"Os movimentos sociais não se articulam"

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| MUNDO | B11 SALVADOR, DOMINGO, 1/2/2009 [email protected] MANIFESTAÇÃO Dezenas de opositores, entre eles o líder do partido nacional bolchevique Eduard Limonov, foram detidos ontem em Moscou quando tentavam organizar manifestações para pedir a renúncia do primeiro-ministro russo, Vladimir Putin. BRASIL EDITORA-COORDENADORA Hilcélia Falcão (interina) EDITOR DE MUNDO Rodrigo Vilas Bôas (interino) AFP PHOTO / DMITRY KOROTAYEV “Os movimentos sociais não se articulam” ELÓI CORRÊA | AG. A TARDE Boaventura de Souza Santos | Sociólogo português E m entrevista exclusiva ao repórter Vitor Pamplona, en- viado especial ao Fórum Social Mundial, em Belém (PA), que termina hoje, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, 68, identifica divisões entre os próprios movimentos que dão sustentação ao fórum. “No Brasil, eles não se unem. Suas reuniões são cerimoniais”, diz o intelectual. A TARDE | O senhor tem dito que o fórum precisa se posicio- nar concretamente diante da crise econômica e de eventos como a ofensiva de Israel na Fai- xa de Gaza, sob pena de se tor- nar irrelevante. Esta resposta está sendo dada? BOAVENTURA DE SOUZA SAN- TOS | Creio que estamos no pro- cesso de a dar. Isso se nós puder- mos fazer uma articulação mais forte entre o Fórum Social Mun- dial e a assembleia dos movi- mentos sociais. Tenho defendido que o fórum deve manter-se co- mo espaço aberto, mas acho que é preciso tomar algumas deci- sões e dar a conhecer ao mundo nossas posições. Isso pode ser feito a partir de uma declaração do tipo “o Fórum Social Mundial, através da assembleia dos movi- mentos sociais, decide A, B e C”. É muito importante que o mundo conheça a posição do Fórum So- cial, no momento em que há uma crise enorme do capitalismo, e o zemos que é fundamental haver uma reforma agrária para que haja uma economia camponesa e familiar, no centro do modelo rural, é também uma posição contrária a tudo o que o capita- lismo agrário fez até hoje. AT | Mas falar em pós-capitalis- mo hoje não soa, aos ouvidos da opinião pública internacional, como uma utopia? BSS | Não é utopia porque o Fó- rum Econômico de Davos, ao contrário do que dizia antes, fala agora em um capitalismo pós-crise, que é um capitalismo diferente. Com mais presença do Estado, mas ainda o capitalismo. O que nós dizemos é que este ca- pitalismo diferente não vai dar a solução. Para que essa crise seja verdadeiramente resolvida, te- mos que pensar em outro hori- zonte. Não vamos criá-lo ama- nhã, sabemos muito bem. A ideia do pós-capitalismo é que o capi- talismo não existiu sempre e não vai existir para sempre. Isso é his- tórico. Existiu o mundo antes do capitalismo e vai existir o mundo depois do capitalismo. AT | O senhor é partidário do plurinacionalismo, em que vá- rias nações coexistam num mesmo país. No caso do Brasil, a nação afro, a mestiça, a branca e a indígena. Não há uma contra- dição em defender uma socie- dade sem barreiras e, ao mesmo tempo, um Estado plurinacio- nal baseado em etnias? BSS | Não, de maneira nenhu- ma. Antes de superarmos as bar- reiras entre países, temos que su- perar as barreiras dentro dos paí- ses. Muitos países ergueram bar- reiras étnicas e raciais em torno de povos que, porventura, eram a maioria. Os povos indígenas não existiam nas Nações Unidas. Quando a ONU foi criada, não havia povos indígenas da Bolívia. Havia camponeses, mas não de- ram oportunidade aos indíge- nas. No Brasil, só recentemente os povos indígenas deixaram de ser apenas camponeses. É o que chamo de sociologia das ausên- cias. Esses grupos, que eram au- sentes, começaram a ficar pre- sentes. Não é contradição que- brar barreiras dentro dos Estados antes de quebrá-las entre os Es- tados. O problema é que, quando falamos com nações sem territó- rio, elas rejeitam o plurinaciona- lismo. No Oriente Médio, os cur- dos querem seu Estado nacional. Na Espanha, os bascos querem seu Estado nacional. * QUEM É | Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Possui trabalhos publicados sobre temas como globalização, democracia, direitos humanos etc. Fórum Econômico Mundial, em Davos, está a apresentar suas so- luções. Nós temos soluções dife- rentes e devemos detalhá-las. AT | Mas, para esse documento virar uma realidade, é necessá- rio que muitos movimentos su- perem suas diferenças e se apro- ximem mais, como o senhor de- fende. O que impede a articula- ção mais próxima dos movi- mentos sociais? BSS | É toda uma tradição, mui- to longa. Todos os movimentos sociais se organizaram a partir de questões muito concretas, que diziam respeito a um grupo de- finido de pessoas. Os afrodes- cendentes, os ecologistas, as mu- lheres, os indígenas. A tradição deles é lutar por uma questão concreta. Todas as outras fica- ram à sombra, foram considera- das menos importantes. Um exemplo é o movimento sindical, para quem a questão operária era acima de tudo a questão fun- damental da luta de classes. Há toda uma tradição de divisão, de separação. Estamos a tentar su- perar, no século 21, toda essa tra- dição. Os movimentos começa- ram a conhecer uns aos outros. O Fórum Social Mundial tem uma importância estratégica nisso. Sou testemunha de movimentos sociais que trabalhavam a 50 km de distância ou na mesma cidade e não se conheciam. Agora tro- cam e-mails e vão se articulando. Mas não é uma coisa que possa ser realizada por uma geração. AT | A proposta do senhor para a economia em crise pressupõe necessariamente uma mudan- ça do sistema econômico, fora do capitalismo? BSS | Eu penso que ela caminha para uma solução pós-capitalis- ta, obviamente. Quando nós fa- lamos que, acima de tudo, a par- tir de agora, temos que olhar para as energias renováveis estamos a por em causa um dos pontos fun- damentais do capitalismo de ho- je, que é exatamente o dos com- bustíveis fósseis. Quando fala- mos da taxa Tobin [tributo pro- posto americano James Tobin, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1981, que incidiria sobre transferências financeiras internacionais de natureza espe- culativa], quando dizemos que não é possível fazer especulação com as chamadas commodities, o que faz subir os preços dos pro- dutos agrícolas no mundo e, por- tanto, vai aumentar a fome, tudo isso é uma lógica não-capitalista, pós-capitalista. Quando nós di- Cropped by pdfscissors.com

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Entrevista com o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, durante o Fórum Social Mundial de 2009, em Belém

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| MUNDO |B11SALVADOR, DOMINGO, 1/2/2009

m u n d o @ g r u p o a t a rd e . c o m . b r

A RT I G O ❚

O próximo passo da AméricaMIKHAIL GORBACHEV | THE NEWYORK TIMES

O novo presidente dos EstadosUnidos acaba de prestar o jura-mento de assunção ao cargo, al-go que acontece regularmente acada quatro anos. Desta vez,contudo, o evento foi sem prece-dentes. Ele se seguiu a uma cam-panha nunca vista, tanto emsubstância quanto pela urgênciaao seu redor; foi sem precedentestambém pelo envolvimento dopovo, particularmente os jovens.Igualmente sem igual foi o resul-tado – um marco no sepultamen-to do legado da escravidão e doracismo. O apoio e a confiança nopresidente Barack Obama entreos americanos, incluindo muitosque não votaram nele, tambémfoi jamais visto.

Globalmente, também, hou-ve um interesse nunca registradoanteriormente na campanha,com vastas e generalizadas espe-ranças de mudanças na políticados EUA. Praticamente todomundo está agora torcendo pelosucesso do novo presidente. Asrazões principais para tudo istosão a economia global e as ten-sões políticas e a pressão dos pro-blemas que vêm se acumulandohá décadas e não tem há notíciasde registro anterior similar nomundo moderno.

Em seu discurso de posse,Obama se referiu a estes proble-mas sobriamente e sombria-mente. A crise, ele afirmou, é“uma consequência da ganânciae da irresponsabilidade por partede alguns, mas também nossa fa-lha coletiva em fazer escolhas di-fíceis e preparar a nação parauma nova era”. O apoio maciçodos americanos dá a Obama umagrande oportunidade. Mas,grandes expectativas ao redor danação e do mundo também po-dem ser uma carga, que ele e suaequipe terão que suportar. Ele jáescolheu o seu time; é muito ce-do para saber se as suas escolhasirão funcionar.

Compreensivelmente, o pre-sidente irá focar inicialmente nacrise econômica. Entretanto, re-solver os problemas econômicosda América sem mudanças fun-damentais no mundo será im-possível. O “Consenso deWashington”, que assumiu que a

economia global poderia ser de-lineada a partir de um único cen-tro, tem sido desacreditado co-mo um modelo global. Ele era ba-seado inteiramente no motivodo lucro e de um consumo exces-sivo, e em instituições falhas e ul-t ra p a s s a d a s.

Um novo modelo precisa re-conhecer a necessidade de coo-peração multilateral. Em seu dis-curso, Obama reconheceu que asameaças de hoje demandam“uma cooperação e um entendi-mento ainda maiores entre asnações”. Eu tenho certeza que,ainda que sejam fortes o criticis-mo e mesmo a raiva que algumasações dos EUA tenham suscitadoatravés do mundo – na Europa,China, Índia, Rússia, AméricaLatina –, os líderes e o público emgeral compreendem a importân-cia do papel da América e estãoprontos para cooperar com amesma. Mas, este é precisamen-te o “xis” do problema. A Américaestá pronta? E, se estiver, sobreque bases se dará esta prontidão– velhas ou novas?

COMPROMETIMENTO – Emseu discurso, Obama disse: “Omundo mudou, e nós precisa-mos mudar com ele”. O compro-metimento com estas palavrasprecisa ser provado com ações edecisões específicas. E isto vai re-querer uma análise honesta erealista da situação global. Estetipo de análise esteve em faltanos EUA por quase duas décadas.A América estava se vendo comoquase onipotente. A arrogância eo triunfalismo cegaram os faze-dores da política e slogans toma-ram o lugar do pensamento sé-rio. O século 20 foi um séculoamericano – vamos fazer do sé-culo 21 outro século americano.Este sentimento, colocado àfrente da presidência dos EUA hámais de uma década, foi ecoadopor aqueles que estiveramguiando as políticas do país nosanos recentes.

Só que o mundo não vai con-cordar em desempenhar o papelde coadjuvante em um filme comroteiro escrito pelos EUA. Final-mente, um reconhecimento des-sa atitude parece estar emergin-do nos EUA. A América está des-pertando de uma longa euforiaacerca da sua suposta onipotên-

cia. O resultado da eleição presi-dencial é um reconhecimentoque o poderio da América nãovem da construção de prédios oude aventuras militares, mas dasua habilidade de corrigir os seuserros, quer eles tenham sido co-metidos há muito tempo ou re-centemente. Uma correção derumo da política exterior não étraçada da noite para o dia, parti-cularmente quando o que se pre-cisa não é um mero ajuste, massim uma revisão completa. O queo novo presidente e os membrosda sua equipe têm dito até agoraainda não é suficiente para dis-cernir a direção que eles irão to-mar. Obama está recolhendo to-do tipo de conselhos, entretanto.

Zbigniew Brzezinski (nota dotradutor: cientista e estrategistageopolítico americano de ori-gem polonesa que serviu comoconselheiro de segurança nacio-nal dos EUA durante o governode Jimmy Carter, entre 1977 e1981) está propondo um foco nasrelações com a China. Suas de-clarações recentes em Beijing(Pequim) parecem sugerir um ti-po de condomínio EUA-China,

G-2. De fato, a importância eco-nômica e política da China ao re-dor do globo continuará cres-cendo, mas penso que quem de-sejar iniciar um novo jogo geopo-lítico por aí ficará desapontado. AChina dificilmente aceitará isto;de um modo geral, estes tipos dejogos são passado. Similarmen-te, as propostas de Henry Kissin-ger para uma “nova ordem mun-dial” parecem assumir uma novadivisão geopolítica do mundo. Oque realmente necessitamos sãonovas e mais modernas aborda-g e n s.

NOVA EUROPA – Um bom nú-mero de líderes europeus, vete-ranos políticos e figuras públicastêm instado o novo presidenteamericano a reconsiderar as po-líticas passadas que há muitotempo têm sido tomadas comopadrão. Os EUA, que em 1990 as-sinaram a Carta de Paris parauma Nova Europa, poderiam serum parceiro natural na criaçãode uma nova estrutura de segu-rança europeia – um projeto oraem discussão. Eu também espe-ro que o presidente Obama en-xergue o grande potencial posi-tivo inerente nas relações com aRússia, que tem sido mal traba-lhado nos anos recentes. Umamudança para melhor poderiaser obtida relativamente rápido,ajudando a movimentação emdireção ao estabelecimento derelações mais saudáveis com osvizinhos da Rússia e dentro daEuropa como um todo.

Na formulação de uma políti-ca para o Oriente Médio, uma realbatalha é inevitável. Se algumacoisa deveria se tornar cristalina-mente clara nos anos recentes éque “os negócios usuais” sim-plesmente não funcionam na-quela região. Esta tática apenastorna o Oriente Médio cada vezmais perigoso, um campo fértilpara o extremismo e o terrorismo.As atuais políticas dos EUA nãotêm sido boas para a região comoum todo ou, em particular, paraIsrael, uma nação com a qual osEUA têm relações especiais.

Dois problemas de longo pra-zo têm assumido uma urgênciaespecial e irão requerer umaatenção minuciosa de Obama: anão-proliferação nuclear e a cri-se ambiental global. Não será fá-

cil desemaranhar a intricada re-de de contradições que circun-dam essas questões. Circunscre-ver a não-proliferação de umaforma que o Irã e a Coreia do Nor-te cessem seus programas nu-cleares apenas levará a um finalinfeliz. As potências nuclearesnão serão capazes de manter seumonopólio indefinidamente, e éclaro que o Tratado de Não-Pro-liferação não irá permitir esta ex-pansão. A solução é mover-se emdireção a um mundo sem armasnucleares. Mas, esta meta nãopode ser alcançada se um paísdetém uma superioridade alar-mante sobre outros no que se re-fere a armas convencionais. Sempassos específicos para reduzirestas armas – ou, mais abrangen-temente, sem a desmilitarizaçãoda política internacional – nósteremos apenas um monte deconversas vazias. O que é neces-sário é uma trégua real, comoaquela alcançada no final da dé-cada dos anos 80.

Julgando pelo discurso inau-gural de Obama, ele compreendeque, mesmo enquanto enfrentaos desafios imediatos da criseeconômica, ele não deveria em-purrar para a margem problemascomo a pobreza e as questõesambientais, particularmente asmudanças climáticas. Fomentaro desenvolvimento econômico epreservar o planeta para as futu-ras gerações pode ser contraditó-rio; a única maneira de resolvereste choque de prioridades é de-senvolver políticas multilateral-mente. Isto é verdadeiro parapraticamente todos os proble-mas, em todas as áreas.

Eu suspeito que, exatamenteagora, muitas pessoas estão re-fletindo sobre o chamado do no-vo presidente dos EUA paraconstruir uma nova era de res-ponsabilidade. Talvez nem elenem nós possamos ainda ver queforma ela irá tomar. Mas, umacoisa já está clara, contudo: nósestamos de fato no limiar de umanova era, na estrada para um no-vo mundo, um mundo no qualprecisamos viajar juntos.

Mikhail Gorbachev | foi líder da antiga UniãoSoviética, de 1985 até o seu colapso em 1991.Agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 1990,atualmente é presidente da FundaçãoInternacional para Estudos Socioeconômicos ePolíticos (The GorbachevFoundation).Tradução: Augusto Queiroz

❛“O presidenteObama irá focarinicialmente nacrise econômica.Entretanto,resolver osproblemaseconômicos daAmérica semmudançasfundamentais nomundo seráimpossível”

MANIFESTAÇÃO Dezenas de opositores, entreeles o líder do partido nacional bolchevique EduardLimonov, foram detidos ontem em Moscou quandotentavam organizar manifestações para pedir arenúncia do primeiro-ministro russo, Vladimir Putin.

BRASILEDITORA-COORDENADORA

Hilcélia Falcão(interina)EDITOR DE MUNDO

Rodrigo Vilas Bôas(interino)

AFP PHOTO / DMITRY KOROTAYEV

“Os movimentos sociaisnão se articulam”

ELÓI CORRÊA | AG. A TARDE

Boaventura de Souza Santos | Sociólogo português

Em entrevista exclusiva ao repórter Vitor Pamplona, en-viado especial ao Fórum Social Mundial, em Belém (PA),que termina hoje, o sociólogo português Boaventura deSouza Santos, 68, identifica divisões entre os própriosmovimentos que dão sustentação ao fórum. “No Brasil,

eles não se unem. Suas reuniões são cerimoniais”, diz o intelectual.

A TARDE | O senhor tem ditoque o fórum precisa se posicio-nar concretamente diante dacrise econômica e de eventoscomo a ofensiva de Israel na Fai-xa de Gaza, sob pena de se tor-nar irrelevante. Esta respostaestá sendo dada?BOAVENTURA DE SOUZA SAN-TOS | Creio que estamos no pro-cesso de a dar. Isso se nós puder-mos fazer uma articulação maisforte entre o Fórum Social Mun-dial e a assembleia dos movi-mentos sociais. Tenho defendidoque o fórum deve manter-se co-mo espaço aberto, mas acho queé preciso tomar algumas deci-sões e dar a conhecer ao mundonossas posições. Isso pode serfeito a partir de uma declaraçãodo tipo “o Fórum Social Mundial,através da assembleia dos movi-mentos sociais, decide A, B e C”. Émuito importante que o mundoconheça a posição do Fórum So-cial, no momento em que há umacrise enorme do capitalismo, e o

zemos que é fundamental haveruma reforma agrária para quehaja uma economia camponesae familiar, no centro do modelorural, é também uma posiçãocontrária a tudo o que o capita-lismo agrário fez até hoje.

AT | Mas falar em pós-capitalis-mo hoje não soa, aos ouvidos daopinião pública internacional,como uma utopia?BSS | Não é utopia porque o Fó-rum Econômico de Davos, aocontrário do que dizia antes, falaagora em um capitalismopós-crise, que é um capitalismodiferente. Com mais presença doEstado, mas ainda o capitalismo.O que nós dizemos é que este ca-pitalismo diferente não vai dar asolução. Para que essa crise sejaverdadeiramente resolvida, te-mos que pensar em outro hori-zonte. Não vamos criá-lo ama-nhã, sabemos muito bem. A ideiado pós-capitalismo é que o capi-talismo não existiu sempre e nãovai existir para sempre. Isso é his-tórico. Existiu o mundo antes docapitalismo e vai existir o mundodepois do capitalismo.

AT | O senhor é partidário doplurinacionalismo, em que vá-rias nações coexistam num

mesmo país. No caso do Brasil, anação afro, a mestiça, a branca ea indígena. Não há uma contra-dição em defender uma socie-dade sem barreiras e, ao mesmotempo, um Estado plurinacio-nal baseado em etnias?BSS | Não, de maneira nenhu-ma. Antes de superarmos as bar-reiras entre países, temos que su-perar as barreiras dentro dos paí-ses. Muitos países ergueram bar-reiras étnicas e raciais em tornode povos que, porventura, eram amaioria. Os povos indígenas nãoexistiam nas Nações Unidas.Quando a ONU foi criada, nãohavia povos indígenas da Bolívia.Havia camponeses, mas não de-ram oportunidade aos indíge-nas. No Brasil, só recentementeos povos indígenas deixaram deser apenas camponeses. É o quechamo de sociologia das ausên-cias. Esses grupos, que eram au-sentes, começaram a ficar pre-sentes. Não é contradição que-brar barreiras dentro dos Estadosantes de quebrá-las entre os Es-tados. O problema é que, quandofalamos com nações sem territó-rio, elas rejeitam o plurinaciona-lismo. No Oriente Médio, os cur-dos querem seu Estado nacional.Na Espanha, os bascos queremseu Estado nacional.

* QUEM É| Boaventura deSousa Santos éprofessor catedráticoda Faculdade deEconomia daUniversidade deCoimbra. Possuitrabalhos publicadossobre temas comoglobalização,democracia, direitoshumanos etc.

Fórum Econômico Mundial, emDavos, está a apresentar suas so-luções. Nós temos soluções dife-rentes e devemos detalhá-las.

AT | Mas, para esse documentovirar uma realidade, é necessá-rio que muitos movimentos su-perem suas diferenças e se apro-ximem mais, como o senhor de-fende. O que impede a articula-ção mais próxima dos movi-mentos sociais?BSS | É toda uma tradição, mui-to longa. Todos os movimentossociais se organizaram a partir dequestões muito concretas, quediziam respeito a um grupo de-finido de pessoas. Os afrodes-cendentes, os ecologistas, as mu-lheres, os indígenas. A tradiçãodeles é lutar por uma questãoconcreta. Todas as outras fica-ram à sombra, foram considera-das menos importantes. Umexemplo é o movimento sindical,para quem a questão operáriaera acima de tudo a questão fun-

damental da luta de classes. Hátoda uma tradição de divisão, deseparação. Estamos a tentar su-perar, no século 21, toda essa tra-dição. Os movimentos começa-ram a conhecer uns aos outros. OFórum Social Mundial tem umaimportância estratégica nisso.Sou testemunha de movimentos

sociais que trabalhavam a 50 kmde distância ou na mesma cidadee não se conheciam. Agora tro-cam e-mails e vão se articulando.Mas não é uma coisa que possaser realizada por uma geração.

AT | A proposta do senhor paraa economia em crise pressupõenecessariamente uma mudan-ça do sistema econômico, forado capitalismo?BSS | Eu penso que ela caminhapara uma solução pós-capitalis-ta, obviamente. Quando nós fa-lamos que, acima de tudo, a par-tir de agora, temos que olhar paraas energias renováveis estamos apor em causa um dos pontos fun-damentais do capitalismo de ho-je, que é exatamente o dos com-bustíveis fósseis. Quando fala-mos da taxa Tobin [tributo pro-posto americano James Tobin,ganhador do Prêmio Nobel deEconomia de 1981, que incidiriasobre transferências financeirasinternacionais de natureza espe-culativa], quando dizemos quenão é possível fazer especulaçãocom as chamadas commodities,o que faz subir os preços dos pro-dutos agrícolas no mundo e, por-tanto, vai aumentar a fome, tudoisso é uma lógica não-capitalista,pós-capitalista. Quando nós di-

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