papel dos conselheirosrefletem a importância dada pela gestão ao fortalecimen-to de um processo interativo e de diálogo com a popula-ção, baseado numa relação muito qualificada.

A engenharia institucional foi sofisticando-se e um dosaspectos mais relevantes na viabilização do OrçamentoParticipativo refere-se aos critérios básicos para a distri-buição de recursos que nortearam o processo. Todos es-tes contemplam os aspectos carência de serviços ou infra-estrutura urbana no contexto de um debate em torno dosinvestimentos necessários, da receita do município, daglobalidade das despesas e das políticas.

As normas definidas são contextualizadas obedecen-do a uma escala de valores representada por pesos e pon-tuações, de forma a garantir uma repartição equitativa ecriteriosa das verbas disponíveis, seguindo um cronogramaque se inicia em março de cada ano, quando são realiza-das assembléias gerais em cada região, nas quais é feitauma avaliação do ano anterior e se inicia uma discussãoem torno da eleição de delegados e das demandas da re-gião. Além disso, o governo presta contas do plano deinvestimentos do ano anterior e apresenta o novo. Seguem-se, a esta assembléia, reuniões intermediárias que, entremarço e junho, mobilizam muito a população dos bairrosou microrregiões para discutir as prioridades de obras queserão apresentadas à administração.

Nos meses de junho e julho, ocorre uma segunda ro-dada tanto das plenárias regionais como das temáticas parauma apresentação do quadro financeiro do município,escolha dos conselheiros no COP e dos delegados e paraa entrega das prioridades de investimentos de cada região.No mês de julho as secretarias municipais elaboram suaproposta orçamentária, que é entregue ao COP no iníciodo mês de agosto. Nos meses de julho e agosto iniciam-se as reuniões do Conselho do Orçamento Participativo,que é composto por 84 membros que foram eleitos nas 16regiões da cidade e nas cinco plenárias temáticas (na pro-porção de dois titulares e dois suplentes). Entre agosto esetembro, o COP discute a proposta orçamentária, que éencaminhada ao prefeito e à Câmara dos Vereadores emsetembro. Entre outubro e dezembro, o Conselho reúne-se com as secretarias para discutir os planos de investi-mentos, baseando-se nos critérios de distribuição de re-cursos para as regiões e nas prioridades temáticasestabelecidas pela comunidade e pelo governo. Elabora-se, então, o Plano de Investimento, que é aprovado no mêsde dezembro pelo Conselho do Orçamento Participativo.Entre janeiro e junho, quando o novo COP assume, estereduz o seu ritmo, limitando-se principalmente a discutira dinâmica do processo e buscando seu aperfeiçoamento.

Alcances e Limites da Experiência

O Conselho representa a síntese de um complexo edemorado processo, baseado numa lógica de permanenteinteração entre o regional e o global, em que ambos ato-

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res interagem permanentemente com base num calendá-rio de decisões a partir das demandas hierarquizadas nosfóruns de delegados. A crescente participação – 10.735pessoas em 1993, 11.247 em 1994 e 14.267 em 1995 –demonstra a vitalidade do processo e os desafios que es-tão colocados para garantir a sua continuidade. Observa-se uma integração na relação da comunidade com a ad-ministração através do COP pautada pelo fortalecimentode uma concepção de governo mais globalizante e unitá-ria. A regionalização existente é um elemento de estrutu-ração para outras políticas e atividades na cidade, alémdo Orçamento Participativo.

Um dos problemas destacados pelo governo é o insu-ficiente engajamento do funcionalismo dentro deste pa-radigma inovador, uma vez que ainda existem conflitosno relacionamento destes com a população. Outra ques-tão constatada pelo governo está relacionada à falta deauto-regulamentação do Orçamento Participativo. Segun-do Lima e Lucena (1996:27), “o que está na lei Orgânicaestá sendo visto por parte do conselho como insuficiente,pois não assegura o direito à auto-regulamentação, nãoreconhece o autonomeado Conselho tanto na relação como Executivo como no estabelecimento de suas própriasnormas de funcionamento”.

A democratização do Orçamento Participativo, de acor-do com os atores intervenientes, abre um estimulante cam-po para:- possibilitar o estabelecimento de um canal propício àdiscussão e à negociação entre a prefeitura e a populaçãoatravés de diversos fóruns;

- democratizar a informação, tornando mais transparen-tes as ações e estimulando o controle popular dos ne-gócios públicos;

- estimular a regionalização, a descentralização e a auto-organização popular, bem como possibilitar um entendimentomais global da cidade pelos movimentos comunitários.

A dinâmica do Orçamento Participativo busca demo-cratizar a gestão enquanto uma nova prática de gestão dacoisa pública. Este espaço de decisão estabeleceu “um tipode contrato social onde direitos e cidadania são os elemen-tos mais centrais para atingir um objetivo coletivo: a bus-ca constante do término das exclusões e desigualdades nacidade, com inversão de prioridades através do atendimentopreferencial de demandas sociais das camadas mais po-bres” (Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1996a).

O processo de participação adquire uma linguagem euma prática de ruptura com o corporativismo territorial-mente determinado, com ênfase numa lógica presidida poruma abordagem universal da cidade. A concepção de ges-tão implantada é legitimada pela própria população e trazà tona a complexa construção de um processo em que o

método e o regulamento são elementos chaves, pois blo-queiam o clientelismo e obrigam as lideranças comunitá-rias a pensar a sua região num contexto mais abrangente.Isto implica, basicamente, a necessidade de ruptura com asua visão “geográfico-corporativa, que tende a abordar acidade de modo completamente fragmentário” (Genro,1995:23).

A experiência de Porto Alegre mostra que tanto o Exe-cutivo quanto o Legislativo perdem parte do seu poder deintervir no orçamento: o primeiro ao ver-se informalmen-te obrigado a seguir as diretrizes de uma iniciativa que elepróprio propôs; e o segundo, por não poder contrariar fron-talmente uma decisão em boa medida representativa dosanseios da população, rompendo com uma tradição clien-telista e tornando o orçamento transparente.

Esta dinâmica de participação permite, como parte in-tegrante do planejamento da cidade, o surgimento de es-paços reais de explicitação dos direitos coletivos, que, porsua vez, ampliam o espaço de legitimidade da adminis-tração e garante a continuidade de uma proposta político-administrativa progressista, quebrando a espinha dorsaldo clientelismo e do populismo.

Os resultados de pesquisas realizadas sobre as formasde participação da população (Fase; Cidade; CRC/CMPA,1995) mostram que existe uma avaliação positiva do pro-cesso decisório sobre as obras e serviços, assim como sobrea dinâmica de prestação de contas pelo governo munici-pal. O aperfeiçoamento do processo resulta das tensõesque surgiram na relação do Executivo municipal com osmovimentos mais organizados nos primeiros anos da pri-meira gestão, à medida que não se concretizavam os ob-jetivos acordados.

Atualmente, a legitimidade do Orçamento Participati-vo é inquestionável, inclusive internacionalmente,1 con-figurando-se como um espaço participativo democrático,representando um ponto de inflexão na própria culturapolítica da vida associativa. Trata-se de uma nova vivên-cia das práticas comunitárias, em que a população temum envolvimento pedagógico com atitudes democráticasno processo decisório, desvinculando-se da dependênciade posturas tutelares convencionais. A população apren-de não só a se articular na defesa dos interesses locais,como também a negociar numa perspectiva de fortaleci-mento da cidadania ativa.

BELO HORIZONTE: A REPRODUÇÃODE UMA EXPERIÊNCIA BEM-SUCEDIDA

O Contexto da Experiência

Com uma plataforma baseada na abertura da adminis-tração à participação popular, o Partido dos Trabalhado-

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res assumiu, em 1993, a prefeitura de Belo Horizonte.Neste contexto, a proposta de implementação do Orça-mento Participativo ganhou uma importância estratégicanão só por ter sido uma das principais bandeiras de cam-panha, mas também por ser uma iniciativa que vai de en-contro às inovações administrativas que buscam umamaior aproximação entre o poder público e a população.Cumprir esse objetivo significava, segundo o prefeito elei-to, “desmontar a idéia das forças conservadoras, de quedemocracia, participação popular e descentralização sãocontrários à ação de um governo eficaz” (Ananias,1995:32).

Na gestão anterior, houve uma tentativa de abertura àparticipação na elaboração da peça orçamentária, porémo método adotado pecava pela falta de ousadia e por re-petir práticas políticas conservadoras, já que estava res-trito à influência de líderes comunitários, o que, segundoAvritzer e Azevedo (1994:14), “terminou por levar aoclientelismo e gerar fortes pressões particularistas”.

Diante deste cenário, a prefeitura de Belo Horizonte,tendo “como referência a experiência desenvolvida emPorto Alegre” (Ananias, 1995:33), implantou, já no seuprimeiro ano de governo, o Orçamento Participativo.

Para que a iniciativa envolvesse toda a cidade e cum-prisse sua meta de criar canais em que a população fosseo ator privilegiado no desenvolvimento do processo, foinecessário pensar numa estrutura administrativa descen-tralizada, para informar a população sobre a situação fi-nanceira do município, sua limitação orçamentária e osrecursos disponíveis para a execução das demandas queserão apresentadas pelos moradores. Para a viabilizaçãodestes objetivos, aproveitou-se a divisão da cidade emadministrações regionais.2

Estas administrações regionais subvidiram-se em mi-crorregiões, às quais cabia mobilizar os seus moradorespara apresentarem e discutirem suas demandas, num pro-cesso desenvolvido em três etapas:- na primeira, são apresentados os dados referentes à situa-ção financeira do município. Neste momento é passadoum quadro rigoroso das despesas e receitas manipuladaspela administração municipal, bem como dos recursosdisponíveis para a realização dos investimentos;

- na segunda, ocorre a apresentação do quadro socioeco-nômico de cada região, com relação à sua infra-estruturaurbana e de serviços, sob a responsabilidade da adminis-tração municipal. Ainda nesse momento, distribui-se umquestionário, em que a população envolvida aponta suasdemandas sociais;

- na terceira e última etapa, discutem-se as obras elenca-das nos questionários e são eleitos os delegados que fa-rão parte do Fórum Regional. Os delegados eleitos de-

sencadeiam um processo pelo qual, de posse das reivin-dicações apontadas nos questionários, percorre cada umadas microrregiões para se certificarem da emergência eimportância social de cada uma das necessidades deman-dadas pela população.

Após essas etapas, a administração regional processaas demandas recolhidas e visitadas nas microrregiões.Nesse momento, com base nos recursos disponíveis, osdelegados definem as necessidades que serão atendidas.É nesse espaço que ocorre a negociação de prioridadesentre as microrregiões. Trata-se de um momento em queas situações ganham visibilidade, possibilitando acordoscom base no significado social de cada uma das reivindi-cações.

Nos Fóruns Regionais elegem-se os delegados para o“Encontro Municipal de Prioridades Orçamentárias”,3 bemcomo uma comissão que não só se encarregará de acom-panhar o andamento das obras na sua região,4 como tam-bém estará junto à Câmara Municipal para acompanhar aexecução da peça orçamentária e a prestação de contasque será efetuada pelo Governo.

O processo de elaboração do Orçamento Participativoencerra-se com a realização do “Encontro Municipal dePrioridades Orçamentárias”, onde os delegados eleitos nosFóruns Regionais discutem, no âmbito municipal, todasas demandas definidas em cada uma das nove regiões.Nesse momento, articula-se a visão setorial/regional comuma visão ampliada da cidade, com suas carências e comas intervenções necessárias para a melhoria de qualidadede vida e ampliação do exercício da cidadania. É a popu-lação orientando o Estado a atuar de forma mais eficazno atendimento de suas reivindicações.

A etapa seguinte é a de submeter a peça orçamentáriaà Câmara Municipal. Convém lembrar que o orçamentopúblico historicamente vem sendo alvo de barganha en-tre parlamentares e poder público. A forma tradicional demanipulação do orçamento é uma fonte de subsistênciade práticas de clientelismo e uma forma de se constituirbase de apoio de governos no Legislativo.

Porém, no caso de Belo Horizonte, a mobilização po-pular e a repercussão desta iniciativa acabaram criandouma clima de constrangimento para os vereadores aves-sos à nova experiência. Desde o seu início, o OrçamentoParticipativo vem sendo aprovado integralmente pelaCâmara Municipal.

Uma Cronologia da Participação eos Resultados da Experiência

A implantação do Orçamento Participativo pode serconsiderada um sucesso em se tratando do envolvimentoda população e da destinação de recursos para as iniciati-

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vas demandadas. Os números alcançados desde a primei-ra experiência apontam que, em 1993, envolveu-se nasrodadas de discussão do orçamento previsto para o anode 1994 um total de 15.716 pessoas, representando emtorno de 800 entidades organizadas. Neste primeiro ano,o volume de recursos distribuídos entre as nove regiõesfoi em torno de US$15.000.000,00 (Prefeitura Municipalde Belo Horizonte, 1993 e 1996a).

No segundo ano (1994), 28.263 pessoas participaramda discussão do orçamento para o exercício em 1995,incluindo novamente em torno de 800 entidades organi-zadas. Neste momento, o volume de recursos destinadosalcançou R$18.000.000,00 (Prefeitura Municipal de BeloHorizonte, 1993 e 1996a).

No terceiro ano da experiência, quando discutiu-se apeça orçamentária para 1996, o número de pessoas en-volvidas chegou a 38.508, significando um considerávelcrescimento em relação ao primeiro ano. O volume derecursos destinados é de R$33.000.000,00, o que repre-senta 83% acima daquele referente ao ano anterior.

Neste ano, ocorre também a experiência do Orça-mento Participativo para a área de habitação, que seestrutura à imagem e semelhança do Orçamento Parti-cipativo geral. Para essa iniciativa, destinaram-se R$6.000.000,00, que foram utilizados na construção demoradias e na urbanização de lotes através do Movi-mento dos Sem-Casa.

A discussão do Orçamento Participativo para a áreade habitação aglutinou 13.762 pessoas nas administraçõesregionais, que, somadas às outras 38.508 do orçamentogeral, totalizaram 52.900 pessoas, representando um cres-cimento de 236,5% em relação ao primeiro ano da expe-riência.

No quadro de atendimento às demandas oriundas daparticipação popular, o resultado do levantamento feitopela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (1996b) atéo dia 13 de março de 1996 revela que, do total de reivin-dicações em 1993 – aprovadas para o ano de 1994 –, 92,4%já foram atendidas ou estão em fase de conclusão, sendoque o restante enfrenta entraves legais referentes à licita-ção ou à elaboração de projetos.

Do que foi demandado em 1994 – aprovado para o Or-çamento de 1995 –,75% já foram atendidos ou estão emfase final, enquanto o restante ainda enfrenta os percal-ços relativos à licitação e à elaboração dos projetos. Dasprioridades aprovadas no Orçamento para o ano de 1996,de acordo com dados levantados até o mês de março, 77%encontram-se em fase de execução.

Do total demandado nos três primeiros anos da expe-riência de Orçamento Participativo, podem ser destaca-dos, por ordem: saneamento, pavimentação e drenagem,urbanização de vilas e favelas, saúde e educação.

Dificuldades e Alcances da Experiência

A limitação dos recursos frente às necessidades dapopulação é, sem dúvida, a maior dificuldade enfrentadana experiência de elaboração do Orçamento com Partici-pação Popular. Muitas são as demandas prioritárias, sen-do que a ausência de um volume de recursos que se adequeàs demandas faz com que se definam critérios que seleci-onem, dentro do quadro de pauperização social, os inves-timentos prioritários.

No caso de Belo Horizonte, esse problema soma-se aoque Patrus Ananias (1995:34) chamou de “falta de umavisão estratégica de cidade”, que está sendo superado coma elaboração de “um plano de prioridades que a própriaPrefeitura estabelece em função de algumas obras funda-mentais”.

Com relação ao comportamento do Legislativo, o su-cesso da experiência acabou obrigando os parlamentaresresistentes à idéia a não só aprová-la, como também a seincorporarem à nova prática de elaboração orçamentária.Estes parlamentares tinham anteriormente na elaboraçãodo orçamento municipal uma fonte de barganha para prá-ticas clientelistas com o atendimento de demandas pon-tuais em locais de influência de seu grupo político.

Até o momento, os orçamentos que foram discutidos edefinidos nas plenárias populares foram aprovados inte-gralmente pelos vereadores. A mudança de cultura e umcerto enquadramento pela pressão popular são reveladosna voz de João Paulo Gomes, vereador de oposição e atualpresidente da Câmara Municipal de Belo Horizonte: “nin-guém é bobo de ir contra a vontade popular” (Revista Veja,1996:35).

O constrangimento e a oposição inicial de parte signi-ficativa dos vereadores foram substituídos pela necessi-dade de se integrarem ao processo para não correrem orisco do isolamento político. Para tanto, estimulam os seusaliados a participarem das plenárias e a negociarem pre-viamente suas demandas com alguns setores organizados.

Avritzer e Azevedo (1994:25) analisam que “esta bus-ca de adaptação a um novo cenário indica também umacerta mudança nas práticas tradicionais. O resultado des-se processo não é simplesmente a substituição de práti-cas clientelistas por relações políticas democráticas, masformas de relacionamento do Estado com a sociedade ci-vil, que, apesar de ‘novas’ oferecem espaços para ‘velhas’práticas tradicionais”.

A Câmara Municipal de Belo Horizonte não se colo-cou como barreira à iniciativa devido à repercussão po-pular. Os setores avessos à inovação, ao invés de se con-traporem como tradicionalmente fazem, acabaram por seintegrar ao debate nas próprias plenárias, o que é saudá-vel para a democracia, já que nessas arenas públicas há

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espaços para a comparação de práticas e objetivos políti-cos por intermédio do debate de idéias, quando coloca-das de maneira transparente.

Com relação às mudanças no comportamento da po-pulação, o Fórum Regional – última etapa após a discus-são nas microrregiões –, vem se constituindo num espaçode criação de uma nova cultura política na relação do poderpúblico com os moradores de diferentes camadas sociais(Revista Veja, 1996).5 Um fator significativo é que aspessoas estão passando a ver a cidade como um espaçode todos e não mais de forma regionalizada e compar-timentada socialmente.

O DESAFIO DE FORTALECER UMACIDADANIA ATIVA NA GESTÃO DAS CIDADES

Esta análise centrada nas bem-sucedidas experiênciasde Porto Alegre (duas gestões) e Belo Horizonte (1ª ges-tão) traz à tona os desafios enfrentados na consolidação elegitimação pelos cidadãos do Orçamento Participativo.O efeito multiplicador do Orçamento Participativo é ine-gável, pois, atualmente, já são diversas as administraçõesmunicipais que estão adotando esta dinâmica de gestão.A experiência consolidada de Porto Alegre é emblemáti-ca, trazendo para o centro do debate provavelmente umdos componentes de maior complexidade na consolida-ção de propostas descentralizadoras para uma adminis-tração municipal.

O crescimento da experiência de cidadania, propicia-do pela consolidação do Orçamento Participativo, é umaferramenta de democratização da gestão pública dentrode uma ética comunitária que rompe com os velhos pa-drões de relação de interesses. A dinâmica estabelecida,tanto em Porto Alegre como naquelas cidades onde a ad-ministração assume o Orçamento Participativo como parteestratégica de sua forma de governo, busca também rom-per com as características de cumplicidade que freqüen-temente se estabelecem entre administrações progressis-tas e movimentos organizados, e que podem gerar tensõesde relacionamento.

O processo de participação implantado adquire gra-dualmente uma linguagem e uma prática de ruptura como corporativismo territorialmente determinado, enfatizan-do uma lógica presidida por uma abordagem universal dacidade.

O tema da participação passa a ser tratado de formacada vez menos voluntarista, ao se definir as diferençasexistentes na própria dinâmica implantada pelas políticassetoriais. Para estas administrações, torna-se cada vez maisclaro o fato de que a consolidação de instâncias de parti-cipação exige um longo e complexo processo de fortale-cimento da engenharia institucional, necessária para a

compreensão pedagógica da sua lógica de intervenção paraa maioria da população.

A experiência de Porto Alegre mostra que o nívelde contradições e de complexidade existente em rela-ção aos diferentes agentes envolvidos não pode ser es-camoteado com soluções de conveniência política numaperspectiva apenas classista e particularizada. Isto foisendo sedimentado numa estratégia que, se por um ladonão exclui os setores organizados, tampouco lhes dáum tratamento diferenciado. Existe uma preocupaçãoda administração no sentido de articular e compensaros aspectos tanto objetivos – carências – como aquelesmarcados pela subjetividade, que é inerente a um pro-cesso participativo.

A experiência multiplicadora de Porto Alegre, que vemobtendo resultados positivos na política de inversão deprioridades através da implantação do Orçamento Parti-cipativo, está diretamente vinculada à capacidade dasadministrações de criarem canais legítimos de participa-ção, combinando elementos da democracia representati-va e da participativa.

A ênfase das diversas prefeituras que assumem o Or-çamento Participativo enquanto instrumento de democra-tização da gestão está na necessidade de garantir um acessopermanente à informação a toda a população para asse-gurar o controle social da administração pública e ampli-ar o nível de co-responsabilização dos cidadãos, a partirda definição conjunta de um calendário e de um planeja-mento das etapas do processo.

Deve-se considerar também que, em virtude da fragi-lidade do tecido associativo, parece bastante lógico queos processos participativos tenham ainda pouca ressonân-cia junto à população e a muitos movimentos sociais, emrelação tanto à divulgação de informações quanto à dis-cussão de problemas locais. A dinâmica do processo de-pende, principalmente, dos mecanismos de comunicaçãoutilizados pelo poder público e das estratégias de relacio-namento, bem como das metodologias participativas. Trata-se de um processo freqüentemente marcado por tensões,pois, devido à ditadura das carências e das urgências,emergem contradições e incompreensões não somente entreos habitantes, mas também com os membros do Legislati-vo Municipal, que muitas vezes sentem sua representati-vidade junto à comunidade onde atuam ameaçada.

O que se observa nas administrações de Porto Alegree Belo Horizonte, aqui analisadas, é que seu sucesso rela-ciona-se ao fato de atuarem no sentido de induzir a orga-nização da população em todos os níveis, de modo quesua relação com o poder público seja a mais qualificadapossível.

Este processo de gestão através do ingresso da cidada-nia organizada na máquina do Estado possibilita conhe-

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ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: CO-RESPONSABILIDADE NA GESTÃO DAS CIDADES

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cer seu funcionamento e suas limitações e estimula aconstrução de uma relação de co-responsabilização ede debates para produzir consensos cada vez mais qua-lificados.

Conforme Avritzer e Azevedo (1994), os saldos doOrçamento Participativo, enquanto processo político, sãoo aprendizado de exercício da democracia pelos partici-pantes do processo, a divulgação das formas de decisãodo orçamento ao nível da Administração e do LegislativoMunicipal e até mesmo a incorporação de uma preocupa-ção com a transparência por parte dos técnicos da admi-nistração municipal.

As transformações político-institucionais aqui apre-sentadas abrem um estimulante espaço para a constru-ção de uma nova institucionalidade que tem na partici-pação um componente importante para o fortalecimentoda oferta citadina na gestão da coisa pública. As di-mensões diferenciadas de participação mostram a ne-cessidade de superar ou conviver com certos condicio-nantes sociopolíticos e culturais, à medida que o saltoqualitativo começa a ocorrer a partir de diferentes en-genharias institucionais que “têm uma progressiva pe-netração de formas públicas de negociação dentro dalógica da administração pública, renovando os poten-ciais do exercício da democracia” (Avritzer e Azeve-do, 1994:28). Isto também reforça a importância depensar a participação como um método de governo quepressupõe a realização de certas precondições neces-sárias à sua viabilização dentro do possível, dadas ascaracterísticas da cultura política brasileira.

Os complexos e desiguais avanços revelam que estasengenharias institucionais, baseadas na criação de condi-ções efetivas para multiplicar experiências de gestão par-ticipativa que reforçam o significado da divulgação dasformas de decisão e de consolidação de espaços públicosdemocráticos, ocorrem pela superação das assimetrias deinformação e pela afirmação de uma nova cultura de di-reitos. Estas experiências que denominamos inovadoras,fortalecem a capacidade de crítica e de interveniência dossetores de baixa renda, através de um processo pedagógi-co e informativo de base relacional, assim como a capa-cidade de multiplicação e aproveitamento do potencial doscidadãos no processo decisório dentro de uma lógica nãocooptativa.

Entretanto, estas experiências que inovam na relaçãoEstado e sociedade civil ainda estão longe de representarum paradigma de significativa repercussão no atual quadrobrasileiro, principalmente em virtude da falta de vontadepolítica dos governantes e da fragilidade do tecidoassociativo. Os grupos organizados que interagem epressionam representam iniciativas fragmentárias que nãoatingem o cerne de uma sociedade refratária a práticas

coletivas.6 A realidade brasileira é marcada por configurarum contexto de baixa institucionalização, em que a maioriada população pouco se mobiliza para explicitar suadisposição de utilizar os instrumentos da democraciaparticipativa, visando romper com o autoritarismo socialque prevalece. Além disso, destaque-se o fato de a maioriadas organizações sociais serem ou relativamente frágeisou extremamente especializadas, tendendo a estabelecerrelações particularizadas e diretas com a administraçãopública local.

Os desafios para ampliar a participação estão intrin-secamente vinculados à predisposição dos governoslocais de criar espaços públicos e plurais de articula-ção e participação, nos quais os conflitos se tornamvisíveis e as diferenças se confrontam, enquanto baseconstitutiva da legitimidade dos diversos interesses emjogo. Isto nos remete à necessidade de ter como refe-rência, não só suficiente mas necessária, uma engenha-ria institucional legítima aos olhos da população, quegaranta espaços participativos transparentes e pluralis-tas, numa perspectiva de busca de eqüidade e justiçasocial configurada pela articulação entre complexida-de administrativa e democracia.

O que estas experiências também mostram é que o alar-gamento da cidadania está associado a uma proposta degarantia da governabilidade, como atestam as reeleiçõesem prefeituras progressistas.7

NOTAS

1. Porto Alegre foi uma das 40 cidades escolhidas para apresentar sua prática deadministração pública na Conferência Habitat II – 3 a 14 de junho em Istambulna Turquia. Na ocasião a prefeitura apresentou a experiência do Orçamento Par-ticipativo, que foi selecionada entre 600 práticas urbanas de diversos países.

2. São nove no total e essa estrutura já existia no governo anterior. As regio-nais são: Barreiro, Centro-Sul, Leste, Nordeste, Noroeste, Norte, Oeste,Pampulha e Venda Nova. O critério adotado pela prefeitura para destinar osrecursos que serão disponibilizados para a elaboração do orçamento partici-pativo em cada uma das regiões é de 50% distribuídos igualmente entre elase os outros 50% distribuídos conforme o tamanho e a renda da população decada uma das regiões.

3. Neste fórum os delegados trocam experiências e tomam conhecimento de to-das as demandas por região. Aqui também os participantes entregam formalmenteao prefeito os planos de obras da região.

4. Esta comissão denomina-se Comforça – Comissões Regionais de Acompa-nhamento e Fiscalização do Orçamento Participativo.

5. Segundo a reportagem, uma psicóloga moradora de um bairro de classe médiaconta que perdeu seu tempo percorrendo gabinetes oficiais na tentativa de con-seguir obras de urbanização no local onde possui um terreno. Só conseguiu su-cesso organizando seus vizinhos e indo às plenárias do orçamento participativo.No primeiro ano conseguiram levar sua reivindicação até o Fórum Regional, po-rém o grupo abriu mão em função de outras com emergência social mais rele-vante. No segundo ano conseguiram aprovar a demanda no orçamento e a obrajá foi realizada.

6. Santos (1993) desenvolve uma provocante reflexão (notadamente no capítuloIII – Fronteiras do Estado Mínimo) sobre as mazelas da cultura política brasilei-ra e as barreiras a uma participação mais ativa .

7. Em 1992, onze prefeituras administradas pelo PT foram reeleitas, dentre asquais Porto Alegre e Santos.

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GESTÃO PÚBLICA E PARTICIPAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DO ORÇAMENTO...

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GESTÃO PÚBLICA E PARTICIPAÇÃOa experiência do orçamento participativo

em Porto Alegre

possibilidades democráticas, ou seja, supõe-se que a úni-ca via para a racionalização da política seria a da comple-xificação da administração pública (Azevedo e Avritzer,1994:3).

Habermas tenta escapar de tal dilema, argumentandoque o problema da complexificação social é distinto da-quele referente à democratização. O problema da racio-nalização administrativa, decorrente da burocratização,poderia ser compensado através da concomitante racio-nalização dos processos interativos e comunicativos, sendoque, para tanto, a ação dos movimentos sociais tornar-se-ia fundamental como instância mediadora entre Estado esociedade. Dessa forma, seria possível alcançar um nívelmais elevado de participação ativa da cidadania, produ-zindo tensão positiva entre burocracia e participação (apudAzevedo e Avritzer, 1994:4-5). Acredita-se, portanto, napossibilidade de superar os limites da democracia repre-sentativa, através de mecanismos que ampliem a mobili-zação da sociedade civil em diferentes dimensões da vidasocial, com o objetivo de aumentar a participação siste-mática dos cidadãos organizados em movimentos sociaismovidos por princípios não meramente corporativos, in-tegrando espaços de discussão e de negociação capazesde manifestarem-se não apenas no âmbito de consultas,mas também no de definição de demandas e de sua pro-blematização.

Esta formulação acompanha a tendência epistemoló-gica dominante nas últimas décadas, afastando-se dasabordagens abrangentes em direção às analíticas. Estas,por sua vez, acham-se, em geral, associadas a uma con-cepção da política em que a transformação social é con-cebida como resultado não de rupturas, mas, ao contrá-rio, de mudanças permanentes que operam no âmbito da

revisão conceitual que vem ocorrendo na Socio-logia há, pelo menos, duas décadas e que emer-ge da crítica ao centralismo e autoritarismo pre-

sentes no socialismo real produz alterações em termos nãosó dos conceitos, mas também do que se deveria conside-rar a boa sociedade. Nesse sentido, observa-se o desloca-mento de conceitos como desenvolvimento, classes so-ciais, planejamento e Estado do Bem-Estar, sendo estessubstituídos por outros, tais como movimentos sociais, au-tonomia, sociedade civil, poder local, democracia parti-cipativa e descentralização, que passam a ocupar lugarcentral nas Ciências Sociais dos anos 80. O conflito Esta-do versus sociedade civil assume centralidade na expli-cação das lutas sociais. Rejeitam-se, porém, abordagensracionalista-totalizantes – responsáveis, segundo alguns,por engendrarem perspectivas de intervenção social decaráter centralizador via maior participação, através danegociação, do consenso e da racionalização da intera-ção. Rejeitam-se, sobretudo, fórmulas tecnocráticas, já quecaracterizariam o privilegiamento da esfera estatal e aforma correspondente de planejamento baseada na abor-dagem técnica assentada no domínio monopolístico da in-formação e do saber.

Destaca-se, assim, o delineamento de uma nova formade conceber a relação Estado-sociedade. Ao se privilegi-ar o pólo sociedade civil, busca-se mostrar as suas virtu-des, capacidade de mobilização e de autonomia e, princi-palmente, seu potencial democratizador.

Contribuição significativa da nova abordagem é, pre-cisamente, o desafio à concepção pessimista, expressa novelho dilema proposto por Weber, de que à crescente com-plexificação social seguem-se crescente burocratização/centralização e a conseqüente restrição da cidadania e das

A

SÔNIA M. G. LARANGEIRA

Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS

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esfera local/individual. Neste sentido, emerge uma novaconcepção de democracia que visa superar os evidenteslimites da democracia formal, expressos na apatia/alie-nação política dos cidadãos no contexto de crescente dis-tanciamento entre governo e sociedade. A proposta seria,portanto, a de estender o conceito de cidadania, tendo emvista não só incorporar novos atores sociais tradicional-mente excluídos da participação social mais ampla, mastambém ampliar a natureza da participação no sentido deintegrar os cidadãos aos diferentes níveis do processo dedecisão político-administrativa. Nessa perspectiva, o lo-cal constituir-se-ia em espaço privilegiado, uma vez quepermite viabilizar de forma mais concreta a relação entregoverno e sociedade. Como já afirmara Castells: “O mu-nicípio... é o órgão do Estado mais permeável a uma re-presentação política das classes dominadas... Foi essa per-meabilidade na oposição das esquerdas que deu à políticamunicipal seu caráter de vanguarda na longa marcha daesquerda através das instituições democráticas” (Castells,1980:1.269).

A preocupação com o local corresponde igualmenteao desejo de ruptura com as formas centralizadas de ges-tão que, a despeito de caracterizarem-se, em geral, porpadrões tecnoburocráticos/autoritários de gestão, não raro,permitem o surgimento de padrões paternalistas/cliente-listas, quando não corruptos, de conduta na administra-ção pública.

De outro lado, a preocupação com a gestão local de-corre da reivindicação de autonomia das cidades, a partirdo pressuposto de que as mesmas devem desenvolvercompetência própria, especialmente no que se refere àexecução de programas sociais – tais como os de mora-dia, de saúde, de educação e de meio ambiente –, em faceda crise que atinge os Estados centrais e da qual não es-capam as próprias cidades, expressa na crise fiscal e deserviços, na degradação das condições de vida e na pre-sença constante da violência.

Algumas experiências ilustrativas, especialmente naEuropa – casos de Bolonha, na Itália, de Barcelona, naEspanha, de Lyon, na França –, surgidas com a ascensãode grupos de esquerda ao governo comprometidos com aperspectiva de descentralização administrativa e partici-pação popular, têm-se constituído em objeto privilegiadode observação e análise, permitindo uma discussão maisconsistente em torno das possibilidades de implementa-ção dos novos princípios, os quais, precisamente pela no-vidade, oferecem oportunidade para debates e controvér-sias. Nesse sentido, merecem atenção questões quediscutem, por exemplo, a forma e a natureza da partici-pação da sociedade civil. Ou seja, busca-se responder auma série de questões, tais como: qual deve ser a formade participação dos cidadãos, direta ou representativa?

Qual a natureza dessa participação – consultiva ou deli-berativa –, ou seja, deverá assumir um caráter definidorde políticas ou apenas de orientação/influência no pro-cesso de tomada de decisão? Quais devem ser, ao excluí-rem-se as máquinas partidárias, os canais e as formas deacesso ao aparato administrativo? De que forma tornarviável a participação dos cidadãos, além das divisões par-tidárias? Qual deve ser a extensão daquela participação,ou seja, que setores da administração (e em que medida)poderiam ser submetidos à influência/decisão da socie-dade civil?

Junto a essas questões, emergem outras que decorremde orientação político-administrativa e que se referem àrelação administração municipal e partido político que lhedá sustentação. No caso das administrações de esquerda,surge a questão “para quem governar”, ou seja, deve ogoverno orientar-se pelas demandas dos setores popula-res ou pelas da sociedade como um todo? Em conseqüên-cia, quais deveriam ser as prioridades de governo e quemas define? Além dessas, poder-se-ia igualmente citar asquestões que envolvem a relação Estado central e estadolocal, bem como aquelas relativas aos problemas de fi-nanciamento necessários à implementação do novo pro-jeto.

O presente artigo tem como objetivo levantar algumasdessas questões, tendo como foco de análise o Orçamen-to Participativo implantado pela prefeitura de Porto Ale-gre na administração do Partido dos Trabalhadores, nosperíodos de 1989-92 e 1993-95.

GESTÃO PARTICIPATIVA

A concepção do Orçamento Participativo em Porto Ale-gre, instituído em 1989 pela administração municipal quefoi eleita por uma frente popular liderada pelo Partido dosTrabalhadores, fundamenta-se teoricamente no movimentode renovação/revisão conceitual anteriormente referido.

Nessa perspectiva, a implementação do OrçamentoParticipativo tem como um dos princípios orientadores aampliação da democracia, através de mecanismos capazesde superar os limites restritos da democracia representativa– que se expressariam na apatia/alienação política doscidadãos num contexto de crescente distanciamento entregoverno e sociedade. A proposta seria, portanto, a deestender o conceito de cidadania, tendo em vista não sóincorporar novos atores sociais tradicionalmente excluídosda participação social, mas também ampliar a naturezada participação no sentido de integrar os cidadãos aosdiferentes níveis do processo de decisão político-administrativa.

A esfera do orçamento público enquadra-se de formaexemplar no espírito daqueles objetivos, uma vez que o

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orçamento constitui-se em instrumento de importânciafundamental para a gestão estatal, como expressão da pro-dução do fundo público (política tributária e de receitas)e da forma como tal produto é apropriado e distribuído.No Brasil, o orçamento público constitui-se em peça for-mal, cujo acesso é restrito a pequenos grupos de técnicosque justificam o monopólio das decisões através dapseudo-objetividade/neutralidade. A ausência de transpa-rência e de fiscalização favorece a manipulação de recur-sos em benefício de grupos, expressando exemplarmenteas práticas patrimonialistas de gestão do Estado e o aces-so clientelístico aos recursos públicos. Intervir, portanto,na elaboração da peça orçamentária supõe intervir noâmago de uma cultura política, por um lado, rompendocom o clientelismo e, por outro, desmitificando o sabertecnocrático, desvendando o funcionamento da máquinado Estado e as formas de captação e de aplicação de re-cursos, bem como demonstrando as possibilidades de dis-tribuição mais equitativa.

Além disso, a intervenção na elaboração do orçamen-to permitiria proceder a uma pretendida inversão de prio-ridades, no sentido de proporcionar às populações maiscarentes – às vilas sem infra-estrutura de serviços deágua, esgoto, transporte, pavimentação – acesso prio-ritário às suas demandas, não através de favorecimen-tos, mas sim a partir do estabelecimento de critériosobjetivos.

O Orçamento Participativo passa então a ser visto pelaadministração como elemento crucial na transformaçãodas relações Estado-sociedade: a participação da popula-ção organizada no processo de planejamento do investi-mento municipal permitiria maior transparência à açãogovernamental, ao mesmo tempo em que contribuiria paraa constituição de novos sujeitos políticos. Dessa forma,seria possível superar a consciência clientelística vigentenos dois pólos da relação Estado-sociedade.

Conforme citado anteriormente, o Orçamento Parti-cipativo foi implantado em Porto Alegre em 1989, numcontexto de completa inexperiência com iniciativas queenvolvessem a participação popular. Para sua conse-cução, a cidade foi dividida em 16 regiões, cujos limi-tes foram traçados em função da presença de entidadesde moradores e da geografia dos movimentos sociais.Nesse sentido, uma região não seria uma medida desuperfície, “mas um espaço de uso social e de organi-zação comunitária” (Orçamento Participativo de PortoAlegre, 1995:18). Nesse aspecto, verifica-se clara dis-paridade na proporcionalidade populacional das refe-ridas áreas, uma vez que, por exemplo, a região 01-Ilhas– com uma população de 5.163 habitantes (dos quaisquase a totalidade é classificada como população ca-rente) – tem o mesmo peso de decisão da região 16-

Centro – com 306.595 habitantes (dos quais apenas7.586 são considerados carentes).

Em 1994, buscando superar alguns dos limites dessetipo de participação, a prefeitura alterou substantivamen-te a constituição do Orçamento Participativo, introduzin-do a participação das Plenárias Temáticas, representandocinco esferas relevantes da vida social: Saúde e Assistên-cia Social; Transporte e Circulação; Educação, Lazer eCultura; Desenvolvimento Econômico e Tributação; eOrganização da Cidade e Desenvolvimento Urbano (sub-temas Meio Ambiente e Saneamento; e Urbanismo e Ha-bitação). Criaram-se, assim, possibilidades de participa-ção a outros segmentos sociais – sindicalistas, organizaçõesgovernamentais e não-governamentais, partidos polí-ticos, empresários, estudantes, movimentos culturais ecidadãos –, não necessariamente organizados no mo-vimento comunitário e com demandas distintas daque-las imediatas, próprias das populações carentes. O ob-jetivo foi o de ampliar o âmbito das discussões doOrçamento Participativo, no sentido da formulação deum planejamento estratégico para a cidade e de políti-cas setoriais, por áreas. A operacionalização do pro-cesso do Orçamento Participativo verifica-se basica-mente em três etapas:- debate nas reuniões regionais e nas plenárias temá-ticas: realiza-se, em cada região (mês de abril) e emreuniões plenárias temáticas (mês de maio), uma primei-ra rodada de reuniões plenárias abertas ao público, comdireito a voto, desde que maiores de 16 anos e moradoresda região. Nestas reuniões, a administração municipal, coma presença do prefeito e demais membros do governo,comparece para apresentar a prestação de contas do Pla-no de Investimentos do ano anterior e o Plano de Investi-mentos do ano em curso, bem como para esclarecer sobreos critérios e métodos para a elaboração do OrçamentoParticipativo. Entre as chamadas primeira e segunda ro-dadas, ocorrem reuniões intermediárias, contando com apresença de assessores comunitários da administração, nasregiões (mês de maio) e nas plenárias temáticas (mês dejunho), quando a população define prioridades, hierarquizaobras, define políticas setoriais e elege os delegados (umdelegado eleito para cada dez moradores presentes na reu-nião preparatória de cada região ou temática e que cons-tituirá o Fórum dos Delegados do Orçamento Participati-vo, com atribuições fiscalizadoras e consultivas). OExecutivo participa apresentando informações técnicas,assim como suas demandas institucionais (Plano de In-vestimentos-1995, Prefeitura Municipal de Porto Alegre,Orçamento Participativo-1996). A seguir, realiza-se asegunda rodada de assembléias regionais ou temáticas(mês de junho e julho), quando, de um lado, o Executivoapresenta a estimativa de receita e de despesa (pessoal,

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Carências de Serviços ou Infra-Estrutura Peso 3

Até 25% Nota 1

De 26% a 50% Nota 2

De 51% a 75% Nota 3

De 76% em Adiante Nota 4

População em Áreas de Carência Máxima

de Serviços ou Infra-Estrutura

Até 4.999 Habitantes Nota 1

De 5.000 a 14.999 Habitantes Nota 2

De 15.000 a 29.999 Habitantes Nota 3

Acima de 30.000 Habitantes Nota 4

População Total da Região Peso 1

Até 49.999 Habitantes Nota 1

De 50.000 a 99.999 Habitantes Nota 2

De 100.000 a 199.999 Habitantes Nota 3

Acima de 200.000 Habitantes Nota 4

Prioridade da Região Peso 3

Da Quarta Prioridade em Diante Nota 1

Terceira Prioridade Nota 2

Segunda Prioridade Nota 3

Primeira Prioridade Nota 4

custeio dos serviços e investimentos) e, de outro, a co-munidade encaminha suas prioridades com obras hierar-quizadas de cada região, enquanto as temáticas mostramas propostas de obras estruturais e prioridades de servi-ços e políticas setoriais. Neste momento, constitui-se tam-bém o Conselho do Orçamento Participativo (COP), in-tegrado por representantes eleitos em cada região e emcada temática (dois representantes titulares e dois suplentespara cada região e para cada temática, num total de 42,além de dois representantes da administração municipal,um do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre e umda União das Associações dos Moradores de Porto Ale-gre), com atribuições de propor, fiscalizar e deliberar so-bre receita e despesa do Poder Municipal;

- compatibilização do orçamento: após a discussão comas plenárias regionais e temáticas, cada órgão da Admi-nistração elabora a sua proposta orçamentária. O conjun-to dessas propostas e as prioridades apresentadas pelapopulação são compatibilizadas para formar a primeiraversão da matriz orçamentária a ser discutida pelo COP.A proposta final é entregue à Câmara de Vereadores nomês de setembro;

- detalhamento do orçamento: nos meses finais do anosão detalhados os diversos investimentos por regiões eos investimentos gerais propostos pelas plenárias te-máticas.

Nesse processo, destaca-se como um dos aspectos fun-damentais do Orçamento Participativo a erradicação depráticas clientelistas e patrimonialistas na alocação derecursos públicos. Este objetivo definiu a preocupaçãocentral da administração em estabelecer critérios para aeleição das prioridades das diferentes regiões a serem in-corporadas no orçamento. Dessa forma, depois de anosde experiência concreta, em que alguns critérios foramabandonados (grau de mobilização popular e importân-cia da região para a organização da cidade), enquantooutros foram integrados (prioridade da região), estão,hoje, em vigor quatro critérios básicos: carência deserviços ou infra-estrutura urbana da região; popula-ção em área de carência máxima de serviço ou de infra-estrutura da região; população total da região; priori-dades da região.

A preocupação com a objetividade na distribuição derecursos acarretou a utilização de uma escala de valoresrepresentada por pesos e pontuações, no sentido de garan-tir uma distribuição justa e criteriosa das verbas disponí-veis, entre as regiões. Assim, a cada critério é atribuídauma nota de 1 a 4 (por exemplo, se a região tem alta ca-rência em pavimentação, recebe nota 4 em carência deinfra-estrutura). Além disso, é atribuído um peso (de 1a 3) a cada critério, representando sua importância relati-

Peso 2

Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre/Gabinete de Planejamento da Prefeitura – Gaplan.

QUADRO 1

Critérios e Notas

va, segundo a avaliação do Orçamento Participativo (ocritério carência de serviços ou infra-estrutura urbanada região tem recebido peso máximo). Ao final, compu-tam-se as notas e os pesos, que são confrontados com asprioridades de cada região, formando a base de cálculopara a distribuição dos investimentos (Orçamento Parti-cipativo de Porto Alegre, 1995:30-5). Tais critérios, maisou menos consagrados, podem, no entanto, ser revistos a cadaano, por ocasião da constituição de um novo Conselho.

O processo de tomada de decisões quanto ao orçamentorealiza-se num contexto de negociação e de consenso entreo COP e o Executivo. As decisões no COP são aprovadaspor maioria simples e posteriormente encaminhadas aoExecutivo. Em caso de veto, retornam ao Conselho paranova apreciação. A rejeição do veto do prefeito exige ovoto de dois terços dos conselheiros, sendo a decisão fi-nal do prefeito municipal (Orçamento Participativo dePorto Alegre, 1995:55). O Conselho se reúne no mínimo

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uma vez por semana; os mandatos têm duração de um ano,sendo passíveis de revogação a qualquer momento.

Apesar de ter como um de seus objetivos centrais a in-versão de prioridades, o Executivo mantém sua autono-mia no sentido de garantir a execução de obras conside-radas necessárias e que estariam fora das demandaspriorizadas a partir de critérios estabelecidos pelo Con-selho do Orçamento Participativo. Nesse sentido, a ad-ministração reconhece sua função enquanto governo detoda a cidade, devendo, portanto, atender a interesses deoutros segmentos sociais, distintos daqueles populares.Ilustra essa posição a manifestação do atual prefeito TarsoGenro: “precisamos realizar reformas na rede de águaem determinados bairros de alta classe média da cida-de. Se os conselheiros populares disserem não, nós deve-mos implementar mesmo assim essa decisão” (Genro,1995:170).

A experiência do Orçamento Participativo tem sidoavaliada de forma bastante otimista pelas administraçõesenvolvidas, sob o argumento de que o mesmo procedeu a

ORGANOGRAMA DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO

Conselhos Populares

Outros Movimentos

Comunitários

Plenárias

Temáticas

COP

Prefeito

Municipal

16 Fóruns de

Delegados

Entidades Comunitárias

Assembléias

(Rodadas)

uma ruptura com uma longa tradição de clientelismo e dedecisões tecnocráticas, que tendia a beneficiar os setoressociais privilegiados, em detrimento dos setores pobresda população. Sem dúvidas, há elementos realmente po-sitivos nessa experiência, como o combate à tendência deoligarquização através do desenvolvimento de um proces-so de sentido educativo, em que o cidadão responsabili-za-se pela coisa pública participando e exercendo fiscali-zação e controle sobre os recursos públicos. Em relação aessa questão, deve-se considerar que a constituição doOrçamento Participativo em 1989 ocorreu num contextoeconômico-financeiro pouco favorável. Nos anos 80, com-parando-se com a década anterior, verifica-se sensível re-dução da receita municipal em relação à renda da cidade.Apesar da queda significativa das receitas correntes daprefeitura, houve um acréscimo expressivo do número deservidores ativos e inativos da administração, reduzindo,portanto, sua capacidade de investimento. A real imple-mentação do Orçamento Participativo dependia, assim, deuma reversão da situação econômica da prefeitura. Em

Fascom

CT

CRC

Asseplas

Secretarias Gaplan

CROP

Moradores da Região

Entidades de Classe

Gaplan – Gabinete de Planejamento da PrefeituraAsseplas – Assessorias de Planejamento dos Órgãos de GovernoCRC – Coordenação das Relações com a ComunidadeCROP – Coordenadores Regionais do Orçamento Participativo

CT – Coordenadores TemáticosCOP – Conselho do Orçamento ParticipativoFascom – Fórum de Assessorias Comunitárias

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periência na administração pública, que resultaram na fi-xação de metas muito superiores aos recursos financeirosa ela destinados e mesmo à capacidade operacional daPrefeitura” (Augustin, 1994:53).

Quanto aos desencontros internos da administração,estes referem-se, entre outros, à existência de discordân-cias entre a Secretaria do Planejamento (inicialmente res-ponsável pela implementação do Orçamento Participati-vo, “ainda com a hegemonia das concepções tradicionais”)e a Secretaria da Fazenda. Havia, bem como à insatisfa-ção por parte dos setores responsáveis pela relação entreGoverno e movimentos populares, que sentiam-se enfra-quecidos na tarefa de efetivar a experiência do Orçamen-to Participativo.

Tais problemas levaram a uma alteração na estruturaorganizacional da prefeitura: a responsabilidade pela ela-boração do orçamento foi retirada da Secretaria de Pla-nejamento e deslocada para o Gabinete de Planejamentoda Prefeitura (Gaplan) e para a Coordenação das Rela-ções com a Comunidade (CRC), ambos vinculados dire-tamente ao Gabinete do Prefeito. Criaram-se, então, “con-dições políticas e administrativas para avançar nadiscussão sobre concepção de planejamento, hierarquiade prioridades e estratégias de governo” (Orçamento Par-ticipativo, 1995:20). Dessa forma, “O Orçamento Parti-cipativo adquiriu maior visibilidade para a sociedade epara o interior do próprio Governo, respaldado diretamentena autoridade do Prefeito” (Augustin, 1994:54).

Se, por um lado, tal reestruturação contribuiu para omelhor funcionamento do Orçamento Participativo, poroutro, devem ser consideradas também as possíveis con-seqüências para a autonomia do movimento popular, ten-do em vista a proximidade com o Gabinete do Prefeito.2

Em relação a essas dificuldades, deve-se mencionar quea chamada administração popular inicia a implementaçãode um instrumento de participação direta da população,sem definir uma política em termos de sua proposta, de

TABELA 1

Investimentos na Despesa Total daAdministração Centralizada(1)

Porto Alegre – 1989-95

Anos Proporção dos Investimentos (%)

1989 3,21990 10,01991 16,31992 17,01993 9,71994 15,01995 13,4

Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Secretaria Municipal da Fazenda.(1) Dados referentes ao orçamento.

1989, ao assumir a prefeitura, a administração contavacom apenas 3,2% do orçamento para investimentos. Obaixo patamar desse percentual colocava em risco a pre-tensão de sustentar uma estratégia de intervenção popu-lar e deveria ser, portanto, revertido.

A administração partiu então para uma política de recu-peração financeira com base na reforma tributária, orienta-da pelo princípio de justiça fiscal. O foco dessa políticafoi a alteração de alíquotas, introduzindo a progressivi-dade no pagamento das taxas do Imposto Territorial Ur-bano (IPTU), a atualização de outras taxas municipais –como a coleta de lixo e a indexação mensal de tributosanteriormente pagos em parcelas fixas –, bem como o au-mento da eficiência da fiscalização tributária. Nos anosseguintes, a prefeitura conseguiu colher os frutos do sa-neamento financeiro empreendido.1 Somente com a alte-ração da alíquota do IPTU, houve um crescimento de suareceita de 132%.

Entretanto, os problemas surgidos na operacionaliza-ção do Orçamento Participativo não se devem apenas àsdificuldades econômico-financeiras que atingiam a pre-feitura. Segundo avaliações credenciadas, a experiênciado primeiro ano de funcionamento do Orçamento Parti-cipativo mostrou-se frustrante: “muito pouco do plano deobras foi realizado. Por exemplo, dos 42km de pavimen-tação comunitária previstos nenhum foi completado na-quele ano” (Augustin, 1994:53; grifado no original). TarsoGenro refere-se ao ano de 1990 como representativo de“uma queda trágica” na experiência do Orçamento Par-ticipativo (Genro, 1992:42). Segundo depoimento deliderança da União de Vilas da Grande Cruzeiro, zonasul de Porto Alegre, “as obras planejadas não aconte-ceram, a coisa nesse aspecto piorou...”(Prates e Pereira,1992:28).

Tais problemas teriam sido gerados por “uma série dedesencontros internos à Administração... e à própria inex-

TABELA 2

Participação do IPTU na Composição da Receita da PrefeituraPorto Alegre – 1989-92

Anos IPTU

1989 8,741990 6,341991 13.771992 15,931993 12,901994 11,711995 12,52

Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Secretaria Municipal da Fazenda.

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seus objetivos, das possíveis alternativas de participaçãoe, principalmente, sem definir sua posição em face da re-lação classes populares e demais segmentos sociais. Esseúltimo aspecto constitui-se em permanente dilema paraas chamadas administrações populares, já que impõe a res-posta à questão: qual é a natureza do governo? Trata-sede um governo dos e para os trabalhadores, ou um gover-no que representa os trabalhadores e que governa a cidadeno interesse de toda a sociedade? A avaliação sobre o graude democracia alcançado depende da resposta a essaquestão. Se a proposta for definida em termos de go-verno para toda a cidade, a restrição de participaçãoapenas aos setores populares pode excluir amplos seg-mentos sociais.

No caso em análise, a constituição do processo de par-ticipação da sociedade civil verifica-se de forma restrita,a partir da integração de grupos já mobilizados em movi-mentos sociais de periferia. Tal critério condicionou adivisão da cidade nas 16 regiões, conforme anteriormen-te descrito. O fato de ter partido de uma concepção departicipação social restrita tem implicações.

A proposta que no discurso fundamenta-se na idéia deampliação das práticas democráticas através da transfor-mação das relações Estado-sociedade, de fato, limita-seao atendimento de reivindicações pontuais de movimen-tos comunitários de áreas carentes, o que se traduz na reali-zação de obras de necessidade imediata. Conforme opi-nião insuspeita de um dos responsáveis pelo funcionamentoatual do Orçamento Participativo: “As próprias comuni-dades aumentam ou reduzem a sua participação de anopara ano, havendo clara tendência à redução da partici-pação após a conquista das reivindicações mais emergen-ciais.”

Por outro lado, tal abordagem mantém o risco do cor-porativismo quanto à conduta do Conselho, o que muitasvezes se expressa pela preocupação restrita à “minha rua”,ao “meu bairro”, ao “meu grupo”, deixando de lado pro-blemas mais gerais da cidade e do país. Como afirmaBobbio, “a dimensão do grupo não pode deixar de cor-responder à dimensão dos problemas: os problemas quecompetem ao comitê de bairro não podem ser, não digoos grandes problemas nacionais, mas nem mesmo os pro-blemas gerais da cidade” (Bobbio, 1987:70).

A atual administração buscou superar esse tipo de pro-blema através de iniciativas como o projeto denominadoCidade Constituinte (1993), o qual propunha-se a discu-tir, com amplos setores da população, os rumos de longoprazo para o município. Outra iniciativa no sentido deampliar a abrangência de atuação do Orçamento Partici-pativo diz respeito à sua intervenção na área de gastospúblicos compulsórios, como o Gasto com Pessoal (cer-ca de 62% do orçamento). Para tanto, foi constituída uma

comissão paritária formada pelo Sindicato dos Munici-pários, pelo Conselho do Orçamento Participativo e pelaadministração, tendo em vista definir a política de pes-soal e a política salarial do município, em relação a fun-cionários e vereadores.

Outro aspecto que está sendo considerado refere-se aofato de que os recursos públicos estaduais venham tam-bém a ser objeto de discussão, a partir da utilização deespaços existentes como as emendas populares e osConselhos Regionais de Desenvolvimento, previstospela Constituição Estadual e que poderiam intervir nadefinição quanto à captação e à distribuição de recur-sos públicos.

Na verdade, ao apontar-se a abrangência restrita do Or-çamento Participativo em Porto Alegre, bem como oimediatismo das demandas dos setores que dele parti-cipam, devem se ser considerados a extrema desigual-dade da sociedade brasileira e, em conseqüência, ocontexto de carências e de exclusão em que vivem ossetores populares.

Outra questão a ser referida nesta apreciação diz res-peito às relações do Conselho do Orçamento Participati-vo e da Câmara Municipal, a qual detém atribuições rela-tivas à discussão, votação e aprovação do orçamentomunicipal.3 Como bem destaca Daniel (1994), torna-senecessário evitar que as tarefas do Conselho sobreponham-se às competências da Câmara, especialmente no momentoem que a consolidação do sistema democrático exige ofortalecimento do poder Legislativo em face do Executi-vo. No caso de Porto Alegre, o Orçamento Participativonão está regulamentado por lei e, segundo Augustin(1994), a prefeitura encontraria forte resistência da Câ-mara para fazê-lo, já que a consolidação do OrçamentoParticipativo constituir-se-ia “em ameaça aos agentespolíticos tradicionais”.

De fato, a experiência do Orçamento Participativo,abrindo canais de comunicação entre a administração e apopulação, provocou um esvaziamento do papel desem-penhado por alguns vereadores de agenciadores de clien-telas junto ao Poder Público, atuando através do enca-minhamento de reivindicações, acompanhamento deprocessos e outras formas de exercício de influência e tu-telagem. Segundo Fedozzi, tal resultado justifica o cli-ma de confronto (“às vezes quase ‘físicos’”) crescente entre“grande parte dos Vereadores e setores dos movimentoscomunitários” (Fedozzi, 1996:245).

Entretanto, a polêmica sobre o Orçamento Participati-vo estende-se também a setores no interior do próprio Par-tido dos Trabalhadores e refere-se a divergências sobre aquestão da legalização daquela experiência.

A administração atual (ao contrário da anterior) opõe-se à sua legalização, sob o argumento de que a relevância

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de tal experiência estaria no seu auto-regramento, na açãoespontânea direta, não delegada e “cujas regras forjaram-se na ação conjunta do movimento e da administraçãopública. Legalizá-lo seria subordiná-lo a uma maioriahostil da Câmara de Vereadores, aprisioná-lo em regrasdemandando disputas e querelas judiciais, quebrando aespontaneidade e sua renovação anual que lhe dá umasaudável e constante tensão” (Pont, s/d:4).

Os que discordam dessa posição argumentam que amanutenção da espontaneidade poderia, ao contrário, re-presentar um risco de criar distorções próximas às práti-cas patrimonialistas.

Quanto aos movimentos populares, suas reações pare-cem responder às influências do poder municipal: ao fi-nal da primeira administração houve mobilização dosmovimentos comunitários em favor da legalização; hoje,no entanto, há adesão dos movimentos à posição contrá-ria da administração (Fedozzi, 1996:290).4

CONCLUSÕES

O Orçamento Participativo constitui-se um exemplo deimportantes inovações para a administração pública bra-sileira, como, por exemplo, a instituição da transparênciana gestão dos recursos públicos e, em conseqüência, oabandono de práticas clientelísticas, responsáveis peloatraso político-social da sociedade. Rompe, também, coma visão estatista-assistencialista que caracteriza a concep-ção do Estado do Bem-Estar, rejeitando, ao mesmo tem-po, a tese neoliberal do Estado mínimo. Ao contrário, tornao Estado público no sentido de permitir formas diretas departicipação da população.

Igualmente relevante nesse processo tem sido a pro-posta de inversão de prioridades, que favorece o atendi-mento às demandas de populações mais carentes. Nesseprocesso, cabe destacar o papel importante desempenha-do pela população na definição de suas próprias priorida-des. Ao assumir o governo em 1989, a administração ti-nha como prioridade o transporte coletivo – o quedeterminou a intervenção da prefeitura nas empresas pri-vadas de transporte coletivo logo no início da gestão.Chamada a manifestar-se através do Orçamento Partici-pativo, não foi essa a escolha da população, sendo quesuas prioridades têm sido saneamento, pavimentação eregularização fundiária. Nesse aspecto, cabe destacar quea ênfase no saneamento (também manifesta, por exemplo,pela população de Belo Horizonte) constitui-se contribui-ção importante da participação popular, já que essa é umaárea pouco atraente aos políticos profissionais (Azevedoe Avritzer, 1994:22).

No entanto, o otimismo na avaliação desse instrumen-to de democratização está baseado em evidências empíri-

cas, que dizem respeito a demandas específicas de neces-sidades básicas de populações carentes. Não respondem,portanto, a questões fundamentais e cujas respostas exi-gem um maior esforço de abstração. Uma dessas ques-tões deveria inquirir sobre razões que explicassem um su-posto melhor desempenho do Orçamento Participativo emface do desempenho da Câmara de Vereadores. Uma pos-sível resposta poderia considerar a condição político-so-cial de seus membros: o fato de não serem políticos pro-fissionais, de serem pessoas de origem social humilde,5

sendo seus representantes eleitos a cada ano, com man-dato revogável. Se argumentos desse tipo viessem a seraceitos, seríamos obrigados a reconhecer uma supostasuperioridade da moralidade popular, o que não se sus-tentaria como explicação. Além disso, sob tal argumen-to, colocar-se-ia em questão o próprio valor das institui-ções políticas modernas, representadas pelos partidos, pelaorganização em função de idéias e não de simples neces-sidades.

Qualquer avaliação exige, portanto, um nível maisabstrato de considerações e, principalmente, o abandonoda dimensão da satisfação das necessidades básicas.

Nesse sentido, caberia retomar a questão da cidadania– freqüentemente invocada a partir de um argumento vir-tuoso. Numa abordagem mais complexa, estudos têmmostrado que o conceito de cidadania contém, hoje, umclaro dilema: a questão da responsabilidade cívica e daigualdade choca-se com o individualismo dominante dassociedades pós-industriais, dominadas pelo consumerismohedonista. Neste sentido, talvez fosse relevante conside-rar de que forma os interesses individuais podem ser sa-tisfeitos na arena social e, da mesma forma, de que ma-neira as responsabilidades sociais mantêm-se na vidaprivada.

Essas considerações não têm outro objetivo senão ode manter uma postura indagadora e crítica, afastada,portanto, das disputas políticas imediatas, que se expres-sam em otimismo ingênuo ou oposição irresponsável, fren-te a experiências inovadoras.

NOTAS

Esta é uma versão revisada do texto apresentado no workshop da Sociedade Bra-sileira de Sociologia, realizado durante a 48a. Reunião Anual da Sociedade Bra-sileira para o Progresso da Ciência, ocorrida em São Paulo, de 07 a 12 de julhode 1996.

1. Deve-se considerar que a situação financeira das prefeituras, em geral, foi bene-ficiada com a reforma tributária da Constituição de 1988, que fez retornar aosmunicípios a arrecadação tributária referente a impostos federais e municipais.

2. Nesse sentido, é importante distinguir a esfera do Estado da esfera da socie-dade. Para tanto, os conselhos populares deveriam constituir-se com indepen-dência em face do Estado, conquistando espaços próprios por sua legitimidadesocial, disputando em igualdade de condições com outras instituições ou articu-lações de cidadãos (Daniel, 1994:27).

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3. A Constituição de 1988 restabeleceu o direito da Câmara de propor emendas dedespesa, desde que indicada a previsão de recursos. O Executivo detém a compe-tência de elaboração do orçamento, respeitando as despesas orçamentárias obriga-tórias, as quais, no caso da Lei Orgânica de Porto Alegre, são de 13% da receitade impostos para a área de saúde, 30% da despesa para a educação e 65% (tetomáximo) das receitas correntes para gastos com pessoal.

4. A Lei Orgânica Municipal, de 1990, garante a participação da comunidade naelaboração do orçamento anual.

5. Dados relativos à população participante do processo do Orçamento Parti-cipativo indicam que a mesma possui, em sua maioria, renda de até cincosalários mínimos e nível de escolaridade de até o 1o grau completo (Fedozzi,1996:218).

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UMA ESTRATÉGIA ECONÔMICA PARA O GRANDE ABC

CELSO DANIEL

Professor de Administração Pública da FGV-SP. Foi prefeito de Santo André. É deputado federal por São Paulo

inda é expressivo, entre lideranças e acadêmicos,o número dos que só têm olhos para as "grandesquestões" nacionais e internacionais. Ao consi-

derarem o quotidiano e a localidade apenas reflexos deuma grande lógica – ou âmbitos de manifestação poucorelevantes da vida social – contribuem, na verdade, paradeixá-los nas mãos do bairrismo e do atraso. Crescem,todavia, em particular no Grande ABC, as vozes dos queapostam na eficácia de uma ação regional que, ao contrá-rio de dar as costas para os grandes temas, aproveite desuas tendências as melhores oportunidades.

Desde logo, convém deixar bastante claro: não se tratade cair no “small is beautifull” (o negócio é ser peque-no), nem tampouco de negar que a realidade local sejafortemente condicionada pelo que ocorre nos níveis in-ternacional e nacional, mas sim de reafirmar que, dadosestes últimos, a sorte da localidade será determinada pelaespecificidade da dinâmica local. De mais a mais, mode-los de ação locais podem, perfeitamente, trazer em seubojo elementos nucleares para soluções mais gerais, ser-vindo como referências concretas para a reinvenção deum modelo de desenvolvimento nacional.

É com certeza bastante difícil romper a letargia e apassividade predominantes na História do Grande ABCcom referência às ações voltadas ao desenvolvimento comemprego, na medida em que se trata de um traço cultural,adquirido como resultado do fato de que as decisões maisimportantes, a esse respeito, vinham sendo tomadas poragentes não enraizados na vida regional (grande empresae governos estadual e federal). Num momento em que taisdecisões não favorecem mais a região, é fundamental es-tabelecer os eixos centrais de uma estratégia regional efi-caz, articulados a partir de duas dimensões simultâneas:

a constituição de uma vontade coletiva regional e a ela-boração e implementação de um plano estratégico de de-senvolvimento sustentado com emprego para o GrandeABC.

A ampliação da consciência regional se expressa, porexemplo, na existência do Fórum da Cidadania e do Con-sórcio Intermunicipal, ambas entidades plurais de alcan-ce regional, que envolvem, de um lado, representantes dasclasses médias, dos trabalhadores e do pequeno e médioempresariado (excepcionalmente, também da grandeempresa) e, de outro, prefeitos e vereadores.

A constituição de uma vontade coletiva regional, par-tindo do que já se acumulou, significa um salto de quali-dade indispensável para o enfrentamento dos desafiospostos pela economia regional, expresso na criação de umarranjo institucional de novo tipo, fruto de uma coalizãoampla que integre, num mesmo espaço público não pura-mente estatal, os poderes públicos e a sociedade civil lo-cais.

A vocação de uma vontade pública única, capaz de falarpelo Grande ABC com legitimidade, remete a dois aspec-tos complementares: em primeiro lugar, a condensaçãode um poder regional com força suficiente para interagirpositivamente com a grande empresa e com os governosestadual e federal; em segundo lugar, a geração de unida-de para a elaboração e colocação em prática de um planoestratégico regional.

Importa destacar que a correta configuração de umarranjo institucional regional deve partir de uma avalia-ção crítica da experiência acumulada das regiões metro-politanas. A reconhecida ineficácia destas acarreta umconjunto de aspectos que cabe recordar: centralização dopoder em torno do governo estadual (em detrimento dos

A

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UMA ESTRATÉGIA ECONÔMICA PARA O GRANDE ABC

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municípios); ausência de participação da sociedade civil;e rigidez da estrutura institucional (em face da qual oGrande ABC desaparece, com suas peculiaridades). Infe-lizmente, a nova legislação, proveniente da Constituiçãode 1988, incorre nos mesmos vícios, razão pela qual énecessário inovar, se o que se deseja é uma ação estraté-gica regional dotada de eficácia.

Nesse sentido, ao lado das características já apontadas(espaço público integrando os poderes públicos e a so-ciedade civil da região), um arranjo institucional de novotipo deve ser flexível o suficiente para dar conta de pro-blemáticas diferenciadas, que requerem o concurso dedistintos níveis espaciais e de poder. Isto poderia ser al-cançado a partir da construção de um núcleo central (com-posto a partir do Fórum da Cidadania e do Consórcio ln-termunicipal), em torno do qual arranjos versáteis seencarregassem de abordar problemas específicos, deman-dando variados recortes institucionais. Desse modo, al-guns assuntos exigiriam a participação da região em con-junto com a prefeitura da capital ou com o governo deEstado, enquanto outros contariam, talvez, com a presen-ça apenas de parte dos municípios do Grande ABC.

Um planejamento estratégico do Grande ABC dotadode eficácia (e não mero estudo técnico encomendado auma consultoria) exige, antes de mais nada, um métodoadequado, composto em torno da articulação de um triân-gulo básico, cujos vértices são o conjunto de propostaspara a região, as condições de governabilidade (isto é, decorrelação de forças favorável à coalizão responsável pelaimplementação das propostas) e a capacidade técnica,política e gerencial necessária à colocação em práticadessas propostas. Obter o equilíbrio de tal triângulo –propostas regionais, governabilidade e capacidade paraimplementá-las – é crucial para fazer desse planejamentouma verdadeira estratégia de ação.

Já se disse que o segredo para a solução de um proble-ma consiste em enunciar corretamente tal problema. Emoutras palavras, a eficácia de um plano regional é função,também, da abordagem adequada dos problemas da eco-nomia do Grande ABC. Convém, nesse sentido, precisartrês pontos relevantes: sua dinâmica econômica presen-te, a relação entre o pequeno e o grande empreendimentoe os fatores relativos à competitividade regional.

A economia do Grande ABC está deixando de ser in-dustrial para se transformar em uma economia baseadano terciário? Ao invés de tentar responder a essa indaga-ção, é muito mais interessante reformulá-la, uma vez quenão dá conta de um elemento essencial, ou seja, da inte-ração dinâmica entre os setores industrial e de serviçosno presente momento.

A visível expansão do terciário demanda uma melhorqualificação de seu perfil e dos determinantes de seu cres-

cimento. O perfil do setor terciário é muito pouco conhe-cido, posto que não há estudos suficientemente desagre-gados a respeito de sua composição interna, que, por na-tureza, é bastante heterogênea: comércio atacadista evarejista (além disso, qual a relação entre o pequeno e ogrande estabelecimento varejista?), serviços pessoais,serviços financeiros, serviços de apoio à produção indus-trial, etc.

Em linhas gerais, o crescimento do terciário dependedo tamanho do mercado. Este, por sua vez, deve-se à darenda per capita e à sua amplitude espacial. Assim, dadaa renda per capita, a expansão do terciário pode ser obti-da a partir da ampliação de seu raio de abrangência espa-cial, incorporando novas “zonas tributárias” (no caso doGrande ABC, por exemplo, a integração de áreas da peri-feria de São Paulo, ou a exportação de serviços culturaispara a capital). Na situação específica da região (que nãoapresenta vocação para o turismo), o campo para esse tipode crescimento do terciário apresenta claros limites.

Por outro lado, também dada a amplitude espacial, aexpansão do comércio e dos serviços depende da rendaper capita. Com isso, não pode restar qualquer dúvida arespeito do papel central do emprego e da renda industriaispara a dinâmica do terciário regional. Por isso, o futurodo comércio e dos serviços (sejam pessoais, financeirosou produtivos) está intimamente ligado ao destino da in-dústria regional, em particular o complexo automotivo (emface de seu potencial de geração de emprego direto e in-direto).

A DUPLA CONVERGÊNCIA

Freqüentemente retorna ao debate uma contraposiçãoentre os defensores da grande empresa e os partidários dapequena empresa, quanto às questões do desenvolvimen-to e emprego. Tendências recentes, ligadas às mudanças tec-nológicas, às relações de trabalho e ao comportamento domercado, evidenciam a emergência de articulações de novaqualidade entre o pequeno e o grande capital industrial.

Uma série de estudos empíricos, envolvendo regiõesde várias partes do mundo e publicados na revista Economyand Society, apontam para três direções principais. Emprimeiro lugar, há um crescimento rápido e bem-sucedi-do de distritos industriais baseados em redes interdepen-dentes de pequenas empresas, que apresentam respostaságeis e inovadoras frente aos requerimentos do mercado,sustentadas numa combinação de cooperação e conflitoentre as firmas individuais.

Em segundo lugar, a busca de produtos mais especializa-dos e processos de produção mais flexíveis tem levado gran-des multinacionais a descentralizar sua operação e estreitarlaços com fornecedores, em geral espacialmente próximos

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em função da facilidade de contatos, interações quotidianase possibilidade de redução do custo dos estoques.

Esses desenvolvimentos – procura sintetizar Zeitlin(1989) – “vêm produzindo uma dupla convergência dasestruturas de grandes e pequenas firmas, na medida emque pequenas firmas nos distritos industriais constroemformas mais amplas de serviços comuns, freqüentemen-te inspirados pelos modelos das grandes firmas, enquan-to as próprias grandes firmas crescentemente procuramrecriar entre suas subsidiárias e subcontratadas as re-lações de colaboração características dos distritos in-dustriais. A tendência final é o papel crescentementeativo dos governos locais na promoção do emprego, nofornecimento de serviços industriais e na orquestraçãode desenvolvimento econômico regional, em parte comoresposta às duas primeiras tendências, em parte em fun-ção da eficácia declinante da gestão macroeconômicae da crescente retração do Estado de Bem-Estar nacio-nal em muitos países".

As referidas experiências internacionais, em sua diver-sidade, sugerem ainda que o sucesso das estratégias lo-cais requer um grau elevado de confiança mútua e de con-senso social entre os vários setores envolvidos (governos,empresas e sindicatos de trabalhadores).

Tudo indica que tais orientações são bastante apropria-das para o setor industrial do Grande ABC, exigindo aconstituição de uma coalizão ampla que, partindo dosinteresses conflitantes, permita produzir consensos rele-vantes entre os atores públicos e privados envolvidos.Esses consensos devem basear-se, de um lado, no estrei-tamento das relações da grande empresa com fornecedo-res locais e nas negociações com seus trabalhadores e, deoutro, na criação de estruturas cooperativas de serviçoscomuns para que a pequena empresa tenha acesso a fi-nanciamento, informações e economias de escala, capa-citando-a para respostas flexíveis e inovadoras às exigên-cias mutáveis dos mercados local, nacional e internacional.

Convém observar, nesse sentido, um desdobramentode importância no que tange à política industrial: o inte-resse do conjunto da região aponta para a exigência deuma política solidária no âmbito das cadeias produtivaslocais. Tal é o caso do complexo automotivo, no qual épreciso compatibilizar os estímulos à produção de veícu-los, bens de capital, partes e peças. Propiciar vantagensàs montadoras em detrimento de suas fornecedoras locais– como vem ocorrendo pelas medidas do governo federal– corresponde a “cobrir um santo descobrindo outro”, poisdesestrutura uma parcela da cadeia produtiva e produzdesemprego regional irreversível, que se agrega ao de-semprego tecnológico.

As transformações tecnológicas e gerenciais, num qua-dro de manutenção da jornada de trabalho e de estagna-

ção ou crescimento lento da produção, vêm acarretandoum aumento no número de trabalhadores desempregados,excluídos do setor industrial moderno. Parte destes podeencontrar emprego – provavelmente de menor qualidade– no setor terciário em expansão. Viabilizar alternativaspara os restantes é condição necessária para manter suaqualidade de vida e, mais do que isso, para que a regiãonão perca seu valioso patrimônio de força-de-trabalhoqualificada.

Portanto, é fundamental, por um lado, garantir, educa-ção e capacitação profissional capazes de permitir a re-conversão e a atualização desses trabalhadores e, por ou-tro, implementar políticas públicas que estimulem acriação de pequenas empresas e cooperativas autogestio-nárias de trabalhadores, agregando às habilidades já exis-tentes mecanismos de capacitação gerencial e financia-mento de atividades que explorem os nichos de mercadonão ocupados na região do Grande ABC.

CUSTOS, BENEFÍCIOS E COMPETITIVIDADE

A economia urbana ensina que uma cidade, após atin-gir certo tamanho, passa a apresentar efeitos úteis (vanta-gens econômicas) associados à aglomeração urbana, istoé, à proximidade espacial de atividades e pessoas. Porém,na medida em que a cidade continua a crescer, movidapor tais economias de aglomeração, atinge-se um pata-mar a partir do qual passam a se manifestar determinadasdesvantagens econômicas, denominadas deseconomias deaglomeração.

Tanto as economias quanto as deseconomias de aglo-meração compõem-se de custos e benefícios. As primei-ras envolvem, por exemplo, redução de custos de trans-portes e comunicação (fruto da proximidade espacial) ecriação de benefícios como porte de mercado (que viabi-liza novas atividades), oferta de mão-de-obra em quali-dade e quantidade ou melhoria de qualidade de vida (aces-so dos moradores a novos bens e serviços). Já asdeseconomias, além de anular certos benefícios – a exem-plo da qualidade de vida –, incluem a escassez de terre-nos, a elevação de seus preços, congestionamentos, po-luição, enchentes, etc.

Convém recordar, neste ponto, que a perda relativa departicipação do Grande ABC nas economias paulista ebrasileira remonta à década de 70 (conforme mostram osdados do IBGE), derivada justamente da ocorrência dealgumas deseconomias de aglomeração (a mais importan-te das quais parece ter sido a escassez e o alto custo dos ter-renos). Tal tendência, por conseguinte, inicia-se antes daemergência das grandes greves que originaram o novo sin-dicalismo brasileiro a partir da região (algo que os críticosdesse sindicalismo preferem convenientemente omitir).

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Portanto, um dos fatores que explica o crescimento deuma cidade ou, ao contrário, a reversão de tal tendência, éo balanço, em dado momento, entre as economias e dese-conomias de aglomeração, do qual deriva uma composi-ção de custos e benefícios que tende a atrair atividades epessoas ou a repeli-los. Na perspectiva de uma empresaou indivíduo, a decisão a respeito de sua localização espa-cial é função – de modo análogo – de sua percepção a pro-pósito das vantagens e desvantagens locacionais apresenta-das pelas cidades (suas economias e deseconomias deaglomeração) e pela sua posição e função no sistema urba-no, cujo resultado é maior ou menor acessibilidade a insu-mos produtivos ou a mercado consumidor. Aqui também,por conseguinte, um balanço entre custos e benefícios.

Dados certos requisitos locacionais, a atratividade deuma aglomeração urbana depende do balanço entre van-tagens e desvantagens que ela apresenta, em termos decustos e benefícios. Por isso, o uso da expressão "CustoABC" para designar as condições de competitividade daregião é rigorosamente equivocado, por captar apenas umlado das referidas vantagens e desvantagens (o dos cus-tos), omitindo os benefícios.

Tal engano expressa uma fragilidade conceitual que nãoé, contudo, inocente: a mistificação da realidade – atravésdo realce dos custos e da omissão dos benefícios – serve aopropósito de justificar, de um prisma unilateral, toda redu-ção de custos salariais e tributários inspirada nas teses neo-liberais da liberdade de mercado e do Estado mínimo.

É indispensável, a bem do rigor conceitual, abordar osfatores que definem a maior ou a menor atratividade deuma região urbana a partir de uma visão sistêmica, e nãoparcial. A noção de competitividade sistêmica regional,que associa seus custos aos benefícios, responde de ma-neira adequada a essa exigência. Nessas condições, pas-sar do diagnóstico – a constatação de uma tendência àperda de atratividade na indústria e a ganhos no terciário– para a proposição de ações, visando a melhoria das con-dições de competitividade sistêmica, supõe uma estraté-gia orientada, simultaneamente, para a redução dos cus-tos regionais e para o aproveitamento do potencial debenefícios econômicos que a região possa apresentar.

Os requisitos locacionais para a instalação de empre-sas e a geração de empregos variam no espaço e no tem-po. Em termos espaciais, eles são condicionados à posi-ção e à função da região no sistema urbano, remetendo àsua dinâmica econômica: os requisitos de localizaçãonuma aglomeração urbana com vocação industrial distin-guem-se daqueles onde predominem atividades de turis-mo, comerciais, etc.

Do ponto de vista temporal, os requisitos locacionaisvariam de acordo com fatores como o padrão tecnológi-co e as relações de trabalho prevalecentes. Assim, as ne-

cessidades de localização industrial durante o período na-cional-desenvolvimentista – marcado pela produção emmassa (padronizada) a partir das tecnologias oriundas da2a Revolução Industrial e da divisão de trabalho taylorista– diferem daquelas postas pelas tendências recentes, emque se destaca a produção pós-fordista, voltada ao atendi-mento de demandas diferenciadas no mercado, articuladaà nova revolução tecnológica (na informática, na biotec-nologia, etc.) e a modelos de gestão que redefinem rela-ções com fornecedores e requerem uma força-de-trabalhomais qualificada e versátil.

Nesses termos, portanto, é fundamental o acesso à mão-de-obra com o perfil de qualificação exigido. Do mesmomodo, a proximidade espacial de fornecedores (alternativaao fornecimento "global") ou a existência de estruturascooperativas que – ao oferecer serviços administrativos,financeiros ou mercadológicos – viabilizem o acesso dapequena empresa a mercados mais amplos, constituemvantagens locacionais de novo tipo. Isso não significa, éclaro, que todos os requisitos de localização se alteremde uma hora para outra. Deseconomias de aglomeração,como congestionamentos ou escassez e alto custo deterrenos, por exemplo, mantêm sua relevância. O essencial,em face dessas continuidades, é não perder de vista asimportantes transformações em curso.

O exame sistêmico dos custos e benefícios relativosao grau de atratividade econômica do Grande ABC colo-ca em relevo a existência de contradições entre eles. As-sim, a redução de custos salariais (tida por muitos comocondição para a competitividade regional) conflita com apreservação e a expansão do mercado regional, fonte dodinamismo do terciário, que demanda elevação do nívelde renda e emprego e, portanto, do poder de compra dosassalariados da indústria.

De modo análogo, a priorização exclusiva das monta-doras de veículos – expressa pela redução dos custos deimportação de insumos e bens de capital, por meio de alí-quotas de importação muito baixas, valorização cambialou juros altos – contradiz uma política industrial voltadaà sustentação de todo o complexo automotivo (e, por con-seguinte, das montadoras, bem como de seus fornecedo-res locais, responsáveis por parcela importante da rendae do emprego gerados). A diminuição dos custos tributá-rios locais (com vistas à atração de empresas e ao estímu-lo à competitividade), por sua vez, conflita com a manu-tenção de um nível de investimento público compatívelcom a produção de vantagens locacionais de relevo, tam-bém responsáveis pela competitividade (educação, trans-porte, renovação de centros comerciais, apoio à pequenae à média empresas, etc.).

Em outras palavras, é impossível garantir, simultanea-mente, todas as reduções de custos e criação de benefíci-

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os capazes de aprimorar as vantagens regionais de locali-zação. Por isso, é necessário efetuar escolhas – ainda queestas correspondam a soluções de compromisso ante ascontradições existentes.

MODELOS DE DESENVOLVIMENTO

Frente aos condicionamentos mais amplos, ditados pelaglobalização dos mercados e por inovações tecnológicasou de gestão, abre-se um campo de possibilidades que tor-na não apenas viável, mas necessária uma opção entrerumos possíveis. Assim como, no plano nacional, o esgo-tamento da estratégia desenvolvimentista exige a imple-mentação de outra, a partir do debate plural entre dife-rentes caminhos (pois não é verdade que haja apenas oneoliberal), no nível regional a superação do tradicionalimobilismo dos atores públicos e privados (condição paraescapar do sucateamento da economia do Grande ABC)torna inescapável a adoção de um modelo de desenvolvi-mento regional calcado em ações inovadoras.

Tendo em vista a existência de contradições entre de-terminados custos e benefícios econômicos da região, anecessidade de escolhas torna clara a possibilidade deoptar por modelos de desenvolvimento distintos, susten-tados em princípios e valores específicos. Uma das alter-nativas, que pode ser chamada de "solução de mercado",funda-se no valor da liberdade econômica. A outra, quepassa pela constituição de uma coalizão regional ampla epluralista, ancora-se no valor da cidadania.

Um modelo de desenvolvimento regional orientado por"soluções de mercado" busca inspiração na idéia de "CustoABC" e, portanto, na defesa de medidas que permitamreduzir os custos regionais, omitindo ou tornando secun-dários os benefícios potenciais do Grande ABC. Nessalinha, seria imprescindível a redução dos custos salariaise tributários, através da neutralização das formas clássi-cas de "intervenção" sobre o mercado (e, portanto, sobrea liberdade econômica): os sindicatos e o Estado – no caso,os governos locais.

Um componente importante de tal modelo consiste nacrença de que, para manter a grande empresa (sobretudoas montadoras) na região, seria preciso concentrar esfor-ços, antes de tudo, na redução de seus custos, o que, alémdos já citados, significaria baratear o fornecimento glo-bal de insumos e bens de capital. Não é difícil antever osresultados de uma estratégia que jogasse todas as suas fi-chas na "modernização" das montadoras através da redu-ção dos custos regionais: permanência da grande empre-sa, com queda drástica de fornecedores locais, do númerode trabalhadores, de seus salários e dos tributos locais.Como resultado da diminuição do nível de renda e em-prego do setor industrial, ocorreria um declínio acentua-

do da atividade no setor terciário, o que, por seu turno,produziria nova redução da renda e do emprego.

Ao lado de tal círculo vicioso, haveria também umaperda em termos da qualidade de vida e outros benefícioseconômicos (capacitação profissional, combate a con-gestionamentos e enchentes, etc.), fruto da diminuição dosrecursos orçamentários. Em outras palavras, o Grande ABCseria composto por limitadas "ilhas de excelência" cerca-das por um amplo mar de miséria e exclusão. Do ponto devista macroeconômico, a generalização desse modelo apro-fundaria a guerra predatória entre municípios e regiões,acarretando apenas um jogo de soma zero (isto é, o quealguns ganhassem corresponderia à perda dos outros).

Importa acrescentar, afinal, que as novas tendências con-servadoras, no Brasil e no mundo, agregam ao individualis-mo econômico um corte cultural de rejeição aos não-nati-vos, isto é, aos imigrantes pobres, jogando água no moinhoda exclusão social. Nesse caso, a construção, no imagináriosocial, da identidade local, é posta a serviço da idéia (nega-tiva) de que os males da localidade derivam da presença in-devida dos não-locais (imigrantes, nordestinos, etc.).

A alternativa à crença irrestrita na liberdade de merca-do aposta, por contraste, na valorização dos direitos decidadania. Ao invés da soberania do mercado, trata-se decolocar as relações econômicas a serviço de um modelode desenvolvimento regional que modernize a economiado Grande ABC, defendendo o emprego e a qualidade devida. No lugar da "mão invisível", a regulação social domercado alicerçada em novos espaços públicos constituí-dos com base em uma coalizão regional ampla e plural.

Resgata-se, nessa perspectiva, a noção de competiti-vidade sistêmica regional, considerando iniciativas de re-dução de custos, mas priorizando a busca dos benefíciospotenciais que a região oferece. Ou seja, diante de confli-tos entre custos e benefícios, trata-se, como regra geral,de optar pelos últimos.

Em termos gerais, tal estratégia persegue: o fortaleci-mento dos fornecedores locais da grande empresa (emsintonia com uma política industrial voltada à preserva-ção do complexo industrial); a participação ativa dos sin-dicatos em processos de negociação de salários, empre-go, jornada de trabalho, modernização tecnológica edemocratização das relações de trabalho; a melhoria daqualidade de vida; o combate a deseconomias de aglo-meração (congestionamentos, enchentes); e a ações liga-das à busca de benefícios regionais (educação para o tra-balho, apoio à pequena empresa e ao setor informal),pressupondo capacidade de investimento público e, por-tanto, os correspondentes recursos tributários.

Um modelo de desenvolvimento nesses moldes é ca-paz de produzir um círculo virtuoso na economia regio-nal, pois a sustentação da renda e do emprego industriais, ao

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lado do investimento público, constitui um estímulo impres-cindível à expansão do setor terciário e, por isso, à geraçãode mais renda e emprego no interior do Grande ABC. Talcírculo virtuoso – expressão de um dinamismo próprio daregião – responde pelo fato de que a eventual generalizaçãodesse modelo para outras localidades teria como produtomacroeconômico um jogo de soma positiva, no qual o quealguns ganham não representa perda para outros.

Ademais, a ênfase na geração de renda e emprego paratodos (inclusive, portanto, os excluídos) e na melhoria daqualidade de vida (a partir do investimento social) criacondições para a elaboração de uma identidade local po-sitiva, de caráter inclusivo, baseada na valorização dasvantagens regionais.

Uma vez definidos os termos desse modelo regional, épossível explicitar de maneira consistente as diretrizes pararedução de custos e ganhos de benefícios que aperfeiçoem aatratividade econômica da região.

CUSTOS E BENEFÍCIOS REGIONAIS

São relevantes para a competitividade da região oscustos salarial, tributário, dos fatores logísticos e das de-seconomias de aglomeração. Conforme já se apontou an-tes, a questão do custo da mão-de-obra na região não deveser vista de maneira simplista. Por um lado, salários maiselevados podem perfeitamente ser compensados por maiorprodutividade do trabalho e, por outro, altos níveis derenda e emprego na indústria do Grande ABC constituemmotores de expansão do terciário local. Enfim, o movi-mento sindical – em função de sua representatividade ede sua orientação voltada aos desafios do presente e dofuturo – pode ser legitimamente considerado hoje umavantagem da região (muito ao contrário do que alguns,ainda presos ao passado, insistem em divulgar).

Outro tema que exige tratamento coerente é o dos cus-tos tributários específicos do Grande ABC, pois aqui es-tão em jogo também relevantes benefícios regionais. Énecessário corrigir distorções (por exemplo, convém ca-minhar para a unificação regional de alíquotas do ISS) e,inclusive, definir incentivos à atração de investimentos demodo seletivo (a partir da fixação clara dos setores a se-rem estimulados e das condições para tal, como metas degeração de emprego). Porém, ao mesmo tempo, é impres-cindível manter a carga tributária local num nível compatí-vel com o investimento público voltado à qualidade de vidae ao desenvolvimento regional. É claro que, para o adequa-do retorno a esse investimento, os poderes públicos munici-pais precisam passar por uma reforma administrativa a fimde melhorar a eficiência e a qualidade do serviço público.

Dentre os fatores logísticos importantes para o Gran-de ABC, destacam-se os custos ligados ao transporte ro-

doviário e ferroviário e ao porto de Santos, todos fora doâmbito de atuação direta da região. O essencial, neste caso,é a constituição de uma coalizão regional com força polí-tica para negociar com os governos estadual e federalmedidas concernentes ao interesse local.

As deseconomias de aglomeração incluem congestio-namentos, enchentes e oferta escassa e alto preço da terra.No campo do mercado imobiliário, não há como reverterradicalmente a situação, dados os investimentos já efetua-dos em infra-estrutura e o nível de ocupação do solo. Ape-sar disso, alterações na legislação de uso e ocupação dosolo e na própria lei de proteção aos mananciais (respeita-da a preservação do meio ambiente) poderiam abrir novaspossibilidades, sobretudo a pequenas empresas. A redu-ção dos custos provocados por enchentes passa por inves-timento público local e, principalmente, estadual. Já ocontrole dos congestionamentos exige, em especial, açõesnas áreas de trânsito (em função de sua elevada relaçãobenefício-custo) e de transporte coletivo (de modo que amelhoria de sua qualidade permita substituir o transporteindividual). Intervenções no sistema viário, embora tam-bém necessárias, são limitadas (em face do custo proibitivo)e insuficientes (conforme demonstra a frustrada aposta doatual governo da capital na abertura de túneis e avenidas).

Um modelo de desenvolvimento que procure avançarna competitividade sistêmica regional a partir da defesado nível de renda e emprego deve se apoiar, centralmen-te, na obtenção de benefícios econômicos, mais do quena redução de custos do Grande ABC. A realização departe ponderável de tais benefícios, desde logo, dependeda implementação de ações coletivas baseadas na coope-ração entre os diversos agentes públicos e privados e dagarantia de um nível adequado de investimento públicolocal para o financiamento integral ou em parcerias deum conjunto de ações definidas pela estratégia regional.

O elenco de benefícios econômicos potenciais do Gran-de ABC é composto por cinco grupos de fatores: a produti-vidade da força-de-trabalho; os espaços existentes para a com-plementação da matriz interindustrial regional; o tamanhodo mercado; a configuração de um ambiente empreendedorem torno dos diferentes tomadores de decisão (empresários,setor público e sindicatos); e a qualidade de vida.

O mercado de trabalho da região já é, hoje, um valiosopatrimônio, em face de sua quantidade e qualidade. Épreciso, contudo, reconhecer que as novas demandas co-locadas pelo processo produtivo exigem um salto quali-tativo em termos de capacitação da mão-de-obra, a qualdeve estar familiarizada com as novas tecnologias e mo-delos de gestão. Isso é condição, inclusive, para a obten-ção de aumentos de produtividade compatíveis com asustentação do nível de renda e emprego industrial. Paratanto, o Grande ABC necessita de investimentos expres-

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sivos na área de educação voltada ao trabalho, envolven-do diferentes dimensões: ensino básico (inclusive educa-ção de jovens e adultos); capacitação profissional (emcursos da estrutura formal de ensino ou cursos mais rápi-dos voltados diretamente a habilidades profissionais, noensino médio ou de terceiro grau); capacitação gerencial(sobretudo para pequenos negócios); pesquisa e desen-volvimento; etc. Daí a importância da Universidade doABC, sem prejuízo de ações imediatas envolvendo as ins-tituições de ensino existentes.

Em segundo lugar, a implementação de uma políticaregional que localize espaços potenciais de complemen-tação da matriz produtiva do Grande ABC, estabelecendoestímulos objetivos para investimentos em tais espaços,pode se constituir numa relevante vantagem locacional,sobretudo para pequenas e médias empresas, e até para amodernização do setor informal. Tal diretriz inclui estí-mulos à implantação de fornecedores locais de bens e ser-viços às grandes empresas, o aproveitamento de profis-sionais vítimas de desemprego industrial (estrutural ouconjuntural), a integração de empresas informais ao mer-cado formal ou a criação de cooperativas autogestionáriasde trabalhadores. Os estímulos envolvem, por exemplo, oestabelecimento de estruturas de financiamento, de capa-citação (gerencial, de marketing, etc.) ou de oferta, à pe-quena empresa, de serviços que exigem economias de es-cala hoje ao alcance apenas da empresa de grande porte.

Em terceiro lugar, a dinâmica da economia regional –em que se destaca a expansão do terciário – evidencia opapel de relevo cumprido pelas dimensões do mercadoregional. Sua sustentação, conforme já se asseverou, éfunção, em primeira instância, do nível de renda e em-prego da indústria local. Seu crescimento, por outro lado,depende do alargamento das fronteiras espaciais do mer-cado regional para além do Grande ABC, integrando no-vas zonas tributárias da periferia de São Paulo, ou mes-mo das áreas mais centrais da capital (no caso daconstituição de um pólo cultural de peso na região).

Em quarto lugar, a criação de um verdadeiro ambienteinovador, calcado na internalização de uma cultura em-preendedora permeando os mais diferentes atores locais– não apenas empresários, mas sindicalistas, governan-tes, parlamentares, lideranças comunitárias – pode se cons-tituir em benefício econômico regional de monta. Parce-la crescente (mesmo que não majoritária) dessas liderançastem demonstrado vocação para tal, o que, por si só, evi-dencia o potencial existente para a criação de uma siner-gia positiva fundada no espírito inovador.

Por último, mas não menos importante, os ganhos emtermos de qualidade de vida (derivados da geração de rendae emprego e dos investimentos públicos sociais) viabilizama constituição de uma imagem regional positiva, capaz de

atrair novos empreendedores (empresários e trabalhadores).Cabe recordar, aqui, a necessidade de um novo arranjo ins-titucional de caráter regional, compatível com a adoção deações conjuntas em temas como o meio ambiente (haja vistaa presença dos mananciais da Billings ou a problemática dolixo urbano), o uso e a ocupação do solo, o transporte cole-tivo intermunicipal intra-Grande ABC, etc.

CONCLUSÃO: MARKETING REGIONAL

O coroamento de uma estratégia regional, inspirada nadefesa do nível de renda e emprego e materializada emações visando redução de custos e, sobretudo, aperfeiçoa-mento e criação de benefícios econômicos, consiste nagestação de uma imagem pública positiva do Grande ABC(seja do ponto de vista do conjunto dos moradores, sejado ângulo dos formadores de opinião e tomadores de de-cisão internos e externos à região).

Para tanto, não bastam apenas ações concretas, pois oque importa, na prática, é a percepção que as pessoas ad-quiram dessas ações. Nesse sentido, a reversão da ima-gem econômica dominantemente negativa de hoje, bemcomo sua substituição por uma imagem positiva, que des-taque as vantagens regionais, passa pela implementaçãode um marketing público regional capaz de fortalecer aidentidade positiva da região e, com isso, dar sustentaçãoàs ações integradas de interesse coletivo.

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